Escola afro-brasil

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 LUIZ CARLOS PAIXAO DA ROCHA POLÍTICAS AFIRMATIVAS E EDUCAÇÃO: A LEI 10639/03 NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre do curso de Mestrado em Educação e Trabalho, linha de pesquisa “Políticas e Gestão em Educação”, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Taís Moura Tavares CURITIBA 2006

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LUIZ CARLOS PAIXAO DA ROCHA

POLTICAS AFIRMATIVAS E EDUCAO: A LEI 10639/03 NO CONTEXTO DAS POLTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL CONTEMPORNEO

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de mestre do curso de Mestrado em Educao e Trabalho, linha de pesquisa Polticas e Gesto em Educao, Setor de Educao, Universidade Federal do Paran. Orientadora: Profa. Tas Moura Tavares

CURITIBA 2006

LUIZ CARLOS PAIXAO DA ROCHA

POLTICAS AFIRMATIVAS E EDUCAO: A LEI 10639/03 NO CONTEXTO DAS POLTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL CONTEMPORNEO

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de mestre do curso de Mestrado em Educao e Trabalho, linha de pesquisa Polticas e Gesto em Educao, Setor de Educao, Universidade Federal do Paran. Orientadora: Profa. Tas Moura Tavares

CURITIBA 2006

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DEDICATRIA

minha famlia, por ter-me ensinado os primeiros passos em direo solidariedade e comunho. A todos e todas que colocam na sua prtica cotidiana o desejo de construir novas relaes sociais que tenham como objetivo a emancipao humana.

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AGRADECIMENTOS

A todos que, de alguma maneira, contriburam com a realizao deste trabalho. Luzia e familiares, pelo companheirismo, amor e compreenso. Aos meus educadores e educadoras, do ensino fundamental ao superior. Aos educadores e educadoras do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Paran, em especial, a Maria Dativa de Salles Gonalves, a Regina Maria Michelloto e a Jos Henrique Faria, pelas importantes contribuies tericas e pelo incentivo nos momentos mais difceis. professora e orientadora, Tais Tavares Moura, por sua lucidez terica, pelo incentivo, pela dedicao e pelo companheirismo. Aos professores que integraram a Banca de qualificao, Walter Praxedes e Tnia Baibich Faria, pela anlise crtica e pelo incentivo. Aos colegas de mestrado, pelo companheirismo. Aos diretores e funcionrios da APP-Sindicato, aos integrantes dos Coletivos do sindicato, pela compreenso e apoio. s lideranas do movimento negro, que muito contriburam com a minha formao poltica e acadmica, em especial, aos entrevistados, Romeu Gomes de Miranda, Jaime Tadeu e Martvs Alves Chagas, por terem fornecidos elementos importantes para a realizao deste trabalho.

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Uma das conquistas tericas do marxismo foi ter descoberto que nas prticas sociais e culturais, fundamentalmente enraizadas no tempo e no espao, que se formam as ideologias e as expresses simblicas em geral. (Alfredo Bosi)

A liberdade no uma ddiva, mas uma conquista. Essa conquista pressupe que os negros redefinam a histria, para situ-la em seus marcos concretos e entros-la com seus anseios mais profundos de auto-emancipao coletiva e de igualdade racial. (Florestan Fernandes)

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SUMRIO

DEDICATRIA

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AGRADECIMENTOS .........................................................................................iv EPGRAFE ........................................................................................................v SUMRIO RESUMO .......................................................................................................vi ..................................................................................................... ix LISTA DE SIGLAS .......................................................................................... vii ABSTRACT .......................................................................................................x

INTRODUO

.......................................................................................... 01 .......................... 05 .......................... 16

1. CONSIDERAES SOBRE A QUESTO RACIAL 1.1 QUESTO RACIAL E RACISMO NO BRASIL 1.2 IDEOLOGIA E A QUESTO RACIAL BRASILEIRA

..................................... 12

2. O CONTEXTO EM QUE AS POLTICAS AFIRMATIVAS PARA NEGROS CHEGAM AO ESTADO BRASILEIRO .......................................................... 29 2.1 O DISCURSO DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS EM RELAO POBREZA ..................................................................................................... 30 ................ 43 ..... 49 2.2 PROPOSTAS DO BANCO MUNDIAL PARA A EDUCAO

2.3 ONU E UNESCO E O COMBATE DISCRIMINAO RACIAL 2.5 A QUESTO RACIAL NO GOVERNO LULA

2.4 A INTERVENO DO MOVIMENTO SOCIAL NEGRO .......................... 53 ..................................... 67

3. LEI 10639/03: UMA CONTRIBUIO PARA A SUPERAO OU MANUTENO DAS DESIGUALDADES RACIAIS E SOCIAIS? ................ 75 3.1 A LEI 10639/03 E AS POLTICAS AFIRMATIVAS ..................................... 96 4. CONSIDERAES FINAIS ................................................................... 110

5. REFERNCIAS ........................................................................................ 117

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LISTA DE SIGLASACNAP ANDES-SN Ao Cultural da Negritude do Paran Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior APP SINDICATO Sindicato dos Trabalhadores da Educao Pblica do Paran BID BIRD Banco Interamericano de Desenvolvimento Banco Interamericano para Reconstruo e Desenvolvimento BID CNE CNTE Banco Mundial Conselho Nacional de Educao Confederao Nacional dos Trabalhadores Em Educao CONEN CNDES Coordenao Nacional das Entidades Negras Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social EAP FHC FMI FNB FUNDEF Estratgia de Assistncia ao Brasil Fernando Henrique Cardoso Fundo Monetrio Internacional Frente Negra Brasileira Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

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IPEA LDB MEC SEPPIR

Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada Lei de Diretrizes e Bases da Educao Ministrio da Educao e Cultura Secretaria Especial de Promoo da Igualdade Racial

SNCR ONGS ONU PCN PDT PFL PNUD

Secretaria Nacional de Combate ao Racismo Organizaes No Governamentais Organizao das Naes Unidas Parmetros Curriculares Nacionais Partido Democrtico Trabalhista Partido da Frente Liberal Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

PT PROUNI PSDB UNB UNESCO

Partido dos Trabalhadores Programa Universidade para Todos Partido da Social Democracia Brasileira Universidade Nacional de Braslia Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e Cultura

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RESUMO

Atravs da anlise da Lei 10639/03, que tornou obrigatrio o ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira em todos os estabelecimentos de ensino da educao bsica, em vigor desde 09 de janeiro de 2003, este trabalho traz uma reflexo sobre as contradies presentes no debate das polticas de aes afirmativas para o negro brasileiro, bem como tenta verificar em que medida essas polticas contribuem com a luta pela superao da ordem econmica vigente, ou obstaculizam essa superao. A Lei 10639/03 chega ao Estado Brasileiro no bojo do debate da implantao das polticas de aes afirmativas para a populao negra que, embora reivindicadas pelo movimento social negro, compem o discurso estratgico dos organismos internacionais que defendem a instituio de polticas sociais focalizadas para os mais pobres, entre quais, os negros. A anlise realizada no nega as positividades das reivindicaes do movimento social negro, porm tenta coloc-las dentro do atual contexto de desenvolvimento das polticas sociais, a fim de possibilitar uma apreenso mais cuidadosa do objeto, dentro das vrias determinaes da sociedade. O trabalho, entendendo as desigualdades raciais como um dado importante da realidade brasileira e como um subproduto da dinmica da sociedade capitalista, procurou estabelecer relaes entre a superao das desigualdades raciais e as desigualdades sociais, propondo, assim, na luta poltica, a aliana entre a luta racial e a luta de classes. Neste sentido, a Lei 10639/03 pode configurar-se como um instrumento de luta para o questionamento da ordem vigente, na medida em que coloca em xeque construes ideolgicas de dominao, fundadoras da sociedade brasileira.

Palavras-chave: Polticas educacionais; Polticas de aes afirmativas; Negro e educao; Lei 10639/03; Ideologia.

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ABSTRACT

By the analyses of 10639/03 law, which change to compulsory the Afro Brazilian history and culture education in all basic educational schools, available since January 9th 2003, this work introduces a reflection about the contradictions present in the debate of the actions policy to the Brazilian negro, as well as try to verify in which measures these policy contribute or raise difficulties to the fight to overcome the economic order in vigor. The law 10639/03 reaches Brazilian State in the projecture of the debate to the implementation of affirmative actions policy to black population and although they were reinvidicated by the black social movement , they constitute the strategical speech of international organism that protect the social political institutions with the focus on the poorest population, among them, the negro. The analysis made doesnt deny the positivities of the negro social movement revindications, however they try to put them within the actual development contexture of social policy, in order to make possible a careful apprehension of the subject inside the considerably society determinations. The present work, comprehending that racial differences are important data of Brazilian reality, and a sub product from the capitalist society dynamics, searched to establish relations between the racial differences overcome and the social differences, proposing, in the political conflict the association between the racial conflict and the class conflict. Therein, the law 10639/03 can be configured as a fight instrument to the discussion of the established order, in the same time that keep in check ideological constructions of domination, foundation of Brazilian Society.

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INTRODUO

As preocupaes , os estudos que venho desenvolvendo, so resultados das condies objetivas e subjetivas que nortearam a minha trajetria. No entanto, a partir da dcada de 90, momento em que intensifico minha atuao no movimento social, que comeo a estabelecer algumas reflexes sobre as relaes entre a questo do negro e a educao. Reflexes, preocupaes ainda muito incipientes, mas que foram ganhando corpo, a partir da militncia, das leituras e de um olhar mais crtico sobre a minha prpria experincia enquanto negro, especialmente nos bancos escolares. Deste modo, comecei a perceber a importncia deste debate na perspectiva da construo de relaes sociais justas, humanas e coletivas. No entanto, para a grande maioria dos envolvidos no processo da educao escolar, a relao entre raa/racismo e educao passa

despercebida. Esta parece ser invisvel aos olhos dos brancos, amarelos, ndios e dos prprios negros. Perpassa pelos bancos escolares uma nvoa ideolgica, quase imperceptvel de sustentao crena de inferioridade do grupo negro. Hoje, ao olhar minha trajetria, comeo a perceber e a entender um pouco desta nvoa, especialmente durante os primeiros anos de escola. Recordo como era importante para mim sobressair-me nos estudos, tirar as melhores notas, dar o menor trabalho possvel aos professores. Precisava provar que, apesar da condio de negro, no era inferior aos outros. Recordo-me das aulas de histria. (Os dias mais difceis nos bancos escolares, com certeza, foram os dias de aulas sobre o Brasil colonial, sobre a escravido. Que suplcio era o 13 de Maio!). Sempre tive timos professores, humanos, dedicados. Eles foram fundamentais para a minha caminhada. Mas, mais uma vez o meu povo seria apresentado como coitado, como escravo, sem os traos humanos que sempre admirei em meus familiares. No culpo os professores; muito pelo contrrio, percebi vrias vezes, como se sentiam at constrangidos em trabalhar o tema, na sala de aula, com a minha presena. Quase sempre fui o nico aluno negro em sala.

No incio do ano, uma das primeiras coisas que fazia era dar uma passeada pelo livro didtico: ser que naquele ano teramos aulas sobre o Brasil colonial? E sempre ele estava l. No fiz disto um trauma, e nenhum empecilho para a minha formao. Muito pelo contrrio, inconscientemente, aquilo me estimulava a dedicao aos estudos. Porm, s pude compreender esse movimento, essas sensaes, bem mais tarde. Espero que elas coloquem luzes sobre os meus estudos. Ao mesmo tempo, tomo como desafio o fato de que esses quase fantasmas, ou minha ligao militante temtica no interfiram negativamente no grau de anlise de que as pesquisas necessitam. A formao que obtive e a trajetria de vida estabelecida permitiram-me a convico de que s de forma coletiva possvel realizar aes de transformao na perspectiva da construo de uma sociedade norteada por relaes sociais justas, igualitrias e solidrias. Portanto, entendo fundamental avanar, das sensaes e compreenses individuais, para a compreenso e ao coletiva. Qualquer fenmeno social precisa ser entendido na sua relao com a totalidade. Sendo assim, o desafio desta pesquisa , a partir da anlise dos mecanismos gerais de organizao da sociedade atual, produtores de vrias formas de desigualdades, refletir sobre as possveis contradies presentes no debate da implementao das polticas de aes afirmativas para o negro brasileiro. E, ao mesmo tempo, perceber em que medida essas polticas favorecem ou obstaculizam a luta contra as desigualdades sociais. Para tanto, tomamos como objeto a Lei 10639/03. Esta, alterando dispositivos da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional) tornou obrigatrio o ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino de educao bsica, sejam estes pblicos ou privados. Alm do mais, a Lei institui a data de 20 de novembro, no calendrio escolar, como dia da conscincia negra. A nova legislao vem ao encontro das antigas reivindicaes e preocupaes do movimento social negro em relao educao. E, ao mesmo tempo, incorporada pelo Estado, no momento em que as polticas sociais perdem terreno, em virtude das polticas de ajuste econmico implantadas por muitos pases, em decorrncia dos acordos com os organismos financeiros internacionais. Como essa legislao, traz consigo o debate das polticas afirmativas e a educao, poder-se- avanar na2

compreenso das mesmas dentro das atuais condies de organizao social para a reflexo mais ampla em relao questo racial, na perspectiva da transformao social. Desta forma, alguns elementos e questes se apresentam como centrais para a anlise. Estes norteiam os estudos que estamos desenvolvendo e nos permitem avanar em uma maior aproximao do movimento do objeto da investigao. Como primeiro elemento norteador destaca-se o entendimento do racismo como um fenmeno social presente nas relaes sociais no pas. Embora haja, historicamente, aes no sentido de neg-lo, o seu entendimento torna-se um dado necessrio para a compreenso das razes das desigualdades econmicas e sociais da sociedade brasileira. Outro elemento no menos importante a viso de que a dinmica da desigualdade racial deve ser entendida na sua relao com a dinmica da luta de classes, tendo em vista a viso do racismo enquanto subproduto da forma capitalista de organizao da sociedade. O racismo, como o conhecemos nos dias de hoje, um fenmeno criado a partir do interesse de dominao e expanso do capitalismo mundial. Por fim, a convico de que a luta para a superao do atual modo de organizao social deve trazer no seu bojo a luta contra as desigualdades raciais, sendo este um fenmeno social concreto, presente na sociedade. Do mesmo modo, a luta contra o racismo deve aliar a questo de raa questo de classe, o especfico ao universal. Esta proposio poltica nos parece ser importante para todos aqueles que esto preocupados com a transformao da ordem econmica, social, poltica vigente. Uma

transformao na perspectiva de construo de novas relaes sociais onde o ser humano seja o centro. Importante, tendo em vista que o fenmeno do racismo atua de forma concreta em nossa sociedade e no se vai resolv-lo simplesmente pela luta geral. Sendo assim, o trabalho pretende analisar as contradies e possibilidades da Lei 10.639/03, no espectro do campo de interveno da superao do atual modo de organizao social. Para tanto, no primeiro captulo, estabelecemos algumas reflexes sobre a questo racial e a sua importncia para a compreenso da realidade brasileira e a questo racial como um fenmeno social ligado aos mecanismos de dominao de uma3

classe sobre outra. Apresentamos, ainda, neste captulo, o movimento de constituio de uma ideologia de dominao racial, fator que julgamos fundamental para a reflexo sobre as desigualdades raciais e, ao mesmo tempo, importante para a anlise das possibilidades do objeto em questo. No segundo captulo, a fim de avanar na compreenso da configurao da Lei 10639/03, dentro do atual momento histrico, olhamos de forma mais cuidadosa para o contexto em que as polticas afirmativas para a populao negra e a Lei 10639/03 chegam ao Estado Brasileiro. Destacamos, a, a interveno do movimento social negro e uma conjuntura econmica internacional favorvel instituio de polticas compensatrias. No captulo seguinte, destacamos a preocupao e a interveno do movimento social negro, relacionadas educao, e nos debruamos um pouco mais sobre a Lei 10639/03 em si. Nele avanamos um pouco sobre as contradies presentes no debate das polticas afirmativas. Nas consideraes finais, apresentamos algumas snteses do trabalho realizado e, ao mesmo tempo, fazemos uma reflexo sobre as possibilidades da nova legislao dentro da tica da transformao social. No decorrer deste trabalho, utilizamos uma srie de fontes, desde textos clssicos sobre a temtica, como at textos de trabalhos mais recentes. Utilizamos notcias de jornais, artigos de revistas, textos e artigos disponveis na internet, ainda no publicados. Pesquisamos tambm diversos documentos oficiais, como os do governo federal e os dos organismos internacionais, bem como vrios documentos do movimento social negro. Para nossa surpresa, existe ainda muito material a ser explorado. O que nos instiga a dar seqncia a novos estudos e a novas leituras. Outra fonte fundamental para a pesquisa que realizamos foi a das entrevistas de lideranas e militantes do movimento social negro. Foi uma pena no reproduzi-las todas aqui neste trabalho. Sem elas, com certeza este trabalho no teria conseguido aproximar a teoria acadmica prtica transformadora. Por fim, nossa tentativa foi a de captar o movimento da chegada das polticas afirmativas no Estado Brasileiro, dentro desse imenso palco das relaes sociais da existncia humana, sempre em movimento, e repleto de diversas determinaes e instigantes contradies. Mas, acima de tudo, transbordante de possibilidades.4

CAPTULO I - CONSIDERAES SOBRE A QUESTO RACIAL

Para uma melhor aproximao ao objeto desta pesquisa, e para uma melhor delimitao de alguns pressupostos ou pontos de partida, entende-se necessria uma breve reflexo sobre a questo racial, como um fenmeno interligado questo de classe social. Esses elementos sero importantes para a pretenso deste trabalho, ou seja, a reflexo sobre as possveis contradies presentes no debate das polticas de aes afirmativas para o negro brasileiro, visto que elas compem a pauta de reivindicaes do movimento social negro, e ao mesmo tempo, integram o discurso e a ao de organismos internacionais no vis do atendimento aos mais pobres. Desta maneira, a partir da anlise da Lei 10639/03, que tornou obrigatrio o ensino da Histria e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino da educao bsica, pretende-se perceber em que medida as polticas de aes afirmativas favorecem ou dificultam a luta contra as desigualdades sociais. Isto se torna possvel, em virtude de o debate sobre a Lei 10639/03 estar sendo realizado no bojo do debate das polticas afirmativas para a populao negra brasileira. Sendo assim, em primeiro lugar, tornam-se importantes algumas consideraes sobre as noes de raa e etnia. Os pesquisadores das reas sociais e o movimento social negro tm-se debruado sobre essa questo conceitual importante para a definio da estratgia de luta contra o racismo. H uma tendncia de vrios pesquisadores de, gradualmente, substituir a categoria raa em favor da categoria etnia, visto que, comprovadamente, no existe mais legitimidade cientfica para o entendimento de raa como uma categoria biolgica, na medida em que as desigualdades atuais entre os chamados grupos raciais no so conseqncias de sua herana biolgica, mas produtos de circunstncias sociais histricas e contemporneas e de conjunturas econmicas, educacionais e polticas. (Declarao sobre Raa da Associao Norte Americana de Antropologia de 1998, citada por PRAXEDES, 2005, p. 110).

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O prprio conceito de raa uma construo social e histrica, produzida no interior das relaes sociais e de poder, ao longo do processo histrico (GOMES e MUNANGA, 2004). Segundo PRAXEDES:...embora biologicamente falando no existam raas humanas, os preconceitos que temos incorporados continuam a ensinar-nos a julgar e avaliar as capacidades dos indivduos e coletividades de acordo com a raa biolgica na qual os classificamos. Na prtica, sempre que associamos um comportamento social a uma caracterstica biolgica de um indivduo ou grupo estamos raciocinando de forma racista. Em outras palavras, mesmo desmentidos pelas cincias os preconceitos racistas permanecem vivos nas mentes de muitos indivduos e coletividades. (PRAXEDES, 2006, no prelo)

Sendo assim, dado que o termo raa esconderia as determinaes histricas sob a neutralidade da determinao biolgica, os pesquisadores da temtica tendem a substitu-lo pelo termo etnia, cujo conceito alocaria questes de ordem cultural. A palavra etnia foi inventada pelo zoologista francs Vacher de Lapouge, por volta de 1896, para designar o sentimento de vida comunitria, de vnculo afetivo, da solidariedade, do compartilhamento de costumes e da crena na mesma origem e ancestralidade entre indivduos, distinguindo-se, portanto, da classificao dos seres humanos como pertencentes a raas ou naes (PRAXEDES, 2005). Embora o conceito de etnia supere o conceito de raa, este ainda insuficiente para a anlise mais apurada do movimento histrico que produziu e produz o quadro de excluso social do negro brasileiro. Em muitas situaes, o conceito de etnia vem sendo aliado a um certo determinismo cultural. O privilgio categoria etnia, em tese, conceito mais prximo da realidade, pode levar ao risco da restrio da questo ao aspecto da tolerncia e valorizao cultural, negando, assim, o processo de excluso social. Sendo assim, o entendimento deste trabalho de que categoria mais apropriada ainda tende a ser construda no cotidiano da relao entre teoria e prtica. Para efeito do objeto desta pesquisa, trabalhar-se- com prioridade a categoria negro brasileiro, na perspectiva da incorporao do negro na sociedade de classes no Brasil. Isto no significa que sero desprezadas, nesta pesquisa, as contribuies oriundas do debate sobre as noes de raa e etnia, mas preciso considerar que esses conceitos e classificaes foram construdos por cientistas europeus, com o objetivo de classificar as diferenas entre os

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homens. As categorias raa e etnia, quando utilizadas no decorrer das anlises, devem ser entendidas como categorias histricas, isto , como produto de determinaes na subjuno de uma classe outra. A compreenso do racismo moderno, enquanto um dos subprodutos da sociedade de classes, no o predominante na atual literatura sobre a temtica. Porm, a tese de que o fenmeno do racismo to antigo como o surgimento da humanidade precisa ser desmistificada. A escravido presente nas sociedades medievais e antigas no tinha uma justificao baseada na cor da pele. importante perceber que a escravido no nasceu do racismo; ao contrrio, o racismo moderno conseqncia da escravido (WILLIAMS, 1961). O racismo , desta maneira, resultado de justificaes e classificaes ideolgicas, com o objetivo de subjugao e explorao da fora de trabalho. Estas foram fundamentais para a solidificao do sistema capitalista no mundo.

Diz-se freqentemente que o racismo to antigo quanto a natureza humana, e em conseqncia no poderia ser eliminado. Pelo contrrio, o racismo tal como o conhecemos hoje desenvolveu-se nos sculos 17 e 18 para justificar o uso sistemtico do trabalho escravo africano nas grandes plantaes do 'Novo Mundo' que foram fundamentais para o estabelecimento do capitalismo enquanto sistema mundial. O racismo, portanto, formou-se como parte do processo atravs do qual o capitalismo tornou-se o sistema econmico e social dominante. As suas transformaes posteriores esto ligadas s transformaes do capitalismo. (CALLINICOS, 2005, p.08)

Neste sentido, o racismo moderno constitui-se, enquanto forma de ideologia de dominao de uma classe sobre outra, dentro das relaes de produo da vida material, o que no o caso da escravido presente nas antigas sociedades greco-romanas. Estas no desenvolveram teorias de superioridade branca.O racismo uma forma de ideologia que se desenvolveu no mundo moderno e ajudou na justificao da escravido no Novo Mundo e as pretenses imperialistas da Europa ocidental em todos os continentes. Para Marx, so as relaes de produo escravistas que colocam um ser humano em uma posio social de subjugao, de trabalho forado, de explorao econmica, de opresso e violncia material e simblica. As representaes desenvolvidas nas formas de conscincia social com base na matria prima dessa situao de opresso levaram ao desenvolvimento de uma ideologia racista que chegou at os nossos dias. (PRAXEDES, 2003)

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Teorias raciais so inventadas com interesses de dominao e opresso. A opresso racial tem um componente diferente das outras formas de opresso, visto que o oprimido no pode fugir do estigma de sua cor.

Diferenas raciais so inventadas: isto , emergem como parte de uma relao de opresso historicamente especfica para justificar a existncia dessa relao. Assim, qual a peculiaridade histrica do racismo enquanto uma forma de opresso? Em uma primeira instncia que as caractersticas que justificam a opresso so inerentes ao grupo oprimido. Uma vtima do racismo no pode transformar-se para evitar a opresso; pessoas negras, por exemplo, no podem mudar a sua cor. Isso representa uma diferena importante, por exemplo, entre opresso racial e opresso religiosa, uma vez que a soluo para algum que seja perseguido por motivos religiosos mudar a sua f. (CALLINICOS, 2005, p.10)

A questo tnico-racial um fenmeno dinmico, moderno, criado e recriado pela sociedade capitalista. Estes se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes crculos de relaes sociais.

Assim a sociedade burguesa, capitalista, fabrica contnua e reiteradamente a questo racial, assim como as desigualdades feminino-masculino, o contraponto sociedade natureza e as contradies de classes, alm de outros problemas com implicaes prticas e tericas. So enigmas que nascem e desenvolvem-se com a modernidade, por dentro e por fora do "desencantamento com o mundo". A despeito de inegveis conquistas sociais realizadas no curso dos tempos modernos, esses e outros enigmas se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes crculos de relaes sociais, no s em sociedades nacionais, como tambm na sociedade mundial (IANNI, 2005, p.02).

O racismo, nos dias atuais, vem aliado ao quadro de pobreza produzido pela nova roupagem da organizao econmica internacional no quadro do desenvolvimento capitalista.

A consolidao dos monoplios, o aumento da polarizao social (no apenas nos capitalismos de periferia, mas tambm nos centros metropolitanos), a universalizao do fenmeno da pobreza, da degradao do trabalho humano e do meio ambiente, o ressurgimento do racismo (grifo nosso) e a crescente desigualdade internacional que abre um abismo entre os pases industrializados e as naes que compem 80% da populao mundial so tantas outras provas, inquestionveis e contundentes, que

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atestam a vigncia dos diagnsticos e prognsticos fundamentais formulados por Marx e Engels nos longnquos dias de fevereiro de 18481. (BORON, 2001, p.21-22)

O ressurgimento de grupos racistas, na Europa, de grupos nacionalistas radicais, pelo mundo, um exemplo de como a questo do racismo se apresenta como um problema do atual estgio do capitalismo. A chegada de contingentes enormes de seres humanos oriundos de pases pauprrimos, especialmente africanos, se tornou uma constante em pases europeus. Estes ocupam nos novos pases a periferia do sistema, morando em espaos marginais ou em construes precrias e ocupando os subtrabalhos e subempregos. Com o crescimento do desemprego nestas sociedades, surge um novo olhar para os imigrantes: o olhar do individualismo e da competio capitalista. Em artigo recente sobre a relao entre etnia e nao, o historiador Eric Hobsbawn associa o crescimento do racismo na Europa ao aumento da falta do emprego.A grande base social dos movimentos racistas europeus, como a Frente Nacional Francesa, parece estar na classe trabalhadora nativa, os principais ativistas desses movimentos parecem ser jovens da classe trabalhadora skinheads e similares. Uma longa era de emprego pleno ou praticamente garantido chegou ao fim, na dcada de 1970 na Europa Ocidental, e no fim da dcada de 80 na Europa Central e Oriental. Desde ento, a Europa tem vivido novamente em sociedades com desemprego em massa e insegurana no trabalho. (HOBSBAWN, 2000, p.279)

Uma das formas atuais de ampliao do capital a explorao da maisvalia dos imigrantes oriundos dos pases pauprrimos. O consumo da fora de trabalho a valores bem inferiores do seu valor, ou seja, o necessrio para a sua reproduo, o paraso dos sonhos para o capitalista. Nos dias atuais, o capitalista dos pases centrais no precisa ir, necessariamente, at os pases perifricos, atrs de fora de trabalho com menor valor. Esta vai em sua direo. Subtraindo os exageros, o capital se utiliza, muitas vezes, de forma concomitante, das duas situaes.

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Em fevereiro de 1848, Marx e Engels lanam o Manifesto Comunista.

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No se tem o objetivo, aqui, de analisar a questo da imigrao estrangeira nos pases centrais. Este um fenmeno interessante para ser aprofundado. No entanto, parece mister a viso de que, em decorrncia da opo natural do capitalismo pela ampliao do capital e no pelas pessoas, esses fenmenos de justificao, para a excluso do outro, se tornem quase naturais. No de se estranhar, tambm, a presena do fenmeno do racismo dentro da prpria classe dos trabalhadores. Episdios recentes como as revoltas populares na Bolvia (2005) e as revoltas de moradores das periferias da Frana (2005) demonstram a atualidade da questo racial. As revoltas ocorridas em 2005 na Frana evidenciam como o fenmeno racial avana no momento em que agoniza a questo social. A falta de polticas pblicas e o descaso com as populaes pobres e, em especial, descendentes de imigrantes oriundos da frica, chegam aos limites da razoabilidade. Numa atitude de desespero, pela falta de segurana, de moradia digna e de emprego, eles protestam. Segundo RAMONET (2005), em artigo para a Agncia Carta Maior, nas origens da revolta social na Frana ocorrida durante novembro de 2005, est presente a associao do componente racial ao drama social. Desta forma, a discriminao tnico-racial vai-se consolidando nestas sociedades modernas como discriminao territorial. As suas vtimas ficam merc de migalhas do ausente poder pblico. Nas 750 zonas urbanas onde reinam a pobreza e a insegurana vivem cinco milhes de habitantes. Essas zonas urbanas so compostas por bairros muito deteriorados, edificados na dcada de 1960, nas quais 5 milhes de habitantes dos 61 milhes da Frana sobrevivem em edifcios de mais de nove andares, tidos como exemplo de favela vertical. Desses 61 milhes a maioria no pode votar. A revolta dos jovens marginalizados da periferia de Paris estendeu-se at alcanar quase todas as grandes cidades da Frana, pas que estava propondo para o restante da Europa um modelo para a integrao dos imigrantes e um exemplo de abordagem social da pobreza. Essa panela de presso foi criada pela inoperncia de diversos governos que se recusaram a ver a gravidade dos problemas de todo tipo econmicos, culturais, religiosos e tnicos, abandonando, assim, essas regies.

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As classes mdias abandonaram paulatinamente esses subrbios e ali, como em novos guetos, foram se concentrando as minorias tnicas visveis, ou seja, a populao magrebina e subsaariana. Visto que os imigrantes extra-comunitrios no podem votar, exceto se adotam a nacionalidade francesa, todos esses subrbios foram esquecidos pelos prefeitos locais, na medida em que no representam nenhum ganho eleitoral. (...) Em muitos deles no resta nenhuma representao do Estado. Os servios pblicos ou semipblicos correios, delegacias, hospitais, colgios, bancos, linhas de nibus... esto se retirando como conseqncia da poltica neoliberal de reduzir os oramentos pblicos e o nmero de funcionrios. Com freqncia, muitos comrcios privados bares, supermercados, farmcias adotam a mesma atitude, devido ao aumento da insegurana. (RAMONET, 2005)

Segundo analistas, uma das grandes queixas dos jovens descendentes de africanos a discriminao no mercado de trabalho.

Os habitantes dessas periferias, onde vivem populaes originrias do Magreb (Marrocos, Arglia, Tunsia) e de outras partes da frica, afirmam ser vtimas de discriminao no mercado de trabalho. E se dizem frustrados, sobretudo os jovens, diante da falta de perspectiva para o futuro. O ndice de desemprego elevadssimo nessas periferias, de acordo com dados do prprio governo-- 21%, o dobro da mdia nacional. Entre os jovens, o ndice chega a atingir cerca de 40%, de acordo com o recente relatrio do Observatrio Nacional de Zonas Urbanas Sensveis, divulgado em outubro pelo Ministrio do Trabalho e da Coeso Social.(...) De acordo com outra fonte oficial, o Instituto Nacional de Estatstica e de Estudos Econmicos, a taxa de desemprego de pessoas que cursaram a universidade de apenas 5%. Mas no caso de diplomados de origem do norte da frica os pases do Magreb, ex-colnias francesas, o ndice atinge 26,5%. (FERNANDES, 2005)

Boaventura Souza Santos, ao analisar os conflitos franceses, afirma a relao entre a questo de classe e a questo tnico/racial, no interior da produo de desigualdades sociais, prprias do capitalismo.Estes fatos podem nos ajudar a ter uma idia da magnitude dos problemas para que as sociedades europias devam se preparar. Em geral, eles decorrem da intensificao recproca de dois fatores de hierarquizao social: a classe social e a raa ou a etnia. As sociedades capitalistas assentam na desigualdade social, mas esta tende a ser menor quando so levadas a srio as polticas de igualdade de oportunidades, assentes nos sistemas nacionais de educao, sade e segurana social. (SANTOS, 2005)

A revolta de Paris, que tem como protagonistas jovens, em sua grande maioria descendentes de africanos, mais um alerta, um sinal de que necessrio pensar em novas formas de organizao da vida, nas quais prevalea a lgica do humano e no a do mercado. mais uma comprovao

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de como o racismo continua a ser um fenmeno presente no mundo atual. Esse dado da realidade foi tambm captado pelo saudoso cientista social IANNI:

Mais uma vez, no incio do sculo 21, muitos se do conta de que est novamente em curso um vasto processo de racializao do mundo. O que ocorreu em outras pocas, a comear pelo ciclo das grandes navegaes, descobrimentos, conquistas e colonizaes, torna a ocorrer no incio do sculo 21, quando indivduos e coletividades, povos e naes, compreendendo nacionalidades, so levadas a dar-se conta de que se definem, tambm ou mesmo principalmente, pela etnia, a metamorfose de etnia em raa, a transfigurao da marca ou trao fenotpico em estigma. Sim, no sculo 21 continuam a desenvolver-se operaes de limpeza tnica, praticadas em diferentes pases e colnias, compreendendo inclusive pases do primeiro mundo; uma prtica oficializada pelo nazismo nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-45), atingindo judeus, ciganos, comunistas e outros; em nome da civilizao ocidental, colonizando, combatendo ou mutilando outras civilizaes, outros povos ou etnias. A guerra de conquista travada pelas elites governantes e classes dominantes norte-americanas, em 2002 no Afeganisto, e em 2003 no Iraque, pode perfeitamente ser parte da longa guerra de conquistas travadas em vrias partes do mundo, desde os incios dos tempos modernos, como exigncias da misso civilizatria do Ocidente, como fardo do homem branco, como tcnicas de expanso do capitalismo, visto como modo de produo e processo civilizatrio. (IANNI, 2005, p.02)

1.1. QUESTO RACIAL E RACISMO NO BRASIL

O objetivo desta pesquisa no o de fazer um levantamento minucioso sobre a questo do negro no Brasil. Todavia, pretende-se destacar alguns elementos importantes para a compreenso da mesma, tendo em vista o caminho a ser percorrido na presente anlise. Esses elementos sero fundamentais para a reflexo das contradies presentes no debate de instituio de polticas focalizadas para a populao negra brasileira. Embora o entendimento do racismo enquanto um dos subprodutos da sociedade de classes no seja predominante na atual literatura sobre a temtica, importantes estudos no Brasil trouxeram reflexes nesta perspectiva, destacando-se entre eles, Florestan Fernandes (1978), Octvio Ianni (1987), Clvis Moura (1994), Jacob Gorender (1991), Alfredo Bosi (1992) e Julio Jos Chiavenatto (1980).

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Esses estudos comprovam que o racismo um elemento constitutivo da sociedade brasileira, embora um dos mitos fundadores da nao brasileira tenha sido o de negao do racismo. A crena da convivncia cordial e harmoniosa das raas/etnias que compuseram a sociedade brasileira, aliada construda crena da inferioridade do negro, consolidou um quadro de desigualdade racial estrutural no pas. Deste modo, o racismo, aqui, toma formas especiais; ele negado, velado. Como disse Florestan (FERNANDES, 1972, P.42): o brasileiro tem preconceito de ter preconceito.

No entanto, preciso ressaltar que a conscincia da existncia do racismo tem aumentado na sociedade brasileira. A interveno do movimento social negro, e os recentes estudos e pesquisas tm demonstrado ao conjunto da sociedade que a dinmica tnico-racial tem infludo de forma decisiva no quadro de excluso social do pas. Segundo o IBGE2 em 2000, cerca de 76 milhes de pessoas (cerca de 40%) se assumem oficialmente como pretas e pardas, o que faz com que o Brasil tenha o maior contingente de afrodescendentes do mundo. A sua condio de excludos evidenciada em todos os dados de anlise da realidade brasileira. Segundo o Atlas Racial Brasileiro (2005), os negros so maioria entre os pobres (65%), maioria entre os indigentes (70%), em uma srie histrica bastante estvel, com uma ligeira tendncia de aumento da proporo de negros. O relatrio da ONU (2001) sobre os indicadores sociais do Brasil reafirma o quadro:

Como se comentou, h evidente desigualdade de condies econmicas entre domiclios estratificados segundo a cor do chefe da famlia. Pelos dados mais recentes, as famlias cujos chefes so no-brancos apresentam renda mdia 56% menor que a das famlias chefiadas por brancos. Na faixa da indigncia, os negros correspondem a 69% da populao ali localizada e na faixa da pobreza correspondem a 64%. A diferena na incidncia da pobreza entre brancos e negros est associada renda mdia mensal dos dois grupos que, segundo estudo recente do IPEA, de R$ 400,00 e R$ 170,00, respectivamente. Com relao apropriao de renda a diferena tambm significativa: a populao banca do pas , em mdia, 2,5 vezes mais rica que a populao negra. (ONU - Common Country Assessment . Brazil, 2001)

Populao total: 169.872.856 sendo Branca: 91.298.042 (53,75%); Parda: 65.318.092 (38,45%); Preta: 10.554.336(6,21%); Amarela: 761.583 (0,44%); Indgena: 734.127(0,43%). IBGE Censo 2000

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As desigualdades tambm se apresentam na rea da educao. o que pode ser visto, por exemplo, nos dados referentes ao analfabetismo funcional (menos de 3 anos de estudo). O percentual de analfabetos funcionais entre os brancos de 40%, enquanto entre os negros esse percentual de 55%. A desigualdade pode ser observada tambm na relao entre anos de estudos: 19% da populao branca tem mais de 11 anos de estudos contra 7,5% dos negros. Quanto ao nvel de escolaridade, o nmero de brancos com nvel superior completo 5 vezes maior que o nmero de negros (HENRIQUES, 2004). Evidenciando este quadro, chama ateno recente pesquisa sobre a situao do negro brasileiro realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Aplicadas). O quadro revela que a excluso social ainda mais grave entre os negros. Para exemplificar, dados referentes ao mercado de trabalho:O salrio mdio de um homem negro no Brasil no chega metade do que recebe um homem branco. Uma mulher negra tem rendimentos que s chegam a 30% do salrio de um homem branco. Os dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) mostram que, enquanto ser negro ajuda a piorar a situao social de uma pessoa, ser mulher e negra a pe na ltima linha social. A pesquisa Retratos da Desigualdade foi preparada pelo IPEA com base em nmeros da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (PNAD). Os dados salariais de 2003 mostram que a mdia de rendimentos de um homem branco chega a R$ 881,11. Na outra ponta, uma mulher negra recebe, em mdia, R$ 279,70. (...) Os dados mostram que 21% das mulheres negras que trabalham esto empregadas em servios domsticos e apenas 23% delas tm carteira assinada. J entre as mulheres brancas apenas 12,5% so empregadas domsticas e 30% delas tm registro na carteira. (JORNAL ESTADO DE SO PAULO, 2005)

Sem dvida, o racismo um fenmeno social presente de forma concreta na estrutura social brasileira, e a luta por sua superao pode constituir-se num elemento importante para a construo de novas dinmicas de relaes sociais. Entende-se aqui que este fenmeno no pode ser analisado de maneira isolada e descontextualizada, pois ele se manifesta dentro da dinmica das classes sociais. O racismo foi utilizado no pas para justificar a dominao de um grupo sobre outro, o que garantiu as bases para o nascedouro do capitalismo brasileiro. Sendo assim, a fim de serem construdas novas relaes sociais justas e igualitrias, a luta poltica necessariamente precisa espelhar a questo racial como um dado concreto e importante da

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realidade brasileira. Ao mesmo tempo, a luta de superao do racismo deve ter como horizonte a transformao do modelo de organizao vigente, que produziu e produz constantemente formas e ideologias de dominao. Assim sendo, torna-se fundamental aliar, na luta poltica, a dinmica racial de classe. Segundo Florestan Fernandes, o negro brasileiro, alm de enfrentar as barreiras sociais, enfrenta no dia a dia as barreiras raciais. Este se torna assim duplamente explorado, pela condio de classe e pela condio de negro, visto que, mesmo aqueles que conseguem superar as barreiras sociais se deparam, na seqncia, com as barreiras raciais. Portanto, a questo racial deve ser um componente importante a ser considerado na luta de classes no pas, bem como a questo de classe deve ser considerada na superao das desigualdades raciais.

De um lado, imperativo que a classe defina a sua rbita, tendo em vista a composio multirracial das populaes em que so recrutados os trabalhadores. Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigncias diante do capital. Todavia, h um acrscimo: existem trabalhadores que possuem exigncias diferenciais, e imperativo que encontrem espao dentro das reivindicaes de classe e das lutas de classes. Indo alm, em uma sociedade multirracional, na qual a morfologia da sociedade de classes ainda no fundiu todas as diferenas existentes entre os trabalhadores, a raa tambm um fator revolucionrio especfico. Por isso, existem duas polaridades, que no se contrapem mas se interpenetram como elementos explosivos a classe e a raa. (FERNANDES, 1989, p.61-62)

Na anlise do fenmeno do racismo, bem como na anlise da luta pela sua superao, preciso considerar que este est presente, inclusive, na classe dos trabalhadores, tendo em vista a eficcia da ideologia de dominao racial. O rompimento das barreiras sociais no necessariamente resolve as barreiras raciais. O caso americano um bom exemplo. Com as polticas de ao afirmativas, constituiu-se uma significativa classe mdia negra. No entanto, os negros da classe mdia continuam sentindo na prpria pele as barreiras raciais. Mesmo dentro das mesmas condies de trabalho, a mdia salarial dos negros inferior dos brancos. Por isto, a necessidade de aliar-se, na luta poltica pela superao do modelo de organizao vigente, luta contra todos os mecanismos de dominao, de explorao e de subjuno de um grupo sobre outro.

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1.2 IDEOLOGIA E A QUESTO RACIAL BRASILEIRA

O racismo, parte estruturante da sociedade brasileira, foi constitudo a partir de um conjunto de idias elaboradas pela elite economicamente dominante, a fim de justificar a escravido e a constituio de novas relaes sociais no Brasil, aps a abolio. Esse conjunto de idias vai compor dois movimentos ideolgicos, aqui denominados como ideologia de dominao racial e mito da democracia racial. O primeiro, para justificar a escravido; o segundo, para omitir os reflexos dessa escravido para o negro brasileiro e o quadro das desigualdades raciais no Brasil. preciso ressaltar que esses movimentos ideolgicos, em diversos momentos, atuam ao mesmo tempo. Sendo assim, o prximo passo deste trabalho ser levantar algumas pistas para a compreenso deste mecanismo ideolgico de dominao. Este entendimento ser importante para a anlise a ser realizada no decorrer deste trabalho sobre as possibilidades da Lei 10639/03, que tornou obrigatrio o ensino da Histria e Cultura Afro-brasileira, objeto deste estudo. Segundo Chau, algumas determinaes so importantes para a compreenso da noo da ideologia. A primeira determinao o seu carter de anterioriedade:

Um corpus de representaes e de normas que fixam e prescrevem de antemo o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. Por sua anterioridade, a ideologia predetermina e pr-forma os atos de pensar, agir e querer ou sentir, de sorte que os nega enquanto acontecimentos novos e temporais. (CHAU, 1980, p.24)

A segunda determinao, no menos central, o fato de estar a servio dos interesses de uma classe dominante:O corpus assim constitudo tem a finalidade de produzir uma universalidade imaginria, pois, na realidade, apenas generaliza para toda a sociedade os interesses e o ponto de vista particulares de uma classe: aquela que domina as relaes sociais. Assim, a produo desse universal visa no s o particular generalizado, mas sobretudo ocultar a prpria origem desse particular, isto , a diviso da sociedade em classes. (CHAU, 1980, p.24)

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Uma ideologia se torna hegemnica na sociedade quando no precisa mostrar-se, quando no necessita de signos visveis para se impor. hegemnica quando se de maneira espontnea flui como verdade igualmente aceita por todos (CHAU, 1980). Assim sendo, um dos seus pilares a sua apresentao coerente, graas a uma srie de lacunas e silncios:

nuclear na ideologia, que ela possa representar o real e a prtica social atravs de uma lgica coerente. A coerncia obtida graas a dois mecanismos: a lacuna e a eternidade. Isto , por um lado, a lgica ideolgica lacunar, ou seja, nela os encadeamentos se realizam no a despeito das lacunas ou dos silncios, mas graas a eles; por outro lado, sua coerncia depende de sua capacidade para ocultar sua prpria gnese, ou seja, deve aparecer como verdade j feita e j dada desde todo o sempre, como um fato natural ou como algo eterno. (CHAUI, 1980, p.25),

A partir das primeiras consideraes sobre ideologia apresentada por Chau, evidencia-se esta categoria como essencial para a compreenso das relaes raciais e sociais no Brasil. No h sentido analisar as idias racistas construdas no Brasil sem a compreenso do processo ideolgico dentro das relaes de dominao e de poder de uma classe sobre outra. Portanto, o entendimento de ideologia enquanto um sistema de idias que, ao mesmo tempo, reproduz a lgica de dominao do capital sobre o trabalho e oferece suporte cientfico para legitimar as aes decorrentes de tal lgica (FARIA, 2004, p.19) condio para a anlise proposta. Esse sistema de idias, suporte cientfico, os silncios e as lacunas vo sendo construdos aos poucos, tendo em vista a natureza do processo ideolgico.Se o carter principal do acontecimento poder situar-se com preciso nas coordenadas do espao e do tempo, o mesmo no se d com o processo ideolgico. Este no surge de improviso ou por acaso, de um dia para o outro. Sua matria-prima so idias afetadas de valores, e idias e valores se formam lentamente com idas e vindas, no curso da histria, na cabea e no corao dos homens. (BOSI, 1992, p.222)

Os colonizadores e, depois, a recente elite capitalista brasileira utilizaram-se de uma srie de idias para justificarem a escravido de africanos, bem como para manterem os negros margem das novas relaes sociais oriundas do trabalho livre. A ideologia de dominao racial gestada17

com o objetivo de justificar a escravido e para justificar o mtodo de administrao de escravos. Fora isto, esta vem compor as bases para as teorias que propunham a necessidade do embranquecimento da populao negra brasileira. Com maior ou menor sutileza, essas perduram ainda hoje e esto presentes em vrias esferas da vida nacional, especialmente na educao. Era fundamental para os colonizadores e para os mercadores de escravos uma justificativa para a naturalizao da escravido. Para tanto, os africanos e indgenas deviam ser compreendidos como seres inferiores e no civilizados. Segundo LEACH (1989, p. 63), desde o incio da expanso europia, os invasores tratavam os povos descobertos, do sul da frica e das Amricas, como seres pouco humanos. Instituam, assim, uma doutrina conveniente para a justificao da escravido, da explorao e do extermnio. A construo da ideologia de dominao racial envolve diversos setores da elite dominante. As igrejas catlica e protestante da poca, por exemplo, para legitimar a escravido e o trfico de africanos, utilizaram-se de uma interpretao bblica bastante duvidosa. Por esta, os africanos seriam um povo amaldioado, descendente de Cam, filho de No, que teria cometido um pecado grave. Cam teria visto seu pai nu. Alfredo Bosi afirma:

O fato que se consumou em plena cultura moderna a explicao do escravismo como resultado de uma culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo do dilvio para perpetuar a espcie humana. A referncia sina de Cam circulou reiteradamente nos sculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia catlica ou protestante se viu confrontada com a generalizao do trabalho forado nas economias coloniais. O velho mito serviu ento ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o trfico negreiro, e ao discurso salvacionista, que via na escravido um meio para catequizar populaes antes entregues ao fetichismo ou ao domnio do Isl. Mercadores e idelogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua punio como o evento fundador de uma situao imutvel. (BOSI, 1992, p.258)

No perodo colonial brasileiro, a igreja catlica da poca teve um papel fundamental, no sentido de constituir um grupo de idias que facilitassem a dominao do escravo pelo senhor. As notcias das revoltas negras na Amrica Central e os focos de resistncia em diversas regies do pas e, especialmente, a necessidade de ampliao dos lucros fizeram que alguns religiosos se

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aprofundassem na questo. Para estes, a escravido era necessria para o desenvolvimento do pas. Um destes tericos, o padre Andr Jos Antonil, afirmava: os escravos so as mos e os ps do senhor do engenho, porque sem eles, no possvel fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. (ANTONIL Cap. IX Livro I). Em 1700, publicado o Texto do padre Jorge Benci, Economia Crist dos Senhores no Governo dos Escravos, que tinha como objetivo ensinar aos proprietrios de escravos formas para ampliar os ganhos atravs de uma boa administrao de seus escravos. Para Benci, os castigos deveriam ser moderados e, aos poucos. Seu objetivo exposto j no incio do texto:

...tomei por assunto, e por empresa dar luz esta obra, a que chamo Economia Crist; isto , regra e modelo, por onde se devem governar os Senhores Cristos para satisfazerem s obrigaes de verdadeiros senhores. Parecem que cuidam muitos senhores que, por razo de senhorio, tm livre e absoluto domnio sobre os servos, como se fossem jumentos; de sorte que assim como o jumento nenhuma obrigao deve o senhor ao seu servo. Mas engano manifesto (...) porque tambm os senhores so servos dos mesmos que os servem. (BENCI, 1977, p.43)

Segundo LINS (2003), o padre Benci prope uma verdadeira pedagogia para o senhor do escravo. Com essa pedagogia, a escravido poderia se tornar mais lucrativa. Sendo assim, a doutrina crist se configuraria como um fermento ideolgico com o objetivo de transformar colonos em senhores; e os escravos, em disciplinados trabalhadores. Percebe-se, assim, que o padre Benci prope uma pedagogia de dominao do escravo: Haja acoites, haja correntes e grilhes, tudo ao seu tempo e com regra e moderao devida e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos? Porque as prises e aoites, mais de qualquer outro gnero de castigos, lhes abatem o orgulho e quebram os brios. (BENCI, 1977, p.50) Da, a clebre e conhecida teoria do colonialismo brasileiro: para o escravo, po, disciplina e trabalho.Mas que obrigaes pode dever o senhor ao servo? O mesmo Esprito Santo no-las dir; o qual distinguindo no Eclesistico o trato que se h de dar ao jumento e ao servo. Diz-se que ao jumento se lhe deve dar o comer, a vara e a carga: Cibaria et virga, et nus asino, e que ao servo se lhe deve dar o po, o ensino e o trabalho: panis, et disciplina, et opus servo. Deve-se o po ao servo, para que no desfalea, panis,ne

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succumbat; o ensino para que no erre, disciplina, ne erret; e o trabalho, para que se no faa isolente, opus, ne insolescat. (BENCI, 1977, p.50)

Ainda, segundo LINS (2003), o interesse da Companhia de Jesus no estava apenas relacionado ampliao do lucro dos senhores de engenhos, estava relacionado tambm a ampliao da sua prpria riqueza. Nesse perodo, a Companhia de Jesus acumulou uma grande fortuna. A preocupao com a administrao de escravo no se restringiu aos jesutas brasileiros. Este foi um debate presente naquele momento histrico, para alm das fronteiras brasileiras. Este debate pode ser observado nos escritos de Adam SMITH, apesar de defender o trabalho livre, em detrimento do trabalho escravo, visto que para ele a manuteno da fora de trabalho deveria ser feita pelo prprio trabalhador, e no pelo senhor do escravo.

... mas, tal como o lucro e xito do cultivo executado pelo gado depende muito de boa administrao desse mesmo gado, tambm o lucro e o xito da cultura executada pelos escravos depender igualmente de uma boa administrao desses escravos;. E, nesse aspecto, os plantadores franceses, como penso de ser do consenso geral, so superiores aos ingleses. (...) Esta superioridade tem-se traduzido especialmente na boa administrao dos seus escravos. (SMITH, 1983, p.137)

de se estranhar que em determinado momento histrico foi possvel aliar a viso escravista s idias liberais que defendiam a liberdade e a igualdade. Porm, a elite econmica, preocupada com a acumulao de capital, criou as idias para justificao dessa contradio.

Assim, para que pudesse conciliar a evidente contradio entre os ideais de liberdade e a economia escravocrata, os Estados Unidos tiveram que negar a condio humana dos negros, pois em uma sociedade fundada nos princpios de que todos os homens so iguais, a liberdade somente poderia ser negada aos no-humanos. (CASTELLS, 2002, p.74)

Esta anlise pode ser comprovada nas palavras do escritor norteamericano Gunnar MYRDAL:... politicamente os brancos eram todos iguais enquanto cidados livres. Livre competio e liberdade pessoal lhes eram asseguradas. Os estadistas do Sul e os

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seus escritores, martelavam nessa tese, de que a escravido, e s a escravido, produzia a mais perfeita igualdade e a mais substancial liberdade para os cidado livres na sociedade. ( in: BOSI, 1992, p.211)

No Brasil, uma das justificativas era a de que aqui os escravos eram melhor tratados do que os trabalhadores livres europeus, que amargavam jornadas de dezesseis a dezoito horas de trabalho. Em 1844, para defender o fim dos tratados econmicos com a Inglaterra, entre os quais, o que tratava do fim do trfico de negros, escreve o historiador baiano A.J. Mello de Moraes aos deputados: Um ingls trata cem vezes pior um criado branco e seu igual de que ns nossos escravos. (BOSI, 1992, p.210) A difuso de idias de justificao da escravido e da inferioridade dos negros tambm esteve muito presente no campo da cincia. No perodo vamos perceber uma srie de estudos cientficos com o objetivo de comprovar a inferioridade de determinados povos que, no Brasil, resultaram em teses como o da necessidade do embranquecimento da populao. Um dos estudos mais conhecidos o Ensaio sobre a Desigualdade das Raas Humanas, de Gobineau. A primeira parte desta obra foi publicada em 1855, sendo concluda em 1858. Em sua obra, afirma que as raas brancas e louras seriam superiores a todas as outras. Gobineau chegou a afirmar, aps ficar um ano no Brasil como representante diplomtico, que D. Pedro II era o nico membro da raa superior que encontrou no pas. BOUNICORE, em seu artigo Reflexes sobre o marxismo e a questo racial, cita a crtica feita por Lukcs em relao obra de Goubineau:

Segundo Lukcs, a obra de Gobineau lanou no mundo pela primeira vez um panfleto pseudocientfico realmente eficaz contra a democracia e contra a igualdade, baseada na teoria racista. O livro de Gobineau constituiu, ademais, a primeira tentativa ambiciosa de reconstruir toda a histria universal por meio da teoria racista, reduzindo a simples problemas raciais todas as crises da histria, todos os conflitos e as diferenas sociais. (BUONICORE, 2005)

Os estudos de Goubineau exemplificam muito bem a ao de cientistas em favor da manuteno de dominao de um grupo sobre outro, ao produzirem elementos significativos para a constituio de uma ideologia de dominao racial. A partir dos interesses econmicos de explorao, a figura21

do negro desconfigurada e o negro torna-se, assim, sinnimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pr-lgica (MUNANGA, 1986). A ampla campanha cientfica e governamental realizada no pas para o embranquecimento da populao foi mais um captulo do processo de constituio e gestao da ideologia de dominao racial brasileira. Para vrios idelogos, somente o embranquecimento da populao poderia fazer com que o pas se desenvolvesse, visto a viso da inferioridade dos negros. Os negros eram os responsveis pelo atraso da sociedade brasileira. Aliado a estas idias, o estado brasileiro investiu pesadamente em programas de imigrao de europeus. S no estado de So Paulo, para exemplificar, chegaram, entre 1890 e 1914, mais de 1,5 milhes de europeus, sendo que 64% destes, com a passagem paga pelo governo estadual. A albumina branca depura o mascavo nacional... (PEIXOTO, 1975 p.15) A frase representa bem o vis ideolgico presente na poltica oficial de branqueamento da populao.

A tese do branqueamento, apresentada por um dos seus formuladores no campo da cincia antropolgica, Joo Batista de Lacerda, afirmava a inferioridade de negros, ndos e a maioria dos mestios, mas esperava que mecanismos seletivos, operando na sociedade (a busca de cnjuges mais claros), pudessem clarear o fentipo no espao de trs geraes. (SEYFERTH, 2002, p.32)

A propalada inferioridade dos negros era apresentada por vrios estudiosos brasileiros. O prprio Nina Rodrigues, autor de um dos clssicos sobre os negros no Brasil, publicado em 1933, carrega em sua obra a referida viso.A raa negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestes servios nossa civilizao, por mais justificadas que sejam as simpatias de que cercou o resultante abuso da escravido, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turifrios, h de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. (RODRIGUES, 2004, p.21)

Aos poucos esse conjunto de idias e representaes se constituiu como tcnicas de dominao racial. Essas tcnicas tiveram como um dos fins a manuteno da estrutura social de dominao presente na sociedade brasileira. Assim, a doutrina de inferioridade do mestio, do negro e do ndio

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convinha camada dominante na sociedade brasileira, interessada na manuteno dos seus privilgios. Essa doutrina fez com que, at hoje, a desigualdade racial seja percebida, explicada e aceita socialmente como algo natural, justo e inevitvel (IANNI, 2004). O processo ideolgico de dominao faz com que os prprios negros acreditem em determinadas falcias ideolgicas, como, por exemplo, a de que o negro foi escravizado no Brasil porque era mais dcil do que o indgena, ou que o final da escravido no Brasil deu-se em virtude da ao da Princesa Isabel. Sabe-se que, quando a Lei de libertao dos escravos no Brasil foi assinada, isso j era um fato consumado. As lacunas ideolgicas fazem com que o negro e o conjunto da sociedade desconheam os diversos conhecimentos econmicos e tecnologias trazidas pelo africano ao pas. No raras vezes, os proprietrios se deparavam com escravos detentores de uma cultura e de conhecimentos econmicos mais desenvolvidos do que os seus. Desta forma, as idias de inferiorizao do negro, as representaes ideolgicas de dominao racial atingem plenamente seus objetivos.

Agora o escravo assume a sua feio definitiva na sociedade brasileira: estigmatizado como NEGRO. Negro marca, sinal de inferioridade que aumenta na medida do embranquecimento do pas, diminuindo o nmero de homens e mulheres pretos e aumentando o nmero de mulatos que aspiram branquido. A mistificao ideolgica, a partir da abolio, toma rumos menos retricos, porque j no preciso estimular teoricamente o embranquecimento do pas, que se faz naturalmente na medida em que se fecham as portas da sociedade de classes para a participao do negro, mantido inferiorizado pela herana da escravido. Agora fala-se em democracia racial, o novo mito que pretende esconder os conflitos em que se envolvem negros e mulatos, criando barreiras imperceptveis s vezes para as prprias vtimas. (CHIAVENATO, 1987, p.234):

Desta maneira, segundo BOSI (1992, p.272), o homem negro, com a abolio da escravatura:

... expulso de um Brasil moderno, cosmtico, europeizado. Para dentro: o mesmo homem negro tangido para os pores do capitalismo nacional, srdido, brutesco. O senhor liberta-se do escravo e traz ao seu domnio o assalariado, migrante ou no. No se decretava oficialmente o exlio do ex-cativo, mas este passaria a viv-lo como um estigma na cor de sua pele.

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O fim da escravido no resolveu a questo do negro brasileiro, que retirado de sua terra natal, agora, sem a condio da volta, se deparara com uma nao construda com o seu trabalho, que no o aceita. Assim, com o advento do trabalho livre, e conseqentemente, com a chegada do novo trabalhador migrante, o negro jogado prpria sorte, em um modo de organizao social que traz em seu cerne, a produo das desigualdades sociais e que lhe reserva apenas as migalhas. Todo esse fenmeno passou despercebido pela sociedade nacional. Tudo parece ser muito natural. A falta de uma reflexo sobre o momento histrico da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre pela sociedade brasileira fez com que avanassem as idias de inferioridade do negro. Desta forma, as

desigualdades raciais poderiam ser justificadas pelo fato de o negro apresentar caractersticas inferiores ao homem branco que aqui chegara. At os dias atuais, ainda perdura, por exemplo, a idia de que o negro seria menos disposto ao trabalho do que o homem branco. Esse quadro foi responsvel pela constituio de uma das grandes chagas do racismo brasileiro, a naturalizao da problemtica do negro, a naturalizao da desigualdade racial. Essa chaga alcanou os diversos setores da vida nacional, inclusive significativa parte dos setores sociais progressistas. Na seqncia, o fenmeno ideolgico da naturalizao chega ao seu auge com o mito da democracia racial. A partir destas reflexes iniciais, possvel perceber os reflexos de que essa construda ideologia de dominao racial trouxe para o conjunto da sociedade brasileira, para os trabalhadores, e especialmente, para os negros. O pior que ela continua a operar. Segundo IANNI:

Nesse sentido que essa ideologia uma tcnica de estigmatizao recorrente, reiterada em diferentes frmulas e verbalizaes, desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma. Sob vrios aspectos, essa ideologia racial transmitida por geraes e geraes, atravs dos meios de comunicao, da indstria cultural, envolvendo tambm sistemas de ensino, instituies religiosas e partidos polticos; e tem sido continuando a ser; um componente nuclear da cultura da modernidade burguesa. ( IANNI, 2005, p.04)

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O discurso ideolgico que naturaliza as desigualdades raciais no pas molda-se de acordo com as determinaes histricas e econmicas. A ideologia de dominao racial justificaria a escravido a partir das idias de inferioridade do negro, e o mito da democracia colocar-se-ia por debaixo do tapete, omitiri-se-ia a questo racial brasileira. Esses discursos so parte estruturante da ideologia de dominao de classe no Brasil. A ideologia de dominao racial deu guarida e alicerce para a constituio do mito da democracia racial, tendo em vista a tentativa de a elite brasileira esconder ou minimizar os efeitos da escravido e da insero do negro no capitalismo brasileiro. Sobre o mito, Florestan Fernandes apresenta a seguinte anlise:

Os mitos existem para esconder a realidade. Por isso mesmo, eles revelam a realidade ntima de uma sociedade ou de uma civilizao. Como se poderia, no Brasil colonial ou imperial, acreditar que a escravido seria aqui, por causa de nossa ndole crist, mais humana, suave e doce que entre outros lugares?...Por fim, como ficar indiferente ao drama humano intrnseco abolio, que largou a massa dos ex-escravos, dos libertos e dos ingnuos prpria sorte, como se eles fossem um simples bagao do antigo sistema de produo? Entretanto, a idia da democracia racial no s se arraigou. Ela se tornou um mores, como dizem alguns socilogos, algo intocvel, a pedra de toque da contribuio brasileira ao processo civilizatrio da Humanidade. (FERNANDES, 1989, p.17)

Para o xito da constituio do mito da democracia racial foi necessrio apagar a histria da resistncia dos negros escravido, bem como a forma e os efeitos da integrao do negro na sociedade organizada pelo trabalho livre. Talvez o mais perverso do mito tenha sido o fato da tentativa de negar ao negro brasileiro sua identidade como um povo portador de direitos. A negao da questo racial atua como a negao do prprio negro enquanto um dado da realidade brasileira. Assim, ainda hoje, um dos maiores desafios para o movimento social negro tem sido a dificuldade dos prprios negros de se autoidentificarem politicamente como negros. A idia da democracia racial brasileira ainda hoje atravessa as fronteiras do pas. Os estudos aqui realizados na dcada de 50, sobre a questo racial, financiados pela UNESCO, tinham a motivao de averiguar como era possvel a boa convivncia entre todas as raas. No entanto, as pesquisas apontaram

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para a falcia de tal mito. Para constituir o mito, o Estado brasileiro omitiu dos recenseamentos a composio tnico-racial da populao. Nos

recenseamentos demogrficos realizados em 1900, 1920,1960 e 1970, o quesito cor foi omitido. No sculo XX o quesito aparece no Censo de 1950 e a partir do censo de 1980, em virtude da reivindicao do movimento social negro. Neste sentido, outro fato tambm chama a ateno. O governo, atravs de Decreto de 14 de dezembro de 1890, assinado por Rui Barbosa, que na ocasio era Ministro da Fazenda, e na Circular n. 29, de 13 de maio de 1891, determina a queima dos documentos relacionados escravido no pas. Assim, com o esquecimento das mazelas da escravido seria possvel constituir uma nao em que todos os povos poderiam conviver fraternalmente e avanar nos ideais liberais de igualdade, fraternidade e liberdade.Tratava-se de apagar a memria histrica das gentes a funesta instituio. Era um modo de tornar ainda mais nobre o gesto da abolio e estabelecer a fraternidade, solidariedade e comunho dos brasileiros. (...) A conscincia liberal dos donos do poder encontrava uma soluo simples, sublime como o gesto da abolio? Queimamse os documentos para abolir os fatos. (IANNI, 2004, p.112)

Outro mecanismo integrante do mito da democracia racial foi sem dvida, a constituio de uma histria oficial onde as lutas de resistncia dos negros escravido e as revoltas e lutas populares foram reduzidas e descaracterizadas. Sendo assim, a idia da democracia racial, a omisso das desigualdades raciais no pas, a negao do negro enquanto um dado real, o silncio sobre a histria de resistncia e de identidade poltica e cultural do negro brasileiro contriburam com a constituio de uma forte ideologia racial no Brasil. Assim, a luta contra o racismo e a luta pela superao das desigualdades raciais e sociais tambm uma luta contra-ideolgica. Desta forma torna-se necessrio o restabelecimento de verdades, o preenchimento de lacunas e a superao de vises ideolgicas da questo do negro no Brasil. A superao, por exemplo, da idia de que o fim da escravido se deu por uma vontade pessoal de um governante, viso que desconsidera o movimento da histria, o jogo econmico entre pases, entre grupos dominantes nacionais, a26

resistncia persistente dos negros, a ao de grupos abolicionistas. Segundo BOSI (1992, p.116), nenhum regime de cativeiro, em parte nenhuma, foi extinto sem contraste, por obra espontnea dos senhores: as fugas e rebelies dos negros, a luta de grupos abolicionistas e a ao final do Estado foram, em todos os casos, determinantes. As oligarquias resistiram enquanto puderam. A passagem do negro da sociedade escravocrata para a sociedade do trabalho assalariado precisa ser melhor compreendida. A sada do negro brasileiro do trabalho escravo e a sua insero na nova ordem fizeram com que aumentasse ainda mais a carga negativa a seu povo. Jogado prpria sorte, (FERNANDES, 1987, p. 57) o negro se deparou com condies de trabalho to duras e impiedosas como antes. Os que no recorreram migrao para as regies de origem, repudiavam o trabalho livre que lhes era oferecido, porque enxergavam nele a continuidade da escravido, sob outras formas. Assim sendo, a abolio no resolveu a questo do negro brasileiro. Por um lado, a nova estrutura de organizao social expulsa o negro e por outro, propicia as condies para a vitria ideolgica do mito de sua inferioridade. A juno destes dois fatores, as condies objetivas e subjetivas do o fermento para o drama que o negro continuar a enfrentar no Brasil. Como afirmou FERNANDES (1989, p.57) A abolio pela via oficial no abria nenhuma porta fechavam todas elas. Esse quadro mostra a importncia da questo racial para a anlise da realidade brasileira. Negar a questo racial no Brasil negar o movimento da histria. No h possibilidade de realizar uma anlise do capitalismo brasileiro como uma totalidade histrica, sem passar pela anlise e contextualizao da questo racial como uma das determinaes do real. Como visto at aqui, o racismo um fenmeno constitutivo da sociedade brasileira que se desenvolveu dentro da dinmica da sociedade de classes e utilizado como forma de dominao a partir dos interesses econmicos da classe dominante. O racismo tem como pano de fundo uma construo ideolgica de justificao, classificao e naturalizao, a fim de manuteno de privilgios de um grupo sobre outro. No Brasil, cruzaram-se dois movimentos ideolgicos, o da ideologia da dominao racial, que ao difundir idias de inferioridade do negro justificava a escravido e o mito da democracia racial que ao negar a dura realidade do negro brasileiro naturalizou as desigualdades raciais.27

A superao da ideologia de dominao racial um estgio necessrio para o conjunto dos trabalhadores comprometidos com a superao do modo atual de produo. No h como negar que esse um dos mecanismos ideolgicos que d sustentabilidade atual estrutura social da sociedade brasileira. Os mitos da inferioridade do negro e da democracia racial, sem sombra de dvida, so mitos fundadores da sociedade brasileira. Desta maneira, a luta pela alterao do modo capitalista de organizao social deve levar em conta a importncia desse fator, um fenmeno concreto e estruturante da sociedade brasileira. Sendo assim, a superao da ideologia de dominao racial torna-se um estgio extremamente necessrio na luta pela superao do atual sistema de organizao da sociedade brasileira. Este entendimento fundamental para este trabalho. A Lei 10639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira pode-se configurar como uma possibilidade na perspectiva da superao desses mecanismos ideolgicos que do sustentao s desigualdades raciais e sociais no Brasil. O desafio deste estudo, a partir do cenrio apresentado at aqui, ser o de averiguar outras determinaes e outros movimentos presentes no debate da chegada da nova legislao no Estado brasileiro, a fim de averiguar em que medida esta e, por conseqncia, as polticas afirmativas para o negro brasileiro contribuem ou obstaculizam a luta pela superao das desigualdades sociais.

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CAPTULO II - O CONTEXTO EM QUE AS POLTICAS AFIRMATIVAS PARA NEGROS CHEGAM AO ESTADO BRASILEIRO

Neste captulo pretende-se analisar com mais cuidado as contradies presentes no debate da insero de polticas afirmativas na sociedade brasileira, a fim de que elas possam jogar luzes no objeto deste trabalho, a Lei 10639/03, que tornou obrigatrio o ensino da histria e cultura afro-brasileiras nos currculos dos estabelecimentos de ensino da educao bsica. Esta opo metodolgica parte do pressuposto de que a assinatura da Lei 10639/03 est no bojo do debate da implantao das polticas afirmativas na educao, conforme compreendem os seus defensores. Para tanto, torna-se necessrio ir um pouco mais a fundo para tentar compreender, captar o movimento dessa nova legislao, dentro do movimento das vrias determinaes do atual momento histrico,

especialmente as determinaes econmicas. Sendo assim, o presente captulo trar algumas reflexes sobre o cenrio do nascedouro da Lei 10639/03, a partir de um olhar crtico sobre os documentos e propostas dos organismos internacionais e a interveno do movimento social negro, nesta temtica. As primeiras impresses do conta de que as polticas afirmativas esto ligadas ao e reivindicao dos movimentos sociais, especialmente do movimento social negro. Porm, contraditoriamente, essas polticas ganham espao, ocupam terreno, no momento em que as idias liberais decorrentes da reorganizao do capital avanam. Alm disso, percebem-se simpatia e nfase significativa de organismos internacionais (Banco Mundial, ONU e UNESCO) instituio de polticas focalizadas ou compensatrias, respeitando-se a as contradies, as diferenas presentes nesses organismos. Sendo assim, atravs da anlise de documentos desses organismos, vai-se buscar a relao de suas propostas com a chegada das polticas afirmativas no Estado Brasileiro.

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2.1. O DISCURSO E A AO DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS EM RELAO POBREZA O Banco Mundial, juntamente com o Fundo Monetrio Internacional, tmse constitudo como os principais atores da consolidao da nova ordem econmica internacional. Vrios autores vm estudando a sua ossatura e a sua interveno dentro da comunidade internacional. No o objetivo de este trabalho aprofundar essa questo. Todavia, pretende-se fazer um recorte das propostas do Banco Mundial relacionadas ao combate pobreza e aos grupos historicamente discriminados, e s propostas relacionadas educao, a fim de compreender o encadeamento delas com a ordem financeira internacional. Esse destaque do Banco Mundial dentro do cenrio internacional tem-se consolidado, a partir dos anos 80, com a crise de queda de lucros do grande capital e com o endividamento dos pases perifricos.

Nos anos 80, a ecloso da crise de endividamento abriu espao para uma ampla transformao do papel ento desempenhado pelo Banco Mundial e pelo conjunto dos organismos unilaterais de financiamento. Estes passaram a figurar como agentes centrais de gerenciamento das precrias relaes de crdito internacional, e o Banco Mundial ganhou importncia estratgica na reestruturao econmica dos pases em desenvolvimento por meio de programas de ajuste estrutural. De um Banco de desenvolvimento, indutor de investimentos, o Banco Mundial tornou-se o guardio dos interesses dos grandes credores internacionais, responsvel por assegurar o pagamento da dvida externa e por empreender a reestruturao e abertura dessas economias, adequando-as aos novos requisitos do capital globalizado. (SOARES, 1996, p. 20)

No entanto, as alteraes realizadas no interior do Banco Mundial no mudaram o eixo central de suas polticas macroeconmicas (SOARES, 1996). Apesar da nfase dada, ao combate pobreza, sobretudo a partir de 1992, o Banco no questiona o carter excludente das polticas de ajuste. Suas propostas se restringem ao financiamento de programas sociais

compensatrios, voltados para as camadas mais pobres da populao e destinados a atenuar as tenses sociais geradas pelo ajuste, dado que, como afirma BORON:

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...governos de pases centrais e suas autoridades monetrias e financeiras, incluindo naturalmente os presidentes dos bancos centrais, que, por um lado, elaboram refinados discursos convocando o combate pobreza, mas, por outro, promovem a adoo de polticas que geram e reproduzem esta pobreza quase sem limites. (BORON, 2001, p.206)

Deste modo, o discurso e os programas de combate pobreza tornamse ineficazes, uma pea de fico, visto que no atacam as reais causas do enorme quadro de excluso e de miserabilidade que tm aumentado de forma assustadora no mundo. O sistema capitalista tem-se configurado como tragdia para a humanidade. A opo por esse discurso, e por polticas focalizadas para os mais pobres, segundo WARDE e HADDAD, sempre fizeram parte da estratgia dos organismos financeiros internacionais.

Por orientao dos organismos financeiros internacionais, primeiro deve vir o ajuste, para que os pases se preparem para a integrao econmica, depois as reformas de estado, para que a integrao seja de longo prazo; ao termo do processo, os direitos sociais (se ainda houver a quem destina-los!). Nas duas primeiras fases, quando sobrevm as conseqncias sociais dos impactos econmicos, as polticas devem ser assistenciais e compensatrias. (TOMMASI; WARDE; HADDAD, p.11, 1996).

Essa preocupao dos organismos internacionais financeiros com o combate pobreza est decisivamente relacionada ao agravamento da crise social, o que poderia colocar em risco os seus princpios estratgicos das condies favorveis acumulao do capital e de manuteno da ordem econmica atual. Para amenizar o resultado dos ajustes estruturais propostos pelo FMI e Banco Mundial e, ao mesmo tempo, administrar possveis insatisfaes populares, eles assumem, em suas propostas, objetivos de reduo da pobreza e da necessidade de instituio de fundos especficos para a implementao de polticas especiais. No quadro das desigualdades geradas pela ordem capitalista, tais propostas, quando muito, tm efeito paliativo, e negam, por princpio, a origem dessas desigualdades e da pobreza delas decorrentes.

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No tocante ao iderio neoliberal, sabe-se que ele busca justificar algumas das condies materiais do capitalismo atual, especialmente o desemprego estrutural, dissimulando o fato de serem formas contemporneas de explorao e de dominao. Como estratgia de controle da tenso social ante esse quadro foram propostas medidas paliativas que favorecessem o ingresso de amplas parcelas populacionais no processo societrio de incluso perversa ou de excluso, compreendidas como fazendo parte da lgica interna do capitalismo. (VALENTE, 2003, p.168)

Segundo o Boletim Periscpio da Fundao Perseu Abramo (agosto 2003), essa preocupao pode ser observada no ltimo livro de John Willianson, considerado o pai do Consenso de Washington3, publicado em 2003: After the Washington Consensus Restarting Growth and Reform in Latin Amrica. Ao fazer uma anlise da atuao do Banco Mundial nos pases da Amrica Latina, Willianson atribui os resultados negativos ao fato de os pases no terem completado o conjunto das reformas propostas pelo Banco. Sendo assim, os princpios que nortearam as reformas devem ser mantidos. No entanto, segundo o economista, um aprendizado com a dcada de noventa foi que apenas o crescimento econmico no leva diminuio da pobreza e da desigualdade.

O que o livro tenta responder porque o crescimento econmico, a estabilidade e os ndices sociais da Amrica Latina tiveram resultados to decepcionantes. A resposta que as reformas implementadas na regio ou foram incompletas, ou inconsistentes ou ocorreram em uma ordem no satisfatria. Como exemplo o autor destaca que a reforma do mercado de trabalho foi negligenciada em muitos pases, fazendo aumentar o trabalho informal; a ateno quanto reforma fiscal foi incompleta, pois os pases onde os dficits foram eliminados no aproveitaram as oportunidades para alcanar supervits que os preparassem para os tempos ruins; o fortalecimento das instituies, como a adoo de normas para o banco central independente, descentralizao responsvel em termos fiscais, modernizao na mquina de fiscalizao de impostos, uma ambiciosa reforma judicial nos processos, e reforma educacional, teriam sido negligenciados na maioria dos pases, com exceo do Chile. Desse modo, a nova agenda no uma denncia da agenda anterior, ao contrrio, a nova agenda deve ser uma concluso daquela. (FUNDAO PERSEU ABRAMO, 2003)

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Consenso de Washington: Em novembro de 1989, reuniram-se na capital dos Estados Unidos funcionrios do governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados - FMI, Banco Mundial e BID - especializados em assuntos latino-americanos. O objetivo do encontro, convocado pelo Institute for International Economics, sob o ttulo "Latin American Adjustment: How Much Has Happened?", era proceder a uma avaliao das reformas econmicas empreendidas nos pases da regio. Para relator a experincia de seus pases, tambm estiveram presentes diversos economistas latino-americanos. s concluses dessa reunio que se daria, subseqentemente, a denominao informal de "Consenso de Washington (BATISTA, 1994, p.5).

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Para Wiillianson, torna-se necessria a constituio de uma agenda social, a fim de tornar o pobre menos pobre. Porm, esta agenda deve estar integrada aos programas de ajuste fiscal e de preveno de crises econmicas. Essa viso parece ir ao encontro das propostas apresentadas pelo Banco Mundial ao governo brasileiro. No dia 07 de julho de 2003, tcnicos do Banco Mundial, ao anunciarem emprstimos de US$ 8 bilhes para o pas, apresentaram para o governo brasileiro, ao Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (CNDES), o documento Brasil: Justo, Competitivo e Sustentvel, um relatrio com as proposies do Banco Mundial para o pas. Segundo os tcnicos do Banco, o documento Brasil: Justo, Competitivo e Sustentvel, escrito s vsperas das eleies presidncias de 2002, um instrumento importante para a definio de polticas para os novos governantes do pas.

Este volume contm a Viso Geral de um conjunto de textos sobre polticas pblicas setoriais preparadas pelo Departamento do Brasil do Banco Mundial durante 2002 como uma contribuio ao debate sobre as polticas pblicas a serem definidas pelos novos governos federal e estaduais a serem eleitos em outubro de 2002. O objetivo inicial era agregar as anlises e as sugestes de estudos anteriores e da experincia do Brasil, bem como a experincia internacional relevante, para apresentar o contedo de forma sinttica aos novos governos (...) Esta Viso Geral, preparada em novembro de 2002, resume algumas possveis opes e sugestes para apoiar o novo governo brasileiro na promoo de avanos ainda maiores para tornar o Brasil um pas ainda mais justo, sustentvel e competitivo. O objetivo deste trabalho no fazer uma avaliao completa do progresso substancial do desenvolvimento do Brasil, e sim abordar mais especificamente alguns desafios enfrentados nas reas onde a experincia pode ser mais relevante. (BANCO MUNDIAL, 2002, p.V)

Embora haja a preocupao do Banco Mundial com a pobreza, percebe-se, no documento, que ele continua com a mesma viso e as mesmas propostas em relao s polticas macroeconmicas que, dia aps dia, agravam o quadro de pobreza mundial. No documento Brasil: Justo, Competitivo e Sustentvel, os representantes do Banco Mundial, entre os pontos principais, propem a continuidade das polticas de ajuste fiscal, a elevao do supervit primrio, o fim da gratuidade do ensino universitrio

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pblico, a reviso dos direitos trabalhistas, a autonomia do Banco Central e a reforma da previdncia. Para manter a estabilizao da economia e elevar o supervit primrio, o Banco prope uma srie de propostas de cortes oramentrios, especialmente na rea das polticas sociais. Paradoxalmente, sero os pobres e consequentemente, a maioria dos negros os atingidos preferenciais com essas medidas. O documento prope cortes na rea da educao, da sade e da previdncia. Alm de ainda propor o aceleramento do processo de privatizao no pas, que, segundo o Banco, tornou-se muito lenta, prope tambm a flexibilizao de direitos trabalhistas, ou seja, a reduo das polticas sociais e de direitos da populao pobre. Em relao educao, o documento tece uma srie de consideraes e proposies, especialmente relacionadas ao investimento no capital humano. Estas sero apresentadas em tpico especfico, na seqncia deste trabalho. No momento, pretende-se ir um pouco mais a fundo nas propostas do Banco Mundial relacionadas pobreza e questo racial. No documento, o Banco Mundial reconhece o alto quadro de pobreza no pas. No entanto, advoga uma melhoria na qualidade de vida da populao brasileira, em virtude da atuao e do ajuste fiscal realizado pelo governo anterior. O Banco admite que, com o ajuste econmico, os recursos para as polticas sociais ficam escassos, e devem, portanto, ser aproveitados com maior eqidade, ou seja, devem ter como destino os mais pobres. Para aumentar os recursos para a proteo social, no entanto, o Banco prope a ampliao dos ajustes atravs da reviso do financiamento da universidade pblica, e da reforma da Previdncia do setor pblico, entre outras. Para o Banco Mundial, uma das vias do desenvolvimento o investimento no capital humano. Esse discurso, intrinsecamente relacionado ao combate pobreza, est presente em quase todos os documentos do Banco.

Investir em pessoas significa construir capital humano. Investimentos em pessoas podem ser considerados estoques pessoais de ativos incorporados individualmente que refletem a capacidade das pessoas de produzirem bem-estar para si prprias e para suas famlias. Entre esses ativos figuram sade, educao, treinamento, vivncia e capacidade inata. Os ativos do capital humano podem esgotar-se caso um indivduo

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ou uma famlia enfrente excessivo risco econmico: famlias com instabilidade de renda podem ver-se obrigadas a retirar seus filhos da escola, e trabalhadores sem cobertura previdenciria podem retardar a procura por assistncia mdica. O capital humano tambm desperdiado quando pessoas, embora qualificadas para um emprego ou promoo, so rejeitadas por discriminao racial. (BANCO MUNDIAL, 2002, p.25)

Assim, temos o ser humano extremamente tomado pela lgica mercantil da produtividade. O investimento no capital humano nada mais do que o investimento na ampliao do capital do capitalista4. A questo racial abordada nesse documento Brasil: Justo, Competitivo e Sustentvel, associado temtica do combate pobreza. Embora os textos se apresentem genricos, com algumas imprecises tericas, percebe-se neles a compreenso da questo racial brasileira como um fator importante. Os representantes do Banco chegam at a incorporar, em seu documento, a crtica realizada pelo movimento social negro ao mito da democracia racial no pas.

A heterogeneidade racial, combinada com os limites difusos existentes entre os grupos raciais, tem induzido muitas pessoas a rotular o Brasil de democracia racial. Contudo, no h dvida de que no pas a raa desempenha papel significativo na determinao das oportunidades de emprego, educao, moradia e outras reas, algo reconhecido de modo crescente nos discursos pblicos. O controle das diferenas na educao e na raa , por exemplo, menor no Brasil do que nos EUA. Mas as diferenas absolutas nos rendimentos entre negros e brancos so maiores (principalmente causadas pelos diferenciais de educao). Alm disso, h evidncias de que a mobilidade social mais baixa entre os negros, no controle da educao e outras caractersticas. Esta ltima observao sugere que uma caracterstica despercebida pode ser menos recompensada pelos mercados brasileiros: a discriminao racial a explicao mais provvel ( BANCO MUNDIAL,2002, p.89)

Em relao ao acesso da populao negra ao ensino superior, os representantes do Banco afirmam que o nus acumulado pela falta de