Entrevista - Logica.paixao.e.contradicao.newton.da.Costa

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    Paixo e contradioMatemtico Newton da Costa, criador da lgica paraconsistente, tem trs livros reeditados

    Neldson Marcolin

    O matemtico e lgico Newton da Costa compartilha com outros pesquisadores a mesmapaixo pelo que fazem. Com freqncia, se emociona ao falar de assuntos que parecemestranhos queles alheios a sua paixo. Alguns gelogos sentem ternura por pedras quecontam histrias de outras eras e entomlogos tm grande carinho por insetos repugnantes.Costa v beleza em clculos intrincados, problemas sem soluo e teorias que, de toabstratas, s so entendidas por um nmero pequeno de pessoas.

    Newton Carneiro Affonso da Costa, paranaense nascido em Curitiba h 78 anos, casado,pai de uma filha e dois filhos e av de duas netas, talvez tenha mais motivos que os demaispesquisadores para se entusiasmar ao falar do prprio trabalho. Ele reconhecido no Brasile exterior provavelmente mais no exterior como autor de uma teoria original criada a

    partir de 1958, mas muito citada e aplicada de 1976 para frente, quando finalmente ganhouo nome pelo qual ficou conhecida, a lgica paraconsistente. Trata-se de uma teoria quepermite trabalhar com situaes e opinies contraditrias. No toa, chamado pelosdiscpulos e colaboradores de pensador da contradio.

    Costa formou-se engenheiro na Universidade Federal do Paran (UFPR) em 1952 e chegoua trabalhar por 1 ano no ramo, na empreiteira do pai de sua mulher. Mas parou de resistir prpria vocao e cursou matemtica, fez licenciatura na mesma rea e virou professor epesquisador em tempo integral na UFPR, ganhando menos da metade do que ganhava naempreiteira. L fez seu doutorado e virou catedrtico. Nos anos 1960 migrou para o Institutode Matemtica e Estatstica da Universidade de So Paulo (IME/USP) e ficou 2 anos na

    Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos dois lugares foi professor titular.Passou por instituies da Austrlia, Frana, Estados Unidos, Polnia, Itlia, Argentina,Mxico e Peru como professor visitante ou pesquisador. Tem mais de 200 trabalhospublicados entre artigos, captulos e livros. Entre outros prmios, ganhou o Moinho Santistae o Jabuti em Cincias Exatas. Na segunda quinzena deste ms, a editora Hucitec vairelanar trs de seus livros esgotados h muitos anos. So eles: Introduo aosfundamentos da matemtica, de 1961, Ensaio sobre os fundamentos da lgica, de 1979, eLgica indutiva e probabilidade, de 1990.

    Quando se aposentou do IME/USP, Newton da Costa tornou-se professor titular daFaculdade de Filosofia, Cincias Humanas e Letras da USP e passou a estudar e ensinarfilosofia da cincia. H 4 anos decidiu morar perto dos dois filhos em Florianpolis e lecionarfilosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Sua paixo pela pesquisa eensino continua intacta. Quando fui entrevist-lo em seu apartamento no centro de

    Pesquisa FAPESPEdio 148 - Junho 2008

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    Florianpolis, ele entregou um artigo sobre lgica, escrito especialmente para a revista. Nofinal desta entrevista, o leitor poder ler o artigo.

    Newton da Costa prefere escrever mo e admite ter grande averso em lidar comcomputadores. O que torna ainda mais curioso um dos seus ltimos trabalhos, ainda nopublicado. O ttulo How to build a hypercomputer (Como construir um supercomputador) etrata de uma investigao sobre os limites da teoria da computao. Abaixo, os principaistrechos da entrevista.

    O senhor se formou em engenharia, fez carreira na matemtica e terminou na filosofia.Como foi isso?Quando eu tinha uns 15 anos, mais ou menos, dois acontecimentos foram fundamentaispara mim. Primeiro, ler o Discurso do mtodo, de Descartes, que se tornou minha bblia. Emsegundo lugar, a convivncia com meu tio Milton Carneiro, professor da UniversidadeFederal do Paran. Ns discutamos muito sobre filosofia e cincia. Ele me deu dois livrosque nunca mais saram da minha cabea, O sentido da nova lgica, de W.O. Quine, de1944, publicado naquela poca no Brasil, e Logique, de L. Liard, um livro de lgicaabsolutamente clssico, embora tenha uma parte sobre metodologia cientfica.

    Pode-se dizer ento que seu maior trabalho, sobre a lgica paraconsistente, comeou abrotar naqueles momentos?Acho que custou um pouco ainda. As conversas com o meu tio e ler Descartes obviamenteajudaram. Meu problema central sempre foi pensar sistematicamente o que oconhecimento. Especialmente o que o conhecimento cientfico. At hoje penso nisso.Ento percebi perfeitamente que teria que estudar lgica, matemtica e alguma cincia,como fsica. Pouco tempo depois comecei a ler Bertrand Russell por sugesto da minhame. Russell motiva qualquer um a estudar questes desse tipo. Foi quando notei queprecisava conhecer tambm as aplicaes da matemtica, no s matemtica. Por isso,estudar engenharia seria interessante. Mas precisava, especialmente, conhecer matemtica

    melhor. E cursei matemtica. Finalmente percebi que tudo isso, no fundo, tem a ver comfilosofia que, alis, o que eu mais gostava mesmo.

    Mais do que a matemtica?Ah, muito mais. A matemtica e a lgica so para mim instrumentos para entender o que o conhecimento cientfico. O que vai levar, depois, ao que o conhecimento em geral e seh conhecimento metafsico. Da a necessidade de me embrenhar na filosofia. Ainda nocheguei metafsica porque preciso compreender direito o conhecimento cientfico.

    Eu gostaria de entrar na lgica paraconsistente. Como o senhor a explicaria para algumque no entende nem de lgica nem de matemtica?

    Em 1874, um matemtico russo chamado Georg Cantor criou a teoria dos conjuntos. Empouco tempo se viu que toda a matemtica padro poderia ser construda sobre a teoria dosconjuntos e ela se tornou essencialmente a base da matemtica. Convm observar, noentanto, que a noo de conjunto algo extremamente abstrato e no se confunde com osistema de objetos ou totalidades da vida cotidiana. Mas cerca de 30 anos depoiscomearam a surgir paradoxos nessa teoria. O paradoxo de Russell, o paradoxo de Burali-Forti e vrios outros, que no convm explicar aqui porque levaria muito tempo. Essasquestes se tornaram um problema filosoficamente incrvel: como eram possveisparadoxos na matemtica e na lgica tradicionais, at ento o exemplo mais perfeito deconhecimento? Aquilo era aterrador, completamente estranho, ningum conseguia explicar,causou um rebulio. Essa foi considerada a terceira grande crise da histria da matemtica.

    A primeira foi com os pitagricos, quando descobriram os nmeros irracionais. A segundafoi com o clculo diferencial e integral, que era uma rea completamente sem fundamentolgico, mas tambm foi superada. E, finalmente, a terceira grande crise foi a cantoriana,quando se descobriu que a teoria dos conjuntos era inconsistente e contraditria, no se

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    sustentava. Tentou-se ento resolver a questo mantendo a lgica clssica e imaginandoquais as modificaes que poderamos fazer na teoria dos conjuntos para superar osparadoxos. A lgica clssica essencialmente a lgica que nasceu com Aristteles e tevesua formulao atual por Gottlob Frege e Russell por volta de 1870 e 1914,respectivamente. O problema da contradio absolutamente fundamental para a lgicaclssica, que no a admite.

    A idia era corrigir a teoria dos conjuntos sem destru-la ou abandon-la?Era isso. Em meio a esses estudos e anlises surgiu algo interessantssimo. Ficou claro quehavia caminhos alternativos para superar essas dificuldades, que no eram equivalentesentre si. Ou seja, havia vrias teorias de conjuntos possveis baseadas na lgica clssica. Aidia bsica quando se comeou a estudar essas questes era manter a lgica clssica nassolues usuais desses paradoxos e mudar os princpios da teoria ingnua dos conjuntos.Baseado numa frase do prprio Cantor A essncia da matemtica radica na suacompleta liberdade , pensei, Por que no fazer o contrrio?. Eu quero manter o mximopossvel dos princpios da teoria dos conjuntos, mas mudar a lgica subjacente clssica.

    O que isso quer dizer?Significa que essa lgica tem de suportar contradio. Na lgica clssica, a razo bsica deela no aceitar a contradio, do ponto de vista tcnico, que a mais simples contradionuma teoria a destri, porque tudo vira teorema. Era preciso mudar e eu comecei a construirvrias lgicas. Demonstrei que existem infinitas lgicas que satisfazem essas condies eque existem infinitas teorias dos conjuntos correspondentes. Comecei a desenvolver eaplicar a lgica em outras coisas. Mas, na verdade, a sada, o pontap inicial, foi um pontopuramente matemtico relativo aos fundamentos da teoria dos conjuntos da obracantoriana.

    No o acusaram de destruir a lgica clssica?

    Todo mundo j disse isso, especialmente no comeo, quando apresentava minha teoria poraqui. uma das coisas que mais me deixam amolado.

    Por qu?Eu seria um idiota se achasse que a lgica clssica est errada. O que acredito que elatem um domnio de aplicaes, mas, em certas circunstncias, no se aplica. Vou dar sum exemplo: a teoria geral da relatividade e a mecnica quntica so duas das teorias maisassombrosas que apareceram na histria da cultura at hoje pelas aplicaes, pelapreciso das medidas, por tudo enfim. uma loucura o que elas explicam. Por exemplo,mecnica quntica explica o laser, o maser, a estrutura qumica... No entanto, essas duasteorias, se voc olhar bem de perto, so logicamente incompatveis. S tem uma maneira

    de juntar as duas e os fsicos fazem isso com freqncia, embora no saibam como isso sefaz, do ponto de vista lgico.

    Quer dizer, eles juntam as duas teorias naturalmente para resolver problemas que surgem,sem saber que esto usando uma lgica diferente?Exatamente. Essa lgica a lgica paraconsistente. No momento estou trabalhando nisso,esclarecendo que a lgica da fsica tem de ser uma lgica paraconsistente. Ela localmenteclssica, mas globalmente paraconsistente. A fsica atual, que trabalha com umacombinao de teorias incompatveis, s possvel porque existe a lgica paraconsistente.Por exemplo, a teoria do plasma tem muitas aplicaes e envolve trs outras teorias: amecnica clssica, o eletromagnetismo e a quantizao. Duas a duas, elas so

    contraditrias. No entanto, so usadas. Todo o estudo que fao no momento utiliza a teoriaquntica de campo, a mecnica quntica, a relatividade e outras, para sistematizar acincia. Essa uma das tarefas do filsofo da cincia, sistematizar diversas cincias ecompar-las. No h soluo se no fizermos isso com uma lgica diferente da lgica

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    tradicional. No nos dias de hoje.

    E quanto s aplicaes da lgica paraconsistente?Durante uns 30 anos desenvolvi a lgica paraconsistente do ponto de vista puramenteabstrato. Interessado apenas na beleza matemtica que ela implica. Qual no foi minhasurpresa quando comecei a receber do exterior, principalmente dos Estados Unidos,informaes sobre aplicaes em economia, na computao, em robtica, nos sistemasespecialistas... No Brasil, o grupo de Jair Abe, da Universidade Paulista (Unip), tem obtidoresultados muito interessantes em inteligncia artificial. Recentemente um amigo japons,Kazumi Nakamatsu, esteve comigo e mostrou as aplicaes de certo tipo de lgicaparaconsistente para o controle de trfego de trens, no Japo.

    Nada mais prtico do que isso.J se sabe que se pode usar a lgica paraconsistente no controle do trfego areo tambm.Quando se tem muitos avies que no podem aterrissar, por exemplo, por mau tempo, ocontrolador de vo recebe e manda informaes. Elas nunca so exatas porque no sesabe exatamente a qual altura o avio est. A altura sempre tem um pequeno erro. Logo,deve ser corretamente interpretada pelo computador do controlador para evitar acidentes. A

    lgica paraconsistente uma das maneiras pensadas para resolver o problema.

    A lgica paraconsistente , ento, uma teoria que aceita e acomoda situaescontraditrias?Situaes e opinies contraditrias. Hoje h centenas de pessoas que se dedicam lgicaparaconsistente no mundo inteiro. Alguns so fundamentalistas. Acham que a nica lgicaverdadeira e a lgica clssica no passa de besteira. Um dos meus melhores amigos, quefoi professor na Universidade Nacional da Austrlia e esteve vrias vezes no Brasil,professor Richard Routley, todos os dias pela manh quando me encontrava l emCanberra ou mesmo em So Paulo, me saudava dizendo, A lgica clssica est acabada.Eu dizia sempre que no, as duas tm seu campo. A lgica clssica a me da lgica

    paraconsistente.

    Poderia ser usada tambm em outros campos, como na psicanlise?Segundo vrios psicanalistas, especialmente os lacanianos, ela tem uma aplicao enormenessa rea. J existe uma literatura grande na psicanlise sobre isso.

    A repercusso da lgica paraconsistente parece no ter arrefecido aps tantos anos.Isso algo inacreditvel para mim at hoje. Pensava nisso quando era muito jovem, em1949, 1950, meus primeiros trabalhos comearam em 1958, mas s comecei a publicar naFrana em 1963. At que, l por meados dos anos 1970, escrevi uma carta para um grande

    amigo, o filsofo da cincia Francisco Mir Quesada, ex-ministro da Educao no Peru.Pedi a ele, Preciso de um nome para essa minha lgica. Quesada foi um dos primeiros adefender a teoria pelo mundo afora, quando era embaixador. Ele me sugeriuparaconsistente, ultraconsistente ou metaconsistente. Escolhi paraconsistente. Depoisque comecei a escrever com esse nome, no se passou 1 ano e todo o mundo da lgicacomeou a falar de lgica paraconsistente. Da Frana ex-Unio Sovitica, dos EstadosUnidos ao Japo surgiram artigos citando de alguma forma a lgica paraconsistente. Essa uma daquelas coisas muito difceis de acontecer outra vez. Quesada passou a brincardizendo, Newton, na verdade o criador da lgica paraconsistente fui eu, porque uma coisas existe depois que tem nome. Est na Bblia, No comeo foi o verbo....

    O que o atraiu exatamente na palavra paraconsistente?Para quer dizer ao lado. Eu nunca quis destruir a lgica clssica. ao lado de,complemento de. Assim como a relatividade geral no destruiu a mecnica newtoniana.Nem a mecnica quntica acabou com a mecnica newtoniana. E elas no existem sem a

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    mecnica newtoniana.

    Qual era o nome da lgica antes de ser batizada pelo Quesada?Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Comprido demais.

    As muitas aplicaes de sua teoria fez o senhor ganhar algum dinheiro com ela?Viajei muito, conheci o mundo inteiro e nunca despendi um tosto. Agora ganhar dinheiromesmo no. Teoria no tem patente. Mas quando chegava ex-Unio Sovitica, porexemplo, eu tinha um automvel com motorista disposio, um intrprete, um quebra-galho para tudo.

    Aos 78 anos o senhor parece seguir mantendo suas atividades de pesquisa com vigor.Fazer o que fao um prazer to grande que sou capaz de pagar para continuar fazendo. Odia em que no puder estudar o que gosto, dar minhas aulas, melhor morrer mesmo.Alis, contam que para Einstein parecia que a diferena entre estar vivo e estar morto eraque enquanto ele estava vivo tinha certeza de que podia fazer fsica. Depois de morto nosabia se dava para fazer.

    Por que saiu da UFPR?Jamais quis sair do Paran. Minha famlia toda de l e eu estava bem na UFPR. Masgostaria de montar um grupo de lgica e fundamentos da cincia. Aos poucos, porm,cheguei concluso de que isso era inexeqvel l, nos anos 1950 e 1960, por mais que eume esforasse.

    Qual a razo?Acho que, com exceo da USP, nenhuma outra universidade dava condies para se fazerum trabalho de nvel internacional em lgica e matemtica no Brasil. Convidar professoresestrangeiros, passar temporadas no exterior, mandar jovens para estudar em outros pases.Eu me tornei catedrtico na UFPR, mas, por mais boa vontade que tivessem comigo, eu me

    sentia patinando, sem sair do lugar.

    Foi para a USP, mas passou primeiro pela Unicamp, no ?Rapidamente. Tenho uma relao muito grande com a Unicamp. Quando fui professor doIME era permitido acumular por 2 anos tempo integral na USP e tempo parcial na Unicamp,desde que fosse bem justificado. Fiquei nos dois lugares e, surpreendentemente, conseguiformar um grupo muito maior de pesquisa na Unicamp. Posteriormente doei minhabiblioteca e arquivos para o Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da Cincia daUnicamp.

    O senhor um daqueles cientistas que consideram matemtica e fsica mais difceis de

    entender do que as demais cincias?No sei se so mais difceis. Sei que para alguns trabalhos nessas duas reas preciso terum grande senso de abstrao, principalmente em fsica-matemtica e fsica terica.preciso dizer que h um sentido de beleza nessas teorias. Edgar Allan Poe dizia, A beleza aquilo que resiste familiaridade. Quanto mais voltamos a ela, mais somos atrados avoltar. E sempre que voltamos percebemos coisas novas. A msica de Bach eternaporque se pode ouvir milhes de vezes sem cansar. Sempre veremos um aspecto novonela. Se ouvirmos uma msica comum qualquer ela no desperta novas idias, bastarepetir trs ou quatro vezes e ela no oferece nada a mais. J Bach, Beethoven, Brahmsjamais cansam. Um artigo de matemtica trivial voc l e no se interessa mais. Agora, aum bom artigo podemos voltar dezenas, centenas de vezes. Sempre tem mais uma

    coisinha, mais uma idia, mais um aspecto que no percebemos antes. Sempre digo aosmeus alunos que a matemtica tem uma suprema beleza exatamente por isso. Mesmo emobras como a de Isaac Newton, em que ningum mais vai estudar mecnica, nemastronomia pelos princpios j muito conhecidos e, algumas vezes, superados, isso ocorre.

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    Mas se voltarmos l e entrarmos nos detalhes da obra vai ver que l no tem fim. umasinfonia la Bach. E, veja, no importa o tamanho da obra. O doutorado do matemticoamericano John Nash, Prmio Nobel de Economia, tinha cinco pginas. genial. Euandava com cpias na minha pasta para distribuir aos alunos e mostrar que tamanho nosignifica nada. Se Nash tivesse escrito essa tese na USP, no teria sido aprovado porquehoje parece que exigem pelo menos cem pginas.

    Como v o baixo nvel do ensino e aprendizagem de matemtica no Brasil?uma barbaridade. Convivi com o ensino secundrio dos Estados Unidos, na escola

    pblica de Berkeley. L existe o que eles chamam de honour courses, cursos de honra. Osalunos que querem fazer cursos tcnicos, como mecnica de automveis, tm um mnimode aulas de ingls, histria etc. Depois, se quiserem, podem completar os crditos com osoutros cursos. Mas os honour courses s fazem aqueles que querem ir para a universidade.So turmas pequenas, de 10, 12 alunos, com professores em tempo integral. O ensinoenvolve clculo diferencial, clculo integral, computao, geometria analtica... A pessoaentra de livre e espontnea vontade e se compromete a no ter nota baixa. Se noacompanhar, sai. Depois que acaba o curso, bastam duas cartas de recomendao dos

    professores para entrar na universidade. Se o aluno for bom nesses cursos, j est nauniversidade. Por vrias vezes sugeri fazer algo semelhante aqui, mas sempre me dizemque no democrtico, que elitista...

    O senhor contra essa espcie de cobrana social que h no Brasil para todos cursaremuniversidade, mesmo os que no tm nenhuma vontade ou vocao?Nivelar todos impossvel. No d. Os honour courses e os demais cursos disponveis soum jeito de contemplar todos os interessados. Faz quem quer. Vi l, tambm em Berkeley,um timo curso de mecnica de automveis. Os alunos pegavam um automvel e odesmontavam inteiro, parafuso por parafuso, para depois reconstru-lo sem deixar nenhumapea sobrando. O estudante sai entendendo de carro, vira um excelente mecnico e pode

    ser to feliz no trabalho quanto algum que passa a vida estudando algo muito terico eabstrato. Havia um encanador no campus da Universidade da Califrnia, quando trabalheil, to competente e eficiente que ganhava mais do que um dos meus colegas maisbrilhantes, o professor polons Alfred Tarski, um grande lgico e o melhor salrio dodepartamento.

    Gostaria que falasse sobre filosofia da cincia. Como o conceito quase verdade ouverdade parcial?Acho que a cincia hoje no algo que procura retratar o real. Quando uma proposioquer refletir o real como ele , isso se chama teoria da correspondncia da verdade. Querdizer, o pensamento corresponde verdade. Eu acho que a cincia no assim, ela reflete

    apenas em parte o real. Ela uma quase verdade. A mecnica quntica funciona por qu?Porque ela diz que, em certas circunstncias, se eu apertar um parafuso, obtenho certoresultado. As grandes proposies, as grandes teorias, tudo se passa no Universo como seisso fosse verdade. Formalizei essa noo de verdade uma generalizao da nooclssica de verdade. Ela uma generalizao da definio clssica de verdade de Tarski.Esse lgico deu uma definio notvel para se poder tratar da noo de verdade emmatemtica, que onde funciona. Quando se trata de fsica, preciso de algo mais elstico.Propus para isso o conceito de quase verdade ou verdade parcial. Mas acho que minhaconcepo de verdade, rigorosamente, que matemtica, reflete mais ou menos as idiasde Charles Sanders Peirce [1839-1914], um dos maiores filsofos de todos os tempos. Eacho que as grandes teorias, como a teoria quntica de campo, a mecnica quntica, a

    mecnica clssica de Newton, todas elas so quase verdadeiras, por exemplo. comumdizerem que a relatividade desbancou a mecnica newtoniana. Isso falso. Um avio ouuma ponte, por exemplo, so calculados pela mecnica newtoniana. E a mecnica qunticae a relatividade precisam da mecnica newtoniana. Seno, no funcionam. Como algo falso

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    usado em cincia? Exatamente porque, embora seja falso, quase verdadeiro entrecertos limites.

    Porque ela funciona para algumas coisas em algumas situaes.Exatamente, tudo se passa em certas circunstncias como se ela fosse verdadeira. ocomo se.

    E isso expresso matematicamente.Matematicamente. Sistematizei a teoria da cincia atual na quase verdade. Todas asgrandes teorias fsicas no so verdadeiras ipsis litteris, so quase verdadeiras. Secompararmos exatamente a relatividade com a realidade, h divergncias. E, mesmo queela refletisse exatamente a realidade, como que saberamos que ela reflete? No d paracomparar teoria com realidade, estritamente falando.

    De quando essa sua teoria?Da dcada de 1980, j faz algum tempo. E, note o seguinte, para a mesma teoria quaseverdadeira h infinitas outras teorias quase verdadeiras, posso provar isso. E essas infinitasteorias quase verdadeiras so incompatveis entre si. Ento, a lgica da quase verdade

    uma lgica paraconsistente.

    Para terminar, o que o conhecimento cientfico?Penso que conhecimento cientfico uma crena quase verdadeira e justificada. Essa minha verso da concepo clssica de conhecimento que remonta a Plato. Nesta, oconhecimento deveria ser verdade estritamente falando; o que fiz foi substituir verdade porquase verdade.

    Sobre a lgica paraconsistente

    A lgica clssica, bem como vrias outras lgicas, no apropriada para a manipulao de

    sistemas de premissas ou de teorias que encerram contradies (nas quais sem aproposio e sua negao so ambas teoremas da teoria ou conseqncias dos sistemasde premissas). Porm, nas cincias figuram contradies que so difceis ou impossveis deser eliminadas (o que ocorre, por exemplo, em fsica, onde a teoria da relatividade geral e amecnica quntica so logicamente incompatveis, em direito, onde os cdices jurdicossempre apresentam inconsistncias etc.). Por isso, tornou-se imperativo que se criassemlgicas que pudessem suportar contradies: tal essa essncia da paraconsistncia. Emgeral, uma lgica paraconsistente no implica que a clssica est errada, mas a generaliza.A lgica paraconsistente engloba a lgica fuzzy e tem encontrado as mais variadasaplicaes, tanto terica como prtica. Em especial, ela inspirou uma nova filosofia dacincia e estendeu o campo da razo.

    SOBRE A LGICA EM GERAL

    Por Newton da Costa

    A lgica, segundo a tradio, nasceu com Aristteles (384-322 a.C). Pouco evoluiu no cursoda histria at os sculos XIX e XX, quando sofreu uma transformao extraordinria,dando origem, por assim dizer, a uma nova cincia.

    A lgica era a disciplina das inferncias vlidas, das dedues. Porm, hoje, ela uma

    cincia matemtica, absolutamente no trivial, como tinha sido at o sculo XIX. O estudodas inferncias vlidas constitui, apenas, uma das possveis aplicaes da lgica. Elaencerra atualmente temas tais como lgica algbrica, teoria de modelos, teoria da recurso,lgicas probabilsticas, forcing, fundamentos da teoria de conjuntos e de categorias, forking,

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    lgicas no clssicas, mquinas de Turing e teoria das valoraes. Ela est intimamentecorrelacionada com a matemtica e tem contribudo para a soluo de problemas abertosem matemtica.

    Por outro lado, sua influncia na cultura em geral extraordinria. Os teoremas deincompletude de Gdel, por exemplo, contriburam para a melhor compreenso do poder damatemtica e da prpria razo, evidenciando que um tema tcnico e difcil de lgica podeter conseqncias filosficas de relevo. Os trabalhos de computao terica, ramo muitorico da teoria lgica da recurso, devidos ao lgico Turing, governam toda a informticaatual, com enorme influncia em cincia, tanto pura como aplicada, e em filosofia damatemtica e da cincia em geral.

    A lgica encontrou aplicaes as mais variadas: em filosofia, cincia e tecnologia.Deixando-se de lado as aplicaes filosofia (definio de verdade de Tarski,axiomatigao de aspectos da tica, fundamentao de sistemas metafsicos, etc.), cincia (reformulao da lgica da inferncia indutiva, lgica quntica, etc.), mencionaremosalgumas tecnologias de uma lgica no-clssica, a lgica paraconsistente: em controle detrfico de trens, em controle de trfego areo, em finanas e economia, em intelignciaartificial e em teoria da deciso.

    Sobre a lgica paraconsistente

    A lgica clssica, bem como vrias outras lgicas, no apropriada para a manipulao desistemas de premissas ou de teorias que encerram contradies (nas quais uma proposioe sua negao so ambas teoremas da teoria ou conseqncias dos sistemas depremissas). Porm, nas cincias figuram contradies que so difceis ou impossveis deserem eliminadas (o que ocorre, por exemplo, em fsica, onde a teoria da relatividade gerale a mecnica quntica so logicamente incompatveis, em direito, onde os cdices jurdicossempre apresentam inconsistncias, etc.). Por isso, tornou-se imperativo que se criassem

    lgicas que pudessem suportar contradies: tal essa essncia da paraconsistncia. Emgeral, uma lgica paraconsistente no implica que a clssica est errada, mas a generaliza.A lgica paraconsistente engloba a lgica fuzzy e tem encontrado as mais variadasaplicaes, tanto terica como prticas. Em especial, ela inspirou uma nova filosofia dacincia e estendeu o campo da razo.