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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA EMERON REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA (Criada em agosto de 1996) Ano 2001 - Nº 8 Porto Velho - Rondônia

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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA

EMERON

REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA

(Criada em agosto de 1996)

Ano 2001 - Nº 8

Porto Velho - Rondônia

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CIDADANIA: DA CONSTITUIÇÃO À JURISDIÇÃODes. Eliseu Fernandes de Souza

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No país em que vigora estado de direito com democracia, a justiça é o mais relevante serviço público posto à disposição da cidadania, por isso a atividade do juiz representa a manifestação da soberania do Estado, e os elementos que a compõem determinam a aproximação do poder ao povo. Afinal, o poder emana do povo “que o exerce por meio de representantes,” diz a Constituição. Disso decorre que o juiz deve, sem quebra de sua independência, imparcialidade e hegemonia como mediador dos conflitos, efetivar a aproximação constante da sociedade. Essa aproximação não se efetiva somente pelos instrumentos do processo, por meio dos mecanismos do contraditório, isto é, do devido processo legal com ampla defesa. Fundamentalmente, a especial forma de aproximação do juiz à sociedade se dá, sobretudo, pela emanação plasmática de seu comportamento exemplar, pela verdade real, pelo compromisso da jurisdição que se revela no pacto de uma vida digna e honesta.Isso traduz não só a função política exercida pelo juiz, mas também o manejo de ação altamente educativa para a população, que passa a formar a consciência do justo, de modo a estabelecer um juízo crítico a considerar que viver honestamente é o único padrão ético de valores compatíveis com os ideários da verdadeira cidadania, necessário à função de pacificador dos conflitos litigiosos.Com efeito, a jurisdição deve estar em comunicação com a sociedade, cidadania e com a democracia, estabelecendo o contato do juiz, como provedor da solução dos conflitos da comunidade, mantendo postura ética e, mormente, liberto do formalismo inflexível do processo. Com isso, certamente estabelecerá valores éticos, de modo a estimular a formação cultural indispensável à nossa civilização, possibilitando, em decorrência, condições de vida digna.Com essa concepção, perpassa a advertência de que o Judiciário participativo, reclamado por todos aqueles que cultivam uma visão moderna do poder, deve ser um crítico de seu próprio discurso e não se pode furtar a inserir novos dados em suas avaliações, como, por exemplo, o custo da justiça, ante a imprevisão do tempo de suas decisões.A elaboração da idéia dos chamados juizados especiais pela constituinte de 1988 foi uma alternativa válida, e sua efetiva instalação, como se deu no Estado de Rondônia, tem demonstrado resultados altamente positivos. Contudo, importa salientar que essa não é a solução definitiva para todos os problemas vividos pela sociedade, e que reclamam a intervenção judicial.Não se pode negar que o país tem avançado no caminho da democracia e a prova disso é a revelação dos mais intrincados casos de corrupção na administração pública, o que certamente sempre existiu; no entanto, com a convivência democrática, têm-se aberto “caixas pretas” – ou “malas pretas?” - que vêm revelando ao conhecimento da sociedade casos escabrosos que a todos revoltam e agitam a política e a justiça.Não se pode ignorar que o cidadão vive certa desilusão e pouco acredita na efetiva punição dos grandes corruptos e corruptores que fazem partilha do erário público em benefício próprio, enquanto a seguridade social, serviços públicos como a saúde, a segurança, a educação, são dilacerados a nível deprimente, e a grande massa da população brasileira suporta vil e melancólica condição de sobrevivência. É preciso salientar que fundamentalmente dois fatores sobressaem alimentando esse compasso de incerteza da punição, mormente dos delinqüentes de colarinhos brancos.Primeiro, o anacronismo do sistema processual penal brasileiro, extremamente formal, constitui verdadeiro manual de perspicácia e filigrana de defesa dos criminosos, notoriamente, protegendo-os em detrimento do interesse e da proteção da sociedade que fica renegada na condição de vítima vulnerável. Segundo, o formalismo frio, burocrático e quase insensível cultuado por boa parte da magistratura que reluta em avaliar cada caso sob a ótica do interesse público, da conveniência jurídica, dedicando especial atenção ao contingente político institucional que possa estar embutido no conteúdo da decisão. Sim, porque também nas decisões judiciais se dá a realização política do Estado.Fato intrigante e ininteligível, especialmente para o cidadão comum, é assistir a prática de crime de grande repercussão, quer seja contra a vida, quer seja contra o patrimônio público, quando o criminoso se oculta deixando passar o período de flagrante delito, depois se apresenta à autoridade

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policial, presta depoimento e se livra solto. Dias depois, sua prisão preventiva é decretada, quando o criminoso já fugiu, às vezes para o exterior, e não se consegue mais localizá-lo. Ora, é preciso elaborar mecanismos excepcionais para as hipóteses em que não haja dúvida quanto à autoria ou participação no crime.É necessário frisar que o mesmo se pode dizer dos casos em que, decretada a prisão preventiva pelo juiz do local do fato ou domicílio do criminoso, sempre mais bem informado das circunstâncias e repercussão do crime, da necessidade e conveniência da prisão prévia do acusado, um juiz de instância superior, muitas vezes seduzido por imbróglios e filigranas dos argumentos de defesa, sectário da excelência da doutrina, ou até manifestando visão ou juízo estritamente pessoal, de pouca razoabilidade e sem uma reflexão que insira o interesse público no contexto, simplesmente revoga a prisão, frustrando a eficácia da instrução criminal, da aplicação da lei penal e da possibilidade da imediata punição do infrator.Com efeito, é preciso repensar o sistema penal brasileiro. O processo penal não pode continuar matando o direito e se prestando à proteção extrema do criminoso em detrimento da sociedade.Li o projeto de reforma do Código de Processo Penal e achei a proposta muito tímida, além do que mantém a excessiva proteção à pessoa do delinqüente em prejuízo da sociedade, da cidadania enfim. A desilusão ante a impunidade aumenta com a proteção e estímulo à delinqüência, estampados na própria Constituição denominada de cidadã, e na legislação infraconstitucional.Primeiro, a Constituição viola o princípio do juiz natural, transferindo o julgamento dos chefes de executivo para o Superior Tribunal de Justiça onde, como se sabe, o julgamento de um governador se perde no acervo gigantesco dos processos em geral, possibilitando a prescrição. A angústia, no caso, pela impunidade já se instala na Procuradoria-Geral do Ministério Público Federal, onde se sabe as denúncias levam anos para serem oferecidas e a punição pode diluir-se no tempo, ou pela prescrição, ou porque o acusado, com poder político e econômico, consegue eleger-se para um cargo no legislativo, muitas vezes à custa do produto surrupiado do erário, e alcança a imunidade às vezes com sucessivas reeleições e, para ser processado, depende de autorização dos demais membros da casa de leis, que o corporativismo impede de dar. Lembro, também, a instituição de foro privilegiado para prefeitos que, enquanto em exercício, ficam imunes ao juízo natural e sentinela da comunidade local. Segundo, temos o desvio de finalidade da imunidade parlamentar que se transformou numa aberração discriminatória de privilégio.Diz o artigo 53 da Constituição da República: “Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos”. Ora, sem embargo da impropriedade etimológica da expressão usada, pois inviolável quer dizer que não se pode transgredir, infringir, deflorar, estuprar, abrir, invadir, etc., o certo é que o constituinte quis tornar inimputável (inviolável) o parlamentar enquanto no direito de expressar sua opinião. A isso, em verdade, a norma constitucional se restringe, repita-se, ao direito de opinião, ao uso da palavra, garantia do cargo político que ao povo pertence mas que lhe delega por meio do voto.Por uma ótica deontológica esta é a leitura que se pode fazer da vontade do constituinte, ao expressar a vontade do povo detentor de direito do poder que delega pelo mandato eletivo. Com efeito, não se pode crer que o povo pretendesse institucionalizar a delinqüência. Sim, porque no momento em que se admite a eleição de indivíduo autor de homicídio, crime de tráfico de droga, improbidade e corrupção, e se lhe queira garantir imunidade segundo a vontade da casa a que pertence, estimulada às vezes por filigrana doutrinária ou por construção jurisprudencial equivocada, sob o pálio do princípio da inocência, estende imunidade a esses delitos praticados antes mesmo da ascensão ao cargo ou no exercício dele, desvirtua e vulgariza a finalidade da imunidade parlamentar. Outro tanto quanto, não é sensato crer que os cidadãos, detentores do poder cujo exercício delegam por mandato, admitam violar-se, por meio da própria Constituição, a cláusula pétrea de que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, para outorgar essa discriminação hedionda a seus representantes.

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Isso seria casuísmo inaceitável, a não ser que se adote a chamada moral aberta, individualista, pregada por Bergson. Penso que a sociedade brasileira precisa exigir uma reformulação substancial do sistema de representação política. É preciso construir mecanismos eficazes de controle do poder com a possibilidade da revogação do mandato popular. Ora, se o poder emana do povo que exerce, por meio de representantes, o mandato de representação outorgado, ao povo pertence. Logo, se o mandatário representante não o estiver cumprindo com proficiência, dedicação e honestidade, não possuir reputação ilibada, deve o mandato ser revogado por quem o outorgou, observando para isso o devido processo legal na via judicial.Sabemos, contudo, que vivemos hoje sob o signo da carência de compreensão dos valores morais para se pensar, por exemplo, que viver honestamente é confortante, e o caminho do crime é espinhoso e não compensa. Por isso, a passividade da comunidade, que se torna conivente pela omissão, com a corrupção e com a criminalidade de toda ordem, contribui, de certa forma, com a impunidade, no momento em que deixa de colaborar com os órgãos encarregados da apuração e da punição dos crimes. Nesse contexto, afirmo a obrigatoriedade do judiciário em se firmar como partícipe do resgate da cidadania, empreendendo a participação com aproximação à sociedade de modo a facilitar o acesso aos serviços da justiça, cultivando postura ética e proba, mas, sobretudo, avançando na construção do direito como fenômeno emergente da dinâmica do fato social.Na sociedade de hoje, ainda que digam o contrário os sectários e a legislação formal, o juiz não pode ser mais tão passivo a ponto de assistir à evidência notória de fatos que revelam o direito e se repousar indiferente no princípio da inércia.Disso decorre a necessidade de o judiciário construir compromisso histórico e impostergável com a causa da justiça, em prol da cidadania, de modo a estabelecer o devido elo com a sociedade.Com isso perpassa o dever de todos os detentores de poder, dos formadores de opinião e doutrinadores assumirem o compromisso de elaborar a pregação da retomada dos valores culturais, éticos e morais, combalidos pelo espantoso retrocesso que lhes causaram o avanço tecnológico e o insensível processo de globalização. Em conclusão a tais considerações, reafirmo que ao judiciário está reservado relevante papel histórico de valorização da cidadania e preservação da democracia, mas precisa avançar na visão moderna de construção do direito.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INADMISSIBILIDADE DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSORogério Lauria TucciProfessor Titular Aposentado e Regente da disciplina Direito Processual Penal no Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Sumário: 1. Equivocado alvitre de uma teoria geral do processo - 2. Irrelevância do conceito de lide, em processo penal - 3. Conseqüente inadequação da acepção civilística de pretensão no processo penal - 4. Inadmissibilidade, também, de outros inapropriados traslados: 4.1. Considerações

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preambulares; 4.2. Inquisitividade ínsita à atuação de agente do Poder Judiciário, no exercício da jurisdição penal; 4.3. Inocorrência de revelia, em processo penal; 4.4. Inexistência de processo e de ação cautelar penais; 4.5. Caracteres e peculiaridades da jurisdição penal - 5. Conclusão: autonomia e dignidade científica no moderno Direito Processual Penal.

1. EQUIVOCADO ALVITRE DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSONotória, de sorte a tornar despiciendas mais alentadas considerações a respeito, mostrou-se, por muito tempo (mais de um milênio, quase dois), a relação de subsidiariedade do processo penal ao processo civil.Assim também que dela decorreu, em nosso entender negativamente, o equivocado alvitre da — tal o estreitamento entre esses ramos do Direito Processual, ou proclamada vinculação do penal ao civil — existência da denominada teoria geral do processo.Na realidade, contribuíram, para isso, precipuamente, a contemplação (ou confusão...) unívoca dos denominados princípios, regramentos e institutos de cada um deles, tendo-os, portanto, como se idênticos ou semelhantes fossem; e, simultaneamente, a versação destes, em larga escala, por processualistas civis, deslocados no mais das vezes ocasionalmente para o campo de abrangência exclusiva do Direito Processual Penal.Até mesmo nós nos enquadramos, em linha de princípio, nessa inusitada situação; livre-docente concursado de Direito Civil, passamos à regência da disciplina Direito Processual Penal (primeiramente, no Curso de Graduação, e, em seqüência, no de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) circunstancialmente, ou seja, em virtude de doença e posterior falecimento de ilustre e saudoso Professor do Curso Noturno, substituindo-o eventualmente, e, depois, sucedendo-o.É de ser ressaltado, contudo, a bem da verdade, que nos afeiçoamos de tal maneira ao processo penal que, a não ser em episódicas substituições, nunca mais ministramos, na USP, a disciplina Direito Processual Civil. E, assim sendo, cultivando-o com ardor, desde o ano de 1969, foi-nos possibilitada a percepção da autonomia do Direito Processual Penal, no âmbito da ciência penal, lacto sensu considerada, e, portanto, sem nenhuma vinculação com o processo civil; vale dizer, com sua própria e inconfundível teoria - a teoria geral do processo penal.

No derradeiro enfoque, faz-se inequívoca, outrossim, a constatação de que o número de processualistas penais autênticos é infinitamente menor do que o de civis; fato que se verifica, particularmente, em nosso país, numa palpável desproporção...

2. IRRELEVÂNCIA DO CONCEITO DE LIDE, EM PROCESSO PENALIsso, necessariamente, esclarecido, somos instados a reiterar, neste novo lavor, e com o devido respeito a eminentes processualistas cultores da nomeada teoria geral do processo, que se nos afigura grave o equívoco em que tem elaborado boa parte da doutrina processual, particularmente da brasileira, no trato desse (por que não dizer?) fascinante tema.Com efeito, ao contrário do que propagam, e repristinando posicionamento assumido já há cerca de vinte anos, temos como inadmissível a absorção, pelo processo penal, de diversificados regramentos e institutos, próprios do civil.E tal, principalmente, por entendermos, e enfaticamente asserirmos, ser excogitável a identificação, ou, mesmo, a assemelhação, de situações manifestamente díspares, tanto nas suas essencialidades como nas respectivas peculiaridades formais.Aliás, em abono dessa afirmação, exsurge oportuna e apropriada a relembrança, também, de ter sido o renomado processualista (marcadamente civil) peninsular Francesco Carnelutti o introdutor da concepção de lide no processo penal.Concebendo-a, a partir da verificação da exigência de subordinação de interesse de outrem ao de quem a efetiva, pontuou-lhe o significado, dizendo-a um “conflitto di interessi qualificato dalla pretesa di uno degli interessati e dalla resistenza dell’altro” (v. Sistema di diritto processuale civile, Pádua, 1936, v. I, p. 40; e, em livre tradução, verbis : “conflito de interesses qualificado pela

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pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro”).Destaca-se, na definição transcrita, o vocábulo pretensão, que, na esteira desse magistério, temos como “uma declaração de vontade impositiva, formulada em face de outrem, a fim de obter-se a satisfação de um interesse”(cf. nosso Do julgamento conforme o estado do processo, 3ª ed., São Paulo, 1988, p. 3) ; e que, segundo, já agora, aguda observação de Jacinto Nélson de Miranda Coutinho, A lide e o conteúdo do processo penal, Curitiba, 1989, pág. 29, “aparece como um dos conceitos mais importantes”, e representa, principalmente, “um dos momentos mais delicados na compreensão do sistema montado pelo autor para o direito processual”.

Esse sistema foi, de tal modo, cultivado pelo mestre peninsular, que, no art. 87 de seu Progetto di Codice di Procedura Civile, como que extrapolando da noção inicialmente difundida, expressou: “Due persone sono in lite quando l’una pretente che il diritto tutele immediatamente il suo interesse in conflitto con un interesse dell’altra e questa contrasta la pretesa, o pur non contrastandola, non vi sodisfa” (texto assim traduzido pelo ilustre processualista penal paranaense, à p. 28, nota 33, da referida obra: “Duas pessoas estão em lide quando uma pretende que o direito tutele imediatamente o seu interesse em conflito com um interesse da outra e esta contrasta a pretensão, ou embora não contrastando, não a satisfaz”).Mostra-se aí, outrossim, facilmente perceptível a adição que Carnelutti fizera à sua original proposição, estabelecendo, então, a distinção entre lide de pretensão resistida, pressuposto do processo civil de conhecimento, e lide de pretensão insatisfeita, pressuposto fático (segundo posterior ensinança de Liebman; e — aditamos nós — inexistente no penal) do processo civil de execução.

Aliás, tanto isso é certo que, na Exposição de motivos do Projeto de Código de Processo Civil de 1973, seu ilustre autor, Alfredo Buzaid, deixou classificado no Capítulo III, n. II/6, que “...O projeto só usa a palavra ‘lide’ para designar o mérito da causa. Lide é, consoante a lição de Carnelutti, conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objetivo principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes”.Essas idéias foram trasladadas (em nosso entendimento, inapropriadamente, com real e manifesta falha de percepção) para o âmbito do processo penal, entre nós, por José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2ª ed., Rio de Janeiro - São Paulo, l965, v. I, p. 11-3), asserindo, então, a existência de lide penal, decorrente de prática de crime ou contravenção, e ostensiva do “conflito entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do réu. Mesmo porque — acrescenta — a “pretensão punitiva” (rectius: intenção) encontra, “no direito de liberdade, a resistência necessária para qualificar esse conflito como litígio, visto que o Estado não pode fazer prevalecer, de plano, o seu interesse repressivo”. E, outrossim, vigorando o regramento nulla poena sine iudicio, o processo penal apresente-se, também — segundo a ensinança do mesmo autor —, como um processo de partes, cujos interesses, contrapostos, constituiriam a lide penal, em que se consubstanciaria o seu objeto litigioso, a res in iudicio deducta.Paradoxalmente que seja, todas essas afirmações prestam-se para evidenciar a irrelevância processual, ou do conceito de lide, em processo penal; tanto mais quanto se tenha na devida conta que a pretensão, tal como concebida, somente pode ser verificável concretamente, isto é, como fato da vida, ocorrente entre duas ou mais pessoas, com efetiva atuação (“exigência de subordinação de interesse de outrem ao próprio”) de uma das partes, e negação explícita da outra (resistindo, portanto, ou — aduzindo, dada a complementação supramencionada, feita pelo citado Mestre italiano — não satisfazendo).Em suma, e inequivocamente, a lide é o pressuposto do processo civil; vale dizer, não há processo civil em lide.Bem é de ver, ainda, nesse particular, que a lide se apresenta, sempre, como tema central do processo civil, de sorte a necessariamente versar sobre ela a sentença definitiva, ato decisório

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mediante o qual o órgão jurisdicional responde ao pedido do autor, em que a pretensão é deduzida (cf., a respeito, Alfredo Buzaid, Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo, 1956, pág. 107; endossando magistério de Enrico Tullio Liebman, comentário a acórdão, na Revista dos Tribunais, 144 (1943) p. 270, São Paulo, segundo o qual a sentença de mérito, no processo civil, constitui a resposta do juiz à pretensão do autor, ou, mais precisamente, o julgamento da lide delineada na petição inicial).Constrói-se, destarte, o objeto litigioso pela afirmação do direito (objeto da pretensão) e pelo fato da vida (fundamento da pretensão). Sua determinação é um ato de disposição do autor, que se subsume no pedido, ao qual corresponde, em regra, uma sentença de mérito atinente à determinação da conseqüência alvitrada pelo fato narrado na petição inicial (cf. Walter J. Habscheid, Der Streitgegenstand im Zivilprozess und in Striverfarhen der freiwiligen Gerischtsbarkeit, Bielefeld, 1956, p. 18-22 e 221-2; Karl Heinz Schwab, Der Streitgegenstand im Zivilprozess, Munique-Berlim, 1954, p. 3-7 e 199; e, na tradução castelhana de Tomas A. Banzhaf, El objeto litigioso en el processo civil, Buenos Aires, 1968, pág. 243; Alfredo Buzaid, Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil, cit., págs. 93 e s.).Ora, na área penal, pouco importa que haja qualquer atuação e resistência, ou insatisfação, respectivamente de cada uma das partes integrantes de relação jurídica (nascente esta da incidência da norma de conduta do membro da comunidade sobre um fato da vida), basta a ocorrência de infração penal, para a inevitável, necessária e obrigatória incoação da persecutio criminis; e, assim também, a existência de ato decisório condenatório, transitado formalmente em julgado, para ter lugar, também inafastavelmente, o procedimento destinado à sua execução.Como precisa Luciano Marques Leite (O conceito de “lide” no processo penal — um tema de teoria geral do processo, em Justitia, 70 (1970) págs. 81 e s., São Paulo), lastreado em doutrinação, e Piero Calamandrei (Il conceito di “lide” nel pensiero de Francesco Carnelutti, na Rivista di diritto processuale civile, 7 (1928-I) págs. 17 e s., Pádua), a “razão pela qual o conceito de lide não é utilizável no processo penal, como elemento distintivo da função jurisdicional, é aquela desenvolvida por Calamandrei. Estão em jogo interesses indisponíveis. O processo penal, continua o fiel discípulo de Chiovenda, não tem a finalidade de remover qualquer desacordo entre o acusador e o acusado sobre a existência do crime ou da medida da pena, de modo que o processo perderia sua razão de ser onde o desacordo fosse amigavelmente composto entre os dois ‘litigantes’. O processo tem sempre lugar porque, no nosso ordenamento jurídico, a punição do culpado não pode ser efetuada senão através do pronunciamento jurisdicional. O processo penal tem, pois, em qualquer caso, para efeito jurídico da punição do culpado, aquele mesmo caráter de necessidade (nulla poena sine jurídico)”.

3. CONSEQÜENTE INADEQUAÇÃO DA ACEPÇÃO CIVILÍSTICA DE PRETENSÃO NO PROCESSO PENAL Foi bem por isso, aliás, que, endossando, em outro lavor (intitulado Indispensabilidade de contraditório em procedimento recursal, e integrante do livro Persecução penal, prisão e liberdade, São Paulo, 1980, págs. 199 e s.), esse correto entendimento, enfatizamos que, em decorrência da impessoabilidade dos interesses contrapostos (ou - agora adicionamos - justapostos), determinante da inquisitoriedade que caracteriza toda a atividade procedimental penal - implicativa da indispensabilidade de contraditório, como única forma de atingir-se o dado mais relevante do seu fundamento (liberdade jurídica, especialmente a física, de ser humano, membro da comunidade), qual seja a apuração da verdade material, ou atingível -, o processo penal destina-se, estritamente, à definição e, eventualmente, à realização de uma relação jurídica penal concreta, em que se contém um importantíssimo conflito de interesses públicos, sem a mínima conotação de litigiosidade. E reafirmando, duas décadas passadas, e convictamente, esse entendimento, aditamos que, por via de conseqüência, é de todo inadequada e (por que não dizer) inaceitável a transposição do conceito civilístico de pretensão para o processo penal. Com efeito, elemento, necessariamente, caracterizador da lide, na formulação de Carnelutti (perene e intocada, não obstante o intento modificador de inúmeros processualistas que o seguiram ou contraditaram, na análise de sua explicitada proposição) - seja pela resistência oposta pelo sujeito

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passivo da relação jurídica cuja definição constitui a meta do processo extrapenal de conhecimento; seja pela insatisfação do direito subjetivo material neste reconhecimento, ou reconhecível - mostra-se o conceito de pretensão igualdade irrelevante no âmbito do processo penal, para cuja existência se mostra suficiente, como visto, a ocorrência (suposta que seja) de infração, por membro da comunhão social, a norma penal material. Ademais, no processo penal, não há lugar para declaração de vontade imposta que, formulada, concretamente (isto é, como fato vida, peculiarizado pelas contrastantes manifestações de vontades de duas ou mais pessoas, com efetiva atuação de uma delas e negação da outra), antes de sua incoação, por um dos sujeitos dos interesses em conflito, torne-o imprescindível para a definição e a realização da relação jurídica em que se postam como titulares das situações jurídicas (ativa e passiva) que a compõem.Foi por esse motivo, certamente, que, reconhecendo o equívoco determinante de sua original formação, ao determinar, como conteúdo da ação penal de conhecimento de natureza condenatória, de titularidade do Ministério Público, a pretensão penal, dita pretensão punitiva, Carneluttti retratou-se, aduzindo, verbis: ‘‘O conceito de pretensão, tão diversamente entendido, havia sido por mim definido, depois de algumas vacilações, como exigência da satisfação de um interesse próprio ante um interesse alheio; como tal, a pretensão é um elemento da lide. No primeiro intento de estudo do processo penal, adaptei a este conceito, definindo a pretensão penal como exigência de sujeição de alguém à pena. Foi um erro, por várias razões: em primeiro lugar, porque a exigência só se coloca em face de outrem que a deva satisfazer, enquanto, estando o mesmo Ministério Publico investido no magistério punitivo, não tem motivo nem possibilidde de exigir o seu exercício de alguma outra pessoa, e menos, ainda, do imputado; em segundo lugar, porque, admitindo-se também que o castigo do culpado satisfaz um interesse da sociedade, personificada no Estado, tal satisfação não está a cargo do imputado, o qual, até pelo contrário, enquanto culpado, tem um interesse solidário como o Estado, em ser castigado” (cf. Principios del processo penal, tradução castelhana de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, 1971, p. 94-5; reportando-se às precedentes obras Lezioni sul processo pende, v. I, p. 129 e 130; Sistema diritto processude civile, cit., v. I, p. 40, Istituzioni del processo civile, italiano, v. I, p. 8; Teoria generale del diritto, p. 20; e Diritto e processo, p. 53; e que, não obstante o exagero da parte final, posto desafinado com a realidade, contém a excelência do reconhecimento - raro, raríssimo - de erro precedentemente cometido). Acresce, outrossim - permitimo-nos fazer a indispensável complementação, ainda na esteira do raciocínio contido no tópico transcrito -, que:a) o autor da ação penal condenatória não efetiva nenhuma exigência, em face de quem quer que seja (nem antes, nem quando da propositura da ação, e também no desenrolar do processo cuja formação ela origina), mas apenas requer a imposição de sanção penal, correspondente à infração praticada, ao processado;b) a execução penal é inafastável, dadas as regras que lhe são inerentes, da inevitabilidade, da necessidade e da obrigatoriedade ; e, c) enquanto no processo extrapenal, especialmente o civil, a ação judiciária somente se desenrola à instância de uma das partes da relação jurídica tornada litigiosa (ação da parte-autor, a qual corresponde a reação da outra - réu), no penal, pode ela acontecer espontaneamente, procedendo o órgão jurisdicional ex officio (e.g. no processo de execução penal, sempre por este iniciado, sem solicitação de quem quer que seja). Deve ser sobrelevada, a propósito da asserção contida na última alínea c, a grave falha de percepção da quase totalidade dos processualistas, ao versarem a atuação dos sujeitos parciais da relação jurídica material e do processo, confundindo direito à jurisdição com ação que, longe de constituir um direito subjetivo, corresponde ao exercício daquele - direito à jurisdição. E, em decorrência dela, deixando de estabelecer a óbvia distinção entre ação da parte, implicativa da formação do processo, em que atua como sujeito parcial, e ação judiciária (na qual se subsume), dirigida pelo sujeito imparcial, juiz ou tribunal, na sua faina diuturna de realização do direito.Igualmente, a falta de atenção para que a noção de dispositividade que o conota o processo extrapenal - tanto que, secularmente, correntes, nesse particular, os regramentos consubstanciados

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nos motes nulla iurisdictio sine actione e ne procedat iudex ex officio - não tem como ser trasladada para o processo penal, marcado pela perene indisponibilidade dos interesses em conflito e pela sua conseqüente indispositividade. Só mesmo uma visão parcial e distorcida do processo penal é que pode propiciar a opinião difundida por José Frederico Marques (e, quiçá, por mero comodismo ou falta de convicção, por muitos endossada....) no sentido de que a indicada regra ne procedat iudex ex officio garantiria “de modo eficaz, a posição imparcial do juiz no processo, e, por esse motivo, ter-se-ia tornado imperante em todos os setores e áreas do processo, inclusive no processo penal, em que o Estado, através do Ministério Público, exerce a ação penal, para que, assim, o juiz criminal não proceda de ofício contra os delinqüentes que lhe cabe julgar, e, posteriormente, fazer sofrer a pena imposta’’ (cf. Manual de direito processual civil, 10ª ed., São Paulo, l983, v. I, p. 9).Ainda que não se queira, impossível é deixar de criticar o saudoso jurisconsulto paulista, por mesclar, indevida e imperdoavelmente, a inquisitividade ínsita à atuação de órgão jurisdicional na busca da verdade material, ou atingível, com o sistema processual penal inquisitorial, de triste memória... E assim sendo, por certo que os conceitos de pretensão punitiva, ou, ainda, de pretensão executória (correntemente, e plenas de equivocidade, até mesmo de erronia, utilizadas...) não se adequam, de forma alguma, ao processo penal, sendo-lhe de todo estranhas. Daí porque, como ressumbra do expedido, resta de todo inadequada a transposição do conceito civilístico de pretensão para o processo penal.

4. INADMISSIBILIDADE, TAMBÉM, DE OUTROS INAPROPRIADOS TRASLADOS

4.l. Considerações preambularesDo mesmo modo, e como de início aventado, mostra-se igualmente inapropriado e, portanto, inadmissível o traslado, puro e simples de princípios, regras e outros institutos, próprios de outros ramos do Direito Processual, para o processo penal. Isso, aliás, sucede em larga escala, numa grande variedade de inusitadas e correlatas situações, cuja verificação e análise, com esse mesmo intento crítico, importa numa desmesurada extensão deste escrito, que mais se adequaria a um estudo monográfico, e não ao lavor ora realizado, restrito, evidentemente, a uma visão panorâmica do moderno Direito Processual Penal. Por isso que nos cingiremos a quatro outros pontos, igualmente importantes, e, segundo imaginamos, suficientes para atingir a meta nele objetivada.Dizem eles, segundo esse nosso alvitre, com a inquisitividade no processo penal atual, a inocorrência de revelia, bem como a inexistência de processo de ação cautelar, no âmbito deste, e aos caracteres e peculiaridades da jurisdição penal, que nele se efetiva.E serão versados na ordem seqüencial da enunciação.

4.2. Inquisitividade ínsita à atuação de agente do Poder Judiciário no exercício da jurisdição penalNoticiam os historiadores do processo penal que três foram os sistemas procedimentais conhecidos em antanhos tempos, sendo dois os principais - o inquisitivo e o acusatório, ambos marcados pelas respectivas purezas - e um subsidiário deste, o incoado mediante delação descompromissada, isto é, não vinculativa (e denominados, no Direito Canônico, e ordem da indicação feita, per inquisitionem, per accusationem e per denuntiationem). Como tivemos já oportunidade de expressar (no livro intitulado Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, São Paulo, 1978, págs. 105 e s.), desenvolveu-se o denominado procedimento inquisitório, nos momentos mais importantes de sua afirmação, à guisa de verdadeira necessidade social, como a correspondente finalidade de propriciar maior eficácia na repressão da delinqüência, em época da mais acentuada devassidão dos costumes.Constituindo, na realidade, apreciável progresso, relativamente à pesquisa da verdade material, exsurgiu mais aprimorado do que o acusatório, numa sociedade, embora juridicamente evoluída, em larga decadência no plano político. E, como anota Vincenzo Manzini (Trattato di diritto processuale penale italiano, 6ª ed., atualizada por G. Conso e G. D. Pisapia, Turim, 1967, v. I, p. 40-1) - ao fazer

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também, em parte, tal destaque -, edificado sobre as bases do procedimento acusatório, deste conservou, obviamente, tão-só as formas, compatíveis com a sua própria estrutura.Aperfeiçoado no Direito Canônico, viu-se, sempre impregnado de grande formalismo, tendo a forma como garantia da regularidade, isto é, da objetividade, necessariamente ínsita à perquirição da verdade material, e, para tanto, contemplando um sistema de provas legais, isto é, tornando o julgador submisso a um regime de provas tarifadas, com o valor de cada uma fixado previamente pela lei, a concepção da confissão como a “rainha das provas”, e o emprego de instrumentos insidiosos, como a tortura, para a sua obtenção. Chegando, enfim, ao extremo de considerar a existência apenas da certeza subjetiva do juiz, em que subsumida a presunção formada no seu espírito, a respeito dos fatos pesquisados (cf. Nicola Polansky, La procédure criminelle technique,em scritti in onore de Enrico Ferri, Turim, 1929, p. 373, nota 1; e, com ele, José Frederico Marques, Elementos de direito processual penal, cit., v. I, p. 63), fez por merecer profunda e conhecida crítica de José Antônio Pimenta Bueno (Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, ed. Anotada e completada por José Frederico Marques, São Paulo, 1959, p. 291), no sentido de que, se o juiz, ele mesmo, tiver de investigar a prática de infração penal, as impressões auridas no momento da colheita das provas poderão influir, decisiva e perigosamente, no seu espírito, por ocasião do julgamento, apresentando-se já definida, por inaceitável antecipação, a solução da causa submetida à sua apreciação; vale dizer, preocupado em contemplar o próprio trabalho, ter julgado precedentemente ao tempo certo de sentenciar.Já procedimento acusatório, usual desde os mais remotos tempos - definido, com os contornos conhecidos, e em ordem cronológica, na Grécia e em Roma; e tornando-se o modo comum de proceder nas tribos germânicas, no processo visigótico e na justiça senhoral, e também, inicialmente, no Direito Canônico - fincava-se na acusatio, efetivada por um ou mais cidadãos, que, como observa Giuseppe Grosso (Lezioni di storia del diritto romano, 5ª ed., Turim, 1965, p. 308), se faziam, então, representantes do interesse público da coletividade, no exercício de uma prerrogativa concedida aos seus membros, especialmente ao ofendido, de, estribado em provas coligadas contra o infrator de norma penal, ajuizar a ação correspondente ao crime por este praticado.O respectivo procedimento era dominado, desde a sua incoação até o final, pelo contraditório; apresentando-se acusador e acusado, no dizer de Giovanni Carmignani (Teoria delle leggi di sicurezza sociale, Pisa, 1882, p. 296), como num duelo, no qual as palavras substituíam as armas. E revelava, outrossim, uma atuação judicial passiva, visto que o juiz não tinha iniciativa para proceder, conformando-se com o alegado e provado pelas partes, a cujo alvedrio restava, até mesmo, o conteúdo do processo.Diferentemente do inquisitório, no qual prevaleciam a escrita, o segredo na realização dos atos processuais, assim como a inexistência de contraditório; nele predominavam a oralidade, a publicidade e a contraditoriedade plena. E peculiarizava-se, ainda, pela relevância conferida à confissão espontânea do acusado, considerando-se, em razão dela, culpado o confitente (conessus pro iudicato habetur); ficando a resolução da causa penal, entretanto, noutras situações, a cargo do julgador, segundo o seu livre convencimento (v., a respeito, Hélio Tornaghi, Instituições de processo penal, 2ª ed., São Paulo, 1977, v. 2, p. 4; e Antonio Camano Rosa, La confesión del imputado, na Jurisprudência argentina, I (1962) p. 90, Buenos Aires).É de anotar-se, em complemento, que, a par do acusatório, teve lugar, também, o procedimento penal per denuntiationem, que dele se distinguia, dada a sua incoação mediante denúncia (não no sentido processual moderno do vocábulo, mas uma espécie de delatio criminis) de membro da comunidade, que, porém diferentemente do que ocorria naquele, não o vinculava ao processo dela decorrente.Sua maior repercussão deu-se no processo penal canônico, para onde transplantado juntamente com o acusatório; e até que se implantasse, com o Papa Inocêncio III, o procedimento inquisitório, passando haver, então, as três aludidas formas procedimentais penais: per accusationem, per denuntiationem e per inquisitionem (v., a respeito, A. Esmein, Histoire de la procédure criminelle en France et spécialment de la procédure inquisitoire depuis le XIII siécle j’usqu’a nos jours, Frankfurt e Main, 1969, págs.293 e s; e João Mendes de Almeida Júnior, O processo criminal brasileiro, 4ª

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ed., Rio de Janeiro, l959, v. I, p. 229).Acrescente-se que, em virtude da multiplicação de inconvenientes e defeitos, ostentados pelos procedimentos acusatório e inquisitório, viu-se acentuada, cada vez com maior intensidade, sobretudo a partir do século XVI, a tendência à organização de um sistema procedimental misto, em que com o seu afastamento e o aproveitamento das qualidades e vantagens que ambos, também, apresentavam, fossem reunidas, harmonicamente, duas exigências aparentemente antagônicas, a saber: a de não se deixar nenhum culpado sem punição - impunitium no relinqui facinus; e a de não se condenar, jamais, um inocente - innocentem non condemnari.Parece-nos oportuno trazer à relembrança a elencação, efetuada pelos estudiosos do tema, de tais proclamados inconvenientes e/ou defeitos:a) do procedimento acusatório, especialmente, a impunidade dos autores de infrações penais, a facilitação de falsas acusações, o desamparo dos fracos, a deturpação da verdade, a impossibilidade de julgamento, em muitos casos, e a inexeqüibilidade de execução da sentença condenatória, em tantos outros - como, em precisa síntese, mostra Hélio Tornaghi, Instituições de processo penal, cit., v. 2, p. 10-4; além de, como anota, já agora, João Mendes de Almeida Júnior, O processo criminal brasileiro, cit., v. I, p, 229, reduzir o juiz, constantemente, à importância de julgar, e b) do inquisitório, precipuamente também, a exagerada concentração de poderes na pessoa do juiz; a conseqüente insegurança do inquirido (ameaçadas, constantemente, as suas liberdade e segurança individual), exacerbada pelo segredo acobertador da atuação judicial; os abusos cometidos na pesquisa da verdade, ao ensejo da colheita de provas, principalmente da confissão obtida mediante tortura; a sobrelevação de pressunções, sufocantes de reproduções precisas dos fatos investigados; e a graduação tarifária das provas, determinante de verdadeiro automatismo da função de julgar (cf., ainda, João Mendes de Almeida Júnior, O processo criminal brasileiro, cit., v. p.229; José Frederico Marques, Elementos de direito processual penal, cit.,v. I, p. 62-3; Niceto Alcalázanoray Castillo, Enseñanzas e sugerencias acerca de la acción, em Estudios de derecho procesal in honor de Hugo Alsina, Buenos Aires, 1946, p. 79l; Hélio Tornaghi, Instituições de processo penal, cit., v. 2, p. l0-4).Assim é que, de uma reação, cada vez mais crescente, contra o procedimento inquisitório, que então, como visto, predominava, e com o objetivo de restauração do acusatório, ainda que parcialmente alterado na sua estrutura (tal como aconteceu na França, com a Ordonnance de 1539, estatuindo a ação penal, pública e obrigatória, mediante acusação formulada por um órgão do Estado, o Ministério Público, e restabelecendo a oralidade, a publicidade e o contraditório), chegou-se à adoção de um procedimento misto, também denominado anglo-saxão, que foi instituído pelo Código Napoleônico sw 1808 - Code d‘Instruction Criminelle. Peculiarizava-o, então, a combinação de caracteres do inquisitivo, quando de sua primeira fase, inquiritória, na qual os agentes estatais da persecução penal procuram descobrir a verdade, provocando, inclusive, a confissão do suspeito de prática criminosa; e do acusatório, a partir do momento em que, apresentada a proposição imputatória desta ao acusado, quando, sob o vigor do contraditório, numa atuação pública e oral, é este instado a defender-se e, afinal, o juiz profere o julgamento (cf., a respeito de todo o expendido, nesse particular, Hélio Tornaghi, Instituições de processo penal, cit., v. 2, p. 19-20; Enrico Pessina, Manuale di diritto pende, Nápoles, 1905, p. e III, p. 1; Giovanni Leone, Trattato di diritto processuale penale, Nápoles,1961, v. I, p. 26-7; Georges Briere de L‘sle e Paul Cogniaart, Procédure pénale,Paris, 1971, t. I, p. 53; João Mendes de Almeida Júnior, O processo penal brasileiro, v. I, p. 229; Antonio Camano Rosa, La confesión del imputado, cit., págs. 90-1; Eugenio Florian, elementos de derecho processual penal, trad. castelhana de Leonardo Prieto Castro, Barcelona, 1934, p. 67). Da França, onde concretizada, tornada realidade, a concepção do novo sistema procedimental penal passou para outros países do continente, tendo sido acolhida, também, naqueles de origem latina, situados na América - cada qual procurando amoldá-la às contingências locais, especialmente no tocante às regras relativas à produção, e subseqüente recepção, pelo julgador, das provas, apreciáveis segundo o critério da persuasão racional ou o do seu livre convencimento.Daí resultou, outrossim, como esclarece Giovanni Conso (Accusa e sistema accusatorio, na

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Enciclopedia del diritto, I (1958) p. 337, Milão), a multiplicação de procedimentos do novo tipo - misto, tornando-se, até por isso, difícil a formulação de uma só e perfeita esquematização.Com efeito, da conjugação dos caracteres dos sistemas inquisitivo e acusatório, realizada multiformemente, ao sabor de variegadas circunstâncias, inclusive à referente ao vasto elenco das respectivas e aproveitáveis peculiaridades, diversificados restaram os ordenamentos processuais penais que cuidaram da sua regulamentação.De um modo geral, todavia, sobrelevou-se, neles, a acomodação dos atos de natureza investigatória (ditos de instrução, ou de instrução provisória) à técnica inquisitiva, sobressaindo-se, na sua efetuação, o segredo e a escrita; e os atinentes ao iter procedimental, desde a formalização da acusação até ao julgamento (abrangidos, portanto, todos os atos de encaminhamento ao ato decisório final), realizados sob contradição recíproca dos sujeitos parciais do processo, pública e oralmente, tal como no tipo acusatório. E, prevalecente a regra ne procedat iudex ex officio, passou-se a confiar a acusação a um órgão estadual distinto do juiz, conferindo-se a este a liberdade na escolha, assunção e valoração das provas (cf., uma vez mais, Giovanni Conso, Accusa e sistema accusatorio, cit., p. 337; Giovanni Leone, Trattato di diritto processuale penale, cit., v. I, p. 28).Em nosso país, a recepção do sistema misto (obviamente contemplativo da ação penal de conhecimento de caráter condenatório) compreende a divisão da persecutio criminis em duas fases, a saber: a) investigatória, da informatio delicti, consubstanciada, geralmente, no inquérito policial, mas abrangente, também, de outras formas (inquérito administrativo, inquérito parlamentar e inquérito judicial); e b) a subseqüente, denominada da ação penal, em que se desenrola a ação judiciária, por meio do respectivo processo, no qual tem lugar a instrução da causa.Trata-se, na ralidade, de um sistema misto, não somente por essa divisão bifásica, mas, precipuamente, por nele mesclarem-se a inquisitividade, ínsita, substancialmente, a toda persecução penal, na sua inteireza, e a acusatoriedade, de que, formalmente, se impregna a segunda fase.Aliás, não se pode deixar de observar, a esse propósito, que grande partes do estudiosos do processo penal, particularmente os brasileiros (apegados, como em quase todas as lições ministradas, ao magistério de José Frederico Marques, na sua obra intitulada Elementos de direito processual penal, cit., v. I, p. l4-5, em que sugerida a subordinação dos sujeitos processuais “a uma forma procedimental em que não se ponha em risco a imparcialidade do órgão jurisdicional e de onde o jus puniendi do Estado e o direito de liberdade do réu sejam, amplamente, focalizados e debatidos”), proclamam que o nosso sistema procedimental penal é o acusatório, “único modus procedendi compatível com o verdadeiro processo penal’’. Manifesto o equívoco que se contém nessa visualização, não se deram conta de que a por nós afirmada inquisitoriedade de toda a persecutio criminis não deve ser confundida com o procedimento penal inquisitivo de antanho do Direito Penal romano e desenvolvido segundo o modelo canônico, de triste memória (v., a respeito deste, Giovanni Leone, Trattato di diritto processuale penale, cit., v. I, págs. 21 e s; Ladislao Thot, El cuerpo de delito en el homicidio, em Jurisprudência argentina, XV (1925) pág. 13 e s., Buenos Aires; e La tortura, na mesma revista, II (1929) págs. 85 e s ; Hélio Tornaghi, Instituições de processo penal,cit., v. 2, págs. 7 e s.; nosso Lineamentos do processo penal romano, cit., págs. 79 e s., e 165 e s.; e Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Processo penal, ação e jurisdição, São Paulo, 1975, p. 193-4, verberando essa confusão, dita reinante na doutrina e na jurisprudência pátrias...).Com efeito, constituindo a apuração da verdade material, ou atingível, como visto, e, sem dúvida alguma, o dado mais relevante do precípuo escopo do processo penal, torna-se inequívoco que essa finalidade só pode ser atingida mediante a atribuição de inquisitividade à atuação dos agentes estatais da persecução penal e ao poder de direção conferido ao órgão jurisdicional (e.g. no art. 502 do Código de Processo Penal) na instrução criminal subseqüente à informatio delicti (em que pontifica a atuação marcadamente inquisitiva da autoridade policial). Por outras palavras (inclusive do próprio Frederico Marques, Elementos de direito processual penal, cit., v. I, p. 61), a verdade deve ser perquirida, incessantemente, em todo o desenrolar da persecução penal, de sorte a preservar-se a liberdade do inocente e impor-se a sanção adequada à infração penal constatada, isto é, a punição que o culpado faz por merecer.

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Particularmente no tocante à ação judiciária, concretizada procedimentalmente na mencionada fase da instrução criminal, deve ter-se presente que, objetivando a atuação dos juízes e tribunais, por destinação, a proteção da liberdade jurídica - especialmente a física - do acusado, esta somente poderá ser concretizada com a descoberta da verdade material, ou atingível; vale dizer, mediante uma atividade em que se traduz um interesse dotado de impessoalidade, posto pertencer a todos os membros da coletividade.Outra não pode ser, portanto, a correta visualização da persecutio criminis no atual processo penal brasileiro: a de sua integral inquisitividade, na essência, na substância; e de sua formal acusatoriedade, na segunda fase. 4.3. Inocorrência de revelia, em processo penal Um dos institutos que mais distingue o processo penal dos outros, especialmente do processo civil (em cujo Código, de 1973, ela é amplamente regulamentada, tanto no respeitante aos efeitos materiais como aos processuais, nos arts. 319 e segs. e 330), é o da revelia, ou contumácia.Realmente, como, há muito tempo, temos asserido, não há lugar para a revelia em seu âmbito, até porque uma das inarredáveis garantias da defesa é, justamente, a de que o acusado tenha pleno e perfeito conhecimento da acusação que lhe é imputada.Afigurando-se despiciendo o reporte a tempos mais antigos, bem é de ver que, na esteira de outros importantes Diplomas Universais, determinantes da preservação e tutela de direitos humanos (Declaração universal dos direitos do homem, proclamada pela Organização das Nações Unidas - ONU, em 10 de dezembro de 1948; Convenção Européia para a salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, subscrita em Roma, no dia 4 de novembro de 1950; Pacto internacional de direitos civis e políticos, de 16 de dezembro de 1966), expressa a Convenção americana sobre direitos humanos (também, correntemente, denominada Pacto de San José da Costa Rica; e objeto de referendo, em nosso país, pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992), assinada em San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, no seu art. 8º, 1 e 2, b, verbis:

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias, e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:.... b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada.Ora, isso significa, à evidência, a inadmissiblidade de incoação de processo penal, sem a devida e real (pessoal) cientificação, ao acusado, dos termos da proposição acusatória, para que bem possa defender-se.Coerente com essa corretíssima orientação, o legislador nacional, certamente no propósito de espancar qualquer dúvida a respeito, editou, em 17 de abril de 1996, a Lei n. 9.271, com que alterada a redação originária dos arts. 366 a 369 do Código de Processo Penal. E, não obstante as notórias imperfeições das modificações alvitradas (e.g., asserindo, atecnicamente, a suspensão de processo sequer iniciado; propiciando a confusão, verificável tanto na doutrina como na jurisprudência, entre três distintas formas de inatividade processual, quais sejam a revelia, propriamente, a ausência e a inércia; e tornando polêmicas as situações determinantes de prisão preventiva e de provas), teve o indiscutível mérito de tornar exigível a real cientificação da proposição acusatória ao denunciado, ou querelado, e, com o afastamento do alvitre de cognição ficta de seu teor (incompatível, também, com a preceituação do due process of law, elevada à eminência constitucional pela Carta Magna de nossa República Federativa), consagrando o direito relativo à sua efetiva participação no contraditório (contraditório real e indispositivo) durante todo o transcorrer da instrução criminal (cf., a respeito, nosso estudo intitulado Lei n. 9.271, de 1996, e produção antecipada de provas, na Revista dos Tribunais, 758 (1998) págs.405 e s., São Paulo; especialmente à p. 406). Em epítome, dada a inocorrência de revelia no processo penal (particularmente, como explicitado, no brasileiro), inadmissível resta o traslado, para este, das regras que a peculiarizam no processo

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extrapenal (civil, trabalhista); de sorte a constituir esse mais um significativo dado determinante da inaceitação de uma teoria geral do processo.

4.4. Inexistência de processo e de ação cautelar penaisOutro ponto, convergente com essa derradeira asserção, e que, por isso, faz por merecer detida consideração do analista, é o concorrente à igualmente afirmada inexistência de processo e de ação cautelar.Realmente, os processos são classificados, segundo generalizado consenso, pelo critério fincado na modalidade de tutela jurisdicional pleiteada pelo autor ao exercer direito à jurisdição, com o aforamento da ação (ação da parte).Por isso que, sendo elas três - de conhecimento, de execução e cautelar -, três são, por igual, as espécies de processo, a saber: processo de conhecimento, processo de execução e processo cautelar (e, assim também, com a mesma nomenclatura, ostentam-se as respectivas ações que, ao serem propostas, dão origem à formação de cada um deles).O processo de conhecimento, na forma antes explicitada, tem como pressuposto, em âmbito extrapenal, uma lide de pretensão resistida; e, no penal, conflito de interesses de alta relevância social, qual seja o ocorrente entre o interesse punitivo do Estado e o interesse de liberdade do ser humano, membro da comunidade. Não pode deixar de ser consignada, aqui, a grave falha de percepção de alguns autores, como Jacinto Nélson de Miranda Coutinho e João Gualberto Garcez Ramos (v., respectivamente, A lide como conteúdo do processo penal, cit., p. 43; e A tutela de urgência no processo penal brasileiro, Belo Horizonte, 1998, in “Nota do Autor”), ao confundirem ambos os conceitos, como se conflito de interesses fosse, já, a própria lide....Revela essa desfocada concepção, ademais, a falta de lembrança da ensinança completa de Carnelutti, segundo a qual a noção de conflito de interesses está vinculada à de relação jurídica (“conflito de interesses regulado pelo direito”, cf. Sistema di diritto processuale civile, cit.,v. I, p.25), da qual constitui o elemento material, ao passo que o comando jurídico consiste no seu elemento formal: só mesmo o contraste de vontades é que torna a relação jurídica litigiosa.Levados à cognição judicial os fatos em que se consubstancia o litígio, ou o conflito de interesses, o órgão jurisdicional, presumivelmente conhecedor do direito (narra mihi factum, dabo tibi ius; iura novit curia), aplica-o, definindo a relação jurídica que constitui o objeto material do processo, com a declaração da titularidade do direito subjetivo e da obrigação, ou dever, nas situações jurídicas que a compõem.O processo de execução, por sua vez, tem como pressuposto uma lide de pretensão insatisfeita, no extrapenal, especialmente o civil, em que se objetiva, tão-só, a satisfação do direito subjetivo material do litigante, como tal conhecido em título judicial (sentença condenatória), ou constante de outro, a ele equiparado pela legislação em vigor. E, no processo penal, exclusivamente, título executivo consubstanciado em sentença impositiva de pena ou de medida de segurança, e transitada formalmente em julgado (nulla executio sine titulo). Efetiva-se, outrossim, mediante a prática de variegados atos, inclusive de natureza física, cujo escopo diz com a realidade da realização do direito, inculcado no título exeqüendo, seu específico pressuposto jurídico (cf. Enrico Tullio Liebman, Processo de execução, 4ª ed., com notas de atualização de Joaquim Munhoz de Mello, São Paulo,1990, págs. 66 e s.).Por derradeiro, o processo cautelar, postado numa situação especialíssima, diz com a necessidade de assecuração de um estado de fato ou do resultado prático de um processo de conhecimento, ou de execução, a iniciar-se, ou já em curso.E tem como pressupostos a, ainda que aparente, relevância do direito subjetivo material do interessado na cautela (fumus boni iuris); e, em determinadas circunstâncias, o denominado perigo na demora (periculum in mora) do reconhecimento ou da satisfação desse direito -, de sorte a impor-se a adoção de medida urgente, dele acautelatória e obstativa de desprestígio para a justiça, e, correlatamente, de prejuízo para a parte a quem beneficia (v., a respeito, por todos, Enrico Tullio Liebman, Manuale di diritto processuale civile, 3ª ed., 1973, v.I, p. 172; Unitá del procedimento cautelare,em Problemi del processo civile, Nápoles, 1962, p. 108; e, embora os focando como

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“condições da ação cautelar”, Humberto de Theodoro Júnior, Processo cautelar, São Paulo, 1976, págs. 71 e s.).Isso expendido, e como de logo enfatizado, bem é de ver que não há como serem concebidos em sede penal,com essas características, processo e ação cautelar, até porque toda atividade assecuratória dos processos de conhecimento e de execução pode ser realizada ainda que sem a concorrência de tais pressupostos, e - o que é mais importante - sem necessidade de ajuizamento de ação específica e de processo dela originado.Diferentemente, também, do que ocorre em processo extrapenal, em cujo âmbito se propugna por “um tratamento separado e independente das medidas cautelares”, num processo cautelar autônomo (cf., e.g., Eduardo Gutiérrez de Cabiedes, Elementos esenciales para un sistema de medidas cautelares, Pamplona, 1974, p. ll-2; Enrico Tullio Liebman,Unitá del procedimento cautelare, na Rivista di diritto processuale, cit., I (1954) p. 248; Enrico Allorio, Per una nozione del processo cautelare, na mesma Rivista, I (1936) p. 18); no processo penal há lugar, apenas, para a adoção de medidas cautelares, efetiváveis, tanto nos autos do processo de conhecimento como nos do de execução, sendo neles, por certo, dispensáveis atuações especificadas ao exercício do direito à jurisdição, pelo aforamento de ação (ação da parte). Esses dados característicos das medidas cautelares processuais penais - quais sejam a possibilidade de sua concessão, independentemente da co-existência de fumus boni iuris e de periculum in mora, e a dispensabilidade de propositura de ação, e conseqüente formação de processo, para sua efetivação e concessão, mediante singelas representação, promoção ministerial e decisão judicial, realizáveis que são ao longo da tramitação do procedimento -, prestam-se, inequivocamente, também para a evidenciação de que o modelo não tem como ser transposto, simples e automaticamente, para o processo penal, em cujo âmbito elas vivificam sem identificação com o processo e a ação cautelar.Deve ser aduzido, com Galeno Lacerda (Função e processo cautelar - Revisão crítica, em Ajuris, 56 (1992) p. 7-8, Porto Alegre), em agudo magistério - por nós irrestritamente endossado, na certeza de sua inteira pertinência à exposição desenvolvida -, que, se “conhecimento e execução se mesclam, assim, no sentido de afinar, de adaptar a dinâmica do processo às peculiaridades do caso concreto, com muito mais razão o mesmo deverá acontecer com a função cautelar, a qual, por sua própria natureza de tutela, de segurança, com vista a garantir o resultado útil das demais funções, deve, necessariamente, traduzir-se em vigilância permanente do Juiz ao longo de todos os processos e, por isso, não calha de modo nenhum ofender sua natureza, espartilhar e sufocar as cautelas sob o formalismo de um processo separado e autônomo. Trata-se, na verdade, de uma função permanente, concomitante às demais e que é análise global de nosso sistema. Com efeito, encontramos, a todo momento, no sistema legal, a existência e a possibilidade de atos cautelares incidentes, sem ação nem procedimentos próprios, mas enxertados em processos de outra natureza”. Tal como - permitimo-nos complementar - acontece, normal e regularmente, nos processos penais de conhecimentos e de execução.

4.5. Caracteres e peculiaridades da jurisdição penalAbstração feita de certas impropriedades, como as cultivadas por eminentes processualistas, tendo a jurisdição como “o poder de dizer o direito”(e.g. Edgard Magalhães Noronha, Jurisdição penal, na Enciclopédia Saraiva do Direito, 47 (1978) p. 133, São Paulo; Hélio Tornaghi, Instituições de proceso penal, cit., v. lº, p. 2l5), consiste a penal, efetivamente, na atuação do Estado, por intermédio de órgãos do Poder Judiciário, integrantes da Justiça Criminal, com a finalidade de aplicação das normas jurídicas penais materiais positivas a um fato tido como típico, antijurídico e culpável, e das formais, disciplinadoras dos processos cognitivo e executivo nos quais essa atividade se concretiza. Com efeito, como tivemos a oportunidade de acentuar, na monografia Jurisdição, ação e processo penal (editada em Belém, no ano de 1984), não há lugar em seu âmbito para qualquer criatividade do direito, restringido-se o julgador de uma causa criminal, precipuamente, à aplicação do ius positum, até porque um fato somente pode ser considerado penalmente relevante quando se enquadrar, com todos os respectivos elementos, num modelo legal, vigente, e, portanto, eficaz, à

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época em que ocorrido (v. p. 27-9, e, também, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, cit., p. 11). De outra banda, e como, igualmente, já ressaltado, conferido a tais órgãos estatais esse poder de aplicação do Direito Penal material ao caso submetido à sua apreciação, essa atribuição consubstancia-se também num dever (dever funcional); vale dizer, constitui-se num poder-dever de processar e julgar as causas criminais.Aduza-se que esse poder-dever não se restringe às causas atinentes à efetivação do ius puniendi do Estado, em processo de conhecimento de caráter condenatório; mas abrange, ainda, aquelas referenciadas à afirmação do ius libertas do ser humano, membro da comunhão social. E concretiza-se tanto na atividade jurisdicional dos agentes do Poder Judiciário stricto sensu concebida, isto é, relacionada com a notio e o iudicum (iurisdictio = notio + iudicium), correspondente à cognição, instrução e julgamento, como na concernente à coerção (coertitio), ou coação estatal, sobrelevada no imperium, que encontra campo apropriado também no processo penal executivo. Ainda mais, que, embora identificadas estruturalmente, manifesta é a diferença ostentada pela jurisdição extrapenal (especialmente a civil, com as denominadas jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária) em relação à jurisdição penal, nas respectivas essencialidades.E isso, tanto mais quanto se tenha na devida conta que nesta (jurisdição penal): a) mostra-se, como visto, de todo irrelevante o conceito de lide, havendo lugar, tão-só, para a consideração e resolução de um conflito de interesses (punitivo e de liberdade) de alta relevância social; b) a contenciosidade cede lugar para a contraditoriedade, que deve ser não apenas possível, mas real, indisponível, indispositiva; ec) a coisa julgada que nela se forma somente pode referir-se à causa que constitui seu objeto, qual seja a respeitante à definição de uma relação concreta de Direito Penal normativa e, ademais, apresenta-se sui generis, assumindo, conforme as circunstâncias, autoridade relativa (quando tutelar de decisão ou de sentença condenatória), ou autoridade absoluta (no caso de absolvição, ou, salvo rarissíma exceção, de declaração de extinção da punibilidade do indiciado ou acusado).Em suma, a jurisdição penal exsurge no mundo do processo, autonomamente, despregada de todas as outras áreas do Direito Processual, dadas as suas características próprias, e a determinação conceptual fincada em princípio, regras e institutos específicos do Direito Processual Penal, com peculiaridades que a marcam com indelével exclusivismo.E isso basta, para que se a tenha como, propriamente, é: jurisdição penal, e nada mais!

5. CONCLUSÃO: AUTONOMIA E DIGNIDADE CIENTÍFICA DO MODERNO DIREITO PROCESSUAL PENALDado todo o expedido, parece-nos despicienda qualquer adição tendente à demonstração da inadmissibilidade de construção de uma teoria geral do processo, na medida em que evidenciadas as características e as peculiaridades do Direito Processual Penal.Vêm a pelo, contudo, para finalizar o estudo ora desenvolvida, agudas e corretas observações de Jorge de Figueiredo Dias (Direito processual penal,Coimbra, 1974, v. I, p. 54) e Fernando Luso Soares (O processo penal como jurisdição voluntária, Coimbra, 1981, p. 66-7), aquele ao anotar as dificuldades para a sua precisa formulação; e este, endossando-lhe o magistério, ao inaceitá-la, pura e simplesmente (posicionamento que queremos complementar, aditando que a por muitos decantada teoria geral do processo também não tem como explicar a patenteada diversificação conceptual de jurisdição penal e de jurisdição extrapenal, especialmente a civil).Retratam-se elas, clarificadamente, em tópico constante das citadas obras (a de Luso Soares reproduzindo a de Figueiredo Dias, à p. 67), a seguir transcrito, verbis:

... No que toca ao processo, os resultados de uma teoria geral em nada conseguiriam esbater ou minorar as extensas divergências entre cada um dos principais tipos processuais, respeitantes ou à sua estrutura ou, sobretudo, aos seus fundamentos e princípios e às suas formas concretas de realização. Daí que o próprio Carnelutti (sempre tão propenso às grandes construções e às teorias generalizadoras), tendo começado por ver no conceito de ‘‘lide’’ o elemento comum a todos os tipos

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processuais, que só por si permitiria a construção de uma do processo acabado por reconhecer em absoluto a profunda diversidade e autonomia, mesmo ‘‘científica’’do direito processual penal. Como bem nota K. Peters, a pretensa comunidade ou analogia de fins e meios nunca ultrapassaria o domínio puramente formal, além de que iria por certo, não poucas vezes, fazer violência à necessária autonomia funcional e teleológica de cada tipo. O que é tanto mais perigoso quanto, sendo o argüido a nota viva, o elemento verdadeiramente caracterizador (do processo penal), a sua autonomia não pode deixar de exigir que todo o estudo do processo penal seja colocado e conduzido de modo completamente autônomo (a parte final, pelo autor citado no texto, é de Giovanni Conso, Costizone e processo penale, Turim, 1969, p. 264).

E prestam-se, outrossim, para basificar nosso antigo entendimento de encontrar-se ultrapassada, há muito tempo, a idéia, longamente vigorante, inclusive, e especialmente, em nosso país, de “civilizar”o processo penal...Esse, aliás, como temos ressaltado, foi um dos (poucos, raros) aspectos negativos da grandiosa obra de José Frederico Marques, ao transplantar (sem, ou, às vezes, com modestos, avaros, retoques) institutos do processo civil para o processo penal, numa nítida adaptação dos Elementos de direito processual penal às Instituições de direito, processual civil (este, induvidosamente, seu mais importante e melhor lavor magisterial).E o pecado tornou-se maior, também inequivocamente, em razão de, dada a reconhecida autoridade do pranteado Mestre, muitos processualistas (alguns, até mesmo processualistas penais) terem-no seguido, descuidada ou cegamente, incorporando-se numa prolixa e confusa concepção, que poderia, quiçá, ser denominada teoria civil do processo penal....Felizmente, todavia, percebe-se, em dias mais recentes, uma antagônica tendência, com um número sempre crescente de opiniões contemplativas de uma teoria geral para cada área do processo, centrando-se a do penal, como visto, e com total independência e autonomia, nos seus próprios caracteres e nas suas peculiaridades.E, com efeito, já há largo tempo o processo penal não é mais a “Cinderela”do Direito Processual, tal como o cognominou Carnelutti. Vale a pena repetir, em abono dessa afirmação, que o próprio renomado processualista peninsular (em Cenerentola, na Rivista di diritto processuale civile, cit., I (1946) p. 73-8 - reproduzida como La cenincieta, em Cuestiones sobre el proceso penal, tradução castelhana de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, 196l, p. 19 e 20), redimiu-se, há décadas, do chiste, proclamando ter chegado “o tempo em que tive de abrir os olhos’’. E isso, depois de enfatizar que: “Somos sempre aqueles qui habent oculis e non vident, habent aures et non audiunt” (que têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem).Tenhamos presente, enfim, esse sábio discernimento, procurando visualizar o Direito Processual Penal com ótica própria, conferindo-lhe, sobretudo, a dignidade científica que faz por merecer.Só assim, por certo, é que poderemos outorgar-lhe, como de técnico e jurídico rigor, a independência e a autonomia exigidas pela sua modernidade, consagrando, cumpridamente, uma viva realidade do mundo processual: a teoria geral do processo penal!

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CONTRADITÓRIO E “PROVA INEQUÍVOCA’’ PARA FINS DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELAAda Pelegrini Grinover

Sumário: a) ANTECIPAÇÃO DA TUTELA: 1. Antecipação de tutela e tutela cautelar: distinção conceitual em face do direito positivo brasileiro; 2. O “perigo de irreversibilidade” como limite ao deferimento da antecipação de tutela; 3. O requisito da “prova inequívoca” - b) INQUÉRITO CIVIL E CONTRADITÓRIO: 1. Procedimento probatório e devido processo legal: o contraditório como condição de eficácia da prova; 2. A prova no âmbito administrativo e particularmente no inquérito civil - c) CONCLUSÃO: Contraditório e ‘‘prova inequívoca’’ para fins de antecipação de tutela.

a) ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

1. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E TUTELA CAUTELAR: DISTINÇÃO CONCEITUAL EM FACE DO DIREITO POSITIVO BRASILEIROA delimitação conceitual da tutela cautelar foi e continua sendo - talvez hoje com menor intensidade - objeto de acirradas controvérsias doutrinárias, com importantes repercussões práticas e projeções na jurisprudência. Bastaria percorrer a mais seleta doutrina estrangeira e nacional para constatar que, dentre os que se dedicaram ao estudo do tema, nunca houve razoável grau de uniformidade quanto à natureza e o alcance dessa modalidade de tutela.Procurando superar, ao menos em parte, as dificuldades decorrentes dessa diversidade de pensamentos, o legislador introduziu, no sistema do Código de Processo Civil (art. 273 e parágrafos), o instituto - já constante de legislação especial - da antecipação de tutela que, sob o prisma de sua disciplina com respeito à tutela cautelar; quer tanto aos respectivos conteúdo ou efeitos, quer quanto aos respectivos pressupostos de cabimento.Na doutrina pátria, foi Luiz Guilherme Marinoni que, antes mesmo da Reforma do CPC, se dedicou com intensidade ao exame do tema: editou sucessivos e importantes estudos acerca do confronto entre a tutela cautelar e a tutela “antecipatória”, destacando a diversidade de que se falou anteriormente. Negando o clássico pensamento de Calamandrei - para quem medidas antecipatórias podem configurar modalidade de medidas cautelares -, Marinoni destacou que “a tutela antecipatória realiza o direito mediante cognição sumária, enquanto a tutela cautelar apenas assegura a viabilidade da realização do direito”1 (grifei). Esse entendimento é hoje compartilhado, em peso, por autorizados doutrinadores pátrios.Cândido Rangel Dinamarco observa que, generalizando a antecipação de tutela no CPC, “o legislador tomou posição quanto a uma questão conceitual que já foi muito importante, que é da possível natureza cautelar da antecipação da própria tutela pretendida no processo de conhecimento”. E, a propósito, conclui o eminente processualista:

A técnica engendrada pelo novo art. 273 consiste em oferecer rapidamente a quem veio ao processo pedir determinada solução para a situação que descreve, precisamente aquela solução que ele veio ao processo pedir. Não se trata de obter medida que impeça o perecimento do direito, ou que assegure ao titular a possibilidade de exercê-lo no futuro. A medida antecipatória conceder-lhe-á o exercício do próprio direito afirmado pelo autor 2 (grifei).Nelson Nery Júnior, lembrando a preexistência do instituto no âmbito de legislação especial, afirma que a “tutela antecipatória dos efeitos da sentença de mérito é providência que tem natureza jurídica de execução, lato sensu, com o objetivo de entregar ao autor, total ou parcialmente, a própria pretensão deduzida em juízo ou os seus efeitos. É tutela satisfativa no plano dos fatos, já que realiza o direito, dando ao requerente o bem da vida por ele pretendido com a ação de conhecimento”. E

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mais:

Com a instituição da tutela antecipatória dos efeitos da sentença de mérito no direito brasileiro, de forma ampla, não há mais razão para que seja utilizado o expediente das impropriamente denominadas ‘‘cautelares satisfativas’’, que constitui em si uma contradictio in terminis, pois as cautelares não satisfazem: se a medida é insatisfativa é porque, ipso facto, não é cautelar 3 (grifei).

É igualmente significativo o pensamento de Sálvio de Figueiredo Teixeira para quem reside na regra do citado art. 273 “uma das mais importantes inovações da reforma processual. Daí o relevo que passa a ter sua correta aplicação, para que não se repitam os equívocos e abusos ocorridos na prática com a cautelar inominada, com a qual, aliás, não se confunde a tutela do art. 273’’4 (grifei).Cumpre frisar que o instituto da antecipação de tutela - assim apartado da tutela cautelar - já era conhecido do sistema processual e, para o que importa nas presentes considerações, inclusive no âmbito da ação civil pública.Lúcia Valle Figueiredo, escrevendo especificamente sobre a concessão da liminar na ação civil pública, bem divisou essa distinção afirmando que “a liminar concedida terá a mesma natureza da liminar em mandado de segurança” que, “diversamente da medida cautelar” representa “uma antecipação da própria pretensão final e não medida que visa apenas à tutela do processo principal”5 (grifei). Isso, de resto, é amplamente ratificado pela aplicação subsidiária do CPC à disciplina da ação civil pública (Lei n. 7.347/85, art. 19).Pois bem. Tendo naturezas distintas, as tutelas cautelar e antecipatória sujeitam-se a pressupostos diversos, importando aqui salientar que a segunda - precisamente por representar a própria realização do direito material afirmado pelo demandante (e não mera garantia de utilidade e eficácia do próprio processo) - não pode ser concedida, sequer em tese, “quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado”, segundo regra expressa do art. 273, § 3º, do CPC. Mais ainda: pelas mesmas razões, a antecipação não se contenta com a mera plausibilidade do direito - expressa na fórmula fumus boni iuris - que é suficiente para a tutela cautelar (duplamente instrumental); exige, pois, “prova inequívoca” das alegações em que fundado o demandante (art. 273, caput, do CPC).Convém examinar, separadamente, cada um desses aspectos.

2. O “PERIGO DE IRREVERSIBILIDADE” COMO LIMITE AO DEFERIMENTO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELAO limite imposto pelo § 2º do art. 273 do CPC à concessão da tutela antecipada tem recebido interpretações nem sempre uniformes da doutrina, que ora vê, nesse dispositivo, um óbice intransponível para o deferimento da providência, ora atenua o rigor legal, para admiti-la mesmo diante do risco de eventual irreversibilidade. Além disso, controverte-se acerca desse último conceito.Nas judiciosas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, as “medidas inerentes à tutela antecipada têm nítido e deliberado caráter satisfativo, sendo impertinentes quanto a elas as restrições que se fazem à satisfatividade em matéria cautelar. Elas incidem sobre o próprio direito e não consistem em meios colaterais de ampará-los, como se dá com as cautelares”. Mas, adverte o ilustre processualista:Nem por isso o exercício dos direitos antes do seu seguro reconhecimento em sentença deve ser liberado a ponto de criar situações danosas ao adversário, cuja razão na causa ainda não ficou descartada. É difícil conciliar o caráter satisfativo da antecipação e a norma que a condiciona à reversibilidade dos efeitos do ato concessivo (art. 273, § 2º). Some-se ainda a necessidade de preservar os efeitos da sentença que virá a final, a qual ficará prejudicada quando não for possível restabelecer a situação primitiva6 (grifei).

Sérgio Bermudes, precursor no exame dos dispositivos legais que implantaram a recente Reforma Processual civil, é taxativo ao afirmar:

Urge que a providência antecipada não produza resultados irreversíveis, isto é, resultados de tal ordem que tornem impossível a devolução da situação ao estado anterior. Assim dispõe o § 2º, que

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restringiu o âmbito da tutela antecipada, só a admitindo sem risco de irreversibilidade. Diante desse dispositivo, assaz limitador, não se admite a antecipação quando a irreversibilidade só puder ser reparada em dinheiro. É preciso que o quadro fático, alterado pela tutela, possa ser recomposto.7

Da mesma maneira, Ernane Fidélis dos Santos é enfático ao afirmar que “como a antecipação, em seus efeitos processuais, é provisória, nunca poderá ser concedida se não comportar reversibilidade. A irreversibilidade traduz-se na impossibilidade material de se voltarem as coisas ao estado anterior”8 (grifei).Assim também fala Calmon de Passos, para quem a “antecipação está autorizada havendo ‘fundado receio’ de que ocorrerá dano irreparável ou de difícil reparação e não será concedida se houver ‘perigo’ de irreversibilidade. Há diferença de monta entre uma e outra situação? Há, numa e noutra hipótese, o risco, isto é, algo entre a certeza, que elimina toda e qualquer dúvida, e a impossiblidade de firmar um juízo fundado e seguro. Há risco quando algo é dotado de alto grau de probidade, sem que se possa assegurar sua ocorrência, seja como fato, seja em termos do tempo em que o fato inelutável ocorrerá (v.g. a morte no seguro de vida). E todo risco importa perigo, donde me parece que nenhuma diferença se deve construir entre as duas hipóteses”. E conclui o processualista:

O grau de convencimento que autoriza, em termos de prova, a antecipação, é o mesmo que desautoriza, em caso de irreversibilidade. Foi acertado o comportamento do legislador? Em princípio, sim. Admitir a antecipação do que será irreversível é transformar em definitiva uma execução que dessa natureza não se pode revestir ou se colocar o executado, dada a falta da caução, sem garantia de ressarcimento.9

É certo que expressivas vozes doutrinárias têm interpretado o dispositivo legal (art. 273, § 2º) de sorte a abrandar a restrição: fala-se na necessidade de sua interpretação cum grano salis10 e também se recorre ao “princípio da proporcionalidade”11, para dirimir situações de confronto de valores de calores quando da concessão ou denegação da providência. De qualquer modo, a regra legal é expressa e, quando menos, configura questão estritamente jurídica, a desafiar exame pelo Superior Tribunal de Justiça, a quem cumpre velar pela aplicação e uniformidade da lei federal. Neste ponto, remete-se ao complemento constante da letra “C” e respectivos tópicos, infra.

3. O REQUISITO DA “PROVA INEQUÍVOCA”Mesmo que superado o pressuposto negativo da irreversibilidade, a antecipação da tutela reclama, segundo a dicção do caput do art. 173 do CPC, a “prova inequívoca” da alegação em que se funda o pedido. Conforme oportuna observação de Humberto Theodoro Júnior, “para não transformar a liminar satisfativa em regra geral, o que afetaria, de alguma forma a garantia do devido processo legal e seus consectários do direito ao contraditório e ampla defesa antes de ser o litigante privado de qualquer bem jurídico (CF, art. 5º, incs. LIV e LV), a tutela antecipatória submete a parte interessada às exigências da prova inequívoca do alegado na inicial”12 (grifei)Também aqui as interpretações que o dispositivo gerou não têm sido uniformes, tanto mais porque o caput do art. 273 do CPC emprega, ao lado da expressão “prova inequívoca”, a locução “verossimilhança da alegação”; o que, convenha-se, é um tanto contraditório13. Trata-se de estabelecer o grau de probabilidade exigido para a realização antecipada do direito material invocado pelo demandante.Cândido Dinamarco situa a “prova inequívoca” como algo superior ao fumus boni iuris exigido para a tutela cautelar14. Já Ernane Fidélis dos Santos, mais incisivo, afirma que “convencimento de verossimilhança nada mais é do que um juízo de certeza, de efeitos processuais provisórios, sobre os fatos em que se funda a pretensão, em razão da inexistência de qualquer motivo de crença em sentido contrário. Provas existentes, pois, que tornam o fato, pelo menos provisioriamente, indene de qualquer dúvida”. E conclui:Não havendo a prova concludente, mas sendo fortes os motivos da crença, a verossimilhança não deixa de existir, mas, neste caso, o juízo de máxima probabilidade cede lugar à simples possibilidade, mera aparência que pode revelar o fumus boni iuris, informador apenas da tutela cautelar15 (grifei).

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Quanto a esse requisito (“prova inequívoca”), considerando inclusive o contexto da consulta, tenho que dois aspectos devem ser ressaltados: primeiro, a configuração da prova inequívoca em face das conseqüências advindas da antecipação da tutela, isto é, da gravidade da providência deferida; segundo, a formação dessa prova e, por reflexo, dos motivos ou fundamentos em que lastreada a decisão que defere a antecipação.O primeiro desses relevantes aspectos foi destacado por Cândido Dinamarco, para quem a cognição sumária, que aí tem lugar, deve ser “dimensionada segundo um binômio representado (a) pelo menor grau de imunidade de que se reveste a medida antecipatória em relação à definitiva e (b) pelas repercussões que ela terá na vida e patrimônio dos litigantes”16.De fato, e complementando o pensamento de Dinamarco, parece correto afirmar que quanto maior o impacto gerado pela antecipação na esfera jurídica dos destinatários do provimento - notadamente do demandado - tanto maior o cuidado na colheita dos elemntos formadores da convicção, ainda que (e exatamente por ser) provisória. Esse também é o sentir de Nelson Nery Júnior:

Como a norma prevê apenas a cognição sumária, como condição para que o juiz conceda a antecipação, o juízo de probabilidade da afirmação feita spelo autor deve ser exigido em grau compatível com os direitos colocados em jogo (grifei).Esse aspecto conduz àquele outro, que diz com a formação da prova suficiente para que o juiz antecipe a tutela.Na doutrina nacional, Calmon de Passos - comentando o requisito da “prova inequívoca” - afirma que a antecipação da tutela “reclama, para que seja deferida, já seja possível decisão de mérito no processo em que ela é postulada, a ser concomitantemente proferida, ou já exista decisão de mérito, à qual se deseja acrescentar o benefício da antecipação, para que se torne, de logo, provisioriamente exeqüível”. Segundo esse mesmo processualista, para que seja deferida a antecipação, dever ser “obedecido, no procedimento em que se postula a antecipação, o princípio do contraditório. Não é possível sua concessão sem audiência da parte contrária, que deve responder no prazo que se prevê para a cautelar”17, embora se trate de posição reconhecidamente isolada, pelo extremo a que chega, ela revela importante e saudável preocupação com o modo pelo qual são coligidos os elementos formadores da convicção do juiz, para que possa deferir a antecipação. Embora de forma menos contundente, essa preocupação está presente na generalidade da doutrina pátria.Cândido Dinamarco observa que “o reduzido nível de imunidade das decisões concessivas de cautela antecipada (sua provisoriedade) não é motivo para descuidar das atividades instrutórias inerentes à indispensável cognição sumária. A probabilidade exigida pela lei ao falar em prova inequívoca significa que até a algum grau de investigações o juiz deve chegar”18 (grifei).Ernane Fidélis dos Santos, coerente com a posição assumida a propósito da “prova inequívoca”, afirma, mais assertivamente, que a “antecipação pode ser dada a qualquer momento do processo, ficando, a critério do juiz, ouvir ou não o réu, antecipadamente, se requerida como liminar, mas, se não houver a prova inequívoca, isto é, a que, desde já e por si só, permita a compreensão do fato como juízo de certeza, pelo menos provisória, não será possível, mormente quando o entendimento do juiz depende da colheita de outros elementos probatórios, para, depois, em análise do conjunto, extrair a conclusão”19 (grifei).Do quanto exposto, é possível afirmar que a “prova inequívoca” que autoriza a antecipação da tutela não está configurada - tanto mais quando apta a gerar importantíssimas repercussões na vida e patrimônio do demandado - quando a formação da convicção dependa ainda da colheita de outros elementos probatórios não trazidos na inicial, reclamando, portanto, cognição mais aprofundada e cuidadosa.É tempo, portanto, de indagar se a prova colhida exclusivamente no inquérito civil, não presidido pelo contraditório e, portanto, sem qualquer intervenção ou contribuição do demandado, seria apta a configurar “prova inequívoca”, a ensejar a antecipação de tutela. É disso que se passa a tratar.

b) INQUÉRITO CIVIL E CONTRADITÓRIO

1. PROCEDIMENTO PROBATÓRIO E DEVIDO PROCESSO LEGAL: O CONTRADITÓRIO COMO CONDIÇÃO DE EFICÁCIA DA PROVA

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O processo civil moderno é banhado pela cláusula do devido processo legal, assegurada expressamente pela Constituição da República (art. 5º, inciso LIV), vista - como já tive oportunidade de afirmar - não apenas sob o enfoque individualista da tutela de direitos subjetivos das partes, mas, sobretudo, como conjunto de garantias objetivas do próprio processo, como fator legitimante do exercício da jurisdição 20. Tais considerações, cumpre desde logo observar, são igualmente válidas para o âmbito administrativo (certo que com as peculiaridades de que se reveste essa função estatal), quer pela expressa previsão do texto constitucional, quer pela ênfase que vem recebendo da autorizada doutrina a “processualidade” do direito administrativo 21.Assim, garantias como as da defesa, do contraditório, da igualdade e par condicio estão à base da regularidade do processo e da justiça das decisões, não podendo disso escapar o direito à prova que, à evidência, nada mais é do que uma resultante do contraditório. A esse propósito, já tive a oportunidade de escrever:

Não pode ficar imune a tais garantias o direito à prova, que nada mais é do que uma resultante do contraditório: o direito de contradizer provando. E assim como o contraditório representa o momento da verificação concreta e da síntese dos valores expressos pelo sistema de garantias constitucionais, o modelo processual informado nos princípios inspiradores da Constituição não pode abrir mão de um procedimento probatório que se desenvolva pelo respeito do contraditório.22 (grifei)

Cândido Dinamarco também já teve oportunidade de relacionar contraditório e prova, situando-os como fatores determinantes da efetividade do processo, quanto ao respectivo modo de ser:

Entre as atividades das partes em contraditório e as inquisitivas do juiz, tem-se por muito importante a instrução probatória, que no processo de conhecimento é vital para a efetividade da ação ou da defesa, bem como para o correto exercício da jurisdição. Fala-se até no ‘‘direito à prova’’ e ele é algo que integra o complexo de faculdades e poderes enfeixados ora no conceito de ação, ora no de defesa.23 (grifei)

Na relação entre contraditório e prova, aquele emerge como verdadeira condição de eficácia desta. Conforme já tive oportunidade de assinalar, como regra, tanto será viciada a prova colhida sem a presença do juiz, quanto aquela colhida sem a presença das partes. Daí, inclusive, poder afirmar-se que, ao menos em princípio, não têm eficácia probatória no âmbito jurisdicional os elementos coligidos em procedimentos administrativos prévios ou mesmo em outros processos jurisdicionais, se a colheita não contar com a possibilidade real e efetiva de participação dos interessados, em relação aos quais se pretende editar provimento de caráter vinculante e cuja esfera jurídica possa vir a ser atingida.24 Tomo a liberdade de voltar a invocar minha anterior manifestação:

E é importante salientar que o princípio da ineficácia das provas que não sejam colhidas em contraditório não significa apenas que a parte possa defender-se em relação às provas contra ela apresentadas: exige-se, isso sim, que seja posta em condições de participar, assistindo à produção das mesmas enquanto ela se desenvolve.25 (grifei)

A ineficácia da colheita de elementos de prova desvinculada do contraditório decorre, portanto, da infringência a princípio constitucional, que desempenha função de garantia não apenas para as partes em atual ou potencial litígio, mas do correto exercício da função estatal.

2. A PROVA NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO E PARTICULARMENTE NO INQUÉRITO CIVILMuito embora as idéias anteriormente expostas sejam aplicáveis ao campo do processo jurisdicional, o exercício do poder no âmbito administrativo está igualmente submetido aos postulados do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Como bem acentua Odete Medauar, “entre administrativistas e processualistas, registra-se tendência à aceitação de uma processualidade que vai além daquela vinculada à função jurisdicional, admitida, assim, a processualidade no âmbito da Administração Pública”. E mais:

O processo administrativo encontra respaldo expresso e direto no inc. LV do art. 5º da CF de 1988,

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que impõe o contraditório e ampla defesa, com seus desdobramentos, em situações nas quais se atribuem, a pessoas, condutas ou atividades suscetíveis de sanções (acusados).26 (grifei)

Certo que há “elementos caracterizadores do processo administrativo, decorrentes, em especial, de suas próprias finalidades e das particularidades da função administrativa”; contudo, os escopos de garantia, de legitimação e controle do poder, de correto desempenho da função, de justiça e de democratização estão presentes tanto no processo jurisdicional, quanto no administrativo 27, pois num e noutro regula-se o exercício do poder estatal.A esse propósito, inclusive, já tive a oportunidade de me manifestar, destacando a tendência rumo à jurisdicionalização do processo administrativo. Trata-se de relevante aperfeiçoamento do Estado de Direito, “correspondendo ao princípio de legalidade a que está submetida a administração pública e aos princípios do contraditório e da ampla defesa, que devem preceder toda e qualquer imposição de pena” 28. A Constituição de 1988, aliás, foi explícita, ao estatuir em seu art. 5º, LV:

Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.Conforme já tive a oportunidade de salientar, é conhecida a existência, no plano administrativo processual, de processos de natureza punitiva (que visam à aplicação de sanções administrativas) e não-punitiva. A primeira categoria desdobra-se em processos externo e interno, conforme o destinatário da sanção seja, respectivamente, pessoa sujeita ao poder público em geral (primeiro caso) e servidor público (segundo caso). Além disso, cuidei de ressaltar que as exigências constitucionais do contraditório e ampla defesa se fazem presentes sempre que, nos processos administrativos - punitivos ou não - haja litigantes. E, a propósito desse conceito, cumpre reafirmar o seguinte:

Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesses. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda, e não a lide. Pode haver litigantes - e os há - sem acusação alguma, sem qualquer lide. (grifei) 29

Portanto, todas essas considerações - a propósito da prova e da necessária observância do contraditório - são aplicáveis a todas as hipóteses em que, havendo exercício de poder estatal, esteja este submetido à cláusula do devido processo legal e respectivos desdobramentos. Cumpre determinar, apenas, se essas mesmas considerações se aplicam em tema de inquérito civil, destinado à colheita de elementos para a propositura de ação civil pública ou à celebração de compromisso de ajustamento.Embora se reconheça ser voz corrente que esse inquérito civil tem natureza inquisitorial, é inegável que nele se apresenta - ainda que em estado de latência - um conflito de interesses, sem que para isso, conforme ressaltado, seja necessária a existência de uma acusação formal.Portanto, quando se trata de aproveitar, em juízo, a prova coligida nesse procedimento administrativo, é imprescindível a instauração do contraditório, sob pena de afronta à garantia constitucional anteriormente mencionada. E, conforme anteriormente ressaltado, a exigência do contraditório, aí, não significa apenas que a parte possa defender-se em relação às provas contra ela apresentadas; exige-se que o interessado seja posto em condições de participar, assistindo à produção destas enquanto ela se desenvolve.A posição encontra eco na doutrina nacional. Nesse sentido, Nelson Nery Júnior afirma ser “salutar que o MP faculte aos interessados a possibilidade de se manifestarem no IC (inquérito civil), juntando documentos, pareceres técnicos, fornecendo informações, etc.” e, mais adiante, observa:Prova recolhida no IC, se para sua realização não tiver havido participação dos interessados, precisa ser refeita ou contrastada em juízo, em obediência ao princípio constitucional do contraditório 30 (grifei).

Essa mesma orientação, diga-se, é encampada pelo próprio Ministério Público. Com efeito, em “Encontro sobre ação civil pública”, promovido pela Escola Superior do Ministério Público do

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Estado do Paraná e que teve lugar em Curitiba - PR (26 a 28/7/95), por mim coordenado, formalizou-se a seguinte conclusão:

O inquérito civil é inquisitório, mas o MP pode instaurar o contraditório para efeito de compromisso de ajustamento e aproveitamento da prova em juízo (grifei).

c) CONCLUSÃOContraditório e ‘‘prova inequívoca’’ para fins de antecipação de tutelaConfrontando-se o requisito legal da “prova inequívoca” (CPC, art. 273, caput), de um lado, e a exigência constitucional do contraditório como fator de eficácia da prova (CF, art. 5º, LV), de outro lado, é lícito concluir, conforme já se houvera adiantado supra (“A”, III), que a antecipação de tutela não pode ser concedida quando a convicção esteja fundada exclusivamente em elementos formados pelo próprio requerente - sem o crivo do contraditório - e na dependência de outros elementos probatórios não trazidos na inicial.Não é preciso sequer encampar a tese de que a “prova inequívoca” é aquela necessária para o decreto de procedência da demanda (tese defendida por Calmon de Passos) para repudiar a antecipação de tutela (com efeitos irreversíveis) fundada tão-somente em elementos de prova formados pelo próprio Ministério Público e que, por si sós, jamais autorizaram um decreto judicial que impusesse a satisfação do direito alegado pelo demandante. Portanto, tenho como certo que a “prova inequívoca” necessária e suficiente para a antecipação de tutela é exclusivamente aquela formada em contraditório.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CORRUPÇÃO BRASILEIRA E OS PROCEDIMENTOS JURÍDICOS QUE A SOCIEDADE DISPÕE PARA COMBATÊ-LADario Sandro de Castro Souza

INTRODUÇÃO

A presente temática de estudo foi desenvolvida para atender exigência do IV Concurso Nacional de Monografias, realizado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, através da Assessoria de Comunicação Social. A escolha do tema analisa a corrupção brasileira como sendo a pior das misérias do país, uma vez que esse fenômeno nasceu com a própria descoberta do Brasil pelos portugueses. Porém, deve-se observar que na verdade o Brasil não foi descoberto, e sim “conquistado” pelo povo lusitano.O principal problema de pesquisa consiste em analisar a corrupção a partir das possíveis implicações dessas práticas corruptivas cometidas por pessoas inescrupulosas, que detiveram o poder na Terra Brasilis ao longo desses quinhentos anos.O pressuposto teórico parte de uma análise crítica que procura investigar as múltiplas conexões existentes entre corrupção e miséria. Justifica-se pela necessidade de verificação teórica, que envolve a temática em questão, buscando definir a relação entre os atos corruptivos e o crescimento da miséria no país, na qual envolve abordagens transdisciplinares entre o campo jurídico e o sociológico.A metodologia usada deu-se através de pesquisa bibliográfica e de campo, onde o presente trabalho foi dividido da seguinte maneira: – O primeiro capítulo aborda a origem e o significado da palavra “corrupção”.– O segundo discorre sobre a evolução histórica da corrupção brasileira e os procedimentos

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jurídicos que a sociedade dispõe para combatê-la.– Já o terceiro e último capítulo analisa criticamente a pesquisa de campo através dos resultados obtidos. Desta maneira, é muito oportuno iniciar essa presente monografia com um pensamento bastante interessante de Cármem L. A. Rocha: ‘‘O Brasil, hoje, tem dois grandes males prioritários: a miséria e a corrupção”. E ela conclui dizendo que: “A corrupção conduz ou exagera o estado de miséria de um povo”. (Princípios Constitucionais da Administração Pública, p. 215).

CAPÍTULO ISIGNIFICADO E ORIGEM DO TERMO “CORRUPÇÃO”

O termo “corrupção” é compreendido, de uma maneira mais simples, como sendo sinônimo dos seguintes substantivos femininos: “depravação” e “devassidão”. Onde, no primeiro caso, surge a partir do verbo “depravar”, configurando-se, deste modo, a ação de corromper, ou seja, perverter no sentido físico ou moral. Já no segundo caso o substantivo feminino devassidão advém de um procedimento libertinoso, além de ser formado apenas pela corrupção moral, e, tendo a luxúria como conseqüência, que, por sua vez, se configura numa corrupção de origem costumeira. No Direito brasileiro, segundo Oliveira (1994:38), a corrupção pode adquirir duas acepções diferentes: “perversão” e “suborno”. Desta maneira, na primeira acepção, ele diz que: “com tal sentido, corromper é induzir à libertinagem, tal como acontece no crime de corrupção de menores”. Por outro lado, na acepção de suborno, comenta ele: “corromper é, então, pagar ou prometer algo não devido para conseguir realização de ato de ofício; ser corrompido é aceitar vantagem patrimonial indébita”. A corrupção também foi citada no código de Hamurabi - primeiro código escrito - de maneira muito superficial. Todavia, ele é importante por ter admitido a culpabilidade como sendo uma das características primordiais na configuração desse tipo de crime. Entretanto, nos três últimos séculos que precederam a era cristã, os gregos consideravam como sendo agentes de delitos corruptivos todos aqueles que impedissem o perfeito desenvolvimento da justiça. Ademais, classificavam, ainda, alguns tipos de crimes cometidos por funcionário, ou terceiros, contra a administração pública, tais como: o peculato (crimes contra o patrimônio); o abuso de poder (injustiças das autoridades) e a corrupção (prática ativa ou passiva de corrupção cometidas por funcionários públicos). Além do mais, deve-se observar que, nesse período, as ações populares já eram permitidas aos cidadãos, isto é, podiam manifestar-se contra qualquer um daqueles atos delituosos. Porém, eram usadas, segundo Oliveira: “como arma de defesa da pólis” (ibid, p. 17). Para os romanos, o crime de corrupção recebeu um cuidado especial. Destarte, surgiram, primeiramente, leis que obrigavam os funcionários públicos a devolverem tudo aquilo que ganhassem ou recebessem indevidamente. Onde se deve ressaltar que, nesse último caso, poderia ser comprovado pelo pagamento de propina, feito por terceiros, a agentes da administração pública. Esses delitos, todavia, poderiam ser punidos através de ações civis que tinham como principal argumento o enriquecimento ilícito de funcionários corruptos. Além disso, no segundo momento, período constituído entre o final da República e começo do Império Romano, as ações civis chegaram à esfera do direito penal, ou seja, transformaram-se em ações penais. Deste modo, as leis passaram a ter uma rigidez maior, e apareceram “as sanções penais de banimento, confisco e morte” (ibid, p. 26). Deve-se observar, também, que o antigo Direito Romano procura apenas alcançar uma moralização da administração pública, e não uma punição mais grave. Essa é uma realidade que ainda continua viva aqui no Brasil. Desta forma, as várias denominações ou os inúmeros sentidos que a palavra “corrupção” pode adquirir estarão sempre condicionados a alguma forma de ilegalidade de pessoas relacionadas, direta ou indiretamente, a órgãos governamentais ou a empresas públicas e privadas. Além do mais, vê-se, assim, que a corrupção nasceu com o próprio surgimento da vida em comunidade.

CAPÍTULO II EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CORRUPÇÃO BRASILEIRA E OS PROCEDIMENTOS

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JURÍDICOS QUE A SOCIEDADE DISPÕE PARA COMBATÊ-LA

A corrupção, embora repugnante, é uma prática bastante antiga ao longo da história brasileira. Além disso, as autoridades responsáveis pela administração pública sempre buscaram tirar proveito de seus cargos. Desta maneira, passaram e passam boa parte de suas vidas planejando artifícios e artimanhas, cada vez mais sofisticados, para usurpar não apenas os cofres públicos, mas também a confiança de todos os cidadãos. Desde a época em que os portugueses “conquistaram” o Brasil até os dias atuais, podem ser constatadas as mais diversas formas de corrupção. É importante observar, desta forma, que com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, a colônia passou a ter status, ou seja, igualou-se à Metrópole. Além disso, os governantes portugueses determinaram uma inversão de valores morais, principalmente através dos cortesãos, pois estes deixaram várias lições, eticamente contestáveis, muito difíceis de serem dissolvidas. A conduta moral do imperador D. Pedro II, entretanto, é lembrada como a mais íntegra, isto é, de total probidade. Desta forma, durante o segundo império, graças ao comportamento honesto do imperador, possibilitou, segundo Fagundes (1982:16), que:

... a administração pública fosse poupada a escândalos, não somente a grandeza moral dos estadistas que fizeram a independência e consolidaram o Estado brasileiro, como a presença austera do segundo Imperador, a impor, mediante atos oficiais, comportamento probo na gestão da coisa pública, e a oferecer exemplo pessoal de comedimento nas próprias despesas da Coroa.

Os casos de corrupção, durante o Segundo Reinado, foram raríssimos, e os poucos descobertos eram punidos severamente. Todavia, Villa (1996:104) recorda em seu livro, A Queda do Império, um fato ocorrido em 1866, onde:

José Rodrigues, que exercia uma função de confiança no Ministério da Fazenda, falsificou a assinatura do ministro Conselheiro Carrão. Descoberto, foi condenado a vinte anos de prisão. O falsário que quis aplicar um golpe de 12 contos de réis em 1866 no tesouro do Império, paradoxalmente, acabou por ser transformado em influente personagem da República, chegando a ser nomeado por Rui Barbosa para ser delegado do Tesouro Nacional em Londres, em 1890.

A Constituição Imperial, como não deveria deixar de ser, continha em seu texto rejeições àquelas condutas que contrariavam a ética dos juízes e oficiais de justiça, quando em exercício de suas funções. Além disso, a ação popular também foi citada pela primeira vez, antes da Magna Carta de 1934, como norma constitucional brasileira, no século passado, ou seja, na Lei Máxima do período imperial. Durante esse período, todavia, a corrupção manifestava-se de uma maneira singular, pois não aparecia de forma explícita pelos atos do regente e de seus subordinados, mas através do sofrimento das classes menos favorecidas, como os pequenos comerciantes e profissões menos valorizadas, isso sem falar nos escravos. Assim, o historiador Shmidt (1998:159), afirma que:

... o Estado imperial não era neutro... . Ele administrava o país a favor dos interesses dos grandes proprietários, ...para manter os outros grupos sociais bem quietinhos no seu canto. Ele era um instrumento da classe dominante.

Surge juntamente com a República, em 1889, uma nova expectativa em relação aos princípios da moralidade pública. Todavia, as oligarquias passaram a dominar o Estado, onde o coronelismo impôs seu domínio sobre o regime, enquanto que o clientelismo viciava o poder. Desta forma, os interesses privados rapidamente se espelharam na Administração Pública. E, conseqüentemente, esse comportamento moralmente enfraquecido, ou fragilizado, proliferou-se durante os regimes ditatoriais de 1937 e 1964, que foram períodos marcados por uma corrupção exacerbada. Os grupos dominantes, com isso, não buscavam atender os anseios das classes menos favorecidas, ou seja, o país vivia numa verdadeira penumbra, onde a conduta ética era totalmente desprezada, fator que, sem nenhuma dúvida, fortaleceu a corrupção brasileira naquele período.Em 1930, fez-se uma contestação revolucionária almejando um melhoramento da conduta moral na administração e na política do país, o que não era, e ainda não é, uma missão nada fácil. Desta

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maneira, o sistema eleitoral, bem como as formas de fiscalização e o controle do exercício do poder foram, naquela ocasião, modificados. Entretanto, a falta de empenho dos governantes na elaboração do novo diploma constitucional, de maneira que o Estado ficasse submetido juridicamente ao verdadeiro interesse popular, dificultou o avanço dessa moralização.Logo, a Constituição Federal de 1934 introduziu a ação popular estabelecendo que: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”. Onde se deve observar que essa lei marcou, juridicamente, uma nova fase, pois, só a partir de então, a população pôde contar com um instrumento realmente capaz de combater os governantes desonestos.A ditadura de 1937 traçou novos caminhos para a corrupção, isto é, fortaleceu-a, como não poderia deixar de ser, já que se tratava de um regime antidemocrático. Assim, todos os direitos ficam subentendidos e controlados pelo ditador. Com isso, os cargos públicos ficaram vinculados exclusivamente à vontade de Getúlio Vargas, bem como todos os benefícios privados pretendidos pelo uso dos recursos públicos dependiam de um parecer seu. Desta maneira, a Lei Máxima de 1937 apresentava, segundo Vicente e Dorigo (1998:364), as seguintes características:

... centralização política, com o fortalecimento do poder do presidente; extinção do legislativo, cujas funções passariam a ser exercidas pelo executivo; subordinação do judiciário ao executivo....

Com a queda de Vargas, em 45, a ação popular foi reintroduzida na Carta Magna de 1946, já que tinha sido excluída durante a ditadura de 37. Desta forma, buscou-se, nessa nova Ordem Constitucional, iniciativas para combater a corrupção administrativa. Assim, no art. 141, § 31, da Carta Magna de 46 diz que: “A Lei disporá sobre o seqüestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica”. Isto é, essa nova Constituição acrescentou, na norma que rege sobre ação popular, a possibilidade de as autarquias e de as sociedades de economia mista serem, também, alvos de controle popular. Por outro lado, segundo Pazzaglini, Elias Fazzio (1996:55-56), enriquecimento ilícito é:

... a obtenção de vantagem econômica, entendida esta como qualquer modalidade de prestação, positiva ou negativa, de que se beneficie quem aufira enriquecimento “indevido” e a vantagem patrimonial não autorizada por lei.

No governo de Jânio Quadros, em 1961, o Brasil teve um presidente disposto a lutar pela moralidade e combater a corrupção. Onde ele dizia que varreria a corrupção da cidade, mais tarde do Estado e finalmente do País. Entretanto, o que se viu foi preocupar-se com assuntos banais, como, por exemplo, a proibição do uso de biquínis nas praias, brigas de galo, entre outras, ou seja, só serviu para incentivar e fortalecer mais ainda os atos corruptivos que, por sua vez, cominaram com o regime militar. O regime autoritário, entretanto, como ficou constatado por todos os países que um dia se submeteram a ele, é considerado o ambiente perfeito para a proliferação desse mal, chamado corrupção. Desta forma, comparando-se o índice dos atos corruptivos durante a ditadura militar com o dos governos civis, foi muito oportuna a observação do mestre em direito Habib (1994:384), quando disse que:... num regime forte as instituições democráticas de nada valem para combatê-la, e as denúncias, quando ocorrem, são facilmente controladas pela “censura” imposta pelo “Sistema”.

Já a Constituição Federal de 1967 manteve a ação popular, mas, ao contrário da Constituição de 1946, ficaram obscurecidas em seu texto as entidades que realmente poderiam ter os seus atos impugnados em ação popular, ou seja, apenas mencionava que seriam elas “entidades públicas”. Além disso, essa Magna Carta agravou a penalidade, através da cassação dos direitos políticos, de todos aqueles que abusassem das garantias individuais. Em dezembro de 1968, a Constituição de 67 sofreu um ataque monstruoso do chamado Ato Institucional n. 5 (AI-5), onde colocaram como o principal motivo para essa medida a busca pela reintegração do bem moral. Entretanto, ao invés disso, o que se viu foi um retorno às mais imorais e

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injustas práticas políticas na administração pública. Assim, o Presidente da República passou a deter todos os poderes, como por exemplo: poderia decretar recesso no Congresso Nacional ou, até mesmo, limitar o Poder Judiciário. Isto é, diminuir a influência dos outros dois Poderes, e foi exatamente o que se viu acontecer durante esse período de ditadura militar. Apesar de a corrupção assolar o Brasil há bastante tempo e ser um verdadeiro câncer social, só agora, na Magna Carta de 1988, o princípio da moralidade administrativa foi expressamente adotado. Com isso, esse princípio responsabiliza, também, o presidente da República pelos atos irregulares que vier a cometer, argüindo-se, para isso, as possíveis sanções penais. A probidade administrativa consiste na busca incansável do administrador para conseguir, sempre que possível, beneficiar o erário através de ações vantajosas. Isto é, todos os agentes públicos devem procurar ter, antes de mais nada, uma conduta íntegra e honesta, pois são indispensáveis para que se atinja um bem comum, ou seja, o melhor para o desenvolvimento do seu povo ou, por que não dizer, do seu país. Desta forma, conforme assegura a nova Lei Maior de 1988, o ato do Presidente da República que atentar contra a probidade na administração é considerado crime de responsabilidade. Ademais, como bem define Meirelles (2000:91):

...o dever do probo está constitucionalmente integrado na conduta do administrador público, como elemento necessário à legitimidade de seus atos.

A Constituição de 1988, desta forma, revelou um novo indivíduo, fundamentado na cidadania. E, como direito do cidadão, a ação popular é garantida nessa nova Carta Magna, ou seja, os atos do administrador público, das autarquias ou das demais instituições que prestem serviços ou estabeleçam qualquer tipo de relacionamento com eles, poderão ver decretada sua nulidade, através do julgamento de ações populares. Todavia, para isso, deve-se observar algumas exigências legais, tais como: o impetrante ser cidadão e possuidor de título eleitoral; haver a ilegalidade do fato praticado e, por último, constatar prejuízos ao patrimônio público. Mas, caso falte um desses três requisitos, a ação popular não poderá atingir seu objetivo, ou seja, não terá nenhum sucesso.

CAPÍTULO IIIPESQUISA DE CAMPO

3.0 - UNIVERSO PESQUISADOA pesquisa de campo do presente trabalho monográfico foi realizada na cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, no período de 20 a 29 de março do presente ano de 2000. Teve como público alvo os estudantes universitários e os estudantes do ensino médio de escolas públicas e particulares. Todavia, através de uma amostragem de 180 questionários, conseguiu-se obter 167 respondidos de maneira correta, possibilitando, assim, analisar todas as perguntas levantadas junto aos entrevistados. Deve-se ressaltar que desses 167 questionários, 72 foram respondidos por universitários, e 95 por estudantes do Ensino Médio, onde 54 destes são de escolas particulares e 41 de escolas públicas. Ademais, a idade dos entrevistados oscilou entre 16 a 45 anos. Deste modo, com base nessa pesquisa de campo, pôde-se evidenciar algumas das causas responsáveis pela corrupção nos órgãos públicos e nas empresas brasileiras, bem como o ponto de vista dos entrevistados em relação a esse problema social.

3.1 - Corrupção, um Mal Social3.1.1 – Análise descritiva do primeiro gráfico

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Buscou-se descobrir, nesta pesquisa de campo, quais eram as principais conseqüências causadas pela corrupção à sociedade brasileira. Nesse sentido, o aumento do desemprego no país foi apontado, conforme demonstra o gráfico acima, letra (a), treze por cento (13%) dos universitários, vinte e sete por cento (27%) dos estudantes de escolas particulares e vinte por cento (20%) dos estudantes de escolas públicas. Todavia, dezessete por cento (17%) dos universitários, oito por cento (8%) dos estudantes de escolas particulares e dezesseis por cento (16%) dos estudantes de escolas públicas acharam que o elevado número de miseráveis (letra b do gráfico) era a pior conseqüência deixada pelas práticas corruptivas. Mas, o baixo valor do salário mínimo (letra c do gráfico) foi defendido por seis por cento (6%) dos universitários, doze por cento (12%) dos estudantes de escolas particulares e nove por cento (9%) dos estudantes de escolas públicas, como sendo um outro fator oriundo da corrupção. Entretanto, para sessenta e quatro por cento (64%) dos universitários, cinqüenta e três por cento (53%) dos estudantes de escolas particulares e cinqüenta e cinco por cento (55%) dos estudantes de escolas públicas consideraram que a corrupção contribui para o crescimento da precariedade dos sistemas de saúde, segurança e educação (letra d do gráfico).

3.1.2 – Análise do primeiro gráfico da pesquisa de campoO primeiro questionamento dessa pesquisa procurou analisar não apenas se essa corrupção, nos órgãos públicos e em empresas ligadas direta ou indiretamente ao governo brasileiro, atingia a sociedade de maneira maléfica, mas quais teriam sido as principais seqüelas deixadas por ela.O aumento do desemprego no país foi apontado como uma das conseqüências diretas desses atos corruptivos, realizados por diversos agentes públicos, ao longo da história do Brasil. E que se agravou bastante nesse atual governo comandado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Isto é, sua política neoliberal, voltada para uma economia com pouca, ou nenhuma, interferência do Estado no mercado econômico, tem proporcionado um crescimento substancial do número de desempregados no país. Ademais, outro fator oriundo também dessa política antipopular praticada por FHC, e bastante prejudicial a muitos brasileiros, é o baixo salário mínimo, pois o atual valor, estipulado pelo Chefe do Executivo Federal, através de medida provisória e que entrou em vigor a partir de abril desse ano, pode ser considerado insignificante ou absurdo, visto que é praticamente impossível uma pessoa viver e manter sua família com dignidade ganhando apenas R$ 151,00 (cento e cinqüenta e um reais), ou seja, de boa idéia – paralelo feito a uma antiga propaganda de um aguardente nacional, com o slogan: “caninha cinqüenta e um, uma boa idéia” - não tem nada. A precariedade dos sistemas públicos de educação, saúde e segurança também foram citados como uma outra conseqüência advinda dessa corrupção. Observando-se, neste caso, que há uma boa chance de algumas empresas privadas, aliadas com administradores públicos inescrupulosos, tirarem “proveito da situação” para enriquecerem ilicitamente, como, por exemplo, desviando dinheiro público através de licitações superfaturadas.Por outro lado, a miséria é um dos mais graves e assustadores resultados de qualquer nível ou prática corruptiva, segundo os entrevistados, uma vez que mostra o verdadeiro descaso das autoridades para com a população de um país, como é o caso brasileiro. Quase a metade das pessoas vivem em estado de absoluta pobreza. Configura-se, desta maneira, um verdadeiro apartheid.

3.2 - Falta de Liberdade Econômica3.2.1 – Análise descritiva do segundo gráfico

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Procurou-se encontrar os motivos que fazem com que um país tão grande e rico como o Brasil ainda seja influenciado por outros países. Assim, vinte e quatro por cento (24%) dos estudantes de escolas públicas, dezenove por cento (19%) dos estudantes de escolas particulares e dez por cento (10%) dos universitários justificaram dizendo que isso ocorre por fatores históricos, conforme o gráfico acima (letra a). Porém, dezoito por cento (18%) dos estudantes de escolas públicas, vinte e dois por cento (22%) dos estudantes de escolas particulares e vinte por cento (20%) dos universitários acharam que os políticos brasileiros são dominados pelas autoridades de países mais ricos (letra b do gráfico). Por outro lado, trinta e seis por cento (36%) dos estudantes de escolas públicas, trinta e cinco por cento (35%) dos estudantes de escolas particulares e cinqüenta por cento (50%) dos universitários apontaram a corrupção dos governantes e dos políticos brasileiros (letra c do gráfico) como sendo responsáveis por esse mal. E, por fim, vinte e dois por cento (22%) dos estudantes de escolas públicas, vinte e quatro por cento (24%) dos estudantes de escolas particulares e vinte por cento (20%) dos universitários consideraram que isso ocorre por falta de uma política séria (letra d do gráfico).3.2.2 – Análise do segundo gráfico da pesquisa de campoOutra pergunta levantada durante a pesquisa de campo tinha por objetivo saber os motivos que fazem com que um país tão grande e rico feito o Brasil ainda não tenha conseguido sua liberdade econômica. A corrupção dos governantes, assim como dos demais políticos, foi apontada como uma das principais causas para esse “atrofiamento econômico”. Deste modo, o caráter imoral de muitos homens públicos, eleitos exclusivamente para garantir o desenvolvimento de seu povo, foi repugnado e reprovado, de forma acintosa, por muitos dos alunos entrevistados. Além disso, tem-se a falta de uma política séria no país como outro motivo agravante para esse mal, pois o que se vê é apenas uma pequena minoria sendo privilegiada a cada nova gestão administrativa e legislativa, ou seja, a grande parte da população tem sido, simplesmente, deixada de fora dos planos governamentais. A influência de países mais ricos, principalmente os Estados Unidos da América e os integrantes da Comunidade Econômica Européia, também é mais uma causa apontada por essa dependência econômica brasileira, já que esse fenômeno pode ser verificado com uma certa freqüência, por exemplo, através das constantes “visitas” dos agentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao país, onde estes ditam as medidas que a política econômica do Brasil deve seguir. Segundo pôde ser constatado com a pesquisa, os diversos fatores históricos também estão inteiramente ligados a essa dependência financeira, ou seja, esse problema começou exatamente com a proclamação da República, quando o país herdou de Portugal uma pequena dívida externa na bagatela de dois milhões de libras esterlinas. Situação essa que se agravou durante a ditadura militar, e que piorou, ainda mais, nesses últimos oito anos. Isto é, tem-se uma dívida externa que pode ser, simplesmente, considerada como impagável (238 bilhões de dólares), uma vez que, atualmente, o país já sofre para honrar os juros cobrados pelos seus credores. Nos últimos 4 anos o Brasil pagou 126 bilhões de dólares, só em juros da dívida externa.

3.3 - Órgãos Governamentais, Empresas e a Corrupção3.3.1 – Análise descritiva do terceiro gráfico

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Através da pesquisa de campo, procurou-se saber se os entrevistados achavam que os órgãos governamentais, as empresas públicas e outras ligadas direta ou indiretamente à administração pública eram responsáveis pela corrupção brasileira. Oitenta e cinco por cento (85%) dos estudantes de escolas particulares, oitenta e nove por cento (89%) dos universitários e oitenta e sete por cento (87%) dos estudantes de escolas particulares responderam que sim, conforme a letra a do gráfico acima. Contudo, quinze por cento (15%) dos estudantes das escolas particulares, onze por cento (11%) dos universitários e treze por cento (13%) dos estudantes de escolas públicas acharam que não (letra b do gráfico).

3.3.2 – Análise do terceiro gráfico da pesquisa de campoUm dos quesitos analisados, durante o desenvolver dessa pesquisa, foi a questão do envolvimento de órgãos governamentais e empresas públicas com o setor privado. Isto é, se aqueles poderiam manter ligações fraudulentas, durante as negociações, com este. Desta forma, perguntou-se aos entrevistados o que eles achavam disso.A grande maioria dos entrevistados respondeu que sim e justificou suas respostas dizendo que essa prática é bastante comum no cenário da administração pública brasileira, pois poder-se-ia evidenciar isso através das várias denúncias de atos corruptivos que são, diariamente, divulgadas pela imprensa tanto nacional quanto internacional. O caso Celso Pitta, atual Prefeito da cidade de São Paulo, no qual está sendo apurado seu envolvimento em fraudes com diversos empresários paulistas, que pode ser dado como um bom exemplo da atitude bizarra desses “donos do poder” no país. Além disso, relembraram, também, do recente episódio vergonhoso pelo qual o país passou, ou seja, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O descaso de seu governo com o dinheiro público, manifestado pela concessão de benefícios a grupos privados e a ele próprio, fez com que a sociedade se mobilizasse para que fosse possível tirá-lo da presidência. Todavia, a falta de provas inviabilizou sua condenação, e é exatamente isso que os alunos entrevistados não esperam que se repita com o processo do atual Prefeito da maior cidade brasileira.

3.4 – Motivos Responsáveis pela Existência de Corruptos 3.4.1 – Análise descritiva do quarto gráfico

A pesquisa de campo também buscou evidenciar os motivos responsáveis pela existência de corruptos no Brasil. Desta maneira, quinze por cento (15%) dos universitários, dezenove por cento (19%) dos estudantes de escolas particulares e vinte e sete por cento (27%) dos estudantes de escolas públicas apontaram a imaturidade política da grande maioria da população, conforme o gráfico acima (letra a), como sendo o principal fator. Entretanto, a falta de caráter dos políticos (letra b do gráfico) foi a resposta de cinqüenta e seis por cento (56%) dos universitários, cinqüenta e

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quatro por cento (54%) dos estudantes de escolas particulares e quarenta e quatro por cento (44%) dos estudantes de escolas públicas. Mas, dez por cento (10%) dos universitários, oito por cento (8%) dos estudantes de escolas particulares e onze por cento (11%) dos estudantes de escolas públicas acharam que a interferência de países mais ricos na administração brasileira (letra c do gráfico) era o maior motivo para a propagação dessa prática corruptiva. Contudo, a ineficiência das leis para coibir a corrupção (letra d do gráfico) foi a resposta de dezenove por cento (19%) dos universitários, também dezenove por cento (19%) dos estudantes de escolas particulares e dezoito por cento (18%) dos estudantes de escolas públicas.

3.4.2 – Análise do quarto gráfico da pesquisa de campo Outra indagação feita aos entrevistados visava encontrar alguns dos motivos responsáveis pela existência de corruptos aqui no Brasil, e por que é tão fácil sua propagação. Isto é, quais são exatamente os principais fatores causadores dessa perpetuação, praticamente ilesa, durante tanto tempo.A ineficácia das leis, ou seja, que coíbam essa prática, foi apontada como uma das principais causas para essa constante imoralidade dos homens públicos brasileiros. Deve-se ressaltar que, embora o grande número de normas destinadas a conter o avanço da corrupção, seus agentes geralmente encontram alguma brecha na lei e terminam escapando da punição sem nenhum problema. Isto é, acabam, muitas vezes, sem sofrer uma sanção mais rígida, e, quando muito, recebem apenas leves advertências. Desta forma, quando são acusados de terem cometido atos irregulares, esses corruptos podem solicitar alguns recursos, até que se chegue a uma conclusão definitiva de um dado processo que apure, por exemplo, de quem é a responsabilidade por uma determinada fraude. Com isso, não é tão rápida a conclusão de um processo dessa natureza, uma vez que poderá passar por várias etapas até se chegar a um veredito final.Por outro lado, segundo a grande maioria dos entrevistados dessa pesquisa, a falta de caráter da grande parte dos muitos políticos, no transcorrer dos tempos, é apontada como sendo o principal motivo para a propagação da existência de corruptos no país. Assim, sabe-se que é muito comum, por exemplo, o apadrinhamento de amigos e familiares em praticamente todas as casas legislativas, executivas e também judiciárias existentes nos quatro cantos do Brasil. Além do mais, toda vez que uma dada lei importante é posta em discussão, só consegue ser aprovada depois que a maioria dos parlamentares recebem algo em troca. Geralmente algum tipo de benefício. Foi o que os congressistas contrários ao governo, denunciaram abertamente a toda imprensa, logo após a aprovação da lei que regulamentou a reeleição para os cargos de presidente da república, governadores estaduais e prefeitos municipais. Enfatizaram que a população não tinha idéia de quanto essa nova norma custou aos cofres públicos. A imaturidade política da maior parte da população foi, também, considerada como outro elemento responsável pelo avanço dessa prática corruptiva. Visto que o elevado número de brasileiros analfabetos dificulta uma visão mais crítica das “aberrações administrativas” cometidas pelos diversos agentes públicos. Com isso, as camadas com menor nível intelectual são mais facilmente manipuladas, ou seja, tornam-se verdadeiros fantoches nas mãos desses políticos de ocasião.A interferência externa de países mais ricos na administração pública brasileira também é apontada como sendo um outro fator preponderante para a permanência da corrupção interna. Desta forma, pode-se dizer que essa influência vinda de fora do país é um verdadeiro desrespeito, sobretudo para com a soberania nacional.Entretanto, como já foi dito, essa interferência pode ser constatada através das muitas visitas que o FMI tem feito ao país. Os seus agentes, por exemplo, chegam a impor medidas drásticas para corrigir o déficit público, como: o arrocho salarial; o aumento de impostos e taxas de juros; a demissão de funcionários; entre outras. Isto é, medidas extremamente prejudiciais à grande maioria da população. Evidenciado, assim, um abuso de poder ou, por que não dizer, mais um ato imoral e corruptivo. Além do mais, sabe-se que a implantação da ditadura militar, não só aqui no Brasil, mas em quase toda a América Latina, teve os norte-americanos como sendo os principais interessados e patrocinadores. 3.5 - Privatização das Estatais e seus Efeitos

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3.5.1 – Análise descritiva do quinto gráfico

A privatização das empresas estatais foi outro ponto questionado nessa pesquisa de campo. Deste modo, cinco por cento (5%) dos estudantes das escolas particulares, nove por cento (9%) dos universitários e oito por cento (8%) dos estudantes das escolas públicas acharam que essa foi legal e necessária, conforme a letra a do gráfico acima. Os que consideraram ilegais e desnecessária (letra b do gráfico) foram nove por cento (9%) dos estudantes das escolas particulares, doze por cento (12%) dos universitários e dez por cento (10%) dos estudantes das escolas públicas. Contudo, sessenta e sete por cento (67%) dos estudantes das escolas particulares, sessenta e três por cento (63%) dos universitários e cinqüenta e nove por cento (59%) dos estudantes das escolas públicas responderam que foi prejudicial ao Brasil (letra c do gráfico). Porém, dezenove por cento (19%) dos estudantes das escolas particulares, dezesseis por cento (16%) dos universitários e vinte e cinco por cento (25%) dos estudantes das escolas públicas apontaram como sendo benéfica ao país (letra d do gráfico).

3.5.2 – Análise do quinto gráfico da pesquisa de campoA partir de 1997, intensificou-se o programa de privatização das Estatais pelo governo FHC. E as principais áreas privatizadas estavam ligadas aos setores das telecomunicações, eletricidade e exploração de minérios, como foi o caso da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Assim, ao longo da pesquisa de campo, levantaram-se as seguintes dúvidas: essas privatizações teriam sido boas ou ruins para o país? Ou, ainda, transcorreram na mais estrita legalidade ou foram fraudulentas?O primeiro questionamento, feito aos entrevistados, objetivava descobrir quais foram os efeitos dessas privatizações. Isto é, se tinham sido realmente benéficas ou não ao Brasil. Com isso, uns responderam que em alguns casos melhorou bastante, como o das telefônicas, onde se verificou uma ampliação significante do sistema brasileiro. Entretanto, o mesmo não aconteceu com o setor elétrico, pois, ao contrário, os serviços das novas companhias, em muitos casos, pioraram consideravelmente. Já a privatização de mineradoras foi analisada como sendo desnecessária, ou seja, o país não precisava se desfazer de empresas como a CVRD, uma vez que era e continua sendo extremamente lucrativa. Ademais, muitos consideraram que essas empresas mineradoras não poderiam ser administradas por estrangeiros, pois elas exploram uma das maiores riquezas do país.A questão da legalidade, no transcorrer dessas privatizações, também foi um outro tema posto em discussão. Uma parte dos entrevistados consideraram-nas como legais. Todavia, alguns foram contrários a esse posicionamento, justificando que teriam sido, em quase todos os casos, manipuladas pelo governo. Isto é, muitos consórcios formados por empresas estrangeiras foram beneficiados durante esse processo, através de inúmeras vantagens, como, por exemplo, empréstimos do BNDES, para a aquisição dessas estatais, com pagamento a longo prazo e juros baixos. Isto é, um negócio extremamente atraente, ou, ainda, só podendo ser comparado com aqueles feitos entre pai e filho. Pode-se chegar à seguinte dedução: sem nenhuma dúvida muitas pessoas tiraram proveito dessas privatizações, ou melhor, muita gente foi corrompida e corrompeu durante o transcorrer dos leilões dessas estatais.Assim, de um modo geral, a grande maioria dos entrevistados achou que as privatizações foram prejudiciais ao Brasil, não apenas por terem sido desnecessárias, mas porque serviram para camuflar diversas irregularidades e fraudes, onde o povo foi, mais uma vez, quem arcou com toda a despesa.

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3.6 - Crescimento da Corrupção3.6.1 – Análise descritiva do sexto gráfico

Procurou-se levantar, com essa pesquisa de campo, quais são as causas que contribuem para o crescimento da corrupção nos órgãos governamentais e nas empresas. Nesse sentido, conforme o gráfico acima (letra a), a falta de ética dos políticos foi apontada por vinte e oito por cento (28%) dos estudantes das escolas públicas, trinta e um por cento (31%) dos estudantes de escolas particulares e trinta e nove por cento (39%) dos universitários. Já vinte e nove por cento (29%) dos estudantes das escolas públicas, trinta e cinco por cento (35%) dos estudantes de escolas particulares e vinte e três por cento (23%) dos universitários consideraram a ineficiência do Poder Judiciário (letra b do gráfico) como sendo o principal motivo para esse aumento da corrupção. Todavia, a maneira pela qual o país teve sua colonização (letra c do gráfico) foi a resposta de dezoito por cento (18%) dos estudantes das escolas públicas, dezesseis por cento (16%) dos estudantes de escolas particulares e doze por cento (12%) dos universitários. Mas, vinte e cinco por cento (25%) dos estudantes das escolas públicas, dezoito por cento (18%) dos estudantes das escolas particulares e vinte e seis por cento (26%) dos universitários acharam o descaso das autoridades (letra d do gráfico) como sendo o real fator para o elevado índice de corrupção.

3.6.2 – Análise do sexto gráfico da pesquisa de campoUma outra pergunta levantada aos entrevistados almejava descobrir quais eram os principais motivos que contribuíram para o crescimento da corrupção nos órgãos governamentais e nas empresas públicas, com a participação, evidentemente, de algumas empresas privadas.A falta de ética dos administradores ligados, direta ou indiretamente, ao governo foi um dos motivos apontados para o aumento significante desses atos lesivos e abusivos contra a sociedade, visto que muitas dessas pessoas ignoram qualquer princípio de conduta reta. Isto é, não se preocupam de maneira alguma com o seu semelhante. Visam apenas o seu próprio bem estar. Além disso, o descaso das autoridades também foi mencionado como sendo um outro fator preponderante para o crescimento dessa corrupção no país. Assim, é impossível combater esse mal enquanto houver, na própria direção do Estado, grupos totalmente descomprometidos com a realidade e os anseios sociais. A ineficácia do Poder Judiciário foi citada como sendo mais um fator que contribui para o surgimento de novos casos ilícitos, cometidos por agentes públicos, nos órgãos governamentais e nas empresas, pois a falta de pessoal nas instituições jurídicas pode torná-las mais lentas. Ou melhor, não conseguem desenvolver suas tarefas num tempo adequado e terminam tendo seus trabalhos prejudicados. Resultando, desta forma, numa verdadeira luta contra o relógio e em um estudo superficial de processos destinados a julgar, por exemplo, atos de improbidade administrativa. Além do mais, não se pode descartar a hipótese de haver corrupção dentro do próprio Poder Judiciário, uma vez que muitos desvios de conduta de magistrados brasileiros vêm sendo denunciados nesses últimos anos.Por outro lado, há ainda aqueles que defendem a teoria do descobrimento. Isto é, da maneira pela qual o Brasil foi colonizado. Uma vez que, ao contrário das colônias anglo-saxônicas, onde as pessoas objetivaram construir uma vida melhor naquele novo mundo descoberto, aqui, na América do Sul, tanto os portugueses quanto os espanhóis procuravam apenas retirar as riquezas existentes nas suas novas terras “conquistadas”, isto é, não havia uma vontade de se construir um lugar promissor, ou seja, um novo eldorado. 3.7 - Brasil, Explorado e Corrompido

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3.7.1 – Análise descritiva do sétimo gráfico

Os principais motivos responsáveis pela contínua exploração do Brasil por outros países mais ricos foi outro tema questionado nessa pesquisa de campo. Donde trinta e três por cento (33%) dos universitários, quinze por cento (15%) dos estudantes de escolas particulares e vinte e um por cento (21%) dos estudantes das escolas públicas apontaram, conforme o gráfico acima (letra a), a corrupção dos governantes como sendo a principal causa para isso. Todavia, a ineficácia da máquina administrativa (letra b do gráfico) foi outro fator apontado por vinte por cento (20%) dos universitários, trinta e cinco por cento (35%) dos estudantes de escolas particulares e trinta por cento (30%) dos estudantes das escolas públicas. Entretanto, trinta e cinco por cento (35%) dos universitários, trinta e um por cento (31%) dos estudantes de escolas particulares e trinta e quatro por cento (34%) dos estudantes das escolas públicas acharam que é o elevado juro da dívida externa (letra c do gráfico). Por outro lado, o velho hábito do brasileiro de gostar de “tirar vantagem em tudo” (letra d do gráfico) foi considerado por doze por cento (12%) dos universitários, dezenove por cento (19%) dos estudantes de escolas particulares e quinze por cento (15%) dos estudantes das escolas públicas.

3.7.2 – Análise do sétimo gráfico da pesquisa de campoO Brasil, como todos sabem, continua sendo vítima, economicamente, de países mais ricos. Por isso, procurou-se encontrar, através dos entrevistados, quais são os maiores motivos responsáveis por esse problema, tido como interminável.Muitos acharam que esse fenômeno provém da ineficiência da máquina administrativa, ou seja, pela falta de sincronismo e mesmos objetivos dos vários agentes públicos que o país já teve e ainda tem. Contudo, não foram poucos os entrevistados que consideraram a corrupção dos muitos governantes, que aqui passaram ao longo desses quinhentos anos, como sendo uma das principais causas responsáveis pela continuidade desse mal.Os juros elevados da dívida externa, por outro lado, também foram ressaltados por muitos entrevistados, pois justificaram dizendo que, enquanto o Brasil cresce de forma aritmética, a sua dívida aumenta geometricamente, sendo, desta maneira, cada vez mais difícil o país se libertar dessa exploração econômica pelo exterior.Há, entretanto, ainda os que vêem no velho hábito dos brasileiros de gostarem de “tirar vantagem em tudo” como sendo um outro fator preponderante para a propagação desse problema. E, ainda, justificaram dizendo que é exatamente através desse velho hábito que nasceu a corrupção brasileira.Desta forma, observa-se que houve um certo empate técnico entre os entrevistados que consideraram a corrupção dos governantes, a ineficiência da máquina administrativa e o elevado juro da dívida externa como sendo os principais fatores responsáveis pela exploração econômica brasileira.

3.8 - Corrupção e a Revolta Popular3.8.1 – Análise descritiva do oitavo gráfico

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O último questionamento feito por essa pesquisa de campo buscou descobrir como os entrevistados viam as várias denúncias e apurações de práticas corruptivas nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Com isso, apenas oito por cento (8%) dos estudantes de escolas particulares, três por cento (3%) dos estudantes de escolas públicas e quatro por cento (4%) dos universitários observam esse problema com indiferença, conforme a letra a do gráfico acima. Mas, trinta e cinco por cento (35%) dos estudantes de escolas particulares, trinta e três por cento (33%) dos estudantes de escolas públicas e vinte e oito por cento (28%) dos universitários consideraram-se roubados (letra b do gráfico). Todavia, quinze por cento (15%) dos estudantes de escolas particulares, vinte e cinco por cento (25%) dos estudantes de escolas públicas e quarenta e três por cento (43%) dos universitários sentem-se enganados (letra c do gráfico). E, finalmente, quarenta e dois por cento (42%) dos estudantes de escolas particulares, trinta e nove por cento (39%) dos estudantes de escolas públicas e vinte e cinco por cento (25%) dos universitários têm vergonha de ser brasileiros (letra d do gráfico).

3.8.2 – Análise do oitavo gráfico da pesquisa de campoEssa pesquisa de campo, também, procurou saber como os entrevistados vêem as várias denúncias e apurações de corrupção, ao longo da história brasileira, nos órgãos governamentais e nas empresas que estão, direta ou indiretamente, ligadas à administração pública.O número de pessoas que se sentiam indiferentes foi bastante baixo. Pôde-se verificar que pelo menos os estudantes rondonienses, de nível médio e superior, não estão apáticos com todas as falcatruas praticadas pelos homens públicos dentro e fora do Estado de Rondônia.O termo “roubado” representou a expressão mais forte, entretanto não foi o mais lembrado durante esse tópico da pesquisa. Porém, o sentimento que esses estudantes têm em relação ao descaso dos corruptos para com a população brasileira é o de revolta, pois, nesse caso, esse ilícito é considerado como sendo o pior de todos os outros existentes no mundo, já que trata, indiretamente, do destino de milhares de pessoas. Pode até mesmo condenar um certo povo a ter uma vida miserável. É importante relembrar que muitos brasileiros já estão sobrevivendo nessas condições, ou seja, quase a metade do povo é formada por pobres.Já o sentimento de “enganado”, por outro lado, também foi citado, durante o trabalho de campo, por muitos. Os entrevistados justificaram dizendo que os políticos só lembram que o povo existe durante o período das eleições. E, depois de eleitos, esquecem todos os discursos e promessas feitas nos palanques. A única coisa que não esquecem, jamais, é de tirar proveito da condição de serem homens influentes.O último questionamento feito revelou que uma boa parte dos entrevistados sentem vergonha de ser brasileiros, uma vez que não conseguem admitir a falta de caráter e compromisso dos diversos governantes que o país tem e já teve, além da falta de respeito e cidadania de todos aqueles que ocupam cargos e empregos públicos, ou estejam ligados de alguma forma à máquina administrativa, para com o restante da população, visto que é inadmissível ver um crescimento acelerado de miseráveis no país, enquanto poucos usurpam os cofres públicos para enriquecerem ilicitamente nas “costas da população”.

CONCLUSÃO

Atualmente, há no Brasil uma verdadeira onda de corrupção na administração pública que, geralmente, faz parceria com o meio privado. Entretanto, como foi exposto nessa monografia, esse

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mal assola o país desde a sua “conquista”, ou seja, há quinhentos anos. Porém, a corrupção vem degradando a sociedade de tal forma que, hoje, é, sem nenhuma dúvida, a principal culpada pela condição de vida miserável da grande maioria dos brasileiros.Pode-se dizer, ainda, que a corrupção é a pior das misérias. Isto é, ela é uma miséria oriunda do campo da moral, além de estar situada no mais baixo nível da pobreza ética. Destarte, a prática corruptiva realmente atinge setores essenciais como a saúde, a segurança e a educação públicas. Ademais, é responsável pelo agravamento do grau de desemprego que assola o país, onde, indiscutivelmente, pode dizer-se que é o mais desumano, pois lida diretamente com uma garantia crucial para o indivíduo, ou seja, a sua própria sobrevivência. Por outro lado, quando um país não tem um sistema educacional eficiente, como é o caso brasileiro, dificulta o amadurecimento cívico e político de sua população. Conseqüentemente, torna-se mais árdua a tarefa de exterminar uma corrupção que já está instalada há muito tempo e até mesmo enraizada na própria cultura. Todavia, não se pode combatê-la sem antes ter um sistema político qualificado, além de um sistema jurídico eficaz.Apesar de tudo, a sociedade brasileira tem demonstrado que não está mais de “olhos vendados”, isto é, apática a todas as falcatruas denunciadas pela imprensa nesses últimos anos. Com isso, inúmeros casos de práticas lesivas ao país vieram à tona recentemente. E, mesmo com a criação de várias CPIs (Comissões Parlamentares de Inquéritos), como a dos Precatórios, Sistema Financeiro, Judiciário, Narcotráfico e dos Remédios, não se conseguiu, ainda, reduzi-las, pois isso pode ser constatado com o número, cada vez maior, de prefeitos denunciados por desvio de verbas públicas.A pesquisa de campo foi de grande valia, uma vez que possibilitou ter uma idéia do posicionamento dos estudantes rondonienses com relação a esse problema. Ademais, demonstrou que há uma forte insatisfação dos entrevistados no tocante à falta de resolução dos casos de corrupção, isto é, rejeitaram a atual política praticada no país, além disso, desaprovaram a ineficácia das normas jurídicas disponíveis para combater os atos lesivos ao patrimônio público.Observa-se, contudo, que só depois da proclamação da república o combate à corrupção foi intensificado, uma vez que, tanto no período colonial quanto no regencial, as violações contra a coisa pública não eram fiscalizadas, ou pelo menos não tinham nenhum rigor, mesmo porque se vivia num regime absolutista. Além do mais, toda essa podridão que está sendo amplamente discutida e divulgada, em virtude da atual conjuntura democrática, naquele período, anterior à independência, era simplesmente abafada pela própria monarquia.Desta maneira, é muito coerente afirmar que o Brasil viveu quinhentos anos mergulhado nessa sujeira chamada corrupção, e que a maior conseqüência disso está diante de todos, ou seja, nessa nação formada por muitas pessoas sem teto, sem terra, sem comida, sem honra, sem dignidade ... Tudo por causa de uns poucos homens que estiveram à frente do país nesses cinco séculos, ou melhor, na verdade jamais foram “homens”. BIBLIOGRAFIA

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CRIME E PROCESSO: DOENÇA MENTAL E AIDS(Relendo Franco Basaglia)Caetano Lagrasta

I - IntroduçãoAo reler Franco Basaglia (‘‘O Homem no Pelourinho’’, ensaio de março de 1974, traduzido pelo psiquiatra Paulo Fernando Barnabé), hoje (maio de 2000), uma indagação se impõe: na verificação da sanidade do delinqüente, ou do menor infrator, estarão reunidas as duas espécies de segregação social (prisão e manicômio), como tentativas de tutela na defesa da ordem pública?Partindo-se do fato de que ao juiz não é lícito julgar ou extrair convicção de processo, procedimento ou inquérito, instaurados contra ser humano enfermo que, ao final, acaba julgado como se doente não fosse, impõe-se-lhe antigo dilema: delinqüente ou infrator doente não se submetem à tipologia penal ou ao estatuto protetor, se não se aferir o estágio de insanidade, de ausência ou deficiência de autodeterminação, quando da prática do ato anti-social, visando a aplicação da semi-imputabilidade ou da inimputabilidade.

II – Substâncias psicoativas e doença mentalA utilização crescente de substâncias psicoativas (álcool, tóxicos, anfetaminas, etc.), que deve conduzir à constatação da dependência (física ou psíquica), tem revelado que a prática do delito se tornou meio para garantir o uso compulsivo da própria substância e, o que é pior, nos delitos contra o patrimônio a violência é utilizada duplamente: também, para saldar débitos com o traficante.A estrutura do Estado não mais consegue esconder ou negar a interferência do tóxico nos presídios e nas fundações de tratamento à criança e ao adolescente. Duas notícias (Folha de S. Paulo, C 7 e 12, de 17.05.2000) informam que psiquiatras e psicólogos da Universidade Federal de São Paulo tentarão identificar sintomas de ‘‘síndrome de abstinência’’ de entorpecentes em menores da FEBEM, de Franco da Rocha (SP), avaliação solicitada pelo próprio secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Edsom Ortega, que confirma: “Menores me disseram que muitos estão na ‘‘fissura’’ e por isso fazem rebeliões”. Por outro lado, o jornalista Aureliano Biancarelli noticia que o Ministério da Saúde se prepara para implementar no Rio Grande do Sul ousada e polêmica experiência: a troca de seringas entre os detentos do presídio central de Porto Alegre. E acrescenta: “...entregar seringas aos presos significa reconhecer o uso de drogas entre eles. Mais que isso: seria admitir que a droga entra e circula dentro dos presídios, o que é uma realidade, não um fato aceito”. Informa ainda que recente pesquisa naquele Estado mostrou que 40% dos dependentes tinham alguma passagem pela polícia ou pela Justiça, por uso de entorpecente, e destes, 48% “estavam infectados pelo vírus da Aids”. E conclui, citando o secretário da Saúde, Ricardo Kuchenbecker: “O que mostra uma relação próxima entre drogas, HIV e criminalidade”. E, por que não doença mental, a título de dependência psíquica?Ao mesmo tempo em que se cuida de prever e punir o impulso à prática do delito, atendida a compulsão ao consumo, procura o doente evitar a chacina, inclusive de parentes, por dívidas com o traficante, enquanto se vê infectado pelo vírus da Aids, vivendo num horrível círculo vicioso de crime e doença.A loucura, como antigamente admitida – a incentivar a segregação absoluta, também como consolo

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e refrigério à vergonha da família do doente – confunde-se, hoje, com o vício ou a infecção, pelo uso de substâncias psicoativas (especialmente o álcool) ou drogas injetáveis, através de seringas contaminadas. O fumo e o álcool têm sido francamente permitidos, propagandeados e disseminados em nossa sociedade, especialmente entre os jovens, ainda que não se analisem suas reais conseqüências, diante da crescente onda de violência, ou da prática de delitos gratuitos e em série, quer ainda pela interferência de internet, filmes, vídeos ou da própria televisão. Por outro lado, está-se diante da precariedade das soluções no âmbito da saúde pública e dos sistemas carcerários e instituições menoristas, dirigidos à reeducação, readaptação e tratamento de encarcerados, crianças e adolescentes, além de doentes mentais, aos quais se misturam os infectados, sem nenhum resultado positivo.III – A crise social e da globalização e a criminalidadeImpõe-se analisar duas outras variantes do raciocínio de Basaglia: a tortura durante os regimes de exceção e a crise do sistema pós-industrial capitalista (hoje, globalização), e suas influências na questão da saúde mental.O que será mais pernicioso para o ser humano doente: sofrer tortura durante a detenção, mesmo antes de ser denunciado, ou durante o processo e após a condenação, como conseqüência de sistemas policial e prisional abjetos, ou garantir-lhe desde logo a assistência nas hipóteses de inimputabilidade ou de rebaixamento da compreensão, quando da prática de delitos?Atribuiu Basaglia grande parcela desta crise de segregacionismo a variáveis econômicas, em especial à da produtividade, ao desaparecimento do pleno emprego e que, hoje, irá refletir-se na discutível diminuição da hora trabalhada, com possibilidade de ampliação do mercado de trabalho e do aumento de tempo disponível para a família e para o lazer, conforme o exemplo da União Européia. A teoria do pleno emprego vem cedendo espaço àquela que admite que: se todos puderem trabalhar, haverá inegável melhora na qualidade de vida e aumento do consumo, ao mesmo tempo que estarão sendo impostas restrições a um capitalismo financeiro volátil, que desdenha o ser humano e a crise social, e que busca impedir atividades alternativas, que escapem à ditadura da empresa multinacional e do trabalhador autômato.Se o prisioneiro paga por falta praticada, em detrimento da convivência humana e da sociedade, o doente é internado por algo que não cometeu. Mas, é evidente também que o infrator doente não pode ser objeto da aplicação mecânica da internação ou de tratamento ambulatorial, por absoluta insegurança de meios quanto ao resultado e em razão de um arremedo de processo ou precariedade de exames periciais e atendimento em hospitais psiquiátricos, vendo-se segregado por ilegal e injusta sentença: condenado quando deveria ser tratado, ou tratado e segregado quando deveria ser julgado.O progresso da Medicina e da Farmacologia determina, ao menos, o prévio diagnóstico para que haja a possibilidade de separação e tratamento ambulatorial e medicamentoso ou, em casos excepcionais, a internação em estabelecimento adequado. Ademais, o fato de que não se possa cogitar de número expressivo de presos ou doentes reabilitados, recuperados ou reincorporados à sociedade, não deve ser confundido com a proverbial incapacidade ou desídia do Estado para encontrar meios efetivos de tratamento e readaptação. Por outro lado, se não se pode falar no desaparecimento da tortura, evidencia-se que ela continua sendo aplicada ao criminoso comum, acenando-se com sua volta para conflitos, como os da terra, ora ditos políticos, e aplicação de leis de exceção, como a de segurança nacional. A alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Mary Robinson, critica as políticas agrária e indigenista do governo brasileiro e pergunta: como tanta terra encontra-se nas mãos de tão poucos; para responder: “Isso é inadmissível numa democracia” (Folha de S.Paulo, A p. 6, 18.05.2000). Acresce que, depois de nove anos, o Brasil apresentou à ONU o “Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, prazo idêntico para que o Congresso aprovasse a Lei n. 9.455/97, sobre a tortura. No mesmo diário e data, o editorialista constata: “A sensação que fica é a de que, por afetar principalmente as classes baixas e os foras-da-lei, não há interesse real em acabar com a tortura. De resto, ela ainda é lamentavelmente o principal ‘método de investigação’ de muitas polícias” (A p. 2).

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Ao se buscar na repressão, na tortura ou no descaso à saúde pública, através da omissão da política oficial, uma falsa solução, capaz de pacificar consciências, enfatiza-se o abandono do governo a uma política social, que proporcione ao encarcerado ou ao enfermo condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Ressalta, além disso, como mais desastrosa a mantença do preso e dos menores infratores doentes, viciados ou infectados, sem nenhuma possibilidade de tratamento ou, até mesmo, de diagnóstico, em programas de encarceramento e abandono invencíveis.Diante deste quadro, vai surgindo como coerente considerar a criminalidade também como uma questão de saúde pública, onde as marginalizações social e econômica determinam, cada vez mais, a desconsideração dos direitos humanos e da cidadania, em prol de um maniqueísta combate ao mal e à violência. Enquanto isso, máfias, narcotraficantes e macroorganizações criminosas participam ativamente do capitalismo financeiro, volatizando aplicações de lavagem de dinheiro e incentivando o consumo e dependência a substâncias psicoativas; dominam os guetos periféricos, favelas e cortiços, sob a falsa visão de patrocinar proteção e emprego às populações carentes e utilizam-se dos filhos destas para continuar engrossando as fileiras do crime, sempre com a conivência de bancos particulares e estatais e a complacente timidez do Ministério Público e da Justiça, em suma, do Estado.Não se trata de alardear solução que abarrote precários hospitais penitenciários com qualquer espécie de delinqüente ou infrator, como se doentes fossem, ou vice-versa. Ao se admitir que a internação estará sempre reservada para casos extremos de desequilíbrio ou doença mental irreversíveis (?), é evidente que, na maior parte dos casos, o julgamento, a partir do resultado do incidente de insanidade, poderá consistir na diminuição da pena ou na determinação de tratamento ambulatorial, controlado pelo juízo da execução da pena e com obrigatoriedade, quando possível, da participação da respectiva família.

IV – Luta de classes e o ‘‘século do cérebro’’ A evidência da crescente e incontrolável dependência a substâncias psicoativas não revela, como pretenderia Basaglia, ao se referir à doença mental, uma sub-espécie da luta de classes, uma vez que também os filhos da alta e média burguesias têm sido convocados como “soldados” às fileiras da narcotraficância, sem que seja possível confundir a defesa eficaz e aparelhada – aos “endinheirados”- com a medíocre ou inexistente defesa gratuita (convênio com a OAB ao invés da criação da Defensoria Pública) aos menos favorecidos. Exemplos têm sido constantes de ‘‘parcerias’’ entre classes (caso do traficante “Marcinho VP”); de deputados envolvidos com o narcotráfico e o roubo de carga ou de tóxico-dependentes de classes abastadas, com defesas judiciais bem patrocinadas e que conseguem tratamentos ambulatoriais, ao contrário dos dependentes, desvalidos, abandonados à condenação em presídio, cegamente executada.Jean-Pierre Changeux, biólogo de fama internacional, diretor de departamento do Instituto Pasteur, da França, em entrevista à revista “Label France” – n. 38, janeiro de 2000) constata que avançamos muito na compreensão dos mecanismos moleculares que participam da comunicação entre os neurônios, através de substância química (neurotransmissor): “Agora nós conhecemos cerca de quarenta neurotransmissores e mais de mil receptores...” e, principalmente, “compreendemos cada dia melhor a natureza da química e o funcionamento”. As repercussões destas descobertas são consideráveis, visto que: “Essas moléculas intervêm diretamente na percepção da dor, ou nos mecanismos de dependência a determinadas drogas” (pp. 22/23). Sua conclusão é a de que o século XXI será “o século do cérebro”, como o XX foi o do átomo e da biologia molecular. O objetivo, a longo prazo, é compreender as bases neurais das funções superiores do cérebro humano, assim como de sua patologia”. O que, evidentemente, implica em maiores investimentos na saúde e educação públicas, pois que o cérebro está no centro da aprendizagem e, conforme o entrevistador, jornalista Emmanuel Thévenon, “até a adolescência, é possível reduzir o déficit intelectual inicial, desde que se estabeleçam programas educativos adaptados, sabendo-se que as deficiências espaço-temporais são mais fáceis de se resolver do que os atrasos em matéria de aquisição de linguagem”. Estas preocupações, certamente, fazem parte do ideário dos governantes brasileiros, não assim no que diz com sua efetiva implementação, o que bem demonstra o atraso cultural e da pesquisa científica, como projeções para o novo milênio.

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Considerado o fenômeno da “delinqüência” dos sem-terra, dos grevistas ou dos sem-teto, etc., em razão da ausência do Estado na promoção de uma verdadeira política social e de ansiado acesso à divisão da riqueza ou da reforma agrária, novas formas de prevenção e repressão vêm sendo impostas e começa-se a tratar dos descontentes e miseráveis como transgressores políticos. Lógico que, sob este aspecto, a se progredir no raciocínio da marginalização, e não da luta por direitos, logo estaremos retornando à tortura e às leis de exceção, isto é, a um passo de se utilizar a tortura e, reflexamente, da internação como formas de exclusão política, ou seja, a agressão psicológica e o manicômio como instrumentos “marginalizante(s) de classe”, na antecipação de Basaglia.V – Questionamentos e conclusõesA reabilitação dos segregados implica na reestruturação de todo o sistema social a que estamos submetidos, afastando-se a hipocrisia de que no Brasil os direitos humanos têm sido observados, ou que o governo propicia condições mínimas de sobrevivência (saúde, segurança, habitação e educação). Pois, se não temos sequer para manter os mais sãos, como faremos para recuperar os doentes, os marginalizados e os criminosos?Afinal, haveria interesse do Estado em recuperá-los ou reabilitá-los? E a sociedade civil – as ONGs empresariais, os convênios médicos, assistenciais e previdenciários – podem; devem; estarão preparados para substituir o Estado? Enquanto isso não ocorre, a Justiça deverá ser aplicada cegamente a todos, enfermos e delinqüentes, pela mesma fórmula? E as famílias, que estão a sobreviver abaixo da linha de miséria, têm meios para receber de volta ou amparar o condenado, o doente ou o menor desviado?Para que não haja a exclusão do “diferente” (assim nominado por Basaglia), temos que promover meios de adaptá-lo, cuidá-lo e recuperá-lo, caso contrário, ao invés de salvar o doente, acabaremos, todos, por sucumbir num trabalho de inútil benemerência, que não pode ser confundido com a estrita observância aos direitos humanos ou de respeito à cidadania.Estabelecer um sistema exclusivamente aberto para doentes e criminosos, ou para menores ou adolescentes infratores perigosos, não é solução para a crise econômica ou para a instabilidade social. Infelizmente, não existem estatísticas confiáveis sobre a situação de qualquer destes sistemas: de saúde mental, de cumprimento de penas ou de segregação de menores; menos ainda da situação de infratores ou criminosos doentes. Se existisse, e mesmo assim, o resultado seria pífio: os advogados, os promotores de Justiça e os próprios juízes evitam pedir ou instaurar o incidente de insanidade (ou de dependência às substâncias psicoativas). Temor que se pretende ver justificado por uma falsa premissa: a de que estarão condenando qualquer daqueles a uma segregação perpétua, num manicômio cheio de excrementos e gritos, até que a reavaliação da temida medida de segurança permita a revogação desta verdadeira pena.Enquanto os próprios lidadores do Direito fazem vistas grossas à incapacidade do Estado, pelo tratamento desigual entre criminosos doentes e sãos, e fazem tabula rasa dos direitos do preso ou da obrigatoriedade de sua internação, mantendo-o em prisões superlotadas e infectas, acaba este, pela própria fraqueza, por ser engolido pelo sistema, tornando-se escravo ou amante do chefe de cela, e, esquecido, ali permanece, até que a definitiva loucura (ou a morte) os separe!O exemplo mais recente desta incapacidade ou omissão do sistema judiciário e de saúde, e de seus lidadores, ficou evidente ao se decidir o destino do “Bandido da Luz Vermelha”, doente mental que, após cumprir longa medida de segurança, viu-se, ao ser colocado em liberdade, completamente desarticulado para o convívio social, rapidamente arrastado para uma previsível morte.A conclusão imediata é a de que falta ao Brasil capacidade para o debate, para o enfrentamento de questões desta natureza, de há muito relegadas a segundo plano e que, esquecidas pelo sistema, acabam por receber risíveis moções e advertências nos anais de congressos e encontros nacionais ou internacionais, absolutamente incapazes, sequer, de mostrar a falibilidade do sistema penal e de saúde pública, mas que, em última análise, apenas vêm confirmar o descaso com que tratados doentes e delinqüentes, em suma, os confundidos e injustiçados.

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O JUIZ E A ATIVIDADE SOCIALNadja Nara Cobra Meda

O nosso Brasil é país de dimensões continentais. Mas não basta ser grande. É preciso, também, ser desenvolvido. E aqui podemos perceber que possuir um território tão grande traz vantagens e problemas.Dentre as vantagens podemos citar a existência de grandes recursos naturais no solo e no subsolo. A cada ano, novas riquezas são descobertas no Brasil, que possui grandes extensões de solo fértil, favorecendo o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, aliado à grande diversidade de climas, que permite o desenvolvimento de diferentes modalidades de produção agrícola. Para completar temos um grande espaço habitável, possibilitando abrigar uma população suficientemente numerosa para que o país possa desenvolver-se e progredir.Entre os problemas destaca-se a existência de imensas áreas, que devem ser protegidas e que para isso precisam ser povoadas e ligadas, de maneira efetiva, ao resto do país, através de uma gigantesca rede de transportes e comunicações. Necessidade de grandes recursos para promover o desenvolvimento econômico e social, principalmente no tocante à educação e à saúde, dois dos mais graves problemas nacionais, e desigualdades sociais e econômicas muito acentuadas entre as várias regiões do país, havendo algumas muito desenvolvidas e outras muito atrasadas.Apresenta contradições e regionalismos que dificultam a agilização na distribuição da Justiça. A morosidade se acendra ressurgindo quotidianamente na mídia como a principal vilã e o maior problema na administração da justiça.Na busca de soluções o juiz do terceiro milênio tem que volver os olhos para o futuro para a democratização do Judiciário, e questões de ética, democracia, cidadania e jurisdição que interessam a toda a coletividade devem ser estudadas para que o jurisdicionado possa mais facilmente chegar à Justiça.O Juiz moderno deve incrementar a velocidade, julgar de forma sensata, fundamentada e ponderada, porém rápida. Não pode continuar encastelado, esmagado por milhares de processos, lutando contra o tempo, seu principal inimigo. Reciclagem permanente, cultivo de novos idiomas e da informática são os requisitos mínimos de que se deve aparelhar o magistrado no limiar do novo século.Dispõe a nossa Constituição Federal que “são poderes da União, independentes e harmônicos, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” e que os três Poderes devem ser exercidos de forma autônoma por seus respectivos titulares.O Poder Judiciário tem por função julgar as ações, distribuir justiça e aplicar a lei aos casos concretos, sendo formado por Tribunais e Juízes, desempenhando, precipuamente função judicante. Porém, nos dias atuais, onde os problemas sociais a cada dia se agravam vertiginosamente, não se pode mais concebê-lo, como um Poder fechado, encastelado, que não procure de alguma forma minimizar tais problemas sociais.O tema deste painel denomina-se “Atividade social do Juiz”. Segundo Silveira Bueno em seu Minidicionário da Língua Portuguesa, a palavra atividade significa diligência, ação, e social, relativo à sociedade.Nesse sentido as atividades sociais praticadas pelo Magistrado seriam todas aquelas relacionadas à sociedade. A própria atividade judicante é uma atividade social muito importante para a comunidade. Ao julgar o litígio, o juiz decide a questão e devolve a tranqüilidade às partes, pelo menos a uma delas e principalmente para a sociedade.Antigamente os Magistrados não participavam da vida social da comunidade, ficando muito distantes da realidade e dos anseios do povo.Atualmente, a moderna orientação é que o Poder Judiciário se torne acessível a todos os cidadãos diminuindo a distância entre estes e a Justiça.Alberto Silva Franco, analisando o perfil do Juiz na sociedade globalizada, chama atenção para o sentimento de isolamento, auto-suficiência e insegurança compensados por meio de duas estratégias: a defesa dos privilégios corporativos comuns e de um posicionamento judicial apolítico

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de um lado e, de outro, a “arquitetura grandiosa dos prédios; a suntuosidade das salas dos Tribunais; as vestes talares; o estrado; o linguajar específico; enfim, todos esses sinais externos que sacralizam os rituais da Justiça servem para pôr a distância o homem comum, livrando assim o juiz da insegurança que o perturba” (Franco, 2000:4)Vários estudiosos concebem a Justiça e o Direito como expressões de relações de poder e, por conseguinte, discutem a validade dos conceitos de neutralidade e impessoalidade. O Magistrado é um ser humano com valores morais, convicções, credo religioso, interesses, opiniões e ideologias próprias, fruto do meio social onde se desenvolveu. Dependendo da região onde trabalha, deve procurar assimilar os usos e costumes, as práticas utilizadas pela comunidade para que seu julgamento satisfaça os anseios do povo, logicamente baseado na lei.O Juiz moderno tem condições de idealizar e pôr em prática muitos projetos que propiciem uma mudança de mentalidade da comunidade em relação ao Judiciário, ou seja, indo ao encontro da população, principalmente a mais carente e que muitas vezes mora em lugares distantes realizando um trabalho sério, gratuito e rápido.Nesse sentido já existem atualmente muitos Juizados Itinerantes pelo Brasil afora. O advento dos Juizados Cíveis e Criminais também está sendo de grande valia para resolver o problema da morosidade da Justiça.Como exemplo de Justiça Itinerante temos implantado numa Comarca do interior de Belém, no Estado do Pará, um Projeto denominado “Justiça na Roça”. Tal Projeto demonstra ser possível a distribuição da Justiça aos carentes, além da promoção do homem simples da roça à condição de cidadão, sujeito de direitos e deveres, de forma rápida e eficaz, dispensando principalmente a burocracia e o formalismo que desmotivam as pessoas mais simples a procurarem a Justiça na busca de solução para seus problemas. (Cópias a disposição dos participantes).No mundo atual observa-se que uma das principais causas do aumento da criminalidade é a desagregação e o enfraquecimento da célula mater da sociedade - a família.Necessário se faz revitalizar a célula familiar e as relações primárias que se estabelecem no seio da família e que contribuem para o indivíduo se colocar na sociedade e na formação de sua personalidade, estruturando seu ego e superego com noções de respeito, autoridade, do certo e do errado, de responsabilidade e companheirismo que fazem do ser humano uma figura mais bonita, mais aceita e com mais projeção no âmbito que convive. A família é a base da sociedade e é na família que o ser humano começa a se desenvolver e se preparar para a vida em sociedade porque a família é um pequeno grupo social onde vamos aprendendo a amar e ser amados, a respeitar, a cooperar, a ter o espírito de sacrifício necessário para enfrentar os problemas da vida.Na família somos levados à solidariedade, ao senso de equipe, à generosidade, à doação de nós mesmos. O ser humano precisa de amor, compreensão, afeto, atenção, e a família proporciona ambiente social capaz de atender a essas exigências na formação da criança e do jovem, criando-lhes condições para que tenham a maturidade emocional suficiente para integrar-se no meio social e constituir nova família.Com a falência familiar e a conseqüente desagregação da família tudo acontece inversamente. A sociedade sofre uma grande perda e passa por um processo de enfraquecimento pois começam a surgir os problemas sociais gravíssimos como abandono de crianças e adolescentes, prostituição infantil, drogas, maus tratos, exploração de trabalho infantil e juvenil, abusos sexuais no próprio âmbito familiar, aumento de natalidade, desemprego, fome, miséria, etc.O Juiz nesse contexto pode auxiliar na solução de tais problemas. Os Magistrados, sendo pessoas que a comunidade admira e respeita, além de seu exemplo pessoal, podem ministrar palestras nas escolas, igrejas, nas associações de bairros, procurando difundir a importância da preservação da família. Pregar tais princípios, mesmo entre seus funcionários, que são tantos e muitas vezes também esquecidos. Começando por resolver os problemas internos já é um grande passo em direção ao caminho certo. Com o fortalecimento da família muitos desses problemas citados tenderão a diminuir gradativamente.Outro grave problema social é a falta de vagas nas escolas para crianças e adolescentes, e nesse caso o Magistrado também desempenha um papel muito importante. Muitas vezes basta um ofício ou um

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telefonema para a escola solicitando a vaga que o problema está resolvido. Porém o importante não é somente conseguir a vaga, mas também acompanhar a vida escolar da criança ou do adolescente solicitando à escola que forneça mensalmente a freqüência e as notas do aluno, chamando os pais para conversar quando ocorrerem problemas, controle esse que pode ser feito por assessores ou estagiários que atuem na Vara.Achei muito interessante o Programa implantado aqui em Brasília do Visitador Escolar. Sempre que um aluno faltar à escola 3 dias seguidos ou 5 alternados no mês, sua família recebe a visita de um agente escolar. Junto aos pais e responsáveis, ele vai procurar descobrir os reais motivos da ausência do aluno para, em seguida, solucionar o problema. Os agentes visitadores foram selecionados entre os estudantes do ensino médio que passaram em todas as matérias. Em contrapartida recebem bolsas de estudos para exercerem essa importante função. Dessa maneira a criança é mantida dentro da escola, onde é seu devido lugar. Esse Programa vem atender os anseios de uma faixa etária de jovens marginalizada pelo mercado de trabalho em razão da obrigatoriedade da prestação do serviço militar. O Juiz da Vara de Infância e Juventude poderá, também, utilizar tal Programa incluindo adolescentes infratores que estejam cumprindo medidas sócio-educativas, como agente ou beneficiário do programa.A situação do “menino de rua” continua sem objeto de grandes preocupações tanto para os Órgãos Públicos quanto para a sociedade. Procurando solucionar esse problema, Brasília inovou com a criação de um serviço telefônico à disposição da sociedade para denunciar sempre que notar uma criança em idade escolar fora da escola. É só ligar para 156 - opção 2 e falar com o Teleducação e são tomadas as providências devidas.Em Belém do Pará, existe o Programa da Bolsa-Escola mantido pela Prefeitura Municipal. Cada família recebe um salário mínimo para manter a criança na escola, retirando-a da rua. Tal Programa tem contribuído para a diminuição do analfabetismo, proporciona alimentação para as crianças, que muitas vezes só recebem a merenda escolar, e ajuda a diminuir o índice de criminalidade infanto-juvenil, além de ser um complemento da renda familiar.Importante então se faz o entrosamento dos Juízes com esses outros Órgãos do Governo, pois o conhecimento de tais programas poderá ensejar uma parceria com o Poder Judiciário visando prestar relevantes serviços, não só para a criança e adolescente como para toda a sociedade, inclusive vindo a beneficiar ex-presidiários no sentido de contar com essa ajuda para reestruturar sua família.Tal programa poderá ser utilizado pelo Poder Judiciário no atendimento à família do detento, que na maioria das vezes fica no mais completo abandono, obrigando o Juiz a abrigar seus filhos, único recurso disponível para assegurar-lhes a sobrevivência.Há necessidade que se façam convênios e parcerias entre o Poder Judiciário e o empresariado local a fim de dar suporte ao tratamento que deve ser dispensado aos adolescentes infratores. Uma idéia interessante seria a criação do “Banco de Vagas” onde o empresário colocaria à disposição da Justiça tantas vagas que seriam utilizadas na recuperação do adolescente infrator, após cumprimento da medida sócio-educativa que lhe fosse aplicada, com todos os direitos trabalhistas assegurados e com a obrigação de freqüentar a escola e tirar boas notas. Tais parcerias devem ser desenvolvidas também entre o Poder Judiciário e o Poder Público (Prefeituras, Delegacias, Escolas, Centros Comunitários, Igrejas etc.).No tocante aos atos infracionais praticados pelos adolescentes muito se deve à sociedade de consumo, incentivada pela mídia.É que os jovens são movidos para a infração pelo desejo de ter, ou desfrutar, os bens que são símbolos por excelência da juventude e do status social. Para a maioria dos adolescentes a solução encontrada para satisfazer seus desejos de consumo, relacionados à questão da mobilidade social, é pegar uma arma, sair praticando desatinos movidos pela questão do consumismo. Neste particular uma das grandes vilãs é a televisão. Os mesmos apelos publicitários, as mesmas novelas e filmes mostrando uma vida de sonhos, onde tudo é limpo, roupas belíssimas, pratos saborosos, pessoas bonitas e cultas, que invadem os lares da classe alta e média, também adentram nas favelas, nos barracos miseráveis dos sem-terras, nas palafitas, nos morros e nas baixadas. É um apelo terrível,

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convidando as pessoas a terem uma série de coisas que não podem ter. Muitas das vezes até o adolescente ou adulto não passa fome, mas deseja aquele tênis de marca, dirigir um carro, quer entrar numa boate ou tomar banho de piscina no Clube onde só entra gente chique, quer levar a namorada para dar uma volta de moto ou possuir um telefone celular etc. Veicula também o sucesso, ligando-o ao consumo do fumo e da bebida alcoólica.Nesse contexto é que está envolvida a mídia, dizendo que só quem tem a roupa, o tênis de tal marca, o carro, a bicicleta de alumínio, o jet-ski, que fuma e bebe... é que tem sucesso. Quem não tem, não faz sucesso, sentindo-se excluído, marginalizado, diminuindo sua auto-estima, desencadeando nele uma conduta anti-social caracterizada pela prática de delitos, consumo de drogas, prostituição, tornando sua recuperação difícil e trabalhosa.O homem é fruto da sociedade, e essa mesma sociedade é responsável por aquilo que produz.Sendo a sociedade consumista e segregadora, cria núcleos de exclusão e hábitos, nem sempre saudáveis, mas incorporados pelos seus membros. Como exemplo podemos citar como símbolo de status social, o uso de aparelhos celulares por estudantes da pré-escola e primeiro grau, o consumo de drogas ilícitas dentre alguns executivos bem sucedidos, conforme veiculado muitas vezes pela imprensa nacional e internacional.A sociedade é responsável pela reinserção dos excluídos e tem obrigação de engajar seus membros nesse processo.Tão antiga quanto a crítica que se faz à morosidade da Justiça é a sua distância do cidadão comum, para quem ela é muitas vezes inalcançável, só funcionando para aqueles que podem pagar honorários de bons advogados.Trata-se da questão das desigualdades sociais e a forma como a Justiça Brasileira dispensa tratamento diferenciado aos crimes praticados pela elite e aos praticados pelas classes populares. Com os primeiros, as leis e a justiça parecem ser flexíveis, ao passo que com as classes populares elas são severas, intimidadoras e repressivas.Não podemos esquecer as citações sempre presentes, nos noticiários nacionais e internacionais, sobre os crimes de “colarinho branco”, chamando a atenção para o seu poder de prejuízo para o conjunto da sociedade, em comparação aos crimes contra o patrimônio privado cometidos por indivíduos ou mesmo pequenos grupos. Enquanto para os Bancos são oferecidos subsídios do Governo Federal e os grandes sonegadores de impostos contam com a condescendência dos Órgãos Públicos, fazem-se cortes de verbas para políticas sociais de saúde, educação e assistência social.Nesse aspecto o Poder Executivo apresenta-se como empecilho à produção da Justiça, pela falta de implementação das políticas públicas para a Infância e Juventude, a falta de infra-estrutura nos presídios e ainda os desvios de verbas públicas.Devemos cada vez mais procurar democratizar o aparelho judicial, permitindo que todos tenham rapidez e igualdade de acesso à Justiça.Geralmente a pessoa que pertence a uma classe social superior possui um trânsito mais livre dentro do Judiciário.O Magistrado deve ter consciência que está sujeito a todo tipo de pressão imposta pela sociedade e procurar proteger-se fortalecendo seu espírito para não fraquejar ou decidir sob violenta emoção, podendo, assim, distribuir a Justiça com sabedoria e eqüidade. Para tanto é muito importante que disponha de tempo para reflexão e aprimoramento além de oportunidade para consultar e trocar idéias com seus colegas ou superiores hierárquicos.É comum profissionais de outras áreas poderem valer-se de suporte técnico para melhor conduzir seus trabalhos. Isso não acontece no Poder Judiciário. E quão valiosa seria a contribuição daqueles que ao longo de suas carreiras acumularam notável saber jurídico, experiência, astúcia, equilíbrio emocional e pudessem compartilhar com aqueles jovens juízes que estão realizando a justiça no seu dia-a-dia em Instâncias inferiores, por vezes em Comarcas longínquas. Até mesmo o conhecimento de seus insucessos seria importante nessa troca de experiências. Isso tudo poderia fazer a Justiça mais célere, menos elitista com possibilidades de haver menos recursos às Instâncias superiores que, em última análise, poderia representar numa economia para as partes e para o próprio Poder Judiciário.

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Para que essa interação seja viável há necessidade de se deixar de lado a vaidade pessoal, o orgulho, a onipotência que continuam, ao longo de décadas, permeando as relações dentro da Justiça Brasileira.As decisões dos Magistrados devem ter cunho eminentemente pedagógicos visando assegurar ao réu infrator o direito de se reeducar para poder ter uma boa integração social, após cumprimento de sua pena.Isso se efetiva através da realização de trabalhos remunerados, de cursos profissionalizantes e regulares de ensino, pois é sabido que a educação é o maior elemento de cidadania.O Governo e o Poder Judiciário deveriam incentivar as Secretarias de Administração das penitenciárias a organizarem cursos de ensino fundamental aos presos e ao mesmo tempo motivar a freqüência às aulas mediante programa de remição da pena pela educação à base de um dia por dezoito horas de estudo.Tal prática já está implantada no Rio Grande do Sul e recentemente em São Paulo, com sucesso.O ensino, no caso, seria equiparado ao trabalho que, segundo a Lei de Execução Penal, permite a remissão da pena.É sabido que nossos presídios não dispõem de espaço suficiente para abrigar em oficinas de trabalho todos os reclusos. Assim, a opção por tirar uma grande massa da população carcerária que está na ociosidade, colocando-a em salas de aula, não constitui privilégio, mas solução que atende aos interesses da sociedade. Vem ao encontro de duas finalidades: coibir a ociosidade nos presídios e dar o Estado ao condenado a oportunidade de, em futura liberdade, dispor de opção para o exercício de atividade profissional que exija um mínimo de escolarização.O Poder Judiciário deveria ser o primeiro a tomar iniciativa no que diz respeito a acreditar no ex-presidiário. Deveria ser criada uma lei que obrigasse o Poder Público e as empresas privadas a admitirem em seus quadros de funcionários pessoas que já tivessem cumprido pena e, dentre outras condições, que não fossem reincidentes, tivessem bom comportamento carcerário e que não tivessem praticado nenhum dos crimes elencados como hediondo.Com tal providência, muitos ex-presidiários talvez nunca mais voltassem a delinqüir, pois uma chance lhes estaria sendo dada pela sociedade.Para que haja o recolhimento da importância da Justiça pela sociedade brasileira é necessário que as decisões proferidas pelos Juízes de primeiro grau e Tribunais Superiores sejam exemplares de forma a coibir outras práticas semelhantes, contribuindo para redução do índice de criminalidade em nosso país.A Justiça é sabedora que o Brasil é um país socialmente injusto. As desigualdades sociais são gritantes. A pobreza é endêmica. A concentração de riqueza é muito grande nas mãos de poucos, e os próprios dados do governo deixam isso bem claro.O salário mínimo não resolve o problema do trabalhador.A injustiça social é apenas um componente dentro do contexto social da violência, somada à ausência do Estado no amparo ao menos na sua educação e lazer. Ocorre que muitos pobres conseguem o progresso social ou vencem suas próprias dificuldades. Daí podemos concluir que a injustiça social, por si só, não explica a violência. Crimes organizados como contrabando, tóxicos, roubos de carga e de carros, crimes da informática, não resultam da pobreza, podendo ser praticados por pessoas de classes média e alta.Muitos jovens das referidas classes sociais são tão ou mais abandonados que os da classe baixa. Os pais lhes proporcionam todo conforto material, mas negam-lhes carinho e atenção e disposição para compartilhar de suas vidas.Esses jovens tornam-se agressivos, impulsivos, vivendo grandes conflitos pessoais e existenciais, sempre buscando uma forma de chamar a atenção sobre si.As políticas públicas de educação, esporte, lazer e profissionalização devem ter por objetivo especial esses jovens.No caso dos jovens em conflito com a lei compreende-se que ao invés de simplesmente puni-los deve-se propiciar as condições que estimulem o seu desenvolvimento, ou seja, deve-se protegê-los através da garantia de seus direitos sociais.

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A população assiste estarrecida à confusão que se estabeleceu entre a imunidade parlamentar e a “imunidade parlamentar”. Isso é um mau exemplo para a sociedade e contribui para o descrédito da Justiça, que não dispõe de mecanismos para modificar tal estado de coisas, porém é cobrada pelo cidadão comum.Urge que os juízes se organizem propondo soluções jurídicas eficazes perante o poder legislativo nas três esferas. Mesmo reconhecendo a força do corporativismo dos parlamentares, devem conclamar a sociedade, através de seus representantes, para defender e aprovar tais idéias forçando a transformação destas em leis, visando uma melhor distribuição de renda, salário mínimo que garanta uma vida digna aos trabalhadores, aplicação dos recursos públicos na educação, saúde, na proteção à criança, adolescente e idoso, uma efetiva reestruturação na política penitenciária no Brasil e principalmente assegurando trabalho para todos.Os crimes praticados pelos parlamentares não podem ficar impunes por força de seu corporativismo. Assistimos recentemente ao julgamento do Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, denunciado por sua prática delituosa. Mesmo ocupando um dos cargos mais importantes do mundo, não pôde valer-se da imunidade parlamentar e teve que submeter-se aos ditames da lei.Quanto ao problema da fome e da miséria no Brasil o Poder Judiciário poderia dar uma contribuição bastante eficaz na formulação das políticas públicas de combate e erradicação destes.Em virtude de conhecer e julgar conflitos nas relações humanas o Magistrado tem grande conhecimento das situações sociais mais prementes que nem sempre estão reguladas em lei, pela sua atualidade. Isso significa que ele tem a dimensão exata de que o fato social sempre antecede a lei, sendo calorosa e indispensável sua participação na elaboração de projetos de lei que visem diminuir as desigualdades sociais existentes no Brasil.A sociedade está denunciando a corrupção na estrutura administrativa dos três Poderes, e o Poder Judiciário tem o dever de julgar rápido, já com as novas leis emergentes editadas. Por isso o Magistrado tem que se manter atualizado, atento para tudo que ocorre no mundo de hoje.Não se pode mais tolerar qualquer forma de discriminação, seja de que natureza for, e deve haver uma linha direta entre o povo e a Justiça onde possam ser feitas as denúncias que serão posteriormente encaminhadas ao Ministério Público para as providências cabíveis.A magistratura deve empenhar-se mais no sentido de apresentar projetos de lei visando disciplinar o atendimento de situações sociais emergentes como o problema dos “Sem-Terra”, a importação dos alimentos transgênicos, tão utilizados no Primeiro Mundo e que viriam minimizar o problema da fome no Brasil.Os magistrados precisam organizar-se para propor alterações que lhes permitam exercer plenamente sua cidadania, diminuindo as limitações impostas no exercício de sua atividade jurisdicional, permitindo, assim, que ocupem um papel maior na administração pública, visando fiscalizar, denunciar e coibir práticas abusivas no trato da coisa pública.As condições de saúde, higiene e nutrição no Brasil ainda são insatisfatórias: as moléstias endêmicas continuam a ameaçar a saúde pública; os índices de mortalidade infantil ainda são considerados elevados. A saúde precária da população é conseqüência das deficiências da alimentação, higiene e saneamento. Grande parte da população não goza de boa saúde porque não é bem alimentada, não tem o mínimo exigido de higiene e freqüentemente mora em locais não saudáveis.O problema de moradia não se resume na questão da casa própria. Ele envolve também a infra-estrutura habitacional: rede de água, serviço de esgoto e coleta de lixo, transporte, instalações de vida comunitária, de lazer etc.O Poder Judiciário pode ajudar a solucionar esses problemas começando pelo atendimento a seus próprios funcionários. Muitos deles estão na mesma situação precária desses milhares de brasileiros. Têm emprego, salário, porém as mínimas condições de qualidade de vida. O Poder Judiciário poderia incentivar seus funcionários a adquirir casa própria através de convênios firmados com Instituições que possam proporcionar financiamentos a longo prazo beneficiando aqueles que não têm casa própria, inclusive os Magistrados.Outra forma de intervir no social seria propor o estabelecimento de convênios com creches e

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escolas particulares para filhos de seus funcionários. Sabemos que, muitas vezes, o funcionário falta ao serviço por não ter com quem deixar sua prole. Este convênio muito beneficiaria não só a criança como seus pais na medida do desempenho de seus trabalhos sem qualquer preocupação relativa ao bem-estar de suas crianças.Hoje, o crescimento desordenado das cidades tornou-se motivo de angústia social. Entre todos os problemas sociais urbanos, um deles está assumindo graves proporções aos nossos olhos: a poluição, produzida pelas chaminés das fábricas, pelos escapamentos dos veículos e por outros agentes. Temos também a poluição sonora, dos rios e mares provocada pelas grandes companhias petrolíferas.O juiz no seio da comunidade da Comarca que atua pode lançar campanhas educativas no sentido de que deve ser preservado o meio ambiente. Além disso, na sua própria atividade judicante, punir com severidade os infratores, aplicando pesadas multas que reverterão para a recomposição do meio ambiente danificado.No que diz respeito à saúde, o setor médico dos Tribunais deveria intensificar o combate às endemias e fortalecer as atividades com a medicina preventiva, dando palestras para os membros do Poder Judiciário, seus familiares e na própria comunidade.Vacinação em massa é muito importante para prevenir certas doenças. Hoje a AIDS vem vitimando milhares de pessoas e é de muita valia esclarecimentos freqüentes no seio da comunidade, com palestras, filmes, depoimentos de pessoas infectadas etc.As drogas estão mais presentes do que nunca e a cada dia novas substâncias tóxicas e alucinógenas são jogadas no mercado, seduzindo principalmente a juventude para seu consumo e dependência. Atualmente a mídia já vem apresentando propagandas fortes no sentido do jovem dizer não às drogas.Mais uma vez os juízes podem dar sua parcela de contribuição, proferindo palestras, apresentando filmes para os jovens sobre os perigos da dependência química, seus males e conseqüências danosas para a saúde, que muitas vezes podem levar até a morte.Além do crescimento econômico e da modernização social, o desenvolvimento de um país revela-se também pelo seu progresso científico.Ao raiar da tecnologia sofisticada, experimentam vigorosa mudança no modo de produção mundial com o fenômeno da globalização revolucionando o mundo, em que os conflitos demandam soluções cada vez mais rápidas, o Poder Judiciário sente a premente necessidade de se modernizar para acompanhar tal revolução.O Brasil é um país à procura do seu próprio modelo de desenvolvimento. Para isso, é muito importante garantir desde já sua futura autonomia científica e tecnológica. É decisivo que o governo e os demais poderes apóiem e invistam firmemente na comunidade científica brasileira, nos trabalhos desenvolvidos nos laboratórios das universidades e nos centros de pesquisas particulares.Nesse sentido o Poder Judiciário deveria investir num departamento de pesquisa, incentivando os profissionais, cientistas e pesquisadores ou mesmo firmando convênios com Universidades, com os Conselhos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Órgão do MEC, Fundo de Desenvolvimento Técnico e Científico (Funtec) e outros, pois tal investimento poderá reverter em benefício da própria atividade judicante e aperfeiçoamento do Poder Judiciário.Os progressos científicos acontecem de forma contínua e acelerada e são do domínio público graças ao advento da informática. O Magistrado precisa fazer parte desse processo sob pena de “perder o bonde da História”.O processo de produção da Justiça gera dois conjuntos de representações sobre ela. Num deles entende-se que a Justiça deve levar em conta a produção social do crime ou infração, tendo uma intervenção voltada para a promoção do réu ou infrator, garantindo-lhe meios necessários para uma vida digna dentro dos parâmetros da legalidade. No outro, entende-se que a atividade da Justiça se deve concentrar na punição daqueles que romperam as normas legais.

De que lado você está?

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A JUSTIÇA ATENDE ÀS EXPECTATIVAS DA SOCIEDADE?Palestra do Prof. Walter Ceneviva

Não tenho dúvida em afirmar que, se há um tema de permanente interesse, a justificar o título de nosso painel, é este, no qual se questiona se a Justiça atende às expectativas da sociedade. Se, por um lado, a permanência é óbvia, a resposta da pergunta-resumo do tema tem elaboração muito complicada, para ser expressa em trinta minutos.Que Justiça é essa a que nos referimos? Nosso país tem muitas justiças constitucionais (civil, penal, federal, estadual, eleitoral, trabalhista, militar federal, militar estadual, do Distrito Federal), sem falar em formas não constitucionais, nem judiciárias, como as dos tribunais de justiça desportiva. A Justiça da qual tratarei é só a primeira, constitucional, mas, ainda assim, polimorfa e heterogênea. É composta por várias vias autônomas e diversificadas.Justiça Civil é um Titanic onde o iceberg da lentidão ameaça o desenvolvimento das causas propriamente civis, a área dos direitos obrigacionais, reais, familiares e sucessórios, sem falar nos administrativos, tributários e previdenciários. Obtida a vitória, no processo de conhecimento, chegado o drama da execução, tudo tem que se repetir. Ganhar e não levar é a frustração máxima das expectativas da sociedade. Penso, ao contrário do que é voz corrente, que o falado excesso de recursos nem é excesso, nem interfere com a lentidão.Na contrapartida penal a frustração está longos anos passados até que o delinqüente seja afastado da sociedade, sobretudo em relação aos casos mais notórios ou das pessoas ricas, cujo tratamento é sempre diferente do que é dado ao povo em geral. A impunidade dos poderosos exigirá muitos anos até ser afastada da convicção geral.O Ministro Costa Leite, falando no V Encontro dos Magistrados da 2ª Região, disse que o Poder Judiciário vive atualmente sua pior crise e, dentre seus principais problemas, enfrenta abalos em sua credibilidade em face da demora de solução dos conflitos (fonte: “Habeas data”, publicação do TRT da 2ª Região).Outro ponto no qual penso que a voz corrente se engana é no atribuir aos juízes a culpa pela demora. Culpa é da burocracia processual, relacionada com a imprescindível garantia do direito de defesa e do contraditório, e da burocracia, propriamente dita, dos serviços judiciais. Minha experiência básica é a do Estado de São Paulo, mas temos ações em outras Unidades da Federação, para as quais me encorajo a fazer o mesmo diagnóstico. Temos em nosso escritório ações (ora na posição de autores, ora na posição de réus) que duram quinze ou vinte anos. Não são a regra, mas que as temos, as temos.Meu tema não exige que proponha soluções, mas a oportunidade é boa demais, para deixar escapar. Os grandes congestionadores têm sido os Poderes Públicos, com petições repetitivas, reiterando temas já debatidos e resolvidos, sem que o Judiciário - outro braço do mesmo Poder Público - se disponha a usar sua força para impedir o descalabro. Primeira solução norma que obste a repetição de argumentos superados, mas apenas nas áreas tributária e previdenciária, para os quais teria bom cabimento a súmula vinculante, ainda que com vigência limitada, digamos, a um período de cinco anos, após o qual obrigatória a revisão da lei respectiva, para manter ou afastar. Na mesma palestra o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça disse, com carradas de razão, que “a excessiva litigiosidade do Executivo é a causa principal do abarrotamento dos tribunais superiores”, acrescentando que, de janeiro a agosto de 2000, 85% das causas chegadas ao Tribunal são oriundas do governo Federal (União, CEF, INSS).Proponho que paremos com a conversa dos recursos processuais excessivos, porque raros os processos nos quais os apelos são dez ou mais. Na normalidade dos casos o que se tem é um ou dois agravos (sem interferência direta na velocidade do processo), uma apelação (precedida por muito mais rarefeito) e os recursos especial e extraordinário, para os quais o funil da justiça anda estreitíssimo, o que agrada a ambição de poder dos órgãos estaduais ou regionais.

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O número de recursos nada tem com a burocracia que bloqueia o andamento, no prazo entre a distribuição e o “cite-se”, com a preparação do mandado, a diligência do meirinho, a expedição da carta citatória, com a demora nas publicações pela Imprensa Oficial, com a pauta de algumas varas, com as idas (quando cabível) ao Ministério Público. Isto sem falar nos prazos à vontade para advogados públicos, que só manifestam quando querem.Digo e repito: não há excesso de recursos judiciais. Há, ao lado dos defeitos externos apontados, insuficiência da operacionalidade da Justiça, com quadros incompletos, funcionários mal pagos, rigor corregedor insuficiente, equipamento de segunda categoria, mesmo em serviços informatizados, com inexistência de rede e assim por diante. A questão não se limita à sofisticação dos computadores. Faltam lápis, fax, água, extintores, grampos, bons elevadores e, se me permitem, em alguns fóruns, até papel, em suas várias espécies.Se há cartórios em que os prazos fluem velozmente - infelizmente são a exceção - é normal, na média, que entre a distribuição e a postagem da carta citatória, quando cabível, se perca um mês. Dois meses até a volta do AR. Mais um mês até sair o “digam sobre a contestação”, mesmo sem que haja preliminares ou documentos novos. Chega-se ao saneador no quarto mês, quando a juntada “esperta” de novos documentos não perturba o passo, com audiência (para conciliação) um ou dois meses depois e de julgamento uns quatro meses mais tarde. E assim vai, sem nada ter com o número dos recursos. Enfim, para não ir longe: posição boa, em juízo, é a de réu, cuja finalidade de perturbar o andamento do processo é facilitada pela sucessão dos “digam”, que têm vantagem, para o cartório e para o magistrado, de dispensar a leitura do que foi dito. A sociedade dos Réus fica feliz com a demora, mas a dos Autores se frustra, ainda mais quando descobre que o recurso, com efeito suspensivo, ficará parado um ou dois anos no protocolo do Tribunal, antes de ser distribuído, como foi freqüente em São Paulo, nos últimos anos.O perfil não se altera na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho. Nesta, a demora dos processos é usada como arma pelos patrões, para obter acordos favoráveis. Paradoxalmente, percebe-se, do lado do patronato, uma queixa constante de que a magistratura do trabalho, assim como aconteceu antes da exclusão dos juízes classistas, tende a dar a vitória ao trabalhador. Nada de mais, a meu ver, até porque se trata de respeitar o princípio constitucional da isonomia, cuidando com mais força dos mais fracos. Mas, também aí as queixas - justas ou injustas - põem em dúvida a eficácia da Justiça Oficial, quando voltada para as relações de trabalho, sobretudo pela demora das soluções, incluídas nesse bolo as acidentárias e as previdenciárias, quando não há acordo. Demora nas pautas, demora nos tribunais, demora na Procuradoria, demora no cumprimento dos despachos. Aqui também não são os recursos o obstáculo para o andamento rápido.Da Justiça Federal dou só um exemplo, para não ser cansativo: em desapropriação movida pelo DNER, em começos de 1979 a desapropriada até hoje não recebeu integralmente o preço. Os autos de embargos à execução estão com o relator desde 1998, o que terminou dando oportunidade para que a emenda constitucional dilatasse o prazo para mais dez anos, para terminar o processo mais de trinta anos depois de começado.Verdade seja dita: num país em que o Estado é defeituoso, o Judiciário não pode ser exceção, até pela complicação tradicional de sua operação. O Poder Judiciário, enquanto Poder, tem parte da culpa em não impor a condição de Poder aos dois outros, para tratamento igualitário. Tenho visto, por exemplo, queixas contra a falta de autonomia econômica e administrativa do Judiciário. Ora, a Constituição a assegura. Se não é transformada em realidade prática, a culpa, evidentemente, também é do Judiciário, que não “briga” por ela. Ou “briga” insuficientemente. Com timidez. E que compõe, quando pressionado.A Justiça Militar compreende estrutura onerosa, especializada, cujo número de processos chega a ser chocante em relação à avalanche que atinge os demais ramos da Justiça Constitucional. Argumenta-se, para sua manutenção, com as condições especiais da atividade castrense, exigindo avaliação inconfundível com a reclamada para a disciplina mais amena de atividades não militares. Admito que assim seja na primeira instância, quando os aspectos fáticos predominam. Na segunda instância, quando os temas de direito se impõem, é diferente e, evidentemente, mais diversa ainda no Superior Tribunal Militar, onde os elementos de fato não interferem.

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A Justiça Eleitoral é a exceção gloriosa. Diziam os antigos que, na política e na guerra, mentira é como terra. A política tem muito das torcidas de futebol, em que a verdade das ações só é boa se for favorável ao “time” pelo qual se torce, sejam quais forem as circunstâncias dominantes. Nesse clima quente, mesmo antes da informatização, pode-se dizer que a Justiça Eleitoral contribui para que o Estado Democrático de Direito seja mantido. O custeio das campanhas - mesmo com as transformações legais - continuou, porém, exemplo do oposto. É o máximo de hipocrisia. Todos sabem que as contas dos partidos são, como regra, substancialmente falsas, mas, sendo formalmente exatas, recebem aprovação. Apesar de tudo, é um problema menor, até porque, nos casos mais escandalosos de abuso individual do poder econômico, têm ocorrido intervenções boas da Justiça Eleitoral. As queixas raramente deixam o terreno da emoção e do calor das disputas, embora sejam justas quando refiram o rigor da aplicação da Lei n. 9.054/97, ao restringir, inconstitucionalmente, a liberdade da informação.Para sugerir o que fazer, cabe um resumo, suscitando temas suplementares de permanente interesse, correspondentes ao que deve ser feito, em minha visão de operário do direito que está na luta desde 1954.O Poder Judiciário deve tomar consciência de sua condição de Poder. Sem temores. Para atender às expectativas da sociedade, há de fazer pé firme nos grandes temas de aprimoramento estrutural e funcional, para rigoroso respeito da Constituição. O êxito depende, nesse campo, do difícil aprendizado da comunicação com a sociedade.Assegurar-se da verdade estatística dos processos, por amostragem, é bom meio para constatar, acima de qualquer dúvida, que o esquema do processo, nas várias Justiças, pode ser descomplicado a prazo médio e a prazo longo. Recuso-me a admitir qualquer alternativa boa a curto prazo. No prazo médio, por exemplo, com a criação de maior número de órgãos julgadores e de seus respectivos elementos de apoio, material e humano. Tomo o exemplo deste Superior Tribunal de Justiça, órgão máximo do direito comum nacional, com apenas trinta e três ministros, alimentados por casos julgados por cinco centenas de magistrados, só em São Paulo, e de milhares de outros, nos Estados e nas Regiões. É ingenuidade supor que leis restritivas dos recursos segurarão a avalanche crescente. Já foi assim com a argüição de relevância no STF.Nós não temos contado ao povo, quando tratamos dos Juizados Especiais, que não podemos estimular o “consumo” dessa Justiça Direta porque não dispomos de infra-estrutura para receber grande número de questões. Elas certamente nos assoberbariam se ampliássemos a divulgação, pelo Brasil afora. Se formos manter os Juizados, terá de ser para valer, com equipamentos, mobilidade, pessoas competentes e assim por diante. Caso contrário será brincarmos com brinquedo novo, desativando o velho, sem nenhuma vantagem. Em tempos de verbas curtas, as prioridades, perdoem-me, devem ser prioritárias.Será imprescindível tratar o Poder Público em juízo como qualquer parte. Será até admissível o prazo em dobro para contestar, mas seus procuradores devem merecer o mesmo tratamento dos advogados em geral. É inadmissível que só sejam intimados pessoalmente, acumulando “backlog” de processos que se eternizam, satisfazendo estatísticas, mas se comportando como verdadeiros mastodontes, pesados, que não andam, nem a benefício do Poder Público, nem a benefício da credibilidade da Justiça e, muito ao reverso, facilitando a corrupção.E por falar em corrupção, penso que o Judiciário atende majoritariamente às expectativas de honorabilidade de seus juízes, na sociedade brasileira. É evidente que predomina nas classes mais pobres a convicção de que os mais endinheirados são protegidos, convicção substancialmente verdadeira. Contudo, em geral se reconhecem outros defeitos, que vão da linguagem complicada à lentidão no processo decisório, não confundíveis, contudo, com a improbidade. Em minha experiência pessoal, de caráter puramente impressionista, devo, porém, confessar que os casos de corrupção, boateiros ou verdadeiros, muito raros em tempos passados, hoje se apresentam mais numerosos, embora em proporção provavelmente menos crescente que o aumento do número de magistrados. No momento em que os advogados temem não pôr a mão no fogo pela absoluta seriedade de seus juízes, é porque chegou a hora de nos preocuparmos mais seriamente com o assunto, apesar da inacatabilidade da maioria.

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O Pode Judiciário deve lutar pelo aprimoramento de sua infra-estrutura. O problema central, sobre o qual repousam as principais expectativas da sociedade, está na primeira instância onde a maior parte dos casos se resolve. Aparelhamento, treinamento profissional, ausência de nepotismo, controle disciplinar, interligação em rede, melhores salários, são alguns dos aspectos a serem lembrados. Sobretudo, mais varas, mais cartórios. Mão-de-obra proporcional à demanda. Um bom juiz, por mais trabalhador que seja, não realiza a justiça oficial. No Judiciário o trabalho em equipe predomina, para alcançar qualidade. O Magistrado é o artilheiro, mas, sem que sua infra-estrutura o alimente, ele não marcará gols ou os marcará em número tão pequeno que continuará frustrando as expectativas da sociedade.

A MEDIAÇÃO NO CONTEXTO DOS MODELOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOSRoberto Portugal Bacellar

JUSTIÇA OFICIAL E OS EQUIVALENTES JURISDICIONAISA proliferação dos conflitos tem direta relação com o aumento populacional que é inevitável. Com a tendência universal de ampliação do “acesso à justiça”, sentida no Brasil notadamente a partir do advento da Constituição da República de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, sintomaticamente houve uma redescoberta da Justiça pelo cidadão.Oito milhões de “causas” têm ingressado nos juízos brasileiros anualmente sem que o Poder Judiciário se reestruture adequadamente para recepcioná-las.Abriram-se as portas da Justiça. Esqueceram-se, entretanto, de ampliar os instrumentos de “saída da justiça”! O acesso à justiça, que antes representava uma simples garantia formal - dentro da estrutura arcaica, complicada e carregada de ônus pecuniário impossível de ser suportado pelo cidadão comum, passou a representar um direito efetivo.Os direitos passaram a ser pleiteados independentemente de sua representação financeira, ocasionando um proporcional aumento no volume das pequenas causas. Os extintos Juizados de Pequenas Causas, mesmo com sua reduzida competência, historicamente, foram fundamentais para o aperfeiçoamento da Justiça e contribuíram decisivamente para estimular a adoção de novas posturas por parte dos processualistas. Inicialmente renitentes em aceitar o sistema, os processualistas acabaram por tolerá-lo em face dos incontestáveis resultados práticos alcançados pela Lei n. 7.244, de 07.11.84 (Lei dos Juizados de Pequenas Causas).Foram, entretanto, os Juizados Especiais estabelecidos no art. 98, inc. I, da Constituição da República e dispostos na Lei n. 9.099, de 26.9.95, com a significativa ampliação da esfera de atuação - não mais restrita a pequenas causas e agora com competência para causas de menor complexidade -, que verdadeiramente introduziram, na órbita processual brasileira, um sistema revolucionário e diferenciado de aplicação da justiça. A Lei dos Juizados Especiais, além de trazer um novo procedimento, foi mais além e dispôs sobre processo, dentro de um microssistema (Sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais) que rejeitou os vícios formalísticos que sempre emperraram o sistema tradicional - óbices para o alcance da celeridade tão desejada e propalada.A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais deu cumprimento à imposição constitucional estampada no art. 98, inc. I, da Constituição da República e ao discipliná-los inaugurou uma

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profunda modificação no sistema elitizado até então reinante na Justiça tradicional e adotou a gratuidade processual como regra, com indiscutíveis benefícios sociais. Em menos de dois anos de funcionamento - e ainda com estrutura insatisfatória - os Juizados Especiais Cíveis já estão a abarcar 35% (trinta e cinco por cento) do volume global de processos que ingressam na Justiça Estadual Brasileira.1 Parece estar acontecendo algo semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos há alguns anos atrás que costumo denominar de “crise positiva de credibilidade” - embora aqui devamos entender credibilidade muito mais como facilitação do acesso à justiça do que propriamente confiança do povo no sistema judiciário do país.Concomitantemente à estabilização do volume de causas da Justiça Tradicional2 - e não esvaziamento da justiça tradicional como apregoavam alguns -, os Juizados Especiais Cíveis vieram dar acesso à justiça a quem nunca teve. E os exemplos, pelo Brasil afora, são muitos: acordo de R$12,00 (doze reais) para pagamento em duas vezes; reclamação sobre um “radinho de pilha” mal consertado; liqüidificador com defeitos; problemas de vizinhança; condomínio; dentre outros tantos.

O que contribuiu também para incentivar a procura da Justiça pelo povo foi a introdução dos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, aliados à dispensabilidade de assistência por Advogado nas causas de até 20 (vinte) salários mínimos; o tema “acesso à justiça” nos Juizados Especiais Cíveis brasileiros causa inveja ao mundo.3 Para as causas menos complexas, temos um sistema gratuito (em primeiro grau de jurisdição), com conciliações e arbitragens4 rápidas e, se necessário, com sentenças “de mérito” proferidas igualmente em curto espaço de tempo. Já não sem tempo, percebeu o Legislador brasileiro que não bastava a alteração procedimental, sugerida com base em situações hipotéticas, sem considerar sua operacionalidade.5 Barbosa Moreira, referindo-se ao processo como instrumento que é da realização efetiva do direito material, ensina que: “Nenhuma ‘revolução’ puramente processual é suscetível, por si só, de produzir, na estrutura jurídico-social, modificações definitivas”.6As mudanças introduzidas pelos Juizados Especiais “lançam ao mar”7 conceitos que, embora retrógrados, estavam cristalizados há anos como verdades incontestáveis8, e operam uma verdadeira “revolução silenciosa” nos sistemas Jurídico e Judiciário brasileiros. A inafastabilidade do Poder Judiciário prevista no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República é garantia fundamental que não se confunde com o monopólio da atividade jurisdicional. Este não pressupõe que todas as questões devam necessariamente ser decididas por Juiz de Direito. Já há muito tempo sabemos que um dos problemas que prejudica a celeridade da Justiça reside principalmente nas pautas dos Juízes. Enquanto um Juiz, no limite máximo de sua capacidade, conseguiria - em tese - fazer dez audiências por dia9, este mesmo juiz, se fosse auxiliado por dez Juízes leigos10, com a mesma capacidade produtiva, poderia fazer cento e dez audiências em um único dia.Guardadas as devidas proporções, é assim que trabalha a maior Corte do mundo no gênero; a Small Claims Court de Nova Iorque - Manhattan conta com 3 Juízes togados (na nossa terminologia) e 1.200 árbitros - conciliadores. Cada magistrado tem multiplicada a sua capacidade produtiva em até quatrocentas vezes: está aí a explicação que eleva esta Corte à de maior volume de resolução do mundo (repito, no gênero - atendimento de pequenas causas), com mais de 100 mil casos julgados anualmente.11 Hoje, não só nos Juizados Especiais mas também na Justiça Tradicional, já é possível o alcance da multiplicação da capacidade do juiz, que, nos moldes do § 1º do art. 277 do Código de Processo Civil, pode buscar auxílio de conciliadores.INCENTIVO AOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOSOs Juizados Especiais, depois da assimilação das mais variadas e contundentes críticas, gradativamente estão conquistando reconhecimento por parte dos juristas brasileiros; alguns críticos acabaram tendo seus discursos esvaziados em face do volume de atendimento e dos resultados alcançados pelos Juizados Especiais.O monopólio jurisdicional, ou a exclusiva função, atividade e poder do Estado de aplicar a lei ao

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caso concreto, se de um lado representa uma conquista histórica de garantia da imparcialidade, independência para o alcance da segurança jurídica e manutenção do estado de direito, não é suficiente para dar vazão ao volume de litígios que afloram diariamente.Portanto, concomitantemente ao monopólio jurisdicional, é necessário e recomendável o incentivo aos meios extrajudiciais de resolução dos conflitos. Sem a necessidade de afastar o monopólio da atividade jurisdicional, desprestigiá-lo ou criticá-lo para valorizar as “soluções alternativas” - como tem acontecido comumente -, temos de reconhecer a incapacidade estrutural do Estado-Juiz de acompanhar o crescimento populacional e a conseqüente multiplicação dos litígios.É com os denominados “equivalentes jurisdicionais” que conseguiremos acompanhar o dinamismo crescente da sociedade, proporcionando uma melhor solução para a chamada “crise do Poder Judiciário”. Aqui abro um parênteses para dizer que só há verdadeiramente uma crise quando não conhecemos os problemas que a induzem.Raymand Williams, crítico social inglês, dizia que a crise é sempre uma crise de entendimento, pois aquilo que genuinamente compreendemos nós podemos fazer.Precisamos, pois, dentro de nossa visão conjunta - e do conhecimento que já dispomos sobre os problemas da Justiça - lutar pela derrubada de velhos conceitos. Lembro-me de que o Ministro Hélio Beltrão, homem que abriu caminho para o desenvolvimento destas idéias, falecido no dia 27 de outubro de 1997, enfrentou forte resistência na defesa corajosa de sua revolucionária proposta que orientou a aprovação da Lei n. 7.244/84, dos Juizados de Pequenas Causas.Já nos ensinava Lacerda: “Quando as coisas instituídas falham, por culpa de fatores estranhos a nossa vontade, convém abrir os olhos às lições do passado para verificar se, acaso, com mais humildade, dentro de nossas forças e limites, não podem elas nos ensinar a vencer desafios do presente”.12Aprendendo com a lição de Hélio Beltrão - que hoje retrata o passado -, desperta hoje o país para a necessidade não só de reformulações procedimentais como a elogiável tutela antecipatória, o novo regime do agravo e tantas outras, mas também para o incentivo e a implementação de meios alternativos de resolução de conflitos.

MODELO CONFLITUAL E MODELO CONSENSUALO modelo tradicional de jurisdição carrega consigo a característica da conflituosidade (ganha/perde), enquanto surgem experiências que propõem um modelo consensual (ganha/ganha) para solução das demandas.Devemos caminhar com passos articulados, com destino ao aperfeiçoamento de novas técnicas que propiciem à população o mais amplo acesso à justiça, com a rápida e eficaz solução dos litígios. É nossa responsabilidade impedir a “renúncia aos direitos” ou que continue represada nos corações brasileiros uma “litigiosidade contida” que na maioria das vezes leva o cidadão a praticar atos anti-sociais e o conduz à criminalidade. O custo político dessa forçosa renúncia ao Poder Judiciário não pode ser desprezado. Conhecemos os problemas da Justiça, portanto podemos resolvê-los. O levantamento feito pelo Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo - IDESP, em cinco Estados brasileiros, confirmou o que já sabíamos: apontou a lentidão do sistema como principal causa do descrédito da Justiça,13 relacionando dentre suas causas:- o excesso de formalidades processuais e de recursos protelatórios permitidos pela legislação, registrando que 90% das decisões de segunda instância confirmam sentenças proferidas em primeira instância;- número insuficiente de Juízes, algumas vezes, não por falta de candidatos, mas porque as vagas não são preenchidas devido ao baixo nível dos concorrentes; indicou a pesquisa que no Brasil há um juiz para cada 29.542 habitantes, enquanto na Alemanha esta relação é de um magistrado para 3.448 habitantes, na Itália, de um Juiz para 7.500 habitantes, na França, de um para 7.142 habitantes.A situação é crítica. Advogados reclamam pela demora nas decisões, e os Juízes não mais suportam o demasiado volume de processos. É conveniente lembrar a advertência de Bentham: “A imperfeição da Justiça gera, a princípio, o

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terror; depois, a corrupção; e por fim a queda de qualquer regime”.Não é de hoje que a Justiça se tem mostrado ineficiente. Exemplo significativo da ancianidade dos problemas que envolvem a Justiça, embora com amplitude maior do que a objeto de nossa análise, está no discurso proferido no Senado por Rui Barbosa em 1914, quando afirmava que o grande mal de nossa terra era a falta de Justiça, e concluía: “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.14Como a nossa geração é que está sendo responsabilizada por esses problemas, é ela que haverá de buscar soluções que se afigurem concretas e um caminho tranqüilo para o alcance da pacificação social15, fim último e atividade buscada pelo Poder Judiciário em todos os tempos. É a geração desse terceiro milênio que se avizinha, que deverá ter a sensibilidade e racionalidade de reconhecer que algumas questões, desde que com o consenso dos interessados, recomendam solução “alternativa” dentro de um modelo consensual, independentemente da intervenção do Poder Judiciário. Nessa linha de raciocínio, precisamos aperfeiçoar o modelo tradicional de aplicação da Justiça que funciona integrada ao Estado - monopólio jurisdicional - e concomitantemente assimilar o modelo consensual com suas novas técnicas de resolução de conflitos.

NEGOCIAÇÃOComo vimos, os conflitos multiplicam-se diariamente: nas famílias, nas relações de vizinhança, entre casais, empregados e patrões, entre comerciantes e consumidores, enfim. Na década de 80, motivado pela multiplicação dos conflitos, o professor Roger Fisher, da Faculdade de Direito de Harvard - EUA, deu início a uma pesquisa16, que começou com as seguintes indagações:–– Qual a melhor maneira de tratar de um litígio envolvendo duas pessoas?–– Qual é o melhor conselho que se poderia dar a um marido e uma mulher que se estão divorciando e querem alcançar um acordo justo, mutuamente satisfatório, sem acabar numa discussão amarga?A partir das indagações formuladas, desenvolveram-se métodos práticos e técnicas para negociar acordos amigavelmente, sem fazer concessões. Percebeu-se ser possível aplicar técnicas17 e com elas melhorar as condições de resolução dos litígios, evitando ofensas mútuas, mantendo o respeito e principalmente preservando o relacionamento; ainda assim, com satisfação recíproca - ganhos mútuos. Segundo a nossa concepção tradicional, as assertivas afiguram-se como impossíveis. Porém, como veremos, independentemente da atuação do Estado-Juiz, utilizando-se de técnicas de negociação, as pessoas podem satisfazer seus interesses alcançando um resultado que realmente venha a solucionar o litígio com ganhos recíprocos, bastando para tanto uma investigação dos verdadeiros interesses.18A negociação, de regra, faz-se diretamente entre os interessados na resolução da controvérsia (negociação direta), mas pode, excepcionalmente, contar com o auxílio de um terceiro (negociação assistida).

MEDIAÇÃODo estudo e da pesquisa inicial envolvendo a negociação assistida, surgiu a MEDIAÇÃO como forma de resolução dos conflitos intermediados por um terceiro - mediador - conhecedor daquelas técnicas. A mediação, segundo a concepção que trazemos do direito Norte-Americano19, não se confunde com a conciliação, muito menos com a arbitragem.A conciliação e a arbitragem, também conhecidas como “alternativas” para a resolução dos conflitos, já são bastante conhecidas: a conciliação é definida como um acordo de vontades, onde as pessoas fazem concessões mútuas a fim de solucionar o conflito; a arbitragem como a convenção que defere a um terceiro, não integrante dos quadros da magistratura oficial do Estado, a decisão a respeito da questão conflituosa envolvendo duas ou mais pessoas.

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A mediação pode ser, grosso modo, definida como técnica que induz as pessoas interessadas na resolução de um conflito a encontrar, por meio de uma conversa, soluções criativas, com ganhos mútuos e que preservem o relacionamento entre elas.Em outras palavras, ressalta tratar-se de um diálogo assistido por um mediador, tendente a propiciar um acordo satisfatório para os interessados e por eles desejado, preservando-lhes o bom relacionamento. É costume arraigado da sociedade brasileira tratar das controvérsias como uma disputa entre partes em busca de uma decisão (modelo conflitual - ganha/perde), mesmo que gere prejuízo aos laços fundamentais e eventualmente afetivos existentes entre elas.A mediação procura valorizar estes laços fundamentais de relacionamento, incentivar o respeito à vontade dos interessados, ressaltando os pontos positivos de cada um dos envolvidos na solução da lide, para ao final extrair, como conseqüência natural do processo, os verdadeiros interesses em conflito. Tudo isso é alcançado com o auxílio de um terceiro - mediador - que, utilizando-se desses conhecimentos cientificamente desenvolvidos, conduz as pessoas, por meio de indagações criativas, a achar a solução ou as soluções ideais para o conflito (modelo consensual).Trata-se, no Brasil, de um instituto novo, embora bastante utilizado nos Estados Unidos, no Japão, na China, na Austrália, em alguns países da Europa e entre nós, notadamente na Argentina.De início haveremos de perceber que a mediação não visa acabar ou competir com as atividades do Poder Judiciário, até porque nenhuma lesão ou ameaça de direito pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário. Entretanto, temos que reconhecer que o Poder Judiciário só pode decidir a partir de premissas inafastáveis, dentre as quais as que envolvem o procedimento e outras que albergam os princípios informativos do processo. Não pode por exemplo o juiz decidir citra, extra ou ultra petita. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, não podendo decidir a questão a favor do autor, de natureza diversa do pedido, e nem condenar o réu em quantia superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.As pessoas, em suas relações diárias, encontram obstáculos, de diversos fatores, para a solução tradicional de seus conflitos, dentre eles: a morosidade, o formalismo acentuado, o grande dispêndio com custas e honorários para contratação de um advogado. Mas a par dessas questões já conhecidas, o modelo tradicional, em parcela significativa dos casos, não resolve a lide sociológica, mas apenas a lide processual. O modelo tradicional não satisfaz o interesse da população. Em outras palavras podemos dizer que somente a resolução integral do litígio conduz à pacificação social; não basta resolver a lide processual - aquilo que foi trazido pelas partes no processo -, se o verdadeiro interesse que motivou as partes a litigar não for identificado e resolvido.O Poder Judiciário, com sua estrutura atual, trata apenas superficialmente da conflitualidade social, dirimindo controvérsias, mas nem sempre resolvendo o conflito. Em 1995, o Professor Amauri Mascaro Nascimento, em palestra que, proferiu na Faculdade de Direito de Curitiba, em Curitiba-PR, relatou que, quando juiz do trabalho da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de São Paulo, se teria deparado com a seguinte situação: um empregado ingressou com ação trabalhista contra sua empregadora - dona de uma confeitaria - alegando ter trabalhado vários anos em seu estabelecimento comercial e que nunca teria sido registrado; dizia ter feito horas extras não compensadas. Iniciada a audiência, como de praxe o juiz deu início às tratativas para uma conciliação. Relatou o magistrado que propôs a composição com pagamento parcelado, sugeriu o pagamento de percentual sobre o valor do pedido, sem que fosse possível qualquer acordo. Em determinado momento, o “empregado” dirigiu-se a ele e disse: “- na verdade, doutor, o que eu quero é que ela aceite casar comigo!”O juiz, embora percebendo a impossibilidade de resolver a lide processual, permitiu que o “empregado” continuasse sua narrativa que se fez nos seguintes termos: “ - Nós vivemos muitos anos juntos, “tocamos” juntos a confeitaria e há alguns meses eu acabei por beber um pouco demais... Ela me expulsou de casa, e agora não quer mais se casar comigo”.O juiz - professor Mascaro -, constatando a absoluta incongruência entre a lide processual e os verdadeiros interesses que motivaram o pedido, passou a conduzir uma verdadeira mediação: indagou da mulher - fictícia empregadora - se ela aceitava o pedido de casamento, naquele ato

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formulado; depois do desabafo da mulher confidenciando ser viúva e que seu falecido marido a teria incomodado bastante, exatamente “por causa” da bebida alcoólica, respondeu que só aceitaria a proposta se ele se comprometesse a não mais ingerir bebidas alcoólicas; mediante a afirmativa do “empregado” de que teria percebido seu erro - e com a separação já havia “largado de beber”-, ela então, finalmente, aceitou recebê-lo em matrimônio.O exemplo sugere a seguinte indagação: qual a ação, perante o Judiciário, que teria este cidadão para buscar ser ouvido em seus verdadeiros interesses ? Para a resolução de um conflito, algumas vezes é indispensável trazer à tona todos os aspectos que o envolvem, independentemente da observância restrita das informações e dos dados deduzidos na petição inicial e na contestação.Só as técnicas de um modelo consensual como as da mediação possibilitam a investigação dos verdadeiros interesses e conduzem à identificação diferenciada do “conflito processado” e do “conflito real”. Portanto, com a mediação, haverá o conhecimento global da causa, a resolução integral do conflito, preservado o relacionamento entre os litigantes.É relevante destacar mais uma característica distintiva entre a conciliação e mediação: a conciliação é mais adequada para resolver situações circunstanciais, como por exemplo uma indenização por acidente de veículo onde as pessoas não se conhecem (o único vínculo é o objeto do incidente) e, solucionada a controvérsia, não mais vão manter qualquer outro relacionamento; já a mediação se afigura recomendável para situações de múltiplos vínculos, sejam elas familiares, de amizade, de vizinhança, decorrentes de relações comerciais, trabalhistas, entre outras. Como a mediação preserva as relações, os demais vínculos não se interrompem e continuam a se desenvolver com naturalidade.Ensina o Professor Sousa Santos que sempre que as partes estão envolvidas em relações multiplexas, isto é, relações de múltiplo vínculo (opostas às relações circunstanciais, de vínculo único que se estabelecem entre estranhos), “a continuidade das relações por sobre o conflito tende a criar um peso estrutural a cuja equilibração só a mediação adequa”.20Na definição de Juan Carlos Vezzulla, “a mediação é uma técnica de resolução de conflitos, não adversarial, que, sem imposições de sentenças ou de laudos e com um profissional devidamente formado, auxilia as partes a acharem seus verdadeiros interesses e a preservá-los num acordo criativo onde as duas partes ganhem”.21MEDIAÇÃO E PACIFICAÇÃO SOCIAL A finalidade do Poder Judiciário é a pacificação social e, portanto, independentemente do processo e do procedimento desenvolvidos para a resolução dos conflitos no âmbito do monopólio jurisdicional, também cabe ao Judiciário incentivar técnicas que mais aproximem o cidadão da verdadeira Justiça. No Japão todos os conflitos trabalhistas são resolvidos por meio da mediação22 e são comuns situações de empregados que reclamam direitos contra seus empregadores, resolvem o conflito, sem prejudicar a relação de emprego; nos EUA é comum empresas submeterem-se a procedimentos mediados e preservarem suas relações comerciais, durante e após a resolução do conflito.A verdadeira Justiça só se alcança quando os casos se solucionam mediante consenso que resolva não só a parte do problema em discussão, mas também todas as questões que envolvam o relacionamento entre os interessados. Com a implementação de um “modelo mediacional” de resolução dos conflitos, o Estado estará mais próximo da conquista da pacificação social e da harmonia entre as pessoas.

CONCLUSÃOMediante a amplitude do assunto que abrange estudos filosóficos, psicológicos, sociológicos e antropológicos23 impossíveis de serem desenvolvidos neste trabalho, mas certamente indispensáveis ao conhecimento pleno das soluções alternativas de resolução de conflitos, centralizei este estudo na mediação dentro do contexto dos modelos consensuais, com base na observação das técnicas tradicionais do modelo conflitual em conjunto com as novas correntes que se estão formando em defesa da ampliação do enfoque “acesso à justiça”.Do confronto de dados e da experiência vivida pelo Poder Judiciário, resulta a convicção dirigida à

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necessidade de democratizar a Justiça - ampliando o leque de atuação da sociedade na resolução pacífica dos conflitos -, o que conduz ao convencimento de que é prejudicial se manter o monopólio jurisdicional, nos moldes atuais.O processo perante o Poder Judiciário só deve aparecer na impossibilidade de auto-superação do conflito pelos interessados, que deverão ter à disposição um modelo consensual que propicie a resolução pacífica e não adversarial da lide.Embora, a princípio, pareça um contra-senso, há possibilidade de se viabilizar a auto-superação dos conflitos de maneira extrajudicial na própria estrutura do Poder Judiciário. Os Juizados Especiais são exemplo vivo desta afirmação; preliminarmente as partes comparecem à sessão de conciliação (conduzida por conciliador ou Juiz Leigo); a seguir faculta-se a instauração consensual do Juízo arbitral; inviabilizados estes meios extrajudiciais (conciliação e arbitragem), por exceção, passa-se ao encaminhamento judicial da demanda com a instrução do processo e a decisão impositiva da lide.Na adequada visão de Lagrasta Neto, “a prevalecer o monopólio, estaremos cada vez mais distantes da solução alternativa dos litígios e retornaremos, a passos largos, para o formalismo, tão caro aos juízes, promotores e advogados ineficientes”.24 Tratando-se de pessoas capazes que voluntariamente pretendam resolver seus conflitos de maneira amigável, a imaginação criadora dos operadores do direito do terceiro milênio haverá de avançar no estudo de mecanismos informais de composição de conflitos que não se deixem influenciar e sufocar pela burocracia, pelo formalismo e pela exagerada documentação. Alguns Estados, dentre eles o Estado de Goiás e o Estado do Paraná, têm aplicado criativamente técnicas alternativas para a resolução de conflitos.Há três anos funciona no Juizado Especial Cível de Curitiba um plano piloto (teste na aplicação do modelo consensual) que busca a solução mediada de conflitos e se organiza da seguinte forma: antes de registrado o pedido ou na impossibilidade de recepcioná-lo, mediadores do Instituto de Mediadores Brasileiros que trabalham integrados à Defensoria Pública do Estado do Paraná aproximam os interessados visando a resolução do conflito.25 O acordo decorrente da mediação, após reduzido a termo, é referendado pela Defensoria Pública ou homologado pelo Juiz togado. Em outra situação verificada depois de registrado o pedido, o Juizado Especial tem dentre seus conciliadores alguns mediadores formados e associados à Associação Brasileira de Conciliadores e Mediadores que facilitarão o entendimento na busca da resolução global do conflito, notadamente nas demandas que deixem transparecer envolverem relações multiplexas.Nosso Juizado Especial de Curitiba está desenvolvendo a mediação criminal que já tem apresentado resultados promissores.O relato de um exemplo prático (questão cível) será interessante para demonstrar a importância da experiência observada nos Juizados Especiais de Curitiba. Chegou ao Juizado Especial um senhor com a seguinte pretensão: “- Quero entrar com uma ação para fazer acordo com o dono de um terreno que eu invadi, lá na Cidade Industrial.” O funcionário do Juizado disse não poder atendê-lo e o encaminhou para a Defensoria Pública que funciona nas dependências do Juizado26; na Defensoria Pública igualmente obteve a informação de que não poderia ser atendido em sua pretensão. Acionado o serviço de mediação, o proprietário do terreno foi convidado a comparecer perante o Juizado - leia-se o setor de mediação da Defensoria Pública. No dia designado, relatou o “invasor” ser trabalhador (mecânico de automóveis) e que veio da Cidade de Londrina, por imposição médica, para tratar de sua mulher. Esta teria que fazer um tratamento no Hospital das Clínicas de Curitiba, e, por lhe faltar dinheiro para pagar um quarto, foi levado a invadir o terreno; afirmou não ter qualquer pretensão de “roubar” o terreno e que, assim que acabe o tratamento, pretende voltar para sua Cidade e se compromete a desocupar o terreno invadido. O proprietário, depois de ouvir os interesses do invasor, disse que seu interesse era preservar o direito de propriedade sobre o imóvel e mantinha a preocupação de que ele viesse, posteriormente, a requerer usucapião sobre seu terreno... mas, em face das circunstâncias, concordava com sua permanência no terreno pelo prazo de mais um ano, desde que fosse assinado um contrato de comodato. O invasor espontaneamente se

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comprometeu a cuidar e zelar do imóvel para o proprietário. Cappelletti27 traz a seguinte reflexão: “Supondo que haja vontade política de mobilizar os indivíduos para fazerem valer seus direitos - ou seja, supondo que esses direitos sejam para valer - coloca-se a questão fundamental de como fazê-lo”.Nos últimos dias passou a nos preocupar a tendência dos governantes em investir quantias vultosas na mediação e na arbitragem antes de se voltar os olhos à melhora do Poder Judiciário. No Brasil já se percebe essa tendência, que além de preocupante enfraqueceria o regime democrático e o estado de direito. O professor Boaventura de Sousa Santos da Universidade de Coimbra, em artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo, de 09 de novembro de 1996 (Os Tribunais e a Globalização), denuncia sua preocupação com a globalização e o intrigante interesse político pelos Tribunais e pela reforma do sistema judicial. A agência americana de apoio ao desenvolvimento (USAID) tem como prioritários os programas de reforma judicial, tanto assim que o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) têm proporcionado valiosos financiamentos para a denominada reforma judicial em diversos países.Será que o objetivo das agências internacionais é tornar o Poder Judiciário ágil, rápido, acessível ao povo e eficaz?A resposta da pergunta está nas palavras do próprio professor Boaventura:Esses objetivos globais são muito simplesmente a criação de um sistema jurídico e judicial adequado à nova economia mundial de raiz neoliberal, um quadro legal e judicial que favoreça o comércio, o investimento e o sistema financeiro. Não se trata, pois, de fortalecer a democracia, mas, sim, de fortalecer o mercado. O que está em causa é a reconstrução da capacidade reguladora do Estado pós-ajustamento estrutural. Uma capacidade reguladora que se afirma pela capacidade do Estado para arbitrar, por meio dos tribunais, os conflitos entre os agentes econômicos. O sistema judicial precisa ser radicalmente reformado para responder às aspirações democráticas dos cidadãos cada vez mais sujeitos ao abuso de poder por parte de agentes econômicos muito mais poderosos. Se essa reforma política e democrática não tiver lugar, o vazio que a sua ausência produzirá será certamente preenchido por uma reforma tecnocrática virada para servir preferencialmente os interesses da economia global28.

Os investimentos dirigidos à reforma do Poder Judiciário pelas agências internacionais só têm enfraquecido o Judiciário como Poder. De regra o dinheiro entra no País por meio do Ministério da Justiça (Poder Executivo) que, ao invés de investir no Poder Judiciário, investe apenas nas soluções alternativas. É o recente exemplo da Argentina que após os investimentos internacionais instituiu a mediação obrigatória sem nenhuma preocupação com o Poder Judiciário que está a cada dia mais enfraquecido e desmoralizado.A primeira Corte Brasileira de Arbitragem Comercial foi instalada em Brasília no dia 24 de novembro de 1997, em cerimônia realizada no Superior Tribunal de Justiça. No mesmo dia da cerimônia, representantes do Brasil, Argentina, Colômbia e Estados Unidos estiveram reunidos para viabilizar a melhor utilização da lei de arbitragem brasileira.A preocupação aumenta quando se verifica que, nos moldes Argentinos, a Colômbia também vem recebendo investimentos internacionais na reforma judiciária a fim de atingir seus objetivos globais.Tenho percebido que, no processo de globalização, não tem faltado dinheiro desses grupos internacionais para investimentos na mediação e arbitragem. Quando vemos o Vice-Presidente da República manifestando boa intenção no sentido de melhorar a Justiça, haveremos de advertir que concomitantemente com investimento em soluções alternativas temos que priorizar nossa atenção ao Sistema Oficial de Resolução dos Conflitos que no Brasil ainda é o Poder Judiciário.Assim, devemos lembrar que, quando pretendemos reformar alguma coisa, o fazemos sempre para melhorá-la. Entretanto o que vejo, quando se trata de discutir a reforma do Judiciário, são críticas estéreis e indicação de soluções que importariam em um custo – investimento que nunca foi repassado ao Judiciário. Se vierem os investimentos do Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou outros, como tudo está a indicar, que se destinem ao Poder Judiciário.Qualquer reforma que pretenda melhorar o sistema de resolução de conflitos deve investir primeiro

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no Judiciário, depois nas soluções alternativas.Crítica se faz aos que vislumbram na mediação uma forma de privatizar a justiça. A mediação, na origem como técnica privada, não precisa criticar o Poder Judiciário para se estabelecer. Perceba-se que a proposta de extinção da Justiça do Trabalho vem acompanhada da criação de serviço privado de mediação e arbitragem. No Brasil, recentes pesquisas realizadas confirmam que o povo ainda confia no Judiciário, embora o critique. A conclusão da Grottera Comunicação e Companhia Brasileira de Pesquisa e Análise (CBPA) foi de que o povo acredita em seus juízes. O gerente de planejamento e comunicação da Grottera, Alberto Cabaleiro, mostra que o Judiciário não está sabendo usar os meios de comunicação para estreitar o contato com a população. Para ele a boa imagem dos juízes poderia ser usada para alavancar a imagem do Judiciário. Na falta de maior divulgação dos atos da Justiça, os brasileiros atribuem à mídia, impressa ou eletrônica, o papel de instituição que mais ajuda a fazer justiça no País.29Um Poder Judiciário forte é base da Democracia e a garantia de independência do cidadão, tenha ou não vínculo político e poder econômico. Assustam sobremaneira as interferências indevidas e sem conhecimento de causa dirigidas ao Poder Judiciário Brasileiro. Ao abrir os jornais diários brasileiros, encontramos, por exemplo, o vice-presidente do Banco Mundial (BIRD) para a América Latina e Caribe, Shahid Javed Burki, recomendando ao governo brasileiro a reforma do Judiciário30. Uma leitura desatenta poderia fazer supor o aspecto positivo da notícia, entretanto o que se pretende é o desmantelamento do Poder Judiciário para sobrelevar a Mediação e a Arbitragem, que melhor atendem ao sistema econômico que decorre do processo de globalização. Estamos atentos e não permitiremos que o povo brasileiro seja iludido e enganado. Se houver investimento no Poder Judiciário, sem seu desprestigiamento, é possível que o próprio Judiciário incentive os meios alternativos (como a arbitragem e a mediação); caso o investimento “ao Poder Judiciário” se destine ao Ministério da Justiça, como essas entidades internacionais estão fazendo supor, estaremos atentos para denunciar o engodo.Não é apenas do Poder Judiciário a responsabilidade e o dever de solucionar os conflitos, entretanto como Poder independente ele sempre deverá estar à disposição do povo para fazer cessar qualquer abuso ao direito dos cidadãos. Haveremos de refletir que é importante a viabilização do acesso a soluções rápidas para as controvérsias, sejam elas oriundas do Poder Judiciário ou não. Entretanto, a qualquer tempo e sempre que necessário, pode o Poder Judiciário ser provocado para fazer retornar as coisas à linha da legalidade. O Sistema Judiciário Estatal, em face do volume de casos que lhe são submetidos, não está mais atendendo aos interesses da população. Resta-nos, portanto, com seriedade encorajar alternativas criativas ao modelo tradicional, sem desprestigiá-lo. Talvez não cheguemos ao ideal, mas pelo menos faremos emergir novas idéias, inspiradas na lição de Roosevelt: “é melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias mesmo expondo-se à derrota, do que formar fila com os pobres de espírito, que nem amam muito nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota.”

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MERCOSUL: PERSPECTIVAS DE UM DIREITO COMUNITÁRIO ATRAVÉS DE UM TRIBUNAL SUPRANACIONAL E DE UM PARLATINOAntônio Rulli Júnior

Sumário: Introdução. Mercosul e Espaço de Integração. Direito Comunitário: pedra angular do espaço de integração. Mercosul e Direito Comunitário. Direito Comunitário e Soberania. Direito Comunitário e Direito Nacional. Estado Nacional e Direito Internacional. Contratos Internacionais e Estado Nacional. Protocolo de Brasília e Sistema de Solução de Controvérsias. Protocolo de Las Leñas e o Supremo Tribunal Federal. Construção de um Direito Comunitário: Tribunal Supranacional e Parlatino. Conclusão.

IntroduçãoA EMERON, através de seu Diretor-Geral, Desembargador Gabriel Marques de Carvalho, e de seu Vice-Diretor, Juiz Marcos Alaor Diniz Grangeia, vem desenvolvendo excelente trabalho de estudo e pesquisa, alcançando grande motivação entre os Juízes.Ao lado da eficiência profissional, a preocupação com a formação completa dos Magistrados, criando postura que vem ganhando o respeito da população do Estado de Rondônia, como bem demonstrado ficou no I Congresso Estadual de Magistrados de Rondônia, realizado em Guajará-Mirim, nos dias 10 a 12 de agosto de 2000.O Tribunal de Justiça de Rondônia vem alcançando seus objetivos, através da EMERON, na melhor qualificação dos Juízes.O fenômeno da globalização, híbrido de processo e de fato, é fruto da revolução tecnológica e telemática, percebendo as necessidades emergentes, com o norte da institucionalização nas relações regionais emergentes, onde está como corolário a organização do poder através da construção, seja de um ordenamento jurídico, seja de órgãos de exercício de poder institucionalizado, onde inafastavelmente se inserem dois princípios fundamentais, por imperativo lógico e ético, o da universalidade da jurisdição e um poder jurisdicional materializado na Corte de Justiça do Mercosul, com a missão essencial de dizer o Direito, no que funda a civilização, no que tem de mais nobre.O Mercosul – Mercado Comum do Sul – é um bloco dentro de um espaço de integração sub-regional, com objetivos econômicos, que se originou, em 26 de março de 1991, do Tratado de Assunção, firmado pela República Federativa do Brasil, República Argentina, República do Paraguai e República Oriental do Uruguai.É a superação dos limites das fronteiras geográficas, com a criação do nosso espaço de integração, o nosso palco histórico, com condições para a formação de uma cidadania comum e integrada por um Tribunal Supranacional e um Parlatino, não como um desafio de hegemonia ou de dominação, mas como um desafio de cooperação e otimização de recursos por meio de integração comercial, energética e política, com o fortalecimento das instituições democráticas.

Mercosul e Espaço de IntegraçãoAs nações modernas têm interesse na integração, com o livre fluxo de pessoas, mercadorias, capitais e serviços. Em março de 1991 foi assinado o Tratado de Assunção (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai)1.O Mercosul iniciou-se como simples união aduaneira, com evolução para a formação de um mercado comum e, finalmente, para a criação de uma comunidade.A viabilização desse novo espaço de integração tem como fundamento o direito comunitário. Um

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novo direito cujas características o diferenciam do direito internacional clássico e do direito interno dos Estados-Membros.2Constitui-se, assim, como um ramo da ciência jurídica e, portanto, como conjunto de normas coercitivas, cuja aplicação produz efeito obrigatório entre os sujeitos partes da relação jurídica criada pelo direito comunitário.A partir da década de cinqüenta, motivados pelo idealismo de Bustamante, tivemos vários projetos, aproveitando o sistema estatutário da Ibero-América, para constituir uma legislação uniforme e que possibilitaria um sistema jurídico simétrico e homogêneo. Ex.: o Código Penal Tipo para a América Latina, Código de Processo Tipo, Código Tributário Tipo e, em andamento, o Código do Trabalho Tipo.Portanto, o direito comunitário afasta-se daqueles conceitos e características das organizações clássicas e daquelas de natureza de estado nacional e de estado federal.3A experiência européia mostra-nos que o direito comunitário, no processo de integração, não poderia resolver validamente os problemas das relações jurídicas entre as diferentes ordens jurídicas sem abandonar o conceito de soberania nacional indivisível, impondo-se uma concepção dualista, ou seja, a aceitação do exercício conjunto da norma comunitária mediante a transferência de certas competências a uma organização.Percebe-se ser indispensável a criação de mecanismo que assegure o cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados-Membros nos tratados constitutivos. A integração, na verdade, depende de vontade política dos Estados.O processo de integração é novo e diferencia-se das organizações internacionais onde a preocupação é a coordenação e cooperação.A limitação voluntária dos direitos soberanos é o fundamento do direito comunitário, derivado de seu caráter e natureza supranacional.A Constituição da Argentina de 1994 prevê a criação de Órgãos Supraestatais (art. 75, inc. 24: - “Aprovar tratados de integração que deleguem competência e jurisdição a organizações supra-estatais em condições de reciprocidade e igualdade, que respeitem a ordem democrática e os direitos humanos. As normas editadas, em conseqüência, têm hierarquia superior às leis”) , enquanto a Constituição do Paraguai de 1992, em linguagem mais atual, prevê a criação de Órgãos Supranacionais (art. 145: - A ordem jurídica supranacional é um progresso dentro do conceito da solidariedade do homem e da humanidade; é uma forma de estabelecer parâmetros nos quais o homem deixa de lado o nacionalismo para se inserir numa ordem internacional em que os direitos humanos sejam reconhecidos como de caráter internacional - “A República do Paraguai, em condições de igualdade com outros Estados, admite uma ordem jurídica supranacional que garanta a vigência dos direitos humanos, da paz, da justiça, da cooperação e do desenvolvimento, no político, econômico, social e cultural”). O Brasil e o Uruguai não têm esta previsão.A legitimidade desta nova ordem jurídica se apóia no exercício de competências próprias dos Estados e que são transferidas para órgãos comunitários (Ex.: Tribunal de Justiça Supranacional, Parlamento Supranacional, entre outros), abandonando-se, assim, o conceito de soberania nacional indivisível.Não se trata de uma delegação de exercício de certos poderes, é uma limitação definitiva de certas competências. Esta limitação ganha relevo pelas possibilidades que os órgãos comunitários têm de exarar normas obrigatórias. Estes poderes são exercidos de forma conjunta, de tal maneira que os sujeitos dessa nova ordem jurídica não são os Estados, como no Direito Internacional clássico, senão e também os indivíduos desses Estados que passam a estar estreitamente vinculados ao processo de integração, porque as normas comunitárias os afetam diretamente, sem a necessidade da intervenção das autoridades estatais.Entendo que para expressar essa tendência expansionista, tanto no plano quantitativo quanto no qualitativo do serviço jurisdicional (sentido horizontal e sentido vertical), separando o conceito da universalidade da jurisdição, no âmbito do direito internacional e no âmbito do direito constitucional, que indica a soberania interna absoluta do Estado Nacional Brasileiro como entrave

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para a criação do Órgão Supranacional no Mercosul, e, assim, falta de vontade política para se criar o direito comunitário.Há uma certa resistência em se formar no Mercosul um direito comunitário e os órgãos desse novo espaço de integração. Não devemos nos esquecer que o Tratado de Assunção criou em 1991 uma zona de livre comércio, uma união aduaneira, havendo necessidade de se ajustar a legislação dos países formadores para as matérias comuns, como interesses difusos (meio ambiente e consumidor), direito de concorrência, direito do trabalho, direito previdenciário, direito tributário e outros ramos do direito que afetarão o ordenamento jurídico dos países que integram o Mercosul e os outros que já demonstraram a intenção de integrar o cone sul (Chile, Bolívia, Peru). Há sugestão para a criação de órgão comunitário em matéria jurisdicional, e já tivemos, anteriormente, a experiência do Pacto Andino, criando um Tribunal Supranacional4.A tendência hoje no Mercosul é a harmonização da legislação dos Estados Membros. Ex.: meio ambiente e consumidor.No Brasil os tratados internacionais devem ajustar-se às leis internas, como acontece com o Pacto de San José da Costa Rica5, porque temos o princípio da universalidade da jurisdição, de tal sorte que o nosso sistema é de soberania interna absoluta em matéria jurisdicional. Precisaríamos ceder parte de nossa competência para a criação de órgãos comunitários, modificando o inc. XXXV do art. 5º da CF. O Brasil adota política de integração latino-americana (CF, art. 4º, parágrafo único).Na Europa não foi fácil a criação do direito comunitário, evolução que demandou muito tempo, tendo início com a Comunidade do Carvão e do Aço, em 1938, culminando com o Tratado de Roma, em 1950. Na França debateu-se a questão da salvaguarda da soberania nacional, na Alemanha a proteção dos Direitos Fundamentais e na Itália discutiu-se a proteção da inalienabilidade e das competências comunitárias.No Mercosul o processo em evolução mostra que as dificuldades a serem superadas não são da mesma ordem da Comunidade Européia e, em termos de tempo, temos a nosso favor a proximidade dos sistemas jurídicos de natureza de direito estatutário, ao lado dos grandes juristas que sempre existiram em nosso meio.As superações dos problemas de ordem econômica ajudarão em muito na criação do direito comunitário entre nós, ao lado da vontade política.A integração baseia-se na solidariedade entre os Estados-Membros e no conceito de supranacionalidade.

Direito Comunitário: pedra angular do espaço de integraçãoAo considerar a natureza do direito comunitário, devemos distinguir a extensão de sua atuação e questionar inquietações. Quais as áreas de atuação das normas jurídicas comunitárias? Quais os sujeitos do direito comunitário? Qual a natureza da relação jurídica comunitária? Qual o órgão de aplicação do direito comunitário?Estes aspectos são importantes ao se analisar o significado de jurisdição e competência, porque esta nova circunstância, se por um lado representa uma restrição à soberania no seu sentido clássico, por outro lado, representa a soberania que se completa, se amplia, se potencializa diante da existência da comunidade, dando oportunidade à formação de uma cidadania comum. Os Estados, como entidades jurídicas, com personalidade internacional, continuam exercendo um poder jurídico dentro de seu território, e esta natureza é mantida pelos Estados, e ao mesmo tempo participam com poder de decisão, dentro da nova ordem jurídica comunitária onde assumem, conjuntamente, responsabilidades que antes não tinham.O direito comunitário reforça o Estado Democrático de Direito, sendo ramo autônomo, por ter objeto próprio e método próprio, cuja natureza e característica são a solidariedade e a supranacionalidade.O seu objeto e método revelam os princípios:1. Legalidade: decorre da lei a criação e organização dos órgãos comunitários, as funções e a outorga aos agentes da interpretação e aplicação das normas.2. Igualdade: a igualdade entre os Estados é indispensável, evitando-se discriminação ou privilégio,

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com igual reciprocidade de direitos e obrigações.3. Solidariedade: impõe o respeito às leis, buscando-se um equilíbrio entre as vantagens e desvantagens que surgem na comunidade. Impede que uma parte afronte as cargas que surgem e aquelas decorrentes da condição de sócio em relação à comunidade, o que reforça a idéia da jurisdição comunitária.4. Reciprocidade: a integração faz-se pela reciprocidade, porque os Estados integrantes reciprocamente delegam competências, observando-se o tratamento igual para os desiguais.5. Supremacia: o direito comunitário deve prevalecer sobre as normas do direito interno, e sua eficácia não pode variar de Estado para Estado, não admitindo atos internos que sejam incompatíveis com as normas comunitárias.6. Operatividade: as normas comunitárias devem ser incorporadas de forma automática e obrigatória à ordem interna de cada Estado e não podem deixar de ser aplicadas em razão do direito constitucional. Os Juízes Nacionais devem aplicá-las sem prejuízo da competência dos órgãos de julgamento da Comunidade.7. Direitos Humanos: o respeito aos direitos humanos é fundamental e a sua proteção deve ser integral (CF, art. 5º, § 2º).O nascimento do direito comunitário no Mercosul decorrerá de sua Constituição, que tem como fonte geradora o Tratado de Assunção.Na verdade, o Tratado de Assunção é mais uma manifestação de propósitos do que propriamente uma Constituição de uma Comunidade. A partir deste Tratado foram assinados protocolos, resoluções e recomendações. Os mais importantes são: o Protocolo de Brasília, de 26 de março de 1991, para a solução de controvérsias entre os Estados Partes, estabelecendo procedimento para pôr fim às diferenças entre os Estados do Mercosul, e no caso de particulares a regulamentação mostra-se escassa, e o Protocolo de Ouro Preto, de 17 de dezembro de 1994, que é um protocolo adicional ao Tratado de Assunção, tem por objetivo estabelecer o mecanismo de funcionamento do processo de integração, mediante estrutura organizacional da nova entidade, criando os órgãos do Mercosul. O Protocolo de Las Leñas permitindo caráter executório às Cartas Rogatórias, entre outros.Estes aspectos trazem como conseqüência a necessidade de harmonização da legislação dos Estados Partes, sendo necessário definir a área do direito a ser unificada e uniformizada e o processo como deve ser desenvolvido.A uniformização é, ainda, uma utopia. Uma lei uniforme deve corresponder a uma razão de real necessidade, para que os países incorporem em seu ordenamento interno essa uniformidade, não devendo abordar objetos novos e dos quais nem todos tenham a mesma experiência, ou temas polêmicos que impliquem princípios controvertidos.A última fase para se chegar ao direito comunitário é a unificação de legislação entre os Estados Partes, criando-se um órgão de interpretação jurisdicional (Tribunal de Justiça Supranacional) e um órgão encarregado de legislar (Parlatino).No Mercosul o mais viável, hoje, é a harmonização da legislação de forma gradativa, nas áreas de interesse comum e de real necessidade: direito do consumidor, ambiental, trabalhista, previdenciário, tributário, comercial, entre outros, aproveitando as experiências anteriores de Códigos Tipos e das Organizações que já existiram entre nós: ALALC, ALADI, etc. e os aspectos positivos do sistema estatutário.

Mercosul e Direito ComunitárioNo direito brasileiro a adoção de um sistema de direito comunitário encontra resistência. A aprovação dos tratados segue o mesmo processo no Congresso Nacional para a elaboração das leis e é de todos nós conhecida.A viabilização do direito comunitário entre nós ainda está distante.Divide-se a opinião dos juristas: aqueles que entendem que os acordos que têm por base as normas constitucionais são válidos (Hildebrando Accioly, Francisco Rezek, Levi Carneiro) e aqueles que negam essa condição, porque a Constituição impõe a aprovação legislativa a todo acordo

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internacional em que o Brasil seja parte contratante (Haroldo Valladão, Marotta Rangel, Pontes de Miranda, Afonso Arinos, Themistocles Cavalcanti e Carlos Maximiliano). O exemplo mais recente diz respeito ao Pacto de São José da Costa Rica (Declaração Americana dos Direitos Humanos), tendo o Supremo Tribunal Federal entendido que o Tratado ratificado pelo Brasil se submete ao direito interno (Habeas Corpus n. 73.151-1, Rio de Janeiro), no caso de alimentos ou de depositário infiel, prisão administrativa, por dívida civil, abolida no referido Tratado e mantida no nosso sistema legislativo interno. O direito comunitário tem um significado importante no espaço de integração, porque impede a formação de normas somente no nível econômico, abrangendo com mais propriedade o ético, o cultural e o social, com vistas à formação de uma cidadania comum entre os povos do Mercosul.Até agora, muitos já o disseram e com maior talento do que eu, temos vivido um processo de integração com dois traços fundantes: o empuxo econômico, porque é o comércio internacional que vem fazendo andar o Mercosul, e a gerência intergovernamental do sistema, pois que tudo gira em torno de funcionários dos governos dos Estados-Membros e a utilização do instrumental jurídico vem sendo aquele do Direito Internacional tradicional ou clássico.É fato que o que se defende significa e acarreta enfrentar numerosos e complexos problemas, tanto jurídicos, quando mais especialmente políticos, tanto internos como externos. Igualmente o é que o Mercosul tem produzido avanços em velocidade histórica infinitamente maior do que qualquer outra experiência conhecida, do que é exemplo a União Européia, cujos primórdios datam do fim da segunda guerra, portanto, de meados da década de quarenta, e aí vai meio século entre a Comunidade do Carvão e do Aço, e, um pouco menos, do Tratado de Roma até o de Maastricht, enquanto, aqui entre nós, menos de uma década tem sido suficiente para avanços realmente notáveis.Tanto é assim, e tanto está sendo vitoriosa e estimulante a experiência ibero-americana de “blocagem regional estratégica”, que o Mercado Comum do Sul tem provocado reações vigorosas de outras nações ricas e de economia central, e, seguindo a esta reação, vem desenvolvendo-se processo de composição e convivência razoável, mesmo que seja curvando-se àquilo que Bismark chamou de realpolitik (a lei do mais forte). Fora esta blocagem regional que vivemos, ocupando este espaço de integração que constituímos, um equívoco de interpretação geopolítica, fadado a perder substância ao longo do tempo, que aconteceu com diversas outras tentativas integracionistas entre nós (Alalc, Aladi, Pacto Andino, entre inúmeras outras), não haveria esta reação forte do primeiro mundo, logo acima do equador e, também do mesmo primeiro mundo, do outro lado do oceano, a busca pela parceria e cooperação mais intensas e substanciosas.O nosso desafio maior, a tarefa que a história nos impõe de agora, é a construção e consolidação do MERCOSUL, o que a nosso ver significa a sua institucionalização, a organização de instituições supranacionais, a elaboração de uma outra órbita jurídica, a comunitária, e, de uma outra, a cidadania, a regional, maior do que a nacional e não conflitante com ela.Eis aí a oportunidade ímpar de protagonizar nossa própria história que nos é oferecida, incumbe-nos aceitar e enfrentar o desafio de vivenciar este rico momento e produzir o legado de que somos depositários, transmitindo aos pósteros o ideal acalentado desde as nossas origens, integrante indissociável de “nuestra latinidad”, que nos unifica como sociedade, como comunidade de “nuestra América”.Devo começar a examinar alguns conceitos que são especialmente úteis, necessários até, para a compreensão das propostas que ousarei fazer adiante.

Direito Comunitário e SoberaniaInicio pelo conceito de soberania que se identifica como a caracterização da natureza do Estado Nacional. O primeiro Estado Nacional a surgir foi a Áustria e o segundo foi Portugal. A soberania identifica-se com a “propriedade do poder ou o poder sobre o poder”6. Os espaços de integração têm sido idealizados através de bases econômicas, mas é imprescindível que não fiquem fora do social, do jurídico e do político7, sendo necessária uma regionalização

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fundada em marco de maior amplitude do que as nossas próprias fronteiras.Soberania é sinônimo de Estado Nacional e dentro do contexto de integração apresenta suas limitações, necessitando de um direito harmonizador da realidade do Mercosul, ou seja, de um Direito Comunitário.A globalização ou mundialização é caracterizada por processo onde o capital e a tecnologia das grandes empresas transnacionais atuam sem considerar as fronteiras dos Estados Nacionais. O objetivo é evidente na obtenção de maiores lucros em investimentos realizados nos mercados financeiros, o que torna difícil a afirmação do próprio capital ou tecnologia nacionais.O conceito de soberania identifica-se com a caracterização da natureza do Estado e diz respeito à propriedade do poder ou o poder sobre o poder, na feliz expressão do Ministro Milton Cairolli.É o poder absoluto de mando incontrastável e definido por Bodin (“De la République”, 1576) como um poder que não tem sobre si nenhum outro e esse poder supremo, summa potestas, é o poder soberano. Onde houver poder soberano haverá Estado. Bodin, entretanto, considerou o poder em relação à sociedade sob o aspecto da esfera pública e da esfera privada.A sociedade civil tem nas suas relações econômicas a regra permanente de escapar ao controle do poder do Estado. Bodin estabelece a distinção entre sociedade das pessoas privadas, regulada pelo direito privado, ou seja, um direito que se aplica a iguais, e a sociedade política, regulada pelo direito público, idéia formadora do Estado Moderno.Portanto, poder absoluto não significa poder ilimitado, daí por que a soberania jurisdicional no direito constitucional brasileiro se apresenta como soberania interna absoluta de universalidade (Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXV), porque a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.Direito Comunitário e Direito NacionalA relação entre uma ordem jurídica comunitária e o direito nacional constitui-se no aspecto funcional da soberania, daí nascendo o direito comunitário com a cessão ou delegação de parte do poder absoluto da soberania de cada Estado-Membro aos órgãos comunitários.O direito de integração é um direito distinto do direito internacional e do direito interno dos Estados Nacionais que formam a comunidade. O direito comunitário não se opõe ao direito nacional, porque não o derroga expressa ou tacitamente, não havendo hierarquia sobre eles, apenas prevalência da norma comunitária.

Estado Nacional e Direito InternacionalCom a formação dos primeiros Estados Nacionais, na Áustria e em Portugal, foram sendo solucionadas as dúvidas sobre a aplicação de regras locais em relação aos estrangeiros nas disputas comerciais e mercantis.A lex mercatoria, fundada nos usos e costumes locais e não escritos, adotada por comerciantes das diversas localidades que acorriam aos grandes mercados, deixou de ser aplicada gradativamente, sofrendo as relações comerciais disciplina jurídica e legal do direito interno de cada país8.Na verdade, o Estado Nacional tinha como preocupação a relação entre Estados e pouca preocupação com a atividade mercantil e comercial entre as pessoas, ou seja, a preocupação era basicamente com o Direito Internacional Público.Outra celeuma era com a aplicação do direito natural e do direito das gentes na relação entre os Estados soberanos, seguindo as teorias do século XVI de Suarez (Jus naturale) e Vitória (Jus gentium) e, como não se tratava de direito escrito, o costume foi a primeira fonte das relações entre Estados e entre estes e o particular, nacional ou estrangeiro, o que levou Grotius, no século XVII, à idéia da igualdade jurídica dos Estados, em sua obra De Jure Belli ac Pacis.Assim, as leis de cada Estado aplicam-se dentro do seu território e aos seus súditos, incluindo os estrangeiros, formando-se a idéia do princípio da territorialidade.A lei estrangeira só era aplicada quando permitida pela lei nacional, admitida a comitas gentium, e a necessidade da justiça o determinasse.Mas, a partir do Tratado de Westaflia os costumes começaram a ser substituídos, assumindo o Tratado a primazia entre as fontes do direito.

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No século XIX, o norte-americano Story deu um passo na criação do Direito Internacional Privado ao estabelecer normas para a solução dos conflitos de jurisdições e o reconhecimento do direito dos estrangeiros, em substituição ao comitas gentium, como fundamento para a aplicação de leis estrangeiras em território nacional, conforme fora propugnado pelos holandeses Huber e Rodenburg, no século XVII, como noção de “boa justiça” a aplicação de lei estrangeira9.Savigny, jurista alemão, no século XIX, contestou os princípios territorialistas, acompanhando Huber e Story, sustentando as bases de “uma comunidade de direitos dos povos”10, conceito ampliado pelo holandês Jita, no final do século passado, como sendo “a comunidade jurídica dos povos”, noção que prevalece até hoje, estabelecendo as fontes e os métodos do Direito Internacional Privado.A perspectiva de universalidade do Direito Internacional Privado torna-se consequência do ius gentium, tendo como fontes os Tratados e as Convenções Internacionais.Cada Estado Nacional incorpora em seu ordenamento jurídico interno os princípios do Direito Internacional Privado e as suas fontes serão a lei, o costume, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais internos.Os universalistas entendem a possibilidade da uniformização das normas de Direito Internacional Privado, através dos Tratados e das Convenções, mas os particularistas não acreditam na uniformização porque os direitos internos são diversos entre si.Em nossos dias, há um movimento de unificação que não pode ser negado, como exemplo, temos a Lei de Genebra.Outro exemplo é o Tratado de Havana (1928), conhecido como Código Bustamante, inclusive ratificado pelo Brasil, que procura a uniformização de critérios dos Estados Americanos na determinação da lei aplicável11. Há, ainda, a tendência de legislação comum entre nós, como nos dá conta o Código Penal Tipo para a América Latina, O Código Tributário Tipo ou o aspecto da integração institucional, em matéria processual, como apregoado na publicação do Código de Processo Civil Modelo para a Ibero América, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, publicado em Montevidéu, em 1988, cujo objetivo é a integração para melhorar a imagem da Justiça na América Latina, enormemente deteriorada, e para que sirva de maneira mais eficiente à nossa comunidade e permita a imperiosa necessidade de integração. No Congresso de Magistrados do Mercosul, em Santa Catarina, realizado em novembro de 1996, concluiu-se pela necessidade da criação do Código do Trabalho Tipo para o Mercosul. Estes esforços já justificam a criação entre nós de um Instituto de Direito do Mercosul, Instituto de Direito Europeu, entre outros, permitindo estudo comparado, para permitir maior aproximação dos sistemas jurídicos.O conflito de leis no espaço ou a aplicação de normas jurídicas de outros ordenamentos sobre uma situação jurídica se constitui em objeto do Direito Internacional Privado, aí incluídos o reconhecimento de sentenças estrangeiras, o conflito de jurisdições, a nacionalidade, a condição do estrangeiro e os direitos adquiridos12.No Brasil, a Lei de Introdução ao Código Civil (1942) dá tratamento específico ao Direito Internacional Privado, e o atual Projeto de Lei n. 4.905/95 que substituirá a Lei de Introdução ao Código Civil, de forma específica, trata das questões conexas, como o reconhecimento de sentenças estrangeiras e dos direitos adquiridos no exterior, como a nacionalidade da pessoa física e a condição jurídica do estrangeiro, por não serem de ordem constitucional ou infraconstitucional13. Contratos Internacionais e Estado NacionalOs contratos internacionais firmam-se sobre acordo de vontades de dois ou mais sujeitos de direito, daí decorrendo direitos e obrigações e que potencialmente estejam submetidos às normas provenientes de mais de um ordenamento estatal.Destinam-se às finalidades econômicas do comércio internacional, tais como a produção e circulação de bens, serviços, capitais e tecnologia que têm como características a multiplicidade de Estados e ordenamentos jurídicos diversos, utilizando-se de tecnologia e de comunicação. Neste cenário torna-se difícil a menção ao capital ou tecnologia nacionais, ou mesmo a aplicação

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imperativa de leis nacionais a negócios internacionais14.O Estado Nacional valer-se-á do princípio da autonomia da vontade como regra válida para a opção da lei aplicável aos contratos internacionais. São várias as Convenções Internacionais sobre a matéria (Artigo 3º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 1980, o artigo 7º da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável à Compra e Venda de Mercadorias de 1986 e o artigo 7º da Convenção Inter-americana sobre o Direito Aplicável às Obrigações Contratuais de 1994, celebradas no México e assinadas pelo Brasil, também prescrevem que o contrato internacional será regido pelo direito escolhido pelas partes).O artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil não permite a escolha da lei que regerá o contrato pelas partes, apenas permitindo a escolha do local onde celebrarão o contrato e, conseqüentemente, a lei a ser aplicada.

Protocolo de Brasília e Sistema de Solução de ControvérsiasNão há dúvida de que o Estado Nacional ante os contratos internacionais deve rever seus princípios de solução para a aplicação da lei, com base na autonomia das vontades e, ainda, para o conflito de jurisdições.O processo de integração do MERCOSUL tem a sua estrutura institucional definida pelo Protocolo de Ouro Preto (17/12/1994), etapa atual de Consolidação da União Aduaneira15. O sistema de solução de controvérsias foi criado pelo Protocolo de Brasília (17/12/1991) e pode ser acionado por governos ou particulares, pessoas físicas ou jurídicas, contemplando etapas distintas. A primeira é aquela da negociação direta, a segunda é a intervenção do órgão executivo do MERCOSUL e a terceira é a fase arbitral. A garantia jurídica estaria alicerçada no mecanismo e no caráter obrigatório dos laudos arbitrais inapeláveis emitidos pelos Tribunais “ad hoc” do Protocolo de Brasília e tantos quantos forem necessários para a solução, caso a caso, dentro das controvérsias surgidas no âmbito do MERCOSUL.Acentua José Botafogo Gonçalves (in “Os Tribunais do Mercosul”, Gazeta Mercantil, São Paulo, 15/08/96) que o coração do sistema existente tem sede na negociação entre os interessados, privilegiado que está este ponto no Protocolo de Brasília, inspirado, sugere, na factibilidade derivada da desnecessidade de “prévia instalação de estruturas burocráticas dispendiosas”, entendendo ser o existente um sistema democrático e acessível aos interessados, apontando ainda, e negando que a segurança jurídica necessária seja possível somente através de uma Corte Permanente de Justiça, que “no MERCOSUL está assente no acesso facilitado ao referido mecanismo e no caráter obrigatório inapelável dos laudos arbitrais emitidos pelos diversos Tribunais ad hoc do Protocolo de Brasília, tantos quantos forem necessários para a solução, caso a caso, das controvérsias surgidas no MERCOSUL”.Cabe, aqui, refletir, como já se disse antes, que toda a estrutura do MERCOSUL tem sido concebida como intergovernamental, na verdade, tudo tem girado em torno dos governos dos Estados Partes, donde seu ritmo, sua amplitude têm sido enfocados sob o ângulo governamental, com certa sujeição às injunções e circunstâncias eventuais das políticas internas, especialmente econômicas.Neste particular devo destacar dois pontos relevantes. O primeiro diz respeito à adoção da técnica de Tribunais Ad Hoc, organizados e concretizados “caso a caso”, rompendo frontal e violentamente com o princípio do juiz natural, que é historicamente imperante no sistema brasileiro, cuja Constituição veda, expressamente, a criação de “tribunais de exceção” (art. 5º, XXXVII, da Constituição Federal). O outro é a inapelabilidade das decisões, que igualmente rompe com o princípio da recorribilidade, do duplo grau de jurisdição.Convém, ainda, destacar que estes dois pontos são complicadores do sistema, muito especialmente no que respeita ao ordenamento jurídico brasileiro.Tratarei do assunto mais especificamente adiante, mas posso antecipar, ilustrativamente, que as decisões irrecorríveis, tão defendidas, vêm em direção totalmente oposta às colocações feitas no âmbito interno. Veja-se quanto se defende, internacionalmente, a adoção de decisões irrecorríveis e de instância única, sem dúvida que se agiliza a solução, mas, convenhamos, trata-se de medida de natureza processual, e, entre nós, sempre que se cogita de agilizar a justiça, não se envereda pelas

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providências processuais, antes ao contrário, imagina-se em alterações ilógicas na estrutura.Tenho presente que o prosseguimento da integração internacional que o MERCOSUL representa imporá, de maneira progressiva, a adaptação das Constituições dos Países Membros, de forma a acolher a soberania compartilhada necessária a operar no espaço de integração.Todavia, estas adaptações necessárias não podem significar “ipso facto” ruptura brusca e radical com a tradição jurídica de cada qual deles, e nem ensejar problemas significativos no plano interno, como é o caso da não-institucionalização do MERCOSUL e a negação de Corte de Justiça Permanente, que, no caso brasileiro, significa retrocesso da Cidadania, pois ter-se-á, então, brasileiros de duas categorias, ou pelo menos relações jurídicas de duas categorias. No primeiro caso, as relações estritamente internas, solucionadas pelo Direito Interno em que estarão respeitados os princípios do Juiz Natural e do Duplo Grau de Jurisdição, e, no segundo, aqueles em que a decisão emana de Tribunal Ad Hoc e é de instância única. Na verdade, há subjacente a violação de outro princípio constitucional brasileiro nas suas relações com o Direito Internacional, porquanto nossa Constituição estabelece como princípio implícito que se incorporarão ao sistema interno as normas de direito internacional que ampliem direitos e valorizem a pessoa (art. 5º, § 2º, da Constituição Federal), e, neste caso, temos exatamente o oposto.

Protocolo de Las Leñas e o Supremo Tribunal FederalEm recente julgado do Supremo Tribunal Federal, na Carta Rogatória de n. 7.899-7, da República da Argentina, em que foi Relator o Eminente Ministro, Celso de Mello (Diário da Justiça, DOU, de 1º de Agosto de 1997, n. 146, Seção 1, pp. 33528/9), entendeu-se que com o “Protocolo de Las Leñas - unicamente aplicável às relações interjurisdicionais entre os Estados subscritores do Tratado de Assunção e integrantes do MERCOSUL - tornou-se possível, mediante simples carta rogatória, promover a homologação e execução, em nosso país, de sentenças proferidas pelos órgãos judiciários da Argentina, Paraguai e Uruguai” (p. 33528).Ensina o Preclaro Ministro, com base na jurisprudência do Pretório Excelso, que “sempre se entendeu que as cartas rogatórias executórias são insuscetíveis de cumprimento no Brasil (RTJ 72/659-667...), por ser princípio fundamental do direito brasileiro sobre rogatórias o de que nestas não se pode pleitear medida executória de sentença estrangeira que não haja sido homologada pela Justiça do Brasil (RTJ 93/157...)”. E continua: “A Carta Rogatória é a solicitação de autoridade judiciária estrangeira para a autoridade judiciária brasileira, ou vice-versa, tendo por objeto a realização de um ato processual relativo a um pleito. A carta pode ter por escopo a citação, intimação, notificação, inquirição, exames, etc... Na tradição do direito brasileiro, inspirada no princípio da cooperação judiciária internacional, sempre se acolheu a Carta Rogatória com a finalidade de citação ou inquirição. Isto já vem do Aviso n.1, de 1º de outubro de 1847, contanto que fosse desprovida de caráter executório. Ora, a jurisprudência desta Corte é pacífica em conceder exequatur à Carta Rogatória de intimação, porque ela não requer a prática de qualquer ato de execução (RTJ 103/536...) ...Em regra, as cartas rogatórias encaminhadas à Justiça brasileira somente devem ter por objeto a prática de simples ato de informação ou comunicação processual, ausente desse procedimento qualquer conotação de índole executória, cabendo relembrar, por necessário, a plena admissibilidade, em tema de rogatórias passivas, da realização, no Brasil, de medidas cientificatórias em geral (intimação, notificação ou citação), consoante expressamente autorizado pelo magistério jurisprudencial prevalente no âmbito desta Suprema Corte...”, acrescentando que “Torna-se importante salientar, no entanto, que o modelo jurídico brasileiro concernente às cartas rogatórias passivas sofreu, em tema de efetivação de atos de caráter executório, sensível modificação introduzida pelo Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, que o Brasil subscreveu, no âmbito do MERCOSUL, em 27/06/96. Essa convenção internacional, denominada Protocolo de Las Leñas, acha-se formalmente incorporada ao sistema de direito positivo interno do Brasil, eis que, aprovada pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo n. 55/95), veio a ser promulgada pelo Presidente da República mediante edição do Decreto n. 2.067, de 12/11/96...” e, “Com essa orientação, o Supremo Tribunal Federal deixou claramente assentado que, hoje, no Brasil, se aplica, ao reconhecimento e execução de sentença estrangeira emanada de qualquer dos Estados integrantes

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do MERCOSUL, subscritores do Protocolo de Las Leñas, a disciplina ritual pertinente às cartas rogatórias, razão pela qual cumpre ter presente, no tema, a norma inscrita no Artigo 19 dessa Convenção Internacional, que assim dispõe: “O pedido de reconhecimento e execução de sentenças e de laudos arbitrais por parte das autoridades jurisdicionais será processado por via de cartas rogatórias e por intermédio da Autoridade Central” (pp. 33528-9). Conclui o Ministro Celso de Mello “...agora, as sentenças estrangeiras, desde que proferidas por autoridades judiciárias dos demais Estados integrantes do MERCOSUL, poderão, para efeito de sua execução em território nacional, submeter-se a reconhecimento e homologação, mediante procedimento ritual simplificado, fundado na tramitação de simples carta rogatória dirigida à Justiça Brasileira” (p. 33528), citando acórdão da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence (Carta Rogatória n. 7.618, República Argentina, AgRg). Construção de um Direito Comunitário: Tribunal Supranacional e ParlatinoEstou convicto de que a maturação progressiva e a consolidação do processo MERCOSUL, com a real e fundamental integração entre nossos países, precisam incorporar as tecnologias jurídicas da contemporaneidade, dando azo, portanto, é fato, a uma ruptura com o passado, dando um verdadeiro salto adiante.Isto passa necessariamente pela reconstrução das implicações da idéia de soberania entre os Países Membros e na elaboração de uma concepção de Soberania da Integração, pertinente ao espaço de integração, da qual são titulares os cidadãos, a cidadania, portanto, deste espaço de integração, e, consequentemente, o exercício dela significa a necessidade da existência de instituições jurídicas interdependentes, vinculadas não aos países membros diretamente, mas ao espaço integrativo correspondente.A elaboração compartilhada de um Ordenamento Jurídico relativo ao Espaço de Integração, com vigência projetada para ele, e tendo como destinatários os sujeitos agentes no processo integracional e a vida jurídica no âmbito respectivo, precisa ir buscar a sua legitimação política direta na comunidade integrada, sendo insuficiente que esta legitimidade advenha muito indiretamente dos Governos, e exercida através deles.Estamos, pois, claramente, diante da necessidade de abrir discussões para a criação de um Parlamento do MERCOSUL, com a finalidade de participar significativamente na construção desta ordem jurídica, e, principalmente, servir de foro democrático para as discussões necessárias à consolidação do sistema, com o exercício da cidadania não apenas no âmbito do Estado Nacional, mas no âmbito Regional, no âmbito do espaço integracional respectivo.José Botafogo Gonçalves ao final do já citado artigo alude: “Em qualquer hipótese, porém, o apoio do Brasil a um salto qualitativo de natureza institucional no MERCOSUL não prescindirá de amplo debate sobre o tema com a sociedade civil brasileira, bem como do necessário respaldo por parte do Congresso Nacional”, e tem razão, porém vou mais além. Penso que já é hora de os Governos dos Países Membros do MERCOSUL irem às bases das suas sociedades e abrirem a discussão franca, aberta e clara acerca da necessidade da institucionalização do sistema, da construção de estruturas institucionais destinadas a servir o processo de integração, envolvendo não apenas o conceito vago e gelatinoso de ‘‘sociedade civil’’, mas a cidadania propriamente, a sociedade, o homem em todas as suas dimensões.É preciso trabalhar sério esta questão.É possível a adoção da democracia representativa neste processo, como aliás demonstra a experiência mais amadurecida de integração que se conhece, que é a União Européia, e, sem dúvida, este exercício de democracia representativa aponta no sentido de um Parlamento, um Parlatino, e mais, atribui a este parlamento papel relevante na construção das normas supranacionais, porquanto nele está depositada a cidadania da região, com independência em relação aos governos dos Estados Nacionais.E esta cidadania é que, sendo a detentora e titular em última instância da soberania, deve decidir acerca da construção do Direito Comunitário e de sua aplicação por Corte Supranacional, fazendo assim prevalecer o princípio democrático almejado por todos e também os princípios jurídicos reveladores do avanço brasileiro, o da universalidade da jurisdição, o do juiz natural e o duplo grau

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de jurisdição.É exatamente este Direito Comunitário, construído com a participação e o compromisso da sociedade civil da região, seus governos e estruturas governamentais e políticas, aplicado por uma Corte de Justiça, também regional e independente, que possibilitará a construção e conseqüente manutenção de regras jurídicas claras, estáveis, socialmente aceitas, e com efetividade social compatível com as necessidades.Exatamente este ordenamento que não esteja sujeito a mudanças bruscas e inesperadas e nem a aplicações díspares, do que são pressupostos necessários, portanto, o Direito Comunitário e a Corte de Justiça, é que a nosso ver dará a necessária, indispensável até, segurança jurídica para que aconteçam, se ampliem e se consolidem os investimentos no MERCOSUL, tanto dos capitais dos Países que o integram como os de outras blocagens econômicas e de outros países, articulando interesses, proporcionando a competição justa e não-predatória, e o exercício de uma cidadania vigorosa e útil, enfim, de um sistema que sirva ao ser humano e à sociedade, antes contribuindo para a diminuição dos problemas e dificuldades do que para mantê-los ou agravá-los.

CONCLUSÃOA institucionalização do Mercosul passa necessariamente pela criação de um Parlamento e de um Tribunal de Justiça Supranacional que representam a segurança de investimentos na região e de desenvolvimento de uma cidadania capaz de formar um espaço de integração democratizado.Não resta dúvida de que uma maior segurança de investimentos na região e melhor economia, assim como o fortalecimento da cidadania nos espaços de integração, ainda que na forma de união aduaneira, estágio atual do MERCOSUL, com vistas à formação de um mercado comum e uma comunidade, requerem uma integração e institucionalização do direito, quer como imperativo histórico, quer como uma necessidade de sobrevivência de um espaço próprio, como bem o demonstram as relações interjurisdicionais.O Protocolo de Brasília e o Protocolo de Las Leñas representam o primeiro passo na direção de formação de uma comunidade cujos valores vão além do econômico, abrindo espaço para o social, para o cultural e para o jurídico, objetivo maior de uma comunidade de integração que busca uma cidadania dentro de um sistema democrático.

DA NECESSIDADE DE NOMEAÇÃO DE CURADOR À LIDE NOS PEDIDOS DE ALVARÁS PARA REALIZAÇÃO DE ABORTOLouri Geraldo Barbiero

Registro, prima facie, que a meta principal deste trabalho é a de demonstrar, diante das regras processuais já existentes, que o nascituro é detentor de direitos processuais no pedido de alvará para autorização de aborto e de sugerir inovações e modificações legislativas, tudo com o objetivo final de proteger o maior de todos os direitos: o direito à vida. O trabalho restringe-se a aspectos processuais, sem nenhum exame quanto ao mérito do pedido, ou seja, se deve ou não ser deferido o pedido e em quais casos.

1) DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDOO pedido de alvará para autorização de aborto, na verdade, no nosso modesto pensar, não deveria sequer ser reconhecido, visto que:• trata-se de pedido juridicamente impossível diante da falta de previsão legal em nosso

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ordenamento jurídico;• a hipótese não se enquadra em nenhum dos casos de competência das Varas Criminais, conforme definidos no art. 28 do Código Judiciário do Estado de São Paulo (Decreto-Lei Complementar 3, de 28.08.1969);• a hipótese também não se enquadra na competência das Varas de Família e Sucessões e da Infância e Juventude (arts. 37 e 39 do Código Judiciário);• não se trata de ação cautelar penal, pois não está vinculado a nenhum processo futuro ou em curso;• o exame do pedido, como procedimento administrativo, usurpa e frustra a competência jurisdicional própria, que é a do Juízo penal, ex post fato (RT 734/537);• o artigo 128 do Código Penal não contempla, entre os requisitos para o aborto legal, a autorização judicial;• a lei vigente não contempla o chamado aborto eugênico como legal e, portanto, não há que se falar em autorização judicial para a sua prática;• o maior direito do nascituro, protegido pelo sistema jurídico nacional, é o de nascer com vida, mesmo que venha a ocorrer o óbito no período neonatal;• nenhum juiz está autorizado a permitir o cometimento de um crime (não importa que eximido de pena), ou, mesmo não sendo crime, de um ato ilícito, de uma ação contrária à lei (RJTJESP 99/25).

Como ensina Geraldo Batista de Siqueira - in Aborto humanitário: Autorização judicial - RT 675/301, “A autorização Judicial, cuja exigência a imprensa nacional tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do país, é figura absolutamente alheia, estranha aos requisitos da tipicidade especial, insculpidos na moldura da norma descrita no art. 128, I e II, do CP”.Segundo Antônio Chaves, a autorização judicial para que o médico realize o abortamento é absolutamente desnecessária, “ficando a intervenção ao inteiro arbítrio do médico” (cf. “Direito à Vida e ao Próprio Corpo”, ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., pág. 29).O mesmo entendimento foi externado pelo Magistrado Wanderley José Federigh, em artigo publicado no Estado de São Paulo, de 30.3.1986, pág. 40: “Não havendo menção expressa na lei à necessidade de autorização judicial para a prática do aborto, não há justa causa para a invocação da prestação jurisdicional. A função do juiz é a de vigilante e aplicador da lei. Se esta já é clara, nada há a ser interpretado. O juiz, chamado a autorizar um aborto, nada mais pode fazer além de declarar que, nos casos dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, não há crime, mas não lhe cabe conceder a referida autorização”.

2) DO JUÍZO COMPETENTEApesar da falta de previsão legal, tanto material como processual, o pedido de alvará para autorização de aborto vem sendo conhecido. Em alguns Estados pelas varas cíveis e em outros pelas varas criminais e, no caso especial da Comarca de São Paulo, pelo DIPO - Departamento de Inquéritos Policiais (no decorrer deste ano 2000, foram autorizados pelo DIPO 33 casos, sendo 30 entre aborto eugênico e terapêutico e 03 de humanitário).Uma vez conhecidos os pedidos, como tem ocorrido, mister que sejam processados pelo Juízo competente.Não há dúvida de que a matéria é penal e de competência do Tribunal do Júri, a quem compete julgar os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, dentre eles o de aborto (art. 5º, inc. XXXVIII, da CF, e art. 74, § 1º, do CPP).Assim sendo, faz-se necessária a edição de norma processual penal, que preveja a necessidade de alvará judicial para a prática do aborto legal, bem como qual o juízo competente para a sua apreciação, com a necessária intervenção de curador de incapazes e de curador especial ao nascituro, como adiante se verá, tendo em vista o evidente conflito de interesses existentes entre o nascituro e a gestante. Sugere-se, assim, a criação de parágrafos no artigo 128 do Código Penal atual ou no artigo 127 do Projeto da parte especial do Código Penal em trâmite no Congresso Nacional, e de mais um inciso no artigo 497 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:Art. 128 ou 127 do Código Penal...

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I- ...II- ...III- ...§ 2º - Nas hipóteses acima, a gestante, ou seu representante legal, deverá requerer ao presidente do tribunal do Júri autorização para o abortamento, em pedido devidamente instruído.§ 3º - O juiz, sob pena de nulidade, nomeará curador especial ao nascituro.§ 4º - Após a oitiva dos interessados e da realização da prova pericial, com a manifestação do curador especial nomeado e do Ministério Público, este na função de curador de incapazes e de dominus litis, o juiz deferirá ou não o pedido.§ 5º - Está sujeita ao duplo grau de jurisdição a sentença que conceder o alvará. Neste caso, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o presidente do tribunal avocá-los.§ 6º - O deferimento do alvará não obstará futura ação penal pelo crime de aborto, nos casos de dolo, fraude ou má-fé na formulação do pedido.Art. 497 do Código de Processo Penal...XII - apreciar e decidir pedidos de autorização de aborto, nos termos do artigo 128 ou 127 e seus parágrafos do Código Penal.

3) DA NECESSIDADE DE NOMEAÇÃO DE CURADOR À LIDEA Constituição Federal, em seus artigos 5º e 227, garante e assegura a todos a inviolabilidade do direito à vida, inclusive a intra-uterina.A legislação infraconstitucional brasileira, como não poderia deixar de ser, ante norma constitucional, também protege o bem jurídico fundamental da vida, a começar pela criminalização do aborto, em seus artigos 124 a 127 do Código Penal vigente.Por sua vez, o Código Civil Brasileiro dispõe que: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida: mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.” (art. 4 º).Como sabemos, nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. O Código Civil protege as expectativas de direito do nascituro, que se confirmam se houver nascimento com vida, ou se desmentem, como se nunca tivessem existido, no caso contrário. Não tem personalidade, mas, desde a concepção, é como se tivesse. Assim, o nascituro é herdeiro, pode receber doações e legados, pode ser adotado, reconhecido e legitimado. Pode agir através de seu curador. Pode figurar como sujeito ativo e passivo de obrigações. A eficácia de tudo, porém, fica na dependência do nascimento com vida.Em numerosos textos, o legislador volta a sua atenção para aquele que apenas foi concebido (Cód. Civil, arts. 353, 357, parágrafo único, 372, 377, 458, 462 e 1.718; Cód. de Processo Civil, arts. 877 e 878; Cód. Penal, arts. 124 e 128).O Código de Processo Civil, a seu turno, determina no seu art. 9º, inc. I, que: “O Juiz dará curador especial ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste colidirem com os daquele;”. O curador especial a que se refere o Código é também chamado curador à lide para distingui-lo do curador representante legal do incapaz nos atos da vida civil.É evidente que, nesse caso, o conflito de interesses pode acarretar prejuízo para o incapaz. Não importa a idoneidade do representante; a lei, para resguardo dos interesses do incapaz, afasta seu representante e o substitui por curador especial, que servirá apenas para a causa.Ao curador especial incumbe defender o incapaz, velar pelos seus interesses, no que diz respeito à regularidade de todos os atos processuais, cabendo-lhe ampla defesa dos direitos da parte representada, tais como contestar e recorrer de todas as decisões.Embora, em princípio, o incapaz, a que se refere o dispositivo, seja um daqueles enumerados nos artigos 5º e 6º do Código Civil, dentre os quais não figura o nascituro, forçoso reconhecer que, se a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, nos termos do art. 4º do Código Civil, sendo o direito à vida o mais importante deles, tem ele direito à nomeação de curador especial sempre que os seus interesses colidirem com os do representante legal. E não há dúvida de que no pedido de alvará para realização do aborto, qualquer que seja ele (necessário, sentimental ou eugênico), há uma colidência de interesses. O nascituro quer nascer e a gestante quer abortá-lo.

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Frise-se, embora desnecessário, que a nomeação, pelo juiz, de um curador especial não exclui a necessidade de intervenção do Ministério Público, na função de dominus litis, exercida no processo penal, e nem com a de custos legis, na causa em que houver interesse de incapazes, e que está prevista no art. 82, inc. I, do Código de Processo Civil, porque a função desse curador à lide equivale à do pai do tutor de menor ou curador de louco, surdo-mudo, ou pródigo.Com a nomeação do curador à lide, o nascituro ficaria devidamente representado e defendido. E o curador, na hipótese de concessão do alvará para realização do aborto, poderia recorrer, assegurando o exame do pedido em segundo grau de jurisdição.

O ORÇAMENTO E A ADMINISTRAÇÃO DOS TRIBUNAISDes. Rêmolo Letteriello

I. O orçamento, derivado inequivocamente de lei, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho1, “é ato pelo qual se prevê a arrecadação da receita e se autoriza a aplicação desse produto em despesas discriminadas, durante certo período”, ou, na acepção criada por Pontes de Miranda2, “é a conta da receita e da despesa de entidade política, União, Estados-membros, Município, feita em quadros e verbas, para período futuro, que é de um ano”.É o orçamento público, assim, um programa de previsão para determinado período de todos os recursos que o Estado é autorizado a arrecadar e de fixação de quantias que, em igual período, ele pode normalmente despender com a execução de seus serviços.Tem ele um ciclo, consistente em avaliação, elaboração, apreciação, aprovação e execução.Na fase de elaboração, fixam-se os objetivos concretos para o período, bem como o cálculo dos recursos humanos, materiais e financeiros, necessários à sua materialização e concretização.Na fase de apreciação, examinam-se todos os elementos componentes do orçamento, mediante discussão interna no âmbito dos Poderes e, em seguida, o seu envio ao Executivo, que o encaminhará à Assembléia Legislativa para aprovação.Com a aprovação constituindo-se em lei, passa-se à fase de execução, segundo os elementos nele contidos.

II.Objetivando assegurar a plena autonomia e real independência do Poder Judiciário, a Constituição Federal estabeleceu, em seu art. 99, § 1º, que serão os Tribunais que “elaborarão suas propostas orçamentárias dentro do limite estipulado conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias”.Plano conjunto com os demais poderes, o orçamento deve conter a previsão dos custos para a manutenção do funcionamento do Poder Judiciário, desde suas mais básicas necessidades, como aquisição de materiais de mero expediente, passando pelo pagamento do pessoal, chegando às obras e investimentos de ampliação de sua estrutura.Elaborada a proposta orçamentária pelo Tribunal de Justiça do Estado, enviada ao executivo e convertida em lei pelo Legislativo, nos termos do ciclo antes mencionado (Lei Orçamentária Anual - Constituição Federal, art. 165, III, e art. 165, § 5º, I) deve ser cumprido pelo Executivo, visto que se trata, como bem lembrado por Aliomar Baleeiro3, de um “ato-condição”, que cria uma vinculação para o Chefe do Executivo Estadual, o qual não tem a prerrogativa de querer deixar de cumprir com o repasse dos valores atribuídos a cada um dos Poderes, dentro da previsão orçamentária.A Constituição Federal, ainda, em seu art. 168, para completar a trilogia que finca raízes e evidenciar a plena autonomia financeira do Poder Judiciário, única forma de garantir sua real independência diante dos demais Poderes, veio estabelecer que “os recursos correspondem às

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dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.Já se definiu na doutrina que esse dispositivo legal é de eficácia plena, auto-aplicável, não estando a depender da edição da lei complementar referida pelo art. 165, § 9º, da Carta Constitucional, como se verifica desta passagem do escólio de J. Cretella Júnior4:

Mesmo que a lei complementar, referida pela regra jurídica Constitucional do art. 165, § 9º, não seja promulgada, nem por isso ficará comprometida ou ameaçada a autonomia do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Ministério Público, pois, assim que entrou em vigor o texto da Constituição de 1988, o art. 49, VII e VIII, e o art. 99 passaram a ter eficácia no mundo jurídico, porque são auto-aplicáveis, sem necessidade de regulamentação, cabendo à lei, mencionada no art. 165, § 9º, I e II, tão-só o traçado das coordenadas, pois a autonomia já se encontra sobejamente garantida, ao Judiciário, pelo diploma constitucional vigente.

No mesmo sentido é a opinião de Ives Gandra Martins5, acentuando que a lei complementar irá apenas “dar parâmetros, mas não criará autonomia, amplamente assegurada pela Constituição atual ao Poder Judiciário”.A Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul, como de resto a dos demais Estados da Federação, como não poderia deixar de ser (sob pena de ficar marcada pelo estigma da inconstitucionalidade), também assegura autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário, porquanto seu art. 110, § 2º, está assim disciplinado:

Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, ser-lhes-ão repassados em duodécimos até o dia 20 de cada mês, corrigidos em parcelas na mesma proporção do excesso de arrecadação apurado em relação à previsão orçamentária.

A dotação orçamentária, como se vê doutrina de Hely Lopes Meirelles6, é “parcela do crédito orçamentário fixado para a de um programa governamental, vinculada a determinado elemento de despesa, em conformidade com a classificação legal”.Tal repasse, nos termos da Constituição Federal, complementada pela Constituição Estadual, sem sombra de qualquer dúvida se constitui numa regra geral “condicionante dos outros tipos de autonomia”, de tal forma que “se ao Poder Executivo cabe a distribuição dos recursos aos outros dois Poderes, a falta de autonomia financeira do Poder Judiciário e do Poder Legislativo poderá COMPROMETER, em grau maior ou menor, O DESEMPENHO DAS RESPECTIVAS FUNÇÕES”7.A Lei de Diretrizes Orçamentárias do Estado de Mato Grosso do Sul ao longo dos últimos anos (mais precisamente desde 1991) e até antes da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000) vinha estabelecendo que a dotação orçamentária para o Poder Judiciário correspondia a um limite percentual da receita corrente do Estado de 8,10% do orçamento anual.Definiu a Lei de Diretrizes Orçamentárias de Mato Grosso do Sul o que se deve entender por receita corrente do Estado, ou seja, “a receita do Tesouro, deduzidas as operações de crédito, as transferências constitucionais aos Municípios e as transferências da União, exceto as provenientes do Fundo de Participação dos Estados - FPE.A lei vinha de igual forma reafirmando a regra constitucional de repasse do duodécimo até o dia 20 de cada mês, “aplicando-se os limites percentuais estabelecidos neste artigo sobre a Receita Corrente do Estado, efetivamente arrecadada no mês anterior, ou dividindo-se o total orçamentário por 12 (doze), prevalecendo o que for maior”.Por derradeiro a lei ainda previa que, se houvesse diferença “apurada entre o valor repassado e o VALOR DEVIDO, será automaticamente compensada no mês subseqüente, após a devida correção”.

III.E aqui começam os problemas da administração dos Tribunais.

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Nós, juízes, sempre fomos talhados para sermos juízes, não para administrar, com raras exceções daqueles que já têm no sangue o timbre administrativo.Parece-me claro, nesse ponto, o grande descompasso que existe entre o juiz que pretende administrar e o administrador no Poder Executivo, escolhido para o cargo pela competência na área administrativa, muitas vezes com cursos de mestrado e doutorado na área, inclusive no exterior, o que aumenta o fosso abissal que já existe naturalmente entre o administrador no Judiciário e o administrador daquele outro Poder.Em Mato Grosso do Sul procurou-se superar tais dificuldades mediante a adoção de duas medidas, basilares para qualquer administração: primeira, transformou-se a antiga Diretoria de Finanças em Secretaria de Finanças, com estrutura própria, pessoal qualificado para o desempenho das funções, com setores bem determinados para o desempenho das respectivas funções, sob o comando de uma Secretária de Finanças, com conhecimento específico na área. Em segundo lugar, para suprir as deficiências e falhas ainda existentes, o Tribunal de Justiça contratou uma empresa especializada em auditoria e finanças públicas, dirigida por profissional que já ocupou inclusive altos cargos administrativos dos governos anteriores, que acompanha mês a mês a arrecadação do Estado.Essa empresa vem assessorando a Presidência do Tribunal em projetos importantíssimos e indispensáveis para a boa administração, sendo ouvida e consultada em todos os atos administrativos que possam envolver a questão relativa à aplicação do orçamento, trabalhando em conjunto com a Secretária de Finanças.Com isso, esta Presidência está suprindo as deficiências que são naturalmente encontráveis naquele que tem o encargo de administrar, mas que necessariamente não é formado em administração como é o caso deste Presidente.A exemplo do que com certeza também acontece em outros Estados da Federação, em Mato Grosso do Sul há tempos que o repasse do duodécimo pertencente ao Poder Judiciário é feito de forma incorreta, uma vez que o Governo do Estado ora vem passando o duodécimo de acordo com a arrecadação líquida mensal, o que é absurdo, além de ser por ele editada e sem nenhum controle dos outros Poderes, ora o faz sem levar em consideração os excessos de arrecadação, que aumentam o valor devido ao Poder.O excesso de arrecadação é o saldo positivo das diferenças, acumuladas mês a mês, entre a receita realizada e a prevista, considerando-se, ainda, a tendência do exercício, e deve compor o bolo orçamentário, para fins de entrega do numerário correspondente ao Poder Judiciário.A Assessoria Administrativa do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, antes mencionada, acompanha mensalmente essa arrecadação e fornece elementos valiosos e indispensáveis para que possa ser exigido do Executivo o repasse da diferença existente, notadamente no que diz respeito ao excesso de arrecadação, previsto em nossa Constituição Estadual.O repasse do duodécimo em valor menor que o devido, que é o que normalmente acontece, porque o Executivo se julga detentor da titularidade dessa verba, o que não é verdade, gera praticamente o caos administrativo.Não vou me referir, aqui, ao induvidoso comprometimento que esse fato acarreta na independência dos Poderes, porque não é o objeto desta palestra.Mas, dentro da visão exclusiva do administrador, tais circunstâncias praticamente inviabilizam a administração e a governabilidade do Poder quando o Executivo, abusivamente, descumpre os preceitos da Constituição Federal e repassa valores menores que os devidos ao Poder Judiciário e, pior, fora do prazo regulamentar.É remansoso em direito constitucional que “o texto constitucional vigente assegura a autonomia absoluta de cada um dos Poderes, sem ingerências indébitas”8.O Supremo Tribunal Federal já deixou apostrofado que “é por demais sabido que uma das maiores pressões que pode sofrer qualquer orgão é a econômica”. Ao elaborar-se uma constituição, deve-se procurar resguardar os poderes Legislativo e Judiciário de tal tipo de pressão; deve a Carta Magna dispor sobre a entrega de numerários àquelas Casas (DCN de 07-01-67, p. 99) - exceto do voto do relator, Min. Octávio Galotti.

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Para se assegurar a governabilidade do Poder, o repasse não pode deixar de ser feito, no mínimo, de acordo com a previsão orçamentária anual e suas respectivas suplementações, se necessárias, como previsto na Constituição Federal.No caso do Mato Grosso do Sul, o repasse vem sendo feito de acordo com a arrecadação líquida mensal, o que é absurdo e teratológico e sem levar em consideração, ainda, o excesso de arrecadação, que deve compor o bolo orçamentário, para fins de entrega aos demais Poderes de sua parcela relativa ao duodécimo.Tão absurdo é tal forma de repasse que basta comparar esses dados, fornecidos pela Secretaria de Planejamento do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, até agosto de 2000, levantados pela assessoria administrativa antes mencionada:

A diferença apontada, que é parcela que deixou de ser recebida pelo Poder Judiciário até o mês de julho de 2000 e apenas neste exercício, certamente é ato que se constitui em forma de ferir a independência do Judiciário, já que, lembre-se, a autonomia financeira é condicionante dos outros tipos de autonomia, inclusive e notadamente a independência funcional.Muito embora tenhamos previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que deve prevalecer, para fins de repasse do duodécimo estabelecido nas Constituições Federal e Estadual, o maior valor, comparado entre a receita corrente do Estado e a previsão orçamentária anual dividida por 12, tal na realidade não vem ocorrendo, o que penso também deva ocorrer em outros Estados da Federação, como se constata da verificação do quadro de repasses acima indicado, gerando déficit que compromete seriamente a função Estatal relativa à prestação jurisdicional e à própria atividade administrativa do Tribunal junto aos seus juízes, seus servidores e seus prestadores de serviços.Porque brilhante, deve ser trazido à colocação, excerto do voto do Ministro Celso de Mello, no Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do mandado de segurança cujo inteiro teor do voto se encontra publicado na JSTF, Vol. 169, p. 133 e seguintes, verbis:

A norma inscrita no art. 168 da Constituição reveste-sede caráter tutelar, concebida que foi para IMPEDIR O EXECUTIVO DE CAUSAR, EM DESFAVOR DO JUDICIÁRIO, do Legislativo e do Ministério Público, UM ESTADO DE SUBORDINAÇÃO FINANCEIRA QUE COMPROMETESSE, PELA GESTÃO ARBITRÁRIA DO ORÇAMENTO - ou, até mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados - a própria independência político-jurídica daquelas Instituições....O tema suscitado pela presente impetração remete a questão do autogoverno da Magistratura, que constitui um dos mais expressivos princípios fundamentais inerentes à organização do Poder Judiciário. Trata-se de postulado constitucional destinado a assegurar o self-government aos Tribunais Judiciários do País, objetivando GARANTIR-LHES - e a todo o corpo judiciário nacional - o necessário grau de independência institucional, em face dos demais poderes do Estado....A questão do judicial self-government constitui - é até dispensável mencioná-lo! - um dos pontos mais delicados no tema da divisão dos Poderes. Tem ela sido enfatizada, quer na jurisprudência dos Tribunais, quer na doutrina constitucional, como um dos elementos fundamentais, verdadeiro punctum saliens, da própria independência do Poder Judiciário....O comando emergente do preceito inscrito no art. 168 da Constituição, que impõe ao Poder Executivo o dever de entregar ao Legislativo, ao Judiciário e ao Ministério Público, até o dia 20 de cada mês, os recursos correspondentes às dotações orçamentárias que lhes são devidos, traduz uma irrecusável garantia instrumental destinada a dar concreção efetiva ao princípio constitucional da autonomia financeira de que gozam aqueles órgãos do Estado”.Destinatários da tutela constitucional em questão são o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Ministério Público, em cujo benefício foi instituído, pela Carta Política, um DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO, OPONÍVEL AO PODER EXECUTIVO, destinado a assegurar-lhes pelo pontual repasse governamental de recursos orçamentários a eles afetados - a normal execução de suas atividades e o regulamentar desempenho dos seus serviços.O Poder Executivo, cuja posição de supremacia político-institucional traduziu indiscutível realidade constitucional no regime anterior, não é, a toda evidência, o gestor dos recursos orçamentários

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destinados aos tribunais, qualquer que seja a esfera de governo - Federal ou Estadual - em que se situe.A Constituição, ao estabelecer um sistema de poder limitado e ao admitir a possibilidade dos controles recíprocos entre os Poderes do Estado (cheks and balances), não desejou embaraçar qualquer deles no desempenho de suas atribuições.A posse da autonomia, pelos Tribunais, constitui um natural fator de limitação dos poderes dos demais órgãos da soberania estatal. A dimensão financeira da autonomia constitucional do Poder Judiciário responde - pela instrumentalidade de que se reveste - à necessidade de assegurar aos tribunais a plena realização dos fins para os quais foram eles instituídos.Sem dispor de capacidade para livremente gerir e aplicar os recursos orçamentários vinculados ao custeio e à execução de suas atividades, O PODER JUDICIÁRIO NADA REALIZARÁ. Daí a regra imperativa do art. 168 do texto constitucional, que impõe ao Poder Executivo, de modo inderrogável, a OBRIGAÇÃO incondicional de promover, ATÉ CERTA DATA, O REPASSE dos “...recursos correspondentes às DOTAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS COMPREENDIDOS OS CRÉDITOS SUPLEMENTARES E ESPECIAIS, destinados...”, dentre outros órgãos estatais, ao Poder Judiciário.A INFIDELIDADE do chefe do Executivo à determinação constitucional em análise, evidenciada a partir do descumprimento de quanto nela se contém, pode, em tese, uma vez tipificado esse comportamento em lei, configurar, até, CRIME DE RESPONSABILIDADE (CF, art. 85, II e VI), apto a legitimar a DESQUALIFICAÇÃO FUNCIONAL DAQUELE AGENTE POLÍTICO, SEJA ELE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA OU UM GOVERNADOR DE ESTADO”. (In JSTF, lex, vol. 169, pp. 133/142).

Assim, é inadmissível que Presidentes de Tribunais, Chefes de Poder, tenham que ficar garimpando, nas Secretarias de Fazenda de seus Estados, os recursos necessários para assegurar a autonomia do Judiciário.Se se admitisse que o repasse do duodécimo pudesse ser feito com base na arrecadação líquida mensal do Tesouro Estadual, haveria franco prejuízo para os demais Poderes.Basta ver que no mês em que o Executivo resolvesse, por questões alhures (notadamente as de cunho político), conceder moratória dos tributos estaduais, ou não incentivar o pagamento de tributos através de uma fiscalização séria, honesta e competente, ou ainda isentar determinados setores da economia do pagamento do tributo, não haveria recursos suficientes para a sustentação dos outros Poderes, o que é mesmo teratólogico.Por outras palavras, no mês ou meses em que o Governo Estadual permitisse a queda da arrecadação, pelos mais variados motivos, o Judiciário deixaria de ter o repasse do duodécimo que deve ser, no mínimo, o correspondente à previsão orçamentária e fatalmente estaria comprometida sua administração, governabilidade e real independência ante o Poder Executivo.Sabendo o Governo Estadual que a norma constitucional federal está em vigência e de aplicabilidade imediata, não pode o Chefe do Executivo, detentor efetivamente de uma certa supremacia em relação aos demais Poderes - porque está encarregado de distribuir os recursos da dotação orçamentária às entidades previstas no art. 168 da CF - querer escudar-se na suposta falta de recursos para fazer o repasse do duodécimo ao Poder Judiciário.Caso não o faça, estará cometendo crime de responsabilidade e sujeito, até, à sua desqualificação funcional, vale dizer, à intervenção federal e eventualmente até à perda do cargo por crime de responsabilidade, porque o ato se reveste de afronta a um outro Poder, com ferimento pleno de sua autonomia e real independência.Detendo o Tribunal de Justiça o direito público subjetivo, pode (e deve) exercitar o direito de exigir o repasse, incondicionalmente, não havendo previsão no ordenamento jurídico constitucional de causas impedientes de tal repasse na data prevista.E o direito público subjetivo diz respeito ao direito de exigir na data certa o repasse do duodécimo de acordo, no mínimo, com a previsão contida no orçamento anual. Somente se a arrecadação mensal for superior à previsão é que poderá haver diferença, sempre para maior, nunca, todavia, para menor, o que compromete seriamente o desempenho de suas respectivas funções.

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IV.O Poder Judiciário, sabidamente, não só entrega a prestação jurisdicional, mas também administra, praticando diversos atos como o pagamento de salários dos magistrados e servidores, nomeações (destinadas a atender à evolução das necessidades do Poder, mediante o preenchimento dos cargos criados por lei); demissões, outorga de licenças, férias, adicionais, ajudas de custo, aquisição de material permanente e de consumo, construção e reformas de prédios de fóruns etc., atos administrativos esses que implicam, sempre, no aumento das despesas do próprio Poder.Se no ano anterior é feita uma previsão dos gastos do Poder Judiciário que são incluídos no orçamento anual, pode ocorrer (como sempre e costumeiramente ocorre) que essa previsão seja insuficiente para atender à real demanda de sua estrutura e funcionamento.Daí por que o legislador constituinte, sabidamente, estabeleceu que o repasse do duodécimo deve ser feito de forma a compreender os créditos suplementares e especiais. J. Cretella Júnior, na obra antes mencionada, salienta que o orçamento dirá o que pode ser gasto, sendo necessária a abertura de crédito para cobrir a quantia que ultrapassar o limite, orçamento como despesa, nela devendo ser incluída a despesa do pessoal.A Lei de Diretrizes Orçamentárias do Estado de Mato Grosso do Sul prevê, em seu art. 5º, que “as despesas de custeio do próximo exercício, em relação às estimadas no presente exercício, não poderão ter aumento superior à variação do índice de inflação, salvo no caso de comprovada insuficiência decorrente de expansão patrimonial, incremento físico de serviços prestados à comunidade ou de novas atribuições recebidas”.Aqui deve ser feita uma primeira observação, relativa ao fato de que a partir da edição da Constituição de 1988 não mais vige o princípio que marcou o direito constitucional anterior, relativo ao equilíbrio orçamentário.A tal respeito preleciona José Afonso da Silva9 que “conseguir o equilíbrio anual se afigura coisa impossível, e porque aspirar a ter nivelado o orçamento anualmente, tanto nos anos bons como nos anos maus, originaria grandes flutuações nos programas governamentais de gastos, seguidas de variações muitas vezes perturbadoras nas alíquotas dos tributos, agravando as flutuações da atividade econômica privada, com todas as implicações. A doutrina moderna concebeu outros princípios, com fundamento na análise dos ciclos econômicos, firmando a premissa básica de que não é a economia que deve equilibrar o orçamento, mas o orçamento é que deve equilibrar a economia, levando em conta que a tributação e os gastos públicos constituem mecanismos básicos da POLÍTICA COMPENSATÓRIA, que às vezes requer uma política de déficits fiscais, outras vezes a sua contenção”.E culmina por admoestar o erudito constitucionalista:

“Não se deve examinar com uma mente clara e livre de preconceitos - adverte Hansen - a validade de um programa de gastos, empréstimos e impostos, se estivermos sob a influência do dogma de que o orçamento deve estar em equilíbrio”.

A segunda observação diz respeito ao fato de que num país de grandes desequilíbrios, ora com a inflação a níveis elevadíssimos, ora a níveis baixos, mas com franca contenção do crédito pelo Governo Federal, que gera recessão, é mesmo impossível que a previsão orçamentária inicialmente feita seja exata e correspondente às reais necessidades do Poder, ao longo do ano em curso, principalmente porque, em se tratando de um Poder, é necessária a ocorrência de investimentos, os mais variados, não se podendo descartar que são investimentos, na área do Judiciário, o “incremento físico de serviços prestados à comunidade ou de novas atribuições recebidas”, como contido no artigo 5º da LDO, antes referida.Daí por que a Constituição Federal estabeleceu que no orçamento devem ser incluídos os créditos suplementares e especiais, os quais dependem de prévia autorização legislativa em indicação dos recursos correspondentes (CF, art. 167, V).O crédito especial, na acepção do sapiente Manoel Gonçalves Ferreira Filho10, é “destinado a atender despesas para as quais não tinha sido prevista qualquer dotação orçamentária”, enquanto o crédito suplementar vem com o objetivo de reforçar dotação orçamentária específica.

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Ora, a partir do instante em que se cristaliza a insuficiência do orçamento anual, é necessária sua suplementação, quer como crédito especial (para despesas não previstas), quer como crédito suplementar (para reforço de determinada dotação orçamentária).Se se trata de suplementação para atender ao pagamento das despesas com pessoal, em decorrência da superveniência de lei que venha conceder aumento, mesmo que haja excesso nos limites contidos no orçamento, terão os funcionários e serventuários do Poder, de modo amplo, geral e irrestrito, o direito de rceber imediatamente, não podendo haver escusas do Governo Estatual no repasse respectivo, visto que, a uma, como acentuado por J. Cretella Jr11, “os funcionários, nem por isso, deixarão de receber o estipêndio, cuja natureza é alimentar, caso em que o Chefe do Poder Legislativo, não podendo de imediato mandar pagar, solicitará ao Poder Legislativo a votação urgente de verba ou crédito”, e, a duas, como reverberado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na obra antes citada, pp. 328/329, o crédito especial ou suplementar pode ser obtido do superavit financeiro do exercício anterior ou do excesso de arrecadação. Se não houver nem um, nem outro, deve provir da anulação total ou parcial de dotações orçamentárias, do produto de operações de crédito autorizadas, de sorte que, de qualquer forma, a necessidade basilar do funcionalismo público seja atendida, mediante o pagamento dos salários, verba nitidamente alimentar, que não pode deixar de ser entregue ao respectivo Poder, através do repasse do duodécimo em valor suficiente para fazer frente às suas necessidades, sob pena de, aí, também, ocorrer o cometimento do crime de responsabilidade do chefe do executivo estadual, nos termos do art. 85, incs. II e VI, da Constituição Federal.Infelizmente, no Brasil não é isso o que se verifica. Basta aferir o pensamento do sempre atual Dalmo de Abreu Dallari12, sobre a questão orçamentária, quando de forma percuciente e até pertubadora o ilustrado mestre expõe que:

Um sinal claro do desrespeito é o tratamento dispensado ao Poder Judiciário em matéria orçamentária. Em primeiro lugar, a parte do projeto de lei orçamentária relativa ao Judiciário, que este prepara e remete ao Executivo para integrar o projeto geral do Estado, normalmente sofre cortes, às vezes substanciais, como se as despesas ali previstas fossem supérfluas ou adiáveis. São raros os Estados em que isso ocorre. Por esse motivo é crônica a falta de recursos para descentralização do Poder Judiciário e aperfeiçoamento de seus serviços burocráticos.E depois de aprovada a lei orçamentária, não existe, de parte dos chefes do Executivo de modo geral, a preocupação de entregar prontamente a parcela dos tributos a que a ele se destina, o que muitas vezes gera graves dificuldades para que se mantenha em funcionamento todo o aparato judiciário12.

V.Todas essas considerações são feitas para bem situar a posição do Poder Judiciário diante da questão orçamentária, para darmos prosseguimento trazendo a experiência de Mato Grosso do Sul na administração do Tribunal ao longo deste biênio, desde já informando que, embora pela lei orçamentária atual tenha sido garantido, ainda neste ano, o percentual de 8,1% do orçamento, esse valor nunca foi suficiente para fazer frente às reais necessidades do Poder, diante da parca e quase insignificante arrecadação mensal do Estado, que subsiste praticamente de um só pólo de contribuição, que é a agropecuária, enquanto em outros Estados-membros a arrecadação é infinitamente maior porque decorre de um outro pólo, o industrial, que gera muito mais riqueza, rendas e, conseqüentemente, tributos.Para se ter uma idéia, a arrecadação média mensal bruta feita pelo Executivo gira em torno de R$120.000.000,00. Descontados os valores previstos em lei, o Judiciário recebe algo em torno de R$6.300.000,00, totalmente insuficiente para o pagamento de todas as suas despesas, até mesmo porque apenas a folha de pagamento de pessoal é de aproximadamente R$6.000.000,00 mensais, pouco, nada ou quase nada mesmo sobrando para a área de custeio e investimentos.Foi assim que recebemos a administração do Tribunal no biênio de 1999/2000, prestes, agora, a se encerrar.Preocupados com esse grave problema e sabendo que estava em andamento no Congresso, então, o

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projeto de lei que veio a redundar na Lei de Responsabilidade Fiscal, onde já se fazia a previsão de que o repasse orçamentário estaria jungido a 6% da receita corrente líquida, o que veio a se consolidar através dos artigos 19 e 20 da Lei Complementar n. 101, de 4 Maio de 2000, e, contando com a colaboração irrestrita da assessoria administrativa a que antes já me referi, demos início à nossa gestão, começando por desenvolver ações e projetos que poderiam implicar em aumento da receita corrente do Judiciário e, com ela, poder investir na modernização da estrutura do tribunal, em todo o Estado.No Mato Grosso do Sul, em decorrência da Lei n. 1.071, de 11.07.90, foi criado o FUNDO ESPECIAL PARA INSTALAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E APERFEIÇOAMENTO DAS ATIVIDADES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS e, muito embora conste da Lei Estadual que regulamenta os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, na realidade o Fundo - intitulado de FUNJECC - tem finalidade muito ampla, como se constata da simples leitura do dispositivo legal criador, consubstanciado no art. 102 da referida Lei Estadual n. 1.071, de 11.07.94, verbis:

Art. 102. Fica instituído o Fundo Especial para o Desenvolvimento e o aperfeiçoamento das atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, destinado a centralizar recursos relacionados com a instalação, o funcionamento e aperfeiçoamento de pessoal, das atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e da Escola Superior da Magistratura, inclusive para treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, com equipamentos e materiais permanentes de qualquer órgão do Poder Judiciário, com a construção, reconstrução, remodelação e reforma dos Edifícios dos fóruns das Comarcas do Estado, além de outros próprios destinados a atividades forenses, bem como despesas de capital e custeio, com exceção da folha de pagamento do pessoal e de seus encargos.

Por força de tal redação, o FUNJECC constituiu-se em verdadeira fonte de custeio do Tribunal de Justiça, no âmbito do Estado.Mas o que vinha sendo arrecadado pelo FUNJECC era totalmente insuficiente para fazer frente às reais necessidades do Judiciário, e o valor ali aportado mal dava para fazer compra dos materiais de uso diário do expediente forense, como papel, canetas, borrachas etc., deixando em aberto os graves problemas enfrentados pelo Poder, como, por exemplo, a construção, reforma e remodelagem dos fóruns do Estado, a começar pela própria Capital.Nessa oportunidade, o valor auferido pelo FUNJECC era de aproximadamente R$200.000,00 mensais, uma vez que constituíam recursos do Fundo, originariamente, nos termos do artigo 104:

I - a taxa judiciária incidente sobre o processamento das ações cíveis ou penais de competência do Poder Judiciário;II - as custas e emolumentos cobrados pelas serventias judiciais e extrajudiciais oficializadas;Parágrafo único. Integram também o Fundo:a) - o saldo advindo da alienação em hasta pública das coisas vagas, na forma dos artigos 1.170 a 1.176 do Código de Processo Civil;b) recursos provenientes de alienação, na forma da lei, dos bens móveis próprios ou de bens sob guarda do depositário público, cujo produto de alienação reverta aos cofres do Estado;c) recursos provenientes do leilão de veículos apreendidos, considerados sucata por inspeção judicial e quando não reclamados após noventa dias da sentença absolutória ou condenatória;d) doações e legados;e) auxílios, subvenções e contribuições de entidades públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, desde que destinados especificamente ao Fundo;f) recursos provenientes de convênios firmados pelo Tribunal de Justiça com outras instituições e desde que haja cláusula específica estalecendo a aplicação desses recursos através do Fundo;g) resultados de aplicações financeiras;h) recursos apurados nas operações de vinculação das obras de jurisprudência do Tribunal de Justiça; ei) outras vendas eventuais.

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O referido fundo foi criado com a finalidade de atender essencialmente às despesas de custeio com os Juizados Especiais.Posteriormente - e isso já consta da redação atual -, diante da necessidade de suprir a manutenção do Poder Judiciário, houve alteração na lei estendendo o benefício para investimento e custeio em todo o Poder, ressalvando-se, contudo, a folha de pagamento.Do período de sua criação - 1990 - até o ano de 1998, sua arrecadação supria somente as despesas básicas de manutenção com água, luz, telefone e correios, exceto na época de inflação, onde o recurso era aplicado com alta rentabilidade, permitindo a reforma e construção de fóruns de algumas comarcas do interior.Nunca nos conformamos, todavia, ao assumir a atual administração do Tribunal, em fevereiro de 1999, com tão poucos recursos, o que nos causava transtorno administrativo, uma vez que o valor repassado a título de duodécimo mal dava para pagar a folha de pagamento.Basta ver, nesse ponto, que, em fevereiro de 1999, primeiros mês da atual gestão do Tribunal, o valor repassado a título de duodécimo foi de R$5.550.000,00, enquanto os gastos com o pagamento da folha foram de R$5.300.000,00, pouco sobrando para as despesas de investimento e custeio. Nesse mesmo mês o valor depositado no FUNJECC foi de R$300.000,00.Não era possível manter o Poder Judiciário funcionando, diante desse quadro, ainda mais com a espada de Dâmocles pendendo sobre o Judiciário, com a possibilidade de aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal que, afinal, culminou por ser aprovada.Ainda que estivéssemos então, como ainda estamos, dentro do limite previsto em lei, a preocupação era a de dar condições de o Judiciário receber investimentos absolutamente necessários para colocá-lo apto a receber a estrutura indispensável para ingressar no novo milênio, o que não seria possível se dependêssemos exclusivamente do Governo do Estado e dos valores constantes no orçamento.

VI.Foi aí, então, que iniciamos os estudos para obter alternativa de recursos, mediante a obtenção de receitas que estariam voltadas para a modernização, tão necessária, do Poder Judiciário no Estado de Mato Grosso do Sul .A primeira providência foi instituir a conta única de depósitos judiciais em todo o Estado, o que foi objeto de projeto elaborado pelo Tribunal de Justiça e aprovado pela Assembléia Legislativa, traduzida na Lei n. 2.011, de 08.10.99.Essa lei estabeleceu que todos os depósitos judiciais feitos no Estado fossem promovidos em uma conta única à disposição do Poder Judiciário, bem como que para essa mesma conta fossem transferidos todos os depósitos então existentes.A lei autorizou a aplicação, pelo Poder Judiciário, dos rendimentos financeiros a maior resultantes da diferença verificada entre os índices fixados por lei para remuneração de cada depósito efetuado e os estabelecimentos para remuneração da conta única, obtendo, assim, o spread, que passou a se constituir recursos do FUNJECC.Mas não foi só. Através da Lei 2.020, de 11.11.99, foi regulamentada a concessão de gratuidade nos registros civis e nascimento e assentos de óbitos, bem como a emissão da primeira certidão respectiva, em cumprimento ao disposto no art. 30 da Lei n. 6.015, de 31.12.73, alterado pela Lei n. 9.812, de 10.10.99, bem assim como foi instituído o selo de autenticidade dos atos e serviços notariais e de registro.Ao mesmo tempo em que o Tribunal de Justiça assumiu o encargo de pagar aos tabeliães pelos registros de nascimento e óbito, bem assim pela emissão da primeira certidão respectiva, tornou obrigatório que todo e qualquer ato notarial ou de registro praticado no Estado fosse autenticado com um selo, que foi adquirido pelo Tribunal e vendido aos tabeliães e notários para ser aposto em cada ato praticado. Importante, aqui, que o produto da venda se constituiu em recurso do FUNJECC e com ele o Tribunal de Justiça paga os atos de registro que são gratuitos em todo o Estado. O valor do selo, outrossim, não foi repassado no preço final dos atos praticados pela serventia extrajudicial, de forma que o consumidor não foi onerado.Posteriormente, através da Lei nº 2.049, de 16.11.99, passou a integrar o fundo uma outra receita,

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correspondente a 3% (três por centro) dos emolumentos cobrados pelas serventias extrajudiciais, a título de taxa pelo poder de polícia, nos temos do artigo 78 do CNT e por força da fiscalização que o Tribunal de Justiça exerce na delegação desses serviços à serventia extrajudicial.Esse dispositivo foi questionado de inconstitucional no Supremo Tribunal Federal, havendo aquela Corte Superior de Justiça negado a liminar na ADIN n. 2.129, ali ajuizada pela ANOREG e que tem como relator o douto Ministro Nelsno Jobim.Com esses três expedientes se verificou um substancial aumento da receita do FUNJECC, que possibilitou, dentre outras atividades:

a) - a implantação do plano de informatização do Poder Judiciário, que engloba reformas dos prédios com a instalação de rede completa de informática, aquisição de bens, maquinários e equipamentos, bem assim como a aquisição e instalação do sistema operacional e elaboração do programa, tanto em primeiro quanto em segundo grau e, finalmente, o treinamento dos servidores;b) a construção do prédio destinado ao gabinete dos Desembargadores, que é maior que o atual, em Campo Grande, iniciado em meados de 1999 e com término de construção previsto para Janeiro de 2001, realizado integralmente com recursos obtidos pelo próprio Tribunal de Justiça, através do Fundo referido, cujo edifício possibilitará a melhor instalação da Secretaria do Tribunal de Justiça e dos 25 Desembargadores que terão acomodações compatíveis com as suas necessidades, além da redução de despesas mensais com aluguel;c) a reforma de todos os prédios das Comarcas de primeira e segunda entrâncias, no Estado;d) a licitação, aquisição e pagamento de todo o mobiliário, tanto para o novo prédio do Fórum de Campo Grande, que está sendo construído pelo Estado, quanto para o Tribunal de Justiça, equipando todos os gabinetes de Juízes e Desembargadores, com a mais moderna tecnologia em móveis adequados para evitar lesões pelo esforço repetitivo, totalmente equipado com o novo e funcional sistema de informática que também está sendo implantado com recursos exclusivos do FUNJECC;e) a licitação e aquisição de computadores de última geração para o gabinete dos Desembargadores e Juízes de entrância especial;f) a licitação e aquisição de modernos arquivos de processos, movidos por computadores e que permitem a localização de qualquer processo em poucos segundos, facilitando sobremaneira a atividade dos serventuários da justiça e propiciando maior comodidade às partes e aos advogados.

Essas novas alternativas de recursos provenientes da conta única de depósitos sob aviso à disposição da Justiça, do selo de autenticidade e de um percentual sobre os emolumentos auferidos pelas serventias extrajudiciais, deram margem a uma nova fisionomia, uma nova roupagem do FUNJECC, uma verdadeira liberdade e autonomia administrativa, tão almejada e que nos permite realizar investimentos dentro do Judiciário, como pode ser visto desse quadro:

RECEITA MENSAL ANTES DA ATUAL ADMINISTRAÇÃO

EM R$ RECEITA MENSAL DA ATUAL ADMINISTRAÇÃO EM

R$

Receitas de

1996 220.000,00 Receitas de1999 500.000,00

Receitas de

1997 200.000,00 Receitas de 2000 900.000,00

Receitas de

1998 310.000,00 Previsão para

2001 1.000.000,00

O resultado desse trabalho nos permite, hoje, planejar as ações e investimentos do Poder Judiciário, com recursos próprios, independentemente de qualquer repasse que deva ainda ser feito pelo Executivo, com base na previsão orçamentária e do excesso de arrecadação, que fica vinculado na prática ao pagamento do pessoal, sedimentando as bases de nosso futuro, que transparece, felizmente, promissor.Permite-nos ainda planejar e executar as obras, bens e serviços que se revelem indispensáveis à

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manutenção da estrutura e funcionamento do Poder Judiciário em Mato Grosso do sul, às nossas exclusivas expensas, sem depender do Governo do Estado, no campo do custeio e investimentos.Permite-nos também planejar e executar o grande projeto que se deu início nesta administração, resgatando 10 anos de completa estagnação no setor, de total informatização do Poder Judiciário, em todas as Comarcas, ligadas diretamente ao Tribunal, em sistema moderno e revolucionário, que já está sendo executado desde o início desta gestão.Permite-nos também treinar o pessoal, o que é indispensável para manutenção do sistema em funcionamento e de bom atendimento ao público em geral.Permite-nos, finalmente, realizar concurso para ingresso na Magistratura, suprindo as vagas existentes, porque, se do repasse do duodécimo feito se gasta com o pessoal, deixando que o custeio e o investimento sejam feitos com valores auferidos pelo FUNJECC, evidentemente teremos maiores condições de completar as vagas dos magistrados e servidores existentes, e prova disso é que neste biênio o Tribunal realizou quatro concursos para Juiz Substituto, com ingresso de 36 novos magistrados, um do pessoal das comarcas e um da Secretaria do Tribunal.Buscou-se, assim, com essa forma de administrar, suprir as deficiências que o Poder Judiciário sofre com a subordinação que induvidosamente existe em relação ao Poder Executivo, uma vez que, como antes já nos referimos, “é por demais sabido que uma das maiores pressões que pode sofrer qualquer órgão é a econômica”. Ao elaborar-se uma constituição, deve-se procurar resguardar os Poderes Legislativo e Judiciário de tal tipo de pressão; deve a Carta Magna dispor sobre a entrega do numerário àquelas Casas (DCN de 07-01-67, p. 99) - excerto do voto do relator, Min. Octávio Galotti.Todavia, é indispensável que o Administrador esteja também preocupado com o futuro do Judiciário e não apenas com sua própria administração.Assim, defendo a idéia de que não basta a implantação de todos esses sistemas que permitem um maior aporte de recursos e que dão margem à obtenção de uma maior autonomia e independência real e efetiva do Judiciário, se as ações e planejamentos da atualidade não tiverem seqüência na administração seguinte, que muitas vezes imprime uma outra diretriz, abandonando a anterior e adotando rumo totalmente oposto, perdendo tudo o que já foi feito ou conquistado, gerando solução de continuidade na atividade administrativa e com prejuízo de toda a população em geral, beneficiária dos serviços jurisdicionais.Por isto defendo, aqui, a necessidade de o Judiciário adotar um plano plurianual, aprovado pelo Tribunal Pleno ou pelo Órgão Especial, que se torne vinculativo da atual e da futura administração, por pelo menos quatro anos, o que permitiria um efetivo acompanhamento da evolução da atividade administrativa, financeira e orçamentária do Tribunal, cuidando para que nossa autonomia administrativa e financeira, a que antes já nos referimos, seja uma realidade, evitando, com isso, os acontecimentos lembrados por Dalmo de Abreu Dallari, já citados, a respeito dos quais se pode reforçar com o argumento de que o Poder Judiciário, no Brasil, é tratado pelo Executivo como um “poder” de segunda classe, além de para com ele existir um desrespeito flagrante, que acentuam nossas dificuldades em administrar.O Administrador, hoje, então, não pode conformar-se em apenas aguardar os repasses orçamentários, diante das dificuldades inerentes ao sistema, já demonstradas.Deve procurar verdadeiramente administrar, deixando a sua condição de magistrado, e postular pela melhoria de nossas condições, exigindo do Executivo o cumprimento da execução do orçamento, em sua integralidade.Nesse passo, penso que o Poder Judiciário deve exercera parcela do poder que detém, não aceitando a ingerência do Executivo, representada pelo atraso do repasse do duodécimo e em valor que não seja correspondente ao valor do orçamento e de sua suplementação, até mesmo porque, como bem lembrado por Ives Gandra Martins13, “acontece sempre que todos os homens, quando têm poder, se inclinam a seu abuso, até encontrar limites”.Deve ir, outrossim, além, buscando alternativas para aumentar os recursos do Tribunal que possam dar margem ao incremento dos investimentos e do custeio da máquina administrativa.Objetiva-se construir um novo Judiciário, afinado com o nosso tempo, apto a enfrentar as

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tormentosas questões de um futuro incerto, mas procurando transmitir ao cidadão a certeza de que é o Poder que efetivamente se constitui em guardião zeloso da legalidade e assegurador da liberdade e da igualdade, para isto colocando toda sua estrutura e aparelhamento, que devem ser modernos e sintonizados com a modernidade, a serviço do direito, do povo e da distribuição segura, serena e perene da justiça.

QUE SIGNIFICA “NÃO CONHECER” DE UM RECURSO?José Carlos Barbosa Moreira

1. Para bem responder à pergunta do título, deve-se começar por lembrar que um recurso – aliás como todo ato postulatório – pode ser objeto de apreciação judicial por dois ângulos perfeitamente distintos: o da admissibilidade e o do mérito. Ao primeiro deles, trata-se de saber se é possível dar atenção ao que o recorrente pleiteia, seja para acolher, seja para rejeitar a impugnação feita à decisão contra a qual se recorre. Ao outro, cuida-se justamente de averiguar se tal impugnação merece ser acolhida, porque o recorrente tem razão, ou rejeitada, porque não tem. É intuitivo que à segunda etapa só se passa se e depois que, na primeira, se concluiu ser admissível o recurso; sendo ele inadmissível, com a declaração da inadmissibilidade encerra-se o respectivo julgamento, sem nada acrescentar-se a respeito da substância da impugnação. Semelhante relação entre os dois juízos permite caracterizar o primeiro como preliminar ao segundo (sobre o conceito de preliminar, vide Barbosa Moreira, Questões Prejudiciais e Coisa Julgada, Rio de Janeiro, 1967, pp. 28 e segs., espec. 29/30; Comentários ao Código de Processo Civil, 6ª ed., vol. V, 1993, p. 599).Na técnica do direito brasileiro, o resultado do juízo da admissibilidade, no órgão ad quem, expressa-se por uma dessas duas fórmulas: “conhece-se do recurso”, quando positivo o resultado, isto é, quando o órgão entende concorrerem todos os requisitos necessários para tornar o recurso admissível; “não se conhece do recurso”, quando, diversamente, considera o órgão que falta algum (ou mais de um) daqueles requisitos. Já o resultado do juízo de mérito acha expressão noutro par de fórmulas: “dá-se provimento” ao recurso, quando se apura que assiste razão ao recorrente (isto é, que a sua impugnação é fundada); na hipótese contrária, “nega-se provimento” ao recurso. Tudo aconselha a que esta distinção terminológica seja cuidadosamente preservada, se é verdade que em direito (rectius: em qualquer ciência) a fenômenos iguais devem-se atribuir denominações iguais, e a fenômenos diferentes denominações também diferentes.Nenhum esforço é preciso para evidenciar que as decisões em cada um dos juízos tem objetos distintos e inconfundíveis. Uma coisa é pronunciar-se o órgão ad quem sobre a presença ou ausência, v.g., da legitimação para recorrer, ou da tempestividade da interposição; outra, pronunciar-se ele sobre a procedência ou improcedência da (s) crítica (s) que o recorrente formula à decisão recorrida. Frise-se, contudo, que a essa diversidade de objetos corresponde – e é o que mais importa – diversidade igualmente nítida de efeitos. Suponhamos, por exemplo, que se haja impugnado, por suposto error in iudicando, decisão relativa ao mérito da causa. O julgamento do órgão ad quem, caso este conheça do recurso, versará também sobre o meritum causae, por conseguinte, terá aptidão para produzir coisa julgada material (CPC, art. 468) e será eventualmente passível de ataque por meio de ação recisória (art. 485, caput). Mudará de figura a situação, caso o órgão não conheça do recurso: seu julgamento, exterior ao terreno do meritum causae, não se revestirá daquela aptidão, nem comportará ataque por aquele meio.

2. As noções – por sinal, elementares – que acabamos de recordar aplicam-se uniformemente a todo

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e qualquer recurso. Nem se poderia conceber outra coisa. Seja qual for o recurso, há interesse em saber se o mérito foi julgado, ou se atividade cognitiva do órgão ad quem se deteve no plano preliminar, e portanto quais os efeitos gerados pela decisão. Destarte, não se há de reservar para este ou aquele recurso, mas, ao contrário, estender a todos, sem exceção, o emprego da terminologia apropriada, sob pena de abrir-se margem a fáceis (e nocivas) confusões.Neste ponto interfere, todavia, um favor de incerteza. É que nem sempre os textos permitem, logo à primeira leitura, identificar com segurança a linha divisória entre os dois terrenos, o do juízo de admissibilidade e o do juízo de mérito. A identificação é fácil quando, ao indicar-se in abstracto o “tipo, cuja concretização no mundo real faz cabível o recurso, se empregam termos puramente descritivos, neutros pelo prisma axiológico. Por exemplo: à luz do art. 105, n. III, letra c, da Constituição da República, compete ao Superior Tribunal de Justiça “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única e última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”. Segundo bem se compreende, a mera divergência, por si só, nada revela sobre o acerto ou desacerto quer da decisão recorrida, quer da que se invoca como padrão: em qualquer das duas, obviamente, pode encontrar-se a interpretação melhor. Não é o simples fato de ter adotado, quanto à norma de direito federal, tese discrepante da adotada em acórdão de outro tribunal que necessariamente desacredita a decisão recorrida. Com freqüência acontece que essa decisão, apesar de configurada a divergência, está rigorosamente certa, e por conseguinte não merece reforma. Supondo-se presentes os demais requisitos, o dissídio basta para tornar admissível o recurso especial: não, porém, para torná-lo fundado. Em caso do gênero, toca ao Superior Tribunal de Justiça – e ele assim procede – conhecer do recurso e negar-lhe provimento.Os textos, entretanto, optam às vezes por outra maneira de dizer, capaz de dar a falsa impressão de que, ao indicar-se o “tipo”, já se está embutindo nele uma valoração. Leia-se, v.g., o art. 105, n. III, letra a, da Carta da República. Por força desse dispositivo, o Superior Tribunal de Justiça é competente para “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe a vigência”. Ora, limitando o discurso, commoditatis causa, à hipótese de contrariedade à lei federal, não há quem não perceba que, tomada a Constituição ao pé da letra, se teria conferido ao Superior Tribunal de Justiça atribuição intrinsecamente contraditória. Ele deveria julgar o recurso especial apenas nos casos em que a decisão recorrida houvesse contrariado lei federal; ou, em outras palavras: apenas nos casos em que o recorrente tivesse razão. Sucede que, para verificar se a lei federal foi mesmo contrariada, e portanto se assiste razão ao recorrente, o Superior Tribunal de Justiça precisa julgar o recurso especial! Quid iuris se, julgando-o, chega o tribunal à conclusão de que não se violou a lei, de sorte que o recorrente não tem razão? Literalmente entendido o texto constitucional, haveria o Superior Tribunal de Justiça andado mal em julgar o recurso: a decisão recorrida não contrariou lei federal, logo a espécie não se enquadra na moldura do art. 105, III, letra a...mas como poderia o tribunal, a priori, sem julgar o recurso, adivinhar o sentido em que viria a pronunciar-se, na eventualidade de julgá-lo?Eis o pobre Superior Tribunal de Justiça metido, sem culpa sua, em dilema implacável: diante do recurso especial, ou o julga, a fim de ver se a lei federal foi violada, e arrisca-se a, concluindo pela negativa, exceder os limites traçados pela Carta da República; ou então se abstém de julgá-lo, e assume o risco de descumprir a atribuição constitucional, porque sempre era possível que a lei federal tivesse raramente sido violada...não é crível que a Constituição haja requerido pôr o Superior Tribunal de Justiça em situação a tal ponto embaraçosa, condenando-o a jamais ter como desincumbir-se com tranqüilidade da missão que se lhe confiou. Torna-se patente que ao texto do art. 105, III, letra a, cumpre dar inteligência que evite convertê-lo em tão angustiante beco sem saída.

3. A solução não parece difícil. Basta que se abandone o apego à literalidade - aqui talvez mais funesto que alhures - na interpretação da letra a do art. 105, III. Deve ler-se o texto de tal maneira

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que se reduza à sua dimensão própria o elemento valorativo introduzido na descrição do “tipo”. A leitura correta é a seguinte: compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando o recorrente alegar que a decisão recorrida contrariou lei federal.Semelhante entendimento é o único suscetível de arrumar logicamente o sistema e de livrar do pesadelo o Superior Tribunal de Justiça (um autor estrangeiro, comentando o art. 101, II, letra a, da Constituição de 1946, mostrou haver bem compreendido o problema quando escreveu: “How is it possible to determine, before the judgment of the Supreme Court is rendered, wether the decision appealed from was “contrary” to the federal law or not? The constitutional provision should be understood as saying: “When the decision is allegedly contrary” (Wagner, The Federal States and their Judiciary, T’Gravenhage, 1959, p. 324, nota 2) Cf., na recente literatura pátria, Rodolfo de Camargo Mancuso, Recurso Extraordinário e Recurso Especial, S. Paulo, 1990, pp. 93/5).Como se equaciona, então, o problema? Sempre admitida, por hipótese, a satisfação dos outros requisitos, é suficiente, para o cabimento do recurso especial, a alegação de que a decisão recorrida contrariou lei federal. Se o recorrente faz tal alegação, tem o Superior Tribunal de Justiça de conhecer do recurso. Em seguida, averiguará se a alegação é fundada, isto é, se na verdade se consumou a ofensa. Caso conclua que sim, dará provimento ao recurso; caso conclua que não, negar-lhe-á provimento. E quando cumprirá que o tribunal não conheça do recurso? Quando o recorrente não houver alegado a violação de lei federal; por exemplo: quando for estadual a norma supostamente infringida.Salta aos olhos a profunda diferença entre “não conhecer” do recurso especial e “negar-lhe provimento”. Na segunda hipótese, o Superior Tribunal de Justiça examina a substância da impugnação, verifica que ela é infundada, que o acórdão recorrido não contém o erro que se lhe imputa, e portanto merece prevalecer a solução nele adotada. Na primeira hipótese, cinge-se o Superior Tribunal de Justiça a declarar que falece ao recurso um (ou mais de um) requisito de admissibilidade, de sorte que nem sequer é possível analisar-lhe o conteúdo; nada, absolutamente nada, se fica sabendo a respeito do acerto ou desacerto da decisão recorrida.

4. Conforme ressai do disposto nos arts. 560 e 561 do Código de Processo Civil, no julgamento de qualquer recurso há de observar-se a ordem lógica; o juízo de admissibilidade, preliminar ao de mérito, deve por força precedê-lo; trata-se, aliás, de proposição que brilharia no acervo literário dedicado ao Senhor de Lapalisse (desse cavalheiro francês, que sucumbiu lutando bravamente, ao que consta, na famosa batalha de Pavia (1525), celebram-se a pessoa e os feitos em produção poética marcada (cruel ironia do destino) por nota constante de obviedade tautológica, muito mais apta a suscitar reações de hilaridade que de admiração. Exemplo sugestivo é esta quadra : “Helás! S’il n’était pas mort,/Il serait encore en vie”. A quem se interesse pela origem dessa pitoresca (e injusta) tradição, aconselha-se a leitura, tão instrutiva quão prazerosa, do livrinho de Dante Zanetti, Vita, Morte e Transfigurazione del Signore di Lapalisse, Bolonha, 1992, espec. pp. 93 e segs.), quer isso dizer que somente se (e depois que) o tribunal resolve conhecer do recurso é que pode passar a averiguar se o recorrente tem ou não razão na crítica feita à decisão recorrida, ou seja, se o recurso é fundado ou infundado (para dar-lhe ou negar-lhe provimento, respectivamente). Caso o tribunal entenda que não deve conhecer do recurso, sua atividade cognitiva esgota-se na correspondente declaração. Não se concebe que em tal acórdão figure pronunciamento algum referente à substância da impugnação - ou, noutras palavras, ao acerto (ou desacerto) da decisão recorrida.Ora, sendo colegiado o órgão ad quem, a decisão resulta da apuração dos votos (que talvez não coincidam) dos seus vários membros. Mas é imperioso, obviamente, que todos os votos proferidos em cada momento versem sobre a mesma matéria! Diz elementar princípio matemático que não se somam quantidades heterogêneas. Não há como admitir que, em determinado instante, este juiz esteja votando sobre a preliminar e aquele esteja votando sobre o mérito (“não se somam votos de preliminares ou de questões prejudiciais com votos das questões de mérito, ou do resto do mérito”, advertia Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. VIII, Rio de Janeiro - S. Paulo, 1975, p. 256, após criticar em termos contundentes acórdão do extinto Tribunal Federal de

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Recursos, no qual se dissera que, para efeito de apuração, os votos que proclamassem a inidoneidade do meio se somariam aos que negasssem provimento ao recurso). Logo se exsurge dúvida acerca do cabimento do recurso, o presidente do colegiado tem de colher, primeiro, os votos de todos os juízes acerca da preliminar. Acolhida que seja esta, encerra-se o julgamento, com a declaração de que não se conheceu do recurso. Repelida que seja, passa-se ao mérito; e aí, de novo se colhem todos os votos, inclusive - impõe-se expressis verbis o art. 561, fine - os dos juízes que, havendo votado pelo acolhimento da preliminar, ficaram vencidos na etapa anterior do julgamento.Nenhuma possibilidade existe de que, na mesma oportunidade, se profiram votos no sentido de não se conhecer do recurso e votos no sentido de dar-lhe provimento. Que resultado inteligível produziria semelhante mistura? Uma de duas: ou o presidente do colegiado perdeu o controle da votação, não a está sabendo conduzir de acordo com a lei (e com a lógica), ou então os votos, pelo menos em parte, estão dizendo uma coisa quando, na verdade, querem dizer outra. A pergunta a que se tem de responder, inicialmente, é esta: conhece-se ou não se conhece do recurso? Qualquer resposta que nessa ocasião fuja à alternativa, que diga algo diferente de “conheço” ou “não conheço”, é resposta inadmissível, e o presidente deve solicitar ao votante que a retifique, sob pena de não ser ela levada em conta. Sendo positivo o resultado - isto é, pronunciando-se todos os votantes, ou a maioria deles, pelo conhecimento –, o presidente submete ao colegiado a segunda pergunta: dá-se provimento ou nega-se provimento ao recurso? Tampouco aí é ilícito a qualquer votante fugir à alternativa, para dizer - extemporaneamente - que não conhece do recurso.Quando num acórdão se lê que o tribunal, por maioria, decidiu não conhecer do recurso, contra os votos dos juízes A e B, que lhe davam provimento, o que se tem diante dos olhos é um fenômeno de teratologia judicial. Fenômeno do mesmo tipo é o que se tem diante dos olhos quando se lê que o tribunal, por maioria, deu provimento ao recurso, contra os votos dos juízes A e B, que dele não conheciam. Em qualquer dessas duas hipóteses, ou se usou, na votação do acórdão, expressão inadequada, ou se computaram votos que não podiam ser tomados em consideração, porque estranhos ao thema decidendum.

5. As observações precedentes, insista-se, valem para todo e qualquer recurso. Elas se apóiam em normas categóricas do Código de Processo Civil, que nenhum tribunal pode desprezar: o art. 96, I, a, da Constituição da República autoriza os tribunais a dispor sobre o funcionamento dos respectivos órgãos, mas subordina o exercício dessa competência à “observância das normas de processo”. Se algum tribunal, no regimento interno, der à matéria disciplina divergente da que adota o Código de Processo Civil, as normas regimentais que com este conflitem serão constitucionalmente ilegítimas, e como tais inaplicáveis.Não é o caso - apressemo-nos a ressalvar - do Superior Tribunal de Justiça, cujo regimento interno perfeitamente se conforma, no assunto que se está tratando, à sistemática legal. Reza, com efeito, o art. 257: “No julgamento do recurso especial, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. O texto é cristalino e em tido coerente - e é o que mais importa - com os princípios lógico-jurídicos consagrados na lei processual.À vista da norma regimental, não se compreende como possa o Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial, julgar a causa, aplicando o direito à espécie, sem conhecer do recurso. Julgar a causa, aplicando o direito à espécie, é algo que o Tribunal só estará em condições de fazer caso conheça do recurso especial, decidindo “pela afirmativa” a preliminar.Saliente-se que o art. 257 do regimento interno não estabelece, em termos explícitos ou implícitos, diferença alguma entre recursos especiais interpostos com invocação de outra letra a e recursos especiais interpostos com invocação de outra letra do art. 105, I, da Constituição Federal. Não a estabelece, nem poderia estabelecê-la, sob pena de pôr-se em contraste com o estatuo processual (que disso tampouco cogita) e, por via de conseqüência, com o art. 96, I, a, da Carta da República, verbis “com observância das normas de processo”.

6. Ninguém suponha que o cuidado em distinguir as aludidas hipóteses, para dar a cada qual o tratamento adequado, se resolva em puro e simples escrúpulo técnico, ou menos ainda em excessivo

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apego a certo tipo de formalismo, hoje muito justificadamente caído em desgraça. As distinções conceptuais são importantes na medida em que geram conseqüencial prática de relevo. Ora, incorrerá em grave quem subestimar aqui o relevo da conseqüencial prática e imaginar que, decida o tribunal como decidir, diga que “não conhece”ou que “nega provimento”, não variam os efeitos do julgamento, e vem tudo, afinal de contas, a dar na mesma.Quando não se conhece do recurso, a decisão do órgão ad quem não substitui a do órgão a quo; nem se conceberia que a substituísse, pois uma e outra têm objetivos diversos (o art. 512 do Código de Processo Civil não incide senão quando o órgão ad quem conhece do recurso) e, ajunte-se, quando neste se alega a ocorrência de error in iudicando e se pleiteia a reforma (não a mera invalidação) da decisão recorrida. Vide a propósito Barbosa Moreira, Coment. cit., vol. V, pp. 353/4). Se o órgão a quo julgou o mérito da causa, é a sua decisão que produz coisa julgada material; a do órgão ad quem, não versando sobre o mérito, não possui aptidão para produzi-la. Se o órgão a quo proferiu condenação, é a sua decisão que, na falta de cumprimento voluntário pelo vencido, serve de título para a execução; a do órgão ad quem só assumirá tal qualidade, eventualmente, quanto a condenações acessórias que porventura imponha (por exemplo, no tocante às custas do procedimento recursal), nunca em relação ao capítulo principal, que nela não é condenatório.À luz do art. 458, caput, do Código de Processo Civil, jamais poderá caber ação recisória para desconstituir acórdão que não haja conhecido do recurso. Rescindível será, caso contenha vício típico, previsto em algum dos incisos, a decisão recorrida (Cf., na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: 20.10.1976, AR n. 919, in RTJ, vol. 82, p. 22:” Quando não se conhece do recurso, rescindível quanto ao mérito é a decisão de primeiro grau”. No mesmo sentido, mais recentemente: 3.10.1989, AR n. 160, in DJ de 30.4.1990, p. 3.519; 5.12.0989, AR n. 230, in DJ de 5.12.1990, p 447). O ponto relevantíssimo, entre outras coisas, para a determinação da competência. Se o Superior Tribunal de Justiça não conheceu do recurso especial, nunca será competente para a rescisória: a competência tocará ao tribunal que proferiu o acórdão recorrido, de mérito. Se o Superior Tribunal de Justiça conheceu do Recurso Especial e negou-lhe provimento, objeto do pedido de rescisão será o seu acórdão, que substituiu o recorrido, de maneira que também será a sua competência para a rescisória (Carta da República, art. 105, I, c, fine).

7. Convém que nos detenhamos um pouco nessa última questão. Como é notório, sob regime constitucional anterior, costumava o Supremo Tribunal Federal, na hipótese de recurso extraordinário correspondente à do atual art. 105, n. 3, a, empregar terminologia equivocada: dizia, com efeito, não conhecer do recurso sempre que lhe parecia infundada a impugnação, do mesmo que o dizia quando ao recurso faltava algum requisito de admissibilidade. Foi-lhe impossível deixar de enfrentar o problema da competência para a rescisória, o qual não comportava, à evidência, tratamento igual nos dois casos. A solução veio a ser incorporada à Súmula da Jurisprudência Predominante, sob o n. 249, nestes termos: “É competente o Supremo Tribunal Federal para a ação rescisória quando, embora não tendo conhecido do recurso extraordinário, ou havendo negado seguimento ao agravo, tiver apreciado a questão federal”.Mas que significa apreciar a questão federal? À evidência, apurar se assiste razão ao recorrente, na crítica que faz à decisão recorrida: em outras palavras, averiguar se tal decisão é correta ou incorreta. É concebível, então, que o tribunal aprecie a questão federal e, não obstante, deixe de conhecer do recurso? Se o for, teremos de admitir que “não conhecer é locução capaz de assumir duplo sentido, de designar ora o julgamento em que se declara que ele é infundado. Nesta segunda acepção, curiosamente a expressão “não conhecer” será antônima não de “conhecer”, mas de “prover”. Nas hipóteses sob exame, o tribunal julgaria assim: de início, controlando outros requisitos de admissibilidade ( v.g., a tempestividade), optaria entre “conhecer” e “não conhecer”: ultrapassada essa etapa, ao apreciar a questão federal, caber-lhe-ia optar entre “prover” e... de novo, “não conhecer”! Eventualmente, viria a declara que “não conhecia” depois de haver declarado que “conhecia”...A verdade é que a proposição n. 249 da Súmula da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal encerrava-se e encerra-se estridente incongruência. Nela, o atentado à lógica brada aos céus. Se nos julgamentos se respeitasse a boa terminologia, não seria preciso lançar mão de tão

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esdrúxulo artifício.

8. Há outro problema, criado pelo advento do vigente estatuto processual, que introduziu em nosso ordenamento a figura do recurso impropriamente denominado “adesivo”. Nos termos do art. 500, II, tal recurso não será conhecido, se o principal for declarado inadmissível, note-se: não infundado. Mais uma razão para que se cuide de distinguir terminologicamente a decisão que declare inadmissível o recurso principal e a decisão que o declare infundado. A usar-se em qualquer caso a mesma nomenclatura, dizendo-se cá e lá que “não se conhece”do recurso, abre-se ensejo à fácil confusão, que pode repercutir na sorte do recurso adesivo.Vai-se negar conhecimento ao recurso adesivo todas as vezes que se houver dito que “não se conhecia” do principal? Se “não conhecer” tem significado unívoco, invariável, muito bem. Se, no entanto, “não conhecer” ora significa isto, ora aquilo, a questão muda de figura. A pergunta “deve-se conhecer ou não do recurso adesivo?” converte-se em perigosa armadilha. Para responder, será mister investigar em que sentido se empregou, quanto ao recurso principal, a expressão “não conhecer”. Terá o tribunal dito que “não conhecia” do recurso principal porque o entendeu inadmissível, ou porque o entendeu infundado? No primeiro caso, não poderá conhecer do adesivo, no segundo, ao contrário, desde que presentes os outros requisitos de admissibilidade, dele deverá conhecer.Tudo aconselha, bem se vê, a adoção de terminologia que evite mal-entendidos. Para justificar a decisão de conhecer de recurso extraordinário adesivo apesar de haver-se dito que “não se conhecia” do recurso extraordinário principal, chegou-se a aludir, no Supremo Tribunal Federal, a “não-conhecimento por motivo de mérito” (veja-se, por exemplo, o voto do relator do RE n. 87.355, julgado em 4.3.1980, in RTJ, vol. 95, p. 221, onde aparece, literalmente, a expressão transcrita entre aspas em nosso texto). São as locuções - perdoe-se a ousadia - qui hurlent de se trouver ensemble. Falar assim decididamente em nada contribui para tornar mais claras as coisas. Só serve para fornecer munição a quem queira denunciar a linguagem da Justiça como enigma indecifrável.

9. As presentes considerações foram-nos inspiradas pela leitura de acórdão ainda recente do Superior Tribunal de Justiça, de cujo texto nos chegou às mãos uma cópia. Proferiu-o a 3ª Turma em 24.4.1995, no julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 45.672; e o eminente relator, Ministro Nilson Naves, deu-nos a honra de uma referência ao entendimento que vimos expondo acerca da matéria, qualificado, com generosidade singular, de “lição tão magistral e tão fascinante”.Não obstante os desvanecedores adjetivos, pelos quais manifestamos a nossa gratidão, revela o teor do julgado que o preclaro Ministro - unanimemente acompanhado, aliás, por seus ilustres pares - não se convenceu do acerto da tese por que nos batemos. Tivemos a preocupação de examinar as razões, constantes da motivação do acórdão, pelas quais a nossa “lição” a despeito de “magistral” e “fascinante” não merecia acolhida. Assim procedemos com o intuito de pôr à prova a solidez de nossa posição: a oportunidade era boa para verificar se ela seria capaz de resistir a uma crítica proveniente de tais alturas. Sem o mais leve propósito de polemizar com o eminente Ministro ou com o Superior Tribunal de Justiça, e enfaticamente ressaltado o profundo respeito que temos por um e por outro, vemo-nos forçados a proclamar que continuamos a pensar como pensávamos.

10. Com que argumentos se contesta que, descendo o tribunal à análise da questão federal, para averiguar se tem razão o recorrente em censurar a decisão impugnada, e concluindo pela negativa, o caso é tipicamente de desprovimento do recurso, e nunca de não conhecimento? Começa-se por asseverar que, “no julgamento do recurso dito extraordinário, não é essa a técnica seguida por esse Tribunal, nem pelo Supremo Tribunal Federal, de há muitos anos”. O asserto é exato, mas - com a devida vênia - nada prova. A proposição contém um juízo de mero fato, não um juízo de valor. Que seja julgado e se esteja continuando a julgar de certa maneira não exclui em absoluto a possibilidade de que tal maneira de julgar seja errada. Bem sabemos como julgava o Supremo Tribunal Federal e como costumava julgar o Superior Tribunal de Justiça, nas hipóteses em foco. É isso, justamente, que nos preocupa, e é por isso que dedicamos ao problema atenção e tempo. Se os tribunais julgassem do modo que nos parece correto, nenhuma necessidade sentiríamos de insistir no assunto,

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ao risco de entediar os ilustres magistrados que neles têm assento.Adverte-se, em seguida, que, “se acolhida a lição do mestre”(e mais uma vez cabe agradecer a imerecida designação), “o recurso extraordinário em gênero, de que são espécies o extraordinário (matéria constitucional) e o especial (matéria infra constitucional), transformar-se-ia em recurso ordinário, simplesmente”. Aqui temos de confessar, com sinceridade absoluta, a nossa perplexidade. Ao que tudo indica, a diferença entre a classe dos recursos ordinários e a dos extraordinários consistiria, segundo o eminente Ministro, na circunstância de que naqueles há distinção nítida entre admissibilidade e mérito, ao passo que nestes ela se esfuma, se torna evanescente; por conseguinte, quando o recorrente não tem razão, se o recurso é ordinário, deve o órgão ad quem dizer que lhe nega provimento, mas, se o recurso é extraordinário (lato sensu), o que deve dizer o órgão ad quem é que dele não conhece.Se pudesse ser aceita, a idéia teria, a nosso ver, inegável utilidade: daria finalmente sentido claro à classificação dos recursos entre ordinários e extraordinários. Essa classificação reconhecemos com algum constrangimento, sempre nos pareceu, no direito brasileiro, um tanto misteriosa (ela é nítida, registre-se, nos ordenamentos em que a formação da coisa julgada - diversamente do que se dá entre nós - não reclama o esgotamento total das vias recursais: denominam-se, então, ordinários os recursos que obstam ao trânsito em julgado, e extraordinários os que, ao contrário, o pressupõem. Vide em Barbosa Moreira, Coment, cit., vol. V, pp. 225/6 ( e nota 30), abundantes indicações de legislação e doutrina estrangeiras). Lamentavelmente, os escritores que a adotam com freqüência divergem no critério em que se basearia a distinção. E mais: não conseguimos convencer-nos da relevância teórica ou prática de nenhum dos diversos critérios apontados. Daí termos manifestado o nosso ceptismo quanto à conveniência de continuar-se a prestigiar a classificação: chegamos a opinar que os estudiosos melhor andariam se a deixassem de lado (remetemos o leitor, ainda uma vez, aos nossos Coment., cit., vol. V, pp. 225 e segs). Estaríamos dispostos, em todo caso, a considerar a eventualidade de reexaminar a questão à luz do novo critério sugerido no acórdão do Superior Tribunal de Justiça.Logo sentimos, porém, aflitivo embaraço. É que as palavras do acórdão só se aplicam a uma das hipóteses de cabimento do recurso especial, a da letra a do art. 105, III, da Constituição da República. Nas outras hipóteses, as das letras b e c, não há problema algum. No que tange, por exemplo, aos recursos especiais interpostos com invocação da letra c, o Superior Tribunal de Justiça distingue perfeitamente entre o juízo de admissibilidade e o de mérito, e registra essa distinção mediante o uso da terminologia adequada. Quando falta algum requisito de admissibilidade (por exemplo: o acórdão impugnado e o de que ele divergiu são do mesmo tribunal), diz-se que não se conhece do recurso; quando o recorrente não tem razão, ou seja, quando o recurso se mostra infundado (correto é o acórdão impugnado, e não o outro), o que se diz é que se lhe nega provimento. Adota aí o Superior Tribunal de Justiça a técnica que se nos afigura acertada. Teríamos então de concluir que nesses outros casos o recurso especial se inclui entre os ordinários, e unicamente no da letra a entre os ordinários? Pertencerá, em suma, o recurso especial ora a uma classe, ora a outra? Suposição perturbadora, que antes reforça do que enfraquece a nossa descrença no prevalecimento da tese que defendemos transformaria o recurso especial (junto com o extraordinário) em recurso ordinário. Seja o que for que isso signifique, não tem aos nossos olhos a importância.Argumenta ainda o acórdão com a sobrecarga de trabalho que adviria, para o Superior Tribunal de Justiça, da maior “facilidade para a interposição do especial”. Esse argumento, pertinente à interposição, está aí visivelmente deslocado. É certo que, no rigor da lógica, deveriam ser admitidos no tribunal de origem, porque cabíveis (sempre na presença dos outros requisistos de admissibilidade), os recursos especiais em que se alega a ofensa à norma jurídica federal. A denegação no órgão a quo, com fundamento na inexistência do erro alegado, é praxe irregular, embora justificada por motivos de ordem prática. Abandonada que fosse, aumentaria sem dúvida o número de recursos especiais submetidos ao Superior Tribunal de Justiça. Mas não é isso que se trata agora, e sim de recursos que foram admitidos e estão sendo julgados pelo tribunal. A quantidade de trabalho não é posta em jogo: ela permanecerá obviamente igual, quer o Superior

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Tribunal de Justiça, na hipótese sob exame, declare que não conhece dos recursos, quer declare que lhes nega provimento. No instante em que o tribunal opta por uma ou por outra dessas fórmulas, já fez todo o trabalho que precisava ser feito: nada mais lhe resta senão expressar o resultado do julgamento. Não vislumbramos, destarte, em que poderia contribuir o emprego da terminologia correta para constranger o tribunal a deixar de “cumprir a sua missão constitucional” - calamidade que certamente ninguém deseja (menos que todos o autor desse artigo), e com a qual não é desprezível, atrevemo-nos a supor, a possibilidade de que o acórdão tenha acenado à feição de simples figura de retórica.11. Foi nímia gentileza do eminente Ministro Relator o haver dito, como disse, que reconhecia a nossa autoridade. Pouca, na verdade, pensamos ter; mas força é convir que muita tinham e têm outras vozes que, de longa data, vêm sustentando a mesma posição: não só na doutrina (limitamo-nos aqui a recordar as lições de Pontes de Miranda, Coment., cit., vol. VIII, pp. 196 e segs. e Tratado da Ação Rescisória, 5ª edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 154), sublinhe-se, senão no próprio âmbito do Judiciário, e nomeadamente no seio da Corte Suprema, onde mais de um Ministro reagiu contra a prática errônea.Nunca é demais recordar, ao propósito, o luminoso voto proferido por Edmundo Lins no julgamento dos Embargos no Recurso Extraordinário n. 1.337, de 21.9.1921 (Rev. do STF, vol. 38, pp. 74/6. Cf., antes, o voto no julgamento dos Embargos no RE n. 9.181, in A J, vol. 78, p. 299). Ali se começa por dizer: “Conheço de todo o recurso extraordinário que haja subido a esta instância, desde que: a) o recorrente, ao interpô-lo, haja invocado um dispositivo constitucional, que o admita; b) tenha sido, oportunamente, tomado por termo e, oportunamente, tenha sido apresentado na Secretaria do Tribunal. Tudo o mais já não é questão “preliminar”, mas de “mérito” da “causa”. Com efeito, preliminar, como a própria palavra o está a dizer, é a questão que se resolve antes de se examinar e resolver a relativa à matéria principal, sobre que versou a ação, deduzida em Juízo, ou sobre o que recai o recurso: é o que se resolve antes desse exame, por ser dele, in totum, independente”.Adiante pergunta o Ministro: “Se (...) a parte invocar um caso em que, em tese, caiba o recurso, mas nessa tese não se compreender a hipótese, ainda assim conhecerei do mesmo recurso?”. E responde: “É claro, claríssimo que sim; porquanto, sem examinar a litiscontestação e a sentença, não poderei decidir a questão ventilada, isto é, se a tese se adapta ou não ao caso concreto. É essa uma das questões “do mérito” do feito, e é até, no recurso extraordinário, a única juridicamente possível”. Com lucidez, ressalta: “Não há, de fato, nenhuma outra, absolutamente nenhuma, atinente ao “mérito”, que se possa decidir”. E, em certeira crítica à praxe equivocada: “O que ainda não cheguei a compreender (...) é o que faz, quotidianamente, a maioria do Tribunal: examina a litiscontestação e a sentença recorrida; à vista desse exame, conclui muito juridicamente, que, no caso, por exemplo, a Justiça local aplicou a Lei Federal invocada, ou que, se não o fez, é porque a mesma era inaplicável, e, em vez de tomar conhecimento do recurso e negar-lhe provimento, conclui: - “dele não conhecer, por não ser caso”. E ajunta: “Eu...me parece que é o que, em lógica, se chama contradictio in adjecto, ou quiçá fallacia grammatica: não conhece, porque já conheceu!”.

12. Na irrespondível argumentação de Edmundo Lins, há um aspecto para o qual nos animamos a pedir a particular atenção do leitor que ainda tenha a paciência de acompanhar-nos. Quando se ouve anunciar que o órgão ad quem não conheceu de determinado recurso, a idéia que intuitivamente ocorre é a de que a atividade cognitiva do tribunal se deteve aquém do ponto a que, em princípio, poderia ter chegado. O julgamento, por assim dizer, ficou incompleto: algo se deixou de examinar. É até natural que a nossa curiosidade se veja despertada para a conjectura do que aconteceria se porventura se houvesse rejeitado a preliminar. “Como se decidiria no mérito”? - é a pergunta que não raro nos acode a mente.A tal indagação, se o tribunal usou de boa técnica, não há como responder. Quando não se conhece de recurso, na autêntica acepção do termo, a ninguém é dado saber o que pensava o órgão ad quem sobre a substância da impugnação. Temos de conformar-nos em ignorar para todo o sempre como valorariam os juízes a decisão recorrida: se a achariam correta ou incorreta. Isso seria matéria atinente ao mérito; mas, se o tribunal se deteve na preliminar, é que (perdoe-se o truísmo) ao mérito

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não chegou. Unicamente se sabe que o recurso não foi conhecido; “the rest is silence”. A pergunta, entretanto, apesar de tudo, faz sentido: nossa curiosidade, se bem que insuscetível de satisfazer-se, nem por isso é absurda, pois em tese seria concebível que o órgão ad quem dissesse mais do que disse, e é explicável que nos agradasse descobrir, ou adivinhar, o que nesse caso ele diria.Contudo, se o órgão ad quem declara que não conheceu do recurso a despeito de pronunciar-se acerca da substância da impugnação, a despeito de revelar o que achou da decisão recorrida, então a pergunta “Como se decidiria no mérito?”positivamente não tem pé nem cabeça. O tribunal já disse tudo que poderia dizer. Com efeito: que faltaria examinar, depois de examinada (e achada correta) a decisão recorrida, depois de examinadas (e repelidas) as alegações que contra ela formulara o recorrente? Nada, é óbvio. E o mérito? Uma de duas: ou foi apreciado, sob falsa denominação, ou...pura e simplesmente não existe! Juízes preguiçosos costumam tentar justificar o mau vezo de empurrar para a audiência de instrução e julgamento, no procedimento ordinário, a apreciação de questões que a lei quer resolvidas por ocasião do saneamento do feito, com a desculpa esfarrapada de que “as preliminares envolvem o mérito”. Como se isso não bastasse, apresenta-se-nos, no julgamento do recurso especial, uma preliminar que... abrange o mérito e o esgota.

13. A situação ainda se complica quando, no mesmo recurso, existe uma parte realmente incabível e outra parte em relação a qual ele é cabível, mas infundado. Suponhamos, v.g., que o recorrente alegue ter o acórdão recorrido (de mérito) violado, em cada qual de seus dois capítulos distintos, uma lei. Apura-se que, das duas leis, só uma é federal. Naquilo em que se invocou violação de direito estadual ou municipal, interpôs-se recurso incabível; para esse capítulo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça só pode ser mesmo a de não conhecer do recurso. A decisão, tal como formulada, afigura-se de não conhecimento no tocante a todo o recurso.A rigor, há duas realidades diversas, erroneamente colocadas sob o mesmo rótulo. A parte do acórdão referente à lei local está bem denominada: nela, o Superior Tribunal de Justiça na verdade não examinou o mérito do recurso; nada disse a respeito da afirmada infração (que pode ter ou não ocorrido) do direito local; o acórdão do Superior Tribunal de Justiça não substituiu, naquele capítulo, o julgamento impugnado. A parte restante está mal denominada: nela o Superior Tribunal de Justiça examinou o mérito do recurso; disse que não ocorrera a afirmada infração; seu acórdão substituiu o julgamento impugnado.As conseqüências são diferentes. Na primeira parte, a coisa julgada material cobre o acórdão recorrido; na segunda, cobre o acórdão do Superior Tribunal de Justiça. Se alguém quiser pleitear a rescisão do julgado, terá de tentá-lo, na primeira parte, perante o tribunal de origem; na segunda, perante o Superior Tribunal de Justiça. Mas se se lê o dispositivo do acórdão e nele se encontra uma declaração única e invariável para o recurso inteiro, a tendência natural será a de presumir que toda a matéria comporte tratamento igualmente único e invariável. Surge aqui, para o interessado na rescisão, o perigo de apresentar sua demanda a tribunal parcialmente incompetente; e quase nos sentimos tentados a acrescentar que surge também, para o tribunal que se apresenta a demanda, o perigo de julgar a ação rescisória para a qual era e é parcialmente incompetente.

14. Demos a este artigo título que termina por um ponto de interrogação. Antes de lhe pormos o ponto final, corre-nos o dever de responder à pergunta. A rigor, já se contém a resposta, redundante até, nas páginas anteriores. Mas não custa resumi-la, à guisa de conclusão.A expressão “não conhecer” de um recurso significa, só e sempre, abster-se de examinar a impugnação em sua substância, de aprovar ou desaprovar a decisão recorrida. O tribunal que não conhece de um recurso de jeito nenhum diz a quem assiste razão: se ao recorrente, se ao órgão a quo. Caso o diga, ou está avançando o sinal, fazendo acréscimo indevido à decisão de não conhecimento, ou está dando ao seu próprio pronunciamento denominação equivocada.É antes de examinar a substância da impugnação que o tribunal tem de decidir se vai ou não conhecer do recurso. Se lhe examinou a substância, dele já conheceu, por mais que se empenhe em fazer crer o contrário. No instante em que está deliberando se o recurso merece ou não merece ser conhecido, o tribunal ainda não sabe que juízo formará a respeito da decisão recorrida e das razões do recorrente; apenas o saberá, à evidência, se e quando examinar aquelas e estas - noutras palavras,

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se e quando conhecer do recurso. E a deliberação preliminar (conhece-se ou não se conhece?) em nada predetermina o sentido em que, depois se julgará o recurso no mérito. Não existe hipótese em que o tribunal só possa conhecer para prover (!); ela é tão absurda quanto seria a de que um órgão encarregado de realizar prova pública só pudesse admitir a prestá-la os candidatos que nela viriam a ser aprovados. Tampouco existe hipótese em que o tribunal deva dizer que não conhece, em vez de dizer que nega provimento, quando considere que o mérito é ruim - como se o órgão realizador do concurso, depois de corrigidas as provas, declarasse indeferir a inscrição dos candidatos porventura reprovados...O que se acaba de expor vale para todo e qualquer recurso, ordinário ou extraordinário que seja - se tais qualificações têm (do que duvidamos) sentido inteligível, muito pouco razoável afigura-se o alvitre de atribuir à mesma e única locução (“não conhecer”) ora o significado de “deixar de julgar o mérito do recurso”, ora o de “rejeitar o recurso por motivo de mérito”, conforme se esteja aludindo a este ou àquele recurso; menos ainda, a uma ou a outra hipótese de um mesmo e único recurso. “Não conhecer do recurso especial” interposto pela letra a não pode, em absoluto, significar coisa diferente de “não conhecer do recurso especial” interposto pela letra c do dispositivo constitucional. Em direito, como em toda ciência, as denominações têm de ser unívocas. Faça-se idéia da confusão que se instalaria, por exemplo, na geometria, se se pudesse usar nalgum caso a palavra “triângulo” para denominar qualquer outra coisa além do polígono de três lados. Os restos mortais do pobre Tales decerto não teriam descanso no túmulo, sacudidos pela aflição com a sorte da lei que ele, em vida, enunciou...

15. Uma última observação: o mais paciente leitor talvez se pergunte, a esta altura, se realmente compensa que nos preocupemos tanto com uma questão terminológica (não é, com efeito, a primeira vez - e quiçá não seja a última... - que ao assunto dedicamos, além de passagens de obras mais amplas, trabalho específico. Dele tratamos, há alguns anos, no artigo Juízo de admissibilidade e juízo de mérito no julgamento do recurso especial, publicado no volume coletivo Recursos no Superior Tribunal de Justiça (org. por Sálvio de Figueiredo Teixeira), S. Paulo, 1991, pp. 163 e segs., e em nossos Temas de Direito Processual, Quinta Série, S. Paulo, 1994, pp. 131 e segs., e do qual aproveitamos aqui, em boa parte, a argumentação). A resposta é que, a nosso ver, ela não valeria um caracol, se não tivesse conseqüências práticas. Mas tem - e nada positivas. Já se viu que é ilusória a suposição de que o emprego da expressão “não conhecer” em acepção atécnica evite de qualquer modo o aumento da carga de trabalho do Superior Tribunal de Justiça. De que outra vantagem pode cogitar-se? De nenhuma que sejamos capazes de imaginar. Semelhante emprego, por outro lado, gera, no mínimo, dúvidas desnecessárias no tocante, por exemplo, ao objeto da eventual ação rescisória, e portanto à competência para julgá-la. Ora, dúvidas do gênero costumam produzir complicações judiciais, e as que se relacionam com a competência são particularmente nefastas: poucas coisas causam tanta perturbação na marcha do pleito como, digamos, um conflito negativo, que pode acarretar-lhe retardamento de vários anos no desfecho. O aparelho da Justiça vê-se onerado com uma carga poder, espoliado de tempo e de energias que melhor aplicaria alhures. Não sofre com isso, exclusivamente, o próprio processo em que se suscitam os incidentes: sofre todo o conjunto dos feitos instaurados e por instaurar.De que não são vãos nem exagerados os nossos receios a melhor prova está no fato de haver o SupremoTribunal Federal decidido incluir na Súmula a proposição n. 249. Se precisou fazê-lo, foi decerto em razão de questões concretas que terá sido convocado, provavelmente com freqüência, a apreciar. Não é crível que se tivesse abalançado à inclusão, caso a matéria só esporadicamente o ocupasse, ou lhe parecesse irrelevante. Com toda certeza foram numerosas e preocupantes as dúvidas. Muitos feitos - vale dizer: muitos jurisdicionados - hão de ter padecido com as procrastinações causadas pelos incidentes. A Corte Suprema, diga-se sempre com o maior respeito, resolveu mal o problema. Agora, todavia, o ponto capital não é esse: é a importância prática que, de modo inequívoco, teve de reconhecer-lhe.Ora, se o problema é praticamente importante, então compensa que a ele se volte de vez em

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quando, tênue que seja a esperança de vê-lo um dia bem resolvido. Ao menos nisto não se dirá que pecamos por omissão.

A PRÁTICA TRIDIMENSIONAL DA EXISTÊNCIA EM MIGUEL REALERené Ariel Dotti

No ano de 1967, Portugal comemorou o centenário de abolição da pena de morte. E um colóquio, reunindo juristas e filósofos de vários países, foi realizado em Coimbra sob os auspícios de sua famosa Faculdade de Direito. Mas o discurso de abertura do magno evento não foi feito por um especialista ligado às ciências jurídico-penais e sim por um poeta e médico: Miguel Torga, o imortal autor de A Criação do Mundo, Contos da Montanha, O Senhor Ventura e outras obras merecedoras do Nobel da Literatura. Em sua antológica oração, ele disse que, como poeta, estaria representando, como pudesse, o ardor indignado e fraterno de quantos, de Villon a Victor Hugo, de Gil Vicente a Guerra Junqueiro, protestaram contra o iníquo pesadelo e contribuíram para a sua extinção ou repulsa na consciência universal; e como médico, simbolizaria, com igual modéstia, a interminável falange daqueles que foram sempre, e são ainda, em todas as sociedades, os inimigos jurados e ativos de qualquer forma de aniquilamento humano. Na qualidade de procurador sem procuração de uns e de outros, Miguel Torga declarou que nada mais pretendia ser senão uma discreta sombra que indicasse as suas presenças naquela augusta assembléia que, sem eles, estaria incompleta. Conforme suas próprias palavras, faltariam “no seio do grande e aguerrido exército da não-violência os clarins da emoção e as batas da preservação. Valem muito a dialéctica e o saber, que destrinçam, ordenam e codificam, mas não valem menos a palavra inspirada, que arrebata, e o exemplo, e o exemplo abnegado, que opõem teimosamente o não da vontade ao sim da fatalidade. O que realiza a seca complexidade dum argumento, realiza-o muitas vezes a singeleza dum verso; o que não consegue um abstracto fervor humanitário, consegue-o quase sempre uma devoção concreta’’.1Aquelas palavras, com a forte carga de humanidade que as iluminava, constituíram a overture de uma série de magníficas conferências, do mais alto valor científico, todas se opondo ao chamado homicídio legal. Em duas outras significativas passagens de seu discurso, Miguel Torga revela o quanto são necessárias tanto a visão da História como a perspectiva racional em torno da condição humana para tratar lucidamente de um tema que está presente em todos os grandes e infinitos debates sobre a natureza e os objetivos das sanções criminais. E arremata: “Não matarás! proclamam as Escrituras, do fundo do tempo, quando o homem mal imaginava a que abismos de introspecção desceria no futuro e de que milagres terapêuticos a ciência criada por ele seria também capaz, um dia. E as rectas consciências descobriram finalmente que esse mandamento é o primeiro dos que nos preservam de cair no inferno da infalibilidade, a tentação das tentações. O risco vermelho separa o possível do impossível, o revogável do irrevogável, o desespero da esperança. (...) Nesta maldita hora de campos de concentração, de câmaras de gás, de bombas atômicas, de guerras sinistras, de massacres expeditivos. Apelo ao respeito devido à nossa já dramática condição de mortais. A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalômanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que

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somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte”.2Um dos brasileiros presentes àquele magno encontro foi o Professor Miguel Reale. Em sua lúcida e erudita Comunicação, sob o sugestivo título “Pena de morte e mistério”, o mestre lembrou a euforia de Vicenzo Manzini que, festejando a restauração da pena capital na Itália, com uma lei de 1926, assim escrevera: “A questão da pena de morte, apesar de ter dado lugar a intermináveis e tediosíssimas diatribes por parte de filósofos e de pseudojuristas, não é nem questão filosófica, nem jurídica. Os argumentos que se aduzem a favor ou contra a pena de morte não são sequer racionalmente decisivos, quer num sentido, quer no outro, e ainda menos o podem ser juridicamente, visto não haver outro direito além do constituído pelo Estado. A questão da pena de morte é meramente política, porque somente pode ser decidida segundo critérios políticos”3.Contestando aquela linha de pensamento autoritário, Miguel Reale demonstrou que, não obstante o curto tempo decorrido - entre a publicação da doutrina do corifeu da Escola Técnico-Jurídica e a data do Colóquio - aquelas palavras haviam adquirido uma estranha ressonância, “tais as mutações profundas por que passou a humanidade nestas três ultimas décadas, projetando o problema da morte para o primeiro plano das meditações dos filósofos, irradiando-se poderosamente pelos quadrantes da arte e da literatura (...) Há, porém, sinais de que os juristas, e não apenas os jusfilósofos, já se aperceberam da sem razão desse alheamento, não podendo a ciência do Direito, como compreensão normativa da experiência social, deixar de prestar atenção aos novos aspectos oferecidos sobre a vida humana que ela procura dimensionar. (...) Não resta dúvida que, no plano dos fatos, a vigência ou não da pena de morte depende de critérios políticos, mas o problema é, em si mesmo, a um tempo filosófico e jurídico, por seu conteúdo e pelas implicações que suscita na experiência social. O ato do legislador, instituindo a pena de morte, não tem o efeito de legitimá-la, indiferente às “diatribes” dos filósofos. E como se só restasse aos juristas o trabalho acessório de estudar os processos técnicos postos pela invencível determinação normativa: ao contrário, a opção do órgão soberano do Estado, no instante mesmo em que instaura ou reinstaura a pena de morte, põe o problema de sua legitimidade. Poder-se-ia dizer, parafraseando conhecido dito de Romini, que é então que o problema brilha com um esplendor insólito 4.O talento do filósofo, do jurista e do poeta Miguel Reale manifestou-se desde o título da valiosa contribuição, pois o fenômeno da morte habita, por si mesmo, o território misterioso da imaginação, independentemente de a ela se acrescer a execução de uma pena como sua causa determinante. As demais passagens de seu texto demonstram que a morte, como sanção penal, é um dos assuntos que transcendem os limites assinalados para as questões dogmáticas ligadas aos problemas do delito, do delinqüente e das reações punitivas. O rigor intelectual da exposição não lhe reiterou, em momento algum, o brilho poético que adornou o pensamento do escritor mesmo quando, aparentemente, teria renunciado às cogitações sobre a morte no plano existencial. E, revelando a sua notável vocação para as deduções lógicas, disse que iria desenvolver uma análise sob o ponto de vista exclusivo “da possível compatibilidade lógica entre o conceito de pena e o conceito de morte”. Seguem-se algumas passagens recolhidas de sua posição perante o tema:

A sanção penal, genericamente considerada, triparte-se em sanção civil, sanção administrativa e sansão penal, «stricto sensu», ou pena, propriamente dita, não havendo necessidade de apontar, neste estudo, as características de cada uma delas. Bastará frisar que a pena se distingue das demais sanções, não apenas por motivos de ordem formal, mas também em razão de seu conteúdo, ou seja, em virtude do valor ou do interesse que tutela. Como «conseqüência jurídica» do delito, - e conseqüência que se não reduz a um simples nexo causal, «ad instar» do que ocorre no plano das relações naturais, visto se constituir como momento de um dever ser ético, - a pena tem como pressuposto necessário uma ação axiologicamente dimensionada, segundo o modelo racionalmente expresso no preceito legal violado. Podem variar as doutrinas no concernente à conceituação da pena, uns pondo em realce a sua natureza retributiva, outros a sua destinação preventiva, ou então preferindo uma apreciação conjunta dos dois aspectos para concebê-la como «uma expressão de escopo preventivo», mas são todas expressões de um mesmo inevitável propósito de fundação racional da pena, com base nas

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lições da experiência. A pena é, em suma, necessariamente, uma categoria racional, assim por sua natureza como por seus fins. Quer se opte por uma concepção naturalística da pena, subordinando-a ao problema da periculosidade do delinqüente, quer se funde a sua compreensão na idéia ética de um castigo ou sentimento infligido ao transgressor, «malum passionis propter malum actionis» o certo é que o conceito de pena implica um processo de racionalização da experiência pondo-se a conseqüência jurídica como resultado de uma determinada forma de valoração do ilícito penal, resultado esse que sempre corresponde a uma correlação de meio a fim, segundo a perspectiva ou o enfoque teorético preferido. (...) Pois bem, assente a base racional e experiencial do conceito de pena, tenho para mim que, lógica e ontologicamente, é ele incompatível com o conceito de morte. «Pena de Morte» é um enunciado que só formalmente se compõe em unidade, dada a discrepância substancial que há na utilização da morte como instrumento de pena. É o que a filosofia contemporânea vem pôr em realce, reatando uma linha de compreensão do problema que remonta a Sêneca e a Santo Agostinho. (...) pondera Santo Agostinho que, quando se examina mais de perto a questão, não se pode, a rigor, falar em experiência da morte, pois aquele angustioso e atroz padecimento que o moribundo experimenta não é morte mesma: se ele continua tendo qualquer sensação, é que ainda está vivo; e, se ainda se acha em vida, deve-se dizer que se acha antes em um estado anterior à morte do que em «articulo mortis». É difícil, por conseguinte, dizer-se quando se deixa de viver e se está morto; a mesma pessoa se acha, ao mesmo tempo, morrendo e vivendo, na direção da morte, despedindo-se da vida. E, quando a morte sobrevém, o homem já não se acha em estado de morte, mas depois dela. Quem, pois, pode dizer, pergunta Santo Agostinho, quando é que o homem está na morte?A seu ver, vive-se e morre-se ao mesmo tempo, e nem bem se nasce já se começa a morrer, não se achando jamais o homem antes ou depois da morte, mas sempre morrendo, consoante advertência depois repetida por tantos outros, e que tão profunda ressonância atinge na especulação do segundo após guerra 5. Na mesma linha de pensamento, mas em sentido diametralmente oposto, dirá Heidegger que a morte do outro não representa para nós qualquer experiência, sendo a morte em si mesma absurda, dado que, se o homem é um ser destinado à morte, esta não é senão «a possibilidade da impossibilidade» mesma da existência; não outorga à realidade humana nada a realizar, de tal sorte que a existência se reduz a uma aventura de sua própria impossibilidade 6.(...)A execução da pena de morte reduz-se a algo de exterior, que se conclui e se satisfaz com o extermínio de um corpo, cuja cessação é a cessação de uma possibilidade existencial. A morte é, desse modo, apenas um fim, um termo no processo biológico e um ponto considerado final na seqüência dos autos do processo judicial. (...) Por outro lado, se todos nos destinamos à morte, - e empregamos estas palavras sem as desesperadas implicações que lhes confere Heidegger, - se, de certo modo, todos estamos «destinados à morte» a pena de morte equivale à «antecipação da morte». É exatamente neste ponto que se revela mais violenta a contradição ao pretender-se converter a morte em instrumento de sanção. (...) A inseparabilidade do conceito de morte do conceito de pessoa põe, assim, em evidência que a morte não pode ser matéria de pena, pois elimina, no ato de sua aplicação, aquele mesmo a quem ela se destina. Em última análise, na e pela pena de morte, a pessoa é negada como tal, convertida em coisa. Daí assistir razão a Gustav Radbruch quando pondera que só uma concepção supra-individualista do direito pode admitir a pena de morte, porque só uma concepção desta natureza pode reconhecer ao Estado um direito de vida e de morte sobre os indivíduos 7.(...)É no ato da aplicação da pena de morte que esta se põe na crua luz do entendimento sartriano: aniquilamento do ser humano fora de todas as suas possibilidades; não apenas o projeto que destrói todos os projetos e que se destrói a si mesmo, mas o triunfo do ponto de vista do outro sobre o ponto de vista que eu sou sobre mim mesmo 8.(...)O conceito de morte, em suma, é de tal ordem, que, como afirma Simmel, matiza todos os conteúdos da vida humana, podendo-se dizer que ela é inseparável de um halo de enigma e de

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mistério, de sombras que à luz da razão não é dado dissipar: querer enquadrá-la em soluções penais equivale a despojá-la de seu significado essencial para reduzi-la à violenta desagregação física de um corpo 9.Numa das últimas passagens de seu vigoroso texto, Miguel Reale pondera que a opção pela pena de morte - em lugar da pena temporária ou definitiva de prisão - “não é ditada por motivos de caráter racional, jogando-se com o ‘terror da morte’, como possível instrumento de prevenção criminal (...) 10.

Essa observação lembra um dos mais penetrantes temas da literatura jurídica e da crônica das execuções da pena capital. A ele tive oportunidade de me referir através de um texto que aborda, exatamente, a celebração do sacrifício de execução da sanção capital11. Lembro que os procedimentos impostos pela lei ou pelos costumes na execução da pena de morte e os sofrimentos aplicados ao condenado caracterizaram, ao longo dos anos, um repertório de expressões simbólicas com o propósito de esconjurar o crime e infamar o seu autor. Os padecimentos daquele que deveria morrer em nome da lei e em favor da comunidade se alternavam conforme a classificação adotada para o tipo de morte. Como observa Foucault, o suplício assume uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o brilho. “A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados): por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe, aos olhos de todos, uma forma invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer a sua força”. 12 A publicidade das execuções da pena de morte constituía uma sanção criminal propriamente dita e assim foi cominada pelo Código Penal espanhol de 1822: a pena de ver executar uma sentença de morte, na suposição de que o espetáculo pudesse exercer efeito intimidativo junto à população para se prevenirem novos delitos.Também no século passado, uma lei francesa determinava que as execuções fossem públicas. Elas tinham lugar na praça compreendida entre a Grande Roquette, onde ficavam detidos os adultos, enquanto a Petiti Riquette era a casa de correção para menores.Além desse aspecto do terror coletivo, muitos outros são objeto de análise pelos estudiosos, despontando:

a) as técnicas e meios de execuçãoAs técnicas e meios de provocar a morte do condenado eram tão variáveis quanto a imaginação dos especialistas e dos legisladores de diferentes estágios da vida em sociedade. Abandono às feras, degola, evisceração, enfossamento, crucificação, esmagamento, empalação, esfolamento, enforcamento, fuzilamento, roda, queima pela fogueira, decapitação, injeção letal, câmara de gás, cadeira elétrica, etc.;

b) a classificação dos tipos de morteSegundo as Ordenanças Filipinas, as modalidades de execução da pena capital eram as seguintes: morte cruel, morte atroz e morte simples. A morte cruel consistia na retirada da vida lentamente, em meio a suplícios, competindo ao juiz a escolha do meio mais doloroso. Em alguns casos, era a lei que determinava a forma de suplício. A morte atroz se caracterizava pela aplicação de alguns agravantes como o confisco de bens, a queima do cadáver ou seu esquartejamento e a proscrição da memória. A morte simples limitava-se à supressão da vida sem outros acréscimos, através da degola ou do enforcamento, reservando-se este para as classes mais baixas em face de seu caráter infamante. Anota Augusto Thompson que a expressão “morra morte natural para sempre”, que à primeira vista parece um despautério, visto não ser admissível uma morte provisória, era uma fórmula usada pelo legislador para indicar a morte atroz, distinta da morte simples que se identificava pela expressão morte natural. O condenado à morte natural simples teria o seu cadáver levado ao cemitério para o sepultamento; o condenado a morrer morte natural para sempre tinha o seu cadáver insepulto, despindo-se seus ossos da carne que apodrecia 13.Uma demonstração eloqüente dos rituais e martírios foi narrada na Gazeta dos Tribunais de Lisboa,

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de 13 de setembro de 1843; os juízes que, em suas sentenças condenavam o delinqüente à pena capital sob o rótulo de “morte natural”, ordenavam que o enforcamento se fizesse no pelourinho e levado após o seu cadáver para a Confraria da Misericórdia e sepultado no cemitério. Quando, porém, a sentença aplicava a modalidade de “morte natural para sempre”, o padecente ia à forca na cidade, onde morria, e ficava pendente até cair podre sobre o solo do patíbulo, ficando insepulto, despindo-se seus ossos da carne que os vestia14.

c) o discurso do cadafalsoO discurso do cadafalso foi utilizado ao longo da história das execuções da pena capital como um meio de intimidação coletiva. O condenado, momento antes da execução, abominava o seu crime. O rito previa que ele proclamasse a sua culpa, reconhecendo-a publicamente: de viva voz, pelo cartaz que exibia e pelas declarações que era obrigado a fazer. Lembra Foucault que, no momento da execução, “parece que lhe deixavam além disso tomar a palavra não para clamar a inocência mas para atestar o seu crime e a justiça de sua condenação” 15. Tal discurso é característico de uma moral tradicionalmente encontrada em folhetins, nos pasquins e na literatura popular, para não ser tido como apócrito. Mas a existência desse gênero, a que se designou de últimas palavras de um condenado, é muito significativa. A justiça precisava que a sua vítima autenticasse, de algum modo, o suplício que sofria . Pedia-se ao criminoso que consagrasse, ele mesmo, a sua própria punição, reconhecendo o horror de seus crimes. Faziam-se confessar, assim, como ocorreu com Jean Dominique Langlade, três vezes assassino: “Escutai todos minha ação horrível, infame e lamentável, cometida na cidade de Avignon, onde minha lembrança é execrável, ao violar sem humanidade os direitos sagrados da amizade”16.Além dos procedimentos e dos rituais no momento da morte e, depois dela, com a negação da sepultura em muitos casos17, havia também um fenômeno preparatório dos cortejos da execução, alguns deles contados em versos singelos e profundos que narravam o martírio. “Por essa corda no pescoço, / como se ele fosse uma rês? / Por que na corda vai tão manso, / segue o caminho, assim cortês?/ A corda não serve para nada, / não o arrasta nem o detém. / É para mostrar que esse homem/ já foi homem, era uma vez”. Esse quadro retratado nos versos de João Cabral de Mello Neto, foi dito pela “gente das calçadas”, no último dia de vida de Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca18.A pena de morte é, sobretudo, uma contradição institucional na medida em que o Estado, como guardião dos bens fundamentais e, entre eles, a vida humana, é a lei que comina, o juiz e o carrasco que executa a pena de morte. Dessa contradição - profunda e irreversível - não escapou o grande líder do Comité de Salut Public, Maximiliano Maria Isidoro de Robespierre, que os parisienses cognominaram de “O incorruptível”. Ele pronunciou um discurso, em 30 de maio de 1791, na Assembléia Francesa, quando se discutia o Código Penal Francês que iria vigorar a partir de setembro daquele ano. Nesse texto, são enumerados vários argumentos contra a pena capital. Vale transcrever alguns deles: “Escutem a voz da justiça e da razão, ela nos diz que os julgamentos humanos não são jamais suficientemente certos para que a sociedade possa conceder a morte a um homem condenado por outros homens sujeitos ao erro. Vocês imaginariam a ordem judicial mais perfeita, achariam os juízes mais íntegros e mais esclarecidos, restar-lhes-ia ainda alguma possibilidade de erro ou de prevenção. Por que proibir o meio de repará-los? Por que condená-los à impotência de estender uma mão compassiva à inocência oprimida? O que importa estes estéreis lamentos, essas reparações ilusórias que vocês outorgam a uma sombra vã, a uma cinza insensível? Elas são as tristes testemunhas da bárbara temeridade de suas leis penais. Arrebatar do homem a possibilidade de expiar o seu delito através do arrependimento ou de atos de virtude, impiedosamente impedi-lo de um retorno à virtude, à auto-estima, apressar-se para fazê-lo descer, assim, no túmulo ainda coberto da mancha recente de seu crime, é a meus olhos o mais terrível requinte de crueldade” 19.No dia 1º de julho de 1891, a matéria foi votada e a Assembléia Nacional decidiu, quase por unanimidade, manter a pena de morte. E foi o próprio Robespierre, chefiando com lances de

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terror o Comitê de Salvação Pública, quem mandou um imenso número dos chamados inimigos da República para a guilhotina. Ele mesmo não escapou dos ódios que semeou. Morreu também no cadafalso (1794) para onde mandara tantas vítimas.Compreendendo que a vida humana é o valor de maior expressão entre os bens jurídicos, como síntese da aventura do homem - feita de matéria e espírito, de natureza e valor, de tempo e história -, o Estado tem o dever supremo de protegê-la, não apenas contra as ofensas do indivíduo e da sociedade como também das agressões do próprio poder que representa. Quando o Estado declara a inviolabilidade da vida humana e, ao mesmo tempo, comina a pena de morte, revela insuportável contradição. Pode-se afirmar, com segurança, que a abolição da pena capital do repertório das sanções criminais se identifica com o movimento histórico da eliminação das penas cruéis e infamantes. Muito se poderia dizer sobre o ocaso da pena de morte nas legislações modernas. Bastam, entanto, algumas referências.A primeira delas é a lição de que foi, através das fantasmagorias da execução e da inutilidade das penas corporais, que o pensamento jurídico reformador concebeu da perda da liberdade como forma de exploração do braço presidiário para muitos trabalhos. Thomas Morus defendeu, em sua Utopia, a idéia que, mais tarde, seria francamente dominante e estranhava porque, em lugar de se aplicar a morte contra os ladrões, não se os obrigava a trabalhar nas minas.A segunda vem da filosofia de Jean Paul Sartre. Para o legislador e para o juiz, a imposição da pena de morte caracteriza modalidade extrema de suplício espiritual, assim como o descreveu Kierkegaard, chamando-a de angústia de Abrahão, que Sartre resumiu da seguinte forma: “Um anjo ordenou a Abrahão que sacrificasse o filho. Está tudo certo, se foi realmente um anjo que apareceu e disse: “Tu és Abrahão, tu sacrificarás teu filho!” Mas, cada qual se poderia perguntar antes de mais nada: “trata-se, realmente, de um anjo, e sou eu, realmente Abrahão? Quem afinal, prova isso?”20.Norberto Bobbio, a quem se devem dois notáveis textos condenando a pena de morte,21 é dos talentos privilegiados de nosso século. Humanista como Miguel Reale e de uma notável lucidez de espírito, Bobbio foi perguntado, em uma de suas inúmeras entrevistas, sobre as características de nosso tempo que despertam viva preocupação, especialmente quanto ao aumento cada vez maior e descontrolado da população; o progresso cada vez mais rápido e até agora inevitável da degradação do meio ambiente e o aumento cada vez mais rápido e insensato do poder destrutivo das armas. E, ao final, se, em meio a tantas previsíveis causas de infelicidade, ele via algum sinal positivo. Ele respondeu que sim, que via pelo menos um desses sinais: “a crescente importância atribuída, nos debates internacionais, entre homens de cultura e políticos, em seminários de estudo e em conferências governamentais, ao problema do reconhecimento dos direitos humanos”22.Essas idéias estão em harmonia com as concepções existenciais e humanitárias apresentadas por Miguel Reale em sua Comunicação de Coimbra e no curso de sua vida de advogado, professor, político, poeta e cidadão. Essa conclusão decorre, entre inúmeros registros, da obra máxima de sua criação espiritual e que foi convertida em teoria fundamental para o conhecimento e a aplicação do Direito. São suas essas palavras: “o direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato, é valor. (...) “o direito é uma integração normativa de fatos segundo valores”. Essa é a fórmula que Josef Kunz chamou de fórmula realeana. O Direito, repito, é uma integração normativa de fatos segundo valores” 23.Em outra iluminada passagem de sua Teoria, Miguel Reale demonstra que o Direito “não é um fato que plana na abstração, ou seja, solto no espaço e no tempo, porque também está imerso na vida humana, que é um complexo de sentimentos e estimativas. O direito é uma dimensão da vida humana. O direito acontece no seio da vida humana. O direito é algo que

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está no processo existencial do indivíduo e da coletividade” 24.Assim pensa, assim vive Miguel Reale. Ele é um protagonista e, ao mesmo tempo, o mais autorizado intérprete de prática tridimensional da existência do ser humano como realidade e valor. As três dimensões desse fenômeno - a vida, o humanismo e a interpretação - fazem com que determinados homens atravessem a fronteira demarcada para a sua passagem terrena e sejam definitivos como referência e modelo do pensamento e da ação.

TERMO A QUO DA CONTESTAÇÃO NA DESISTÊNCIA DE CO-RÉU NÃO CITADOFlávio U. M. Schimidt

Uma questão aparentemente simples que requer cuidado tanto do Juiz, na regularização do processo, quanto do advogado, na defesa de seu cliente, é o decurso de prazo e o termo a quo da contestação para os co-réus na desistência de um deles, ainda não citado.Se a ação é proposta contra vários réus (litisconsórcio passivo), nem sempre a citação de todos eles poderá ocorrer no mesmo dia ou pela mesma forma. Adotar-se, para cada qual deles, um termo inicial do prazo para contestar seria inconveniente. A solução de prazo comum impôs-se indicando-se, como termo a quo desse prazo, a “data de juntada aos autos do último aviso de recebimento ou mandado citatório cumprido” (CPC, art. 241, III).Por conseguinte, o prazo comum só se inicia após a citação do último litisconsorte.José Joaquim Calmon de Passos, sobre o assunto ressalta:

Embora o Código, inadvertidamente, só mencione mandado, o princípio vale para a citação por qualquer de suas formas. Se falta a juntada aos autos do aviso de recepção, não foi citado ainda o litisconsorte e não há prazo em curso; o mesmo quanto à carta precatória ou rogatória; idem quanto à dilação fixada no edital. Nem sempre os litisconsortes serão citados pela mesma forma; um pode ter sido por mandado, outro pelo Correio, outro por edital etc. O prazo, entretanto, só começará a correr e será comum depois de feita a última citação, fixado o termo inicial segundo as regras dos incisos I, III, IV e V do art. 241, e não, como pretende a má redação do inciso II, só se levando em conta a citação por mandado.1

No propósito do artigo, como a citação dos litisconsortes nem sempre se efetiva no mesmo dia e pelo mesmo modo, pode ocorrer que em relação a algum dos réus ainda não citado resolva o autor desistir da ação, liberando-o de estar presente em juízo. Isso só é possível no litisconsórcio facultativo, porque no necessário só com a presença de todos haverá legitimação (CPC, art. 47).Destarte, havendo a desistência de co-réu não citado, exige o codex adjetivo a homologação (art. 158, parágrafo único) e que do fato sejam os demais litisconsortes intimados, só correndo o prazo para a resposta após a intimação do despacho que deferir a desistência (art. 298, parágrafo único).A propósito podemos citar a ementa do julgamento do TRF da 1ª Região: CONTESTAÇÃO - Prazo: art. 241, III, do CPC. Em havendo vários réus, o prazo para resposta tem início da juntada do último mandado. Quando não encontrado um dos réus, o autor pede desistência da ação quanto àquele. Da decisão devem ser intimados os réus devidamente citados, sob pena de cerceamento de defesa. (TRF 1ª R - AI 97.01.00.002613-9 - DF - 4ª T - Relª Juíza Eliana Calmon - DJU 26.05.97).2

A mesma situação é de ser aplicada no caso do SUMÁRIO em que o Juiz, após distribuição da ação, determina a expedição do mandado citatório com a designação de audiência (CPC, art. 277). Nesse sentido:

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“PROCEDIMENTO SUMÁRIO - Audiência redesignada em face da desistência da ação em relação ao co-réu não citado. Prazo de resposta. Contagem a partir da intimação do despacho que deferiu a desistência. Aplicação dos arts. 298, parágrafo único, e 272, parágrafo único, do CPC. (1º TACSP - AI 657.120-2 - 12ª C - Rel. Juiz Paulo Eduardo Razuk - J. 09.05.96). (02733/244). 3A decisão do Juiz, nos casos, “trata-se de despacho, porque ainda não há litispendência quanto ao réu não citado (cf. art. 263, parte final, c/c art. 219, caput), e, quanto aos demais, o ato judicial não os atingiu”4A problematização ocorre, justamente, nessa comunicação (intimação) aos co-réus para o procedimento ordinário.Se todo patrono constituído se habilitasse nos autos, sem prejuízo da contestação, a intimação seria pelo DOE (CPC, art. 237), pois em regra geral “a intimação é ao advogado e não à parte, salvo disposição de lei em contrário (RSTJ 79/130)” 5Ocorre que, na maioria das vezes, o advogado constituído acompanha a juntada dos mandados citatórios sem anexar nos autos a procuração e, assim, não se tem notícias da representação processual dos co-réus já citados.Neste caso, como se procede?Sendo a intimação dirigida, em regra, ao advogado, não se tendo notícias dele, “a parte é intimada, na forma do art. 238, pelo correio, salvo disposição especial (neste sentido: STJ - 3ª Turma, REsp. 36.582-1-RS, Rel. Min. Cláudio Santos, j. 21.09.93, não conheceram, v. u., DJU 18.10.93, p. 21.877).”6 Podemos, aqui, citar de exemplo a disposição especial referida no art. 58, IV, da Lei 8.245, de 18.10.1991, que, ressalvados os casos previstos no parágrafo único do art. 1º, nas ações de despejo, consignação em pagamento de aluguel e acessórios da locação, revisionais de aluguel e renovatórias de locação, observar-se-á o seguinte:

desde que autorizado no contrato, a citação, intimação ou notificação far-se-á mediante correspondência com aviso de recebimento, ou, tratando-se de pessoa jurídica ou firma individual, também mediante telex ou fac-símile, ou, ainda, sendo necessário, pelas demais formas previstas no Código de Processo Civil.Nesse caso, deve ser respeitada a disposição especial, pois “as citações e as intimações serão nulas, quando feitas sem observância das prescrições legais.” (CPC, art. 247).Intimados pessoalmente, abre o prazo para contestarem ( CPC, art. 298, parágrafo único), entretanto surge a questão: qual é o termo a quo da contestação? O prazo começa a correr do mesmo dia para todos os co-réus ou pode ser diferente para cada interessado?O Código de Processo Civil não regulamentou essa situação específica.Num primeiro momento surge a dúvida de aplicar ou não o disposto no art. 241, III, do CPC, porém “o texto somente se refere à citação, em que o prazo para resposta começa a correr do mesmo dia para todos os réus; não se refere à intimação, em que o início de prazo pode ser diferente para cada interessado.” 7Assim, não se tratando de mandados citatórios, e sim intimações da desistência do co-réu intimado contestar a lide, é, respectivamente, da juntada de sua intimação nos autos (CPC, art. 241, I).Por outro lado, Calmon de Passos, descrevendo sobre o artigo 298 do CPC, diz que “o dispositivo precisa ser entendido em termos. Se o litisconsorte em relação ao qual se desistiu era o último a citar, o dispositivo tem razão de ser. Só a partir da intimação da desistência deferida se contará o prazo para defesa. Seria surpreender os demais litisconsortes aceitar-se que o prazo de defesa tivesse curso levando-se em consideração a última citação, que só se tornou última por força da desistência. Não nos parece, entretanto, sofra a regra do caput qualquer alteração se a desistência ocorreu quanto a um litisconsorte ainda não citado e outros existem para ser citados. Nesse caso, não é da intimação do despacho que deferir a desistência que se contará o prazo, mas se aguardará o cumprimento da última citação, quando o prazo começará a correr (...).”8Mesmo respeitando a posição do insigne autor, data vênia, não podemos compartilhar com essa última colocação, pois, mesmo havendo co-réus a serem citados, o efeito da desistência é o mesmo, porque não se trata de aditar o pedido (CPC, art. 294) em que estes receberiam junto com o mandado a cópia da inicial e o pedido da exclusão do co-réu. O pedido de desistência somente se

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dá, na maioria das vezes, após o insucesso da citação de um deles. Destarte, não estando os co-réus obrigados a ingressarem em juízo antes da intimação da desistência, não há como correr o prazo de defesa, senão após comunicação da homologação.Por tudo, a melhor orientação é anexar nos autos, sem prejuízo da contestação que tem o termo a quo a data da juntada do último mandado citatório, a procuração outorgada pelo co-réu, pois somente assim é que há garantia da nulidade (CPC, art. 236, § 1º), caso não seja o patrono intimado.O objetivo desse trabalho, apesar de sucinto, é alertar o profissional do direito para não incorrer em erro, pois a leitura despretensiosa dos dispositivos legais do Código de Processo Civil pode resultar em contestação extemporânea e, assim, a revelia.

O PRINCÍPIO ÉTICO DO BEM COMUM E A CONCEPÇÃO JURÍDICA DO INTERESSE PÚBLICOIves Gandra da Silva Martins Filho

1) Introdução –– PerspectivaO presente estudo sobre o Princípio do Bem Comum, que é um dos temas centrais da Ética Social, será feito sob a perspectiva filosófica aristotélico-tomista, aproveitando a tradição da filosofia grega e escolástico-medieval, que Wilhelm Leibniz denominou de “philosophia perenis” (“Discurso de Metafísica” –– 1686).Essa perspectiva se justifica tendo em vista que a filosofia moderna, a partir do nominalismo e racionalismo cartesiano, e a filosofia contemporânea, em suas vertentes liberal-individualista ou social-coletivista, acabaram conduzindo a uma aparente dicotomia entre o bem comum e o bem individual, conforme ressaltado por Johannes Messner:

A teoria social do individualismo partiu do indivíduo como ser acabado em si mesmo e em si mesmo exclusivamente baseado quanto ao seu valor; mas nunca chegou realmente a um conceito de comunidade enquanto realidade portadora de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo.Em contrapartida, a teoria social de todas as formas de coletivismo parte do ser da sociedade, tomando-o por valor primário e incondicionado; mas sem compreender jamais a realidade total da pessoa humana, com seus fins supra-sociais e o seu valor de ordem supra-social.

Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza das coisas e possui inúmeras conseqüências práticas para o convívio social.Comentando a encíclica Mater et Magistra, Alceu Amoroso Lima afirma sobre o bem comum:

A alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano. Há três estados naturais do homem, que representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e cada nacionalidade.

Ao se perquirir sobre o que seja o Bem Comum, cinco noções básicas devem ser aprofundadas, como instrumental indispensável para sua compreensão: são as noções de Finalidade, de Bondade, de Participação, de Comunidade e de Ordem. Da conjugação desses conceitos fundamentais é que se extrairá a noção de Bem Comum.Servir-nos-emos, para o desenvolvimento deste estudo, da seleção de textos de S. Tomás de Aquino

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sobre o “Bem Comum”, feita por CARLOS CARDONA, e sobre o “Bem”, feita por Jesus Garcia López.

2) Noção de FinalidadeA primeira noção básica para se compreender o bem comum é a de finalidade ou causa final. Aristóteles, quando estudava o tema da causalidade, como explicativa do ser das coisas (a ciência seria o conhecimento certo através das causas), reduziu todas as possíveis causas a 4 quatro espécies:Causa Material –– do que a coisa é feita (matéria, como princípio comum); Causa Formal –– qual a essência da coisa (o que a distingue das demais);Causa Eficiente – qual a origem ou motor que colocou a coisa em movimento;Causa Final – qual o fim ou objetivo da coisa.Destaca entre as quatro precisamente a última, a causa final, como a que melhor explica o ser das coisas: para que serve ou qual o fim para o qual existe. Para se compreender a noção de bem (bondade das coisas), a noção de finalidade representa um papel fundamental.

3) Noção de Bem S. Tomás de Aquino diz que “Bem é aquilo que a todos apetece”. Apetece porque possui uma perfeição capaz de atrair. Assim, o bem é o fim buscado pelo agente, porque o atrai.Aristóteles, quando solveu a antiga dicotomia existente entre as posturas radicais de Heráclito (o que existe é apenas o devir) e Parmênides (o que existe é apenas o ser estático), desenvolveu sua teoria hilemórfica (diferenciação entre ser em ato e ser em potência), que serve para explicar o bem como causa final que atua no ser: Perfeito é o ente que está em ato, isto é, que tem atualmente todas as perfeições que lhe são próprias. Se não tem alguma dessas perfeições, está em potência de adquiri-la.Nesse sentido, temos que a perfeição atua como fim para o qual tende o ente: o bem que busca possuir. Daí que “primeiro e principalmente se chama bem ao ser aperfeiçoador de outro a modo de fim” .Quanto mais perfeito e universal for o bem, a mais seres atrai. O Ser Perfeito, diz-se que é por essência. O que não é perfeito, mas tem perfeições, diz-se que é por participação: “O que é totalmente algo, não participa disso, senão que é isso por essência. Pelo contrário, o que não é totalmente algo, dizemos que participa” .

4) Noção de ParticipaçãoNecessário se faz, então, compreender o que seja participação, como 3ª noção básica para se delimitar o bem comum.Etimologicamente, participar significa tomar uma parte (do latim “partem capere”). No entanto, a melhor noção de participação vem da etimologia grega, que significa ter conjuntamente ou ter com outro (“metekó” - µµete??). Daí os dois sentidos básicos da palavra participação:Sentido Material (latino) –– dividir um todo material entre aqueles que dele participarão: o todo desaparecerá e cada sujeito participante terá uma parte do objeto participado, guardando uma relação apenas histórica com o antigo todo;Sentido Espiritual (grego) –– ter parcialmente o que outro possui integralmente: uma alegria que é plena no sujeito que obteve uma vitória é participada em menor intensidade naquele que recebe a comunicação da vitória e com ela se alegra, sem que a participação diminua a alegria do sujeito que obteve a vitória, antes a tem aumentada. Assim, o bem é difusivo por si só, porque atua como causa final que atrai a que outros participem de sua bondade.

5) Noção de Comunidade A participação implica uma comunidade entre os participantes em função do participado. Esta 4ª noção básica está nominal e umbilicalmente ligada à própria expressão bem comum.Diz S. TOMÁS DE AQUINO que “a comunidade é um certo todo”. Há uma certa unidade entre os participantes, como integrantes de um todo: os homens, por participarem da mesma natureza humana, formam uma comunidade. Comunidade é, pois, uma “comum unidade” ou “comum

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união”, uma comunhão entre aqueles que participam de uma mesma natureza e tendem a um mesmo fim.Assim, a noção de comum refere-se àquilo que pertence ou que se predica de vários: mesma natureza ou mesma espécie.

6) Noção de OrdemFinalmente, para se fechar o cerco dos elementos que propiciam a compreensão do que seja o bem comum, temos a noção de ordem a desempenhar um papel fundamental, como a noção inicial de finalidade.Para haver ordem, são necessárias três coisas:Distinção com conveniência –– que haja multiplicidade de indivíduos, com um elemento semelhante que os aglutina, mas com diferenças de talentos e perfeições colocadas à disposição do todo;Cooperação –– que aquilo que falta a um seja suprido pelo que possui o outro (os inferiores se submetem aos superiores e os ajudam; os superiores provêem aos inferiores; cada um desenvolve suas próprias potencialidades, atuando onde se encontra).Fim –– que exista um objetivo comum em torno do qual se aglutinem todos os membros da comunidade.Assim, uma comunidade não é um aglomerado de pessoas, mas um todo orgânico, com uma ordem entre as partes, onde deve imperar a harmonia e concórdia. “Todas as coisas que existem aparecem ordenadas entre si, de modo que umas servem a outras. Mas as coisas que são diversas não conviriam numa ordem comum se não houvessem sido ordenadas por algo uno”.Há, portanto, duas espécies de ordem:Ordem das partes entre si (intrínseca) –– subordinação de umas a outras, conforme uma hierarquia;Ordem do todo ao fim (extrínseca) –– busca de todos pelo bem comum.A ordem intrínseca se subordina à extrínseca, como as partes se subordinam ao todo: só há uma ordem interna (das partes entre si), se as partes convêm num fim ordenador comum (externo). A própria ordem do Universo somente se explica em face dessa dupla ordenação. Deus, como último fim da Criação e o bem mais comum de todos os seres, é o princípio ordenador do Universo: se não houvesse essa ordenação de todos a esse Fim Último e Bem Supremo, não formaríamos uma comunidade, nem haveria relação ordenada entre os homens. Podemos dizer, portanto, que o objetivo que une os homens em sociedade e determina o modo como se organizarão é o bem comum que pretendem alcançar, que se distingue do bem particular buscado por cada indivíduo isoladamente, e que se divide, basicamente, em duas espécies:transcendente (externo e eterno) –– finalidade última buscada por qualquer sociedade (glória de Deus e felicidade Bem Comum dos homens)imanente (interno e temporal) –– ordenação das partes da sociedade visando ao fim último (condições e meios para que os membros da sociedade possam alcançar seus fins particulares).Há, pois, uma hierarquia entre os bens que podem ser buscados pelos indivíduos (espirituais e materiais, morais e intelectuais), de acordo com a ordem dos fins existenciais próprios da natureza humana (fim último sobrenatural colocado acima dos fins meramente naturais).Assim, verifica-se que nenhum indivíduo possa alcançar seu fim particular senão como parte ou co-partícipe de um todo no qual está inserido. Daí que apenas colaborando na consecução do fim comum e ajudando aos demais membros da comunidade a alcançar seu bem particular, é que se atinge o próprio bem, uma vez que se trata de um bem comum.

7) Conceito de Bem Comum Municiados com as noções elencadas, podemos conjugá-las para se chegar, agora, a compreender o que seja o bem comum.Bem Comum nada mais é do que o próprio bem particular de cada indivíduo, enquanto este é parte de um todo ou de uma comunidade: “O bem comum é o fim das pessoas singulares que existem na comunidade, como o fim do todo é o fim de qualquer de suas partes”. Ou seja, o bem da comunidade é o bem do próprio indivíduo que a compõe. O indivíduo deseja o bem da comunidade,

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na medida em que ele representa o seu próprio bem. Assim, o bem dos demais não é alheio ao bem próprio.O bem particular buscado por cada um dos membros da comunidade é, em última análise, a própria felicidade, que só se alcança com o perfeito aquietamento do apetite, ou seja, quando nada resta a desejar. O objeto formal de nossa vontade é o bem, sem limitações, e não este ou aquele bem. Daí que apenas um bem que seja universal é capaz de saciá-la plenamente. Um bem é tanto mais bem quanto é bem para mais pessoas.

8) Noção de InteresseNoção afim à de bem comum é a de interesse público. Ao princípio ético do bem comum corresponde o princípio jurídico do interesse público.Interesse é a relação existente entre uma pessoa e um bem, na qual este se mostra capaz de satisfazer uma necessidade daquela. A etimologia latina da palavra é a chave para apreender o seu significado: “inter” (entre) + “esse” (ser) = “interesse” (ser entre). Ou seja, o interesse é a ponte entre o sujeito e o bem, que os relaciona entre si, onde o sujeito busca aquilo que reputa ser um bem capaz de satisfazê-lo.Há, portanto, uma distinção a ser feita, para uma perfeita compreensão do que seja “interesse”. É a distinção entre o bem simpliciter e o bem secundum quid.O bem simpliciter, ou seja, considerado de forma absoluta, é um dos transcendentais elencados por ARISTÓTELES como facetas do ser: o “ser” enquanto passível de ser conhecido por uma inteligência é “verdadeiro”, enquanto passível de ser apreciado pelo sentido estético é “belo” e enquanto passível de ser querido por uma vontade é “bom”. Nesse sentido, todo ente, pelo simples fato de existir, é “bom” simpliciter, isto é, tem uma bondade intrínseca, que o torna capaz de ser tido como um bem por algum sujeito. Já o bem secundum quid, ou seja, segundo determinado aspecto, é aquele que tem adequação à perfeição exigida por determinada natureza. Assim, os bens mais próprios à natureza racional do homem são os de ordem espiritual, enquanto a natureza animal exige exclusivamente bens de ordem material.Ora, o interesse, como manifestação volitiva de um sujeito em relação a um bem, apanha-o em sua faceta transcendental de bem simpliciter. Trata-se de busca do interesse privado que pode, ou não, coincidir com a busca do bem secundum quid, hipótese em que teremos o encontro do bem particular, ou seja, aquele que, efetivamente, corresponde ao bem próprio do sujeito que o busca, adequado à sua natureza e capaz de satisfazê-lo e aperfeiçoá-lo.

9) Noção de Interesse PúblicoSeguindo nessa esteira, temos que, quando o sujeito que busca um bem é uma comunidade, está-se diante do que se denomina de interesse público, que aparece como a relação entre a sociedade e o bem comum que ela almeja, perseguido por aqueles que, na comunidade, estão investidos de autoridade.Cabe ao governante ou administrador público, numa sociedade politicamente organizada, promover o bem comum, externando, através de suas ações e comandos, o interesse público. Este também poderá não se adequar ao bem comum da sociedade, quando houver descompasso entre o Direito Positivo e o Direito Natural, ou seja, a lei positiva, emanada da autoridade, vai de encontro aos direitos humanos fundamentais, inalienáveis e que não cabe ao Estado outorgar, mas apenas reconhecer, como pré-existentes, como inerentes à dignidade da pessoa humana.A moderna teoria dos interesses veio a ampliar o rol dos interesses existentes na sociedade, fixando uma gradação entre o interesse público e o privado, que inclui as noções de interesse difuso, interesse coletivo e interesse individual homogêneo: Interesse público –– o que diz respeito a toda a coletividade (Ex: segurança pública);Interesse difuso –– que afeta a parcela indeterminada da sociedade (Ex: meio ambiente, direitos do consumidor);Interesse coletivo –– que afeta a um grupo definido da sociedade (Ex: condições de trabalho numa empresa);

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Interesse individual homogêneo –– que diz respeito a pessoas em situações semelhantes (Ex: empregados acidentados por desobservância de normas de segurança no trabalho por uma empresa);Interesse privado –– que diz respeito exclusivamente ao indivíduo (Ex: filho natural que pretende o reconhecimento de paternidade através do teste de DNA).A diferenciação entre tais interesses e o possível conflito entre eles podem ser melhor aquilatados no caso da defesa da moralidade administrativa relativa à forma de contratação para os entes públicos. O concurso público como forma seletiva democrática para o recrutamento de pessoal para o serviço público, premiando o mérito pessoal, é encontrado desde a China da dinastia Han (séc. II a.C.). Impede os apadrinhamentos e promove a escolha dos mais aptos para o desempenho da atividade pública, possibilitando uma melhor prestação do serviço público.Pois bem, a defesa da moralidade administrativa e do interesse difuso dos potenciais postulantes de um cargo ou emprego público, quando verificada a contratação irregular de pessoal por ente público ou empresa estatal sem prévia aprovação em concurso público, não pode dar azo à ação judicial do Ministério Público, postulando, em nome desses interesses difusos, a nulidade das contratações, com imediato desligamento dos servidores contratados ilegalmente, se esse afastamento provocar a paralisação na prestação dos serviços públicos prestados pelo ente ou empresa em questão. O interesse público, superior ao interesse difuso, de menor abrangência, prevalece sobre o primeiro, exigindo, como solução, que se mantenham os servidores irregularmente contratados até que se ultime a realização do concurso, de modo que não haja solução de continuidade na prestação dos serviços públicos e se possa dar oportunidade àqueles que tenham, efetivamente, condições de ser efetivados no cargo, que prestem o concurso e possam ser aprovados. A hipótese é paradigmática para se verificar como o bem comum deve ser levado em conta, quando diferentes interesses, de abrangências distintas, estão em conflito.

10) Relação entre Bem Comum e Interesse PúblicoNum Estado Democrático de Direito, cabe ao Poder Judiciário dirimir os conflitos de interesses existentes na sociedade. O Judiciário, para apreciar uma ação movida por qualquer cidadão, exige, entre outras condições, que ele demonstre ter interesse pelo bem que pretende submeter ao seu domínio, em face da resistência de outro membro da sociedade.Ora, a solução do conflito de interesses pelo Estado-Juiz dar-se-á pelo reconhecimento de que o bem disputado cabe, por direito, a uma das partes litigantes. Daí que a correspondência entre bem e interesse se dá conforme a proteção jurídica efetiva ao interesse da parte (interesse privado) ou da comunidade como um todo (interesse público) e se faz pelo reconhecimento de que, no caso concreto, correspondem ao direito individual (bem particular) ou social (bem comum). Podemos, então, estabelecer duas relações:– interesse privado relacionado ao bem particular;– interesse público relacionado ao bem comum.Em ambos os casos, há duas notas que devem ser destacadas:– Tanto o bem particular quanto o bem comum são buscados por pessoas concretas (cidadão ou governante);– Tanto o interesse privado quanto o público podem estar desviados do verdadeiro bem particular ou comum que corresponderia ao aperfeiçoamento pessoal ou social.Daí a possibilidade de existir conflito entre o interesse privado e o bem comum, quando o membro da comunidade deixa de captar qual é o ser verdadeiro bem particular e busca outro que nem o satisfará, nem corresponde à sua natureza própria. E o conflito entre o interesse público e o bem comum, quando a lei civil, que o governante ou magistrado devem aplicar, desrespeita os preceitos básicos da Lei Natural. Portanto, na maior parte das vezes, quando se pretende existente um conflito entre o bem particular e o bem comum, o que existe é uma oposição entre o interesse privado (desviado do bem particular) e o bem comum.

11) Primazia do Bem Comum sobre o Bem Particular Compreendido o que seja bem comum, bem particular, interesse privado e interesse público,

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passamos a tirar as conseqüências teóricas e práticas dessas noções. E a primeira delas diz respeito à relação entre bem comum e bem particular.Se, por um lado, o bem comum é a potencialização do bem particular, por outro, tem primazia sobre o bem particular, pois o bem de muitos é melhor do que o bem de um só. Assim, se cada componente da comunidade é bom, o conjunto desses componentes é ótimo, uma vez que acresce ao bem particular de cada um a perfeição do conjunto. Isto porque, no bem do todo, está incluído o bem de cada uma das partes. Daí que se deva preferir o bem comum ao bem próprio. E daí também que, quando amamos o bem em toda a sua integralidade, é quando melhor nos amamos a nós mesmos.Na verdade, ao se buscar o bem comum, busca-se necessária e conseqüentemente o próprio bem, pelo benefício que a parte recebe do todo. Daí que “todas as coisas singulares amam mais o bem de sua espécie que seu bem singular”.O bem comum está, portanto, para permitir aos indivíduos a consecução de seus bens particulares, mas é superior a estes: o bem particular de um indivíduo não pode ser buscado em detrimento do bem comum da sociedade.Nesse sentido, a discussão que se trava sobre as hipóteses de intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho é interessante. No Direito Comparado, verifica-se que a maior parte dos países, para solução dos conflitos coletivos de trabalho, admitem a arbitragem voluntária como forma heterônoma de composição, a par da negociação coletiva autônoma das partes. No entanto, em face de greves em serviços essenciais, países como a Espanha, Itália, Chile, Colômbia e Venezuela admitem a arbitragem obrigatória como fórmula última para superação do impasse, quando o acirramento do conflito não permite uma solução de autocomposição. Já o Brasil, Austrália, México, Peru e Venezuela são os países que contemplam um poder normativo ao Judiciário, em matéria de conflitos coletivos de trabalho, para solucionarem os dissídios, estabelecendo normas e condições de trabalho não previstas em lei.Quando, no Brasil, se discute, na Reforma Judiciária, a limitação do poder normativo da Justiça do Trabalho, ponto que se tornou pacífico é o de que esse poder deve ser mantido para solução das greves em serviços essenciais quando afetado o interesse público. A própria lei de greve brasileira exige a manutenção de um percentual mínimo de empregados trabalhando, para o atendimento às necessidades inadiáveis da população, quando se tratar de greve em serviço essencial. Ou seja, os empregados têm o direito de greve, mas não é um direito absoluto, uma vez que o interesse coletivo não pode conflitar com o interesse público, que é mais abrangente: a sociedade não pode ficar como refém de trabalhadores grevistas, para obterem melhores condições de trabalho.Outro exemplo que serve para mostrar como a busca do bem comum, ainda que não tenha efeitos imediatos palpáveis, é de fundamental importância para a sociedade, diz respeito ao aperfeiçoamento do sistema penitenciário. A superlotação de detentos nas prisões, sem uma infra-estrutura mínima, como se verifica no Brasil, leva à corrupção do preso e não à sua reeducação. No entanto, a atitude das autoridades públicas, no sentido de não dar relevância a tal problema, por não haver retorno visível e imediato dos investimentos públicos, acaba gerando um aumento da violência na sociedade, na medida em que o pequeno infrator que tenha passado pelo sistema carcerário brasileiro acaba saindo pior do que quando nele ingressou, pelo contato com os demais presos em péssimas condições. Daí a reforma da política criminal ter resultado na lei de penas alternativas (Lei 9.714/98): em vez da reclusão, os serviços à comunidade.12) Primazia do Bem Espiritual sobre o Bem MaterialUma segunda conseqüência prática é a de que são mais comuns os bens espirituais do que os materiais, uma vez que a comunhão naqueles não tem limite quantitativo, enquanto a participação nestes tem esse limite (conforme já visto ao examinar a noção de participação).Assim, o bem honesto –– aquele que é em si perfeito e apetecível, captado como tal pela razão –– está acima do bem deleitável –– aquele que aquieta o apetite, uma vez que apraz aos sentidos –– uma vez que os sentidos devem subordinar-se à parte mais nobre do ser humano, que é a razão.Nesse sentido, não é a abundância de bens materiais, que só têm um valor instrumental para a felicidade do homem, que qualifica como boa a política adotada numa sociedade. Isto porque o bem

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comum não se reduz a um conjunto de bens materiais de uso público. Daí que o fim da sociedade política deva ser propiciar a que o homem possa alcançar a sua bondade existencial e fazer o bem, agindo virtuosamente: crescimento interior mais do que exterior. Ser melhores homens e melhores cidadãos contribui mais para o bem da sociedade do que qualquer incremento no bem estar material, pois a felicidade, no final das contas, não está em ter, mas em ser. Exemplo que se destaca, na aplicação desse princípio, demonstrando como a promoção do bem particular pela autoridade pública, quando de natureza superior, contribui substancialmente para a consecução do próprio bem comum, é o da proteção legal que se dá à gestante. A maternidade, como valor fundamental para a existência e sobrevivência de qualquer sociedade humana não pode estar subordinada a valores menos relevantes, ligados à lucratividade ou produtividade. Assim, posturas discriminatórias em relação à mulher, afastando-a do mercado do trabalho quando mãe de família, em face dos encargos sociais que a licença-maternidade supõe, são altamente nocivas para o bem comum da sociedade, que depende, para sua manutenção e crescimento, de novos integrantes, que sejam, ao mesmo tempo, sadios e equilibrados.Assim, no Brasil, a promulgação da Emenda Constitucional n. 20/98, que fixou em R$1.200,00 o teto de todo e qualquer benefício previdenciário, desembocou na edição da Portaria n. 4.883/98 do Ministério da Previdência Social, que passou a atribuir ao empregador a complementação do salário-maternidade que ultrapassasse esse teto. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADIn n. 1.946-5 (Rel. Min. Sydney Sanches), considerou inconstitucional a portaria, por introduzir elemento de discriminação contra a mulher gestante no mercado de trabalho. A própria Convenção n. 103 da OIT já previa a vedação à imposição do salário-maternidade ao empregador, como elemento de proteção à mulher.Lembre-se também que a experiência brasileira e internacional da adoção do contrato a tempo parcial como forma de propiciar à mulher uma realização profissional externa e o tempo necessário para a atenção dos filhos, bem maior que possui, tem sido salutar e já vai dando os seus frutos, de tal forma a impedir que as situações críticas de Itália, Alemanha e França, com crescimento demográfico negativo, não obstante o estímulo estatal para a maternidade (na esperança de se reverter esse quadro), possam se repetir em outros países.

13) Limites ao Princípio do Bem ComumPelo princípio da preferência, o bem comum tem primazia sobre o bem particular. No entanto, essa primazia tem seus limites, impostos pelo princípio da proporcionalidade, segundo dupla vertente:Limite qualitativo –– a primazia do bem comum sobre o particular só vale dentro da mesma categoria de bens (não se pode exigir o sacrifício de um bem espiritual particular de ordem superior, para atender um bem material comum de ordem inferior).Limite quantitativo –– a prevalência do todo sobre a parte depende da quantidade de indivíduos afetados pelo sacrifício do bem próprio ao comum (não se pode sacrificar uma parte relativamente grande da comunidade em nome da preservação da própria sociedade politicamente organizada).Assim, na relação entre o bem comum e o bem particular, há uma proporção conveniente, no campo tributário, entre o volume de impostos exigidos para a manutenção do Estado e a capacidade contributiva de cada membro da sociedade. O mesmo se diga, no campo trabalhista, entre o volume de produção e o nível salarial, quando se trata de estabelecer a distribuição do produto social por meio do ajustamento entre preços e salários.Nesse sentido, ainda que buscasse o bem comum, seria injusta uma lei que distribuísse desigualmente suas cargas entre os componentes da sociedade.

14) Contribuição Particular para o Bem ComumOutra conseqüência prática da compreensão do que seja o bem comum é a da participação ativa dos membros da comunidade na sua consecução.A bondade do indivíduo é tanto maior quanto, além de se buscar e alcançar a própria perfeição, for causa da perfeição de outros: ama não somente o bem, mas também comunicar esse bem aos demais.Talvez o que explique uma visão conflituosa entre bem comum e bem particular seja a postura de

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considerar o bem dos demais como alheio ao próprio: não se guarda para com o próximo o mesmo amor que se tem a si mesmo. Assim, uma vez perdida a comunhão que se estabelece por se participar de um mesmo bem, chega-se à desunião, em que o bem do próximo passa a ser considerado como mal próprio. Numa sociedade em que imperasse tal postura, não haveria comunidade, mas mera agregação material de seres com apetites contrapostos.É fundamental, portanto, que cada membro da sociedade veja no bem comum a sua própria realização e para isso colabore. Assim, todos os homens devem contribuir para o bem comum da sociedade, o que pode ser concretizado através das seguintes condutas:Adquirir e praticar as virtudes morais (bom convívio social);Exercer de forma competente a própria profissão ou ofício (serviço ao próximo);Participar direta ou indiretamente na vida pública (cumprimento dos deveres cívicos);Fomentar a união na vida social (respeito à liberdade).A participação ativa na vida social, opinando e colaborando na consecução do bem comum, supõe o pluralismo de soluções para questões marcadas pela contingência: daí as divergências naturais entre os membros da sociedade, que devem ser superadas pelo estudo dos problemas e pela crítica positiva, que não busca destruir a opinião contrária, mas ofertar alternativas melhores para resolver os problemas sociais (crítica construtiva). Nessa perspectiva, a “Cidade Temporal” poderá ser um reflexo da “Cidade Eterna”, tal como vislumbrada por S. Tomás de Aquino:

A vida eterna, além da visão de Deus, em sumo louvor e perfeita segurança, consiste na gozosa sociedade de todos os bem-aventurados; sociedade que será deleitável em grau máximo, porque cada um amará ao outro como a si mesmo, e, por conseguinte, se alegrará com o bem do outro como de seu próprio bem, o que faz que aumente tanto a alegria e o gozo de um, quanto é o gozo de todos.

A busca concreta do bem comum pelo governante ou administrador público, nos casos em que se manifestasse aparente conflito com o seu bem particular, não teria, na verdade, esse confronto, uma vez que os efeitos da postura favorável à prevalência do bem comum sobre o interesse particular são: – mediatos – a defesa do bem comum espraiar-se-á necessariamente ao bem particular do administrador que a promove, uma vez que melhora as condições gerais da sociedade ou da comunidade na qual se insere;– imediatos – o contraste entre o reconhecimento teórico, pelo administrador, da necessidade da promoção do bem comum e do interesse público, e a prática de atender primariamente ao seu interesse privado (desvirtuado do seu verdadeiro bem particular), gera um conflito interior no administrador, capaz de desnortear a sua capacidade de promover efetivamente o bem comum (hipocrisia ou duplicidade entre o discurso e a prática), que só se resolve com a efetiva opção pelo interesse público, capaz de gerar no administrador a consciência do dever cumprido, essencial para o bom desempenho da missão que lhe é afeta (coerência entre o discurso e a prática).

15) Conclusão –– ResumoPodemos, em síntese, dizer que:a) O princípio do bem comum é peça chave para a compreensão das relações sociais, tanto dos indivíduos entre si, como destes com a sociedade, sendo que sua exata captação é elemento que propicia, quando respeitada a otimização do convívio social.b) Para se formar um conceito de bem comum, necessário se faz conjugar cinco noções básicas: finalidade, bondade, participação, comunidade e ordem.c) Finalidade é o objetivo para o qual tende o ser e que o move por atração (causa final, que melhor explica o ser).d) Bem é aquilo que apetece a todos, atraindo como um fim a ser buscado.e) Participação é ter uma parte de um todo (concepção material), ou ter parcialmente o que outro tem totalmente (concepção espiritual). f) Comunidade é a comunhão existente entre os que participam de um mesmo bem e

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possuem uma finalidade comum.g) Ordem é a hierarquia entre seres distintos (subordinação de uns em relação a outros), que têm algo em comum (participação de uma mesma natureza ou fim). h) Bem Comum é o bem singular, considerado como parte de um todo.i) Interesse é a relação entre um sujeito e um bem capaz de satisfazer uma necessidade sua.j) Interesse público é a relação entre a sociedade e o bem comum por ela perseguido, através daqueles que, na comunidade, têm autoridade (governantes, administradores públicos, magistrados, etc).k) Pode haver conflito entre o interesse privado e o bem comum, quando o bem buscado pelo cidadão ou administrador público não corresponde àquele próprio para o seu aperfeiçoamento, de acordo com sua natureza (bem particular).l) Cabe ao Estado-Juiz, ao dirimir os conflitos de interesses na sociedade, estabelecer a quem corresponde o bem em disputa, de acordo com o ordenamento jurídico vigente na sociedade.m) De acordo com a ordem existente entre os bens, o bem comum tem primazia sobre o bem particular, como também o bem de natureza espiritual tem primazia sobre o bem de natureza material.n) Essa primazia tem seu limite no princípio da proporcionalidade, que não admite o sacrifício de um bem de natureza espiritual a um bem de natureza material (limite qualitativo), nem de parcela substancial da comunidade em benefício do todo (limite quantitativo).o) Cabe ao indivíduo cooperar para a realização do bem comum, vendo na sua consecução o bem próprio.p) Também o administrador pode perceber que a busca do bem particular dos outros, em determinadas situações, representa uma forma indireta de se obter a consecução do bem comum.q) E, finalmente, ainda que os efeitos das ações que visem à consecução do bem comum possam não ter efeitos imediatos visíveis, a sua não implementação acarreta, mediatamente, a deterioração da sociedade em aspectos fundamentais de sua existência. Ainda que tais conclusões sejam de caráter muito geral, não são despidas de interesse, na medida em que o princípio do bem comum, como conceito gêmeo ao de interesse público, é esgrimido para fundamentar toda espécie de exigências aos membros da sociedade, sem que se saiba, ao certo, o fundamento de sua obrigatoriedade e os limites e condições de sua aplicação. Tais substratos conceituais é que procuramos trazer para reflexão, ao desenvolver o presente estudo. Esperamos que sirvam de subsídio a uma melhor compreensão do princípio do bem comum.

VONTADE PENAL DA PESSOA JURÍDICAUm problema prático de imputação de responsabilidade criminalPaulo César Busato

A humanidade passa por um ponto de evidente ebulição nas ciências em geral, do qual não pode escapar o Direito Penal. A revolução científica que se vê contempla vertentes distintas de tudo que o homem experimentou até hoje. Vive-se, afinal, em um mundo em que o processo de mudança se opera independentemente dos desejos das pessoas individuais. O pouco que se pode oferecer é uma contribuição para fixar o modo desejável ou pelo menos aceitável pelo qual estas mudanças devem

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ocorrer.Assim é que cumpre destacar um problema do qual a doutrina se tem acercado com natural receio, porém com uma indisfarçável constância no âmbito penal, qual seja, o da “responsabilidade penal de pessoas jurídicas”. Desde logo, cumpre deixar claro que será apontado neste espaço apenas um pequeno ponto da enorme problemática que a expressão atrás referida suscita. Ainda mais, o comentário tem por finalidade situar um problema que todavia não está totalmente resolvido, tampouco apresenta características de breve solução. O problema a ser tratado consiste na existência de ações típicas onde se expressa claramente uma vontade criminosa que não pode ser atribuída a nenhuma pessoa individual e que, à vista do princípio societas delinquere non potest, deixamos de atribuir às pessoas jurídicas.Em primeiro plano, é importante fixar que a discussão sobre a responsabilidade penal de pessoas jurídicas é um tema moderno, que surge como conseqüência nítida do atual desenvolvimento social, político e cultural. A economia globalizada, a criação de uma sociedade de riscos, a velocidade das informações por via cibernética, as intervenções dos aparatos de poder oficiais e à margem do Estado e a consciência da necessidade de um desenvolvimento sustentável são assuntos que não ocupavam o cotidiano do legislador ou do cientista penal autor das primeiras construções dogmáticas. Em razão disso, é evidente que essa discussão somente tem lugar em termos modernos e que há que se ter em conta que as dificuldades dogmáticas para essa discussão são mais que nada fruto da própria história.De outro lado, a história do Direito Penal pode ser identificada com a história de sua progressiva contenção, que evoluciona desde um bárbaro período de vingança privada, passando para a intervenção do Estado, depois limitando mais e mais esta intervenção, não só quanto ao modo, mas quanto aos instrumentos com que opera, até que hoje se fala sobre temas como “a falência da pena de prisão”, trabalhada brilhantemente por Cezar Roberto Bitencourt em obra do mesmo nome, ou sobre as propostas abolicionistas de Louk Hulsman4.É claro que esta história não segue uma linha contínua, sempre progressiva, sendo mais correto fixá-la como um movimento pendular, como costuma referir Luiz Eduardo Trigo Roncaglio5. Como é irregular a caminhada, não se pode olvidar alguns retornos a propostas de um Direito Penal menos liberais que outras construções precedentes como a Nova Defesa Social de Marc Ancel, que admitia a intervenção do Estado onde sequer havia delito6 ou até mesmo contundentemente antidemocratas como o Direito Penal de autor praticado durante o regime nazista na Alemanha. Caminha-se induvidosamente adiante em busca de um ideal de intervenção mínima, porém com constantes e ameaçadores retornos como em uma escalada em espiral, sempre aproveitando, a cada retorno, algo de bom que as construções anteriores trouxeram. Um destes refluxos é o que estamos vivendo hoje, quando se faz presente o fenômeno nominado por Silva Sánchez de Expansão do direito penal.7 Aponta o autor claramente que a existência de uma sociedade de riscos (Risikogesellschaft), o avanço tecnológico, a criminalidade organizada, a crise do modelo de bem-estar social geram uma sensação de insegurança social, a qual, potencializada pelos meios de comunicação, faz com que grande parte da população se identifique com a figura da vítima, levando-a a clamar por mais e mais Direito Penal, com o que lhe responde favoravelmente o legislador por interesses eleitorais e de outras ordens. Esses fatores, aliados à mudança de orientação da política criminal social-democrata na Europa também apontada por Silva Sánchez8, a qual acaba por refletir-se em nossa doutrina sulamericana por imposição do fenômeno da globalização, impulsionam o Direito Penal no sentido de uma ampliação de sua intervenção tanto quantitativamente (incremento das penas) quanto qualitativamente (abrangência dos tipos). Esta situação, por si só, demandaria um intenso estudo.Para Silva Sánchez, a criação de “nuevos «bienes jurídico-penales», ampliación de los espacios de riesgos jurídico-penalmente relevantes, flexibilización de las reglas de imputación y relativización de los principios político-criminales de garantía no serían sino aspectos de esta tendencia general a la que cabe referirse con el término «expansión».”9Uma das inúmeras conseqüências dessa expansão é que se passa a trabalhar, tanto no campo

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legislativo quanto no campo científico, com categorias penais novas como a de interesses difusos e coletivos, vitimização difusa, para cujo manejo, nas mais das vezes, as ferramentas dogmáticas fabricadas pelo iluminismo quedam ineficazes. Desde logo surgem as indagações: o direito penal de um Estado social e democrático de Direito deve ou não se ocupar destes temas? Deve-se inserir o direito penal nesses novos campos onde há reclame social de intervenção ou manter um direito penal nuclear básico? Segundo parece, há um caminho ideal, para o qual certamente voltará a doutrina penal - para usar uma expressão de Sandro Misael Montes Huapaya10 - «quando tudo isso explodir», que é o de um direito penal mínimo e garantista. Certamente não vai longe uma demanda de volta a uma mínima intervenção. É claro que o instrumental dogmático iluminista, pelo menos em sua interpretação inicial, é inadequado, porém não se pode simplesmente abandoná-lo, visto que persiste em seu âmago um núcleo de garantias do qual não se pode prescindir.Nesse sentido, assinalam Muñoz Conde e García Arán:

“Las ideas que anidan en el corazón de los hombres de conseguir una paz social justa, un sistema equitativo que ampare sus derechos fundamentales y una seguridad personal que evite los despotismos y arbitrariedades, han ido formando un patrimonio común, una plataforma sobre la que debe descansar también el ejercicio del poder punitivo del Estado.”11

De outro lado, para além do que “deve ser”, cumpre pensar no que existe, no que se está vivendo. Mais ainda, se o propósito é garantir o direito penal como instrumento de ultima ratio, não se pode voltar as costas à realidade e deixar que o rio simplesmente siga seu curso. Há um dever de buscar intervir nesses novos campos procurando preservar as garantias fundamentais do cidadão. O que fazer então?Aparentemente, há três caminhos para os quais a doutrina tem apontado como fórmulas para enfrentar o problema: o que é denominado por Vives Antón12 como funcionalismo estratégico que, em geral, implica na admissão da intervenção penal nestes novos postulados, amparada pelas construções de Günther Jakobs, as quais justificam a intervenção tão-só pela desestabilização do sistema gerada pela desobediência à norma13; a criação de um direito sancionador intermediário entre o penal e o administrativo que se ocuparia da intervenção nestes novos campos como a manipulação genética, o meio ambiente etc., deixando o Direito Penal em seu campo de atuação tradicional como quer Winfried Hassemer14; e finalmente a manutenção do Direito Penal garantista tradicional fazendo uma reinterpretação de suas categorias de modo a adequá-las à atual realidade, sem perda de garantias fundamentais como quer, entre outros, Claus Roxin.15A terceira fórmula é preferível, por razões que poderiam ser resumidas em alguns pontos. O primeiro deles diz com a não aceitação de um sistema penal que possa nutrir-se a si mesmo, ou seja, a não aceitação de que se possa impor uma pena simplesmente com a função de manter vigindo o sistema. Não se pode conceber um Estado social democrático de direito que prescinda das considerações relativas ao indivíduo como fim último da construção penal. Não é demais lembrar as palavras do Prof. René Dotti, ao expor a motivação do emprego da expressão «concurso de pessoas» em lugar de «concurso de agentes» por ocasião da reforma do Código penal brasileiro de 1984, de que «o homem é o início e o fim da aventura do direito».O segundo diz com as propostas de criação de um «novo direito sancionador», situado entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Parece que esta construção se aproxima muito do abolicionismo e também guarda idênticos riscos. Não podemos esquecer que, ao admitir-se a proposta de que o Direito Penal e o Direito Administrativo não atuem em determinado ponto, isso não significa necessariamente que não haverá nenhuma atuação. Assim também ocorre quando se pensa em simplesmente abolir o direito penal. Não há, nestes casos, nenhuma garantia de que a forma de controle social que venha substituir esses regimes já conhecidos mantenha o respeito às garantias mínimas do cidadão. Aliás, basta pensar um pouco na sociedade globalizada sob regras capitalistas, para que se tenha claro que a possibilidade maior é de que ocorra justamente o contrário. Corre-se o risco da criação de um instrumento tão devastador como o Direito Penal, pela contundência dos seus mecanismos de

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intervenção, e tão intenso, rápido e pouco garantista quanto o Direito Administrativo. Assim, no estreito espaço da realidade moderna parece restar somente revisar, na medida do possível, as categorias penais.Pois bem, um problema que já bate à porta pela via da previsão legislativa, quer constitucional, quer penal, não só no Brasil mas em vários países, é a responsabilidade penal de pessoa jurídica. Apenas para citar dois exemplos, verifica-se que o Código Penal Espanhol, em seu art. 129, possibilita a aplicação de medidas contra a pessoa jurídica e a Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu art. 226, § 3o, prevê expressamente a responsabilidade penal de pessoas jurídicas derivadas de condutas ou atividades lesivas ao meio ambiente, matéria que quedou assente na Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.Entretanto, ao menos no Brasil, não se impôs, em definitivo, nenhum pena a pessoas jurídicas. Este fato deriva da falta de suporte teórico em razão do evidente conflito com o princípio societas delinquere non potest. Ocorre que a dogmática jurídica clássica foi construída sob o pressuposto de que o autor de um crime somente poderia ser pessoa humana capaz de ação.Devem-se rechaçar, portanto, desde logo, os intentos daqueles que pretendem enxergar no emprego constitucional brasileiro da expressão «condutas ou atividades» 16 a possibilidade de excluir a ação como categoria necessária à imposição de pena.Isso em razão de duas funções desempenhadas pela ação na teoria do delito: a chamada função de coordenação, pois a ação compõe um substantivo ao qual se acrescentam os demais adjetivos identificadores do delito, a saber, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade e a função negativa, definida por Vives Antón nos seguintes termos:

“Si el delito es, en primer término, acción, de ello se sigue una consecuencia inmediata: todo lo que no sea acción no será, por consiguiente, delito. De ahí se deriva que el concepto de acción ha de desempeñar en la práctica, una función negativa, permitiendo dejar de lado, por así decirlo, de entrada, aquellos acontecimientos que, por no ser acciones, no interesan al derecho penal,…” 17

Logo, é impossível pretender enxergar esta «atividade» como geradora de responsabilidade penal simplesmente por inexistir previsão legal de atividade típica, mas tão-somente de ação (conduta) típica.Bem, se assim é, vale notar que a previsão normativa que não atinge a ninguém produz justamente o aspecto nocivo meramente simbólico do Direito Penal a respeito do qual adverte Hassemer ao dizer que:“a la larga el Derecho Penal quede reducido a una función simbólica, perdendo finalmente sus funciones reales”, gerando uma indesejada soft law. Continua o eminente jurista alemão: “La explosiva mezcla de grandes «necesidades de actuación» social, de fe casi ciega en la eficacia de los medios jurídico-penales [...] puede hacer surgir el peligro de que el Derecho Penal viva la ilusión de solucuonar realmente sus problemas, lo que a corto plazo puede ser gratificante, pero a longo plazo es destructivo.”18

Conforme já assinalado, as exigências que o âmbito desse problema impõe ao Direito Penal consistem em revisão das categorias da teoria do delito. É claro que a amplitude da discussão é enorme, existindo vários pontos que demandam estudo mais profundo, porém, desde logo, saltam aos olhos duas flagrantes incompatibilidades por resolver: o problema da vontade como elemento da conduta e a culpabilidade.Este trabalho pretende tão-somente oferecer um problema relativo à questão da vontade como elemento da conduta, cuja solução parece somente possível através de uma revisão de conteúdo daquela categoria. Constata-se que a doutrina atual, de modo dominante, maneja o conceito finalista de conduta, que compreende ação ou omissão humana, voluntária, dirigida a um fim. É bem verdade que a proposta de conduta finalista, ainda que majoritariamente aceita, não está isenta a críticas. Estas críticas obrigaram Welzel a uma revisão da proposta inicial onde explica as condutas imprudentes finalistas focando não o objetivo visado, mas a falta de dever de cuidado

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empregada na execução da ação19 e a conduta omissiva através de um dever legal de agir, ou de uma conduta ativa esperada.20 Também é de curial sabença que estas incursões no campo valorativo levaram um grande número de juristas a propor, desde logo, em seus tratados e manuais, um estudo da conduta típica, como categoria indissolúvel, desestimulados pelas dificuldades em isolar um conceito pré-jurídico de ação lato sensu ou conduta.Além desse problema, apresenta dificuldades o tema da oferta de um superconceito capaz de conter ação e omissão dentro das construções causais, finalistas, ou sociais da ação.Tudo isso levou a construções inovadoras, dentre as quais a que parece mais correta é a que leva ao conceito significativo de ação (ou conduta), proposto por George P. Fletcher:

“En nuestra idea sobre la acción humana se entrecruzan dos factores. Uno es el grado de contextualización o abstracción en nuestra percepción de la conducta humana. Outra es la amplitud que le damos a la acción humana como un modo especial de comprensión humanista, o como explicación en términos mecánicos, tales como la relación física de causas e efecto. [...] mantiene el punto de vista mecánico de la acción, pero amplía la percepción de la causalidad incluyendo el mundo circundante y la historia psicológica del sujeto. La acción humana se explica, pues, como un evento natural: la totalidad de los factores causales dicta la acción. Esta es la forma en que los deterministas conciben la acción.Una comprensión humanista de la acción exige que abandonemos la idea de una explicación científica que conciba la acción como un producto de factores causales. La clave para una aproximación humanista no es la explicación de la acción como producto de las fuerzas causales, sino la comprensión de cómo los seres humanos actúan cuando efectivamente lo hacen.”21

Nesse sentido, compreende-se ação globalmente, orientada não somente ao ato mecânico e isolado que gera o resultado, senão como o produto de tudo o que envolve e determina a conduta. Muñoz Conde, ao afirmar que adota a concepção de ação de Claus Roxin, também de orientação significativa, dá seu contorno em termos mais exatos, ao afirmar:

“Más acertada parece la concepción de Roxin, que entiende la acción como un conjunto de datos fáticos y normativos que son «expresión de la personalidad», es decir, de la parte anímico-espiritual del ser humano. Ello hace preciso recurrir, a veces, a valoraciones que dotan de sentido a la acción; pero estas valoraciones dependen, en realidad, del contexto en el que la acción se realiza.Esto no excluye la validez del concepto final de la acción como concepto prejurídico, lo único que demuestra es que éste, por si mismo, no puede servir de único criterio para determinar el concepto de acción juridicamente relevante. Por eso es necesario, además, recurrir a criterios valorativos extraídos de las propias normas jurídicas que seleccionan aquella parte de la acción que les interesa (concepto significativo de acción).”22

Como visto, a adoção do conceito significativo de ação não implica na negação do conceito finalista, mantendo-o no âmbito pré-jurídico, reconhecido que a compreensão ideal de conduta implica na adição de outros elementos de cunho valorativo. Uma vez mantidos os elementos do conceito finalista de ação, ainda que compreendidos no âmbito do conceito significativo, à vista da permanência da vontade como um de seus componentes, afastar-se-ia a possibilidade de buscar-se a pessoa jurídica como origem de uma conduta típica.É claro que a conduta deve ser voluntária, visto que esta característica é a que afasta a possibilidade de responsabilidade penal por movimentos reflexos ou estados de inconsciência, por exemplo. Entretanto, quando se fala de vontade, presume-se como fonte de vontade tão-somente a conduta humana. Ocorre que, por vezes, diante das complexas tramas que envolvem a autoria nos tempos atuais, nem sempre esta autonomia de vontades se identifica com a pessoa que realiza materialmente a conduta típica, o que levou Claus Roxin à elaboração de sua já famosa teoria do domínio da vontade em virtude de aparatos de poder organizados, onde buscava resolver as dificuldades relativas ao estabelecimento da autoria em casos onde esta desaparecia no âmbito dos mencionados aparatos. Assim é que, segundo Muñoz Conde, desenvolveu uma teoria em que “caracterizaba estos aparatos de poder con una estructura de dominio integrada por tres elementos, que, en su opinión,

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fundamentaban una autoría mediata del «hombre de atrás», aunque el ejecutor del hecho fuera plenamente responsable.”23 Ainda segundo Muñoz Conde24, para Roxin, os necessários para o reconhecimento da presença desse aparato de poder eram o domínio da organização, que se impõe através do domínio da vontade do autor imediato, a fungibilidade do executor, que é mera engrenagem do aparato de poder, e a limitação do domínio da organização a aparatos à margem do direito. Presentes estes elementos, propunha o reconhecimento de uma autoria mediata, onde autor seria aquele que emitia as ordens e que detinha, portanto, o domínio do fato. O próprio Tribunal Supremo alemão reconheceu presentes os elementos propostos por Roxin ao julgar a atuação dos guardas da fronteira da antiga República Democrática Alemã que atiraram em pessoas que buscavam transpor o famoso muro que então separava as duas Alemanhas.Revendo os posicionamentos de Roxin, Muñoz Conde25 diz que estes elementos somente poderiam ser mantidos na medida em que se considerasse o próprio aparato estatal Alemão ou pelo menos sua legislação de fronteira, à margem do direito, o que é questionável na medida em que o próprio Estado produz o Direito. Conclui admitindo insustentável esse terceiro requisito da teoria de Roxin, ainda que, por outras razões, não reconheça que o conceito traçado de aparatos de poder inclua as empresas. Ademais, no que se refere à significação jurídico-penal de uma votação em uma cúpula ou conselho de administração de uma empresa, a figura adequada para o ilustre doutrinador ibérico é a co-autoria e não a autoria mediata. De qualquer modo, o afastar do elemento referente à operação à margem do direito conduz à possibilidade de discutir o aparato de poder como uma estrutura em princípio legal, o que é reconhecido pelo próprio catedrático andaluz ao mencionar:

“Vista desde esta nueva perspectiva la teoría de Roxin no plantea, pues, ningún problema para admitir también esta forma de dominio organizativo sobre todo en el ámbito de las grandes empresas. Naturalmente que estas grandes empresas se diferencian de las organizaciones mafiosas y criminales porque, desde un principio, no están al margen del Derecho. Pero actualmente en muchos sectores como la evasión de impuestos, estafas de crédito y de inversión, polución medioambiental, financiación ilegal de partidos políticos, blanqueo de capitales, abuso de información privilegiada, etc., está cada vez más difícil señalar donde están los límites entre una estrategia de mercado legal y otras actitudes de carácter criminal. Se habla incluso de una responsabilidad penal de las personas jurídicas en base a un «dominio funcional, sistémico de la organización[...]”26

Situados no campo empresarial, também não se pode esquecer, conforme alerta Jakobs27, que muitas decisões são tomadas no âmbito dos colegiados, diluindo entre votos a tomada de decisões, intervenção que é mais próxima de preparação que de uma execução do ato punível.Em verdade, há casos que envolvem decisões colegiadas - e aqui se situa o problema – em que efetivamente não se pode falar de responsabilidade penal individual das pessoas envolvidas e ao mesmo tempo não se pode negar que há uma vontade que expressa domínio do fato e dirige as ações dos executores materiais fungíveis.Imagine-se o exemplo de uma empresa que ao ampliar suas instalações construiu um novo galpão às margens de um rio, desobedecendo a distância regulamentar e destruindo a vegetação ciliar, sem nenhuma licença da autoridade competente.28 Constata-se que a referida edificação foi levada a cabo por funcionários da empresa cumprindo ordens diretas de seu órgão de decisões, que é um colegiado. Inclusive as pessoas que trabalharam na obra nem sempre foram as mesmas, dadas as faltas de alguns funcionários, demissão de outros, etc., como é comum em uma obra de largo fôlego. Resta presente a figura do executor material fungível que faz parte de um aparato de poder que leva a cabo uma decisão colegiada.Identificado o crime ambiental, verifica-se que o órgão de decisão da empresa é composto por três pessoas ou três grupos de pessoas que podemos nominar A, B e C. Apurada a ata de reunião em que se deliberou pela ampliação da fábrica, constata-se que esta transcorreu em três etapas: na primeira, A e B votaram pela ampliação da fábrica, que não era desejada por C, o qual votou contra sua

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realização; na segunda, uma vez que já se havia decidido pela ampliação, A e C votaram a favor de que esta tivesse lugar mediante remoção da mata ciliar, situando-a às margens do rio, tema em que foi vencido B, ao qual agradaria que a construção fosse para outro lado; finalmente, em terceira votação, B e C optam por não requerer licença da autoridade para o desmatamento, à vista de que têm por política não se submeterem às regras administrativas do Estado nem sequer sob o ponto de vista fiscal e temem que um pedido possa levar a uma verificação estatal de outra ordem na empresa, tema em que foi vencido A.Ora, analisado o fato, há induvidosamente uma ação criminosa levada a cabo materialmente por agentes fungíveis obedientes a um aparato de poder legal, que nesse momento, agem ilegalmente movidos por uma vontade que provém de decisão colegiada. Assim, o caminho normal é buscar a responsabilidade penal a partir da identificação da pessoa que determina quando, onde, como e se irá ocorrer o ilícito, cuja vontade é expressa na ação.Voltando-se contra A, B e C, depara-se com o primeiro alegando que manifestou claramente sua vontade de solicitar autorização legal para o desmatamento, pelo que o fato realizado não expressa sua vontade; com o segundo alegando que também não pode ser responsabilizado, pois não queria que fosse construído o galpão às margens do rio, mas em outro lugar, e o terceiro dirá que votou expressamente contra a própria ampliação da fábrica, então efetivamente o realizado não representa a sua vontade.Pode-se buscar sustentar que a última votação é que foi decisiva, pois se conhecia o resultado das anteriores, porém sempre haverá a possibilidade de dizer-se que a votação é secreta e o votante, em face das decisões anteriores, não cria possível que o resultado fosse o que sucedeu, situação que nos obrigaria a afastar uma eventual participação culposa, de vez que o crime foi doloso, volvendo ao campo da ausência de responsabilidade penal.Surge o curioso resultado de uma vontade determinante de uma ação criminosa que, no entanto, não pode ser atribuída individualmente a ninguém. Adotada a tese de Muñoz Conde, reconhecendo a co-autoria resultante de manifestações dos aparatos de poder pode-se entender possível responsabilizar somente os funcionários que possam ter consciência do caráter criminoso de sua ação (afastado o erro de proibição escusável) e que levaram a cabo a execução material da construção. Em conclusão, há uma situação fática real para a qual a dogmática penal tradicional não oferece uma resposta adequada, ao menos tratando-se da segura busca de um direito penal mínimo, baseado em um Estado social e democrático de direito.O problema requer uma volta às razões pelas quais se nega a responsabilidade penal da pessoa jurídica, na medida em que se aceita, conforme Savigny, que a vontade da empresa nada mais é do que a somatória da vontade de seus sócios.O que a situação descrita nos mostra à clara evidência é que na vontade da pessoa jurídica não há uma mera somatória, compreendida simplesmente como vontades em direção favorável ou contrária ao ato injusto, mas, sim, para não fugir ao auxílio dos conceitos provenientes da física, uma resultante, que, em um problema de forças que agem sobre um corpo, pode determinar um resultado para uma direção diferente de todas elas.A eventual solução queda em aberto podendo levar desde a elaboração de um novo conceito para a expressão vontade como componente da ação até à conclusão que, afinal, o Direito Penal não é capaz de estabelecer responsabilidade para quem realmente determinou a realização deste fato.

ELEIÇÕES PARA JUIZ DE DIREITO?!Ricardo A. Malheiros Fiúza

Volta e meia, fala-se em eleições populares para o cargo de Juiz de Direito. E o costume é citar os Estados Unidos como exemplo desse tipo de procedimento. Sem querer abrir polêmica (das quais

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tenho solene antipatia), dou aqui a minha opinião. O sistema de eleição para a magistratura está em pleno desuso no mundo inteiro. Os países da antiga “cortina-de-ferro”, que o adotavam, já não o fazem mais e têm-se aproximado dos Estados da União Européia, sobretudo de França e Portugal, em busca de orientação sobre critérios de seleção e formação de magistrados.Nos Estados Unidos, a Justiça Federal não adota o sistema eleitoral para escolha de seus juízes. E já não são mais todos os 50 Estados da Federação a adotarem o sistema de eleições diretas. Na verdade, lá existem quatro tipos de escolha de juízes estaduais: a) nomeação pelo chefe do executivo com prévia aprovação do legislativo; b) nomeação pelo chefe do executivo entre nomes constantes de lista formada por comissão independente de alto nível; c) eleição indireta pelo legislativo; e d) eleição popular.É preciso lembrar ainda que os juízes estaduais americanos não têm carreira: apontados ou eleitos para um county (comarca), ali ficam até o final de seu mandato (que é variável), podendo ser reconduzidos ou reeleitos para o mesmo posto. Não há promoções ou remoções.O Professor Daniel Meador, catedrático de Direito da Universidade da Virgínia, especialista em Organização Judiciária, em seu livro American Courts, um “best-seller” no assunto, afirma que o ato de candidatar-se, em eleições, a um posto na magistratura traz sempre problemas, seja nos Estados que exigem filiação partidária (o que é pior!), seja naqueles outros que admitem candidatura sem partido. Ironicamente, ele próprio questiona sobre que “plataforma” o candidato deve apresentar... E acrescenta: “Outro problema grave é o financiamento da campanha. As campanhas para a judicatura têm-se tornado crescentemente caras, situação exacerbada pelo alto custo da publicidade televisiva, considerada essencial para o sucesso da disputa. O candidato precisa levantar esses fundos com outras pessoas, principalmente com advogados que lhes podem lhes aparecer na frente no futuro. O dano à objetividade judicial e à aparência dessa objetividade é óbvio”.Embora nossa federação tenha como modelo a federação norte-americana, entendo que nosso direito e nosso sistema judiciário são muito mais “europeus” que “americanos”. E na Europa não se fala em eleição popular para o ingresso na magistratura. Senão vejamos (e aqui vou citar somente os países que visitei e onde pesquisei a organização judiciária).Em Portugal, a seleção dos magistrados é feita por concurso público no excelente Centro de Estudos Judiciários, onde os aprovados serão preparados por vinte e três meses, antes de assumirem sua função judicante.Na França, os candidatos a juiz ingressam por concurso na École Nationale de la Magistrature, e aí recebem formação inicial de dois anos e sete meses.Na Itália, os pretendentes à magistratura fazem provas escritas e orais disputadíssimas e, depois, seguem um curso de tirocínio de, “no mínimo, seis meses” em Frascatti.Na Espanha, com sua pioneira Escuela Judicial, os aspirantes a juiz têm que se submeter a um concurso público de dissertação oral e, em seguida, farão um curso de dois anos em Barcelona.Na Alemanha, também não há eleições para juiz e nem há concurso público. As nomeações levam em conta os graus obtidos nos exames finais das faculdades de Direito.Deixando a Europa e indo mais para o Oriente, veremos o que segue.No Japão, os futuros magistrados têm que vencer um vestibular rigorosíssimo no Instituto Jurídico de Treinamento, onde estudarão por dois anos, após os quais, se aprovados, serão nomeados.Na Austrália, os juízes são escolhidos e nomeados pelo Governador-Geral (representante da Rainha), assessorado na escolha pelo Conselho Federal, entre nomes de pessoas altamente qualificadas.Até o heróico Timor-Leste, cujas normas judiciárias tenho ajudado a elaborar por delegação da ONU, já cuida de ter um concurso para ingresso na judicatura seguido de curso de formação.Na verdade, o que se vê pelo mundo afora é uma grande preocupação com a seleção dos juízes e, sem sombra de dúvida, tendo em vista a peculiaridade da função judicante, não se recomenda o processo eleitoral, e sim o concurso público que é tão democrático quanto as eleições.E não há que se falar que o eleitorado brasileiro é despreparado para tal tipo de sufrágio. O sistema eleitoral para a Magistratura é que não é aconselhável.

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Concluindo, discordo de quem afirma que os juízes não têm legitimidade democrática porque o povo não lhes delegou o poder. Os magistrados têm, sim, legitimidade democrática, porque o poder institucional, aquela força que deriva do Estado, é adquirido, também, pela investidura legal, após concurso público como se faz no Brasil.

RESCINDIBILIDADE DA COISA JULGADA FORMAL Antônio Aurélio Abi Ramia Duarte Ricardo Silva Machado

"La coza juzgada es el atributo específico de la jurisdición. Ninguna outra actividad del orden jurídico tiene la virtud de reunir los dos caracteres arriba mencionados: la imutabilidad y la coercibilidad".(Eduardo Couture. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 1951, pág. 304)

Inicialmente cabe expor o significado etimológico do termo rescisorius, termo este que designa o objeto central do presente texto, significando abrir, romper e rasgar. Tratando da definição de ação rescisória, segue-se a sensata lição do ilustre Prof. Sérgio Bermudes:

Por vezes, a sentença de mérito é de tal modo viciosa que a lei permite a sua desconstituição, depois do seu trânsito em julgado. A ação pela qual se pede a desconstituição da sentença de mérito transitada em julgado chama-se ação rescisória. (Introdução ao Processo Civil, 2ª edição, Editora Forense, 1996, pág. 192 - grifou-se)

Com relação a seu nascedouro, a ação rescisória originou-se do Direito Italiano, marcado por forte influência do Direito Germânico, onde se evidenciou a necessidade da busca de um remédio que tivesse por escopo a aplicação da Justiça em face de casos já resolvidos (imploratio officiis iudicis).Por óbvio que o direito visa à composição dos conflitos, com a conseqüente pacificação das relações sociais, por meio da aplicação perfeita das regras jurídicas. Entretanto, no transcurso desta aplicação podem ocorrer falhas humanas, geradas por fatores diversos, como, por exemplo, a violação de literal disposição de lei, pela decisão judicial, ou a existência, na decisão, de erro de fato resultante de atos ou de documentos da causa, bem como por diversas outras causas.Diante de tal situação, tornou-se essencial, para que o direito possa alcançar seu objetivo fundamental, a adoção da ação rescisória, objetivando não só a desconstituição da sentença passada em julgado, como também, na maioria dos casos, o rejulgamento da matéria, evitando, assim, decisões que atentem à busca de um direito essencialmente justo.Destina-se, pois, a rescisória (que é ação e não recurso, como sustentam alguns equivocados autores) a anular o julgamento coberto pela res iudicata, ou seja, pela coisa julgada, como tal entendida, a imutabilidade, dentro e fora do processo, da prestação jurisdicional do Estado, definitivamente entregue, tornando-se inatacável e irrevogável, imutável e indiscutível, como destaca, com extrema propriedade, o jovem processualista Alexandre Freitas Câmara:

A nosso juízo a coisa julgada se revela como uma situação jurídica. Isto porque, com o trânsito em julgado da sentença, surge uma nova situação jurídica, antes inexistente, que consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença, e a imutabilidade e indiscutibilidade é que são, em verdade, a autoridade da coisa julgada. Parece-nos, pois, que a coisa julgada é esta nova situação jurídica, antes inexistente, que surge quando a decisão judicial se torna irrecorrível. (Lições de Direito Processual Civil, vol. I, Editora Freitas Bastos, 1998, pág. 418)

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A imutabilidade do julgamento dentro do processo, em virtude de não mais comportar recurso, é a coisa julgada formal; a imutabilidade do julgamento fora do processo em que se constituiu, impeditiva de seu reexame por qualquer juiz ou tribunal, é a coisa julgada material.A ocorrência da coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal, ou seja, no exame da coisa julgada material vemos que esta se forma com a ocorrência anterior da coisa julgada formal e desta última não prescinde. Em outras palavras, a coisa julgada formal é elemento integrante da coisa julgada material. Podemos encontrar coisa julgada formal sem coisa julgada material, mas não encontramos coisa julgada material sem coisa julgada formal. Como destaca o Prof. Humberto Theodoro Junior:A coisa julgada formal pode existir sozinha em determinado caso, como ocorre nas sentenças meramente terminativas, que apenas extinguem o processo sem julgar a lide. Mas a coisa julgada só pode ocorrer de par com a coisa julgada formal, toda sentença materialmente em julgado deve, também, passar em julgado formalmente. (Processo de Conhecimento, 1ª edição, Editora Forense, 1978, págs. 666/667)

Instalou-se, no direito pátrio, controvérsia acerca da possibilidade de ser rescindida uma decisão revestida apenas de coisa julgada formal, possibilidade essa que admitimos, mesmo contrariando expressiva corrente de doutrinadores, que só admite a rescisão de coisa julgada material.Pontes de Miranda defendia, insistentemente, a possibilidade de rescindirmos uma decisão formal, chegando ao ponto de afirmar:

Na ação rescisória há julgamento de julgamento. É, pois, processo sobre outro processo. Nela, e por ela, não se examina o direito de alguém, mas a sentença passada em julgado, a prestação jurisdicional, não apenas apresentada (seria recurso), mas já entregue. É remédio processual autônomo. O seu objeto é a própria sentença rescindenda porque ataca a coisa julgada formal de tal sentença a sententia lata et data. Retenha-se o enunciado: ataque à coisa julgada formal.” (Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VI, 3ª ed., Editora Forense, 1995)

Sustenta, adiante, o insigne jurista:

A ação rescisória tem por fito exatamente atacar a coisa julgada formal, o que o sistema jurídico só admite em estreitas espécies.Coisa julgada formal produz-se sempre que não mais se pode recorrer, ou não se poderia, por ser irrecorrível a decisão. Onde quer que haja decisão irrecorrível, ou de que já não caiba mais recurso, há pretensão a rescisão.

Assim, decisões que, não atinjam o mérito da demanda, impedem que a ação seja novamente intentada, podem e devem ser desconstituídas, porquanto seria extremamente grave que, da definitividade das descisões, resultasse uma situação atentatória ao direito.Sobre o ponto, eis a lição do ilustre Prof. Ivan Nunes Ferreira:

Embora a intangibilidade de toda e qualquer decisão transitada em julgado significar maior segurança para os jurisdicionados, a manutenção de decisões, que possam estar contaminadas pelos graves defeitos apontados no art. 485, levou o legislador a permitir, nesses casos, a revisão do julgado. (“Ação Rescisória Contra Decisão que não Conhece de Recurso” - Revista de Direito Renovar n. 8, 1997, Mai/Ago)

Nossos Tribunais acolhem o entendimento segundo o qual pode ser desconstituída, pela ação rescisória, a decisão que não admite recurso, se esta cristalizou a coisa julgada formal, como exemplificam os seguintes julgados:

Rescisória. Coisa julgada material. Coisa julgada formal. Acórdão que não aprecia mérito. Violação a literal dispositivo de lei. Prazo. Intimação em feriado. Dies a quo. A coisa julgada formal é elemento da coisa julgada material, porque esta se forma com a ocorrência daquela. Portanto, pode ser atacada pela ação rescisória a decisão que inadmite o recurso, se tal decisão criou a coisa julgada formal. (TJMG, CPC nos Tribunais, Darcy Arruda Miranda Júnior e outros, pág. 5074)............................................................................

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A coisa julgada formal é elemento integrante da coisa julgada material, porque esta se forma com a ocorrência daquela; portanto, pode ser atacada pela ação rescisória a decisão que inadmite recurso, se tal decisão criou a coisa julgada formal.” (Rel. Juiz LELLIS SANTIAGOS, julgado em 15.2.1982, RJTAMG 19/19, AR 220)

O emérito Professor José Carlos Barbosa Moreira tratou do polêmico tema, afirmando que o sistema do antigo Código de Processo Civil de 1939 trazia um princípio claramente mais salutar, pois admitia a rescisão das decisões não definitivas, sendo, porém, adotada por nosso sistema, a rescisão de decisões de cunho material.Assim se manifesta o ilustre Professor:

Rescindível é apenas, no sistema do atual Código, a ‘‘sentença de mérito’’. No direito anterior era possível rescindir decisões não terminativas, quer dizer que não julgassem o meritum causae. A nosso ver teria sido preferível manter o mesmo princípio; aliás a Comissão Revisora sugeriu, sem êxito, a supressão da ‘‘definitiva’’ que figurava no art. 534 do anteprojeto, e foi depois substituído, no art. 489 do Projeto, pela expressão ‘‘de mérito’’…… (Comentários ao Código Processo Civil, vol. V, Ed. Forense, 1998, pág. 98, grifou-se)

Portanto, sob o fundamento de que a coisa julgada formal se encontra inclusa na coisa julgada material, e ante a necessidade de se manter a pacificação das relações jurídicas, evitando que situações gravosas ao direito se perpetuem, apontamos da admissibilidade da ação rescisória com o objetivo central de rescindir os efeitos da coisa julgada formal em face de demandas que não possam ser novamente propostas. Pontes de Miranda conclui acerca do tema:

Quando a sentença tem força formal de coisa julgada e não a tem material, também cabe a ação rescisória. A ação rescisória nada tem, aí, com o conceito de coisa julgada material. (Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VI, 3ª edição, Editora Forense, 1995, pág. 174)

O Prof. Ivan Nunes Ferreira, destacou, brilhantemente, duas decisões dos nossos tribunais que confirmam a tese acima defendida:

Cabe rescisória contra acórdão ou sentença que extingue o processo, pela ocorrência de coisa julgada porque, EMBORA NÃO TRATE DE SENTENÇA DE MÉRITO, impede que seja novamente intentada a ação. (TRI - AR 1.505-RJ, in “Ação Rescisória Contra Decisão que não Conhece do Recurso”, Revista Renovar, pág. 49)............................................................................Comprovada a tempestividade do recurso por certidão, cujo conteúdo foi inadmitido pelo réu, caracteriza-se erro de fato, autorizando a rescisão do julgado. (RSTJ, vol. 14, pág. 25, in “Ação Rescisória Contra Decisão que não Conhece do Recurso”, Revista Renovar, pág. 49)

Assim, diante de tão abalizados doutrinadores, em face das múltiplas decisões dos nossos Tribunais, entendemos admissível a rescisão de decisões de cunho formal.