ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES...

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- ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO MESTRADO EM EDUCAÇÃO JOICE APARECIDA DE SOUZA PINTO NARRATIVAS E “PEDAGOGIA DA ADMIRAÇÃO”: DESAFIOS COM NOVAS TECNOLOGIAS. São Bernardo do Campo 2016

Transcript of ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES...

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ESCOLA DE COMUNICAO, EDUCAO E

HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE METODISTA DE

SO PAULO

MESTRADO EM EDUCAO

JOICE APARECIDA DE SOUZA PINTO

NARRATIVAS E PEDAGOGIA DA ADMIRAO:

DESAFIOS COM NOVAS TECNOLOGIAS.

So Bernardo do Campo

2016

-

ESCOLA DE COMUNICAO, EDUCAO E

HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE METODISTA DE

SO PAULO

MESTRADO EM EDUCAO

JOICE APARECIDA DE SOUZA PINTO

NARRATIVAS E PEDAGOGIA DA ADMIRAO:

DESAFIOS COM NOVAS TECNOLOGIAS.

Dissertao apresentada como exigncia ao Programa de Ps-

Graduao em Educao da Universidade Metodista de So

Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

Orientao: Prof. Dr. Luiz Jean Lauand.

So Bernardo do Campo

2016

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FICHA CATALOGRFICA

P

658n

Pinto, Joice Aparecida de Souza

Narrativas e pedagogia da admirao: desafios

com novas tecnologias / Joice Aparecida de Souza Pinto.

2016.

170 p.

Dissertao (Mestrado em Educao) --Escola de

Comunicao, Educao e Humanidades da Universidade

Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo, 2016.

Orientao: Luiz Jean Lauand.

1. Contos 2. Contar histrias 3. Educao 4.

Leitura e escrita 5. Novas tecnologias (Educao) I. Ttulo.

CDD 374.0122

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BANCA EXAMINADORA

A dissertao de mestrado sob o ttulo NARRATIVAS E PEDAGOGIA DA

ADMIRAO: DESAFIOS COM NOVAS TECNOLOGIAS, elaborada por Joice

Aparecida de Souza Pinto, foi apresentada e aprovada em 10 de agosto de 2016,

perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Luiz Jean Lauand

(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Rui Josgrilberg (Titular/UMESP), Prof. Dra. Chie

Hirose (Titular/Faculdades Integradas Campos Salles).

_____________________________________

Prof. Dr. Luiz Jean Lauand

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

______________________________________

Prof. Dra. Roseli Fischmann

Coordenadora do Programa de Ps-Graduao

Programa: Ps-Graduao

rea de concentrao: Educao

Linha de Pesquisa: Formao de Educadores

-

Trabalho realizado com auxlio do Projeto Bolsa Mestrado, oferecido pela

Secretaria da Educao do Estado de So Paulo.

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Estudar, estudo, (real e) etimologicamente (studio) zelo, aplicao, dedicao de quem ama o que faz; e escola remete a skhol, a atitude de serena festa da alma que

se deleita na contemplao da verdade, despertada pelo olhar da admirao. Se os alunos foram incapazes de ler o mundo, de ver o mirandum e, portanto, de vibrarem

com o conhecimento, sentir-se-o cada vez mais deslocados na escola. [...] E fica esquecida a admirao, fundamentalssima arkh.

Luiz Jean Lauand.

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Ao carssimo Professor Dr. Luiz Jean Lauand.

Quando desacreditamos, nos sentimos impotentes e nos perdemos... Com

sabedoria e generosidade, seja atravs de uma simples palavra ou de um mathal,

nos resgata, nos direciona esperana e confiana e o caminho

floresce...aprendizado constante.

minha amada me Romilda Garbin de Souza Pinto

(in memorian)

No h palavras para expressar a saudade e a imensa falta que voc me

faz....

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AGRADECIMENTOS

Agradeo a todos aqueles que participaram, diretamente ou indiretamente,

desse estudo.

minha famlia, Edson de Jesus Borsarini, Gustavo de Souza Borsarini e

Leonardo de Souza Borsarini, esposo e filhos amados.

Ao meu carssimo orientador, Prof. Dr. Luiz Jean Lauand por sua iluminada

sabedoria, generosidade, alteridade; por sua contribuio em cada momento deste

estudo, compartilhando o seu imensurvel conhecimento acadmico, o seu

repertrio de narrativas; por sua pacincia e por sua disponibilidade em todos os

momentos e por apresentar-me a Pedagogia da Admirao, sendo o exemplo real,

concretizado na prtica de toda teoria estudada.

Aos queridos professores do Programa de Ps-Graduao que to

gentilmente compartilharam muito mais que um conhecimento acadmico, no h

palavras que revelem o verdadeiro agradecimento: Prof. Dra. Roseli Fischmann,

Prof Dra. Zeila de Brito Fabri Demartini, Prof Dra. Lucia Pintor Santiso Villas Bas,

Prof Dra. Adriana Barroso de Azevedo, Prof. Dr. Roger M. de Quadros Souza, Prof.

Dr. Rui Josgrilberg.

Agradeo, tambm, Camilla Costa Sanches Secretria Acadmica de Ps-

Graduao e Priscila Wagna Vieira Roger Secretria do Programa de Ps-

Graduao em Educao, pela dedicao e pelo profissionalismo que sempre me

dispensaram.

Ao prof. Dr. Rui Josgrilberg e professora Dra. Chie Hirose pelas riqussimas

observaes e sugestes na finalizao do trabalho.

Aos colegas de Mestrado, em especial Andra Fernandes, grande amiga

importada do Maranho.

s minhas queridas amigas e companheiras de trabalho e de vida: Lilian

Fernandes Carneiro, Silvana Ap. Alves Barga, Daniele Andra Pagani e Zoraide

Cocito que, alm de amiga querida, revisou esse trabalho.

Aos meus alunos que representam o meu percurso profissional e o desejo de

aprender sempre, agradeo pelas aulas, pelos estudos, pela convivncia e por terem

despertado em mim o desejo de continuar sempre.

A todos que fizeram e fazem parte da narrativa, sempre em construo, da

minha vida.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Livro Palavras .......................................................................................... 17

Figura 3: Suspicious smoke Carl Spitzweg .......................................................... 44

Disponvel em: http://www.wikiart.org/em/carl-spitzweg/suspicious-smoke

acesso em 01/05/2016.

Figura 4: Charge de Ado Iturrusgarai ...................................................................... 82

Disponvel em: http://www.revista.vestibular.uerj.br/questo-

objetiva.php?seg_questo=1321 acesso em 11/08/2016.

Figura 5: Charge com a expresso: Bom dia! ......................................................... 87

Disponvel em: http://www.leovillanova.net/category/charges/Page /15/ - acesso

em 29/03/2016.

Figura 6: As trs idades da vida Gustav Klint ....................................................... 91

Disponvel :http://www.dezenovevonte.net/artistas/pw_influencias_files/klint.jpg

acesso em 24/11/2015.

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RESUMO

Este trabalho discute as narrativas e os valores pedaggicos do contar

histrias no ocidente e oriente e, ao mesmo tempo, dialoga com a pedagogia rabe

e a forma de pensamento relacionada ao contar histrias, fbulas, piadas,

provrbios, parbolas, o que se denomina amthal. Essas narrativas articulam-se

entre o abstrato e o concreto e esto diretamente entrelaadas com a prpria

experincia de vida, proporcionando analogias para alcanar a dimenso concreta

no processo de tomar decises, uma vez que so mais facilmente guardadas na

memria. Discute-se tambm o alcance pedaggico de veicular os contos em novas

mdias, a fim de estimular a leitura e a escrita a partir dos dilogos pedaggicos e

filosficos apresentados. Dessa forma, levar a entender que o crescimento se d a

partir da linguagem e do modo de agir, com uma proposta de educao integrada

com situaes concretas presentes nas mais variadas prticas dirias, resgatando

valores, como: tica, respeito e solidariedade; fatores essenciais para a insero dos

educandos na sociedade como cidado crtico e protagonista de sua prpria histria.

Palavras-chave: Contos. Contar histrias. Educao. Leitura e escrita. Novas

mdias.

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ABSTRACT

This paper discusses stories and storytelling as educational value in the West,

in dialogue with Arabic pedagogy, based in storytelling: amthal (the Arabic word (with

cumulative sense) connections between abstract and concrete, narratives (amthal, in

general) can play a decisive role in the decision-making process: bringing values to

here and now, providing analogies in order. To bring someones life experience to

this concrete situation, since they are more easily stored in memory. It also discusses

the pedagogical potential of storytelling in new media, in order to encourage reading

and writing from pedagogical and philosophical amthal. This approach leads to

understanding, from a concrete approach, how language, decisions and choices. Are

important in education concerned with values, ethics, solidarity, integrity; key factors

for inclusion of students in society as critical citizens and protagonists of their own

history.

Keywords: Tales. Storytelling. Education. Reading and writing. New media.

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SUMRIO

PRAMBULO

Trajetria formativa e profissional .............................................................................. 14

A gnese do trabalho ................................................................................................. 21

1 INTRODUO ........................................................................................................ 25

1.1Metodologia .......................................................................................................... 33

1.2 Metodologia: Perspectiva antropolgica pieperiana ............................................. 33

1.3 Metodologia: Insight e experincia ....................................................................... 35

1.4 Metodologia e compreenso: Verstehen .............................................................. 37

1.5 Trajetria Metodolgica ........................................................................................ 38

2 NARRATIVAS E PEDAGOGIA DA ADMIRAO

2.1 A importncia da Pedagogia da Admirao ....................................................... 41

2.2 O estudo dos gneros e a prtica pedaggica na contemporaneidade ................ 50

2.3 O gnero narrativo e a literatura entre Oriente e Ocidente ................................... 56

2.4 Narrativas como exemplo de vida: Para Pedagogia da Admirao .................... 66

3 NARRATIVAS: LER, CONTAR E INTERPRETAR

3.1 A importncia de ler e contar histrias ................................................................. 75

3.2 Narrativas: Pensamento confundente e neutro .................................................. 79

3.3 A relao entre o abstrato e o concreto ................................................................ 88

3.4 Linguagem, pensamento e realidade ................................................................... 92

3.5 A voz mdia e sua ressignificao nas narrativas a partir da linguagem .............. 102

3.6 Narrativas: A virtude da Prudncia nas razes do bem agir ................................. 105

4 DESAFIOS E CONQUISTAS: REFLEXES SOBRE A PRTICA E A

MEDIAO PEDAGGICA (ESTUDOS DOS CASOS).

4.1 Mediao tecnolgica e prtica docente .............................................................. 118

4.2 Navegando entre tecnologia e interpretao das narrativas ................................. 128

4.3 Narrativas como guias de vida: Um olhar diferenciado ......................................... 131

4.4 Ferramentas utilizadas ......................................................................................... 135

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4.5 Formato Stop motion: O amor e o velho barqueiro, A centopeia e o sapo;

jangada de Buda; Uma vela para Dario...................................................................... 142

4.6 Formato vdeo: O espelho; Medo da eternidade; O preo da fumaa .................. 149

4.7 Um conto, trs formatos: O menino que escrevia versos ..................................... 151

5 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 155

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 160

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A admirao no s como apontam j Plato e Aristteles o princpio, a arch do filosofar, mas tambm de todo conhecimento profundo, onde educador e educando trilham o caminho do mirandum, do carter admirvel da realidade. (LAUAND, 1988, p. 49)

Trajetria formativa e profissional para o presente trabalho.

No antigo curso ginasial, nos anos finais da dcada de 1970, para minha

felicidade, o professor de Lngua Portuguesa apresentava em suas aulas uma

prtica bastante inovadora ao utilizar recursos textuais, intertextuais e

contextualizao com a realidade, visto que era uma poca em que se valorizava,

muito mais, o aspecto normativo e gramatical da lngua, com mtodos decorativos e

automticos.

Ele, porm, oferecia-nos muitas histrias orais, incluindo anedotas e

provrbios, utilizava-se da entonao e do encantamento, o que prendia nossa

ateno; de muitas idas biblioteca, de leituras, de reflexes e de debates

dialogados, a partir da oralidade, e estava sempre disposto a nos ouvir e a contar-

nos uma histria. Esse professor Antnio Carlos da Costa - esteve presente na

minha formao por quatro anos no antigo curso ginasial e, posteriormente, por um

semestre no curso de Letras.

Naquela poca, no tinha ideia da importncia das narrativas para a

construo do pensamento, da reflexo e do discernimento, nos momentos de

tomadas de decises prudentes; mas, de alguma maneira, suas aulas

proporcionaram um abalo, que despertou em mim a grande admirao pelos mais

variados gneros da narrativa, que, atualmente, relacionamos com a Pedagogia

rabe do mathal.

Advirta-se, desde j, que a lngua rabe (e a hebraica) condensa em uma

nica palavra mathal (pl.: amthal / hebr.: mashal; mashalim) conceitos, para ns

distintos, como: provrbio, parbola, metfora, conto etc.

Suas aulas estruturavam-se com exemplos concretos a partir dos

pensamentos, atitudes, virtudes e decises de cada um dos personagens, ilustrados

nos mais variados gneros da narrativa.

Num paralelo com Oriente, temos a importncia da pedagogia do mathal

quando se volta para o concreto, conforme afirma Paul Auvray (1959 apud LAUAND,

1997a, p. 51) (...) sobre as lnguas semitas, analisa uma caracterstica importante:

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seu acentuado voltar-se para o concreto, pois se analisarmos as caractersticas da

lngua percebemos que, em hebraico e nas lnguas semitas, so poucas as palavras

verdadeiramente abstratas, contrariamente do que ocorre no Ocidente, cuja

estrutura da linguagem e do pensamento manifestam-se, predominantemente, por

meio do abstrato.

As abordagens que partem do concreto tornam-se mais consistentes e

prximas da realidade, principalmente, considerando-se a relao entre significado e

significante, pois a imagem concretiza-se em nossas mentes com a dimenso do

pensamento figurativo. Desta forma, Lauand (1997a, p. 51) afirma que (...) este

voltar-se para o concreto no apangio rabe ou semita (...) fenmeno humano,

em alguma medida est presente em todas as lnguas.

Encontramos um exemplo clssico entre provrbios orientais e ocidentais,

apresentados no livro de Lauand (1997a, p. 53):

O ocidental diz:

Quem o feio ama, bonito lhe parece.

J a formulao oriental :

O macaco, aos olhos de sua me, ( uma) gazela.

Ou em vez da nossa:

A educao vem do bero

Encontramos como correspondente na tradio rabe:

O pai dele alho; a me, cebola. Como pode ele cheirar bem?

(note-se que conduta, rihat, literalmente cheiro (bom ou mau) uma daquelas tantas antas

palavras orientais concretas (no lugar de nossa abstrata conduta)

Se observarmos a importncia dos provrbios, temos vrias possibilidades de

inferncias; enquanto o ocidental utiliza o discurso abstrato, atravs da construo

lexical com pronomes indefinidos, verbos e adjetivos, o oriental revela-se no discurso

concreto a partir de substantivos e, assim, se materializa a partir das imagens

construdas, porm, em ambos os casos, h uma mensagem a ser desvendada e

compete ao leitor decodific-la.

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Transcorridos vrios anos, em 1994, deixei meu emprego de secretria em

uma grande empresa para dedicar-me ao magistrio. Difcil deciso, mas, com

certeza, a melhor da minha vida, profissionalmente.

Desde ento, tenho me dedicado a estimular meus alunos a partir da leitura

dos mais variados gneros narrativos, seja na sala de aula em forma de leitura

compartilhada, seja nas dependncias de convivncia escolar, sempre procurando

direcionar para o contexto, para as relaes intertextuais apresentadas, para o

sentido explcito ou implcito, promovendo debates, questionamentos e abordagens

diversificadas sobre os mais variados pontos de vista, e, muitas vezes, com leitura

de encantamento e dramatizao, o que proporciona certa leveza durante as

abordagens dos contedos e maior interesse por parte dos alunos.

No incio, minhas leituras direcionavam-se aos alunos do Ensino Fundamental

II, no entanto, ampliaram-se para o Ensino Mdio, para a antiga Suplncia e, hoje,

at mesmo para o Curso Superior, trabalhando com formao de professores.

No uma tarefa fcil, pois a leitura exige certa concentrao e temos salas

lotadas, com interesses diversificados; preciso estimular e apresentar o enredo

com entusiasmo e encantamento; no h uma regra, o que h uma situao

precria que se alastra pela educao e que precisamos super-la, ou pelo menos

tentar faz-la.

Como exemplo de proposta concreta bem sucedida, em 2004 na E. E. Prof.

Manoel Grandini Casquel, escola pblica da periferia de Santo Andr,

desenvolvemos, interdisciplinarmente com Arte, o projeto da publicao interna de

um livro de poesias. O grande desafio foi estimular os alunos do 1 e 2 anos do

Ensino Mdio a se encantarem com o texto literrio, quando o real interesse estava

bastante distante da proposta.

Na poca, aps a definio projeto, foi grandiosa a experincia de faz-los ler

e se encantar com as palavras, as metforas, a musicalidade, as rimas, a linguagem

conotativa, as aliteraes, as assonncias e, acima de tudo, com a mensagem de

cada poesia, sabendo-se que a plurrisignificao, a complexidade e a subjetividade

esto presentes no gnero literrio e perceber a vastido do significado, muitas

vezes implcito, a revelar-se atravs das palavras, como apresentado no poema

elaborado por uma das alunas que, em uma estrofe, utiliza a palavra admirar no

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sentido de contemplao, uma lembrana do eu-lrico que no mais existir, sendo

a morte a mensagem oculta.

rvore Hoje no sinto a brisa me tocar. Hoje ningum mais pode me admirar. Hoje fico na lembrana de quem me viu. Eu estava ali parada, e no te incomodava. E comigo ali, voc melhor respirava. Ao menos podia me aproveitar, pois em vrias coisas poderia me transformar. Mas hoje nos reencontramos, pois sou estas cinzas Que teus ps esto pisando. N. O. D., 2 B E.M. 2004.

Ao final do projeto, a emoo tomou conta de todos, pois o resultado foi a

realizao do livro Palavras:

Aps a finalizao, cada aluno teve sua poesia publicada e recebeu um

exemplar. Ressalto que a elaborao foi toda voluntria e artesanal, a capa foi

escolhida por meio de um concurso com votos dos alunos, foi impresso em via

original e xerografado com recursos de doaes.

Saliento que, ao final, a aderncia participao foi total, com direito a tarde

de autgrafos e, hoje, percebo que, naquela poca, despertamos nos alunos um

grande abalo, pois a proposta tornou-se inusitada e, assim, posso dizer que se

estabeleceu a Pedagogia da Admirao, uma vez que a subjetividade e a

sensibilidade, to presentes na poesia, transcenderam o espao da sala de aula,

rompendo as barreiras limitadoras e proporcionaram uma nova forma de olhar e de

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sentir, de vivenciar o mirandum (aquilo que suscita a admirao) e de compartilhar o

conhecimento por meio de uma experincia concreta e real.

A grande lio que aprendi que na vida preciso perceber que o caminho

do saber estimulante e precioso, pois atravs da magia e do dinamismo podemos

nos transportar para um mundo repleto de expectativas, onde horizontes so abertos

para o nosso crescimento. Ao mesmo tempo, quando o educando trabalha com

autonomia, desenvolve suas habilidades e aptides e tambm sua autoestima no

sentido da valorizao encanta-se e admira-se.

Por outro lado, no que se relaciona aos recursos tecnolgicos, o primeiro

contato com essa metodologia ocorreu no ano de 2005, na mesma escola, com

alunos do Ensino Fundamental II que apresentavam defasagem de aprendizagem.

Na poca, o Governo do Estado de So Paulo implementou o projeto denominado

Trilha de Letras, desenvolvido a partir de situaes de aprendizagens relacionadas

s Tecnologias da Informao e Comunicao e aos Gneros Textuais.

As aulas eram realizadas em mdulos, nas salas especiais de informtica,

que foram devidamente instaladas na escola, com computadores e televiso. Cada

turma tinha, no mximo, dezoito alunos e a carga horria era de cinco aulas

semanais. Os professores envolvidos foram selecionados conforme formao, perfil

e competncias no uso das tecnologias, sendo que foram oferecidas capacitaes

na Unidade Escolar e tambm na Diretoria de Ensino, com encontros peridicos

para capacitaes e apresentaes dos resultados.

Os contedos eram direcionados aos conceitos de leitura e produo textual

como prticas sociais, a partir das tipologias textuais, adequao de linguagem,

contexto, inteno e finalidade textual, envolvendo as linguagens verbais e no

verbais, e, como se tratava dos recursos tecnolgicos, envolvia, tambm, a incluso

desses alunos nas prticas tecnolgicas.

Dessa forma, mais uma vez, o contedo voltava-se s narrativas, porm com

nova roupagem, contemplando aspectos culturais e variados gneros literrios,

como: contos, provrbios, fbulas e anedotas o que denominaremos,

posteriormente, como mathal, e esferas do gnero jornalstico, juntamente com

atividades ldicas e com a utilizao de hipertextos, porm, sempre,

contextualizados.

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Havia, tambm, mdulos que se direcionavam s oficinas de desenho como:

autorretrato, quadrinhos, tirinhas, desenvolvimento e criao de personagens que

criavam vida a partir da ilustrao concreta, que se materializava no imaginrio do

aluno.

Foi um grande desafio participar do projeto, entretanto muito satisfatrio, por

ter sido desenvolvido em um bairro de periferia, a maioria os alunos no tinha

acesso ao computador e passaram a perceber a importncia das histrias,

esperavam ansiosamente o momento de cada uma das aulas, que eram

direcionadas conforme a evoluo individual do aluno, respeitando o tempo de

aprendizagem.

Considerando ser uma prtica diferente e inovadora na poca, percebi que a

maioria dos alunos desenvolveu habilidades at ento no apresentadas,

admiravam-se com as propostas e com as novas ferramentas, preocupavam-se com

a leitura e tambm com a escrita, pois gostavam da nova proposta que unia

linguagem verbal e no verbal s ferramentas tecnolgicas.

Infelizmente, em 2007, o projeto simplesmente deixou de pertencer

proposta de ensino, foi extinto sem qualquer explicao e muitos alunos ficaram na

expectativa de fazer parte dele, j que no fora idealizado para todos. Assim,

embora muito bem sucedido e aceito pela comunidade escolar, no passou de uma

breve experincia, que tinha tudo para dar certo.

Simultaneamente, em 2005 iniciei a Ps-graduo lato-sensu em Lngua e

Literatura na UMESP Universidade Metodista de So Paulo, onde tive contato com

mestres excepcionais e colegas especiais, os quais foram essenciais para minha

formao, l estudamos os gneros literrios e a sua relao com a vida e o mundo;

a linguagem e a essncia da arte atravs das palavras.

Em dezembro de 2006, tomei posse do cargo pblico e me efetivei como

professora de Lngua Portuguesa, no municpio de Mau, onde desenvolvo meu

trabalho docente at o momento.

Sentindo necessidade de aprender, em 2010, percebi que era momento de

seguir meus estudos e partir para o mundo acadmico, inscrevi-me para o Mestrado

em Educao na UMESP Universidade Metodista de So Paulo, participei do

processo seletivo e fui aprovada para iniciar o curso, que seria sob a orientao da

Professora Dra. Norins Panicatti Bahia mas no era o momento, pois, naquele

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ano, a Secretaria do Estado da Educao de So Paulo no ofereceu a Bolsa

Mestrado para iniciantes e, sem recurso financeiro, no foi possvel prosseguir no

to sonhado curso.

Por outro lado, neste mesmo ano, iniciei minha carreira profissional no Curso

Superior, onde leciono at o momento e continuei, tambm, na Escola da Rede

Pblica. Com o tempo restrito, demiti-me da escola particular onde lecionava para o

Ensino Mdio. Ao final do mesmo ano, recebi o prmio Professor Padro oferecido

pela OAB (Ordem dos advogados do Brasil) da cidade de Mau, pelos projetos

desenvolvidos em sala de aula que se evidenciaram, estimulando a oralidade, a

leitura e a escrita.

Naquela poca, a Secretaria da Educao ofereceu um curso de

especializao para professores da rede pblica com objetivo de capacitar e

proporcionar novas prticas metodolgicas para o Ensino Fundamental II e Ensino

Mdio. A seleo ocorreu por meio de currculo e perfil e, assim, iniciei o curso de

especializao em Lngua Portuguesa, pela UNICAMP IEL (Universidade Estadual

de Campinas). O trabalho final foi apresentado em 19 de janeiro de 2013, em

Campinas, com o ttulo: Temas controversos na formao de opinio.

O estudo teve por embasamento terico os autores Bernard Schneuwly e

Joaquim Dolz (2004) e Jean Paul Bronkart (1999), os quais destacam a importncia

de se abordarem os gneros textuais na escola, enfatizando, tambm, a oralidade e

a escolarizao deles como mecanismo fundamental de socializao, uma vez que

operam como forma de legitimao discursiva; Mikhail Bakhtin (1997) afirma que os

gneros so enunciados relativamente estveis, caracterizados por apresentarem:

contedo temtico, construo composicional e um estilo, e, tambm, Roxane Rojo

(2006) que segue sua linha de pesquisa pautada em oralidade, letramento,

multiletramento e novas aprendizagens.

O objetivo foi apresentar e discutir uma Sequncia Didtica, elaborada para

alunos do Ensino Mdio, focalizada dentro da esfera jornalstica - gnero artigo de

opinio, a importncia do meio cultural de difuso de informao e de conhecimento

da vida contempornea; a construo do leitor reflexivo, capaz de posicionar-se

socialmente e de reconhecer gneros textuais e a interao entre autor e leitor de

jornais, revistas e artigos impressos ou digitais e, dessa forma, perceber tambm a

funo poltica e social da lngua.

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Os temas controversos foram apresentados a partir de vrias ferramentas,

como: vdeos, contos, crnicas, blogs, filmes, charges etc, possibilitando momentos

de aprendizagem prazerosos e dinmicos, o que estimulou a participao de todos.

Essas atividades diversificadas promoveram leitura, escrita, reflexo e

estimularam a construo do leitor reflexivo capaz de opinar, de reconhecer recursos

argumentativos, percebendo-se como ser social integrado sociedade em que est

inserido, pois ser o protagonista de sua vida depender do discernimento das

escolhas que lhes forem apresentadas, e que elas tenham por base o que,

classicamente, designado como a virtude cardeal da prudentia.

Por ser tema a ser discutido, cabe, desde j, um esclarecimento sobre o

sentido originrio dessa virtude:

Se hoje a palavra prudncia tornou-se aquela egosta cautela da indeciso (em cima do muro), em Toms, ao contrrio, prudentia expressa exatamente o oposto: a arte de decidir corretamente, isto , com base no em interesses oportunistas, no em sentimentos piegas, no em impulsos, no em temores, no em preconceito etc., mas, unicamente com base na realidade, em virtude do lmpido conhecimento do ser. esse conhecimento do ser que significado para a palavra ratio na definio de prudentia: recta ratio agibilium, reta razo aplicada ao agir, como repete, uma e outra vez, Toms. Prudentia ver a realidade e, com base nela, tomar a deciso certa. (AQUINO, T.; trad. LAUAND, J., 2014, p. X).

Essa nova experincia causou-me muitas inquietaes e angstias, pois

percebi que, talvez, a simbiose dos gneros narrativos com recursos tecnolgicos

pudesse ser um processo mais instigante para conduzir os alunos ao caminho do

conhecimento, do encantamento e da admirao e, dessa forma, promovesse um

ensino significativo para formao do educando na construo humana e social.

A gnese do trabalho

Durante todo meu perodo de docncia, tenho procurado dialogar com os

alunos, perceber como veem o mundo, a vida, o sistema educacional, quais so

seus interesses e a percepo humana e social deles. Assim, torna-se evidente

repensar o mtodo de ensino utilizado que, muitas vezes, no contempla seus

interesses, no desperta o desejo pela aprendizagem, no estimula e no incentiva

o processo de aprendizagem, no apresenta beleza, nem mesmo admirao to

primordiais para a reflexo, o ato de agir e de pensar.

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Surge, ento, a necessidade, quase emergencial, de repensar sobre o ensino,

uma vez que a metodologia, o currculo e as finalidades sociais conduzem a um

novo tempo em que nossos alunos tm disponveis: a tecnologia, as funes

miditicas e, acima de tudo, demonstram interesses diferentes dos apresentados.

Muitos alunos se encantavam com as narrativas: contos, crnicas, fbulas,

anedotas, provrbios, etc. e, pensando nisso, surgiu a ideia de estabelecer uma

reflexo sobre a importncia das narrativas e os recursos tecnolgicos aliados

prtica pedaggica para alunos do Ensino Mdio. Iniciei um projeto envolvendo as

narrativas e a transposio do gnero para novas mdias; no deixando de primar

pela essncia da palavra visando resgat-la e no descart-la e; assim, uni-las a

um novo formatado de prtica, pois sabe-se que a tecnologia tem invadido o espao

cultural, principalmente no ocidente, e que resgatar narrativas e perceb-las como

exemplos de histrias de vida objetivo primordial desse processo.

Sobre esse vis, importante evidenciar que:

No de se estranhar tambm que, para a estreiteza do ocidental de hoje, encerrado em seu mundo tecnologicamente domesticado, obcecado pelo acessrio, a observao da natureza tenha deixado de ser interessante e j no lhe diga mais nada: para ele, falam mais alto o culto eficincia e rudos eletrnicos dos diversos artefatos de que se cercou. (LAUAND, 1997a, p. 68).

O desafio de trabalhar com narrativas e transform-las em novas mdias foi

lanado por meio da escolha de algumas delas, atravs de rodas de leitura, em

espaos abertos de convivncia escolar, cujas anlises permitiram a

contextualizao, a oralidade e os dilogos e, dessa forma, o projeto foi iniciado.

O resultado foi excelente, a princpio, com o envolvimento da grande maioria

dos alunos, pois perceberam que a leitura e a anlise eram primordiais para que se

abstrasse a essncia do conto ao transform-lo em mdia, procurando no tirar seu

fundamento literrio e assim resgatamos contos, leitura, escrita e reflexo.

As leituras expandiram-se, pois havia a necessidade de pensar na mensagem

e nos elementos que seriam indispensveis para elaborao do trabalho. Os

enredos direcionaram os educandos aos debates, s anlises e s reflexes,

promovendo neles crescimento e conhecimento de mundo a partir do ato de pensar,

pois somente o pensamento conduz-nos aos questionamentos e expanso da

aprendizagem, promovendo ao mesmo tempo, o estudo amplo e um patamar de

-

23

debate interacional que evidenciam a linguagem, possibilitando ao leitor o

enriquecimento e/ou a transformao de sua maneira de viver e pensar.

Um desses projetos efetivou-se a partir da anlise do conto Os dois velhinhos

de Dalton Trevisan, e teve como desenvolvimento a elaborao de um roteiro de

trabalho baseado em uma sequncia didtica, a produo do cenrio a partir do

storyboard, a interpretao simblica dos elementos concretos, a percepo do

implcito/oculto e a prpria situao do idoso, avaliando o percurso da vida, a

inocncia, a inveja, entre outras.

Em atendimento solicitao de Diretoria de Ensino da Regio de Mau, em

2014, esse projeto, denominado Mediao e Linguagem foi, posteriormente,

transformado em vdeo de um minuto, desenvolvido pelos prprios alunos, o qual

est disponibilizado no youtube atravs do link

https://www.youtube.com/watch?v=0ehCJgGUKRY, acesso em 20/04/2015.

Ao iniciar as aulas do Mestrado, no segundo semestre de 2014, vi-me

envolvida com a riqueza inquestionvel da erudio apresentada pelos magnficos

professores, um verdadeiro alimento de conhecimento para a alma, pois cada aula

possibilitou-nos um novo olhar, uma reflexo e, ao mesmo tempo, conduziu-nos aos

questionamentos contnuos que, sinceramente, desestabilizou-nos e nos fez

acreditar, mais uma vez, que a beleza do conhecimento a magia transcendental do

saber humano, e o professor aquele que doa com corao todo o seu

conhecimento, aquele que divide com generosidade todo seu percurso de estudo e

pesquisa, enriquecendo-nos e somando-se a cada um de ns.

Durante as aulas de Abordagens Filosficas da Educao, ministradas pelo

Prof. Dr. Jean Lauand, vivenciei a importncia das narrativas em nossas vidas. Suas

aulas, sempre ilustradas e to maravilhosamente interpretadas atravs de

fragmentos de romances, contos, provrbios, parbolas, anedotas, canes, poesias

etc., surgiam, iluminadamente, nos proporcionando um caminho para o

entendimento e, sem dvida, possibilitando que aquele momento se materializasse

com o contedo de maneira mpar, pois cada aula direcionava-se, verdadeiramente,

a um abalo filosfico, ao ato de pensar, Pedagogia da Admirao e, acima de tudo,

ao espao que se tornava genuinamente o exemplo de skhol (classicamente, a

atitude de serena disponibilidade da alma para acolher e contemplar, festivamente, o

conhecimento).

https://www.youtube.com/watch?v=0ehCJgGUKRY

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24

Entre tantas leituras e explanaes, destaco: a forma de pensar entre Oriente

e Ocidente, o pensamento confudente, o estudo de Pieper, a importncia da

pedagogia do mathal. Saliento, tambm, a grande alegria de ser aceita como

orientanda pelo professor Dr. Luiz Jean Lauand, que iniciou nossa primeira

orientao com a A Jangada (que a tradio considera a mais apreciada por Buda),

transcendendo magicamente o momento do conceito do abstrato para o concreto,

proporcionando o verdadeiro sentido da Pedagogia da Admirao.

Destarte, o projeto seguiu a proposta na mesma temtica, discutir as

narrativas e o alcance pedaggico de transform-las em novas mdias, porm

relacionando tambm com a importncia da pedagogia do mathal, como ferramenta

primordial para proporcionar o conhecimento, a prudncia e a virtude, a partir das

narrativas.

Na seleo das narrativas ocidentais e orientais, priorizaram-se temticas

diferenciadas e intertextuais, com enredos que conduzissem ao debate, reflexo e

construo intelectual; para Garcia Hoz (1988 apud LAUAND, 1997a, p. 12)

visvel a significao especial que os estudos sobre cultura popular adquirem na

educao ps-moderna; tradies milenares so consideradas as mais audazes e

indispensveis, pois ampliar o campo do conhecimento em uma viagem cultural,

desde os primrdios at a atualidade, significa enriquecimento da viso de mundo e

da percepo da realidade.

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25

1 INTRODUO

O presente estudo consiste em discutir narrativas, valores pedaggicos de

contar histrias e a possibilidade de apresent-las em novas mdias, a fim de se

estimularem processos de leitura, de escrita, tomadas de decises e de reflexes, a

partir de dilogos literrios e filosficos e, paralelamente, de estabelecer relao com

a Pedagogia dos amthal bem como a possibilidade de se instaurar a Pedagogia da

Admirao.

A importncia da pedagogia dos amthal evidencia-se porque h a

necessidade de articulao entre o visvel e o invisvel; a virtude da prudncia -

definida como a reta razo no agir que realiza uma ponte entre o abstrato e o

concreto e, assim, a realidade vivida transforma-se em experincia1, e,

principalmente, porque a base da Pedagogia do mathal direciona-se ao

conhecimento a partir do sensvel.

A relao entre Oriente e Ocidente relevante, pois para a milenar sabedoria

oriental, os amthal relacionam-se imagem concreta e ao recurso da experincia, ao

passado, lembrana, que pode ser resgatada a partir de narrativas atemporais,

mas que se tornam presentes a cada nova leitura, gerando uma nova concepo de

linguagem e de pensamento e, assim, uma educao direcionada, no somente ao

momento presente, mas tambm com projeo para o futuro, possibilitando a

liberdade para o crescimento e interferindo nas escolhas que podero ser

determinantes para a existncia individual, embora essa esteja fortemente

entrelaada com as relaes em sociedade.

Sobre individualidade e sociedade, Maras (1998, p. 59) evidencia-nos que o

homem vive em uma sociedade, o homem tem uma vida individual que est, porm,

articulada com a vida coletiva e, assim, a vida moral est naturalmente condicionada

pela situao social em que vive, pelo conjunto de usos, de vigncias, de presses

sociais, de modelos e de exemplos.

Da mesma forma, ao pensar no conceito de liberdade, contribuindo para a

formao e transformao do sujeito inserido em um espao coletivo e social, Maras

(1998) adverte-nos que muitos acontecimentos deixam em cada um de ns uma

marca que pode ser boa ou m, mas que, em muitos casos, tornam-se importantes

1 Lauand (1997b, p. 17).

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26

para nossa vida e que, de modo igual, cabe a cada um determinada interpretao, a

qual poder direcionar esse caminho e, para isso, primordial ter liberdade e

autonomia para as possveis escolhas e decises, mesmo sabendo-se que essas

decises, muitas vezes, esto imbricadas com outros acontecimentos e outras

consequncias que esto inseridos no contexto social.

A liberdade, desse modo, sempre fundamental e decisiva. A liberdade faz tambm que o homem seja responsvel: no sou responsvel pelo contedo ltimo de minha vida nem pelo que vem de fora, mas sim por aquilo que escolho, que eu prefiro, que eu decido dentro das minhas possibilidades. Muito bem, mas a sociedade exerce uma grande presso. Em alguns sentidos trata-se de uma presso difusa: a presso que exercida pelas vigncias, os usos sociais, que de certo modo configuram nossa vida e tiram-lhe a espontaneidade, tiram-lhe a autonomia, ao mesmo tempo que a regulam e lhe propiciam facilidades. [...] Considerem, ento, que um homem de nossa poca recebe diversas interpretaes do real [...] (MARAS, 1998, p. 59-60).

Sobre o princpio de liberdade, Lauand (1987, p. 68) corrobora assegurando

que se a liberdade pressupe o bem, este por sua vez pressupe a realidade, bem

o que est de acordo com a natureza do homem, assim o conhecimento est

direcionado captao dos elementos da realidade que so relacionados aos

fatores do mundo externo.

O desejo de ver e de conhecer, constitutivo do ser humano , alm do mais,

essencial para que se torne um ser livre para pensar e decidir, Pieper2 (1977 apud

LAUAND, 1987a, p. 68) expe que:

O homem um ente cuja natureza essencialmente reside no desejo de ver e conhecer (...). Na atividade de compreender, o homem est fazendo aquilo que, essencialmente, ele quer fazer, e no ato do conhecimento que ele realmente livre.

Conforme exposto, acreditamos que uma prtica vinculada s abordagens

apresentadas, nas quais os educandos sejam capazes de perceber que o processo

poder revelar muito mais que uma simples aula de interpretao - explcita ou

implcita -, sejam, tambm, capazes de questionar e perceber que no percurso do

conhecimento h um objeto oculto que poder conduzi-los liberdade de escolha e

ao crescimento e, assim, ser possvel voltar para o conhecimento teortico

contemplativo da realidade.

2 ber den Begriff der Snde, 1977, p. 49.

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27

O objetivo resgatar contos tradicionais orientais e, tambm, ocidentais

contemporneos e transform-los em narrativas digitais e, nesse processo, a partir

das anlises e da transposio da forma abstrata para a concreta, observar se as

metodologias que priorizam um ensino mais dinmico e a utilizao de ferramentas

tecnolgicas presentes nas mais variadas prticas sociais dirias, podem

estabelecer algum interesse e encantamento pelas narrativas, estimulando o gosto

pela leitura e pela produo textual.

Objetiva-se tambm investigar a possibilidade de os educandos sentirem-se

motivados e integrados ao espao educacional e social ao qual esto inseridos, com

liberdade de escolha sobre o objeto a ser estudado, e verificar se possvel

promover uma aprendizagem direcionada Pedagogia da Admirao, com seu

primordial sentido de skhol, rompendo a prtica mecnica e promovendo um

convvio aberto para construo e formao, tendo como ponto inicial a oralidade e o

debate, transformando o espao em local de crescimento e dilogo entre todos os

envolvidos no processo.

Muitas vezes, nas prticas educacionais temos um estudo mecnico, o qual,

geralmente, no conduz reflexo, no se evidencia a sensibilidade e, um estudo

sem significado, torna-se vazio e desinteressante. Lauand (2012, p. 33) explica que

O ensino de literatura, de histria, de lnguas, de matemtica e cincias, etc., que

deve ser a fantstica descoberta da grandeza do humano, corre o risco de ficar

reduzido a uma burocrtica transmisso de informaes, sem muito significado.

Se acreditarmos que a escola espao de interao e expanso do

conhecimento, lembrando que a palavra escola nos remete skhol atitude de

serena festa da alma que se deleita na contemplao da verdade, despertada pelo

olhar da admirao, verificar se interessante conduzir a um novo olhar que possa

suscitar a admirao a partir de situaes do quotidiano e, consequentemente

admirar - Lauand nos esclarece que:

somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relao com o ser, que desde Plato se chama Teoria, isto , aceitao puramente receptiva da realidade (...)Teoria s existe quando o homem no se tornou cego maravilhoso, que reside em que alguma coisa existe. (1987, p. 109).

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28

Ainda, no que se refere admirao, Pieper (2014, p. 43) esclarece que

diante do olhar dirigido s coisas encontradas na experincia cotidiana se apresenta

o no cotidiano, o que no mais bvio nessas coisas. exatamente a esse estado

das coisas que est associado aquele acontecimento interior no qual se colocou, h

muito, no princpio de filosofar: a admirao.

Com base nas prticas direcionadas s situaes simples do quotidiano,

reveladas atravs do enredo das narrativas deve-se procurar instaurar o mirandum

e, assim, promover um abalo admirativo, que parece esquecido nos dias atuais,

mas que pode ser resgatado, uma vez que pertence esfera do que h de mais

profundo no humano.

Sobre a admirao, Pieper (ibidem) adverte que a prova de que a natureza

humana no est disposta a nada menor que esse fim o fato de o homem ser

capaz de experimentar o mirandum da criao e ser capaz de se admirar, o que

conduziria ao encantamento, a partir da reflexo, e a reconhecer-se a partir do

desejo do saber.

Consequentemente, a proposta est direcionada s indagaes e s

possibilidades de interpretaes diversificadas que possam ser discutidas em

espao de interao dinmica, onde cada um tenha voz ativa para expor suas

opinies, estimulando o prazer e o gosto pela aprendizagem a partir da experincia

concreta e da liberdade para agir e pensar.

Quanto aos recursos tecnolgicos, primordial a aceitao dos novos meios

que nos so apresentados e que fazem parte da realidade, pois inserir as

ferramentas tecnolgicas caminho para construo de um dilogo com a

atualidade; da mesma forma que, se a lngua, em sua concepo social, um

organismo vivo que se concretiza atravs do uso em diferentes espaos sociais

necessrio refletir sobre as mais variadas formas de narrativas e linguagens.

Segundo PCNs (2000, p. 6):

No mundo contemporneo, marcado pelo informativo imediato, a reflexo sobre as linguagens e seus sistemas, que se mostram articulados por mltiplos cdigos, e sobre os processos e procedimentos comunicativos mais que uma necessidade, garantia de participao ativa na vida social, a cidadania desejada.

-

29

Destarte, o estudo justifica-se em decorrncia do prprio contexto atual que

envolve diversidade, pluralidade cultural, efeitos da globalizao, mdia interativa e

cultura de massa, tpicos eminentes na contemporaneidade e percebemos que so

inmeros os desafios no processo educacional em que se prioriza uma escola

inovadora, segmentada e em busca de melhoria na qualidade.

Novas metodologias de ensino pressupem uma prtica reflexiva que implica

o aperfeioamento pertinente s experincias significativas, a fim de que o educador

sinta-se capaz de contribuir para a formao do aluno e que esse possa, tambm,

reconhecer-se como ser social pertencente sociedade na qual est inserido.

Por outro lado, a modernidade apresenta, cada vez mais, o surgimento de

diversificados gneros textuais e miditicos; usa-se a linguagem em todos os

ambientes e gneros digitais, sugerindo uma nova configurao dos objetos de

ensino. Segundo Moran (2006, p.11) Ensinar com as novas mdias ser uma

revoluo se mudarmos simultaneamente os paradigmas convencionais do ensino,

que mantm distantes professores e alunos.

Pensando nesses propsitos, torna-se proeminente a necessidade de buscar

caminhos que direcionem as mudanas e proponham adaptaes para uma

metodologia de ensino que privilegie a melhoria da qualidade educacional, tendo

como referncia essencial o educando.

So muitos os desafios que enfrentamos no processo de estruturao prtica

e metodolgica; despertar o interesse e o desejo de aprender e apreender e

promover uma formao direcionada ao educando, leitor-produtor textual, um

deles. Entretanto, tornam-se emergenciais elaboraes de projetos que o estimule,

pois a prtica que no proporciona reflexo e construo para emancipao e

liberdade no se efetivar para a construo social e nem mesmo despertar para a

necessidade de aprimorar o conhecimento.

O professor deve ser o mediador desse percurso e o educando deve saber

decifrar os caminhos que lhes so apresentados e perceber-se como protagonista

do processo e no exclusivamente como copista, leitor passivo e no interpretativo.

A problemtica est relacionada ao desafio da formao de um aluno capaz

de ler, de escrever, de interpretar e de inferir, a partir de temas diversos, e que

reconhea-se como leitor e produtor textual e, assim, sinta-se capaz de interao e

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30

debate a partir das prticas discursivo-sociais, com noo de autoria do prprio

texto.

Sobre a importncia da autoria, explica-nos Foucault (2006) que o autor o

princpio do agrupamento da relao dos discursos, entre unidade, origem e

significaes; ao mesmo tempo em que a noo de autor se d como uma funo da

noo sujeito. A indagao que nos direciona : seria possvel refletir sobre as

concepes de desenvolvimento da competncia leitora e da escritora a partir de

sequncias didticas relacionadas s narrativas (amthal), aliadas aos recursos

tecnolgicos de maneira crtica, e estimular a construo do conhecimento que

proporcione um espao de dilogo e reflexo, conduzindo ao encantamento, que

denominamos Pedagogia da Admirao?

Simultaneamente, ao rompermos certos paradigmas metodolgicos

tradicionais e apresentarmos, novas prticas teremos momento de interao,

socializao, leitura, debate, elaborao de roteiros, seleo de sequncias textuais,

caracterizao de cenrio, figurino e personagens, de forma que o educando

considere-se e realmente seja relevante para o resultado final do processo, sentindo-

se essencial para a construo e elaborao do projeto, a partir de um roteiro com

objetivos e metas a serem seguidas. Segundo PCNs (2000, p. 6-7):

A disciplina de lngua portuguesa permite abordar estudos das linguagens verbal e no verbal, relaes contextuais, semnticas, lexicais, aspectos do mundo contemporneo, marcado pelo informativo imediato, a reflexo sobre as linguagens e seus sistemas, que se mostram articulados por mltiplos cdigos. E sobre os processos e procedimentos comunicativos mais que uma necessidade, garantia de participao ativa na vida social, a cidadania desejada.

.

Segundo o discorrido, afirma Morin (s/d, p. 51), a educao do futuro dever

ser um ensino primeiro universal centrado na condio humana. [...] Estes devem

reconhecer-se na sua humanidade comum e, ao mesmo tempo, reconhecer a

diversidade cultural a tudo quanto humano, a rea de lngua portuguesa tem o

privilgio de trabalhar com textos, releituras, retextualizaes, oralidades, variaes;

portanto, mergulhar no espao social juvenil, valorizar e transformar conhecimentos

a partir de situaes concretas uma possibilidade de desvendar um universo at

ento desconhecido, compreendendo a necessidade do novo olhar que seja capaz

de reconhecer os jovens como potencial de transformao social.

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31

O presente trabalho fundamenta-se, portanto, sob um cabedal terico

relacionado importncia do encantamento e da admirao, considerando-se,

tambm, a relao oriente e ocidente, a pedagogia do mathal, a relao entre o

concreto e o abstrato. Para isso, buscamos estabelecer um dilogo entre os estudos

de Jean Lauand que recolhem referencial terico base, que ricamente nos

transporta ao conhecimento, compartilhando suas vastas pesquisas com a

metodologia de Josef Pieper, Julian Maras, entre outros.

Quanto aos autores relacionados prtica pedaggica, direcionada s

tecnologias, destaco, entre outros autores: Jos Manuel Moran que aborda sobre o

ensino e a aprendizagem inovadores com tecnologias audiovisuais e telemticas;

Marilda Aparecida Behrens que apresenta uma reflexo sobre a ao docente que

venha a atender as exigncias desse novo paradigma, propondo um contrato

didtico que subsidie uma aprendizagem colaborativa na era digital e Marcos T.

Masetto, que discute e aprofunda o tema da mediao pedaggica, visando

melhoria do processo de aprendizagem.

O presente trabalho encontra-se dividido em quatro captulos, alm da

Apresentao e das Consideraes Finais, obedecendo seguinte estruturao:

O primeiro captulo est direcionado Introduo, especificando objetivos,

problemtica, justificativa e mtodo.

O segundo captulo, ao apresentar a importncia da Pedagogia da

Admirao, a partir do estudo das narrativas, estabelece a sua relevncia na prtica

educacional, relacionando-a ao princpio do filosofar. Em seguida, apresenta uma

abordagem sobre o estudo dos gneros literrios e sobre a prtica pedaggica na

contemporaneidade, apoiando-se nos estudos apresentados pelos autores

genebrinos Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz (2004); discorre sobre o conceito de

gneros desde Aristteles, em sua Potica (2004), at Moiss (1978) e Marcuschi

(2009).

Segue, ainda, com a explanao sobre o gnero narrativo e a literatura entre

Ocidente e Oriente (mathal), a fim de que se direcione linearmente a sequncia que

se efetivar para concluir a anlise.

Sabendo-se que muito complexo definir o que a literatura, procurou-se

conceitu-la, considerando a representao plurissignificativa de determinada

situao real ou fictcia, cujo entendimento depender das estratgias de leitura para

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32

que o leitor decodifique a pluralidade de sentidos que lhes so apresentados e,

finalmente, elucide sobre as narrativas como verdadeiros exemplos de vida que

podero relacionar-se com a virtude da prudncia, com o modo de agir, de pensar e

de tomar decises, a partir da subjetividade e da interpretao de cada leitor.

O terceiro captulo est organizado a partir da importncia das narrativas

como fonte inesgotvel para ler, contar e interpretar histrias e, para isso, discutiu-se

a importncia da arte de contar histrias, uma prtica que faz parte da vida, desde

sempre, na humanidade e ultrapassa geraes e geraes; assim tem-se o

referencial terico estabelecido a partir dos estudos de Lauand. Primeiramente sobre

o pensamento confundente uma descoberta de Ortega y Gasset, que possibilitar

a compreenso da complexidade semntica de algumas palavras e da sua

importncia para desvendar um enunciado ambguo nas mais variadas formas

textuais. Para isso, Lauand esclarece que confundir uma funo to necessria

quanto distinguir, porque permite descobrir as conexes entre realidades que, por

outro lado, necessrio distingui-las. Posteriormente, destaca a relevncia do neutro

nas narrativas, a voz mdia e sua ressignificao a partir da linguagem e da forma

de pensamento, finalizando com as narrativas e a virtude da prudncia prudentia:

ver na realidade e, com base nela, tomar a deciso certa e, assim, decidir

corretamente, sem deixar-se envolver por atitudes oportunistas, mas com base na

realidade respeitando o verdadeiro conhecimento do ser.

O quarto captulo est direcionado ao estudo dos casos amthal - e

reflexo sobre a prtica e a mediao entre: tecnologia, narrativas e prtica docente.

Para tanto, pretende-se revisitar conceitos de leitura e escrita, bem como apresentar

as temticas e relacion-las ao referencial terico citado no decorrer da elaborao

do presente trabalho, evidenciando os desafios presentes e as conquistas efetuadas,

a fim de que se possa compreender o percurso metodolgico que embasou o

presente trabalho.

Por fim, nas consideraes finais, procura-se realizar uma sntese dos

elementos fundamentais que sustentaram o presente trabalho por meio da retomada

de indagaes apresentadas nos captulos anteriores.

-

33

1.1 Metodologia

Neste trabalho, a metodologia est diretamente relacionada ao referencial

terico e segue o percurso qualitativo; para embasamento prtico o desenvolvimento

do processo foi construdo a partir do princpio da pesquisa participante, a qual

apresenta como uma das caractersticas a possibilidade de pensar e intervir juntos.

Assim, a proposta contribuir para que os espaos escolares tornem os sujeitos

capazes de histria prpria, individual e coletiva, para saberem pensar sua condio

e poderem desenvolver possibilidades, interveno alternativa, como ferramenta

auxiliar para seu processo de formao.

Entretanto, para esse estudo, a metodologia utilizada para a efetivao de

anlise ser discutida mediante algumas caractersticas do mtodo, em Josef

Pieper, e sua conexo com o ato de filosofar, para isso, evidenciar-se- a linguagem

como elemento metodolgico principal na articulao entre pensamento e realidade.

1.2 Metodologia: Perspectiva antropolgica pieperiana.

Nessa perspectiva antropolgica, prima-se por analisar: narrativas a partir do

dilogo entre Oriente e Ocidente, a importncia da Pedagogia do mathal, o concreto

e o abstrato, o pensamento confundente, a voz mdia, a estrutura e forma de

pensamento, a prudncia e a memria entre outros, luz da antropologia filosfica,

partindo do princpio da liberdade para o questionamento constante. Demo (2004, p.

3) corrobora afirmando que quem no questiona o conhecimento faz qualquer

conhecimento. Ou, como se diz: quem no sabe pensar acredita no que pensa;

quem sabe pensar, questiona o que pensa.

A metodologia est pautada nas consideraes de Lauand e em seus estudos

sobre a antropologia de Josef Pieper e nas relaes com todo o processo de

desenvolvimento do trabalho, uma vez que ele esteve totalmente imbricado com

vrias vertentes de anlise, favorecendo a situao real momentnea e a reflexo

individual e coletiva, sugerindo sempre o questionamento como base para todo o

desenvolvimento, sabendo-se que esse surge a partir de um processo existencial e

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34

como ato espontneo, assim o mtodo que se escolhe depende da concepo de

filosofar. Lauand3 adverte que:

Esta a razo pela qual no caso JP o mtodo escapa de toda tentativa de operacionalizao, de deixar-se expressar em receitas ou regras rgidas. Pois filosofar , para JP: um processo existencial que se desenvolve no centro do esprito, um ato espontneo que arranca a vida do interior. (2004, p. 3)

Assim, a metodologia est atrelada construo da mensagem e do

conhecimento, a partir da linguagem e do prprio ato de filosofar; seguindo esse

vis, tem-se como tema principal o homem e a relao entre todos os subtemas

apresentados em cada uma das narrativas estudadas e a possibilidade de

reconhecer-se a partir do ato de filosofar, podendo conduzir virtude, metafsica e

a reflexo sobre a verdade das coisas, entretanto, a partir de caminhos indiretos.

Neste caso, Lauand (2004, p. 4) nos explica que:

O tema, o grande tema que subjaz a todos os escritos pieperianos o homem, a antropologia filosfica. Mas e com isso tocamos um dos traos principais do pensamento/mtodo de Josef Pieper a essa realidade fundamental, o homem, s h acesso por caminhos indiretos.

Na revelao, mediante o acesso realidade por caminhos indiretos, temos

(LAUAND, 2004, p. 4) ilustrando com Mnemosyne a me das musas e afirma que

O homem um ser esquecedio e precisa de musas para record-lo, pensando

nesse apontamento, o homem um ser que esquece, principalmente dos

elementos inerentes sensibilidade ao ser, ao dizer: Bom dia, tudo bem com

voc?, Parece-me triste, o que te aflige? Nos esquecemos de olhar para o outro,

de nos colocarmos no seu lugar e, portanto, invocam-se as musas que podero

ajudar-nos a recordar recordar as grandes verdades que sabemos, mas das

quais, uma e outra vez, nos esquecemos (LAUAND, 2004, p. 4).

Com isso, fica evidente que o carter esquecedor do homem [...] est nos

fundamentos do mtodo de filosofar de Josef Pieper, um mtodo que atinge seu

objeto, o homem, por caminhos indiretos (Ibid. p. 4).

3 Mtodo e Linguagem no Pensamento de Josef Pieper. (notas de conferncia proferida no congresso internacional: Josef Pieper e o pensamento contemporneo, Buenos Aires, agosto de 2004). Disponvel em: http://hottopos.com/videtur29/ljargport.htm acesso em 05/03/2016.

http://hottopos.com/videtur29/ljargport.htm

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35

1.3 Metodologia: Insight e experincia.

A metodologia entrelaada aos enredos apresentados pelas narrativas,

sugere a possibilidade de um insight, atravs de um acontecimento banal do

quotidiano. Nessa perspectiva, para as anlises, seguiremos a linha pieperiana,

conforme adverte Lauand (2004, p. 5):

[...] sempre a anlise pieperiana se alimenta da manifestao, do fenmeno: o insight e a sabedoria se encontram justamente no esforo de trazer considerao tudo aquilo que realmente significativo em relao a esta ou aquela experincia. E por apoiar-se na experincia, que o pensamento de Josef Pieper tem a viveza e o colorido do concreto, do vivido [...].

Posto isso, est voltada para a experincia que esses educandos trilharo

para a elaborao do processo de transposio do gnero literrio para narrativa

digital, considerando a relevncia entre linguagem, mensagem e pensamento que os

conduziro indagao o princpio do ato de filosofar, j que nem sempre todas as

lembranas das nossas experincias vividas esto na nossa memria preciso

reativ-las.

Pode ocorrer, por exemplo, que as experincias, as grandes experincias que podemos ter sobre o homem e o mundo, brilhem com toda a viveza por um instante na conscincia e depois, sob a presso do quotidiano, comecem a desvanecer-se, a cair no esquecimento... Seja como for, no que se aniquilem (se se aniquilassem no restaria sequer a possibilidade de filosofar...), mas se transformar, se tornam...instituies, formas de agir do homem e linguagem. (LAUAND, 2004, p. 5-6).

Aps a seleo e a escolha das narrativas, ocorreram anlises a partir da

linguagem, da mensagem e da forma de agir de cada personagem, e a transposio

deu-se de maneira concreta uma vez que houve a caracterizao dos elementos e

dos personagens, a percepo da sua forma de agir, de suas escolhas, a da relao

entre o visvel e o invisvel etc, a partir da experincia que se efetivou na finalizao

do projeto.

Sobre as vias de acesso para experincia, Josef Pieper (1974 apud LAUAND,

2004) apresenta-nos:

Primeiramente, a partir do questionamento: Que significa experincia? Um

conhecimento com base num contato direto com a realidade; porm os resultados

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36

no desaparecem quando termina o ato da experincia, ao contrrio, acumulam-se e

conservam-se nas grandes instituies, no agir dos homens e no fazer da

linguagem.

Seguidamente, nos alerta que h experincias em que o contedo pode ser

expresso e conhecido para quem as faz e outros no podem ser expressos e

realizados, mas permanecem latentes. Pois, muitas vezes, no momento em que

vivemos certas situaes no h surpresas, como se j esperssemos. Isso deixa

claro que, normalmente, sabemos mais do que sabemos.

Para isso, o autor cita Friedrich Von Hgel: No se trata tanto do que algum

julga que pensa, mas do que realmente pensa... o que pode descobrir somente a

partir de um abalo existencial um plus - e, justamente nesse ponto, que possvel

resgatar o ato de filosofar, no agir humano e na prpria linguagem.

Sobre metodologia, Lauand (2004, p.1-2) nos apresenta a abordagem de

Josef Pieper, denominada o problema da metodologia, uma vez que ela extrapola os

limites do cientfico, pois transcende determinado ponto de vista, de forma que

possvel analisar um especfico objeto de estudo de maneiras diversificadas. Pieper

contrape a metodologia filosfica aos saberes cientficos.

Cada cincia estuda seu objeto sob determinado ponto de vista: dirige-se a um determinado aspecto e todo o resto simplesmente no lhe interessa. Assim, uma mesma realidade, por exemplo, o homem, estudada por diferentes cincias sob diferentes ngulos: um o enfoque da Medicina; o outro, da Psicologia; o outro, o da Sociologia etc. o objeto de estudo de uma cincia e, principalmente, seu peculiar ponto de vista condicionam, como lgico, sua metodologia: de que servem, digamos, a compreenso emptica para o matemtico empenhado em demonstrar seus teoremas ou, reciprocamente, os teoremas do matemtico para o historiador? E, como evidente, o mesmo pode-se dizer do instrumental de cada cincia, tambm, neste caso o objeto decisivo: pelo seu objeto que a astronomia emprega o Telescpio e no o microscpio; a fsica ao contrrio da matemtica requer um laboratrio; etc. certo que a questo do mtodo das cincias no simples e suscita infinitas discusses. No entanto, quando se trata de filosofar do genuno filosofar, tal como o entenderam os antigos a questo do mtodo torna-se ainda mais problemtica e isto no por um maior grau de complexidade, mas porque ela nos introduz em uma nova ordem: a mesma que distingue o filosofar das cincias. Por isso, o filosofar no tem nem pode ter e nem sequer pretende ter... operacionalidade metodolgica que pode se dar em maior ou menor grau nas cincias. (LAUAND, 2004, p. 2)

Entendemos que o processo metodolgico, na perspectiva antropolgica,

valoriza a unidade, a realidade, a experincia, o visvel, o concreto, a flexibilidade da

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37

anlise e a indagao, no se limitando a determinado ponto de vista, mas quilo

que est imbricado com a vida, com o desenvolvimento da arte, com o sentimento e

a liberdade de criao.

Sem dvida, inerente aos processos evidenciados a partir da experincia

vivida e ao que podem ocasionar esses acontecimentos e, nesse caso, o fato de os

insights incidirem sobre a realidade quotidiana, promovendo um abalo, o qual

revelaria algo profundo da realidade humana.

De repente, sofremos um abalo que nos revela, como numa iluminao que desce, com extraordinria nitidez, algo profundo a respeito da realidade humana: um insight filosfico, um estremecimento potico (ou artstico em geral), amoroso, religioso ou temtico. (LAUAND, 2012, p. 7-8).

Esperamos que se promovam abalos, evidentemente que no h

necessidade de atingir a todos num momento especfico, nem esse nosso objetivo,

mas que se possa, por meio da possibilidade do abalo projetar-se ao olhar da

admirao, que para Plato, Aristteles ou Toms de Aquino o princpio que

alimenta o ato de filosofar.

1.4 Metodologia e compreenso: Verstehen

Finalmente, esse trabalho, tem por vis instigar a compreenso,

considerando-a um mtodo que se ocupa de significaes e sentidos, como

contraponto da explicao (erklren) que se refere s coisas, pois nossos objetos de

anlise so as narrativas escolhidas. A compreenso a que nos referimos est

interligada diretamente ao que Ferrater Mora (2004, apud LAUAND, 2012, p. 6)

denomina Verstehen e que se torna elemento primordial para se atingir o objetivo

proposto, como vemos:

Verstehen O termo alemo Verstehen habitualmente traduzido por

compreenso. Como se deu a Verstehen um sentido tcnico que aparece em Dilthey e depois, em diversas outras acepes, em autores como Heideggeer e Hans-Georg Gadamer, considera-se s vezes que apropriado deixar Verstehen sem traduo. Compreenso A partir de Dilthey, contraps-se com frequncia a compreenso [verstehen] explicao (Erklrung), considerando-se a primeira como modo de apreenso dos objetos das cincias do esprito, cincias naturais, cincias humanas, histria etc.; e a segunda como modo de

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apreenso dos objetos das cincias naturais. Considerando-se tambm a compreenso um mtodo que se ocupa de significaes, sentidos, relaes e complexos sentidos, ao contrrio da explicao, que se refere a fatos, a relaes causais etc.

Assim, buscar atravs desse estudo as significaes e relaes entre elas e

poder atingir as relaes mais complexas de sentido atravs da compreenso

definida, diferentemente da matemtica, qual interessam somente demonstraes

lgicas. Quando nos referimos a Verstehen, direcionamos compreenso atenta s

realidades culturais e antropolgicas, diretamente relacionadas existncia humana.

1.5 Trajetria metodolgica

O projeto efetivou-se na E.E. Prof. Marilene de Oliveira Acetto, localizada na

cidade de Mau So Paulo - e envolveu alunos do Ensino Mdio, incluindo 1, 2 e

3 anos. O gnero narrativo, especificamente o conto, faz parte da proposta

curricular, o que facilitou muito o desenvolvimento.

O trabalho foi desenvolvido a partir de uma sequncia didtica, conforme

proposta dos autores genebrinos Schneuwly; Dolz (2004, p. 98), representada a

partir do esquema proposto pelos autores:

Tendo por base a sequncia apresentada e a proposta a ser desenvolvida, a

adeso, por parte dos alunos, ocorreu de maneira voluntria; considerando um total

geral de oitenta e um alunos frequentes no Ensino Mdio, ocorreu a participao

direta de setenta deles.

O perodo de aplicao foi de, aproximadamente, quatro meses, durante as

aulas de Lngua Portuguesa, intercalando-se os contedos programticos e o projeto

(tambm encaminhado Diretoria de Ensino de Mau). Os onze alunos que no

participaram diretamente das atividades com recursos tecnolgicos no efetivaram

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todo o processo, porque se desestimularam, por excesso de faltas ou, mesmo, por

desinteresse pela proposta.

As realizaes das narrativas digitais ocorreram dentro do espao escolar,

como tambm a elaborao do story board, do roteiro, do cenrio, da caracterizao

de personagens, da definio do foco da narrativa, da percepo da mensagem

explcita e da contextualizao, enfim todos os recursos necessrios.

Os vdeos foram editados na ferramenta movie maker nos seguintes formatos:

vdeos com legenda, udio original, fotonovela (nesse caso utilizaram a ferramenta

superlame) e stop motion. Foram produzidos com aparelhos celulares e a edio foi

elaborada por alguns alunos que ficaram responsveis por: filmagens, direo,

cenrio, fotografia, sequenciao da narrativa, confeco de personagens, pinturas,

efeitos, entre outros. O relato da experincia do projeto desenvolvido e o produto

final foram publicados com maiores detalhes no artigo: Narrativas e Tecnologia:

Desafios para a Pedagogia da Admirao4.

Em seguida, todos os alunos tiveram acesso aos projetos finalizados,

assistiram a todas as narrativas digitais e fizeram suas observaes sobre elas; os

trabalhos foram concludos com um debate informal sobre a importncia ou no do

projeto desenvolvido. Posteriormente, tiveram acesso ao artigo publicado5,

detalhando e referenciando todo o trabalho desenvolvido e o envolvimento de todos.

Dessa forma, afirma-se (PINTO, 2016, p. 98) que A efetivao do trabalho

com base nos elementos concretos, os quais so apresentados como roteiros de

experincias diversificadas e se relacionam com a realidade presente na vida,

atrelam-se ao processo da construo humana, nas situaes quotidianas, no que

entendemos por verdade e modo de agir.

4 Disponvel em: Convenit International. N 20, jan-abr 2016, ISSN 1517-6975. P. 93-106. CEMOrOc EDF-USP.Acesso on-line: http://hottopos.com/convenit20/index.htm

5 Disponvel em: http://hottopos.com/convenit20/index.htm

http://hottopos.com/convenit20/index.htmhttp://hottopos.com/convenit20/index.htm

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Desde o incio do projeto, foi possvel perceber que mergulhar no espao

juvenil, valorizar e transformar conhecimentos a partir de situaes concretas est

na base de todo ensino, sempre est o retorno ao concreto, Toms de Aquino

afirma que um homem nada pode ensinar a outro homem, seno movendo pelo seu

ensino (LAUAND, 1997a, p. 74).

A mediao tecnolgica aliada ao processo foi fundamental, ressalta-se que

no se tratou de descartar a riqueza literria ou filosfica construda desde o incio

da humanidade, considerando os contos e a literariedade de cada um deles, mas

sim, reapresent-los em novo formato, por meio das ferramentas tecnolgicas que

auxiliaram no desempenho e pela interao dos alunos, procurando despert-los

para um novo olhar, com interesses amplos sobre o conhecimento, a interpretao a

partir da leitura de situaes fictcias inerentes ao quotidiano, bem como suas

relaes com a vida e, assim, talvez, conduzi-los ao interesse, ao encantamento e

essncia da Pedagogia da Admirao.

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2 NARRATIVAS E PEDAGOGIA DA ADMIRAO.

2.1 A importncia da Pedagogia da Admirao.

Inicialmente, necessrio estabelecer a importncia da prtica educacional,

denominada Pedagogia da Admirao, estritamente vinculada ao quotidiano,

conforme Lauand (2012). Contudo, ao nos referirmos a tal prtica, estamos

transcendendo o limite do lugar comum e possibilitando olhares projetados por

infindveis caminhos, o que poder promover um abalo admirativo.

Sobre o abalo da admirao, Lauand6 (2012, p. 26) evidencia que pelo

abalo da admirao que surge a questo filosfica, que longe de afastar-se da

realidade quotidiana, volta-se para ela sob um ngulo no quotidiano, posto luz do

abalo admirativo.

Se considerarmos a etimologia da palavra admirao temos:

do latim admiratio, espanto, surpresa. Para Aristteles, a filosofia comea com a admirao. Para Descartes, a admirao a primeira de todas as paixes, dando fora a quase todas as coisas: ela uma sbita surpresa da alma levando-a a considerar com ateno objetos que lhe parecem raros e extraordinrios, ela no possui o bem ou o mal por objeto, mas somente o conhecimento das coisas que admiramos. (JAPIASS E MARCONDES, 2001, p. 9).

Na perspectiva diacrnica, se a admirao o princpio da filosofia, conforme

Aristteles, e a primeira de todas as paixes para Descartes; corrobora Lauand

(1987a, p. 26) confrontando o conhecimento filosfico com o cientfico e conclui a

admirao como princpio e o mistrio como condio do filosofar.

interessante observar que para Plato, Aristteles ou Toms de Aquino

a admirao no meramente o comeo do filosofar (ou do ato potico), mas

muito mais: princpio, arkh, no sentido em que explica Lauand (2012, p. XXX):

A admirao, princpio do filosofar Aqui se coloca uma importante caracterstica do filosofar. Sempre em unio com a grande tradio do Ocidente7, Pieper afirmar a admirao como princpio do filosofar.

6 International Studies on Law and Education 10 jan-abr 2012 CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto- Abalo filosfico e afins. Por uma Pedagogia da Admirao. Disponvel em: http://hottopos.com/isle10/23-34Jean.pdf - acesso em 04/03/2016.

7 Cf. por exemplo PLATO, Teeteto, 155d; ARISTTELES, Metafsica, A, 2, 982b: SANTO TOMS, In Met. I, 3; etc.

http://hottopos.com/isle10/23-34Jean.pdf

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Princpio, arkh, com seu sentido confundente, uma dessas palavras chaves que herdamos dos gregos (via as tradues de Bocio para o latim). Princpio no mero comeo, mas como diz Heidegger comentando precisamente a afirmao de Plato e Aristteles de que a admirao o princpio (arkh) do filosofar um comeo que se projeta em cada passo e impera no interior do processo (beherrschendes Woher). Um pontap inicial num jogo de futebol um mero comeo, que pode at ser delegado a alguma celebridade; mas uma abertura de xadrez j tem algo de princpio. O espanto , enquanto pthos, a arkh da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkh Designa aquilo de onde algo surge. Mas este de onde no deixado para trs no surgir; antes, a arkh torna-se aquilo que expresso pelo verbo arkhein, o que impera. O pthos do espanto no est simplesmente no comeo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mos precede a operao do cirurgio. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior (HEIDEGGER: 1973). A admirao um abalo. E pelo abalo da admirao que surge a questo filosfica, que longe de afastar-se da realidade quotidiana, volta-se para ela sob um ngulo no-quotidiano, posto luz no abalo admirativo. Pieper exemplifica com o aparentemente pacfico, mas problemtico filosoficamente, ter. A cada instante falamos de meu amigo, minha mulher, minha casa, no sentido de que os temos e possumos. Mas, de repente comeamos a nos surpreender: Ser que temos realmente todas essas posses? Podem elas ser possudas? O que significa, em ltima anlise, possuir alguma coisa? (PIEPER: 1980, 63). E registra a profundidade dessa questo com uma epigramtica frase de longnqua origem oriental: Meu jardim', disse o rico; o jardineiro, sorriu..."(PIEPER: 1976, 649). (...) O aburguesamento do esprito ocorre quando o homem j no capaz de se admirar ou precisa do sensacionalismo do estapafrdio para provocar em si um Ersatz da admirao, da verdadeira admirao: Perceber no comum e no dirio aquilo que incomum e no-dirio, o mirandum (o que suscita admirao), eis o princpio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristteles e S. Toms, o ato de filosofar se assemelha ao ato potico; tanto o filsofo como o poeta se ocupam do maravilhoso, daquilo que suscita e inflama a admirao (PIEPER: 1980, 67).

A Pedagogia da Admirao, como j mencionado, alimenta-se de uma sbita

surpresa ou um espanto, o que poder provocar um insigth, pois o admirar

convocado pelos acontecimentos simples da vida, em situaes recorrentes que,

inesperadamente, se apresentam em uma nova roupagem e se relacionam ao ato de

contemplar e de se encantar; filosofar uma atitude interior, um modo de olhar

para o mundo e a realidade, filosofar antes uma atitude humana fundamental

diante do mundo (Lauand, 2012, p. 41) e tudo o que se revela atravs de um

momento de admirao.

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Por outro lado, Lauand8 apresenta uma anlise paralela entre o filsofo e o

poeta, afirma que tanto o ato potico quanto o filosfico tm seu princpio no

mirandum, naquilo que causa admirao, assim define que a admirao um abalo

que de sbito nos faz reparar que o mundo, a natureza, as pessoas escondem um

encanto inesperado, at ento despercebido. De repente, uma palavra, com seu

mais simples significado, revela-se com uma carga semntica que nos convida a

pensar.

Rompe-se assim o crculo fechado em que o totalitarismo do mundo do trabalho pretendia nos encerrar com sua viso definitiva e compacta da realidade quotidiana, que julga tudo evidente. Mas, na verdade, o que evidente neste mundo? Por acaso ser evidente que existamos? Ser evidente que exista alguma coisa como o ver? Mas, quem est encerrado no dia-a-dia no pode fazer tais perguntas. E no pode faz-las porque no consegue (em todo caso, no o consegue conscientemente e, talvez s semi-inconscientemente) esquecer os fins utilitrios imediatistas. Para quem, pelo contrrio, admira, os fins utilitrios emudecem. Para quem foi atingido pelo rosto mais profundo do mundo, calam-se os fins mais imediatos da vida, mesmo que seja apenas por esse nico momento, em que, abalado, olha para o rosto pasmoso do mundo. Somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relao com o ser, que desde Plato se chama teoria, isto , aceitao puramente receptiva da realidade, no perturbada por qualquer interveno da vontade. (...) Teoria s existe quando o homem no se torna cego ao maravilhoso, que reside em que alguma coisa existe (PIEPER: 1980, 65-66). O aburguesamento do esprito ocorre quando o homem j no capaz de se admirar ou precisa do sensacionalismo do estapafrdio para provocar em

si um Ersatz da admirao, da verdadeira admirao: Perceber no comum e no dirio aquilo que incomum e no-dirio, o mirandum (o que suscita admirao), eis o princpio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristteles e S. Toms, o ato de filosofar se assemelha ao ato potico; tanto o filsofo como o poeta se ocupam do maravilhoso, daquilo que suscita e inflama a admirao (PIEPER: 1980, 67).

Podemos ilustrar o mirandum que conduz contemplao a partir da obra do

sculo XIX Suspicious smoke, datada 1860 do pintor Carl Spitzweg, na qual a

contemplao se estabelece a partir de olhar para o horizonte e, assim, conduz

admirao de um momento banal, de uma paisagem constante, mas que de repente

se evidencia sob a possibilidade contemplativa.

8 O Filsofo e o Poeta. Originalmente, Que h de comum entre estes dois senhores? e Filosofia e Poesia, artigo publicado no Jornal da Tarde, resp. 15-8-81 e 19-6-82), disponvel em http://www.hottopos.com/geral/naftalina/poet.htm - acesso em 22/04/2015.

http://www.hottopos.com/geral/naftalina/poet.htm

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Disponvel: em: http://www.wikiart.org/en/carl-spitzweg/suspicious-smoke#supersized-artistPaintings-276096,

Acesso em 01/05/2015.

Destarte, um simples momento que se direciona a uma nova leitura, a uma

nova paisagem, a uma nova possibilidade de interpretao seja de linguagens

verbais ou no verbais, podem promover um abalo filosfico que proporcionar

indagaes e, assim, ao pensar.

Pieper, falando do filosofar, e da sensibilidade admirativa que essa atitude requer, pe o seguinte exemplo: um dia, ao saudar um amigo, Como vai, meu amigo,, uma pessoa pode sentir o abalo filosfico que o leva a perguntar pelo ser (o que afinal isto, em si e em suas ltimas razes) e indagar-se: Mas, afinal o que a amizade ? Que misteriosos e maravilhosos

laos me unem pessoa fazendo-a minha?9

Surgiria, ento, o despertar para o questionamento: o que de fato meu, qual

sentido h entre o que meu e como se estabelece o conceito de possuir algo? O

questionamento conduz a um aspecto mais profundo, revelando as sensaes de:

estranheza, espanto, surpresa e/ou da prpria admirao, to necessrias para que

se estabeleam debates, reflexes, valorizao e construo de metodologias que

possam se direcionar busca do conhecimento, a partir da liberdade de

interpretao e da elaborao de conceitos pautados nos princpios da tica, da

moral, da prudncia e da valorizao humana.

Um bom exemplo o conto O asno de Nasreddin, que poderia promover um

questionamento e conduzir reflexo mais profunda, considerando-se a essncia do

9 O Filsofo e o Poeta. Originalmente, Que h de comum entre estes dois senhores? e Filosofia e Poesia, artigo publicado no Jornal da Tarde, resp. 15-8-81 e 19-6-82), disponvel em http://www.hottopos.com/geral/naftalina/poet.htm - acesso em 22/04/2015.

http://www.wikiart.org/en/carl-spitzweg/suspicious-smoke#supersized-artistPaintings-276096http://www.hottopos.com/geral/naftalina/poet.htm

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ser em detrimento ao ter, se considerarmos o desejo de Nasreddin em encontrar

o asno perdido.

O asno de Nasreddin.

Tendo perdido seu asno conta uma histria turca -, Nasreddin Hodja fez anunciar por toda aidade cidade que ele daria o animal a quem o trouxesse de volta, dando ainda como prmio a carga e o o o o cabresto. E, como algum se espantasse por ele prometer dar seu asno a quem o trouxesse, no uindo conseguindo entender o que ele poderia ganhar com isso, Nasreddin responde:

- Considera ento insignificante a alegria de encontrar uma coisa perdida? (CARRIRRE, 2004, p. 206)

Nasreddin , nas histrias orientais, um personagem tipo: o bobo. Mas o bobo

pode, por vezes (como no caso dos bobos da corte), revelar, em um nvel mais

profundo de leitura, a tolice dos espertos.

Considerando-se a textualidade do conto, qual seria o impacto despertado em

outrem ao se deparar com tal situao inusitada? Pois o desejo do enunciador, em

ter seu asno novamente, conduziu-o a oferecer no somente o animal, mas toda

carga como recompensa. Qual seria o grande desejo, ento? Qual seria a busca, se

ao reencontrar o animal se disporia dele?

Dessa forma, como se estabelece a relao do ter em nossas vidas,

pensando que o ter nos remete s coisas materiais, em oposio alegria, que nos

remete s coisas imateriais o ser to essencial para a vida, mesmo quando

relacionada busca do ter - encontrando o asno? A sensao de satisfao

imaterial parece despercebida, no que no exista, no atual panorama ps-moderno.

O propsito em encontr-lo direcionava-se somente satisfao de

reencontrar o que havia perdido e reconhecer o paradeiro? Ou seria o desejo de

desvendar a to cruel dvida: onde estaria o animal?

A interpretao do conto est relacionada concepo de leitura,

conhecimento de mundo10 e da vivncia do leitor, da mesma forma que h a

surpresa explcita no prprio conto: E, como algum se espantasse por ele prometer

o asno a quem o trouxesse, os questionamentos relacionam-se recepo do

10 KOCH, I. V. (2010, p. 42) Refere-se a conhecimentos gerais sobre o mundo uma espcie de thesaurus mental bem como conhecimentos alusivos a vivncias pessoais e eventos espcios-temporalmente situados, permitindo a produo de sentidos.

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interlocutor, estabelecendo, assim a interao entre o leitor e o texto e a efetivao

da produo de sentido que poder conduzi-lo ao questionamento.

Ainda assim, quantas vezes, no quotidiano, nos deparamos com situaes

semelhantes e nem percebemos a mensagem, ora direcionando-se ao bvio - ao

explcito, ora oculta - ao implcito e, ao perceb-la, as indagaes surgem e nos

levam reflexo, mudana de atitude, s prticas diferenciadas. Nesse momento,

temos um novo olhar e passamos a admirar o que parecia imperceptvel, no caso o

desejo de encontrar o asno que supera a prpria vontade de recuper-lo.

Em contraposio, se pensarmos no significado da palavra desejo, em outro

enfoque, constata-se que, normalmente, o desejo torna-se superior realidade,

direciona-se por percursos inimaginveis, promovendo uma espcie de cegueira, e

ento s se v o que interessa, como diz o provrbio: O pior cego aquele que no

quer ver, tambm relacionamos ao conto a seguir:

O ladro de ouro

O desejo no cego, ele cega. o que conta Lie Ts: - Um homem que tinha como nica paixo da sua vida o ouro certa manh vestiu-se, penteou-se e correu para o mercado. Aproximou-se da banca de um homem que fazia negcios com ouro, apanhou bruscamente o ouro que estava ali e fugiu. Ele foi pego e lhe perguntaram: -Mas como teve coragem de pegar esse ouro de todos? -De todos? disse o homem. Quando peguei esse ouro, no havia mais ningum. S via o ouro. (CARRIRE, 2004, p. 187)

Neste caso, no podemos inferir que ele se fez de cego como demonstrado

atravs do provrbio, mas a cegueira foi gerada em decorrncia do forte desejo de

adquirir o ouro, assim obstinado a ver somente o que lhe interessasse, um bem

material, portanto concreto, que lhe traria a riqueza.

Dessa maneira, a leitura e a anlise das narrativas que imitam situaes do

quotidiano so convites reflexo e indagao, situaes que instigam o leitor a

conhecer a si mesmo, seu interior e sua relao com o mundo, auxiliando-o sobre

atitudes e situaes presentes em sua vida.

Ao mesmo tempo, por serem textos literrios, a subjetividade e a

plurissignificao possibilitam a liberdade de interpretao, pois o leitor estar se

conhecendo e se reconhec