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Espetaculares corpos impossíveis
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Espetaculando corpos e deficiências:
Intervenções sobre a cena pró-inclusiva
Ana Carolina Bezerra Teixeira1.
A cena do século XX abraçou a herança produtivista do capitalismo
eficientista, projetado e idealizado pelo ocidente. A condição humana tornou-se
refém dos utilitarismos impostos pela sociedade no transcorrer histórico e o
corpo fora excluído de seu valor e de sua importância política, social e cultural
nas civilizações. O que é perceptível no decorrer dos movimentos culturais e
artísticos nos últimos séculos é que o corpo encontrou as rédeas de seu
próprio fazer-histórico e rejeitou o status corporal sacralizado. A pele, os órgãos
e a mente transformaram-se em nossa contemporaneidade numa poderosa
válvula geradora de ações de resistência.
O copo torna-se um poder ressignificado ao compasso das diretrizes
sociais de um tempo hiper-ultra-tecnológico, não basta agora atingir as
cobranças sociais da produção é preciso superar e superar-se. A ideologia
eficientista responsável pelo status quo de normalidade assumido e pregadopelas sociedades ocidentais gerou o que aqui me arrisco a denominar de
corpos impossíveis. Desta feita tornou-se insuportável a humanidade portar um
corpo, carregá-lo com suas desobediências físicas e imperfeições permantes,
bem como com a sua perene condição de existência. Como assinala Breton
(2007) ao falar sobre as ambigüidades corporais “o corpo não é uma natureza
incontestável, objetivada imutavelmente ao observador que pode fazê-la
funcionar como num exercício de sociólogo.”A necessidade de investigar o corpo para além de sua representação
física no mundo permite analisá-lo enquanto alteridade que só existe a partir de
circunstâncias externas, culturais e sociais que delegam aos atores a sua
específica condição de corpo.
Os corpos considerados diferentes, todavia não encontram espaços de
atuação cênico-artística, bem como não se reconhecem mais nos locais
guettificados pelo discurso da visibilidade e da oportunização. Visibilizar não é1 Coreógrafa, pesquisadora e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA.
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o bastante aos olhos de uma sociedade cada vez mais próxima da ação
predatória e especulativa da observação. Olhar o outro, a vida do outro se
tornou um fato corriqueiro, necessário, globalizado e perecível seja no mundo
virtual, nos games ao vivo ou no cotidiano das celebridades.
Prisioneiros de um observatório global padecemos sob a condição de
meros coadjuvantes de nossa própria condição social, determinada pela ação
da alteridade eficiente/emergente, contudo, impermanente.
Fizemos a análise determinista de uma sociedade determinista.
Hoje, é preciso fazer a análise indeterminista de uma
sociedade indeterminista – de uma sociedade fractal, aleatória,
exponencial, a da massa crítica dos fenômenos extremos, deuma sociedade totalmente dominada pela relação de incerteza.
Baudrillard, 2002, p.24
A observação concedeu lugar a generalização, e a seletividade dos
modos de olhar o corpo, olhamos aquilo que agrada ou que nos pode chamar
atenção por uma determinada característica, atitude, gesto ou comportamento
da moda. Os comportamentos edificam corpos e discursos são projetados para
a formação de um ou outro emergente, até segunda ordem.
Da mesma forma o olhar permanece cristalizado quando se trata de
observar o que não agrada ao normativo controle social. O homem considerado
fora dos impermanentes padrões tácitos, permanece sob a égide de um
amálgama de arbitrariedades e condenações que o impedem de exercer o
direito à própria condição humana.
Os movimentos sociais pró-inclusivos nos últimos vinte anos travam uma
batalha desafiadora, na tentativa de amenizar e adequar uma sociedade
alicerçada em moldes excludentes e seletivos, no intuito de flexibilizar dentro
de um modelo pluralista, onde as diversidades possam dialogar e promover
novos modos de pensar e compreender o outro.
No entanto o que se observa de modo real é uma panacéia de discursos
que ora caracterizam-se pelo teor assistencialista, ora tornam-se panfletários e
oportunistas em sua grande maioria quando são proferidos por aqueles que
não vivenciaram as experiências da exclusão e tomam para si um reivindicar
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especulativo que fantasia um modus vivendi , onde o que predomina é uma
ideologização politicamente correta dos fatos.
O que se entende por inclusão hoje evidencia um projeto político
arbitrário e corporativista, que privilegia interesses secundários para a
promoção efetiva de um agir-pensar sobre o que até agora chamamos
diversidade. Parece-me que o não entendimento do corpus social enquanto
gerador de sujeitos com específicas representações gera mecanismos ilusórios
para uma maior compreensão dos fatos que poderiam ser discutidos sem as
falácias protecionistas e maniqueístas.
As artes do corpo2 e o mercado pseudo-inclusivo brasileiro estão diante
de um verdadeiro policiamento de corpos, onde o artista-cidadão que tem uma
deficiência, ainda é visto por suas exoticidades corporais, caçadas como
raridades de museu, especulada como materiais repletos de um certo
fetichismo cênico por parte de alguns grupos e diretores no Brasil e no mundo.
A contratação desses profissionais atende a uma necessidade
mercantilista de comercializar talentos que mantém o status quo “superar
limites”, criado por mecanismos institucionais, que insistem no entendimento da
deficiência como um estado ou condição a ser sublimado ou vencido.
O corpo deficiente passa a ser objeto de um projeto estético
especulativo-laboratorial, ou seja, não basta ser deficiente, o artista tem que
ser um atraente produto para o desfrute cênico-espetacular. De certo modo, a
espetacularidade desses corpos permanece sob o estigma da observação, da
curiosidade, do espanto, do que “choca”, incomoda, aborrece e repugna, do
mesmo modo que se transforma em corpo que emociona, comove, sensibiliza
e levanta opiniões comparativas de senso comum. Cito como exemplo
afirmações muito utilizadas pelos órgãos de imprensa quando transformammatérias jornalísticas em lições e exemplos de vida a serem seguidos pela
população não deficiente.
Os corpos com deficiência parecem estar mergulhados em um cenário
esquizofrênico de rótulos, imagens, imposições e suplícios existenciais de
outros que alimentam uma indústria da penalização arbitrária de corpos.
2 Refiro-me aqui as artes do corpo como o teatro a dança e a performance.
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O homem portador de deficiência lembra, unicamente pelo
poder da presença o imaginário do corpo desmantelado que
assombra muitos pesadelos. Ele cria uma desordem nasegurança ontológica que garante a ordem simbólica.
(David Le Breton, p.75, 2007).
A mídia, assim como a arte e o território artístico correm o risco de
perpetuar a manutenção desses cânones segregadores, num campo onde o
entendimento da deficiência deveria (ou poderia) corroborar para outros
projetos estéticos, ações autônomas, que se mostram diante das sociedades e
das platéias. No entanto, essas possibilidades muitas vezes são reduzidas à
formas laboratoriais e experimentais, como numa espécie de fazer-clínico-da-
arte, seja na dança ou no teatro.
Com efeito, o mercado artístico envolvendo pessoas com algum tipo de
deficiência vem crescendo nos últimos quinze anos. Com o surgimento de
inúmeros grupos no Brasil e no exterior, esses trabalhos se tornaram uma
verdadeira vitrine para as emergentes políticas inclusivas assim como para os
projetos de fomento a cultura. Contudo resta saber quem se nutre destas
políticas, pois não se vê um posicionamento crítico ou político desses artistas,
que, todavia encontram-se sitiados, reféns de um curador dominante,
encarregado de definir seus direitos e seus espaços de atuação e criação.
Não se trata aqui de criar um fundamentalismo corpo-localista, sobre a
questão da deficiência, mas sobremodo incitar a busca pessoal dos artistas
brasileiros que a muito se esforçam em seus grupos ou projetos individuais
pela concessão legítima do exercício de sua autonomia e de sua opinião sobrea deficiência nas artes da cena e na sociedade.
No que diz respeito à penetração dos artistas no cenário artístico
contemporâneo ainda nos deparamos com um estreito espaço de atuação,
demarcado pelas especificidades patológicas dos corpos.
A produção artística no campo da dança no Brasil revelou grupos como
a Roda Viva Cia. de Dança e artistas autônomos como o baiano Edu Oliveira,
no entanto ainda prevalece os modelos de criação no campo cênicodependentes da práxis e dos discursos assistenciais e terapêuticos, ou
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atrelados diretamente a panfletária ideologia do modelo esportivo paraolímpico,
onde a égide corporal reafirma o status superação/exemplo de vida.
As artes da cena se ausentam – no que diz respeito à presença desses
corpos – em um tempo onde surgem nas artes as mais variadas manifestações
de ruptura dramatúrgica, corporal, política nos processos de atuação dos
artistas. Ao negar espaço aos corpos deficientes o território cênico recria novas
formas de exclusão, aniquilando as possibilidades cênicas de pesquisa,
atuação e produção de outros projetos estéticos para a cena. Repete-se desta
forma o modelo do corpo atrelado à clínica e ao desejo de reabilitação por meio
da arte, o que pode ser danoso para as perspectivas de profissionalização dos
artistas.
A dança — assim como as práticas para-desportivas —, revelam um
supercorpo deficiente, atrelado aos modelos supervalorativos de uma eficiência
que deve estar a serviço do corpo, que mascara e nega ao cidadão artista (ou
atleta) as suas próprias contribuições e críticas no processo de trabalho que é
per si um ato inacabado, em constante renovação criativa, social, política.
O que se observa hoje nas companhias brasileiras e internacionais é a
manutenção de técnicas, procedimentos e processos de trabalho nutridos por
uma busca da eficiência estética dos corpos que parece preocupar-se em
provar ao mundo que sim, o deficiente pode dançar. Assim cria-se
eficienticismos em favor de um fazer artístico que quer ser igual ao vigente,
quando esse fazer pode revelar características específicas e fundamentadas
no próprio projeto estético revelado pela deficiência.
O espaço cênico torna-se um lócus de resistências para o artista
deficiente quando este se apropria da autonomia sobre seu corpo, o que
possibilita a escolha de seus próprios projetos artísticos no território cênico.Este fazer artístico que pensa e faz pensar pode contribuir para outro
entendimento sobre os processos envolvidos na preparação, formação e
atuação do corpo deficiente nas artes da cena. Neste sentido, a reverberação
deste trabalho pode resultar em uma proposta mais além das posturas
preservacionistas do corpo, na busca de uma construção metodológica
enquanto emergente proposta de criação para o trabalho cênico dos corpos em
geral.
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A dança inclusiva não é uma categoria estética, mostra-se herdeira dos
pragmatismos classificatórios do projeto pedagógico da chamada Educação
Especial, compartimentado e baseado em ações hiper-protecionistas. No
entanto os projetos estéticos dos artistas e grupos não devem sofrer as
sanções de vigilantismos instituídos para seguir uma arte politicamente correta
ou panfletária. O artista que tem algum tipo de deficiência não necessita
justificar a sua capacidade criadora e produtiva no campo das artes. A atuação,
produção e execução artística não devem conceber o atrelamento às filiações
discursivas impostas a estes corpos.
O corpo deficiente é um corpo político-propositor, autônomo em sua
experiência criativa, atuante em seu fazer – cênico, todavia inconsciente da
reflexão acerca de seu campo criacional no campo das artes. Se a escolha do
artista se reduz apenas ao pragmatismo sociológico das lutas, das ideologias,
dos protecionismos perderá assim sua capacidade de enfrentamento, de ação
crítica de investigação artística. Enquanto criador o artista exerce o direito ao
próprio projeto estético e corrobora para o surgimento de outras vozes
criadoras, de outras matizes que só podem ser configuradas pela experiência
construída com a ausência das eficiências tão introjetadas na sociedade.
Esse duelo criativo entre a pressão eficientista e a ação cênica de
corpos não tão eficientes revela um potencial estético que promove uma arte a
partir da imobilidade, fincada nas ausências, nas perdas na relação
experienciada com o corpo que tem deficiências.
A verdade do corpo histórico se documenta e se reproduz no decorrer do
tempo, mas ficaram tantos corpos do outro lado da história essa que não foi
contada corpos que feridos, condenados, torturados, estigmatizados
escreveram sua história, usados pela mão silenciadora da guerra e da
normalizadora convicção da sociedade eficientizada em um platô sublime.
O corpo deficiente fora contemplado com o silêncio histórico,
subutilizado e desencorajado pela antiguidade, pela religião medieval, pelo
virtuosismo clássico e a fome de produção da revolução industrial. Um corpo
ausente, uma parte mutilada na história do mundo, e que silenciado, fora vítima
dos fatos criados por um corpus dominante.
A sociedade contempla os corpos considerados deficientes e parece nãoacreditar na possibilidade de reconhecer-se também nas suas incapacidades.
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O território artístico favorece o acesso desses artistas, mas afasta-se do
entendimento estético que estes propõem para a emergência de outros olhares
sobre o corpo considerado fora dos padrões. Slogans como: “Fazendo a
Diferença”, “Dia D da Diferença”, “Iguais na Diferença”, são muito comuns em
campanhas publicitárias e textos jornalísticos, ou no território artístico quando
este envolve corpos deficientes.
A multiplicação das diferenças pode eclipsar a diferença.Nossas sociedades, dado ao seu caráter democrático, pedemigualdade; sendo, no entanto, sociedades de massa, buscam auniformidade. Essa tensão que hoje perpassa as percepções,as representações, a experiência vivida do corpo anormal.
(Jean Jacques Courtine, p.337, 2008)
A deficiência assume o lugar do aviso, do alerta à contra-norma, é a
certeza da sociedade de sua perfeição, de sua integralidade histórico-corporal,
mas é também a in-verdade a manipulação de um fazer - histórico burocrata,
reducionista. Este corpo a-histórico recolhe de seus cacos e escombros a
possibilidade de refazer-se em sua historicidade. Os corpos que ficaram do
outro lado da história, silenciados e abjetados pelo desejo social da norma e da
produção empreenderam as representações sociais dominantes um novo papel
na compreensão da corporeidade como fenômeno social e cultural. Por
conseguinte, a diversidade é a nomenclatura da concessão corporal
contemporânea, da cultura do acesso e da oportunização das alteridades
marginalizadas.
O corpo fora do padrão é integrado, incluído no corpo normativo da
sociedade, de acordo com as necessidades de produção. A política capitalista
da oportunidade concede à história do corpo excluído a chance de ser parte da
sociedade, porém não constrói direitos ao sujeito, destituindo-lhe do lugar-cidadão.
De fato se faz necessário pensar que não só o corpo considerado
normal construiu sentidos ao homem no decorrer da história da humanidade,
os corpos considerados feios, improdutivos, desprezíveis, monstruosos,
construíram significados que ainda estão impregnados nas sociedades
contemporâneas. Assim sendo devemos considerar que este corpo no grato
delegou ao homem inquietações, conflitos, medos, rejeição, mas promoveu areflexão sobre a diferença e o desejo de diferir-se dos demais.
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As modificações corporais sofridas pelo ser humano em várias situações
históricas como guerras, epidemias e os efeitos das colonizações nas camadas
étnicas mundiais refletiram um corpo-espelho que difere de um modelo perfeito.
Esse corpo-ausente-existente é a própria condição do humano na
história, independente de seu lugar corporal na sociedade. A idéia que a
sociedade construiu do corpo defeituoso é a mesma em relação a sua superior
existência, ela necessita desta relação superior para a sua própria auto-
afirmação. A criação dos portais de inclusão social revela as falhas passadas
da humanidade, numa tentativa paliativa de reparar aquilo que continua sendo
tratado com receio, desconfiança e descrédito, sejam nas relações políticas,
culturais ou sociais deste corpo e de tantos outros que não se reconhecem
nessas ações paliativas de oportunização social.
Desta feita o artista deficiente ao transcender o discurso inclusivista
passa a habitar a cena, transfigura a poética, os códigos impostos e desbrava
novos territórios num fazer-cênico provocador em constante ressignificação.
Esse lócus impermanente revela outros projetos estéticos, sobretudo para o
labor corporal do artista, que passa a apropriar-se de suas próprias escolhas
artísticas e de sua própria cena.
Bibliografia:
BRAUDRILLARD, Jean. A Troca Impossível . Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2002.
COURTINE, Jean Jacques; VIGARELLO, Georges (Org.). A história do corpo:
as mutações do olhar: o século XX. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.TEIXEIRA, A. C. B. Deficiência em Cena: desafios e resistências daexperiência corporal para além das eficiências dançantes. Dissertação deMestrado em Artes Cênicas, Programa de Pós Graduação em ArtesCênicas,Universidade Federal da Bahia, 2010.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Editora Vozes,2007.