Entrevista · Página de O Quilombo Orum Ai ... motivação minha foi mostrar que é lenda aquela...

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Revista África e Africanidades - Ano 3 - n. 11, novembro, 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano 3 - n. 11, novembro, 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Entrevista André Diniz Desenhista e Roteirista Por André Luiz dos Santos Silva e Nágila Oliveira dos Santos Revista África e Africanidades: André, fale um pouco sobre a sua trajetória. André Diniz: Eu a dividiria em três fases até agora: a fase fanzineiro, que foi quando eu comecei a ter meus leitores. Imprimia edições simples em xerox ou formato jornal e distribuía gratuitamente tiragens entre 500 e 8000 exemplares bancadas por anúncios. Essa foi a minha escola. Tive a fase independente, onde viabilizava as minhas próprias edições. Foi nessa fase que fiquei mais conhecido e ganhei grande parte dos meus prêmios. E tem a fase atual, onde tenho minhas obras publicadas por diversas editoras. Revista África e Africanidades: Como e quando você se aproximou dos quadrinhos? André Diniz: Foi mesmo de nascença, nem sabia ler ainda e fazia os meus quadrinhos. É até curioso, mas sempre tive claro na minha vida que eu queria fazer quadrinhos, sem que eu tivesse qualquer modelo perto de mim. Sequer tive um amigo ou colega de infância que fosse um grande fã de quadrinhos. Por toda a minha infância e pré adolescência, esse foi um mundo só meu. Aí, com os primeiros fanzines, passei a conhecer a minha turma e a aprender com a troca de ideias e com a reação e as críticas dos meus primeiros leitores. Revista África e Africanidades: Como surgiu a idéia da Editora Nona Arte, criada em 2000? Qual ou quais as experiências mais te marcaram deste projeto? André Diniz: O mercado cresceu e mudou para muito melhor nessa década passada. Em 2000, era muito raro editoras apostarem em lançar álbuns de quadrinhos, principalmente nacionais, e o único caminho que vi para começar como autor foi eu mesmo publicando minhas próprias obras. Foi uma grande aventura, até porque perdi uns bons trocados com essa história - aliás, chamei por muito tempo o meu trabalho com os quadrinhos de "meu perde-pão". Se não deu dinheiro, porém, o retorno enquanto autor foi excepcional. Fui agraciado com 14 prêmios nesse período, e só a primeira publicação (Fawcett, que aliás acaba de ganhar uma nova edição pela editora Devir) foi agraciada com cinco prêmios. Revista África e Africanidades: Você já trabalhou com vários temas históricos, mas como e quando surgiram as ideias das obras Chico Rei e O Quilombo Orum Aiê? Eram desejos antigos ou foram incentivadas pelo novo mercado editorial? André Diniz: Mesmo na fase "perde-pão", eu já seguia um caminho muito presente ainda no meu trabalho atual: HQs sobre personagens históricos ou passadas em cenários históricos que tragam, antes de tudo, diversão, reflexão, emoção, sem qualquer resquício de obra didática. Não comecei por esse caminho pensando em mercado, até porque esse mercado ainda não existia. O que sempre me motivou foi contar boas histórias. O personagem Chico Rei era uma ideia antiga minha, cheguei até mesmo a fazer uma primeira versão da história em 2002, que acabou inédita. Para a edição de 2006, já com editora interessada, reescrevi e desenhei a HQ partindo do zero. Quanto ao "Quilombo Orum Aiê", peguei um cenário histórico que me fascina e criei um personagem que saiu lá de dentro de mim, quase que uma autobiografia totalmente metafórica (afinal, trata-se de um jovem escravo em 1835...). Claro que é ótimo a obra se encaixar no mercado, mas quem ler o livro vai ver que aquela era uma história que eu precisava contar, e não que criei para agradar a uma editora.

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Entrevista

André DinizDesenhista e Roteirista

Por André Luiz dos Santos Silva eNágila Oliveira dos Santos

Revista África e Africanidades: André, faleum pouco sobre a sua trajetória.André Diniz: Eu a dividiria em três fases atéagora: a fase fanzineiro, que foi quando eucomecei a ter meus leitores. Imprimiaedições simples em xerox ou formato jornal edistribuía gratuitamente tiragens entre 500 e8000 exemplares bancadas por anúncios.Essa foi a minha escola. Tive a faseindependente, onde viabilizava as minhaspróprias edições. Foi nessa fase que fiqueimais conhecido e ganhei grande parte dosmeus prêmios. E tem a fase atual, ondetenho minhas obras publicadas por diversaseditoras.

Revista África e Africanidades: Como equando você se aproximou dos quadrinhos?André Diniz: Foi mesmo de nascença, nemsabia ler ainda e já fazia os meusquadrinhos. É até curioso, mas sempre tiveclaro na minha vida que eu queria fazerquadrinhos, sem que eu tivesse qualquermodelo perto de mim. Sequer tive um amigoou colega de infância que fosse um grande fãde quadrinhos. Por toda a minha infância epré adolescência, esse foi um mundo sómeu. Aí, com os primeiros fanzines, passei aconhecer a minha turma e a aprender com atroca de ideias e com a reação e as críticasdos meus primeiros leitores.

Revista África e Africanidades: Comosurgiu a idéia da Editora Nona Arte, criadaem 2000? Qual ou quais as experiênciasmais te marcaram deste projeto?André Diniz: O mercado cresceu e mudoupara muito melhor nessa década passada.Em 2000, era muito raro editoras apostarem

em lançar álbuns de quadrinhos,principalmente nacionais, e o único caminhoque vi para começar como autor foi eumesmo publicando minhas próprias obras.Foi uma grande aventura, até porque perdiuns bons trocados com essa história - aliás,chamei por muito tempo o meu trabalho comos quadrinhos de "meu perde-pão". Se nãodeu dinheiro, porém, o retorno enquantoautor foi excepcional. Fui agraciado com 14prêmios nesse período, e só a primeirapublicação (Fawcett, que aliás acaba deganhar uma nova edição pela editora Devir)foi agraciada com cinco prêmios.

Revista África e Africanidades: Você játrabalhou com vários temas históricos, mascomo e quando surgiram as ideias das obrasChico Rei e O Quilombo Orum Aiê? Eramdesejos antigos ou foram incentivadas pelonovo mercado editorial?André Diniz: Mesmo na fase "perde-pão", eujá seguia um caminho muito presente aindano meu trabalho atual: HQs sobrepersonagens históricos ou passadas emcenários históricos que tragam, antes detudo, diversão, reflexão, emoção, semqualquer resquício de obra didática. Nãocomecei por esse caminho pensando emmercado, até porque esse mercado aindanão existia. O que sempre me motivou foicontar boas histórias. O personagem ChicoRei era uma ideia antiga minha, cheguei atémesmo a fazer uma primeira versão dahistória em 2002, que acabou inédita. Para aedição de 2006, já com editora interessada,reescrevi e desenhei a HQ partindo do zero.Quanto ao "Quilombo Orum Aiê", peguei umcenário histórico que me fascina e criei umpersonagem que saiu lá de dentro de mim,quase que uma autobiografia totalmentemetafórica (afinal, trata-se de um jovemescravo em 1835...). Claro que é ótimo aobra se encaixar no mercado, mas quem lero livro vai ver que aquela era uma históriaque eu precisava contar, e não que criei paraagradar a uma editora.

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Página de O Quilombo Orum Aiê

Revista África e Africanidades: As obras 7Vidas e Ato 5, publicadas em 2009 trouxeramo prêmio HQMix na categoria RoteiristaNacional, prêmio este considerado o Oscardos Quadrinhos no Brasil. O que estapremiação significa pra você e como você vêo atual cenário dos quadrinhos nacionais?André Diniz: Na verdade, eu já havia ganhovários HQ Mix antes, e este é o meu terceirocomo melhor roteirista. Mas tambémconsidero como o primeiro de certa forma,pois foi dez vezes mais gratificante seragraciado com esse prêmio nesse atualmomento do mercado de quadrinhos, ondehá um número sem precedente de obraspublicadas e muita, mas muita gente boamesmo produzindo. Quanto ao mercadoatual, sempre haverão muitos obstáculos asuperar, mas o quadro de hoje erainimaginável há uns sete anos atrás. Artistasmaduros, editoras determinadas a investir,

mídia sem preconceitos e livrarias com áreasde destaque para exibir os lançamentos deHQs. E leitores, claro!

Revista África e Africanidades: O álbum OQuilombo Orum Aiê foi selecionado no últimoPNBE – Programa Nacional Biblioteca daEscola e em 2011 todas as bibliotecas deescolas públicas do Brasil terão um exemplardesta obra. O que isto significa pra você? Oque isto significa para o cenário dosquadrinhos nacionais?André Diniz: Para mim, como autor e comopessoa, não poderia ter retorno maior. É veraquele trabalho que me dediquei de coraçãopara criar tornar-se acessível a umainfinidade de leitores, com chances de tocá-los e levá-los a se divertir e a refletir sobreuma série de questões que a HQ trazimplícita e explicitamente. Nunca me sentitão recompensado assim. E para osquadrinhos como um todo, essa valorizaçãopelo PNBE é fantástica também e não hácomo negar que muito do crescimento domercado de quadrinhos no Brasil se deve aesse programa.

Revista África e Africanidades: Em OQuilombo Orum Aiê você aborda diferençaspoucas vezes encontradas em obraspedagógicas que tem a escravidão comopano de fundo, como as diferenças entreescravizados recém-chegados, escravosurbanos ou rurais, de diferentes etnias,línguas e religiões. Como foi a pesquisahistórica e das referências visuais e culturaispara a criação da obra O Quilombo OrumAiê?André Diniz: A pesquisa foi grande e metomou até mais tempo do que escrever edesenhar a história toda (o que não é poucacoisa). Mas eu quis mostrar ao leitor queesse tema é muito mais rico e complexo doque é mostrado em filmes e novelas, ondetudo é simplificado de uma formaempobrecedora. É essa mesma simplificaçãoque empobrece também a visão que se temda África, vista como uma só nação e uma sócultura, e não como um continente rico em

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povos, línguas e culturas diferentes. Outramotivação minha foi mostrar que é lendaaquela visão do escravo passivo e submisso.

Revista África e Africanidades: OQuilombo Orum Aiê é uma obra fortementeinfluenciada pela estética da arte africana.Você acredita que a obra poderá influenciar aestética de novos desenhistas?André Diniz: Sou apaixonado pela arteafricana e por toda a estilização de formas efiguras que ela traz, e essa estéticaincorporou-se ao meu trabalho de vez.Mesmo algumas obras minhas que estãopara ser lançadas cujos temas não têm nadaa ver com africanidade trazem uma boacarga de arte africana casada com minhaoutra paixão, que é a estética do cordel. Seisso inspirar outros desenhistas, será umagrande satisfação para mim.

Revista África e Africanidades: Fale umpouco sobre a construção dos personagensdas obras O Quilombo Orum Aiê e Chico Rei.André Diniz: O Quilombo Orum Aiê trazpersonagens totalmente fictícios, dentro deum cenário histórico. O protagonista Viníciusé um jovem escravo cheio de idealismos, umfilósofo legítimo apesar de nem saber queessa palavra existe. Após a Revolta dosMalês, a maior revolta escrava da nossahistória, ele lidera um grupo em busca de umquilombo utópico onde seu pai estariaaguardando-o. O curioso é que, depois dahistória pronta, foi que eu vi o quanto haviade mim naquele personagem, e como abusca dele representava as minhas buscasde adolescente, os tombos e decepções, aperda do meu pai, as voltas por cima... JáChico Rei é um personagem incrível, umafigura comparável a Ghandi, guardadas asdevidas proporções. O líder que liberta umpovo (mesmo que em menor escala) pormeio da paz, sem pregar a vingança contra oopressor. Esse sim, na minha opinião, é overdadeiro herói. Até por isso, tive apreocupação de torná-lo o mais humanopossível, com conflitos internos e reaçõesplausíveis a um ser humano.

Revista África e Africanidades: Nacoletânea MSP +50 segundo volume da sérieque homenageia os 50 anos de carreira deMaurício de Sousa, você escolheu em suaHQ o personagem Jeremias. Como você vê oespaço para a representação e inserção donegro nos HQs brasileiros?

André Diniz: Ainda é pequeno, bastantemodesto ainda. Mas tem que ser algoespontâneo, não dá para querer que o fatodo personagem ser negro seja por si só omotivo dele existir ou ser lido. Se eu criar o"Fulaninho e sua turma" e lançá-lo como opersonagem que é negro, isso por si só nãointeressa a ninguém e nem seria mesmopara interessar, pois não tem graçanenhuma. O personagem tem que ter vida,trazer identificação ao leitor e viver históriasfascinantes, seja uma viagem interplanetária,uma busca pela paixão de sua vida ou umrico relato de vida. O gratificante seriatambém ver personagens negrosprotagonizando essas sagas da forma maisespontânea possível.

Revista África e Africanidades:Atualmente, quais os principais desafios dasHQs no Brasil?André Diniz: Talvez firmar as conquistasdesses últimos anos e diversificar aspossibilidades e atingir novos públicos.

Revista África e Africanidades: Qual opróximo projeto que você pretende lançarem 2011?André Diniz: 2011 será um ano cheio delançamentos meus. Posso já adiantar aqui aadaptação para os quadrinhos do poema "ACachoeira de Paulo Afonso", uma belíssimaobra de Castro Alves (a sair pela PallasEditora); "Mwindo - Uma Lenda Africana",com desenhos meus e roteiro de JacquelineMartins; "Z de Zelito", que mostra os dramasde um jovem que vem tentar a vida no Rio deJaneiro em plena eclosão da Revolta daVacina, em 1904; além da biografia aindasem título de Maurício Hora, um grandefotógrafo nascido e criado no Morro daProvidência, no Rio. Destaco também "ONegrinho do Pastoreio", onde adapto ao meu

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modo essa lenda bastante conhecida. Digoao meu modo pois, na versão original, acho opersonagem passivo e "coitadinho". Mexicom isso e dei ao protagonista um banho deousadia, determinação e heroísmo.

Revista África e Africanidades: Outroscomentários que achar interessante aosleitores.André Diniz: Acho curioso que muitos, aoconhecerem O Quilombo Orum Aiê, ChicoRei e ouvirem falar dos meus futuroslançamentos, deduzem que eu sou negro porabordar diversas vezes temas ligados àafricanidade e à história do negro no Brasil. Éuma pena admitir que essa dedução imediatatem base, pois geralmente é ao próprio negroque cabe a missão de lembrar que o Brasil éum país negro também. Mas eu soubrasileiro, e isso por si só faz com que lendasafricanas, escravidão, poemas de CastroAlves e cultura negra em geral sejamassuntos meus. Tampouco sou louro, emesmo assim me sinto um pouco portuguêstambém. Por que não me sentir negro, sóporque a minha pele é branquela? (atédemais para um carioca, convenhamos!...)

Conheça as obras de André Diniz:

Coleção História do Brasil em quadrinhos

Coleção História Mundial em quadrinhos

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Coleção Filosofia em quadrinhos

Sobre História e Cultura Africana e Afro-Brasileira

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