Entrevista paulo de carvalho áfrica 21 - out 2013

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6 OUTUBRO 2013 – ÁFRICA21 Entrevista Paulo de Carvalho, sociólogo e professor Á21 Os protestos juvenis trans- formaram-se, desde os acontecimen- tos na Tunísia e noutros países do Norte de África e Médio Oriente, num fenómeno tendencialmente global. Como avalia a sua repercus- são em Angola? PAULO DE CARVALHO O mundo está a tomar novo rumo, muito rapida- mente. As novas tecnologias estão a re- volucionar o mundo, em todos os sen- tidos – repito, em todos os sentidos. Era de esperar que isso ocorresse, mais tarde ou mais cedo – só não se esperava que ocorresse com tal dimensão, ao ponto de derrubar governos de forma tão rápi- da. Lamentavelmente, os poderes (e o nosso não é exceção) nem sempre estão preparados para grandes mudanças, em tão pouco tempo. E esse tem sido o principal mal, que por enquanto atinge em maior grau o Hemisfério Sul, mas que começou também já a ocorrer na Europa e vai alastrar-se por outros can- tos, podemos estar certos. Não há inibições de natureza cultu- ral, porque a vontade de mudança é cada vez maior no mundo. Portanto, Angola não poderia estar a leste de tudo isso. Angola faz parte «deste mundo», sendo mesmo um dos países de África com grande tradição de adaptação aos costumes e modas vindos de fora. Na sua opinião, as autoridades reagi- ram corretamente às tentativas de ma- nifestação realizadas por certos jovens angolanos? As manifestações são apenas boa parte da ponta visível do iceberg. Desde 1993 que muitos de nós temos chamado à atenção para os erros que se vêm come- tendo. Na maior parte das vezes somos mal interpretados, quem governa prefe- re ouvir elogios a críticas, o que significa estarem criadas as condições para a rei- vindicação. Quem governa tem de sa- ber ouvir críticas, para corrigir a sua atuação. Só não ouve e não aceita críti- cas quem não pretende corrigir-se. E o resultado disso é, invariavelmente, o crescimento da contestação. Algumas vozes, em Angola e também em outras partes do mundo, acham que os protestos juvenis dos últimos dois anos fazem parte de uma estraté- gia do Ocidente para desestabilizar certas regiões do globo. Está de acordo? Claro que sim. Não podíamos, aliás, esperar outra coisa. Quem comanda o mundo tem de ter habilidade para aproveitar tudo o que ocorre em seu benefício, em benefício da sua estraté- gia de comando. E podemos crer que os Estados que mexem os cordelinhos desse comando sabem adaptar-se rapi- damente às mudanças que ocorrem, ti- rando daí benefício. Também há mani- festações na Europa, mas aí o comando vai manejando com mais calma, pois não interessa potenciar as já várias in- tenções de revolta no continente euro- peu. Não podemos esperar que connos- co ocorra atitude idêntica. Quanto a nós, os dependentes do Hemisfério Sul, ou alinhamos na estra- tégia de quem comanda o mundo e agimos com honestidade, ou arrisca- mo-nos a «perder o barco». Penso que estamos, neste momento, muito mais vulneráveis do que estávamos há três ou quatro anos. Esses protestos têm também causas internas? Claro que têm causas internas. O que me parece é que a efervescência é inter- na e isso é depois aproveitado lá por fora, para potenciar o desejo de revolta. Mas a essência são mesmo causas inter- nas, promessas que não foram feitas na devida altura, promessas que não estão a ser cumpridas e programas que não são executados como deveriam. Mas eu admito manifestações e até admito contestação, só não sou a favor do der- rube de governos legítimos, pois o po- der não pode cair na rua, o exercício do poder não pode depender da intensidade «O Ocidente aproveita as nossas falhas» Sociólogo e professor, o angolano Paulo de Carvalho defende a contestação, mas não a tentativa de derrubar pela força governos legítimos. Para ele, os governos que não aceitam críticas não querem, de facto, corrigir-se. CARLOS SEVERINO

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6 OUTUBRO 2013 – ÁFRICA21

Entrevista Paulo de Carvalho, sociólogo e professor

Á21 Os protestos juvenis trans-formaram-se, desde os acontecimen-tos na Tunísia e noutros países do Norte de África e Médio Oriente, num fenómeno tendencialmente global. Como avalia a sua repercus-são em Angola?PAULO DE CARVALHO O mundo está a tomar novo rumo, muito rapida-mente. As novas tecnologias estão a re-volucionar o mundo, em todos os sen-tidos – repito, em todos os sentidos. Era de esperar que isso ocorresse, mais tarde ou mais cedo – só não se esperava que ocorresse com tal dimensão, ao ponto de derrubar governos de forma tão rápi-da. Lamentavelmente, os poderes (e o nosso não é exceção) nem sempre estão preparados para grandes mudanças, em tão pouco tempo. E esse tem sido o principal mal, que por enquanto atinge em maior grau o Hemisfério Sul, mas que começou também já a ocorrer na Europa e vai alastrar-se por outros can-tos, podemos estar certos.

Não há inibições de natureza cultu-ral, porque a vontade de mudança é cada vez maior no mundo. Portanto, Angola não poderia estar a leste de tudo isso. Angola faz parte «deste mundo», sendo mesmo um dos países de África

com grande tradição de adaptação aos costumes e modas vindos de fora.

Na sua opinião, as autoridades reagi-ram corretamente às tentativas de ma-nifestação realizadas por certos jovens angolanos?As manifestações são apenas boa parte da ponta visível do iceberg. Desde 1993 que muitos de nós temos chamado à atenção para os erros que se vêm come-tendo. Na maior parte das vezes somos mal interpretados, quem governa prefe-re ouvir elogios a críticas, o que significa estarem criadas as condições para a rei-vindicação. Quem governa tem de sa-ber ouvir críticas, para corrigir a sua atuação. Só não ouve e não aceita críti-cas quem não pretende corrigir-se. E o resultado disso é, invariavelmente, o crescimento da contestação.

Algumas vozes, em Angola e também em outras partes do mundo, acham que os protestos juvenis dos últimos dois anos fazem parte de uma estraté-gia do Ocidente para desestabilizar certas regiões do globo. Está de acordo?Claro que sim. Não podíamos, aliás, esperar outra coisa. Quem comanda o

mundo tem de ter habilidade para aproveitar tudo o que ocorre em seu benefício, em benefício da sua estraté-gia de comando. E podemos crer que os Estados que mexem os cordelinhos desse comando sabem adaptar-se rapi-damente às mudanças que ocorrem, ti-rando daí benefício. Também há mani-festações na Europa, mas aí o comando vai manejando com mais calma, pois não interessa potenciar as já várias in-tenções de revolta no continente euro-peu. Não podemos esperar que connos-co ocorra atitude idêntica.

Quanto a nós, os dependentes do Hemisfério Sul, ou alinhamos na estra-tégia de quem comanda o mundo e agimos com honestidade, ou arrisca-mo-nos a «perder o barco». Penso que estamos, neste momento, muito mais vulneráveis do que estávamos há três ou quatro anos.

Esses protestos têm também causas internas? Claro que têm causas internas. O que me parece é que a efervescência é inter-na e isso é depois aproveitado lá por fora, para potenciar o desejo de revolta. Mas a essência são mesmo causas inter-nas, promessas que não foram feitas na devida altura, promessas que não estão a ser cumpridas e programas que não são executados como deveriam. Mas eu admito manifestações e até admito contestação, só não sou a favor do der-rube de governos legítimos, pois o po-der não pode cair na rua, o exercício do poder não pode depender da intensidade

«O Ocidente aproveita as nossas falhas»

Sociólogo e professor, o angolano Paulo de Carvalho defende a contestação, mas não a tentativa de derrubar pela força governos legítimos. Para ele, os governos que não aceitam críticas não querem, de facto, corrigir-se.

CARLOS SEVERINO

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da revolta. Sou a favor da reivindicação e, mesmo por isso, tenho de ser contra qualquer tipo de marcha para derrubar este ou aquele governo. Se escolhemos a democracia, então temos de encontrar formas de chegar ao poder pela via constitucional. Nenhum governo (seja ele qual for) aceitará de ânimo leve o seu derrube da forma como alguns pretendem e proclamam.

No caso de Angola, quais são essas causas internas?As causas internas são várias. Uma delas tem a ver com prestação de contas. Durante muito tempo, as pessoas fo-ram dando conta da concentração da riqueza num grupo muito pequeno de cidadãos, numa clara guinada à direita que pouco trouxe de vantajoso para o partido político que governa o país. Aquilo que se começou a fazer recente-mente deveria ter começado há muito

mais tempo. Refiro-me ao boom no acesso à instrução (e ao ensino supe-rior), ao investimento nas instituições estatais de saúde e à aposta (que ainda não é nítida) na agricultura e na indús-tria, que são os setores que vão fomen-tar emprego para todos os angolanos. A guerra foi o primeiro grande entrave a esse projeto (que é o projeto do pro-grama maior do MPLA), mas houve outros entraves. E a juventude não quer mais ouvir falar da guerra como causa

dos seus males, porque de facto pode-ríamos estar a viver melhor. Temos de reconhecer ter havido boas apostas de-pois do final da guerra, mas as pessoas querem muito mais – e já! Começamos a sofrer os efeitos disso. E atenção, que por este andar será ainda pior daqui a cinco ou dez anos.

Alguns intelectuais angolanos que resi-dem no estrangeiro acham que estão reunidas as condições para uma revol-ta de larga escala no país. Está de acordo?Condições para revolta claro que há, mesmo desde os tempos da guerra. Analistas e cientistas sociais temos cha-mado à atenção para isso, algumas vezes até apontando soluções para diminuir esse mal que se alastra. E sempre que um governante nomeia um familiar próxi-mo, sempre que se sabe de mais um ar-ranha-céus a favor deste ou daquele que já tem vários e nenhum deles foi herda-do, sempre que falta água nas torneiras e que há cortes de energia elétrica depois de milhões e milhões gastos nesses seto-res, sempre que abre uma cratera numa estrada reparada há poucos meses e sempre que ocorre uma denúncia de corrupção sem que as competentes au-toridades levem o assunto a peito, au-menta o sentimento de revolta.

Agora, se me pergunta se eu concor-do com uma bandeira de revolta que conduza à chacina de governantes, é claro que a minha resposta tem de ser negativa. Não podemos dizer aqui que somos a favor da paz, mas acolá apre-goarmos a revolta e a chacina. Não po-demos criticar os erros dos governantes e vir depois para a rua clamar por morte aos governantes, para errarmos tanto ou mais que eles.

Como avalia a iniciativa do Presidente angolano de promover um diálogo com a juventude à escala nacional?Sou daqueles que consideram que to-das as iniciativas de diálogo são bem-

A concentração da riqueza, corrução e falta de cumprimento

das promessas feitas são algumas razões para o aumento da contestação em Angola

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-vindas. É necessário dialogar com a juventude e é mesmo indispensável incluir nesse diálogo os muitos jovens que não estão filiados em quaisquer organizações. A iniciativa é bastante boa, sendo agora necessário alargar esse diálogo a outras franjas da socie-dade, que são normalmente margina-lizadas, mas que têm grande ascenden-te sobre a juventude e sobre outras camadas sociais. O Presidente e os ministros têm também de ir às univer-sidades, dialogar com as pessoas (com os mais jovens e com os menos jo-vens). Esta é uma saída, que se deve aliar a outras soluções que referi antes. Muitas vezes, não é preciso esperar pela obra feita, basta demonstrar devi-damente que ela está em curso. E de-pois é preciso mostrar que estamos to-dos «no mesmo barco», isto é, que as dificuldades são para todos.

Não se tratou de uma iniciativa parti-dária, para esvaziar os protestos juvenis em Angola?Não me parece que tenha sido isso. Todo o diálogo é favorável. Quando se dialoga, aprende-se. Reafirmo, pois, a

necessidade de o diálogo prosseguir, seja com jovens não enquadrados em organizações da sociedade civil, seja com outras franjas da sociedade. Os governantes têm de governar para al-guém, o que exige que tenham conhe-cimento das reais necessidades e das expectativas dos governados.

O emprego foi apontado pelos partici-pantes do diálogo entre as autoridades e a juventude como o principal proble-ma dos jovens angolanos. O que deve fazer o governo para resolver esse problema?A economia angolana é extremamen-te débil, não se deve portanto estra-nhar que o emprego seja apontado como principal problema da juventu-de. Para resolver este problema, tem de deixar de se apostar preferencial-mente no setor dos serviços, passando a apostar-se na agricultura e na indús-tria. Angola tem de deixar de depen-der do petróleo, pois essa opção pro-move o subdesenvolvimento e não permite a proliferação de postos de trabalho e o fomento do emprego es-tável. Mas por outro lado, é preciso deixar de criar empregos de forma fictícia, ao nível da função pública e empresas públicas – pois isso, de fac-to, vem promovendo o subemprego, que corrói ao invés de contribuir para o desenvolvimento das famílias e do país. A força de trabalho excedentária

tem mesmo de ser encaminhada pre-ferencialmente para os setores da agricultura e da indústria.

Quais são, para si, os outros proble-mas principais dos jovens angolanos?Um dos principais problemas da juven-tude tem a ver com a elevada dose de corrupção no ensino, desde o nível básico ao superior. Aliás, isso vai-se refletir depois no emprego dos jovens e, também, na economia do país. Não se pode construir um país inculcando nas crianças e jovens que o que está certo é o desejo de amealhar sem olhar a meios. E é isso que se tem feito todos estes anos, com o beneplácito de quem dirige as várias instituições de ensino. É tempo de dizer basta, é tempo de apostar em qualidade.

Depois deste, há outros problemas que afligem a juventude angolana, como o problema da habitação e a questão relacionada com o indispensá-vel investimento nos dois mais impor-tantes setores da economia: a agricultura e a indústria. Há ainda problemas como o crédito à atividade profissional, a aposta na qualidade do serviço público de saúde e a assistência social. Há muito por fazer, mas a base deverá ser a luta contra a improvisação, deverá ser a defi-nição de metas e de regras, que depois devem ser realmente cumpridas. E os órgãos de fiscalização devem funcionar, sem esquemas e sem compadrios.

PAULO DE CARVALHO

Nasceu na cidade de Luanda em 1960. É sociólogo, com Doutoramento em Sociologia pelo ISCTE (Lisboa). É profes-sor titular na Universidade Agostinho Neto, tendo dirigido a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UAN (2005-2006). Foi reitor da Universidade Katyavala Bwila (2009-2011) e diretor do Centro de Imprensa Aníbal de Melo (1991-1992). É editor da Revista Angolana de Sociologia (desde 2008). É autor de oito livros de Sociologia. Entre os prémios e menções que tem recebido, destacam-se o Pré-mio Nacional de Cultura e Artes na modalidade de investiga-ção em Ciências Sociais e Humanas (Luanda, 2002) e o Prémio Kianda de Jornalismo Económico (Luanda, 1998).

O Governo deve

continuar a dialogar com a juventude mas também com o resto da sociedade

FER

NAN

DA

OSÓ

RIO