ESTADO E TERCEIRO SETOR: a Educação …O intuito do Terceiro Setor deve ser o de desenvolver...
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ESTADO E TERCEIRO SETOR:
a Educação Complementar como um caso de coprodução de
um bem público
Rezilda Rodrigues Oliveira1 Karla Bezerra de Souza Sobral1
RESUMO O artigo explora a temática que envolve Estado e Terceiro Setor. Mais especificamente, o objetivo que se pretende atingir consiste em abordar a educação complementar como um caso de coprodução de um bem público por parte de uma organização do Terceiro Setor. O referencial remete à complexidade institucional da relação do Estado com o Terceiro Setor, sobressaindo o papel das ONGs, junto com a abordagem de questões ligadas à coprodução de um bem público que estas oferecem às comunidades e instituições da rede pública de ensino para desempenhar sua missão por meio da educação complementar. Ressalta-se, ainda, a ênfase no desenvolvimento de processos socioeducativos realizados por ONGs que não são escolas. A metodologia aponta para a elaboração de um estudo de caso único, intrínseco e holístico, de natureza exploratório-descritiva, apoiada em diversificadas fontes empíricas, cujos dados foram coletados e analisados segundo seu viés qualitativo. Deu-se ênfase à análise histórica da evolução da educação complementar do Movimento Pró-Criança, da qual resulta a compreensão da importância de sua competência ao produzir dezenas de projetos que legitimam seu papel político-institucional, junto com a busca de sustentabilidade e geração de valor social. Assim, o estudo do Movimento Pró-Criança reflete a natureza institucional que lhe é inerente, com base em uma trajetória que vai do assistencialismo ao cumprimento de uma função mais identificada com a geração de autonomia para seus beneficiários, segundo a perspectiva de se tornarem agentes de seu próprio desenvolvimento humano, ao coproduzir um bem público, a educação complementar. Palavras-chave: Educação Complementar. Estado e Terceiro Setor. Coprodução de um Bem Público.
1 Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
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1 INTRODUÇÃO
No artigo aborda-se o papel do Terceiro Setor como uma alternativa que se
interpõe entre o Estado burocrático e o mercado insolidário (GARCIA, 2008;
GADOTTI, 2000), para que se teça uma reflexão sobre como propostas
educacionais voltadas para a população em geral (crianças, jovens e idosos), fora
do tempo e das características da educação escolar, podem ser realizadas por parte
de organizações não governamentais (ONGs).
Como explica Arvidson (2009), o Terceiro Setor reúne uma miríade de
organizações, cada qual com seu papel e exercício da advocacy de uma causa
específica, importando saber como tratam das questões de interesse público e
assumem determinado posicionamento, com o propósito de interferir tanto na
formulação como na implementação de políticas públicas. Neste sentido, para dar
concretude à discussão sobre o assunto, foi escolhido um tipo de coprodução de um
bem público desenvolvida pelo Movimento Pró-Criança, doravante Pró-Criança,
instituição que atua na Região Metropolitana do Recife (RMR).
A coprodução de um bem público na esfera da educação complementar por
parte do Pró-Criança aparece como uma ação tipicamente alinhada com essa
temática, segundo a qual se percebe que o Estado não se coloca como provedor
solitário de um bem público, mas como um agente que desempenha seu papel em
conjunto com outros atores da sociedade, envolvendo voluntarismo, cooperação e
ações de cidadania (BRUDNEY; ENGLAND, 1983), inclusive com a junção de
aprendizado coletivo, por meio de ações em redes e parcerias (SCHOMMER et al,
2011).
O foco adotado neste artigo recai justamente nas práticas ligadas aos
processos socioeducativos realizados por ONGs que não são escolas, porém
trabalham com educação em parceria com as escolas, desenvolvendo um projeto
político-pedagógico bem peculiar. Ou seja, a educação complementar, aqui
estudada, suplementa a educação formal, na linha estabelecida pela Lei no. 9.394,
de 1996, chamada de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) que
trata das diretrizes e bases da educação nacional e prevê a ampliação da
permanência na escola, bem como determina que o ensino fundamental seja
progressivamente ministrado em horário integral (BRASIL, 1996).
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Ante tais considerações, o trabalho remete a uma problemática que permite
discutir como uma dada ONG se articula junto à comunidades e instituições da rede
pública de ensino para desempenhar sua missão e as estratégias identificadas com
a educação complementar, sob diferentes aspectos explorados neste trabalho. Por
conseguinte, anuncia-se o objetivo do trabalho, que consiste em abordar a educação
complementar como um caso de coprodução de um bem público por parte de uma
organização do Terceiro Setor.
Para tanto, este artigo está estruturado em mais quatro seções, além desta
Introdução, a qual se segue o referencial utilizado, os procedimentos metodológicos
adotados, os resultados obtidos e as conclusões a que se chegou.
2 REFERENCIAL
De acordo com Albuquerque (2006), o termo Terceiro Setor também pode ser
utilizado como expressão associada às “organizações sem fins lucrativos” ou “setor
voluntário”, cuja ascensão foi produto de uma série de conjunturas de crises,
reformas e expansão de movimentos sociais e político-institucionais convergentes e
voltados tanto para limitar o poder do Estado quanto para abrir caminho para
aumentar a presença da sociedade civil organizada na execução de políticas
públicas e ações associativas (SALAMON, 1998). Neste sentido, constitui-se a
esfera pública não estatal, como um espaço alternativo onde agentes não
governamentais se mobilizam em torno da defesa, produção e/ou distribuição de
bens/serviços/direitos sociais (AMARAL, 2003).
As características do Terceiro Setor o diferenciam da lógica do Estado
(público com fins públicos) e do mercado (privado com fins privados), o que significa
lutar por algum grau de autonomia, sobretudo para poder contribuir para o
desenvolvimento humano por intermédio de serviços prestados por voluntários e/ou
funcionários pagos, com o intuito de solucionar os sérios problemas sociais e
atender ao interesse público (SALAMON, 2008).
Não é demais reconhecer seu constante esforço dedicado à captação de
recursos destinados à sustentabilidade financeira e institucional (ARMANI, 2004),
cujo desafio conduz à necessidade do desenvolvimento de capacidades para
atender às demandas que continuamente surgem do ambiente onde as ONGs estão
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inseridas (FERNANDES, 1995), no qual também residem as fontes de sua
legitimação sociopolítica, com vista à obtenção de aceitação e credibilidade
(ALDRICH; RUEF, 2006).
Dentre os desígnios do Terceiro Setor, um deles diz respeito à aquisição de
competência e condições necessárias para atuar de forma diferente do sistema
vigente na educação nacional, em meio à diversidade de suas organizações, que se
desdobram para identificar demandas de comunidades, cujo empenho pode levar à
elaboração de programas educacionais ajustados ante as necessidades
encontradas. Não é por acaso que a educação se tornou uma das principais áreas
de atuação das organizações que compõem o Terceiro Setor (SANTOS, 2006),
sendo as ONGs consideradas um dos segmentos mais propícios à oferta da
educação complementar, sem o peso burocrático do Estado.
O trato com o assunto revela interdisciplinaridade, pois abarca desde a
grande complexidade institucional do Terceiro Setor, sobretudo no caso das ONGs,
as quais atuam em um setor bem diversificado e envolvem desde atividades de
filantropia até projetos sociais de interesse público-privado. Ou seja, empresas,
governos e sociedade civil, reunidos sob a égide de estratégias orientadas para o
atendimento dos direitos da cidadania, compreendendo tanto temas educacionais
como ambientais, dentre inúmeros outros ligados ao social, ao político-institucional,
e ao econômico. Muitas ONGs desempenham seus papéis e colaboram para a
coprodução de resultados nesse campo, sobressaindo os processos educacionais
realizados em articulação com escolas e comunidade educativa (GOHN, 2008).
Dada a importância desta questão, não deve passar despercebido o
reconhecimento da educação como um bem público e um direito social, tendo em
vista sua finalidade essencial destinada à formação de sujeitos cidadãos (DIAS
SOBRINHO, 2013).
Em verdade, trata-se de uma verdadeira arena onde se identifica ONGs
atuando como mediadoras de atividades educacionais, desenvolvidas em parceria
firmadas com setores da comunidade local organizada, escolas, secretarias e
aparelhos do poder público, configurando o locus onde se insere a discussão
estabelecida neste trabalho (GOHN, 2008).
Antes, porém, de avançar na abordagem metodológica, cabe registrar que o
foco nesse tipo de educação não formal, coproduzida pelo Terceiro Setor e oferecida
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às comunidades e indivíduos que dela necessitam para o seu fortalecimento e
desenvolvimento, não implica substituir ou eximir o Estado de suas
responsabilidades no campo educacional.
O intuito do Terceiro Setor deve ser o de desenvolver ações e metodologias
que venham ser utilizadas para apoiar e incrementar o ensino público e gratuito, de
forma muito mais ágil que a educação formal (SANTOS, 2006), por intermédio de
processos e tecnologias apropriadas, ministradas por profissionais qualificados,
além de contar com infraestrutura potencial que dê suporte à demanda social com
eficiência e eficácia.
Inclusive, para que tal estratégia venha a ser legitimada, torna-se necessário
existir um projeto político-pedagógico, devidamente construído e consolidado
(VASCONCELOS, 2004), além de explicitar, com clareza, o tipo de ação educativa
que se deseja praticar. Somente assim, pode-se afirmar que pode ser legitimado
este tipo de intervenção e impacto por parte do Terceiro Setor, como coprodutor
desse bem público, por meio de uma ONG (ROCHE, 2000).
3 METODOLOGIA
Neste trabalho foi focalizado um fenômeno contemporâneo em um contexto
de vida real, centrado em uma organização (VERGARA, 2007). Deste modo,
realizou-se um estudo de caso único, intrínseco e holístico (YIN, 2005), exploratório
e descritivo, em que os dados foram coletados e analisados de acordo com seu viés
qualitativo.
Destaca-se nesta estratégia, a busca de evidências da coprodução de bem
público por parte de uma entidade do Terceiro Setor, voltada para o campo da
educação complementar. Assim, deu-se ênfase à análise histórica da evolução da
educação complementar no Pró-Criança, ao longo de suas duas décadas de
atividades, do que resultou o traçado longitudinal delineado na próxima seção, fruto
de diversificadas fontes empíricas: análise documental, visitas técnicas, cerca de
dez entrevistas semiestruturadas (com a preservação do anonimato dos depoentes),
discussões em grupo e observação não participante, que são instrumentos
comumente utilizados quando se deseja realizar uma detalhada exploração e
descrição.
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No processo de análise, as categorias temáticas foram definidas a priori, a
partir dos conhecimentos teórico-empíricos do pesquisador e do seu mapa
operatório (LAVILLE; DIONNE, 1999), conforme disposto no Quadro 1.
Quadro 1 – Estratégias de coprodução da educação complementar pelo Pró-Criança
Categoria de análise Elementos de análise
Formas evolutivas da educação complementar
Dados históricos e longitudinais da instituição
Estratégias de oferta de atividades pedagógicas e socioeducativas
Ações educacionais, projetos e conquistas institucionais mais relevantes
Fonte: Elaboração própria.
Ademais, também se fez a triangulação da teoria, dos dados e da
metodologia, de modo a se chegar à uma observação mais consistente acerca da
visão do fenômeno analisado (PATTON, 2002). Sendo assim, chegou-se aos
resultados apresentados na próxima seção.
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS
A seção inicia com uma breve apresentação do Pró-Criança, como uma ONG
ligada à Arquidiocese de Olinda e Recife, criada em 1993 para executar uma
importante obra de educação complementar, concentrada nos segmentos das artes,
do apoio pedagógico, da prática de esporte e da profissionalização de crianças,
adolescentes e jovens. Ao longo de duas décadas mais de 15.000 beneficiários já
foram atendidos (MOVIMENTO PRÓ-CRIANÇA, 2015).
Para tanto, o Pró-Criança possui uma estrutura bem definida, cuja gestão se
apoia em recursos humanos qualificados e em bases de sustentabilidade garantida
por recursos financeiros majoritariamente obtidos pela captação de doações de
pessoas físicas, mobilizadas mediante políticas de comunicação e marketing social.
Nos últimos oito anos, as contribuições individuais passaram de 23% na composição
de suas receitas para cerca de aproximadamente 60% (MOVIMENTO PRÓ-
CRIANÇA, 2015). Seu quadro de colaboradores é formado por aproximadamente
120 funcionários e 50 voluntários (pedagogos, educadores, psicólogos e assistentes
sociais), distribuídos em três unidades: a) Unidade dos Coelhos, onde está sua sede
no Recife; b) Unidade Piedade, localizada em Jaboatão dos Guararapes; e c)
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Unidade Recife Antigo, considerada o centro cultural da instituição (MOVIMENTO
PRÓ-CRIANÇA, 2015).
No tocante à educação complementar, esta pode ser categorizada de acordo
com as linhas programáticas do projeto político-pedagógico do Pró-Criança:
Psicossocial; Empregabilidade e Cidadania, Gestão e Governança e Infanto-Juvenil,
tal como identificadas junto com seus gestores. Até chegar à conformação dessas
atividades, a entidade desenvolveu uma filosofia assistencialista de trabalho, em
função da preocupação manifestada por um grupo de pessoas ligadas à Igreja
Católica, interessadas em pôr em prática algumas ideias voltadas para a realização
de trabalhos sociais e minimizar os problemas vivenciados pelas crianças,
adolescentes e jovens carentes da RMR, bem como mudar a história dessas
pessoas, muitas sem expectativa e sem autoestima.
O histórico levantado aponta que o Pró-Criança, no começo de suas
atividades, atuou como uma instituição intermediária, ajudando outras associações
com credibilidade na RMR, em articulações feitas junto a pessoas físicas e jurídicas
para angariar recursos e repassá-los às associações às quais davam assistência.
Eram realizados cursos nas comunidades, em paróquias, em unidades móveis e em
outros espaços, além de pagar professores para dar cursos profissionalizantes.
Também eram feitas doações de alimentos.
Porém, como constatado por seu diretor-presidente, em depoimento prestado
à pesquisa, em determinado momento, percebeu-se que essa política e seus
procedimentos não estavam atendendo à finalidade que inspirou a criação do Pró-
Criança, sobretudo porque se avaliou que as instituições existentes não tinham
projetos adequados para atender às peculiaridades desse público (CAMPELO,
2010).
A partir dessa evidência, o Pró-Criança foi assumindo paulatinamente o
atendimento de forma direta, contudo sem deixar de dar apoio às instituições
públicas e privadas as quais estava coligado (MOVIMENTO PRÓ-CRIANÇA, 1996).
Assim, no terceiro ano de seu funcionamento ampliou seu raio de atuação,
quando passou a lidar diretamente com os beneficiários efetivamente encontrados
em situação de rua, desde que estivessem vinculados à rede pública de ensino,
dado o acolhimento ser em tempo parcial.
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Foi criado o Programa Resgate, mais tarde configurado como um Programa
de Iniciação, o qual demarca o fortalecimento das ações de fundo socioeducativo,
representadas nas dezenas de projetos elaborados ao longo do tempo, viabilizados
por meio de parcerias, auxílios financeiros, trabalhos conjuntos, campanhas de
marketing social e, mais recentemente, pelo uso de redes de voluntariado e de
solidariedade, que constituem um mix da captação de recursos do Pró-Criança,
conforme levantamento realizado na pesquisa.
Um depoimento dado por um ator histórico explicita bem o sentimento e o que
o mobilizou a estar presente no momento fundacional do Pró-Criança:
Nós estávamos vivendo uma época, na década de 90, em que a sociedade estava preocupada com a questão dos meninos na rua. E aí foi a origem de tudo. Os meninos de rua traziam um problema muito sério para as pessoas, as pessoas ficavam aflitas, ninguém poderia parar o carro na esquina... Tudo isso foi fruto para gente começar a pensar... O que a gente pode fazer para ajudar a diminuir esse problema? (depoente não identificado).
O marco institucional da educação complementar, então, já apontava para o
intuito de dar formação sociocultural e profissionalizante aos menores efetivamente
em situação de rua na RMR, o que motivou o desenvolvimento de um trabalho
ordenado e interdisciplinar composto por atividades tais como: oficinas de arte,
cursos técnicos e instrumentais, além da realização de trabalhos com a família e a
comunidade, buscando instituir mecanismos para a inserção social dos beneficiários
atendidos (MOVIMENTO PRÓ-CRIANÇA, 2000).
Um traço fundamental consistiu na formação de uma equipe especialmente
preparada para realizar a abordagem de crianças e adolescentes que tinham contato
pela primeira vez com a instituição e eram convidados a participar de suas
atividades. O trabalho voluntário teve início nesse período, contando-se com a
dedicação de tempo extra de profissionais liberais, docentes e empresários ligados à
essa causa social. Alguns deles continuam até hoje atuando (direta ou
indiretamente) junto ao Pró-Criança.
A atração dos futuros beneficiários do Pró-Criança apoiava-se na realização
conjunta de atividades lúdicas e de diálogos, a fim de convencê-los a abandonar
hábitos e rotinas que proliferam na chamada situação de rua. A opção pela arte foi
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fruto de muita reflexão e aprendizagem acerca de como desenvolver a atividade-fim
da organização, segundo relato de um dos entrevistados:
[...] Os meninos não tinham base nenhuma para começar num curso profissional, era impossível, então se pensou na ideia do envolvimento com a arte, é mais fácil você dá uma visão mais lúdica das coisas, da autoestima [...] (depoente não identificado).
Mais adiante, o Pró-Criança pôs-se a elaborar projetos que combinavam arte
e cultura, tendo em vista a perspectiva de profissionalização de seu pessoal e dos
próprios beneficiários, vindo ser esta uma competência institucional adquirida e
aperfeiçoada cotidianamente.
O número de projetos elaborados ao longo de mais de 24 anos ultrapassa
uma centena e o número de parcerias levou a quase 300 acordos (formais e
informais), convênios e contratos firmados com pessoas físicas e jurídicas, segundo
consulta feita junto ao banco de dados disponíveis na ONG, validados por seus
gestores.
O destaque dos projetos ligados à educação complementar, eleitos como os
que “deram certo”, gerou muitas discussões e tensões criativas nas discussões em
grupo. É o caso do Corpo de Música e Dança Andarilho, criado em 1995 e atuante
até hoje, com um rico histórico de dezenas de apresentações locais, nacionais e fora
do país, merecendo citar que já revelou inúmeros talentos juvenis, hoje eles mesmos
voluntários do Pró-Criança ou trabalhando em companhias locais e internacionais
(CAMPELO, 2010).
O assunto foi discutido em uma oficina, que reuniu pessoas e gestores que
atuaram na ONG em diferentes momentos de sua trajetória, para que fosse feita
uma sistematização dos dados levantados, como esboçado na Figura 1, que permite
citar os projetos mais enfatizados nas memórias e registros documentais.
Na Figura 1, observa-se, em particular, que o ano de 2008 desponta como um
dos mais criativos e produtivos, não obstante este dado ser objeto de um recorte do
acervo histórico que demanda pesquisa mais extensa.
Entretanto, o interessante nessa análise emerge do processo reflexivo feito
pelos atores participantes, com o reconhecimento de que esta foi a forma pela qual a
educação complementar alcançou patamares mais elevados até chegar ao que hoje
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se configura como a principal competência do Pró-Criança: ser um agente de
desenvolvimento humano e de cidadania, conforme apontado pelos entrevistados.
Figura 1 – Histórias Fundamentais – Projetos que deram certo (educação complementar)
Fonte: levantamentos documentais, entrevistas e oficinas de validação.
Diante dessa perspectiva e contextualização histórica, foram também feitas
algumas das reflexões acerca do esforço do Pró-Criança para fortalecer seu projeto
político-pedagógico em construção e reconstrução, refletidas nas falas dos
participantes (Quadro 2).
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Quadro 2 – Reflexões sobre o projeto político-pedagógico do Pró-Criança
Extrato das falas de alguns participantes do grupo de discussão (não identificadas)
Práticas que deram certo foram consequência do processo de evolução do Pró-Criança. Quando você diz que práticas deram certo é que você montou um sistema de tal modo que aquilo vai fazer escola. Isso só com o tempo é que você vai ter o resultado. Você só pode dizer isso depois de certo tempo. Ninguém consegue estabelecer uma prática de sucesso se não tiver o caminho, um processo do conhecimento...
.... Desde o começo, o MPC mostrou que já tinha uma capacidade técnica com a oferta inicial de 26 cursos profissionalizantes...
Os professores traziam essas demandas, por exemplo: a dificuldade dos meninos de ler e escrever... Professores de português e de matemática para dá essa força, não na linha tradicional como um reforço escolar, mas na linha de ampliar o horizonte dos meninos para uma boa leitura, para uma boa concentração escolar, porque eles têm dificuldade de concentração. A gente em consonância com os professores, com a parte do psicossocial, que a gente chama as psicólogas, os assistentes sociais... Isso em reunião a gente foi amadurecendo como seria a proposta educacional. Então, todo viés do Pró-Criança além de ser social, ele sempre foi muito educacional...
A gente passou a ser uma educação complementar, principalmente no contexto que hoje se apresenta. A própria educação hoje tem a perspectiva da integralidade, e a gente enquanto educação é uma educação complementar. A gente vai ter que se adaptar a esse novo viés, na última reunião eu até coloquei, disse que as escolas não estão preparadas, principalmente as municipais, para ter este fim integral. Então, é fundamental a possibilidade dessas parcerias inclusive com instituições que tenham um pouco mais de vivência na educação complementar. Como a gente tem! Se a gente tem know-how, a gente tem a possibilidade inclusive de sistematizar essa metodologia, que eu acho que é um ganho muito grande para o Pró-Criança...
Eu acho que esse trabalho, qualquer outro trabalho dentro do espaço educação ele tem que ser participativo. As pessoas têm que se apoiar, porque as experiências são muito diversificadas. Precisa dessa integração, dessa troca, muita abertura. Você precisa tá muito aberto, porque nós que vamos remanescendo, a gente tem essa missão de receber novos...
Fonte: Dados dos diálogos dos grupos de discussão
Na análise dos conteúdos das falas (Quadro 2), levou-se em conta a
contribuição de Santos (2006), para quem a oferta das atividades pedagógicas está
correlacionada com a demanda das comunidades que necessitam de um
desenvolvimento humano mais eficaz, para que seus integrantes se tornem atores
sociais mais fortalecidos e críticos diante da dinâmica do mundo atual. Inclusive, o
Pró-Criança tem buscado liderar os esforços que voltam para fortalecer a educação
integral, cada vez mais estreitando os laços com instituições congêneres do Terceiro
Setor, para que se trabalhe em conjunto com as escolas de ensino básico para
melhor atender a seus beneficiários.
A formação da Rede Pernambuco Voluntário, ou seja, a primeira rede de
voluntários na RMR, fundada em 2010, sob a égide do Pró-Criança, permite que se
divise as ramificações que estão sendo tecidas com a Associação de Assistência à
Criança Deficiente (AACD), o Núcleo de Apoio à Criança com Câncer (NACC), o
Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e o Lar do Neném,
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entre outros, para que se fortaleça os empreendimentos sociais das ONGs
(MOVIMENTO PRÓ-CRIANÇA, 2012).
Para finalizar a análise com um registro importante, vale destacar o
reconhecimento dado ao Pró-Criança pelo Ministério da Educação (MEC), como
uma instituição Educacional Inovadora e Criativa, dentre 178 instituições
educacionais brasileiras que foram selecionadas no rol das 682 organizações não
governamentais, escolas públicas e particulares que concorreram à chamada
pública realizadas em setembro de 2015 (MOVIMENTO PRÓ-CRIANÇA, 2015). A
próxima seção apresenta as conclusões a que se chegou no artigo.
5 CONCLUSÕES
O estudo aqui apresentado, que aborda a educação complementar como um
caso de coprodução de um bem público por parte do Terceiro Setor focalizou a
atuação do Pró-Criança, ao reunir evidências acerca dessa atividade desempenhada
por uma ONG. Neste sentido, joga-se luz sobre um processo em que se delineou o
desenvolvimento da capacidade do Pró-Criança para levar adiante seu projeto
político-institucional, em paralelo com a busca de sustentabilidade e geração de
valor social.
Aponta-se que a dimensão sociopolítica de sua atuação está estreitamente
ligada ao fato de o Pró-Criança lutar por realizações na arena educacional, com
competência afirmativa alinhada com as transformações em curso na sociedade, a
qual se fixa na caça da mutualidade de benefícios expressos por meio de resultados
positivos para todos os interessados no alcance do interesse público.
O viés adotado no trabalho delineia como se dá o desempenho de uma ONG
na conquista de um espaço que vai sendo historicamente conquistado pela
sociedade civil, vista sob a ótica da catalisação de conceitos da complementaridade
que estas organizações podem exercer, com base no desenvolvimento de
capacidades, competências, eficácia na apropriação de recursos e gestão de
parcerias sustentáveis para viabilizar o atendimento de seus beneficiários.
O estudo do Pró-Criança reflete a natureza institucional que lhe é inerente,
com base em uma trajetória que vai do assistencialismo ao cumprimento de uma
função mais identificada com a geração de autonomia para seus beneficiários,
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segundo a perspectiva de se tornarem agentes de seu próprio desenvolvimento
humano, através da educação complementar.
Assim sendo, mesmo que não se tenha tocado profundamente na questão da
capacidade de ação e transformação de uma organização diante do status quo
original por ela exibido, transparece na análise que esta teve sucesso na superação
do desafio posto em seus pressupostos iniciais de atuação, cujos avanços foram
sendo percebidos na pesquisa na medida em que foi se conhecendo melhor o
contexto no qual se estava trabalhando e na forma como o traçado evoluía, sem
deixar de lado a construção de uma identidade institucional ancorada no interesse
público e na percepção de que é possível ter voz crítica e exercer certo
protagonismo na arena pública não estatal.
No caso, estas questões foram evidenciadas através da opção consciente do
Pró-Criança, pela coprodução de um bem público ligado à educação complementar,
em uma arena estatal e societal onde disputa, com outros atores, um lugar
preferencial para o alcance de sua legitimidade institucional.
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