Entrevista Com Ítalo Moriconi

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terça-feira, 9 de abril de 2013 Alegria Entrevista (Parte 1 de 3) – por Lucas Matos, Luciana Maria di Leone e Marcio Junqueira. Italo Moriconi é crítico, professor universitário, poeta e organizador de antologias literárias (como os best-sellers Os cem melhores contos brasileiros do século e Os cem melhores poemas brasileiros do século, ambos pela editora Record, 2001). É autor de três livros de poesia (Léu (saiu pela Tarus Timbre em 1988), Quase Sertão (Diadorim, 1996) e A História do Peixe (o mais recente, pela 7letras em 2001)), além de ter poemas incluídos em revistas e livros diversos. Atualmente, como editor-executivo da EdUERJ, tem como um dos destaques da sua atuação no cargo a coleção Ciranda de Poesia, que reúne critica e antologias da poesia contemporânea brasileira e internacional, e que já possui quase vinte títulos publicados. Nos diversos campos de atuação em que tomou parte, uma das marcas de seu pensamento se destaca: a alegria. Ela parece ser o resultado geral da forma como ele passa de uma ideia a outra, como combina dramaticamente questões sérias em um modo de apresentação ligeiro, ou o oposto. Não é à-toa que, no texto dessa entrevista, fomos obrigados a inúmeras vezes pontuar o seu discurso com as tradicionais rubricas que indicam que a palavra foi interrompida para dar lugar ao riso. A sua fala – algo encantatória, com gestual expansivo – está pontuada aqui e ali com o riso, ou com a sua intenção. Publicamos uma versão da entrevista na edição impressa da Bliss, em 2009. O retorno a esse material parece evidenciar a sua pertinência. Recuperamos trechos que tinham sido cortados e optamos por, ao invés de publicar tudo de uma vez só, dividirmos o material tematicamente em três partes. Na primeira, Ítalo fala de sua trajetória, de como começou a fazer poesia, das leituras iniciais, da vinda para o Rio de Janeiro, da incursão na política, e do ingresso na vida intelectual e nos quadros da Universidade pública. Junto a isso, busca pensar a sua geração – que viveu 68 – e as transformações que a marcaram, principalmente a partir dos anos 80 do século passado. Com cada parte da entrevista, publicaremos poemas do autor. Aqui vão três poemas de Léu, seu primeiro livro, publicado em 1988. * pela madrugada, bufamos, camelos, sintonizados, motivos da noite, subcutâneos. os sonhos deram-se as mãos: vimos Alvorecer ao meio dia, que as venezianas cintilavam a incessante manada de búfalos perseguia os camelos num excesso de suor e esperma. tudo em dobro.

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Entrevista com Ítalo Moriconi pelo blog Bliss que não tem Biss.

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tera-feira, 9 de abril de 2013Alegria Entrevista (Parte 1 de 3) por Lucas Matos, Luciana Maria di Leone e Marcio Junqueira.

Italo Moriconi crtico, professor universitrio, poeta e organizador de antologias literrias (como osbest-sellersOs cem melhores contos brasileiros do sculoeOs cem melhores poemas brasileiros do sculo, ambos pela editora Record, 2001). autor de trs livros de poesia (Lu(saiu pela Tarus Timbre em 1988),Quase Serto(Diadorim, 1996) eA Histria do Peixe(o mais recente, pela 7letras em 2001)), alm de ter poemas includos em revistas e livros diversos. Atualmente, como editor-executivo da EdUERJ, tem como um dos destaques da sua atuao no cargo a coleoCiranda de Poesia, que rene critica e antologias da poesia contempornea brasileira e internacional, e que j possui quase vinte ttulos publicados.Nos diversos campos de atuao em que tomou parte, uma das marcas de seu pensamento se destaca: a alegria. Ela parece ser o resultado geral da forma como ele passa de uma ideia a outra, como combina dramaticamente questes srias em um modo de apresentao ligeiro, ou o oposto. No -toa que, no texto dessa entrevista, fomos obrigados a inmeras vezes pontuar o seu discurso com as tradicionais rubricas que indicam que a palavra foi interrompida para dar lugar ao riso. A sua fala algo encantatria, com gestual expansivo est pontuada aqui e ali com o riso, ou com a sua inteno.Publicamos uma verso da entrevista na edio impressa daBliss, em 2009. O retorno a esse material parece evidenciar a sua pertinncia. Recuperamos trechos que tinham sido cortados e optamos por, ao invs de publicar tudo de uma vez s, dividirmos o material tematicamente em trs partes.Na primeira, talo fala de sua trajetria, de como comeou a fazer poesia, das leituras iniciais, da vinda para o Rio de Janeiro, da incurso na poltica, e do ingresso na vida intelectual e nos quadros da Universidade pblica. Junto a isso, busca pensar a sua gerao que viveu 68 e as transformaes que a marcaram, principalmente a partir dos anos 80 do sculo passado.Com cada parte da entrevista, publicaremos poemas do autor. Aqui vo trs poemas deLu, seu primeiro livro, publicado em 1988.

*

pela madrugada, bufamos, camelos, sintonizados,motivos da noite, subcutneos. os sonhosderam-se as mos: vimosAlvorecer ao meio dia, que as venezianas cintilavama incessante manada de bfalos perseguia os camelosnum excesso de suor e esperma. tudo em dobro.ficara de telefonar antigo anjo, azul.

*

moa na janela

entre bananeirassuspirao o oo lenol do calor, arfa, irdeste interiorpra cidade, beirar

cabelos plantaro esquinas

noite ajudo a tia na costura

alfazema

*

trio ternura

eram os trs da reforma:num canto, encostados,escuros, azuis,de jeans desbotados.

uma barba, voz gravee doze dedos pelos beios;outra: a berrosclamando questes de ordem

e o terceiro fungava,alto, nos braos,bufo do ilegal na tarde de sbadolouco professor (matemticaem sala de encapetados);

fungava, e com isso seu corpo,trs lguas maior que o assentose expandia bruscamente

os ps compridos, de chulsfranciscanos,por instantes assumiamo central da reunio

mas a mesa, indignada,prosseguia na jogada.(1977).

***

BLISS:A gente poderia comear falando um pouco sobre a sua trajetria.I:Minha trajetria? Pessoal? Intelectual?

BLISS:Tudo junto. Eu acho que t bem misturado.I:Minha autobiografia? Um relato autobiogrfico?

BLISS:Em cinco minutos.I:Eu s quero entender o que vocs querem... em cinco minutos?

BLISS:Como voc chegou na poesia?I:Eu cheguei na poesia atravs de um presente... j gostava de escrever, n? As minhas redaes na escola eram celebradas por professoras e papai e mame (risos). E a, quando eu tinha treze anos, eu ganhei uma mquina de escrever. Inesquecvel, minha primeira paixo na vida. Uma lettera 22 Olivetti. Uma lettera 22. Uma porttil. Meu pai me deu de presente. E assim comeou minha relao com a poesia: eu escrevi os meus dois primeiros poemas na vida aos treze anos. Eu devo ter isso guardado at hoje. Ttulos bem adolescentes: Labirinto e Lagoa noite. (risos). E a, pronto, a eu comecei a escrever poesia escondido.

BLISS:Por que escondido?I:A poesia era como meu dirio. Ento era tudo escondido... A partir de uma certa idade, acho que a partir de uns dezesseis, dezessete anos, eu comecei, assim, a ler para aprender, n? Eu j lia muito por prazer, eu comecei a ler para aprender e a, isso. Vi que a poesia era a minha. Depois fui pra graduao, s que eu fui fazer graduao em Cincias Sociais, mas comecei a publicar, sempre escondido. Eu morava em Braslia, mandava as coisas para a Tribuna da Imprensa. E eu comecei a ler e a me interessar pelos poetas e eu estudava lnguas, estudava ingls, francs como um bom menino burgus de Braslia no meu tempo, n? A gente estudava na escola, fazia esportes e estudava ingls, francs. Francs na Aliana Francesa, e ingls, alguns na Cultura Inglesa e outros no, no correspondente ao Ibeu de l, que se chamava Caio Thomas Jefferson, que eram centro culturais intensssimos. Eu tive uma aprendizagem cultural legal nos anos 60. Ontem, fui verPalavra (En)Cantada, a tem cenas doMorte e Vida Severina, n? Me lembrei eu, adolescente, vendoMorte e Vida Severinacom o Tuca, puxa como... com quinze anos, foi uma das coisas fundadoras da minha vida. Tambm tem cenas doRei da Velana montagem do Oficina da poca, n? , tambm... L em Braslia, tudo ia pra Braslia. Ento durante os meus tempos de faculdade, eu estudei muito poesia por mim. Particularmente, poesia em ingls e francs, n? Ento durante os meus tempos de faculdade, eu estudei muito poesia por mim. Particularmente, poesia em ingls e francs. E a poesia brasileira eu s fui comear a ler mais quando eu vim pro Rio pra fazer Mestrado, mas eu j lia Drummond. Tentei ler Cabral. , assim, sei l, um relato assim das fontes bem primeiras, bem primevas.

BLISS:Dessas primeiras leituras que voc fez quais foram as mais marcantes, as mais interessantes, as que te pegaram mesmo?I:O que me pegou muito foi quando eu realmente comecei a querer ler poesia a srio para aprender poesia, para ser poeta, realmente seguindo by the books. Quer dizer, o que os the books mandavam eu ler, eu fui l e li, que foi o Eliot, n? Bom, acho que a minha grande escola primeira foi oMetalinguagemdo Haroldo de Campos, que de crtica literria. Ento, a partir dessas leituras eu ia correr atrs dos poetas citados. E a o Eliot, e a partir do Eliot, eu me lembro que eu estudava poesia francesa, e como lngua estrangeira, ento tinha que ter dicionrio. Eu era srio pra burro nisso, sabe? Eu ia l pra biblioteca da UnB e passava tardes inteiras lendo e traduzindo poemas e eu gostava muito de copiar mo, n? Ento depois do Eliot, por causa do Eliot, me interessei pelo Laforge. Pelo Laforge, e a comecei a ler tambm poesia brasileira, Drummond. No t me lembrando muito bem assim dos detalhes, no, mas era isso. E eu escrevia, escrevia, escrevia, escrevia muito. Mas nada que possa ser aproveitado hoje. Mas escrevia muito. Eu escrevia poemas discursivos, compridos, entendeu? Mas depois, digamos, todos os meus poemas, principalmente do livroLu, todos os meus poemas so praticamente tirados dessas pginas iniciais, s que cortados, resumidos. Ento tem poemas l, em Lu, tem poemas de trs ou quatro versos, bem curtinhos, que a origem deles um poema de quatro pginas, cinco pginas.

BLISS:Mas a voc disse que quando veio pro Rio, comeou o mestrado em letras, mas a voc tambm comeou a militar em poltica?I:Sim.

BLISS:Como comea a se combinar essa vontade de ser poeta e a militncia?I:As duas coisas. Eu sempre fui superpoltico e superartstico, mas sempre focando a poesia, n? Eu sempre quis Letras. Eu queria ser escritor, eu queria fazer vida literria, eu queria ir pro Rio de Janeiro fazer vida literria. Mas eu optei por Cincias Sociais. Eu acho que hoje, eu pensando a posteriori, isso uma faca de dois gumes, porque, realmente, eu acho que uma formao em Cincias Sociais ou Histria ou de outras reas, assim, mais Cincias Humanas, muito bom para quem vai fazer Letras, para quem vai se dedicar s letras. Porque para a pessoa, em geral, que vem s de Letras sempre mais complicado para ela penetrar no mundo da teoria, da bibliografia terica e tal. Mas por outro lado, eu lamento demais porque eu no tive aquela graduao em literatura grega, uma formao escolar clssica. Fez falta. Mas a poltica e a poesia sempre tiveram muito juntas pra mim, s que a poesia uma coisa que eu praticava j em Braslia desde muito cedo e a poltica eu s vim praticar mesmo quando cheguei no Rio de Janeiro.

BLISS:Quando a poesia passou desse lugar ntimo para um lugar pblico?I:Bom, o meu sonho no incio era ser um Maiakvski, entendeu? (risos).

BLISS:E quem seria o Lnin desse Maiakvski?I:Ah, um Lnin. Eu posso tambm te contar minha trajetria toda. Foi uma trajetria meterica, a minha passagem pela esquerda organizada foi uma trajetria meterica. Num espao de poucos anos, eu fui desde uma organizao praticamente anarquista at o partido. A, depois eu sa, e fiquei independente. Mas tudo no espao entre 78 e 85. Quando veio a abertura poltica, eu sa do partido, fiquei completamente independente, eu fiz uma opo, eu fiz a opo por uma vida profissional, por ser professor, fazer concurso. Porque o problema o seguinte: quando veio a democracia, ou voc se profissionalizava na poltica, ou no tinha sentido. Eu at entendo hoje em dia, as pessoas que querem reeditar a vida militante. Pessoal do PSOL, partidos assim. A minha defesa de mestrado foi engraada porque foi a Dirce, o Afonso, o orientador [era] o Costa Lima. O Afonso falava, quer dizer, ele j achava, a gerao deles j achava uma maluquice: o talo agora vai virar militante de esquerda, vai participar de reunio clandestina. Se voc tava fazendo poltica a srio, voc tinha que ser candidato a vereador, a eu nunca quis ser um burocrata, participava da poltica como um cidado, como militante. Nunca quis ser um burocrata, embora eu tenha me tornado um burocrata porque o professor universitrio eminentemente um burocrata. A, eu me afastei da poltica partidria, mas eu passei a ter uma vida de professor, fiz concurso pra UERJ. Ento, aquela bomia literria que tambm caracterizou muito o perodo, que foi at o perodo em que eu convivi com a Ana Cristina Csar, 76, 77, 78, 79, uma bomia literria que eu vivi, que eu vi, que eu vim pro Rio pra viver, se dissipou numa vida profissional.

BLISS:Sobre a dcada de 60, 70, em geral, a gente tem muita bibliografia, tem muitos relatos. Sobre a dcada de 80, a gente quase no ouve as pessoas falarem. Posso estar enganado. Na dcada de 80, comea um refluxo mais forte revolucionrio, comea a caminhar pruma nova ordem que vai ser o neoliberalismo, mas no h muitos relatos sobre isso. Quer dizer, no livro sobre a Ana Cristina , voc assume um papel de memorialista da sua gerao, e eu me lembro que uma das coisas que voc falou na sua posse da EdUERJ, foi da chegada de uma gerao ao poder. Eu queria que voc falasse sobre esse percurso, a partir dos anos 80, da sua gerao e como voc v isso?I:Isso uma coisa que t muito na minha cabea atualmente. E volta de vez em quando, n? Eu fui ver a pea RocknRoll do Tom Stoppard e novamente esse insight veio pra mim. Pensando bem, eu sempre me encaro como filho dos anos 70, e, portanto, como filho de 68. Os anos 70 nada mais so do que 68 durante dez anos. Nos anos 70, tinha trs coisas: tinha poesia, tinha poltica e tinha a formao contracultural. O meu apelido no movimento estudantil na PUC era frao desejante. Ento, j externava minha filiao contracultural no meio daquele bando de comunista. No meu projeto, quando eu escrevi a Ana Cristina, e tambm no projeto que eu tinha com relao ao Caio Fernando, sempre tinha essa ideia de recapturar, digamos assim, os anos 70 como cronista e memorialista dos anos 70. Os anos 70 so os anos mais formadores. A minha vida depois desse perodo, que termina um pouco mais pra frente em 83, 84, se tornou uma sucesso montona de dias. Ento quando eu olho minha vida ps-adolescente, os anos 70, tudo t ali. E na verdade a raiz de como eu sou ainda hoje, por mais pragmtico, burocrata e administrativo como Gilberto Gil Ministro da Cultura (talvez vocs s conheam o Gilberto Gil j muito engravatado, mas eu no tenho a menor dvida que o Gilberto Gil pode ser presidente do mundo que ele aquele Gilberto Gil l dos anos 70 e dos anos 60 em algum nvel ou num nvel muito fundamental), sempre me senti muito identificado com isso, e verdade, eu acho que no fundo eu acalentei sempre muito o projeto de, como uma coisa legal, no como uma coisa absoluta, como uma coisa muito legal isso, de escrever a minha gerao. Acontece que de repente eu cansei. (risos). De repente eu cansei porque eu vi o seguinte, olha, eu sou filho dos anos 80. De repente eu saquei que os anos 80 so fundamentais, foram fundamentais para mim. E que ento como que eu vou resolver isso? Ento olha s, j que o Mrcio gosta desse tipo de referncia: eu no sou especialista em nada, eu sou amador em tudo, a no ser nas coisas que eu amo... nas poucas coisas que eu amo. uma questo existencial e esttica, que o seguinte: a fundao de tudo do ponto de vista imaginativo e existencial est nos Rolling Stones, mas eu gosto mais do U2. (risos). Eu acho o U2 muito mais importante que os Rolling Stones, mas o Rolling Stones tudo. Ento como que eu vou equacionar isso? Acho que s a santssima trindade pode explicar. Entendeu? O nosso mundo, o mundo em que ns vivemos, comea nos anos 80. Na pea RocknRoll, ele faz um histrico, ela at didtica nesse ponto, porque entre as diversas cenas entre os diversos quadros ele mostra uns pedaos de filmes dos anos 60, ele vai muito devagarzinho, 66, 67, 68, 69, 73, 74, vai devagarzinho, e depois ele salta e tem s uns dois quadros dos anos 80 e 90. Ento quando chega nesse final da pea que muito resumido, aparece Margaret Thatcher, Reagan. Por menos que eu queira admitir isso, eu vivo num mundo e eu quero entender o mundo que surgiu a partir da Margaret Thatcher e do Ronald Reagan e sem ressentimentos porque existe o U2. Quer dizer, e muitas outras coisas, como hoje em dia existe o hip hop existe o rap.

BLISS:Parece ser muito difcil fazer uma narrativa da passagem. Porque todas as narrativas feitas sobre os anos 70, inclusive a sua, tanto da Ana Cristina, quanto a do Caio, ou as que fizeram do Leminsky, sempre so narrativas sobre pessoas que no fizeram o transcurso, que no tiveram que fazer a opo, ou fizeram de uma outra forma a opo que voc fez: uma opo por uma coisa mais burocrtica. Voc acha que ainda seria possvel fazer uma narrativa, seria possvel fazer a sua autobiografia?I:J que no escrevi a biografia da gerao, vou escrever a minha autobiografia. No, eu t brincando, eu sou superautobiogrfico, s sei escrever sobre a minha pessoa e tal. Mas uma coisa que eu queria falar tambm complementando o que eu tava desenvolvendo: Eu coloquei assim mais ou menos o drama existencial, mas o que eu quero dizer o seguinte: os anos 80 viraram tudo, e a eu no posso deixar de colocar como uma referncia a minha trajetria dentro da universidade, dentro da vida acadmica, porque nos anos 80 foi quando eu me aceitei como intelectual. Porque a universidade isso que voc t chamando burocrtico tem um lado que ainda o lado participativo meu, que o veio poltico, mas o outro lado que o lado profissional. Na formao anos 70 e contracultural, o intelectual, ele desvalorizado, ento voc no quer ser intelectual, voc quer ser militante, voc quer ser poeta, voc quer ser artista. Mas intelectual, no. No havia a menor iluso desse intelectual iluminador das massas, intelectual geral, intelectual era o especialista, o funcionrio. Ento, os anos 80, para mim, pessoalmente, foi importante eu me reconhecer enquanto intelectual e situar os outros papis subordinados a esse. A minha trajetria universitria interessa no como uma histria burocrtica, mas porque uma trajetria intelectual. Nos anos 80, entre o meu mestrado e o meu doutorado, aconteceu uma tsunami. Tudo que eu aprendi no mestrado, que foi basicamente o estruturalismo com pitadas de ps-estruturalismo, quando eu fui fazer doutorado nos anos 80, estava virado de cabea pra baixo. O estruturalismo no tinha mais nada a ver, o ps-estruturalismo era uma fora poderosa mas talvez num sentido outro. Isso se reflete na prpria dualidade dos meus dois grandes mestres, que foram o [Luiz] Costa Lima e o Silviano [Santiago]. Tem todo um apego meu, toda uma ligao minha com esse ps-estruturalismo que passa a prevalecer nos anos 80/90, mas tambm tem toda uma formao em cincias sociais, de filosofia da linguagem, de Kant. Poxa, eu participei de grupos de leitura de Kant com o Costa Lima em 83, com Luis Eduardo Viveiros de Castro, Luis Eduardo Soares. Ento, isso muito marcante na minha formao realmente. E principalmente do ponto de vista dessa virada pragmtica, s que a virada pragmtica teoricamente falando, ela t vinculada a uma virada poltica, que realmente um reencontro dum pensamento radical com as fontes liberais do prprio pensamento radical. Ento questo que eu colocaria de uma maneira mais geral: eu acho que nos anos 80 [ocorre] uma guinada da intelectualidade universitria brasileira, uma boa parte dela, justamente no novo dilogo com o liberalismo. Ento, foram mudanas brutais. Mudanas na poltica, que eu passei a me colocar de maneira ecltica. Eu sempre fui muito desconfiado de ideologia, ento eu passei a me colocar de maneira ecltica, eu sou livre. Ento, tem aqui essa tradio marxista, tem aqui essa tradio liberal, tem aqui essa tradio pep, pop, papap, e eu fao o que eu quiser com elas. Porque tem uma raiz, a raiz sempre libertria, contracultural, libertria, materialista. Se voc quiserem saber qual o meu discurso sobre religio hoje, ele muito complexo, mas eu no fao parte do grupo de pessoas que depois de todas essas crises a, virou religiosa. Mas tambm acho pobre, pobre, pobre de marr marr deci voc fazer campanhas pelo atesmo, voc querer deixar as evanglicas semimortas porque voc ateu. (risos). Acho uma coisa completamente pauprrima, porque eu acho que a religio necessria, o simbolismo maravilhoso, eu tenho uma relao esttica com a religio e acho tambm que a poltica contempornea, global, passa pela religio. isso, eu acho que tem uma ruptura muito grande que vai acontecer do ponto de vista intelectual, na vida intelectual, na vida terica, tem um deslocamento muito grande na vida poltica. Da minha parte, sei l, eu acho que o meu rtulo em poltica radical, no sentido italiano da palavra. A ideia de democracia radical. E tem esse drama eterno da esttica: quem o maior Dante ou, sei l, Joyce? Rolling Stones ou U2?

tera-feira, 16 de abril de 2013

Alegria Entrevista (Parte 2 de 3) Fala o crtico.Parte 1

Na segunda parte da entrevista feita com o talo Moriconi, podemos ver um destaque maior ao pensamento crtico sobre a poesia produzida no Brasil e no mundo no final do sculo XX e no incio deste outro sculo. talo rev algumas de suas posies, fala das reaes e do encontro entre o que a crtica costumou estabelecer como poetas da gerao 70 e da gerao 90 no Brasil. Seu exerccio crtico, que ele mesmo chama constantemente de pragmtico (com receio do prprio excesso), ganha definio lapidar na ideia da busca de um ceticismo ativo. Por fim, comenta com entusiasmo a produo potica atual, e tenta estabelecer duas pulses, ou dois binmios importantes para a compreenso do que move a poesia: a poesia da linguagem, ou a poesia na linguagem, e a poesia da cultura, a poesia dentro da cultura. Publicamos com essa segunda parte poemas da primeira sesso deHistria do Peixe, livro de poesia do autor lanado em 2001 e declaradamente seu preferido.

Histrias de um peixe

Sublinho a linha de teu dorsocom a escrita mida, estilete de salivaque aponta ao pespontar cada ponto de poro teu

voc pode sucumbiroh voc deveria sucumbir escrita de teu dorso tigrino, circunspecto

havero de me entender, os que leremestas traadas linhas, trilhascom volutas sobre a linha que se esfia

*

Sim, eu digo, ou tremo,gosto assim, em descuido de direo,curvas como pela estrada da serra, de santosque acendem aqui, no oco dos cavalinhos de pauo desejo de meu pai por minha mee dela por eleperene em mim.

*

Vamos ver o que fazer.Nada.Deixar-se ficarAo sabor das pedrasQue rolam sobre outras pedrasMovidas pela guaEnquanto dura.

*

dramatis persoanae: Genet, Fassbinder

na trilha do grafito rocambolescolegendas de marinhagem, anavalha, zs!os msculos, atrs!Veloz! a valsa vaiCom cuspe, sangue, merdaeterna, e escondida, a escovarsua sinfonia pelos banheiros

*

BLISS: De uma forma um pouco mais geral, a gente tava falando de contracultura. O que acontece nessa ruptura com a contracultura, ela desaparece? Ou voc acha que ainda nos 70 e inclusive agora tem alguma forma possvel de contracultura e qual seria?I: No eu acho que a contracultura tem sobrevivncias... (A sala invadida pelo odor de um baseado distante). Falando de contracultura, a vizinha aparece. Basta o Mrcio chegar aqui, a vizinha comea a fumar maconha, no todo dia. (Muitos risos). Repete a pergunta.

BLISS: O que acontece com a contracultura nessa virada e se a contracultura na dcada de 80, na de 90 e inclusive agora, tem alguma forma possvel de ser? Qual seria a contracultura depois dos 80?I: Primeiro, eu acho que ns temos que tomar um certo cuidado para no reificar, porque a contracultura no uma instituio, ela uma frmula vaga. De certa maneira, um rtulo, um fetiche miditico, ento voc tratar tambm a contracultura como objeto ou sujeito complicado. Agora, eu acho que voc pode identificar determinadoslife styles, modos de vida, determinados valores, uma certa tradio, que tem a ver at tambm com bomia. Talvez a contracultura seja at um captulo da histria da bomia. Ento eu gostaria de ver de uma maneira assim mais frouxa. Ento voc tem sobrevivncias residuais. Hoje em dia, voc tem tribo de tudo. As pessoas so mais contraculturais, menos contraculturais. Mas eu acho que a questo outra. Eu vejo uma ruptura muito grande. Por um lado, aquilo que a gente identifica como contracultura como alguma coisa muito datada, no tem nada a ver com hoje em dia, mas por outro lado, a contracultura, ela se identifica com determinados elementos revolucionrios, transgressivos, libertrios... que nem a questo do revolucionrio marxista. a mesma coisa. Eu acho que perfeitamente possvel fazer a crtica radical do socialismo real, do marxismo real, dos partidos comunistas, e que hoje voc muitas vezes est sendo fiel quilo que o impulso marxista revolucionrio mais profundo s vezes assumindo posies que so completamente opostas. Por exemplo, voc s ser fiel ao marxismo em Cuba, se voc for de oposio ao regime cubano, voc ser fiel ao marxismo na Europa Oriental se for oposio Europa Oriental. A nova esquerda contracultural j achava isso. Na peaRocknRoll, fala-se de uma coisa que era um mote dos anos 70, que era um pouco exagerado, mas verdade, que aquela coisa, a sustica igual a foice e martelo. O regime stanilista um regime totalitrio, totalitarista de estado. O que eu acho ento que os herdeiros ou os interessados na contracultura podem encontrar no contexto contemporneo as tendncias que constituem esse solo. Pode ser que esteja sendo um pouco otimista. Por exemplo, o que me parece uma coisa contracultural hoje: pode parecer um pouco bobo porque a prpria Globo j incorporou esse discurso, mas eu acho que essa cultura da periferia, essa coisa hip hop, essa coisa rap. Tem que ver como: porque como Walter Benjamin mostra, o mesmo fenmeno social, ele tanto pode ter uma leitura e ser uma coisa fascista quanto ter uma leitura e ser uma coisa revolucionria. Por exemplo, na primeira verso daObra de Arte na Era da Reprodutibilidade Tcnica, ele cita o Mickey Mouse, ele defende o Mickey Mouse como um fator extremamente revolucionrio dentro da esttica das massas. Porque o problema como voc vai fazer: voc vai t trabalhando numa esfera de estetizao dessas coisas que representam a transformao (que sempre a ascenso democrtica, sempre questo de vida tambm, e a a contracultura entra); ou voc vai t estetizando isso a partir de um espetculo centrado, monocromtico e totalitrio em prol de um bem comum, em que todos batem palma; ou voc vai politizar esse processo, ou esse processo vai t se dando de uma maneira politizada. O que significa fundamentalmente politizao? aquilo que o Deleuze tanto gosta, so os devires que explodem, so as subjetividades. A politizao a diversidade, so os conflitos, so os interesses conflitantes, ou se voc quiser uma coisa mais blica, foucaultiana, so as guerras e o espao pblico. Eu acho que o contracultural tem a ver com esse movimento social: se voc vai se colocar dentro de uma criao de uma normatividade unnime ou se voc vai ser uma voz dissonante de alguma maneira dentro daquilo, agora eu tambm sou muito ps nesse sentido. Eu acho que uma coisa da contracultura e da tradio revolucionria, eu acho que no cabe mais. Talvez eu seja um pouco funcionalista e pragmtico demais, eu acho que realmente voc pode ter milhes de vozes dissonantes, mas como diria Foucault, sempre essas vozes dissonantes to apontando para uma nova sistematicidade; quer dizer, eu no acho que tem nada redentor. Porque a contracultura tem algo de redentor, o Kerouac um religioso, redentor, que quer redimir a humanidade, a humanidade, a dor humana, ento nesse ponto, no, nesse ponto, eu sou ctico. Eu acho que, do ponto de vista filosfico, dentro de uma clave no-totalitria, dentro de um partido no-totalitrio, eu acho que a grande mudana justamente essa conquista de um ceticismo... a conquista de um ceticismo, de ethos tambm, de verificar que o prprio pensamento crtico se esclerosa e se torna dogmtico. Ento o prprio Adorno j tinha reconhecido isso, o prprio pensamento crtico, a prpria razo, toda a razo traz em si um fundamento mtico e o Wittgenstein tambm, toda a linguagem se petrifica num sistema dogmtico, totalitrio, como diria o Barthes tambm, toda linguagem fascista, isso inerente ao processo social, s linguagens, ento acho que o ceticismo uma conquista. A no d pra compactuar com a contracultura, eu sempre tive esse problema com a contracultura, que as pessoas na poca acreditavam muito naquela opo de ir pro mato, essa coisa do acreditar demais...

BLISS: Como essa conquista de um ceticismo ativo poderia se dar na poesia dos anos 80 pra c? Pergunto porque me lembrei que voc tem um artigo sobre poesia dos anos 90, em que voc fala da volta do sublime na poesia brasileira , que voc conclui propondo o que chama de uma retomada culturalizada da contracultura...I: Olha, eu fui proftico, eu me lembro que eu tinha nos anos 80, eu tinha oficinas literrias, oficina potica, olha, eu vou te dizer quem participou das minhas oficinas poticas: Toni Plato, ele nem deve se lembrar... t at com show no Caneco... E Alvinho que hoje em dia doJB, editor doIdeiasetc. e tal. Ento eu dizia, s pra fazer blague, eu dizia assim: cuidado porque a gerao 90 ser uma gerao 45 ao quadrado... e no que aconteceu? (risos). No, eu t exagerando um pouco, entendeu? Porque eu acho tambm que a minha gerao, a gerao 70, diante de uma nova gerao, nos anos 90, ela reagiu muito mal num primeiro momento, at por uma questo de competitividade, e porque tambm pintou, a partir do final dos anos 80, um jogo mercadolgico mais pesado e as pessoas ficaram um pouco ressentidas porque o nosso horizonte era mais pobrinho, era distribuir uns papeizinhos ali na porta do cinema, ento de repente ter uma coisa miditica, at que eu me lembro por exemplo da coleoClaro Enigmado Augusto Massi, e toda uma seriedade nova em torno da nova poesia, ento acho que houve um primeiro momento tambm de rejeio, n? Que normal que uma nova gerao seja a continuidade e a reao contra aquilo. Ento, eu fiquei espantado quando vi os novos poetas dos anos 90, porque eles assumiam essa coisa da poesia, do potico, mas eu acho que eu exagerei um pouco em ver... por exemplo, essa questo do sublime, mas isso existe, ao mesmo tempo eu acho que existe. Eu acho que eu vi de maneira negativa num primeiro momento algo que hoje eu no acho negativo, porque a minha esttica tambm mudou demais, as minhas preferncias estticas mudaram demais. Muito mesmo, ento esse pragmatismo poltico de que eu falei, ele tambm existe do ponto de vista esttico. Tenho que reconhecer isso, eu acho que hoje em dia, eu tenho uma esttica muito mais aberta. Eu acho que os anos 90 com esse negcio de fazer poeminha metrificado... agora t falando s do ponto de vista da provncia da poesia, ento pensando esses processos todos do ponto de vista da provncia da poesia, o que os anos 90 vo indicar num primeiro momento? Indicaram uma volta s formas tradicionais do verso, uma recuperao do soneto, uma revalorizao da mtrica, uma revalorizao da rima, que eu no acho negativos em si, mas eu prefiro um conceito de ritmo muito mais rico, muito mais elaborado.

BLISS: Eu estava lembrando daquele textoque voc escreveu para a revistaMargens, que j tem dois anos, sobre a gerao 00. Voc dizia que ainda tinha que ser feito um perfil da gerao e dava alguns traos marcando que tambm no se trata de uma ruptura com a gerao 90 mas uma diversificao.I: Eu acho que uma abertura da forma. Quer dizer, no achar que poesia seja saber versificar. E outra coisa tambm, eu acho que esse tipo de vocabulrio que eu vou usar, que eu acho que tava havendo tambm uma tendncia a usar um vocabulrio de preciosidade potica, que um sublime clich, um belo clich. Ento eu acho que h uma liberao maior da linguagem potica. Agora tinha uma outra coisa que eu queria falar sobre esse negcio da poesia 00, eu acho que um dos dados mais importantes que mantido atualmente, por isso que eu chamo assim de poesia da linguagem, depois eu vou falar um pouquinho sobre isso que uma coisa que tem pintado na minha cabea tambm. Eu acho que dado essencial tambm a internacionalizao e a sofisticao. Eu acho que a poesia dos anos 90, ela partiu de um outro universo, um universo em que nomes concretos, a crtica dos concretistas tinha um lugar muito grande. Esse filme,Palavra (En)Cantada, por exemplo, comea sua narrativa com Arnaut Daniel...

BLISS: Cantado pela Adriana Calcanhotto.I: Cantado pela Adriana Calcanhotto. Ento, o que Arnaut Daniel? Quer dizer, o Arnaut Daniel uma maravilha, e a cena da Adriana Calcanhotto maravilhosa, mas do ponto de vista de uma narrativa histrica, o que Arnaut Daniel? Toda narrativa, teoria mnima, voc vai narrar optando: eu posso comear pelo pai, pela me, pelo esprito santo, pela nuvem ou pela cobra, ento por onde voc comea j define. O que significa Arnaut Daniel? Arnaut Daniel um determinado repertrio, um determinado tipo de viso da poesia, o Arnaut Daniel, ele vem l daMetalinguagem, ele vem l da teoria da poesia concreta. Ento esse universo, a partir desse universo que a poesia t sendo pensada na relao com a msica popular. E um universo que eu acho que tem um referente muito internacional, cosmopolita, vanguardista, enquanto que a gerao 70 tinha um referencial modernista brasileiro, Drummond, Oswald de Andrade. Eu acho que dos anos 90 pra c, a poesia brasileira ficou muito mais universal nos seus referenciais, ela parte de outros lugares, ela ficou muito mais sofisticada. Eu acho que ela ficou melhor num certo sentido, eu acho que, hoje em dia, a poesia brasileira t partindo de um territrio to mais sofisticado que [pega as revistasModo de Usar & Co. # 1 e a coletnea comemorativa reunindo quatro nmeros daAzougue] tudo bom aqui. Mas eu digo isso, tem pessoas que riem quando eu digo isso. O pessoal pergunta assim: o que voc acha da poesia contempornea brasileira? Eu acho toda ela tima, eu s vejo poemas sofisticados, timos. que nem a poesia portuguesa, que nem a poesia argentina. Eu no sei as outras, mas as que eu t acompanhando agora, a poesia argentina e a poesia portuguesa so maravilhosas. A poesia portuguesa uma coisa impressionante, no tem poeta ruim em Portugal, s aparece poeta bom, s poeta bom, s poeta bom, parece que t no sangue. Na Argentina, eu acho que assim tambm. Mas eu acho que tem, na gerao 00, essa coisa que uma profunda relao com a linguagem e um universo de repertrio universal, sofisticado que em outras reas no tem. Na prosa, por exemplo, no tem, todo mundo ignorante. Quer dizer, ou ento, limitado no seu ponto de partida. Agora aqui no, um t visitando Pound, todo mundo culto.

BLISS: Engraado, porque essas coisas que voc t colocando, realmente voc continua o que voc colocava naquela apresentao, mas eu fiquei pensando hoje numa questo que queria saber se voc iria rever essa afirmao, ou continua afirmando. Voc falava que a gerao 00, por essa diversificao nos traos estilsticos, na forma, inclusive nos significados que eles trazem, no uma literatura deismos. E voc fala que so ncleos, esto nucleados. Ento, qual ou quais seriam as foras que formam esses ncleos. Porque, realmente vendo a poesia carioca, esses ncleos parecem estar tambm estourando, porque as torres que pareciam ncleos vo abrindo. Quais seriam as foras que nucleiam ou desnucleiam esses poetas?I: Eu acho que bem possvel que exatamente, agora esteja ocorrendo um momento de disperso, de trocas entre os grupos. Se voc no tiver uma editora, uma revista que faa esse papel, voc no tem um ncleo. Eu acho que o universo potico que eu chamo da poesia da linguagem, ele nucleado em torno de peridicos e editoras, hoje em dia. Assim como poderia ser nucleado por um grupo bomio num bar.

BLISS: Ento, no seu papel de editor, como um editor decide, com que critrios, ou voc como editor, que critrios utiliza para formar esses ncleos? Se voc tivesse uma editora de poesia, quais seriam esses critrios?I: Olha, eu na verdade tenho uma proposta, quando eu assumi l [o cargo de Editor Executivo da EdUERJ], eu falei uma coisa que eu pretendo colocar em prtica, que o seguinte: eu sou um editor universitrio, ento o editor universitrio tem suas caractersticas prprias, mas todo editor tem direito a fazer uma coisinha que dele, e eu vou fazer uma coisinha que minha, que a minha cara, que uma coleo de poesia. Mas uma coleo de crtica de poesia [hoje, aCiranda da poesiaj tem cerca de vinte ttulos publicados]. Ento, uma coleo onde crticos e poetas contemporneos falam de crticos e poetas contemporneos. J tem cinco livros prontos, e eu gostaria que ela fosse o mais aberta possvel. Porque se voc t num determinado universo, incluindo a poesia da linguagem, voc tende a achar que o que o outro faz nem poesia . Ento, eu gostaria de fazer um projeto potico... isso a no d pra configurar ncleo de nada, porque muito ecltico, muito aberto. uma editora universitria que tem a obrigao de ser aberta. Eu acho que um ncleo potico, ele vai ter uma certa cara. Por exemplo, aAzouguetem uma certa cara, aInimigo Rumortem uma certa cara, aModo de Usartem uma certa cara. AInimigo Rumortem uma cara de anos 90, aModo de Usartem uma cara de anos 00, mas filha nos dois sentidos. Essa revistaCoiote, por exemplo, j parecida com aAzougue, ela tem uma informao meio contracultural tambm. Tem os mesmos referentes poticos, poetas beats, do surrealismo remotamente, l atrs, etc. Ento, eu acho que possivelmente a gente t vivendo um momento de abertura, de expanso, e a pode ser que signifique uma descentralizao mesmo.

BLISS: Mas eu lembro quando a Lu fez o estgio dela, foi uma matria que o Lucas fez tambm, no foi? Que os meninos leram aInimigo Rumor, eu lembro de voc falando, eu no esqueo isso, voc propunha, achava que esses referentes todos, cannicos, na produo atual j estavam um pouco, no defasados, mas no eram o referente mais forte. A, voc falava muito sobre o Carlito, que achava que tinha algumas figuras que acabavam encabeando essa produo. Carlito, Chico Alvim. Queria que voc falasse um pouquinho sobre isso.I: Pois , olha s, eu acho muito importante, do ponto de vista da formao do poeta, da pedagogia do poema, aquele curso que eu dei, porque eu, hoje, advogo o seguinte: bom, uma das coisas que tem que fazer num projeto de ensino de poesia, seja ele numa graduao ou fora de uma graduao, o que voc tem que fazer quando vai ensinar poesia, quando voc vai introduzir pessoas poesia, voc tem que ensinar a ler poesia moderna. Poesia tradicional tambm. Mas a poesia tradicional os professores de gramtica se encarregam de ensinar, porque o que voc tem que aprender mesmo da poesia tradicional como que eu conto o verso. Voc pode ter um professor que ensine isso mal, voc pode ter... fascinante a questo do ritmo e tal. Ento, o teu problema : como ensinar poesia moderna? Ento, numa graduao como por exemplo a da UERJ, voc t ensinando literatura ento tem uma matria que destinada a ensinar a poesia moderna. O que eu defendo o seguinte: que, hoje, voc no precisa, se voc no quiser, voc no precisa fazer um curso sobre Oswald de Andrade, Bandeira e Drummond. Voc pode fazer um curso sobre a gerao 90, ou um curso sobre a gerao 70. Isso que foi importante, para mim, do ponto de vista do professor, no sei como que os alunos receberam, foi isso, quer dizer: eu no preciso definir um determinado cnone modernista existente como sendo a nica porta de entrada para que uma pessoa possa entrar no universo da poesia moderna. Hoje, eu acho que o ensino da poesia moderna exatamente como o ensino da filosofia, no interessa por onde voc entre. Voc pode entrar por qualquer lugar, voc pode comear a estudar filosofia, comeando por Nietszche ou comeando por Plato. Para entrar na filosofia, lendo filsofos. Claro que ter uma compreenso histrica pode ser til, eu acho que til, claro, todo mundo quer ter uma compreenso histrica, mas pra isso, voc de noite l na sua casa, voc faz uma cronologia, se orienta. Com relao a essa pergunta que voc fez, isso: a partir dos anos 90, voc vai ter uma exploso de referenciais, cada poeta tem muitos referenciais cosmopolitas, tem muitos referenciais da prpria cultura de massas. Ento o poeta dos anos 70 ainda se sentia, pra usar a expresso de Caetano, numa linha evolutiva, e o que vinha atrs dele, ou era o modernismo, como na poesia marginal, ou eram os concretos. Ento ele tava se situando: eu venho depois desse pessoal, eu herdo esse pessoal, eu t continuando essa tradio. Foi uma gerao que sofreu o impacto da cultura de massas. Ento foi uma gerao problemtica, n? Porque fazer poesia em 67, 68, com Caetano Veloso, com Chico Buarque, nos anos 70, no fcil fazer poesia diante dessa avalanche de alta poesia que a prpria msica popular traz, a eu acho que isso realmente criou tambm uma certa ruptura dentro da cultura letrada. E nos anos 90, a gerao dos anos 90 foi uma gerao que ela tava reencontrando a cultura letrada num certo sentido. Muitas vezes partindo do universo da cultura pop mas porque queria ir l na literatura, nessa que eu digo que uma vivncia filolgica. Eu chamo de poesia da linguagem que a literatura daModo de Usar, daInimigo Rumor, eu t trabalhando ultimamente com essa ideia, fazendo uma distino, digamos, um binmio poesia-cultura e um binmio poesia-linguagem, poesia da linguagem. Poesia da cultura, o filmePalavra (En)Cantada um filme sobre a poesia da cultura, poesia na cultura, poesia com a cultura. A poesia da linguagem uma coisa mais complicada porque ela erudita sim. No quer dizer que as duas no possam conviver, eu acho, eu tenho a impresso... no sei se o Black Alien, se o BNego, tem um desses dois que muito lido, muito erudito. Mas o que eu t chamando de poesia da linguagem, mesmo que voc no tenha um repertrio letrado, olha, o encontro do corpo com a filologia. Eu acho que poesia uma relao com a palavra escrita, com gostar de letrinhas. Tem toda uma outra coisa em volta. Mas a poesia e cultura. E eu no t negando uma ou outra, s t fazendo uma distino entre poesia da linguagem e poesia da cultura, mas nem sei porque eu entrei nesse assunto, da poesia da linguagem.

tera-feira, 23 de abril de 2013Alegria Entrevista (Parte final) Falam as mscaras, falam os idioletos radicais.Parte 1|Parte 2

Encerramos a sequncia da entrevista com talo Moriconi com suas consideraes sobre a relao entre arte e cultura, e como elas o fizeram reavaliar alguns de seus questionamentos estticos acerca da produo literria brasileira dos anos 90 em diante.Na sequncia, talo, ao ser convocado para comentar questes que tangem a relao entre subjetividades e poesia, acaba compondo um pequeno autorretrato de sua prtica potica: evidencia sua compreenso da linguagem do poema (que ganha corpo na frase tem que ter o idioleto radical) e seus procedimentos, sublinhando a dramaticidade e o trabalho da mscara como figuraes caractersticas de sua persona potica. Publicamos, aqui, trs poemas deQuase Serto, livro lanado pelo autor em 1996, e dois deHistria do Peixe, de 2001 e ficamos como que espera das outras: que novas mscaras viro?

DeQuase Serto.

Copacabana

Meu novo amor gente simples do povo.Tem 19 anos, negro rutilante.Entre a ltima vez que nos vimos (tempos atrs)e hoje cedoj trocou de nome pra Rick.

*

(Notcia da Aids)

logo na hora do McDonaldsgnglios implodiram-lhe o pescoogrossos como cordas, lajespendentes, feito aougue carne estraalhada, e apodrecida

AVENIDA HIPOTRLICA

seus altos prdios escalavradosos demasiadamente humanosdemasiadamente humanoscontra o cu, decepado Ces,carregai a legenda talo para o meio das ruasfazei retinir em cantos escusos o mito talo

osdemasiadamente humanos,vou, de boca em boca,despedaado como as caladas da cidade decadente,alimentando a boataria,inspirando jovens visionrios

passado jamais existidosem mais leitorescarne podrelceras no culogo na hora do McDonalds

(1984).

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Contrato

Eu tenho nojo do teu comportamento.Voc tem nojo do meu comportamento.Vamos guard-lo no ba ancestral de couro escondido.E fabricar nosso tecidoDe meias-palavras.

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DeHistria do Peixe.

A palavraglossy

Cmera escondida. Conexes telefnicas sucessivas. Alegria da luta. Metidos em cueces largados. Ao p do fogo. Foi minha primeira vez, era um filme ingls. Ou em ingls. Depois dos licores, o fogo pegou mesmo. Papel crouch, brul. Suas rolas mais rubras, sombras flambadas. O cu baixado sobre o tapete, eliminando o puzzle. J no eram rolas, eram falos. Todos os poros falavam. Licores faiscavam. Eram mil e mais mil vozes falando, por todas as sadas. Mil vozes, mil poros, mil olhos. Sussurrando e agindo. Aromticos, pelos matos de pelos, criando seu recesso sagrado. A verdade fulgurou naquele timo apenas. Seu materialista. Seu hedonista. Seu sem nada. A cmera enganchada, consolatrix.

*

Clearly non-glossy

Comer e dar, dar e comer, comer e dar, mergulhar em coc. Aquele cheiro incomodava, eu ainda no sabia que vinha e logo de onde. Vingana do tipo de anjo. Quando nasci uns banjos galopantes disseram, a vida brutal, sabias? Quero delicadeza.

Preciso comer. Preciso tomar as plulas. Preciso comer. Preciso tomar as plulas. Vou comer. Voc no vai comer. Voc vai ingerir as plulas. Com bastante gua. Preciso comer. Vou comer. Vou delirar. A boca pela tua pele at perder. Tudo. Tudo. No quis deixar nada. O peixe morre pela boca.

Nada deixar. Nada. Cascatas de secreo tatuariam a pele triste. Lhe dei leitinho. Deixa. Jorros. Vindos do ventre besta desativar o credo em cruz, entre ferros. Fica. Mas fica sem pica. Desitalianizar-se. Desamericanizar-se. Desbrasileirar geral. Deixa. Deixa tudo. No fica. No volta.

*

BLISS:Apareceu a palavra corpo, e a gente tava antes falando na contracultura anos 70: um corpo muito diferente, esse que se relaciona na poesia da linguagem, em que se relaciona o corpo com a filologia, daquele corpo celebrado nos anos 70?I:Olha, eu t falando em outro sentido. O que eu chamo de poesia da linguagem o texto, uma experincia da linguagem, uma arte que t relacionada com essa experincia profunda entre pode ser o corpo, mas poderia ser chamado tambm de interioridade, intimidade, subjetividade. Essa relao ntima entre o corpo e a filologia. Por que filologia? Porque a linguagem nas suas mnimas filigranas, como que as palavras se relacionam entre si, como que eu posso relacionar palavras, como que elas se encontram, como elas se chocam. E ao mesmo tempo que uma coisa completamente mental uma coisa completamente oral. No momento em que ela se torna performtica, ela j t atravessando a fronteira pra cultura, mas, veja, num certo sentido e isso que eu critiquei, ou manifestei uma desconfiana quando apareceu, mas que hoje eu vejo que no essa questo, ou melhor eles tm razo. Eu criticava muito essa posio. A poesia da linguagem, ela uma reao, ela no cultural. Porque contracultural cultural, a contracultura uma forma de estar na cultura de uma maneira contracultural, com drogas etc., e tal. Mas essa poesia da linguagem quando a cultura letrada uma reao ao mundo l fora, uma rejeio ao mundo l fora. Eu acho que a poesia da linguagem tem esse elemento. Quando essa dimenso foi recuperada pela gerao 90, eu estranhei isso, porque eu sou da contracultura. Ento poesia, pra mim, cultura. Eu queria ser Maiakvski. Eu queria que o meu verso fosse lido numa assembleia de professores. Mas ao mesmo tempo de vanguarda: no um galo tecendo a manh, uma coisa assim uma camisa amarela, um manifesto gay. Mas no bojo da cultura, no bojo do movimento, no bojo da vida. Mas a poesia da linguagem, no, ela perversa, ela erudita, ela aquele encontro onde voc rejeita, fecha as portas para tudo e vivencia tudo sublimado na linguagem. Ento, eu tive uma reao gerao 70 contracultural a essa gerao 45 ao quadrado sublime, mas hoje eu vejo que no. Porque o sublime pode ser um ato poltico tambm bastante interessante. Eu t vendo nos anos 00, ao mesmo tempo em que eles esto se dessublimando, do ponto de vista da forma potica, eu tambm t tendo muito mais a necessidade da questo do sublime. Por exemplo, quer ver uma coisa que de vrios anos pra c claro pra mim? s vezes quando eu estou reescrevendo um poema, porque eles existem, apesar de eu estar completamente hibernando como poeta, eles existem, de vez em quando eu tenho tempo at escrevo ou reescrevo coisas, em um tempo, a minha utopia ter tempo suficiente para mexer nos meus alfarrbios. Mas eu s mexo nos meus alfarrbios se eu t com disponibilidade, eu no tenho tido essa disponibilidade. Eu substituo cu por nus, eu elimino, eu j no, no acho to interessante a linguagem... prefiro usar palavras no-baixo calo. Ou seja, um movimento sublimante, quando voc troca cu por nus um movimento sublimante. Principalmente quando voc troca cu por orifcio veludoso, a nem se fala. A voc j entra na metfora, que tambm que acho que hoje o potencial metafrico, eu vejo assim poetas novos, como eles inventam, o potencial metafrico uma coragem. uma coragem letrada. Voc criar metforas explosivas em cima de uma folha de papel que s quem vai ler so aquelas trs ou quatro pessoas que leem aAzougue, e aquilo, de repente, um espao de uma importncia brutal. Do ponto de vista da cultura, nada. No tem mercado nenhum, no vende nada, ningum conhece. A nica coisa que voc ganha de vez em quando uma primeira pgina no jornal porque tem um valor de fetiche imenso, e isso que alimenta o Narciso de todos, seno vira uma coisa totalmente privada num certo sentido.

BLISS:Mas essa poesia da linguagem parece ter uma certa capacidade de tomar e elaborar o que vem da poesia da cultura. Por exemplo, essa poesia que voc chama de poesia da linguagem tambm tem uma coisa mais narrativa, tambm tem um aproveitamento da mdia.I: por isso que eu digo, so apenas categorias para ajudar a gente a pensar, mas nada disso estanque, tudo se mistura. Agora, o que eu t querendo dizer o seguinte: o sublime esse movimento onde o literrio uma afirmao da cultura letrada por oposio, uns podero chamar de banalidade, eu prefiro dizer por oposio cultura mesmo. A primeira vez que eu vi a oposio entre cultura e arte, que os franceses gostam de fazer, foi um fundamento vanguardista, a vanguarda contra a cultura, mas no naquele sentido fraco da contracultura.

BLISS:Mas o Caetano tem isso, naquela msicaLivros. Acho, alis, que voc v na trajetria dele exatamente isso que voc t falando, porque ele saiu de uma coisa muito contracultural, e ainda muito na cultura, e quando ele chega nos anos 90, mesmo com a aproximao dele do Jacques Morelembaum, que ele fala que foi um cara que fez ele perder o medo da Msica, e emLivrosele fala que a ventura e a desventura so os livros e o luar contra a cultura.I:, nesse sentido que eu falei, no um contra a cultura cultural, a contracultura como comportamento. Que um sentido forte, mas fraco em relao a esse outro, onde a cultura seria mesmo a cultura erudita, pela lgica, ela vista mesmo como a rejeio tem at um poema do Carlito que fala na mercancia da praa pblica como uma rejeio da praa pblica, da palavra pblica. Isso tudo muito complexo. Agora, veja bem o meu posicionamento no final das contas e sempre ser muito via Maiakvski. No toa que pra mim o que interessa o BNego e o Black Alien. E por exemplo, j naquele artigo de 92, quando eu criticava o sublime, que eu falava numa retomada culturalizada da contracultura, o que eu queria era uma poesia que tivesse sintonizada com essa multiplicao de vozes no espao pblico. A coisa mais linda que eu acho, o que eu mais gosto em poesia quando voc tem uma multiplicidade de vozes traduzida numa forma potica. Eu acho que o desafio que t colocado pra poesia hoje o desafio da fala, e da fala tambm como fala pblica. E apesar da democracia no Brasil j ter, mas o problema da democracia no s a democracia no Brasil, a democracia como uma era humana, onde todos falam. Porque a poesia como parte da cultura letrada, ela a expresso de uma arte onde alguns escrevem. E o problema da poesia hoje outro: como voc vai fazer poesia, ou seja, como que vai ser essa relao visceral com a filologia num contexto onde todos falam, todos tm que falar, e um falatrio, uma algaravia total. isso pra mim que tem que t no poema. Uma coisa que a Clia Pedrosa falou da minha poesia que ela tem toda razo, eu gosto de uma dramaticidade na linguagem, da eu acho que o poema metrificado, formal, ele antidramaticidade. A no ser que voc tenha grandes mestres, onde voc tenha uma pulsao da forma. Os new critics gostam disso num poema, eles gostam do poema como uma coisa que pulsa pela forma. toda uma forma amarradinha, autotlica, como dizem, voltada para dentro de uma totalidade, que criada toda arrumadinha. A minha esttica outra, eu gosto de uma coisa aberta, que flerta com o desarrumado. Nesse sentido que o Kerouac importante. Eu hoje t meio digressivo... Vocs vo ter que editar muito. o que eu digo: um paradoxo, uma santssima trindade, uma santssima dualidade. Eu t inteiro no espao da poesia da linguagem, mas eu t inteiro no espao da poesia da cultura. Eu acho que eles no se negam. O que eu acho fascinante no Ricardo Domeneck, como figura, exatamente o fato de que nele convivem as duas pulses. Ele tem um trabalho de poesia, que um trabalho de poesia da linguagem, e ao mesmo tempo, ele um performer. Eu jamais serei capaz de criticar a poesia da cultura letrada. Isso eu no farei, porque a cultura letrada, tadinha, ela uma pobrezinha. Ela um aleijo, ela uma an, embora tenha um valor de fetiche brutal. Ela uma mope, coitada, mas eu sou mope, n? (risos) Mas verdade, voc vai criticar a cultura... a cultura letrada no mximo um refgio, uma defesa perfeitamente legtima. No -toa que a poesia chamada de jardim da sensibilidade, por isso, um jardim da sensibilidade, mesmo. Agora, voc sempre vai poder criticar a poesia da linguagem do ponto de vista da cultura. Sempre vai poder fazer essa crtica, vai chamar ela de alienada. Eu no t nessa.

BLISS:Eu queria perguntar um pouco dessas formas de falatrio, desses poemas dramatizados com diferentes vozes. Em geral, o que est se dando nessa poesia: que sujeito est aparecendo? Quem o eu dos poemas? Eu estou pedindo para voc fazer uma generalizao, mas que sujeito se constri?I:Eu no tenho uma teoria da questo do sujeito, de jeito nenhum. Eu sou capaz de lendo um autor ou lendo um poema descrever e discutir como que a subjetividade se coloca ali. E eu tenho algumas vises genricas da questo da subjetividade tanto na esfera da cultura, quanto na esfera da linguagem. E eu acho que elas acabam se cruzando uma outra. Ento eu sou interessado muito por esses temas: da performatizao do eu, da autofico. Eu acho que no campo da cultura letrada, voc se dissolve totalmente. Eu acho que o exerccio potico da linguagem constantemente um exerccio de subjetivao. Eu vejo poesia como uma subjetivao permanente. Mas a subjetivao pode ser uma dissoluo. No acredito, eu acho que ideolgico, eu no acredito nesse princpio mallarmaico do apagamento do eu. Agora, acho que outros conceitos como a subjetividade em devir, de Deleuze. Eu gosto muito tambm da mscara. No fundo no fundo, eu fico mesmo com a mscara, com a ideia da persona. Na minha poesia, no t querendo dizer que ela seja uma grande poesia, no, mas eu vejo muito isso, eu gosto assim de ser o cachorro, de ser... entendeu? Essa coisa dionisaca bsica. Acho que a linguagem potica, voc coloca a mscara de um bicho, voc vira aquele bicho. Voc coloca a mscara do outro, voc vira aquele outro. Ento, eu gostaria muito mais de pensar em processos de personificao. Talvez dessubstancializar a questo do sujeito em funo duma noo de produo do sujeito, de personificao, de mscara. Seria por a que eu iria.

BLISS:Porque, na poesia, pelo menos na dcada de 80/90 vem bem forte esses sujeitos novos, tambm, n? A mulher, o gay, o negro.I:A o que eu digo: a poesia um territrio prprio, um territrio circunscrito. Quer dizer, voc pode fazer uma boa poesia panfletria, no t negando aqui o meu parmetro maiakovskiano, no. A coisa mais bonita do mundo isso, por exemplo num momento revolucionrio o momento revolucionrio que eu digo uma subjetividade coletiva explodindo, rompendo, com alguma transgresso quando irrompe a arte. Sempre tem o poeta, o que fala, o que msico. Ento, no tenho nada contra a poesia panfletria, no. No tenho nada contra poesia ruim. No, gente, eu t tomando a Bastilha, a chega um cabeludo e fala uma bosta de um poema panfletrio: pssimo poema, maravilhoso poema naquele momento, naquela performance. Agora, bota no papel, n? Pode ser um documento histrico, pode ser. Eu acho tambm que a crtica potica brasileira muito ingnua nesse sentido, muito provinciana e estreita. E acho que os argentinos tambm acreditam demais nisso tudo. Ento, voc comea a estabelecer critrios estticos assim: vamos agora ento ver quem so os eleitos da humanidade e quem so os excludos da humanidade. Sabe, voc tem um movimento da palavra. Claro que assim voc tem o bom, o maravilhoso, aquilo que voc vai preservar, que voc vai guardar. Onde que a gente tava?

BLISS:Sobre esses sujeitos novos.I:Sujeitos alternativos. Ento, veja bem. Existe a poesia panfletria, a poesia que vai ser em prol do movimento feminista, da libertao da mulher, do gay, do negro, do etc. e tal. Mas do ponto de vista mesmo do que eu gosto no final das contas, que essa poesia da linguagem, a gente ento ficando restrito no quadradinho [passa os dedos por sobre a capa da edio de um ensaio de Ricardo Domeneck, intituladoDe figurinos possveis em um cenrio em construoe lanado junto com o primeiro nmero da revistaModo de Usar & Co.; nela, se v em um quadrado destacado uma mo segurando uma melancia], boa essa capa! Ela corresponde exatamente ao que eu t querendo dizer. Eu acho que difcil voc fazer alguma coisa realmente interessante, do ponto de vista de uma potica ertica eu no quero ser tambm aqui taxativo demais mas do ponto de vista de uma potica ertica ou amorosa, eu acho que hoje em dia voc fazer isso em cima de uma heteronormatividade meio sem graa, muito codificado. Ento, por exemplo, eu dou muita importncia a uma potica homoertica porque eu acho que ela t desbravando fronteiras na prpria linguagem. Porque por mais livre que a linguagem potica seja e tenha sido, ela muito presa. Ento eu valorizo atualmente, por exemplo, na poesia contempornea, eu valorizo muito uma poesia homoertica. No s porque eu fao poesia homoertica, ou talvez por isso, talvez s por isso. Ento, por exemplo, como que uma poesia feminina vai me pegar? Eu acho que ela vai me pegar ela vai ser revolucionria pra mim na medida em que ela tambm t saindo de uma heteronormatividade. O poema panfletrio, ligado ao movimento feminino, ele vai trabalhar um clich de mulher, assim como existe o clich de homem, que dominador, a vem o clich da mulher dominada que reclama e se liberta. E procura uma igualdade, e que depois que conquistou a igualdade, afirma a sua diferena. Essa ordem de questes eu acho ela menos interessante para a poesia. Porque a acho que a poesia, ela tem que ser idiossincrtica mesmo, ela tem que ser idioletal mesmo. Se ela t promovendo um conceito social de homoerotismo, um conceito social de feminilidade, um conceito social de negritude, eu acho ela menos interessante. Ela ruim. Volto a repetir, eu no tenho nada contra a poesia ruim. Mas poesia ruim. O que eu quero nesse nvel, aqui da poesia da linguagem, uma outra coisa, o idioleto mesmo. uma vivncia. Agora, veja bem, o idioleto no necessariamente precisa ser a expresso de um fetiche autoral, porque eu acho muito interessante, embora eu nunca tenha me interessado, quando me fizeram proposta de escrever poesia a quatro mos, em dupla, eu nunca quis. Mas tambm acho interessante voc trabalhar a quatro mos, trabalhar num coletivo potico, como os surrealistas criaram, como os concretistas faziam, como todas as vanguardas fizeram, se dissolver. Ento eu t falando do ponto de vista do idioleto, porque eu t falando do sujeito na linguagem, porque isso tambm que acontece, a partir do momento que voc faz o poema, a tem uma questo da subjetividade colocada no poema, pelo poema, para o poema.

BLISS:Mas desse sujeito que eu estava perguntando.I:Com relao a esse sujeito que voc tava perguntando, eu acho isso. Eu acho que a linguagem potica, no limite, ela idioleto, sim, ela de uma singularidade radical. Ela s me interessa se tiver singularidade radical. Se ela no tiver singularidade radical, ela poesia mdia, poesia ruim. Todas merecem aplausos. Todas so filhas de deus. Mas tem que ter o idioleto radical.

BLISS:Adorei essa, tem que ter o idioleto radical.I:Ento tem que ser mulher idioletica ou seja idioticamente. Porque a poesia potica, a poesia boa uma poesia idiota. uma idiotia da linguagem. Claro! Do ponto de vista do senso comum, a linguagem potica totalmente idiota. Do ponto de vista do engenheiro que tem que construir pontes e da dona de casa que tem que alimentar as crianas, tudo que a gente acha bom uma idiotia em certo sentido. Eu acho que essas questes so fundamentais, questo da negritude, questo do homoerostimo, questo da mulher, mas idioleticamente falando, do ponto de vista esttico e lingustico. E no como panfleto, no para promover uma subjetividade social. por isso que sempre vai ter o conflito, a complementaridade e o conflito entre o espao da arte e da cultura, naquele sentido, que eu odiava os franceses falarem, mas hoje eu reconheo isso. Tem um espao da arte, que por mais que ela v ser apropriada socialmente e ela o ser necessariamente, mas por mais tambm que voc tenha essa necessidade normativa e essa realidade normativa de tudo que dito, voc tambm tem sempre o espao, ou seja, j h uma expectativa para o abalo disso de alguma maneira. Um abalo at silencioso, no caso de boa parte da poesia. Ento difcil pegar, porque uma coisa paradoxal, so valores muito opostos que no final podem ser tambm complementares.

BLISS:Na poesia homoertica contempornea, quem voc acha que consegue ser idioleticamente idiota?I:A maioria. Eu acho que a poesia homoertica especificamente no faz muita panfletagem, no. Eu acho que, o meu caso, inclusive, nunca quis fazer... tambm a minha biografia muito complicada, eu acho que a palavra gay no define a minha biografia. Basta dizer que eu sou av nesse momento. Ento muito complicada. Mas eu acho o seguinte, eu acho que quem t optando por escrever sobre a questo homoertica na poesia porque tambm no t afim de ir pro movimento, entendeu? Ou t querendo t no movimento atravs da sua poesia. Eu no vejo muita panfletagem, no. No caso da poesia da mulher, eu acho que o problema da poesia da mulher tambm acho que as nossas grandes poetas so muito legais s as fracas so aquelas que ficam contando o cotidiano da mulher. Hoje t cozinhando, hoje caiu um ovo, hoje gozei. Eu acho que muita poesia feminina tem a tendncia s vezes at sofisticada de descrever o cotidiano feminino. Eu acho que uma coisa que j cansou, que j ficou meio clich. Mas eu acho que tem muita gente legal assim. A prpria Cludia Roquette-Pinto. Eu acho que tem l coisas que voc pode at questionar esteticamente, mas eu acho que ela j tem uma sofisticao na explorao do feminino que eu acho que por a.

BLISS:E Adlia Prado?I:Olha, Adlia Prado eu acho uma poeta bsica, assim, o que eu chamo de poeta essencial. T um pouco acima do bem e do mal. Mas tambm muito assim, muitoBagagem, os primeiros livros dela. Depois j no acho que ela seja to interessante assim. Mas ela sempre muito interessante, mas ela interessante at porque ela fala um pouco de dentro da situao da mulher comum, e ela no seria clich, ela escreve muito o cotidiano feminino, mas ela tem sempre uma perspectiva um pouco perversa. Sempre ela t olhando para esse cotidiano da dona de casa, mas sempre com alguma coisa... Eu valorizo Adlia Prado, eu gosto de Adlia Prado, apesar de ela ser uma poeta popular entre aspas, eu acho ela uma poeta legal, eu gosto. disso que digo que o meu universo esttico se moveu muito, hoje eu sou uma pessoa que posso gostar de uma Adlia, posso gostar de um Manoel de Barros. Desde aqueles primeiros tempos doMetalinguagem, que ...

BLISS:Eu queria falar sobre isso. Voc tem um artigo em que voc fala que existiria no Brasil duas pedagogias do poema bsicas. J tem algum tempo. Que seria a do Antonio Candido e a do cnone modernista bsico e a do Concretismo. Voc se considera formado numa pedagogia do poema concretista?I:Num primeiro momento, sim. Mas a toda minha vida foi uma desconstruo disso. Desconstruir sempre uma ampliao. Porque eu acho que a potica concretista muito baseada num recorte de excluses ento eu tive que aprender esteticamente a ser cada vez mais... entendeu?

BLISS:E voc acha que ainda hoje no Brasil teriam essas duas pedagogias ou voc acha que j mudou isso?I:No. Eu acho que ainda existem os herdeiros do Concretismo, que so dogmticos. Eu acho que ainda existe uma pedagogia uspiana, que dogmtica, mas burocrtica, acadmica, universitria. Mas eu acho que tudo que eu falei vai contra isso. Essa gerao dos ncleos, aAzougue,Inimigo Rumor, ela t partindo de outros pressupostos. Por exemplo, Carlito e o pessoal da idade dele, que chegou nos anos 90, eles chegaram criticando a polarizao. O ponto de partida j foi uma tentativa de conciliao. Ento eu acho que inclusive essa tentativa de conciliao e essa abertura para uma diversidade faz parte do contexto poltico e filosfico mais amplo que afetou a Amrica Latina e a intelectualidade brasileira, principalmente, menos na Amrica Hispnica, que essa coisa liberalizante. Ficamos mais liberais. ramos ideolgicos, ou voc era concretista, ou voc era comunista, ou no era mais nada. Na esfera da poesia, o primeiro movimento da gerao do Carlito foi o movimento da conciliao. Poderamos analisar essa histria da conciliao enquanto conciliao, mas o que foi importante que a partir dali, ele se tornou o A do ABC do jovem poeta brasileiro. Quer dizer, no tenho partido. No sou modernista contra o concretista. Eu quero o concretismo, eu quero o modernismo e eu t com tudo. J foi a mudana total a partir da, a partir dos anos 80/90. E a, ns tamos vivendo j nas consequncias disso. Um outro contexto. Os cadveres esto mais do que enterrados. De vez quando, sobe um de repente, se agita, faz beicinho, entendeu? (risos) E o Arnaut Daniel? Mas eu acho que todo mundo t partindo de um outro terreno e sobretudo cheio de gringo. Voc no ouve um jovem poeta hoje falar: ah, eu amo Drummond. Ah, eu amo o Bandeira. Ouve? Os poetas falam isso? No. No sei. Vocs veem isso? Eu t enganado? Eu t errado? Ningum fala eu amo Murilo Mendes, eu amo Jorge de Lima. No. A minha gerao sim. Eu amo Drummond. Hoje em dia, no. Hoje em dia, as pessoas partem, sei l, um Andy Nachon, o outro Carlito Azevedo, Ana Cristina Csar, muito. Forte. Porque a Ana Cristina uma que a linguagem dela j vai alm dessa polarizao. A Ana Cristina tem um perfil parecido com o de todo mundo hoje. Porque junta tudo, mistura referncias eruditas e populares, pops, j t num terreno que concreto e modernista e muito cheio de estrangeiro povoando o imaginrio dela. Ento acho que ela tem essa presena simblica forte.