Essen Vieira de Almeida - Imprensa Nacional-Casa da Moeda · e Epistemologia, Lógica e Filosofia...

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA Luís Manuel A. V. Bernardo O essencial sobre VIEIRA DE ALMEIDA

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  • IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

    Luís Manuel A. V. Bernardo

    O essencial sobre

    VIEIRA DE ALMEIDA

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    I — PARADOXOS BIOGRÁFICOS

    Referências introdutórias

    Francisco Lopes Vieira de Almeida nasceu a 9 deAgosto de 1888, em Castelo Branco, vindo a falecerem Cascais a 20 de Janeiro de 1962. Realizou osseus estudos superiores na Faculdade de Letras deLisboa, onde se licenciou, em 1910, com uma teseintitulada História (Significado e Função). Após ad-quirir alguma experiência como professor liceal, in-gressou, em 1915, na categoria de assistente do grupode História da instituição onde se formara, transitandopara a Secção de Filosofia, em 1922, na sequênciade concurso, para o qual apresentou uma dissertaçãocom o sugestivo título de A Impensabilidade da Ne-gativa, trabalho cuja complexidade, sobrepondo-se,claramente, à diminuta extensão, segundo o cânoneacadémico vigente, reflectia a pujança de um pen-samento peculiar no panorama universitário nacional.

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    Não seria, ainda, a sua obra-prima, lugar que cabe-ria a Pontos de Referência, publicada, na versão de-finitiva, em 1961, mas estabelecia, já, um roteirofilosófico e um modo próprio de percorrê-lo, que atornam indispensável para a compreensão do per-curso do filósofo português. Talvez que, aliás, paraquem pretendesse apenas uma breve, mas represen-tativa, aproximação ao pensamento de Vieira de Al-meida, bastasse a consideração, a par destas duasobras, daquela que intitulou, em 1943, Introdução àFilosofia. Desde 1988 que a sua Obra Filosófica(OF) está reunida em três volumes, numa edição crí-tica de Joel Serrão e Rogério Fernandes. Esta compi-lação é precedida de duas amplas leituras propostaspelos editores que oferecem importante contributopara a análise de um conjunto constituído por cin-quenta e dois textos de teor variado, sobre Gnosiologiae Epistemologia, Lógica e Filosofia da Linguagem,Conhecimento Histórico e Sociológico, Psicologia,Filosofia da Arte, ao qual ninguém negou a extremadificuldade.

    Em 1930, obtinha a cátedra, tendo exercido, igual-mente, as funções de director da Secção de Filoso-fia, de 1936 a 1940. Leccionou uma quantidade sur-preendente de disciplinas, das quatro Histórias da

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    Filosofia à Filosofia em Portugal, da Teoria do Co-nhecimento à Psicologia Geral, da Moral à Pedago-gia e Didáctica, sem que, como defendeu Franciscoda Gama Caeiro, fosse legítimo «considerá-lo umburocrata do ensino, que ele nunca foi, nem quis ser»(CC). Uma visão panorâmica da obra filosófica res-saltará, outrossim, uma nítida implicação dos cami-nhos aparentemente erráticos do magistério, porquantonela se encontram registos de reflexões sobre as di-ferentes áreas disciplinares. Esta amplidão teve, de-certo, o seu papel na reputação intelectual que alcan-çou, ao lado da mestria de conferencista. Todavia,cabe ponderar se a marca cultural mais duradouranão terá sido a de, enquanto catedrático de Lógica,ter introduzido os estudos de lógica formal em Por-tugal, determinando, dessa feita, uma das orientaçõesespecíficas do ensino da Filosofia na Faculdade deLetras de Lisboa, consubstanciada, nas palavras deGama Caeiro, «em uma tradição viva que teve conti-nuadores nos doutores Délio Nobre Santos, Edmun-do Curvelo, José Tiago de Oliveira e, mais recente-mente, Manuel Santos Lourenço, entre vários outros»(CC, p. 11).

    Ora, com um historial de uma tal envergadura,apostado, como assumidamente esteve, em afinar a

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    filosofia em Portugal por um vector de modernidade,o pensamento de Vieira de Almeida mereceria, de-certo, constituir objecto de uma série de estudosaprofundados. Todavia, toda a bibliografia secundá-ria se reduz a uma entrada de enciclopédia, a um vo-lume da Revista da Faculdade de Letras, que recolheas intervenções do colóquio comemorativo do cen-tenário do seu nascimento, de que apenas nove tex-tos, dos dezoito, tratam do autor, se bem que todoseles se revelem indispensáveis, e uma dissertação demestrado sobre o seu pensamento estético, para ládas menções circunstanciais.

    O paradoxo queda avolumado por não se lhe po-der imputar, malgrado uma certa austeridade culti-vada, um excessivo hermetismo, uma vez que à maiorparte das suas publicações assistia uma manifestaintenção didáctica, nem um ascetismo enclausurado,pois teve actuação pública notória. Terá «o persistenteequívoco», nas palavras de Sottomayor Cardia (CC,p. 70), de que houvesse cultivado um positivismológico, dificultado a recepção da sua filosofia, oudever-se-á ao predomínio das perspectivas ontológi-cas que criticara o esquecimento em que caiu, ouserá a radicalidade metodológica da polémica por si

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    cultivada, sem a promessa de uma solução sistemá-tica, que acaba por motivar o aparente desinteresse?

    Este ensaio está, assim, animado pela expectativade poder contribuir para a divulgação de um pensa-mento filosófico peculiar que, por entre a variedadede temas e de problemas, se vai determinando se-gundo uma fórmula unificadora que a própria prá-tica do filosofar permite progressivamente identificar.Foi, tão-só, essa intencionalidade pragmática que,como hipótese, nos propusemos reconstituir, dei-xando, contudo, aqui e ali, o alinhavo de possíveislinhas de investigação.

    Normal, demasiado normal

    Em 1957, Vieira de Almeida foi entrevistado porIgrejas Caeiro. Dessa entrevista, a décima da série,ficou um registro discográfico que nos permite umcontacto mais directo com a personalidade do filó-sofo, apesar da rigidez do guião tipificado de acordocom um certo psicologismo eclético à procura deidentificar traços difusos de carácter, na infância, nosgostos, no índice de sociabilidade, que facilitassemo acesso à grandeza intelectual dos entrevistados.

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    Vieira de Almeida sobreviveu à estreiteza impressio-nista do questionário com um brilhantismo que con-firma todos os testemunhos sobre a agudeza do seuespírito, a finura da sua expressão, a mordacidadedo seu humor e a contundência do seu magistério,contrapondo ao espartilho inquiridor uma dinâmicamental cujos sobressaltos desmentiam o traço auto-biográfico de uma normalidade constante, uma quasebanalidade, que se empenhava em transmitir.

    Se não há razão para suspeitar da autenticidade doagrado com um quotidiano familiar burguês, longe,portanto, dos extremos de inadaptação e infelicidadeassociados à representação romântica do génio, per-cebe-se rapidamente a inviabilidade de uma caracte-rização unidimensional, por mais que o entrevistadose empenhe em insistir que, de toda a sua vida, oúnico aspecto digno de consideração mais particulartivesse sido a sua excelente relação com os alunos,a qual, nalguns casos, desembocaria, com naturali-dade, numa sólida amizade.

    A tónica na humilde normalidade de uma existên-cia calma não resiste à complexidade do seu percursocomo figura pública, tal como nos é relatado porMário Soares, na conferência de encerramento docolóquio em sua homenagem (CC, pp. 245 e segs.),

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    do alinhamento primeiro com o Integralismo Lusitanoà liderança oficial da campanha eleitoral do generalHumberto Delgado, sem que se visse, ou pretendesseser visto, como figura política, ou ao apadrinhamentoda vinda do socialista Bevan, apesar de não haverqualquer suspeita de que houvesse comungado politi-camente do marxismo, que o levou, aos 70 anos, aser detido pela PIDE e a uma curta permanência naprisão de Caxias.

    O traço de carácter que atravessa incólume estasaparentes variações, a fidelidade a uma atitude deindependência, que se traduzia num pendor oposi-cionista indeclinável, por isso mesmo, tão visível nosescritos quanto na prática, será, porventura, um dosmais difíceis de encontrar, pois que supõe um prin-cípio de coerência, raro, entre pensamento e acção,solidariedade que era, aliás, por si valorizada quandoafirmava não suportar as pessoas que professam umaopinião que renegam no agir. Assim, o humor comque terá encarado a sua passagem pelos meandrosda PIDE dever-se-á, com certeza, à fibra do carác-ter, mas, também, à aplicação daquela ideia oriundada racionalidade iluminista, por si enunciada na entre-vista, de que o compreensível é tolerado, com tantomaior indulgência quanto melhor compreendido, salvo

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    casos extremos que entrariam na categoria do into-lerável, o que acaba por retirar o pathos trágico àmaior parte das vicissitudes do quotidiano que pas-sam a ser lidas enquanto interesses particulares dosjogadores desse grande jogo que é a vida.

    Ora, essa consistência requeria a capacidade paracombinar, segundo a lógica da liberdade buscada,uma série de posições que se afigurariam comum-mente incompatíveis, se bem que se revelassem in-dispensáveis ao exercício de uma atitude que desig-naríamos como a de uma liberdade da liberdade, semtemermos o que nela ecoa de formalismo e utopia,de idealismo, mesmo, por julgarmos que não sãoatributos descabidos, relativamente à peculiaridade doprojecto existencial do autor.

    Complexidade, portanto, essa de querer, em plenoséculo XX, praticar uma ética próxima da defendidapelas escolas helenísticas, revisitadas pela racionali-dade iluminista. É assim que os três acontecimentosapontados são acompanhados por um processo decla-rado de distanciação, que garante uma liberdadefundamental, a qual não deve ser confundida comqualquer falta de empenho ou de convicção, mas, ar-riscamos, decorre do cruzamento de duas perspec-tivas oriundas de uma tradição de sageza de cariz

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    humanista, recorrente na história do pensamento, naqual Vieira de Almeida se revia: a, escalar, da impos-sibilidade de ter acesso ao sentido da História e acriteriológica, de que o homem será a medida de to-das as coisas.

    O artigo intitulado «A Fórmula Política», publicado,em 1914, no n.o 6 do ano I da Nação Portuguesa,que selou a sua breve ligação ao movimento integra-lista, pois que, sete anos depois, ainda que manten-do-se monárquico, já o encontramos a colaborar nosegundo número da Seara Nova, começava, precisa-mente, com uma ressalva, em si mesma surpreen-dente, tendo em conta o âmbito doutrinário da re-vista: «Eu não sou, rigorosamente, um integralista e,por esse facto, o systema nada tem que perder ouganhar. Não o sou, como não sou hegeliano, positi-vista ou kantiano» (NP, p. 165). Afastar-se-á progres-sivamente dos ideais nacionalistas e sociais do Inte-gralismo, de tal modo que, em 1948, concluirá umaobra fundamental, não só pelo seu alcance crítico,como também por nela verter explicitamente algumasdas suas convicções no âmbito da Filosofia Política,intitulada Paradoxos Sociológicos (1948), com umaapologia do indivíduo e do seu bem-estar (OF, III,p. 132), mas nunca abdicará da recusa de filiação

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    em doutrina ou sistema, como o confirma a distin-ção estabelecida no derradeiro parágrafo desse mes-mo livro: «A afirmação da realidade primacial do indi-víduo, em especial no campo vastíssimo da acçãona sociedade, não implica forma definida de ‘indivi-dualismo’. ‘Individualismo’ é sistema e muitos siste-mas errados podem construir-se sobre a mesmabase» (OF, III, p. 132).

    O seu compromisso com o presente era, portan-to, uma questão de ética, de uma apreciação valora-tiva da situação episódica, na qual não entrava nema vontade de provocar ou produzir o porvir, nem aconvicção de que estivesse a trilhar um caminho comsentido único ou exclusivo. E nesta perspectivaçãose insinua uma das distinções estruturadoras da suaconcepção filosófica, aquela que constantemente lem-brava, entre juízos de conhecimento, dependentes dovalor de verdade, e juízos valorativos, assentes numacerta apreciação, teoricamente contraditória, da ver-dade de certos valores. Por isso, almejava a ser re-cordado como pensador, livre de procurar o sentidodos enunciados, das teses, do próprio agir, sem terde se reduzir a uma bandeira única que se lhe afigu-raria, sempre, necessitada dos mecanismos adequa-dos de verificação

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    Teremos, provavelmente, dado com o motivo peloqual, ao longo da entrevista, insistia na sua funçãomagistral, se tomarmos na devida consideração oexercício de liberdade que pode resultar da relaçãopedagógica, descomprometida tanto das convençõesda publicação editorial, quanto dos constrangimentosdo agir, até das regras académicas da transmissão.Vieira de Almeida, que tanto iterara a sua inépcia paraa autobiografia, aquela feita de um caleidoscópio deepisódios de calibre tão diverso, percebemo-lo agora,procurava, polida, evasiva, mas obstinadamente, tra-çar o perfil da personagem filosófica na qual se re-via, apontando, dessa feita, o horizonte de sentido doseu percurso, a saber, o de ser isso mesmo, tão-sóum percurso filosófico, pensamento a fazer-se e arefazer-se, processo discursivo em marcha, orienta-ção argumentativa sem fim determinado, com umacondição única, inerente ao próprio funcionamentonormal da racionalidade: a coerência.

    De novo, normalidade, mas, uma vez mais, arti-culada com um paradoxo: o filósofo da liberdadeconferida pela prática da coerência, cartógrafo ne-gativo dos mundos impossíveis idealizados pelosoutros, tem de abdicar das experiências de consti-tuição positiva de um sistema. Normalidade de uma

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    disciplina da razoabilidade, vocacionada para um tra-balho de ordenação que, como defende em váriosmomentos da sua produção ensaística, depende ape-nas de uma aposta, no sentido que encontrou no«pari» de Pascal, toda atravessada, por conseguinte,pela profunda tensão entre o valor da liberdade purae a concrescibilidade do que lhe cabe analisar, a cadaetapa da reflexão mais imbuída da exigência crítica,que não pode deixar completamente ao abrigo a pró-pria obra que foi sendo construída. Essa reserva,coerente ela própria com a intenção filosófica ensaia-da, explicará que tão escassa menção fizesse, na en-trevista em causa, à sua larga obra publicada nos maisvariados campos, da poesia à dramaturgia, passandopela ensaística histórica e literária, a tradução e, so-bretudo, à filosofia. No fundo, não seria essa a liber-dade suprema, a de poder ser crítico do seu própriolegado? Mas, o que existe, verdadeiramente, senãoessa obra, se pretendermos mais do que a celebra-ção de uma atitude de arejamento intelectual (cf. CC,p. 30)?

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    II — A EXPECTATIVA DE MODERNIZAÇÃO

    Um pendor didáctico

    Facilmente se detectará a contradição entre essedesiderato e o volume da obra publicada, mas julga-mos poder avançar um outro traço que servirá à re-constituição do que designaríamos como uma coerên-cia em rede, tão típica dos autores de cariz iluminista:a vontade de intervir culturalmente num país que lheaparecia, em geral, sem uma política de educaçãosustentada e, no particular da especulação filosófica,distante do que se passava no resto da Europa, diag-nóstico que justifica o aspecto didáctico que sobressaina maioria dos textos. Da intenção de intervir nocampo filosófico dava-nos conta logo no fecho daparte introdutória de A Impensabilidade da Negati-va: «Em um país como o nosso, pobre de tradiçõesfilosóficas profundas, procuro — e é o lado práticoda questão — representar uma reacção contra o vulgo

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    letrado, que toma por alta filosofia qualquer devaneioliterário, de brilho falso e oca ressonância, muita vezcheia de erros e de ignorância impetuosa. Se conse-guir esse resultado nem tudo estará perdido» (OF,I, p. 266).

    É de notar que o modo como concebeu o seupapel não o levou a desmerecer os pensadores por-tugueses em geral, em prol de uma alternativa bus-cada numa outra origem, antes significou que oempenho na correcção do que se lhe afigurava erró-neo acabava por atribuir lugar de paridade a certasfiguras nacionais: Francisco Sanches, Luís AntónioVerney, Alexandre Herculano, Antero de Quental e, tãosurpreendente quanto constante, o Padre AntónioVieira, cujas citações enchem, por exemplo, Aspec-tos de Filosofia da Linguagem, publicada na versãodefinitiva em 1959.

    Mas, em tal reconhecimento, revelava-se assumi-damente parcial. Por recusar, com argumentos defundo, os espiritualismos metafísicos, não se sentiuobrigado a dialogar com muitas das figuras filosófi-cas pátrias suas contemporâneas, ainda que tenhaproduzido crítica, mais ou menos pormenorizada, detrês das tendências alternativas à sua: a metafísicaontológica, a axiologia metafísica e o existencialismo.

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    Inquietava-o, mais do que esta ou aquela tese, umaspecto de «impostura intelectual» que em todas en-contrava por pretenderem firmar como conhecimentoo que não passava de convicção. Nesse entendimentocrítico patenteara, por um lado, um dos vectores es-truturais da sua concepção filosófica — a distinçãonecessária entre o plano das condições vivenciais(onde a crença poderia afigurar-se indispensável) eo das condições epistémicas (para o qual os efeitosda imaginação e da crença se convertiam em obstá-culos com a força do «senso comum») — enquan-to, por outro, dava azo a que se lhe colasse, comfacilidade, o epíteto de positivista, no sentido difusode antimetafísico, cuja adequação caberá ponderar aolongo deste ensaio.

    Em contrapartida, procurou reconhecer uma linhana filosofia portuguesa que se lhe oferecesse comotradição, garantindo, do mesmo passo, um enraiza-mento para o intento de modernização que anunciara.Três textos obedecem a esse propósito, de diagnós-tico do estado dos estudos filosóficos, sem dúvida,mas, igualmente, de verificação da existência de umacaracterística cultural dominante que não só esca-passe ao peso da inquietação metafísica, como se re-velasse mais distintiva e, por essa via, mais profícua.

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    O primeiro, cronologicamente, Nota sobre o Ensinoda Lógica em Portugal (1940), dizia respeito, natu-ralmente, ao lugar que haveria de caber ao desenvol-vimento dos estudos de lógica formal que patrocinava.Nele pode ver-se, com clareza, a dupla intencionali-dade de diagnose e integração.

    Por um lado, detectava a existência de uma longatradição compendiaria, que remontaria a Pedro His-pano: «Chamo compendiária, neste caso, a obra de-rivada não só da necessidade didáctica e suas restri-ções, mas da situação especial de uma disciplina quegeralmente era tida por acabada, por sistema fecha-do» (OF, I, p. 523), cujos efeitos teriam tido reper-cussão europeia. Por outro, reconhecia a presença deuma corrente reactiva originada «no inevitável desen-contro da disciplina ensinada com a lógica viva, como pensamento em acção nos vários domínios» (OF,I, p. 523), igualmente extravasando as fronteirasnacionais.

    No panorama que se seguia destacavam-se dois mo-mentos dramáticos, os mesmos que se nos depara-rão constantemente, o que justifica que sejam tidos porbalizadores da tendência que Vieira de Almeida preten-dia fazer sua. Desde logo, o Renascimento: «O con-flito das duas correntes repercute em Portugal, no

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    século XVI, em duas obras dignas de nota, emborade intuito e mérito desiguais: a de António Gouveia— A. Goveani pro Aristotele Responsio Adversus Pe-tri Ramus Calumnias — e a de Francisco Sanchez —Quod Nihil Scitur» (OF, I, p. 524). Depois, a Ilus-tração: «A reacção em busca de uma utilidade ver-dadeira, por alteração do conteúdo e da forma daexposição, embora aceitando o critério da arte lógica,aparece-nos no livro de Verney De Re Lógica escritocomo compêndio para os adolescentes, a quem pre-vine sobre as acusações que possam ser-lhe dirigi-das, por ter posto de parte o caminho seguido pelosescolásticos» (OF, I, p. 527). Combinação das duastendências que antecipa o tipo de produção que foia do nosso autor.

    Por fim, encontrava a legitimidade cabal para o seumagistério: «Data do século XIX, entre outras provasde nobreza intelectual, a renovação dos estudos delógica e a nova orientação que lhe foi dada. E entrenós, nas Faculdades de Letras, uma cadeira repre-senta esse ramo de actividade científica. De essaactividade não há ainda — mas haverá certamente embreve — projecção densa publicada; no entanto jácomeça a manifestar-se a influência deste ensino e averificar-se-lhe a importância no quadro dos estudos

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    filosóficos» (OF, I, p. 529). Esta última passagembastaria para confirmar a sujeição da leitura do pas-sado a uma expectativa de acção cultural no presentecom vista a orientar o porvir.

    Filosofar em Portugal?

    Texto modelar de um tipo de hermenêutica da cul-tura, portanto, mas que a especialidade do objectodeixou marginal. Em contrapartida, os dois outros,mais, talvez, por uma leitura equívoca e apressadado que pela valorização da complexidade do objec-tivo, aliada à penetração do olhar filosófico projec-tado na história, viram-se convertidos em marcosincontornáveis do nosso processo colectivo de iden-tificação cultural. A tese que parece ínsita no títulodo primeiro, Dispersão do Pensamento FilosóficoPortuguês (1943), resumo editorial de um ensaiomaior, passou a chavão do discurso sobre as limita-ções da filosofia em Portugal, posição que viria aobter maior desenvolvimento no final do segundo,aliás maioritariamente ocupado com a refutação datese nacionalista de Vleeschauwer, Do PensamentoPortuguês (1944). Uma tal interpretação não resiste,

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    plenamente, a uma análise circunstanciada dos pró-prios textos, devendo, em consequência, ser matizada,sobretudo no que alguns têm admitido como críticaintransigente.

    Com efeito, Dispersão do Pensamento FilosóficoPortuguês pretende investigar uma hipótese herme-nêutica que, por assentar em conceito com valor detipo-ideal, não podendo, por isso, nenhuma das suastrês formas (geográfica, histórica e estrutural) esgotara feição característica do pensamento de um colec-tivo, carece de comprovação a posteriori, momentoa momento da diacronia: «Na hipótese que hojeapresento — e só como hipótese quero apresentá-laaqui — procura-se interpretar a dispersão do pensa-mento filosófico português, aceitando como ponto departida a existência de essa dispersão e a sua conti-nuidade. Não para estabelecer imaginárias causas,mas para ver se será possível caracterizar como dis-persiva, e em que sentido devemos e podemos fazê--lo, essa actividade em Portugal; ver se a compreen-são funcional de uma realidade poderá dar-nos melhorinteligência do que ela importa no conjunto a que per-tence e de que não deve separar-se» (OF, II, pp. 465--466). A oposição sustentadora do intento é aquelaentre causalidade e funcionalidade, a primeira afas-

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    tada em favor da segunda, que condiciona o alcanceda interpretação, mantendo-a na busca de um sen-tido cujas variações revelarão, eventualmente, umacerta frequência, sem nunca justificarem um deter-minismo, tão-só um «ritmo» (OF, II, p. 466), nãouma regularidade imperativa.

    Todo o artigo está, contudo, marcado por umadinâmica particular, como se traduzisse uma investi-gação agente, cujos moldes se vão adaptando às va-riações do inquirido. Partindo de uma definição clara-mente negativa da dispersão intrínseca, enquanto«permanente falta de estruturação […] um pensa-mento débil e flutuante, a que escapam as directrizese que na sua forma inconsistente se não ordena comsuficiente clareza para a apreciação nítida e o exameconsequente» (OF, II, p. 465), que parece reforçadaquando a qualifica, mediante a associação com adominante ontológica, como «qualquer forma de irra-diação deformadora» (OF, II, p. 467), segue umacurva quase inversa ao passar da teorização genéricaà apreciação histórica.

    Aqui, na avaliação do caso português, nomeada-mente nos três momentos cruciais dos Descobrimen-tos, da Ilustração e do Oitocentismo, Vieira de Almeidadesvendava uma combinação cuja possibilidade pare-

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    cia afastada do «movimento oscilatório», tomado emsentido formal: a de que o «pragmatismo vivido» (OF,II, p. 469), «a convicção não sistemática» (OF, II,p. 470), «a liberdade de pensamento» (OF, II, p. 471),não implicassem ausência de filosofia ou de espíritoespeculativo, embora não visassem obra de concen-tração. Podia, então, tirar uma conclusão peculiar:«Há evidentemente dispersão, no sentido de haver po-breza ou nulidade sistemática, mas não em qualqueroutro sentido. E facilmente o compreenderá quemnão esteja dominado pela ideia erradíssima de que afilosofia é um conjunto fixo de ideias, de atitudes oumesmo de problemas, em vez de reconhecer que elaé atitude privilegiada (e por isso pode notar-se) deexame, de análise, de crítica, esforço de coerênciano conjunto das ideias» (OF, II, p. 471). Encontrava,assim, a linhagem procurada, com a vantagem acres-cida de corresponder a uma vertente propriamentenacional, identificável em etapas de florescimentocultural.

    A análise das posições de Alexandre Herculano ede Antero de Quental, por sua vez, enquanto «duplareacção que em Portugal parece desenhar-se, peran-te a influência filosófica da época» (OF, II, p. 472),estribava uma feição polemista que também fez sua,

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    enquanto revelava a ambivalência dinâmica do vec-tor dispersivo nacional: «Estas duas reacções não seopõem contraditoriamente; se não erro, sobrepõem--se parcialmente, a primeira na sua repulsa de basedogmática, a segunda na sua crítica de independên-cia plena. Se a minha interpretação não é errada, elasresumem as condições dispersivas do pensamentoportuguês, ora voltado por circunstâncias da sua vidahistórica para problemas de acção absorvente, oraerguido em face de soluções e de construções, quercom a atitude da crença que preza, quer com a ca-pacidade de análise irreverente, de que não abdica»(OF, II, p. 474). Para quem continue, eventualmente,a julgar que Vieira de Almeida retirava dessa situaçãoqualquer conclusão negativa, impõe-se acabar a cita-ção: «E deve dizer-se que essa qualidade do portu-guês deveria cultivar-se, em vez de dar-se-lhe aindahoje por modelo a passividade intelectual e o respeito,não às ideias (que essa é condição da crítica, aindaquando tenha de refutá-las e combatê-las) mas a siste-matizadores fantasistas de aquilo que a alguns agrada»(OF, II, p. 474). Aquela que aparecia inicialmentecomo dispersão nefasta é, então, a puramente espe-culativa, fechada sobre elucubrações sem referentereal, e anticrítica, por excessiva veneração deste ou

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    daquele sistema, mas essa é tão universal que nãoserve para caracterizar o que seria o contributo po-sitivo do pensar português.

    No Esquema VII, sugestivamente intitulado «A ‘Ma-dre das Coisas’», confirmará, no quadro da discussãodas relações entre a experiência e a teoria, a actua-lidade, por vivermos em época que não reconhece«a possibilidade de grandes construções metafísicas»(OF, II, p. 684), dessa «paixão da experiência» (OF,II, p. 681), na base de uma preocupação humanista,versão moderna das éticas helenísticas, que se con-funde com o próprio interesse filosófico: «Na ver-dade é sempre o homem que o homem tem em vistaquando descobre, procura, absolve, condena, oucombate; e como cada vez menos a actividade e avisão cabem dentro de qualquer sistema rígido, sãoos sistemas que envelhecem, muitas de suas articula-ções que se enferrujam, e é sempre a posição humanaque se pretende compreender e melhorar» (OF, II,p. 685). A permanente observância do vivencial pode,assim, constituir-se como critério de detecção dovalor de humanismo das diversas propostas sistemá-ticas.

    Estas hipóteses são reforçadas em PensamentoPortuguês, adstritas, mais claramente, à noção epis-

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    temológica de «ambiente cultural»: «No ambiente,digo, porque me parece temerário tentar a determina-ção de caracteres intrínsecos, ainda quando julgásse-mos ter classificado perfeitamente os da ambiência,revelados na história; e a razão é simples: para transi-tar da história a uma realidade essencial é preciso sairdo domínio da história mesma, que só é inteligível esó existe com e pela variação» (OF, II, 482). Vieirade Almeida afastava, assim, qualquer tentativa de re-condução das suas hipóteses tanto à procura de umacaracterística anímica, fatalista ou racista (OF, II,p. 481), quanto à busca de um alinhamento defini-tivo da filosofia portuguesa a um princípio de racio-nalismo ou de irracionalidade (OF, II, p. 483). Dis-cutindo a tese germanófila de Vleeschauwer de que«o fundamento do espírito centro-europeu, represen-tado nuclearmente pelo pensamento alemão, se ca-racteriza pela sua estrutura irracionalista» (OF, II,p. 481), considera, igualmente, que «pretender, poroutro lado, que o Ocidente é estritamente lógico, porcausa da preparação escolástica, é certamente afirma-ção aventureira quanto à lógica e quanto à escolás-tica, sem falar da unilateralidade (e portanto, nestecaso, da falsidade) da causa apontada» (OF, II, p. 486),abrindo caminho para a hipótese de fundo que cons-

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    titui o princípio funcional norteador da sua aproxi-mação hermenêutica: «no complexo da vida de umacolectividade, seja qual for o seu mérito ou o seucontributo para a obra cada vez mais comum, a dife-rença (e não é pequena) consiste não nos elementos— quase sempre os mesmos — mas na proporçãoem que se encontram combinados» (OF, II, p. 488).

    São, por conseguinte, as configurações que histori-camente manifestaram esse equilíbrio, situado e rela-tivo, as mesmas dos textos precedentes, que Vieirade Almeida procura e valoriza no panorama culturalportuguês, acentuando a diferença, já aflorada noartigo anterior, entre as condições extrínsecas, aindaque influentes, o ambiente cultural geral, e o exercí-cio individual da reflexão filosófica, para extrair a se-guinte conclusão: «Nunca se formou, é evidente, umgrande ambiente filosófico português; mas as mani-festações individuais positivas — e só com elas devecontar-se — revelam tendência crítica, vontade de pôrà prova as ideias, amor ao experiencial e fraca apti-dão a perder pé em devaneios que se prestam à dis-sertação interminável mas se revelam inacessíveis àestruturação demonstrativa ou verificadora. Não pa-rece que tais qualidades possam menosprezar-se»(OF, II, pp. 496-497).

  • 28

    Embora mencione uma «tradição nossa de dualismorígido» (OF, II, p. 495) e aponte os perigos do em-pirismo chão (OF, II, p. 494), ou do pragmatismosuperficial (OF, II, p. 491), como eventuais conse-quências desse duplo pendor crítico e dispersivo,percebe-se que o traço que visa destacar é o dafunção reguladora e disciplinadora dos excessos sis-temáticos que pode caber ao tipo dispersivo: «se aexpressão ‘ocidentalismo filosófico’ é justa, ou namedida em que o é, deveria intensificar-se tal ociden-talismo, capaz, em todos os campos, desde a aná-lise minuciosa à crítica diligente, ou à dialéctica dis-putadora, de medir-se com certos irracionalismos quese têm por fecundos e que na mor parte dos casosaté agora não deram de si outra coisa mais do quea exposição confusa, nebulosa e mascarada de trans-cendente, do que fora visto com agudeza, precisãoe lucidez por homens que não pertenciam à greiromântica dos devaneadores» (OF, II, p. 497).

    A inclusão do pensamento português no conjuntodo pensamento ocidental desvia, naturalmente, o cen-tro do texto da questão nacional para aquela maisampla da conjuntura internacional, revelando a inten-ção de tomar posição relativamente ao desfecho daSegunda Guerra Mundial. Ainda que circunscrito ao

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    plano da intervenção cultural, o parágrafo final dotexto, desde o incitamento que o abre, não deixa dú-vidas sobre o alinhamento de Vieira de Almeida, cadaexpressão oferecendo-se carregada de significado po-lítico: «Impõe-se a união cultural do Ocidente, comtodas as consequências que dela possam advir, querda cultura típica, quer da solidariedade consciente.E nela não parece que o pensamento português,criado finalmente o meio favorável ao indivíduo, nãopossa vir a ter lugar tão digno como o de qualqueroutro colaborador, sem as ridículas, ilusórias, místi-cas e míticas vaidades de superioridade filosóficaracial» (OF, II, p. 497).

    O objectivo geral dos dois textos, como agora, secompreende, não correspondia tanto a uma meraleitura do passado ou à busca de uma identidadeauto-suficiente, quanto à ponderação do lugar presentee futuro de um certo modo de filosofar, que Vieirade Almeida procurava praticar na convicção da suamodernidade e do seu potencial de ilustração. A com-plexidade desses ensaios, a sua continuada oportuni-dade, a falta de consenso sobre o seu significado,são o resultado do constante movimento que os atra-vessa, entre o processo de identificação nacional e aprocura de situar essa particularidade no contexto

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    universal, dilema que se mantém intacto, quer naponderação da ideia de Europa, quer na compreen-são do que está implicado na universalidade da comu-nicação.

    Cultura da modernidade, modernidade da cultura

    Nesta oscilação detecta-se, do mesmo passo, aintenção de estabelecer o lastro de um projecto demodernização da mentalidade pátria que preservasseo que pudesse ser contributo próprio e reformasseo que se afigurava impeditivo da participação activana cena internacional, bem como favorecesse o de-senvolvimento dos estudos filosóficos em Portugal.Recuperando o exemplo das sabichonas de Molièrepara salientar a diferença entre um ambiente culturalonde «a influência cartesiana se generalizara até aosmeios em que não podia ser compreendida» (OF, II,p. 492) e o nosso «onde discussões de tal géneronunca encontrariam possibilidade de descer, penetran-do no interesse do grande número» (OF, II, p. 492),prevê a importância do nivelamento cultural, demodo a que também entre nós se viesse a experi-mentar «o que poderia chamar-se ‘atrito cultural’»

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    (OF, II, pp. 492-493). Essa esperança, também elade cariz vincadamente iluminista, porque toda pen-sada no domínio cultural, permaneceu preocupaçãode toda a vida. Um testemunho dessa continuidadeencontramo-lo num breve artigo publicado na revis-ta Vértice, em 1956, com o título «A Propósito deCultura», lembrete de uma mudança que, aos seusolhos, tardava, cuja contundência não passou, aliás,despercebida ao traço da censura, que lhe anulou aparte final (meio aparente de aviso, uma vez que dei-xava incólumes as teses fundamentais entretantoexpostas). O balanço merece ser relido e meditadoporquanto, no que respeita à atitude estrutural vigente,guarda todo o potencial de actualidade.

    Assim começava: «‘Cultura’ não se define porqueé um estado; não se substantiva porque é uma atitu-de; não se expõe porque é um ambiente […]. Comoestado, vários índices a revelam pluralmente: infiltra-ção do saber por virtude das consequências; irradia-ção de formas de arte; expansão da leitura; direcçãonacional da actividade» (OF, III, p. 377). Postas ascondições funcionais, exemplificava, numa inequívocareferência à situação nacional, os sinais da sua au-sência. Retenhamos a ilustração da primeira: «Povo

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    onde a massa — e muitos que se têm por cultos —sentindo-se doente recorra ao endireita da espinhelaou à cigana exorcizante do mau olhado; povo ondeum escol de caricatura dê a factos incontroversosinterpretação supersticiosa e tola; onde moços pro-metedores e madamas ignorantes dissertam comaplauso sobre temas de duvidosa transcendência;onde se baptize ‘problema’ a ignorância de questõeselementares, é povo a que falta uma condição essen-cial à existência da cultura: a penetração do saber navida quotidiana» (OF, III, p. 377).

    O que pudesse neste plano aparecer como even-tual reverência excessiva a um ideal estreito de racio-nalismo encontra-se mitigado pela abertura sucessivadeterminada pela consideração dos outros dois aspec-tos. A passagem para a cultura como atitude implicauma transição da estrutura para a realidade históricae social, exigindo a definição do que funciona comocritério em cada época, logo, uma interpretação quenão se satisfaz com a formalidade do primeiro ní-vel. Vieira de Almeida estabelece, em consequência,que a tolerância é «hoje postulado indispensável emqualquer construção humana […] por sabermos a queextremos a intolerância tem levado» (OF, III, p. 378).

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    Intolerância política e religiosa, como explicita, quese lhe afiguram em estrita relação com a intolerân-cia doutrinária (OF, III, p. 379). Por isso, a atitudetolerante coincide com a liberdade, cujo exercíciopleno, isto é, satisfatório para todas as partes envol-vidas, tem de assentar num princípio deontológicorelativo a um processo de indeterminação do pensa-mento: «É indispensável ao homem a liberdade deerrar, pois sem ela nunca acertaria; exceptuando,naturalmente, o erro em que prejudicasse outros ho-mens; mas aqueles que pretendem impor a sua dou-trina, balizar definitivamente o verdadeiro em certoscampos, almotaçar o pensamento, alfandegar a inte-ligência, esses cometem o erro em que prejudicamoutros homens» (OF, III, p. 379).

    Todavia, ainda neste critério se acha uma possibi-lidade de formalismo, uma vez que ele depende deum conjunto de considerações negativas, o valor datolerância resultando da percepção dos efeitos nefas-tos da intolerância, pelo que o processo só se en-contra completo quando saber e tolerância são fun-ções da vida quotidiana, num regime de continuidadesem quebras, estas tidas como retrocessos de obs-curantismo: «Como ambiente, ‘cultura’ é repercussão

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    vivida, sincera e profunda, a sístole e a diástole deuma circulação espiritual em que a paragem mata etoda a irregularidade prejudica […]. Como apresen-tá-la, mostrá-la, senão fazendo-a sentir? Como expô--la, se é funcional e não orgânica?» (OF, III, p. 380).Esta derradeira interrogação permite-nos perceber quedesde o início o termo «cultura» era assumido comovalor, não como situação antropológica de base, me-nos ainda como erudição, mas como objectivo prag-mático de modernização estabelecido a partir da pró-pria ideia da Modernidade.

    Assim se consolida a nossa hipótese de que hou-vesse um intento deliberado de intervenção, social epolítica, por via cultural, o que tornaria, aliás, maiscompreensível, para lá do rasgo de carácter indivi-dual, o contraste entre a disponibilidade para partici-par na acção e o relativo desinteresse que marcavaessa presença, bem como justificaria que visse naprática da filosofia, como disciplina por excelênciada liberdade de pensar, uma das formas de conquistadesse «ambiente» cultural. Este projecto teria ficadoconfinado nos limites da utopia ou da candura se nãohouvesse procurado um encaixe no passado ou nãoprevisse a modalidade institucional da sua efectuação.

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    O lugar da educação

    Não nos surpreende, portanto, que o sistema edu-cativo, em particular no nível médio, tenha consti-tuído preocupação de toda a vida, como nos indicaum núcleo de artigos sobre a educação e a forma-ção profissional, muitos deles fixação escrita de pa-lestras, de que cabe destacar, com um intervalo denove anos, «Os Valores» (1942) e «Questões deEnsino: res et verba» (1951).

    Este segundo, beneficiando de ser escrito numaetapa de maturidade da sua concepção filosófica,oferece o interesse de patentear a articulação que oautor previa entre a teoria e a sua transmissão, aomesmo tempo que confirma o lugar da didáctica filo-sófica na alteração da mentalidade, reflectindo, dessamaneira, o aspecto pragmático que queremos desta-car: «é em especial pelo progresso ‘filosófico’ damatemática, da lógica, por ela influenciada, e da fí-sica, cada vez mais matematicamente interpretativado real, que se operou a mudança e o abandono hojerealizado em escala muito maior da preocupaçãocoisificante e antropomórfica, tão prejudicial no do-mínio da ciência como no da didáctica, onde simul-taneamente se cometem erros científicos palmares e

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    se burla e fatiga a capacidade de apreensão de quemaprende» (OF, III, p. 183).

    Por reconhecer uma tal solidariedade no erro, Viei-ra de Almeida não produzia um libelo a favor do cien-tismo, mas fornecia uma espécie de guia orientadorda perspectiva epistemológica que julgava simultanea-mente mais actual e verdadeira, constituído por umparco agregado de teses estruturais, fundamentaispara o acesso a essa atitude mais razoável: recusado substancialismo metafísico e epistemológico (OF,III, pp. 173 e 177); perspectiva analítica, relacionale funcional do conhecimento, extensível da experiên-cia até aos princípios (OF, III, p. 174 e 179); substi-tuição da ideia da ciência normativa pela de ciênciaespeculativa, implicando a mútua inclusão do cientí-fico e do filosófico (OF, III, p. 179 e 180); críticado valor do intento sistemático, a favor do propósitode «generalizar a tradução em linguagem científicados factos múltiplos ou dos factos-tipo (aliás, não rigo-rosamente imóveis) escolhidos para base de interpre-tação» (OF, III, p. 180); distinção entre determinismoe causalidade, acarretando que o primeiro seja enten-dido como funcional (OF, III, p. 182) e à segundase recuse interesse científico, mesmo quando possacontinuar presente no quotidiano (OF, III, p. 181).

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    Todas estas perspectivas são constitutivas da Teo-ria do Conhecimento do filósofo, pelo que, inevita-velmente, reaparecerão em outros contextos. Nestaetapa, contudo, importa compreendê-las enquantotermos intencionais de um processo de fluidificaçãode esquemas mentais instalados, obstáculos epistemo-lógicos que surgem agrupados na forma verbal subs-tantivada «coisificação» (OF, III, p. 173), cujo esque-ma operativo resulta tanto da simplicidade da matrizavançada, quanto da aptidão que cada uma oferecepara gerar, simultaneamente, um tipo de conheci-mento, uma atitude perante o saber e uma práticasustentada.

    Dessa feita constituem, legitimamente, um progra-ma filosófico alargado, à medida dos três aspectosdefinidores do índice cultural, passível de ser cum-prido nos vários níveis de ensino, bem como nasdiversas disciplinas curriculares, enquanto correspon-dem, também, à concretização de três dos cinco va-lores de todo o acto pedagógico — formativo emsentido genérico, disciplinar e de actividade — su-pondo-se que possam favorecer o desenvolvimentodos dois restantes — normativo e estético, tal comose encontra analisado no artigo «Os Valores», acimamencionado (OF, II, p. 151). Que só esses três te-

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    nham merecido explicitação desenvolvida nesse textoconstitui indicação significativa da precedência con-ferida à compreensão, entendida como uma certamaneira de perspectivar, uma determinada inteligên-cia, sobre os outros aspectos, a qual converte a di-nâmica da racionalidade moderna em condição neces-sária, não suficiente, da ética e da estética.

    Uma vez que expõe a concepção que Vieira deAlmeida tinha do ensino geral, naquela etapa médiaem que a especialização está por decidir, este opús-culo mereceria um estudo mais detalhado no âmbitoda Filosofia da Educação. Dever-se-ia aí identificara defesa, hoje de novo tão loquaz, de um «coefi-ciente de valor disciplinar» (OF, II, p. 159), intro-duzindo a distinção entre este e o domínio científico(OF, II, p. 160) que supõe a prevalência do efeitode conjunto, ou seja, do «valor de posição» (OF, II,p. 160), sobre as pretensões exclusivas de cada dis-ciplina, porquanto «no ponto de vista do ensino médiouma disciplina não existe, constitui-se» (OF, II, p. 161),e afasta a convicção de que o conhecimento justa-posto de conteúdos forma o cerne da actividadeaprendente (OF, II, p. 162). Os quatro critérios paradeterminar o valor disciplinar constituem, igualmente,um tipo de justificação para a noção de uma apren-

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    dizagem integrada mais profícuo do que aquele re-corrente de índole psicologista: «a) Extensão dodomínio dos conhecimentos adquiridos […]; b) Ra-cionalidade. A palavra aqui significa multiplamenteordem lógica, encadeamento, paralelismo, sincronis-mo de nível. […]; c) Pluralidade de aspectos de co-nhecimento, que é multiplicidade de ligação com osobjectos […]; d) Ligação dos conhecimentos unscom os outros. Quanto maior for o número de liga-ções, maior será a satisfação de uma síntese parcial»(OF, II, p. 160). Por fim, caberia atentar na indica-ção de que o valor disciplinar se encontra numa re-lação necessária com os outros dois valores, uma vezque a aquisição de conhecimentos deve ter em contaa formação da capacidade geral do sujeito (OF, II,p. 152) e a sua utilidade prática, isto é, o seu poten-cial de aplicação, que não o seu carácter utilitárioimediato (OF, II, p. 163).

    O artigo concluía nos termos em que «Questõesde Ensino» começava: «Tudo isto, que pode resumir--se em uma expressão simples — concepção fun-cional dos valores educativos —, não pode respeitar--se ou ter começo de realização cousificando asdisciplinas, e cousificando igual e derivadamente osvalores atribuídos a cada uma delas» (OF, II, p. 167).

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    O duplo aspecto que corresponde à concepção fun-cional, sistema integrado, alterável ao longo da his-tória, de variáveis e funções, e processo relativo, re-quer a equação do valor formal como aquele que geraa lógica de ponderação entre os meios e os fins, per-mitindo que se confirme a nossa hipótese interpreta-tiva que atribui a Vieira de Almeida uma intenção deargumentar a favor do paralelismo entre o tipo deensino e o grau de modernização cultural.

    Associando ensino e cultura, o filósofo apontavaa aquisição de uma perspectiva criteriosa de razoa-bilidade como o factor basilar da verdadeira moder-nização. Não se trata tanto da aquisição de um cor-po doutrinário, como vimos, quanto da aprendizagemde uma técnica do perspectivar que deverá assumiridêntica utilidade à de qualquer outra técnica, isto é,sempre a aplicar quando se procure conhecer e/ouagir, quando se pretenda pensar coerentemente, quan-do se queira praticar uma atitude positiva: «A cons-ciência imediata da capacidade de agir é forma sub-jectiva da liberdade espiritual; é o que ensina a vernas coisas o utensiliário, o que contribui para dar aoespírito a verdadeira orientação humanística, estabe-lecendo os valores da realidade em função do idealhumano da realização de si» (OF, II, p. 167).

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    Importa, contudo, distinguir uma tal habituação ge-nérica, libertadora e criativa de realidade (OF, II,p.165), produzida por uma legítima intenção forma-tiva, da mecanização, resultante do adestramento, queescraviza e impede o acesso ao sentido (OF, II, 167).Não obstante, fica claramente a descoberto esse trân-sito axial entre conhecimento e acção, formação eprática, que norteia o que cremos legítimo conside-rar como o programa de modernização previsto porVieira de Almeida

    Uma estruturação técnica

    A importância da técnica, quer como interface dateoria e da prática, quer como processo de transfor-mação universal, adivinha-se no decurso da obra,como acabámos de mostrar, mas só surge verdadei-ramente explicitada em Pontos de Referência. Aí fi-gura como segunda parte do prefácio, precisamenteintitulada «Positividade e técnica» (OF, III, p. 199),na sequência imediata do parágrafo final da primeira.

    Esta consistira no esclarecimento da distinção en-tre positivismo, entendido como limite ou sistema(OF, III, 187), e a positividade, pensada como ati-

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    tude «recusando sistema feito e limite estabelecido»(OF, III, p. 188), de modo a validar a conclusão:«Positivismo era sistema. ‘Positividade’ não respeitaao conteúdo, mas à validade do relacional» (OF, III,p. 199). Por isso, impõe-se interpretar a segundaparte de acordo com idêntico horizonte de reflexão,como, aliás, está apontado pelo título, ou seja, à vez,como processo geral da abordagem metafísica, comoindicação de um tipo de racionalidade e como vali-dação de um modo característico de filosofar, con-jugação que estrutura, percebemo-lo cada vez melhor,a argumentação de Vieira de Almeida, seja lá qual foro âmbito de análise. Demais, os três termos oferecem--se em regime de solidariedade, potenciada pela suaadscrição à ideia de modernidade.

    Com vista a estabelecer a racionalidade técnicacomo base da atitude positiva moderna, o autor re-corre a duas estratégias complementares, ambascontribuindo para justificar a ideia da existência deuma espécie de contenda entre dois modelos.

    Por um lado, delineia uma breve história da posi-ção relativa da técnica, da Idade Média, exemplifica-da a partir de uma passagem da Farsa dos Almocre-ves de Gil Vicente, à Contemporânea, situando aviragem no modo como se lhe passou a dar valor

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    efectivo no período das Descobertas, destacando, parao efeito, a importância da técnica mista de experiên-cia e teoria dos pilotos lusos (OF, III, p. 201; 203),para tirar a seguinte conclusão: «No nosso tempo,ao que parece, igualmente se nos depara uma comodesforra da técnica e um retorno oposto da ofensi-va do que se chama, talvez menos rigorosamente, aphilosophia perennis» (OF, III, p. 203).

    Por outro lado, insinua uma espécie de sociologiada ciência, segundo a qual «a luta pelo predomíniodo tipo de cultura tem sido simétrica das travadaspela supressão de certas barreiras sociais» (OF, III,p. 201), o que lhe permite associar a defesa da con-cepção metafísica ao que designa como «aristocra-cia da especulação pura ou considerada pura» (OF,III, p. 203), distinta, portanto, da dimensão de es-forço, de trabalho dedicado e paciente que corres-ponderia à contraparte democrática.

    Para firmar o trânsito da técnica como processopara a técnica como atributo valorativo, Vieira deAlmeida empenha-se em mostrar que, na Ciência,como na Filosofia, técnica e especulação estão intrin-secamente unidas, a primeira correspondendo a meto-dologia (OF, III, p. 206), instrumentalização (OF, III,p. 206), ou aplicação (OF, III, p. 205), mútua depen-

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    dência que configura um traço antropológico geral:«Certamente o homo faber deve muito ao homo sa-piens; mas o homo sapiens está muito longe de serapenas credor do homo faber» (OF, III, p. 206).Mas, assim sendo, não há lugar para qualquer espe-culação ao abrigo da técnica, tal como esta não podeser totalmente pragmática, salvo por estreiteza deespírito, limite meramente subjectivo (OF, III, p. 207),ou por oportunismo ideológico, possibilidade de quemais beneficiou a tentativa de manter um fosso en-tre os dois planos (OF, III, p. 204).

    Aqui, como a propósito da tolerância, a neutrali-dade assacada à racionalidade técnica oferece-secomo contraponto do que a alternativa metafísica temproduzido: «Certamente a idolatria da técnica, assimcomo qualquer outra, só poderia ser prejudicial; masnão parece peculiar da técnica levar o homem a umfanatismo qualquer; outras e aparentemente maisespirituais tendências o têm feito constantemente aolongo dos séculos, e não vale a pena enumerar. Nãoforam as técnicas a origem de guerras de religião,de cismas de resultado cruento, de luta, de crime detoda a ordem em escala pavorosa. E quando hojecom razão se fala do «homem escravo da máquina»,fala-se de um erro tremendo de orgânica social, de

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    que apetece metaforicamente dizer que a técnica foivítima, e só por outras realizações técnicas poderácorrigir-se» (OF, III, p. 204).

    Fica, assim, bem à vista que o sentido geral dizrespeito a um entendimento plástico da técnica, pro-cesso estruturador, tão genérico e formal, que tema capacidade para moldar as diferentes concepçõesdo mundo, da «primitiva» à «moderna» (OF, III,pp. 205-206), pois que se trata da sustentação do mo-do humano de agir, mas a análise histórico-socioló-gica acaba por evidenciar uma alteração do teor dessacaracterística, a tal ponto que, na actualidade, «emtoda a ciência uma técnica intrínseca faz parte daestrutura científica» (OF, III, p. 207), o que a esta-belece como índice de modernidade: é moderna aconcepção que assume essa entretela racional e delaretira tanto a sua análise do presente, quanto a suaexpectativa de progresso futuro, a qual, como sedepreende, terá de se pautar, igualmente, pelas pos-sibilidades pragmáticas que ela contém.

    Nesta assunção encontramos numa das críticas acrítica mais virulenta à versão metafísica, uma vezque nela se cruzam, explicitamente, os argumentosde jure e os de facto. A metafísica, como mundivi-dência, é tida como ideologia nociva, concepção ab-

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    surda e obstáculo à modernização, três críticas quelevam a que não seja admissível a solução concilia-dora que pretendia repartir os problemas entre ques-tões científicas e extracientíficas, as quais seriam ape-nas susceptíveis de aproximação filosófica tradicional.A partir do momento em que a racionalidade tecno-lógica é tida como a matriz da concepção modernado mundo, toda a ciência é técnica, toda a filosofiaé técnica e, logo, toda a formação, geral e espe-cializada, só pode visar o domínio desse tecnicismo(OF, III, p. 207). A importância que atribuíra às te-ses que acabámos de apresentar revela-se no factode ter publicado em 1959, na Revista Ocidente, idên-tico texto, com alguns cortes e pequenas adaptações,aí intitulado «Valor da técnica».

    A ideia de uma filosofia popular aparecia-lhe tãoestranha, dessa feita, quanto a de uma filosofia quecontinua doutrinariamente metafísica, mas essa con-vicção não implica o fechamento académico da filoso-fia técnica. Pelo contrário, por estar em correspon-dência com a actualidade, a filosofia técnica tem oseu papel de intervenção precisamente enquanto téc-nica, reforçando a estruturação da matriz racional quese quer predominante, em vez de enfraquecê-la porvia da proposta de uma racionalidade empobrecida.

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    A defesa de uma filosofia técnica, que encontramosneste texto da maturidade, vinha, assim, fechar logi-camente o que procurámos indiciar como uma ex-pectativa global depositada na modernização da so-ciedade portuguesa: uma sociedade moderna seriaaquela que norteada pela tecnociência, pela tolerân-cia que a neutralidade do entendimento admite, e asua filosofia não poderia ser popular ou metafísica,tal como a ciência não é mágica, ontologista, ou mo-ralista.

    Percebemos, igualmente, que a base da transfor-mação pretendida fosse uma outra concepção epis-temológica, substitutiva da visão substancialista do-minante, pois caberia questionar se aqueles quemantivessem a percepção tradicional do real estariaminteressados em favorecer essa mudança ou a quecorresponderia uma suposta modificação das condi-ções de vida e de convivência que não viesse acom-panhada por uma alteração da mentalidade que reco-nhecesse as vantagens e o sentido da modificação.No parágrafo final do Esquema XV, Vieira de Almeidacaracterizava a atitude de intolerância que via asso-ciada à alternativa tradicional, sustentando, assim,uma solidariedade entre as convicções teóricas e osentido do agir (OF, II, p. 726). A filosofia encon-

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    tra-se comprometida com essa construção de ummundo melhor, não por ceder ao plano da realidadehistórica, social ou política, mas por levar às últimasconsequências o que ela melhor sabe fazer: criticaro que nesses âmbitos é impeditivo da produção livredo futuro, mantendo, assim, a realidade em regimede permanente abertura.

    A lógica da divulgação

    Explica-se por esta via que não houvesse qualqueraligeiramento da orientação filosófica nos seus tex-tos, mesmo naqueles que se apresentam com explí-cita indicação propedêutica, ainda que, até nos quelidam com a abstracção dos raciocínios lógicos, sedeixe ver, nas entrelinhas, a esperança de que sejamcompreensíveis, quer pelos alunos, quer por uma po-pulação progressivamente mais escolarizada, logo,mais razoável, o que lhes confere um alcance cientí-fico que estabelece a filosofia como eixo de um pro-jecto cultural muito mais vasto.

    Este aspecto, aliás, não terá sido despiciendo nomodo afirmativo como convivia com a publicação emrevistas, nomeadamente no formato de fascículos,

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    processo de edição que esteve na origem de algunsdos seus mais interessantes escritos (por exemplo,Aspectos da Filosofia da Linguagem, editada ao longode onze anos na Revista de Portugal, de 1944 a1955, Esquemas, que foi aparecendo entre 1945 e1947, na Revista Ocidente ou Pontos de Referência,que saiu na Revista Filosófica a partir de 1951).

    No mesmo quadro cabem as diversas traduçõesque realizou, todas elas de textos fundamentais, como,por exemplo, a da Oração da Coroa de Demóste-nes. No caso das obras filosóficas, acresce que asintroduções e prefácios com que as fez acompanharmostram que correspondiam, para si, a verdadeirasinstâncias de diálogo, o que significa que nos facul-tam, não só a sua interpretação pessoal, como tam-bém aspectos dominantes do seu pensamento. Nes-ta medida, conciliam a intenção divulgadora e acaracterística técnica, enquanto se oferecem comomarcos de etapas problemáticas da inquirição filosó-fica do nosso autor.

    De Contra os Académicos de Santo Agostinho(1945) a Utilitarismo de Stuart Mill (1961), passan-do por Esboço de História do Real e do Ideal deSchopenhauer (1948), Fédon de Platão (1957) eTratado do Conhecimento Humano de Berkeley

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    (1958), ao mesmo tempo, desenha-se um percursopossível na história da Filosofia do Conhecimento erevelam-se alguns dos interlocutores que configuramo esteio tradicional da concepção filosófica do pen-sador português, o qual importa tomar em conside-ração ao lado das influências mais contemporâneas,sobretudo se o interpretarmos como expressão degrandes dilemas que o filósofo procurou solucionar.

    Nesta linha hermenêutica apercebemo-nos, facil-mente, de que, por exemplo, a escolha do extractodos Parega e Paralipomena ecoava um conflito, es-truturante e mobilizador das sinuosidades do seu pen-samento, entre real e ideal, enquanto a introduçãoapontava o autor germânico de A Quádrupla Raiz doPrincípio de Razão Suficiente como um dos maisinfluentes na sua maneira de filosofar. Demais, po-der-se-ia, mesmo, supor que a reflexão sobre osvários caminhos do Idealismo, enquanto este se cons-tituía para o nosso autor como problema nuclear, naversão mais inclusiva que o levava a escrever, emOrdo Idearum… Ordo Rerum (1937), que «les idéessont le critérium d’ordre des choses; mais celles-cine sont que par les idées» (OF, I, p. 489), ou na-quela mais disjuntiva, de Pontos de Referência, ondeassumia que «a ordem das ideias não é a ordem das

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    coisas» (OF, III, p. 213), formasse um elo unificadorde uma, assim, aparente diversidade. Esta coesãorevela-se, por fim, na retoma crítica dos autores tra-duzidos no decurso das obras fundamentais.

    Essa maneira de se relacionar com os outros auto-res viria a ser objecto de reflexão específica, numartigo de 1956, intitulado «Da História da Filosofia»,no qual confirmava que «na história da filosofia ointeresse e o proveito giram sobre o eixo da proble-mática e sua evolução […]. O objectivo não é expli-car, de modo algum, o porquê de ser esse e nãooutro o pensamento de um autor, mas conhecer doseu valor, da sua consequência e, sendo possível, dasua fecundidade» (OF, III, p. 351).

    A divulgação da lógica

    O modo como entendeu o papel da lógica, nomea-damente na sua vertente formal contemporânea, de-termina que a façamos figurar nesta parte, pois quenão só Vieira de Almeida, a seu propósito, seguiu adupla via, divulgadora e técnica, em diálogo comnomes como os de Mill, Boole, Carnap, Whiteheade Russell (cuja obra conjunta, Principia Mathema-

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    tica, só em 2007 apareceu publicada em traduçãoportuguesa, o que nos pode dar uma medida daactualização que exibia), como, mesmo quando lhereconhecia autonomia científica, não fez dela outrouso que o instrumental, nela escorando a eficácia dasua argumentação, a ela recorrendo quando se lhe im-punha a tarefa de resolver a série de equívocos decertas posições firmadas ou a de gerir os diferentesplanos de significação das proposições com supostovalor de verdade, mas não tendo produzido o traba-lho de tradução que seria de esperar, antes, preferindodar continuidade, nos ensaios sobre outros temas, aouso privilegiado da linguagem natural.

    Esta situação explica que, embora toda a obra re-flicta uma estruturação lógica formalista, só se en-contre um livro que trate cabalmente da área, LógicaElementar (1943), no qual procurava correr o essen-cial do campo, definido a partir de uma referência aGonseth como «a ciência do objecto qualquer» (OF,II, 674), da análise lógica da linguagem, na perspec-tiva de Boole (OF, II, p. 337), à sintaxe, na linha deCarnap (OF, II, p. 443); Proémio a Lógica (1930)e o capítulo V de Introdução à Filosofia não ultrapas-sando o âmbito de breviários preparatórios desse livromais amplo; Esquemas I a III lidando, sobretudo,

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    com a questão da actualidade do contributo da nova ló-gica; Aspectos de Filosofia da Linguagem — onde setratam alguns tópicos fundamentais, como o da ori-gem da concepção lógica assente na predicação e domodo como as «constantes lógicas da linguagem»(conjunção, disjunção, consequência e negação), com-binadas com as «psicológicas» (substantivação e aci-dentalidade) (OF, II, p. 564), «ampliadas metaforica-mente dão o cortejo intérmino de pseudo-entes a quenovos caracteres podem juntar-se» (OF, II, p. 610) —incidindo, assim, por entre a proposta de alguns con-ceitos assaz sugestivos para a filosofia da linguagem,como os de «linguagem-cor» e de «linguagem-suges-tão» (OF, II, p. 566) ou o de «pulsação, em que alinguagem vai ora no sentido lógico, até o símbolosubstitutivo, ora no sentido psicológico, até o suges-tivo» (OF, II, p. 526), na demonstração, directamenteassociada à crítica da metafísica, de que «a lingua-gem, pela sua formação e história, é de carácter on-tológico; a ontologia, por sua vez um sistema de con-fusões derivado da linguagem, por de ela extrair oque psicologicamente lá pusera» (OF, II, p. 602); oseu contributo para a incompleta Iniciação Lógica(1956), primeira parte de um tratado a duas mãos,se Edmundo Curvelo não tivesse inesperadamente fa-

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    lecido, movendo-se em idêntica mole de preocupa-ções, cingia-se, consequentemente, à «análise sin-táctica» gramatical com o fito de assentar que «ave-riguado que até a substantivação é funcional e nãoprivilegiada teoricamente, embora indispensável naprática, toda a metafísica assente sobre edifício depalavras é ilusória» (OF, III, p. 346).

    Estas aparentes indecisões não são apenas o re-sultado do papel de precursor que assumiu. Na ver-dade, importa reconhecer que a elementaridade está,sempre, atravessada por um conjunto de intenções,cujos sentidos contraditórios formam uma rede, aomesmo tempo, configuradora da peculiaridade da suaabordagem e limitadora do interesse em desenvolveruma investigação mais aprofundada. Vieira de Almeidanão se terá restringido, como escrevia na nota queprefaciava Iniciação Lógica, a «informar dos prin-cípios da lógica contemporânea, ou, melhor, da pers-pectiva actual da lógica, porque nada mais falaz eerróneo do que supor oposição entre o actual e oantigo» (OF, III, p. 310), mas, como a própria cita-ção deixa perceber, sujeitou essa divulgação a determi-nados objectivos oriundos da sua própria concepçãofilosófica, gerando, dessa feita, um processo ambiva-lente, entre uma intencionalidade geral integradora,

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    cuja viabilidade fazia depender do valor relativo efuncional de todos os termos a conjugar, e o propó-sito particular de demarcar e validar a especificidadeda investigação no domínio da lógica. A exposiçãodos principais movimentos dessa abordagem estraté-gica revela, com alguma facilidade, esse paradoxo deum duplo efeito constrangedor e libertador.

    Por um lado, para diferenciar a lógica moderna daantiga, considera a existência de um triplo afastamen-to: 1. a lógica moderna segue o tipo científico, proble-mático, indeterminado, investigador, complexo (OF,II, pp. 258-259), como decorre da noção de uma«plurivalência», possibilitando a equação efectiva, cujaproposta fazia sua, da lógica baseada em três valo-res — «verdadeiro», «falso» e «absurdo»/«insolúvel»(OF, II, p. 257) —, em contraste com aquela quese firmou tradicionalmente como arte do pensamento,a priori, fechada e normativa (OF, II, p. 656); 2. alógica moderna resulta de uma «formalização das ne-cessidades reais do pensamento provocada por difi-culdades de interpretação coerente» (OF, II, p. 257),no que supõe um esforço de redução do lugar que,desde Aristóteles, coube à confusão entre análisegramatical e análise lógica, da qual teria resultado aideia de substância, a partir da função linguística do

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    substantivo, e a de atributo, pela transposição dafunção adjectival, a favor da concepção dos princí-pios lógicos como «condições permanentes da acti-vidade mental e de modo nenhum transcendentes aoconhecer» (OF, II, p. 660), logo afastando-se, assu-midamente, da matriz constituída pelo juízo predica-tivo (OF, II, 258), ainda que não possa evitar umazona de interferência dos dois tipos de análise (OF,II, p. 317); 3. a lógica moderna assenta, enquantoformal, na distinção entre determinismo e causalida-de, razão e causa, recusando quer o substrato me-tafísico da lógica tradicional, quer a necessária pre-visão de uma zona ponderosa de irracionalidade quedaí resulta (OF, II, 661).

    Por outro lado, motivado pela procura de esque-mas de continuidade, à medida da possibilidade detudo solucionar segundo uma dinâmica de imanên-cia, uma vez que a fractura entre duas naturezas ouessências provocaria, necessariamente, a irrupção deum processo de mútua transcendência, Vieira de Al-meida teve de mitigar o alcance das diferenças apon-tadas, intento de coesão que abrangia a própria evo-lução no seio da versão moderna. Assim escrevia:«Não que haja ‘oposição’ ou ‘contraditoriedade’ entrelógica actual e lógica chamada clássica, exactamente

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    como não há entre a geometria de Euclides e as geo-metrias actuais, de que a primeira passou a ser casoespecial (salvas algumas exigências lógicas hoje maio-res em certos casos). Do mesmo modo, não há nempoderia haver oposição entre um sistema actual triou polivalente e o sistema bivalente; simplesmenteocorre que esse sistema não pode bastar a necessi-dades actuais de alguns domínios e constitui caso es-pecial, logicamente, embora comum, exactamentecomo o espaço tridimensional, que é o espaço nor-mal psicológico — e que Kant ainda julgava objecti-vo —, é um caso dentro do âmbito do espaço n di-mensional» (OF, III, p. 315).

    Esta perspectiva inclusiva dá o contraponto àsvárias teses diferenciadoras: 1) a consciência de umaciência alternativa fica na dependência do tracejamen-to do percurso evolutivo, uma vez que «a importân-cia do aspecto lógico também não é permanente einvariável; surge historicamente com o processo deracionalização» (OF, III, p. 319), o que explica o es-paço que o autor concede à retrospectiva histórica,mesmo no tratado de lógica elementar; 2) a lógicamoderna, na sua faceta depurativa e crítica, não podiaabandonar a análise da linguagem natural (OF, III,p. 314), fosse porque esta mostrava possuir uma

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    estrutura lógica própria com o potencial de se repro-duzir e de se amplificar (OF, III, p. 313), fosse por-que a noção relacional da verdade, decorrente dalógica moderna, obrigava a «despir o formulário ló-gico de tudo quanto era indiferente à expressão derelações, suprimir o supérfluo gramatical da lingua-gem corrente, que pela mesma riqueza de tonalidade,intenção, escala de valores psicológicos, intensidade,era inadequado à justeza indispensável da relação ló-gica» (OF, II, p. 252), o que acarreta a compreensãoaprofundada da sua estrutura, bem como uma vigi-lância relativamente às intromissões sub-reptícias dosseus efeitos no esforço de «depuração progressiva»(OF, II, p. 253), dessa feita se justificando a impor-tância conferida à filosofia da linguagem; 3) a lógicamoderna acaba, assim, por seguir idêntico objectivoda antiga, apesar da divergência relativamente «aocampo que devia abranger e estruturar» (OF, III,p. 310), tanto na consideração inevitável da lingua-gem, embora doravante parcelar, quanto no propó-sito generalizador, actualmente muito mais extenso,bem como na gestão da fronteira entre a opinião e aciência, hoje implicando «uma lógica progressivamentemais dúctil, mais penetrante, mais estruturada e maisampla» (OF, II, p. 674).

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    Em suma, a lógica moderna resulta da resposta aosproblemas do tipo de racionalidade, igualmente mo-derna, a científica, mas, porquanto esta mais não édo que uma das mundividências possíveis, é semprea mesma estrutura que se encontra, o que se vai al-terando sendo cultural, a perspectiva e a valoraçãodo processo de análise e de generalização, comodecorre do entendimento do «pré-lógico» apenas emsentido temporal: «Não há muitas lógicas, sendo umadelas a do primitivo. Há, em lógica, e em todas asmanifestações da actividade mental, uma evoluçãocaracterística e reconhecível, na abstracção e por-tanto na depuração; mas parece que não há verda-deiramente uma mentalidade pré-lógica, qualitativa-mente considerada» (OF, II, p. 679). Esta tese, deque a ciência da lógica é, no fundo, a lógica da ciên-cia, que aparece designada como o «movimento deosmose lógico-científica» (OF, II, p. 253), retira-lhequalquer pretensão à exclusividade ou à verdade ab-soluta e, numa certa medida, reverte a solidariedadepreconizada para as condições de coerência de am-bas, uma vez que nenhuma delas tem a possibilidadede uma legitimação outra que a do respectivo pro-cesso de verificação: «Os princípios lógicos (sejamquais forem os que se adoptem como base) não

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    podem demonstrar-se; e tanto a sua verdade comoa sua adopção justificam a tese da coerência, pois épor na máxima generalidade a permitirem e funda-rem que eles são princípios; e de modo nenhum asua verdade pode depender da sua correspondênciacom um facto» (OF, II, p. 302).

    Posição que, na realidade, procede, ao mesmo tem-po que a confirma, de uma filosofia do conhecimentoque, da matriz idealista, segundo a qual «uma aná-lise aprofundada encontra sempre e só como limiteuma ideia» (OF, II, p. 661), retira uma perspectiva-ção pragmática, pois, como ideia é equivalente a re-lação funcional, considerará que «verdadeiro objectoda lógica são portanto as relações, e não as coisas,o sentido ou o conteúdo das palavras, que é indife-rente na demonstração, embora retome importânciaconcreta na verificação concreta ou nas relaçõesparticulares» (OF, II, p. 251). Também resulta des-sa interacção o apreço de certas características de-finidoras, por essa via, comuns, como «a possibili-dade de directrizes diferentes» (OF, II, p. 256), aperfectibilidade, intrinsecamente, associada às dimen-sões analítica e instrumental (OF, II, p. 669), ou aprevalência do «contacto com o pensamento vivo»sobre a teoria pela teoria (OF, II, p. 658).

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    Dessa feita, Esquemas I enunciava esse entrosa-mento como sinal determinante da pertinência dalógica formal: «‘Projecção da lógica moderna’ querdizer apenas que na sua forma actual os problemasda lógica não podem deixar de repercutir em certasconcepções científicas […], umas vezes contribuin-do para a solução, outras para aumento da sua acui-dade» (OF, II, p. 658). Facilmente se percebe queeste jogo estrutural, oscilando entre continuidade einovação, autonomia e instrumentalização, afectassede vários modos o eventual interesse que houvessetido pelo cultivo puro da lógica.

    Por um lado, a vertente epistemológica implicavaque a lógica acabasse compreendida como instrumen-tal, no seio de uma teoria do conhecimento, niveladapelo mesmo processo de qualquer campo de in-vestigação, pois, como afirmava, «é à teoria do co-nhecimento que por derradeiro vêm convergir as es-peculações filosóficas» (OF, II, p. 308), pelo que,«naturalmente, a projecção mais importante da lógicaé na teoria do conhecimento» (OF, II, p. 672), o quese confirma pela recorrência da discussão sobre ocarácter lógico da indução: para Vieira de Almeida,uma vez que a via indutiva depende de aspectospsicológicos e metodológicos relativos à expectativa

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    sobre a possibilidade de estabelecer uma certa cons-tância nas séries de fenómenos, trata-se de um pro-blema de filosofia do conhecimento, sem que, no seuesclarecimento, haja qualquer privilégio para a abor-dagem lógica, como surge sintetizado, com toda aclareza, no capítulo VI de Lógica Elementar (OF, II,pp. 417 e segs.).

    Por isso, integra na sua argumentação duas tesesoriundas da Crítica da Razão Pura, de Kant: 1) ade que a existência não é predicado; 2) a de distin-ção entre juízos analíticos e sintéticos.

    Na verdade, segundo o autor, o que gerara a ilu-são de uma autonomia, assente na fixidez do corpuslógico, não teria passado de um problema de escalarelativamente à velocidade das alterações, a lógicaafigurando-se como variável mais lenta, embora tam-bém ela evolutiva, do que a filosofia do conhecimento(OF, II, pp. 256-257). A mútua dependência da ló-gica e da ciência reproduz-se, assim, relativamenteà filosofia: a montante, supondo uma filosofia do co-nhecimento; a jusante, contribuindo directamente paraessa mesma filosofia, porquanto «o estudo aprofun-dado da lógica tem de conduzir à compreensão jus-ta de certos limites e das condições necessárias paraque um resultado seja válido» (OF, II, p. 663).

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    Por outro lado, pugnando pela ideia de uma «ló-gica-ciência», em detrimento de uma «lógica-norma»,aplicava-lhe «o lema de que nem a ciência, nem afilosofia podem ser cousificadas» (OF, II, p. 309),o que, abrindo decididamente o horizonte da investiga-ção, acabava por sujeitá-la ao princípio gnosiológicoda generalização, assim explicitado: «Disse Russellalgures que a generalização consiste na transforma-ção de uma constante em variável. A generalizaçãofilosófica exemplifica a afirmação; ela só se obtémnão pela resposta mas pelo problema, não pela sín-tese tranquila, mas pela análise permanente, não pelacerteza arrogante e amesquinhadora do filisteu, maspela modesta e inquieta investigação do espírito crí-tico» (OF, II, p. 309). A generalização extrema quecaracteriza a lógica redunda, portanto, numa duplavia, em que não parece fazer sentir o meio termo:ou se envereda pelo infinito da investigação ou serecolhe o que, dessa pesquisa, se vier a revelar emconsonância crítica e analítica com o projecto deuma racionalidade positiva. A proposta filosófica deVieira de Almeida, nomeadamente pela intencionalidadeintegrativa que a animava, acolhia a segunda hipó-tese, como se deduz do seguinte encómio: «hoje épor essa generalização, por esse progresso de inde-

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    terminação, por esse anti-absolutismo, por essa nãonormatividade, que a lógica e a sua estrutura man-têm com os ramos científicos o elo que duranteséculos lhe faltou e sem o qual tanto valeria estudarproblemas lógicos como logógrifos de almanaque»(OF, II, p. 674).

    A lógica pode, então, ficar ao serviço do que po-deríamos chamar o caminho curto da argumentação,aquele que leva a cabo a economia da crítica peladetecção, numa concepção científica ou filosófica, dodesrespeito pelo funcionamento lógico elementar,evitando, consequentemente, o esforço de uma her-menêutica nos termos propostos pelo respectivo au-tor. Essa possibilidade está claramente enunciada emEsquemas III: «O rigor lógico tem como consequên-cia importante limitar a extrapolação aos casos emque ela é praticamente necessária fazendo perder ailusão de ter demonstrado» (OF, II, p. 671).

    Todavia, uma tal função, por mais relevante, per-mite justificar uma dupla circunscrição do âmbito deinvestigação: o interesse pelo desenvolvimento da ló-gica pode ficar satisfeito com o que na análise pro-posicional ou sintáctica permite essa estratégia deesvaziamento cabal de qualquer tipo de pertinência,o que parece ter estado na origem das breves refe-

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    rências à proposta de Carnap, orientadas sobretudopara a crítica da ontologia heideggeriana, mais doque para o valor da própria concepção do filósofoanalítico; por sua vez, o rigorismo decorrente do re-curso generalizado ao critério negativo do que pelasua condição epistemológica não deixa de aparecercomo uma lógica possível permite descartar, comexcessiva facilidade, não só a maioria dos sistemasfilosóficos, como também grande parte dos proble-mas com os quais eles pretendiam lidar, dando azoa uma apreciação contraditória sobre o ajuste dessemodo simplificado de afastar, por exemplo, a lógicahegeliana em meia página ou a fenomenologia husser-liana em página e meia.

    Talvez que esta dupla redução, a fazer suspeitarum pendor sincrético, tenha estado na origem da ine-xistência de uma linhagem declarada, se bem que, in-dubitavelmente, houvesse engendrado uma espécie deprograma obrigatório de refutação para aqueles quena sua sequência pretenderam sustentar outros pon-tos de vista. Essa como que obrigatoriedade de limi-tar o alcance do óbelo aposto por Vieira de Almeidaresulta, em parte, de se ter de lhe conceder o pesoda evidência lógica nos termos em que a enunciava,forçando a posição alternativa a justificar, igualmente,

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    um caminho diverso, tarefa árdua, como se depreen-de, pois a todo o momento se deve evitar o riscode resvalar para o irracional e o ilógico, assim dan-do razão ao filósofo.

    Mas o impacto principal das críticas de Vieira deAlmeida resultava do esteio formado pelo processoda metafísica, no qual a lógica era chamada a cum-prir papel decisivo. Esta relação íntima e fundamentalpode avaliar-se por uma espécie de proporcionalidade:o período de crítica mais intensa da sistematizaçãode tipo metafísico, levada a cabo a partir da dicoto-mia entre a metafísica como especulação, tida porindispensável, mesmo na actividade científica, incluin-do a lógica, e a metafísica como concepção substan-tiva do real, julgada incompatível com o cânone posi-tivo (OF, II, pp. 282-283), correspondendo ao da maioratenção dada às investigações lógicas; aquele, em queessa aproximação dilemática parecia resolvida numaperspectiva filosófica assente em referenciais menostradicionais, pelos quais a insuficiência da metafísicasurgia percepcionada como um dado e não já comoum problema, condizendo com um enfraquecimentodos estudos de lógica, por esta ou estar plenamenteincorporada na argumentação ou sofrer, ela própria,um olhar de tipo metalógico. Ora, em ambas as eta-

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    pas, a lógica acabava ao serviço de um propósito filo-sófico transversal que refluía sobre a respectiva valo-rização e condicionava os aspectos que mereceriamdestaque, assim confirmando o que há de paradoxalna utilização pragmática de um campo cuja instru-mentalização advinha, à partida, da identidade com oacto de pensar.

    Desse modo, o contributo buscado na lógica mo-derna ultrapassava largamente o exercício crítico eanalítico da luta contra a coisificação (OF, II, p. 666)e a intromissão do senso comum (OF, II, p. 262),referindo-se à possibilidade de uma maneira diferen-te de raciocinar que respeitasse todas as condiçõesformais — linguagem, metodologia, validação — semresvalar para o factual ou para o transcendente (OF,II, 267). Com efeito, como vimos, o carácter cientí-fico da lógica moderna significava que se tratava deuma combinatória de relações, «afastando-se definiti-vamente de qualquer forma de substancialidade» (OF,II, p. 252), o que implicava tanto a homogeneizaçãodo racional, uma vez que a consideração da substan-cialidade do ser como sujeito de atributos era, paraVieira de Almeida, produto da imaginação, quanto aperda do «privilégio da predicação ou juízo predica-tivo, naturalmente derivada também da distinção su-

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    bstância-atributo como elemento lógico, e elo de li-gação para a metafísica aristotélica» (OF, II, p. 251).

    Ora, o que ficava patente, neste entendimento, eraque a renúncia ao esquema tradicional de «substan-tivação» e «posse» não obstava a qualquer conheci-mento válido, o que só podia querer dizer que o realnão seria uma série descontínua de entes, mas umarede de relações, tanto mais reais quanto maior fos-se a quantidade e a diversidade de correlações quese gerassem a partir da oposição sujeito-objecto inau-gural. A tomada de consciência de que a extensãodo conhecimento depende do nível de formalidade dalinguagem que lhe serve de interpretação, porquanto«só um sistema formal pode ser apto a exprimir asrelações do objecto indeterminado» (OF, II, p. 259),conferia à lógica moderna um papel determinante nalegitimação de uma teoria do conhecimento pragmá-tica e funcional, facilitando a integração do intuitivoe do racional (OF, II, p. 665), pois que ambos fica-vam ao abrigo da cristalização ontologista que os con-vertia nos termos da concepção de faculdades subjec-tivas, passando ao estatuto partilhado de variáveis dagrande equação gnosiológica. Neste sentido, o desen-volvimento da lógica moderna comprova aquela que,para Barata-Moura, era a tese «verdadeiramente capi-

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    tal em toda a sua filosofia», a «da idealidade do sere da realidade do conhecer» (CC, p. 29), só que numponto já tão geral da fórmula que deixava antever oplano em que as intersecções aparecem como nexosde uma coerência global da unidade ideal/real.

    A grande «aposta» de Vieira de Almeida, por con-seguinte, dizia respeito a esse dinamismo de uma ra-cionalidade capaz de integrar todas as variáveis, deque a «lógica-ciência» constituía exercício exemplar,mas, como procurámos mostrar, sem poder conver-ter-se em exclusivo, pois, como assentava, jogandocom a oposição de Pascal, «o ‘espírito de finura’ nãose contrapõe, porque o completa, ao ‘espírito de geo-metria’» (OF, II, p. 664). Essa ambição conciliadora,cujo alcance incluía, como vimos, a vertente divul-gadora, terá contribuído para o que pode afigurar-separadoxal, a saber, uma obra que cobre a quase tota-lidade dos campos do saber tidos por relevantes pro-duzida por um pensador que se declara, até ao fim,avesso ao espírito de sistema: é que o aparente enci-clopedismo estava, como se torna agora visível, aoserviço da prática de uma atitude reflexiva que cor-respondia ao que Vieira de Almeida supunha ser ocontributo da filosofia.

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    III — O ESFORÇO DA FILOSOFIA

    Um desafio ímpar

    Delfim Santos, num artigo intitulado «Homenagema Vieira de Almeida — A Ironia da Vida e a Ironia daMorte», publicado, no Jornal de Letras e Artes, onzedias depois do falecimento do colega, escrevia: «sequisermos uma fórmula que o defina, que englobe asua paixão por Mozart, a sua admiração por Virgílioe Demóstenes e a lógica matemática de Boole, Rus-sell e Tarski, sentimo-nos perplexos e incapazes dea encontrar» (OC, II, p. 331). Reduzindo o âmbitoda expectativa enunciada tão-só aos seus escritosfilosóficos, permanece a dificuldade, tanto mais queo próprio se empenhou em contrariar quer a recon-dução da diversidade de percursos ensaiados à sim-plicidade de uma linha genética única ou exclusiva,quer a edificação de um monumento do seu pensa-mento a partir das várias teses expostas, quer ainda

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    a anexação a uma corrente ou escola filosófica, admi-tindo uma série de instâncias de diálogo cuja conci-liação não se ofereceria, à primeira vista, provável,sobretudo, no modo como, para ele, fazia sentido.Ora, a originalidade dessa combinatória, aliada à con-sistência com que levou a cabo o exercício filosó-fico, tal como o concebeu, ressaltando o sentimentode uma disciplina inquebrantável, inviabilizam qualquersuspeita de ecletismo e convertem, do mesmo pas-so, a contrariedade num desafio hermenêutico, refor-çado pela indicação recorrente de que esta ou aquelapublicação constituem peças de um plano de investi-gação gizado desde o início.

    Se é verdade que o pensamento de Vieira de Al-meida está dominado pelo conflito entre a necessidadede se erguer sobre uma sucessão de distinções quepartem da diferença entre real e ideal, mas cujo ca-rácter dilemático pretende combater, se é notório queas mesmas teses podem, em contextos diversifica-dos, assumir sentidos cuja flutuação indicia um pro-cesso evolutivo, não o é menos que a obra apresentauma consistência peculiar que, cremos, resulta, sobre-tudo, da maneira como compreende a atitude filosó-fica, em geral, e as principais tarefas que lhe cabemna contemporaneidade, em particular.

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    Antes de mais, há que ter sempre presente quequalquer interpretação do sentido do seu filosofar teráde partir da redução transcendental preconizada, quelegitima a sua versão forte de conhecimento e con-diciona, inevitavelmente, a filosofia à prática argu-mentativa, como já ficava claro em Ordo Idearum…Ordo Rerum: «la validité de la connaissance, en tantque connaissance, implique un certain caractère ob-jectif. Je dis ‘en tant que connaissance’ puisqu’il peuten avoir d’autres, comme par exemple, l’intérêt esthé-tique. La théorie de la connaissance est un effort soitpour l’établir soit pour le contester» (OF, I, p. 466).Nesta linha, a tarefa principal da filosofia resulta nu-ma teoria crítica do conhecimento, uma vez que estáobrigada a gerir o interesse gnosiológico, face a ou-tros interesses, e às lógicas que estes pretendem im-por. Se a convivência, estratificada e controlada, dosdiferentes registos configura essa totalidade que édesignada com o termo «vida», a aposta no valor daracionalidade técnica e científica requer uma persis-tência na delimitação do que lhe é próprio e na in-dicação dos caminhos mais conformes a uma talopção.

    O termo «aposta» revela-se, também neste caso,decisivo para a compreensão do processo permanente

  • 73

    de contenção e de gestão de fronteiras que Vieira deAlmeida põe em prática, uma vez que indic