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ENTRE TRAMAS E DISCURSOS: AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM ALFABETIZAÇÃO, FORMAÇÃO DOCENTE E CURRÍCULO O resgate histórico-crítico das políticas públicas da educação brasileira, vivenciadas desde a década de 1990, possibilitou-nos um olhar sensível a respeito dos impactos e nuances de tais políticas na organização curricular e nos saberesfazeres dos professores alfabetizadores. Desse modo, a partir do eixo temático “Didática, profissão docente e políticas públicas” e subeixo 2 “Didática, currículo e avaliação”, apresentamos neste painel três pesquisas que objetivaram compreender os fios e tramas discursivas que integram as políticas públicas em educação voltadas para o campo da alfabetização. Para análise dos textos, nos embasamos nos estudos de Marx, Bakhtin e Volochínov. O primeiro trabalho é uma pesquisa documental, que buscou compreender a concepção de professor alfabetizador que fundamenta o Programa Provinha Brasil no período 2008- 2012. As condições de trabalho docente também são apresentadas na segunda pesquisa, que teve como objetivo discutir possíveis liames entre condições de trabalho do professor e sua recusa em reconfigurar o seu fazer pedagógico a partir de determinadas proposições consideradas inovadoras. A pesquisa apresenta a conjuntura vivenciada no município da Serra-ES, com da implementação do Bloco Único nome dado aos ciclos de alfabetização neste Estado na década de 1990. Por fim, a terceira pesquisa discute a concepção de alfabetização e letramento que fundamenta os programas de formação em alfabetização do Ministério da Educação (MEC). As pesquisas concluem que a qualidade da educação enunciada como meta por essas políticas desconsidera as condições objetivas do trabalho docente e concebe esse profissional como mero executor de projetos, a alfabetização é compreendida como um processo mecânico e passivo. Esse conceito fundamenta avaliações e orientações didáticas, considerando os sujeitos como seres acabados, abstraídos de sua realidade histórica. Palavras-chave: Políticas Públicas. Avaliação. Trabalho Docente. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 6882 ISSN 2177-336X

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ENTRE TRAMAS E DISCURSOS: AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM

ALFABETIZAÇÃO, FORMAÇÃO DOCENTE E CURRÍCULO

O resgate histórico-crítico das políticas públicas da educação brasileira, vivenciadas

desde a década de 1990, possibilitou-nos um olhar sensível a respeito dos impactos e

nuances de tais políticas na organização curricular e nos saberesfazeres dos professores

alfabetizadores. Desse modo, a partir do eixo temático “Didática, profissão docente e

políticas públicas” e subeixo 2 “Didática, currículo e avaliação”, apresentamos neste

painel três pesquisas que objetivaram compreender os fios e tramas discursivas que

integram as políticas públicas em educação voltadas para o campo da alfabetização.

Para análise dos textos, nos embasamos nos estudos de Marx, Bakhtin e Volochínov. O

primeiro trabalho é uma pesquisa documental, que buscou compreender a concepção de

professor alfabetizador que fundamenta o Programa Provinha Brasil no período 2008-

2012. As condições de trabalho docente também são apresentadas na segunda pesquisa,

que teve como objetivo discutir possíveis liames entre condições de trabalho do

professor e sua recusa em reconfigurar o seu fazer pedagógico a partir de determinadas

proposições consideradas inovadoras. A pesquisa apresenta a conjuntura vivenciada no

município da Serra-ES, com da implementação do Bloco Único – nome dado aos ciclos

de alfabetização neste Estado na década de 1990. Por fim, a terceira pesquisa discute a

concepção de alfabetização e letramento que fundamenta os programas de formação em

alfabetização do Ministério da Educação (MEC). As pesquisas concluem que a

qualidade da educação enunciada como meta por essas políticas desconsidera as

condições objetivas do trabalho docente e concebe esse profissional como mero

executor de projetos, a alfabetização é compreendida como um processo mecânico e

passivo. Esse conceito fundamenta avaliações e orientações didáticas, considerando os

sujeitos como seres acabados, abstraídos de sua realidade histórica.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Avaliação. Trabalho Docente.

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O TRABALHO DOCENTE E A PROVINHA BRASILi

Ana Paula Rocha Endlichii

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo

Discutimos a partir de pesquisa documental, a concepção professor alfabetizador que

fundamenta os documentos do Programa Provinha Brasil, que fornece avaliação

diagnóstica no nível da alfabetização para as escolas brasileiras. Referenciados em

Bakhtin, tomamos os documentos do kit da Provinha no período 2008 a 2012 como

gênero discursivo e entendemos que a concepção que se tem do destinatário constitui os

discursos que são construídos. A Provinha é criada num contexto de demandas

internacionais por avaliação da qualidade da educação nos países, que têm sido

produzidas de modo verticalizado e excludente com relação aos profissionais das

escolas. O material analisado demonstra o papel central que se acredita que tem os

profissionais regentes dos anos iniciais do ensino fundamental na melhoria dos índices

de alfabetização no País e busca convencê-los do caráter de auxílio, ou de diagnóstico

da avaliação externa. O conteúdo prático e a forma de elaboração simplificada,

detalhada e imperativa que conduz os documentos demonstra uma visão do trabalho do

professor separado de suas condições materiais e da totalidade do processo educativo.

Cabe ao profissional o papel de executar as orientações do kit referentes à aplicação e

correção da prova e tomar providências para melhorar o desempenho das crianças no

teste, com vistas a aumentar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Desse modo, os discursos dos documentos revelam uma concepção de docência voltada

para o alcance de resultados em avaliações padronizadas. O sujeito professor é tomado

como acabado, mudo, objeto, passivo, a-histórico, ou seja, abstrai o sujeito de sua

realidade histórica de existência.

Palavras-chave: Provinha Brasil. Avaliação. Trabalho docente.

Considerações iniciais

Discutimos neste texto a concepção de professor que fundamenta a avaliação

criada para o 2º ano do ensino fundamental pelo Ministério da Educação (MEC) em

2008: a Provinha Brasil. Segundo o sítio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ela foi instituída com o intuito de fornecer aos

sistemas de ensino uma avaliação do “nível de alfabetização”, que sirva como

diagnóstico para auxiliar professores e gestores na melhoria da qualidade do ensino

(INEP, 2012).

Nessa perspectiva, a Provinha inicialmente se mostra mais como um auxílio à

prática docente do que uma avaliação externa como as demais que já existiam no País.

Por meio de pesquisa documental (GIL, 2008), questionamos essas intenções declaradas

e analisamos os discursos direcionados aos professores alfabetizadores. O corpus

pesquisado é o kit da Provinha Brasil, referente à língua portuguesa, no período de 2008

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a 2012, que foi por nós compreendido como gênero do discurso, conceituado por

Bakhtin, ou seja, como enunciado que se liga aos demais de uma cadeia discursiva.

Para Bakhtin, a linguagem está sempre impregnada de um sentido

socioideológico, podendo ser conhecida e compreendida somente na interação verbal.

Bakhtin (2010a) afirma a importância da linguagem para a análise das ideologias, pois a

palavra é o fenômeno ideológico por excelência. O enunciado é por nós considerado

como a unidade real da comunicação discursiva e “[...] um elo na corrente

complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 272). A

enunciação é estruturada socialmente e determinada pela situação de comunicação e por

seu auditório (BAKHTIN, 2010a). Assim, objetivamos compreender as concepções de

docência que perpassam o discurso voltado aos professores nos documentos do kit da

Provinha Brasil, relacionados aos elos precedentes dentro do contexto de produção

dessa avaliação.

Provinha Brasil: contexto de produção

Provinha é resposta às demandas de avaliação da alfabetização provenientes de

organismos internacionais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas

para a Educação (Unesco). Como mostra Afonso (2009), a avaliação tem sido

crescentemente considerada pelos governos como peça-chave para a garantia da

qualidade dos serviços públicos, principalmente a educação. O autor explica que, a

partir da década de 1980, “[...] o interesse demonstrado pela avaliação, sobretudo por

parte de governos neoconservadores e neoliberais”, passou a ser conhecido como

“Estado avaliador” (AFONSO, 2009, p. 49). Sendo assim, compreendemos que essa

nova expressão representa a apropriação no setor público de metodologias próprias do

setor privado. A avaliação surge, assim, na adoção de uma cultura gerencialista no setor

público, como suporte para a implementação de mecanismos de controle e

responsabilização (AFONSO, 2009, p. 49).

Nessa mesma direção, Freitas (2007) aponta que a avaliação em larga escala

firmou-se no Brasil como elemento importante do monitoramento da educação,

propondo não só a medição da qualidade dos resultados como a indução da qualificação

pretendida para os sistemas e as instituições de ensino. Dessa forma, o Governo Federal

vem instituindo exames e provas de diferentes tipos para avaliar os estudantes, as

escolas, os professores e, a partir dos resultados obtidos, condicionar a distribuição de

verbas e a alocação dos recursos de acordo com os critérios de eficiência e

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produtividade (SAVIANI, 2007a). Nesse sentido, as avaliações externas têm trazido

sérias consequências para os docentes, influenciando diretamente em suas condições de

trabalho.

Nesse contexto, é criada a Provinha Brasil, que promete se diferenciar das

demais avaliações, sendo incluída no Plano de Metas Compromisso Todos pela

Educação. O Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007 estabelece como “voluntária” a

vinculação dos entes federados no Compromisso e como implicação dessa adesão a

assunção da responsabilidade de promover a melhoria da qualidade da educação básica

em sua esfera de competência, expressa pelo cumprimento de meta de evolução do

Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A Portaria que instituiu a

Provinha em 2007 dispõe, em seu art. 2º, que os objetivos do exame são de “contribuir”

para o alcance de melhores resultados no Saeb e, consequentemente, para elevar o Ideb.

A avaliação é elaborada pelo Inep como órgão que coordena as avaliações no

País, em colaboração com pesquisadores de universidades e de organizações da

sociedade civil. Morais, Leal e Albuquerque (2009), acadêmicos participantes da

elaboração do instrumento da Provinha, afirmam que o programa veio também de uma

necessidade dos sistemas de ensino que não tinham clareza sobre o currículo para os

anos iniciais do ensino fundamental. Mesmo que o programa já estabeleça parâmetros,

os autores pensam que a Provinha pode impulsionar discussões sobre a necessidade de

definição dos conhecimentos sobre alfabetização em documentos curriculares.

Já na visão de Esteban (2012, p. 583), a forma como o exame é elaborado e

fundamentado não leva ao questionamento das concepções adotadas, pois

desconsideram possibilidades de mudanças no modelo de exame instituído, dos

conhecimentos privilegiados, das metodologias indicadas, das condições estruturais da

escola e da vida. Aos docentes não é possibilitado questionar o exame, seus

pressupostos, os conteúdos contemplados nas questões. Nesse sentido, passaremos a

discutir como o professor é visto a partir de suas incumbências associadas à aplicação, à

correção dos testes e à reorientação das práticas de alfabetização.

A visão de trabalho docente na Provinha Brasil

Os enunciados não estão ligados apenas aos elos precedentes da cadeia

discursiva, mas também às respostas em potencial previstas pelos autores (BAKHTIN,

2003). Desse modo, o enunciado está disposto para a resposta do outro, sendo o

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endereçamento um traço que lhe é essencial. Conforme Bakhtin (2003, p. 279), a ativa

compreensão responsiva pode assumir diferentes formas: “[...] influência educativa

sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e

continuadores [...]”. Na construção dos enunciados dos documentos do kit da Provinha,

os elaboradores observam as concepções e convicções dos sujeitos professores, os seus

preconceitos (do ponto de vista do autor), as suas simpatias e antipatias. Esses

elementos irão determinar também “[...] a escolha do gênero do enunciado e a escolha

dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios linguísticos, isto é, o estilo

do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p. 302).

Na visão dos elaboradores da Provinha Brasil, a equipe da escola,

principalmente o professor, contribui de modo relevante para modificar a educação no

País, por meio do trabalho em nível micro com os alunos. Em virtude disso, consideram

uma importante ação a disponibilização do instrumental da Provinha Brasil para

auxiliar o trabalho pedagógico.

Assim, a adesão das equipes das escolas é imprescindível para que se efetivem

os objetivos da Provinha, tornando-se primordial o convencimento dos professores a

respeito da importância e utilidade dessa proposta de avaliação para a melhoria dos

padrões de “qualidade” da educação no Brasil. Os docentes têm o papel de aplicar os

instrumentos, corrigi-los, reorientar suas práticas em sala de aula, tendo em vista o

alcance de resultados melhores no final do ano e contribuindo também no sentido de

elevar o Ideb por meio desse adiantamento do diagnóstico. O material disponibilizado

pelo programa objetiva descrever os procedimentos práticos que devem ser realizados

para a efetivação da avaliação.

A Provinha Brasil chega aos municípios por meio de um kit, composto por

vários cadernos com objetivos distintos. Kit é uma palavra de origem inglesa que

significa, segundo o dicionário, “Conjunto de peças que atendem juntas a um mesmo

fim” ou o estojo que abriga essas peças (KIT, 2011). O termo kit dá um caráter utilitário

e instrucional ao material elaborado como suporte para a avaliação. A maior parte dos

cadernos é destinada aos docentes, o que ratifica seu papel central na execução do

programa. Como explica Freitas (2007, p. 125),

Um aspecto de cunho político, pedagógico e técnico que ocupou

agentes estatais da esfera educacional, desde o ingresso nos anos

2000, se refere a como construir uma mediação entre instâncias

avaliadoras e os sujeitos que detêm o poder de imprimir significado e

sentido prático aos ‘achados’ possibilitados pelo complexo de

‘medida-avaliação-informação’. O problema de como tornar efetiva

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essa via de regulação da educação básica tem sido a grande questão

posta ao Estado central [...].

Nesse sentido, entendemos que há uma preocupação por parte do governo de

regular certa qualidade na alfabetização, que só pode ser efetivada com o apoio dos

profissionais das escolas, e a Provinha é uma tentativa de os aproximar das avaliações

externas, mostrando que elas podem ser vistas como um diagnóstico que melhora a

qualidade do trabalho de alfabetização. Nessa mesma direção, os especialistas do Banco

Mundial recomendam no plano administrativo, no caso dos professores, “[...] que eles

tenham autonomia para definir as práticas de aula, embora dentro de certos limites

fornecidos por um currículo nacional, sujeito a normas e padrões, exames, avaliações de

aprendizagem e supervisão do ensino (BM, 1995: XXI)” (TORRES, 2009, p. 136).

Assim, é reconhecido o papel desses profissionais como aqueles que têm autonomia

para trabalhar dentro de sua sala de aula e estão diretamente ligados ao ensino das

crianças. No entanto, essa é uma pseudoautonomia, porque eles não participam

ativamente das definições das políticas educacionais, que são verticalizadas, formuladas

em instâncias superiores.

O caráter pragmático dos documentos do kit tem a finalidade de orientar

objetivamente a prática pedagógica com vistas ao alcance de resultados satisfatórios nas

avaliações padronizadas. Morais, Leal e Albuquerque (2009, p. 308-309), julgam que

[...] os instrumentos de avaliação usados no Provinha Brasil merecem

ter sua qualidade reconhecida, tanto do ponto de vista dos critérios

gerais de concepção como de sua operacionalização. O Provinha

revela-se um instrumento de aplicação e correção simples, viável no

contexto real de nossas redes públicas de ensino[...]. Paralelamente,

pode-se registrar a clareza das instruções destinadas aos estudantes e

das explicações voltadas aos professores, acerca dos fundamentos e

procedimentos da Provinha.

Nesse sentido, para ser viável no “contexto real” de nossas redes de ensino, a

avaliação precisa ser de forma operacional um instrumento simples de aplicação e

correção e ter instruções claras aos professores. Verificamos também, no início do

Programa, uma tentativa de separação entre teoria e prática dentro da divisão dos

cadernos, sendo priorizada a prática ou execução dos comandos de aplicação e correção.

Com a reformulação do kit, em 2011, agregou-se o discurso sobre os conceitos de

alfabetização e de letramento nos mesmos cadernos que orientavam a aplicação e a

correção, porém notamos a prevalência do conteúdo prático. Tendo posto isso,

observamos que os cadernos explicitamente endereçados aos professores, se relacionam

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com a questão mais prática da avaliação – a aplicação e a correção do teste. Os cadernos

com cunho mais próximo à teoria – Passo a passo e o Reflexões sobre a prática – não

explicitam seus destinatários e, apesar de também serem recomendados como leitura

importante, não são considerados como indispensáveis aos docentes.

Vários elementos demonstram que o kit foi desenvolvido de dispensar qualquer

reflexão ou pensamento mais elaborado. A organização do texto dos cadernos é

basicamente por meio de tópicos, em sua maioria em formato de perguntas e respostas,

que orientam a aplicação e a correção dos testes. O tópico Como é o teste? se limita a

citar o número de páginas e de questões de cada edição do teste do aluno e o tópico

Como corrigir o teste? diz da sistemática de aplicação e correção, como

responsabilidade das Secretarias de Educação. Os guias de aplicação contêm todos os

comandos que devem ser lidos durante a aplicação e as questões do teste com os

respectivos comandos destinados aos alunos. Em seguida, são numerados e descritos

sete passos que devem ser seguidos para começar a aplicação, relacionados com a

motivação dos alunos para fazer o teste, distribuição e identificação de cada um no

caderno e realização da questão exemplo. Após os sete passos, algumas frases devem

ser ditas para explicar como é a prova e a questão-exemplo. Depois são relacionados

detalhadamente procedimentos a serem seguidos na questão exemplo e no teste

propriamente dito, em cada questão.

Do mesmo modo que se organiza a aplicação, a correção e a interpretação da

avaliação também são direcionadas no Guia de correção e interpretação dos resultados,

que tem por objetivo possibilitar “[...] corrigir e interpretar os resultados apresentados

pelos alunos, verificando o nível de alfabetização em que se encontram” (BRASIL;

MEC; INEP, 2008, p. 1). No tópico sobre como corrigir o teste, explica-se que as

questões de múltipla escolha serão corrigidas mediante registro dos acertos na ficha de

correção. Essa tabela aparece no texto como sugestão que vai anexa, porém nela são

baseadas todas as orientações e classificação em níveis, inviabilizando qualquer

mudança que o professor possa intentar. O gabarito é preenchido pelo professor apenas

em caso de acerto do aluno e, isso é bem destacado no texto, inclusive em quadro com a

palavra “atenção” em letras negritadas e em caixa alta. Demonstra também como

calcular a média geral da turma, algo que poderia ser simples para um profissional

formado, até mesmo em nível fundamental, mas que é detalhadamente explicado e

exemplificado. Esse detalhamento de procedimentos além de intencionar conferir certa

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confiabilidade “científica” à avaliação, pretende tornar o manual instrumental e prático

para facilitar o trabalho do professor, explicando tudo o que deve fazer.

Após recomendar um “aprofundamento teórico” por meio da leitura do

documento Passo a passo, o passo seguinte é analisar a ficha de correção. Segundo o

texto, que explica superficialmente como foram constituídos os níveis, a interpretação

relaciona o número ou a média de acertos de uma ou mais crianças e os níveis de

desempenhos descritos. A finalidade desse estabelecimento de níveis é “[...] mostrar em

que ponto do processo de aprendizagem as crianças se encontram no momento de

aplicação da Provinha e devem ser usados como referência para o planejamento do

ensino e da aprendizagem” (BRASIL; MEC; INEP, 2008, p. 5). Percebemos

reformulações nos níveis de desempenho ao longo das edições, porém, no texto dos

documentos do kit, não são informados seus motivos nem relacionados os critérios

específicos de produção do teste. Ao professor basta identificar as habilidades que as

crianças já dominam e as que elas ainda necessitam adquirir ou consolidar, sem refletir,

por exemplo, porque determinadas habilidades são consideradas importantes e outras

não.

Espera-se do professor que, depois do primeiro diagnóstico, ele já reorganize e

reoriente suas práticas com vistas ao alcance de melhores resultados pelos alunos no

final do ano. A segunda aplicação objetiva possibilitar uma comparação com o

diagnóstico realizado na primeira aplicação da avaliação no início do ano letivo. Para

que todas as crianças atinjam, ao final do ano, a meta estabelecida no programa, ou seja,

o nível 4 na avaliação, as práticas de alfabetização precisariam ser reorientadas. O

documento que visa auxiliar a equipe escolar nesse sentido é o Reflexões sobre a

prática e, segundo os elaboradores, apresenta considerações que podem auxiliar nas

ações para melhoria da qualidade de ensino, com relação à alfabetização, às políticas e

aos recursos pedagógicos ou administrativos disponibilizados pelo Governo Federal.

O documento responde aos professores que o que diferencia a Provinha Brasil

de outras avaliações externas é que seus resultados não serão utilizados no Ideb, pois o

intuito é orientar as ações políticas e pedagógicas que poderão, em conjunto com outras

iniciativas, melhorar os índices apresentados até o momento, constituindo-se num

instrumento pedagógico, sem fins classificatórios. Para tanto, é necessário um

redimensionamento da prática pedagógica do professor para alcançar níveis mais

satisfatórios de alfabetização e letramento. Assim, com foco nas capacidades já

dominadas pelos alunos e aquelas que ainda precisam ser trabalhadas, o professor

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poderá “[...] desenvolver os principais mecanismos com os quais controlará, com

autonomia, seu processo de trabalho” (BRASIL; SEB; CEALE, 2008, p. 6). Essa

autonomia que supostamente é conferida aos professores para decidir sobre seu trabalho

deve ser orientada pelo diagnóstico da Provinha.

Além de servir de base para o redimensionamento e redistribuição dos conteúdos

e capacidades ensinadas, é sugerido que se utilizem “[...] os resultados da avaliação

como material para a formação continuada de alfabetizadores” (BRASIL; SEB;

CEALE, 2008, p. 8) e que os professores escolham livro didático que possibilite um

melhor desempenho no teste. Assim, o documento Reflexões sobre a prática orienta o

que o docente deve fazer juntamente com a equipe pedagógica, tendo em vista os

resultados alcançados pelas crianças no teste, reafirmando o papel central que se

acredita que tem o profissional regente dos anos iniciais do ensino fundamental na

melhoria dos índices de alfabetização no País.

Os documentos buscam convencer os professores de que a avaliação da Provinha

foi criada para ajudá-los. No entanto, explica que, mesmo que o material tenha sido

elaborado para que o próprio regente da turma realize a avaliação, a critério do gestor ou

da Secretaria de Educação, outras pessoas “devidamente capacitadas” poderão fazer

aplicação e correção. Como um dos objetivos apresentados é “[...] oferecer subsídios

para formulação de políticas de alfabetização” (INEP; DAEB; COORDENAÇÃO

GERAL DO SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA,

2011a, p. 4), deixa-se claro que a intenção é que os resultados cheguem às mãos das

Secretarias para que também formulem políticas em função do diagnóstico realizado

pelo teste. Essas decisões administrativas orientadas para o alcance de resultados podem

responsabilizar os docentes por um resultado “fracassado” que envolve múltiplas

determinações. Nesse sentido, nos remetemos ao que aponta Oliveira (2011) sobre uma

crise de “dignificação da profissão docente”, que se mostra como uma ameaça à

profissionalização e tem relação direta com a avaliação externa. A autoridade para

responder pelo resultado de seu trabalho é retirada dos profissionais.

Essa concepção de trabalho docente também pode ser relacionada ao movimento

de proletarização discutido por Bragança (2009), em que há separação entre concepção

e execução do trabalho docente, reduzido ao cumprimento de tarefas e ao ensino do que

é cobrado nas avaliações externas. Na lógica de avaliações como a Provinha, alguns

“iluminados” realizarão o trabalho intelectual de produzir uma avaliação definindo os

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pressupostos teóricos do trabalho de ensino da língua materna em todo País. Os

professores realizarão o trabalho material de aplicar e corrigir os testes.

Em síntese, pela análise dos documentos que compõem o kit da Provinha Brasil,

o professor é concebido como profissional executor, que não reflete, mas reproduz a

avaliação e precisa ser ensinado até mesmo a interpretá-la. É esperado dele que se

planeje e molde suas práticas em função daquilo que é identificado como necessidade

de aprendizagem dos alunos a partir dos resultados da primeira aplicação da prova. No

entanto, podemos perceber que os professores apesar de terem seu trabalho afetado

pelos programas de avaliação, não são passivos, mas reinventam no seu cotidiano

formas de burlar aquilo que lhes é imposto. Mesmo que siga o manual, o diálogo no

momento da prova é perpassado por diferentes sentidos produzidos pelos sujeitos

singulares, crianças e adultos e isso não pode ser controlado, muito menos padronizado.

Desse modo, “[...] por maior que seja a precisão com que é transmitido, o discurso de

outrem incluído no contexto sempre será submetido a notáveis transformações de

significado” (BAKHTIN, 2002, p. 141). Em contrapartida, o discurso relacionado com a

aplicação da Provinha, como é comum em avaliações padronizadas, parte de premissas

monológicas em que o sujeito professor é tomado como acabado, mudo, objeto, passivo,

a-histórico, ou seja, abstrai o sujeito de sua realidade histórica de existência.

Considerações finais

A partir da leitura dos documentos da Provinha Brasil, compreendemos que a

concepção que a sustenta é de trabalho docente como trabalho material que não reflete,

não conhece a totalidade do processo educativo, mas que executa comandos e busca

formar os alunos de acordo com padrões estabelecidos por especialistas. Bakhtin nos

mostra como os discursos são importantes para o estudo das concepções, pois veiculam

ideologia e perpassam todos os campos da atividade humana. Assim como a grande

maioria dos cidadãos, os profissionais são excluídos de uma discussão pública sobre a

qualidade do ensino escolar no País, que não tem acontecido efetivamente.

Desconsidera-se que os índices indicam resultados comparativos com referência

em um padrão pré-estabelecido e não a qualidade de ensino desejada por um coletivo.

Sob nossa perspectiva, as avaliações externas não têm sido uma forma eficaz de induzir

a qualidade que queremos na alfabetização das crianças brasileiras. A avaliação do

trabalho pedagógico é necessária, porém deve ser feita de forma dialógica e coletiva e

não se coaduna com testes padronizados de múltipla escolha formulados verticalmente,

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que excluem a possibilidade de os profissionais envolvidos reconhecerem-se como

partícipes de todo processo. Além de responsabilizar o profissional pelos resultados de

seus alunos e desconsiderar o contexto social em que ocorre o processo

ensinoaprendizagem, ignora-se a potência do diálogo na prática pedagógica e na

formação dos professores.

A discussão sobre a melhoria da qualidade da educação brasileira implica

envolvimento do coletivo em perguntas como: que qualidade? Sob qual perspectiva?

Ela atenderá aos anseios de quem? Que condições de trabalho dos profissionais

possibilitarão essa qualidade da educação? Assim, essas e outras inúmeras questões

precisam ser consideradas nas reflexões acerca das avaliações e programas de formação

a fim de considerarmos seus efeitos nas práticas pedagógicas.

Referências

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uma sociologia das políticas avaliativas contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2009.

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___________________________________________

i Artigo produzido a partir de recorte de pesquisa de mestrado, que analisou as concepções de

alfabetização, leitura e escrita subjacentes à Provinha Brasil no período 2008-2012 e o panorama em que

esse programa de avaliação foi produzido, orientada pela Profª Drª Cláudia Maria Mendes Gontijo, no

programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. ii Doutoranda em Educação, na linha de Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES). Endereço eletrônico:

[email protected].

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6894ISSN 2177-336X

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INOVAÇÕES PEDAGÓGICAS E RESISTÊNCIA DOCENTE: SOBRE ALGUNS

ASPECTOS INVISIBILIZADOS NESSA RELAÇÃOiii

Fabricia Pereira de Oliveira Diasiv

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

Este trabalho propõe reflexões sobre a resistência docente diante de inovações didático-

pedagógicas. Tem como objetivo discutir possíveis liames entre condições de trabalho

do professor e sua recusa em reconfigurar o seu fazer pedagógico a partir de

determinadas proposições educativas consideradas inovadoras. Para isso, parte de

análises a respeito de uma conjuntura específica vivida no Espírito Santo, mais

especificamente no município capixaba da Serra, a saber: a implementação do Bloco

Único – nome dado aos ciclos de alfabetização nesse Estado na década de 1990, política

que reorganizou as duas primeiras séries do ensino fundamental, tornando-as uma única

série ao eliminar a retenção/reprovação entre elas. Analisa fontes escritas assinadas pela

Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu) e pelo Sistema Municipal de

Educação da Serra, além das narrativas de profissionais (27 professores e 1

coordenadora pedagógica do projeto) que atuaram diretamente na implantação e

vigência do Bloco Único. Cotejando esses dados, aponta as relações entre o prescrito

oficialmente para os ciclos de alfabetização capixaba e o vivenciado pelos profissionais

da educação em suas salas de aula, discutindo os limites impostos por esse determinado

contexto, dito inovador. As opções teórico-metodológicas – Marx (1985; 2011) e

Bakhtin e Volochínov (2010) – permitiram dialogar com esses diferentes enunciados,

compreendendo a totalidade em que se situavam esses sujeitos, bem como suas réplicas

diante dessa conjuntura. Finaliza evidenciando que a recusa docente de reorganização

de seu trabalho a partir de inovações pedagógicas constitui-se como resposta a uma

determinada conjuntura, e não meramente uma simples condição conservadora e

reacionária.

PALAVRAS-CHAVE: Inovações pedagógicas. Bloco Único. Resistência docente

Considerações iniciais

Nossa proposta emerge de uma inquietação diante de afirmações frequentemente

retomadas nos diversos espaços tempos de nossa formação/ação profissional como

professora do ensino fundamental: a resistência docente às inovações didático-

metodológicas. Nosso objetivo é tratar daquilo que não se diz quando se afirma que os

professores são resistentes e infensos às tentativas de mudanças pedagógicas. Para isso,

propomos uma análise de um determinado momento histórico, partindo de um recorte

de nossa própria dissertação que objetivou compreender o processo de implementação e

vigência da política de ciclos de aprendizagem na rede estadual de educação do Espírito

Santo e no município capixaba da Serra, durante a década de 1990 e início dos anos

2000.

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Nessa direção, articulamos intenções explicitadas nos discursos orientadores da

implantação do projeto capixaba de Ciclo às enunciações de uma coordenadora do

projeto Bloco Único no município da Serra e de 27 professores que trabalharam em

classes de alfabetização reorganizadas por esse projeto nesse município, numa tentativa

de compreender o proposto e o vivido. Respaldados nas leituras de Marx (1985; 2011) e

Bakhtin e Volochínov (2010), optamos pela análise das condições objetivas de trabalho

do professor e das relações dialógicas desse período histórico, compreendendo a

constituição da prática docente em meio à implementação dessa política de

alfabetização.

O Bloco Único na Rede Estadual de educação do Espírito Santo e a inserção do

município da Serra na política de ciclos

O Bloco Único no Estado do Espírito Santo tornou em série única as 1ª e 2ª

séries do ensino fundamental de todas as escolas da Rede Estadual de Ensino

(Resolução do Conselho Estadual de Educação n.º 76/1992), garantindo dois anos para a

alfabetização das crianças e objetivando o combate à evasão e à reprovação escolares,

que no Espírito Santo alcançavam índices de 17,7% e 33,4%, respectivamente, na rede

pública estadual em 1989 (ESPÍRITO SANTO, 1992).

Dois documentos específicos direcionaram nossa atenção para as prerrogativas

desse projeto. O Plano Estadual de Educação 92/95 (ESPÍRITO SANTO, 1992, p. 1 e

2) foi elaborado, de acordo com seus registros, com a participação de professores e

técnicos da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu) e da

Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No que tange à alfabetização de crianças

especificamente, evoca a urgência de um trabalho alfabetizador de qualidade, pontuando

a necessidade de a “[...] escola cumprir eficazmente a sua missão alfabetizadora”

(ESPÍRITO SANTO, 1992, p. 10). Para reduzir índices de reprovação e combater o

fracasso escolar, previa algumas ações, dentre elas, a implantação do Bloco Único nas

escolas públicas estaduais.

O Projeto Desenvolvimento da Educação Pré-Escolar e do Ensino Fundamental

(ESPÍRITO SANTO, 1992a), por sua vez, teve como finalidade obter financiamento do

Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), para dois níveis de

ensino: a educação pré-escolar (atual educação infantil) e o ensino fundamental; e

confirma que o objetivo das políticas engendradas no período de implementação do

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Bloco Único teve por objetivo solucionar o problema do fracasso escolar na

alfabetização. As pretensões desse documento culminaram, dentre outras ações, com a

implantação e manutenção do Bloco Único na Rede Estadual de Educação do Espírito

Santo, prevendo como meta a alfabetização de 114.488 crianças das escolas públicas

estaduais de dez municípios (Vitória, Serra, Vila Velha, Viana, Cariacica, Colatina,

Linhares, São Mateus, Nova Venécia, Cachoeiro de Itapemirim), área que concentrava

58,8% da população do Estado e 48% das matrículas do ensino fundamental das escolas

públicas estaduais (174.500 crianças), bem como altas taxas de reprovação na 1ª série

(31,8%), sendo as maiores nas áreas rurais.

Os dois documentos aproximam o fracasso escolar à falta de qualidade da escola

pública e inserem na discussão outros elementos que poderiam contribuir para o fim

dessa conjuntura, além da implantação do Bloco. A Sedu, nesse sentido, conclui que

problemas referentes à capacitação inadequada, à má formação docente, a má

remuneração do magistério, à precariedade dos prédios escolares, à insuficiência de

material de apoio a estudantes e professores constituíam-se em entraves à efetivação de

políticas estáveis de educação. Com o Bloco Único, apontado como uma das soluções

para o fracasso escolar vivenciado na 1ª série, almejava-se a alfabetização de 114.488

crianças das escolas públicas estaduais, por meio de mudanças no tempo destinado à

alfabetização, em seu currículo e na concepção de avaliação da aprendizagem. Para isso,

pressupunham-se as seguintes ações:

[...] - extensão do tempo de permanência da criança na escola

para 5 horas diárias, utilizando-se o adicional de 1 hora

(atualmente são, teoricamente, 4 horas) para atividades de

leitura, com ênfase na utilização de livros infantis, vez que

famílias pobres não dispõem desses materiais;

- extensão para 40 horas semanais da carga horária dos

professores (com acréscimo de 15 horas) destinada ao

treinamento, planejamento e preparo de material didático;

- treinamento em serviço dos 3.100 professores de 1ª e 2ª séries;

- aquisição de materiais pedagógicos e livros didáticos e

infantis;

- merenda escolar;

- atendimento à saúde do escolar de forma preventiva, curativa e

educativa, atingindo a 100% das crianças (ESPÍRITO SANTO,

1992a, p. 45).

No Relatório da Sedu: Biênio – 1995-1996 (ESPÍRITO SANTO, 1997),

constatamos a concretização do projeto Bloco Único no Estado do Espírito Santo. Esse

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relatório teve como objetivo sintetizar os esforços governamentais e, especificamente,

as ações da Sedu e sociedade civil organizada (entre 1995 e 1996) para construir uma

educação pública de qualidade. O Bloco é enunciado novamente como uma das frentes

de ação que objetivava vencer os desafios da evasão e da repetência escolares e como

projeto que visava “[...] dar maior qualidade à alfabetização, através da inovação

pedagógica e do respeito ao ritmo de aprendizagem de cada criança [...]” (ESPÍRITO

SANTO, 1997, p. 16).

As ações que envolveram o projeto, segundo o Relatório da Sedu: Biênio –

1995-1996 (ESPÍRITO SANTO, 1997), foram intensificadas entre 1995 e 1996, por

meio dos programas de formação docente e distribuição de material didático

pedagógico, livros de literatura infantil e aquisição de equipamentos (ventilador de teto,

armários, bebedouros, dentre outros). Outras ações de suporte ao Projeto Político-

Pedagógico foram tomadas e, embora não referenciem o Bloco Único como

beneficiário, concluímos, com base na análise do relatório e de outros documentos, que

também o contemplam. São ações de assistência ao estudante: transporte escolar, saúde

escolar, alimentação escolar, livro didático.

Ainda segundo esse relatório, entre 1995 e 1996, foi realizado o projeto

Incentivo (dirigido especificamente aos professores que atuavam nas classes de Bloco)

que se caracterizava como grupos de formação permanente, fornecendo 856 bolsas para

estímulo da formação em serviço, investindo-se R$ 204.500,00 e envolvendo 856

professores em 94 grupos de estudo. Além desse projeto, outras ações de formação

docente promoveram atualização pedagógica, que acreditamos ter envolvido também

professores do Bloco, tendo em vista serem assuntos que tratavam da alfabetização.

Em meio a essas discussões, a Secretaria Municipal de Educação da Serra também

optou pela reorganização das primeiras séries por meio do Bloco Único a partir de 1995

(Resolução do Conselho Estadual de Educação - CEE -, nº 122/96), encerrando-o

apenas em 2003. Conforme o Parecer CEE nº 161/96, a Secretaria de Educação deste

município apresentou um plano de implantação do projeto que previa “[...] elaboração

de documentos, organização de grupos de estudo, capacitação de pessoal e assessorias

[...]” (ESPÍRITO SANTO, 1996, s.n.). Visando à capacitação docente, foi organizada

uma equipe específica para o projeto composta por “[...] 05 professores em função de

especialidade pedagógica (supervisores, orientadores, administradores e inspetores) e 04

professores em função de Coordenação de área (Português, Matemática, Estudos

Sociais, Ciências)” (ESPÍRITO SANTO, 1996, s.n.). A Secretaria de Educação, ainda

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de acordo com esse Parecer, apresentou um cronograma de atividades a serem

efetivadas entre janeiro e setembro de 1995. Além disso, a implantação do Bloco Único

previa estabelecimento de parceria entre a Sedu e a Secretaria Municipal de Educação

da Serra (Sedu/Serra).

A análise emitida no Parecer CEE nº 161/96 registra que o município da Serra,

ao conhecer o projeto Bloco Único de elaboração do Departamento de Apoio Técnico-

Pedagógico - Sedu, percebe a possibilidade de fazer progredir seu projeto educativo e de

“[...] combater ‘os altos índices de reprovação e evasão nas séries iniciais, verificados

na rede municipal de ensino’” (ESPÍRITO SANTO, 1996, s.n.). Para isso, assume a

responsabilidade de instituir condições educativas, administrativas e legais, incluindo

uma redefinição das suas concepções de avaliação e aprendizagem, a fim de garantir

que os alunos se apropriassem dos saberes que envolviam a leitura, a escrita e a

matemática, tendo respeitados seus ritmos individuais de aprendizagem.

Como não percebemos, nos documentos citados, as vozes dos professores

tratando da questão da qualidade do ensino público, ouvi-los tornou-se imprescindível.

Entre réplicas e tréplicas: o Bloco Único no munícipio da Serra

Em meio a tantas inovações e melhorias anunciadas, ironicamente, a maioria das

27 professoras entrevistadas enfatizou que o processo de implantação do projeto Bloco

Único foi um período de muitas dificuldades, de grande turbulência e de sofrimento.

Ouvimos muito sobre a resistência docente frente às mudanças propostas e sobre a

dificuldade do professor em compreender todas as mudanças engendradas pelo projeto.

A percepção da concretude humana em Marx (1985; 2011), inscrita em uma concretude

histórica e social, nos impeliu a perscrutar alguns elementos da totalidade em que se

inseriam esses professores.

Um dos dados sobre essa conjuntura foi nos relatado por uma das coordenadoras

do projeto que afirmou a existência de alguns problemas relacionados com a aquisição

de materiais, quando da introdução do Bloco, e sua implementação sem discussões

prévias. Mas, diante do fato consumado, pensaram – em equipe – um cronograma de

encontros para discutirem a avaliação (tendo em vista que não haveria mais reprovação

no Bloco Único) entre outras questões.

Algumas das ações pensadas por essa equipe puderam ser analisadas a partir da

leitura de documentos disponibilizados por essa coordenadora. Constituem-se em

registros de ações desenvolvidas nos anos de 1994 e 1995, que objetivaram a

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implementação do Bloco. Excetuando-se a formação dos professores, percebemos que a

maior parte das ações envolveu agentes da Secretaria Municipal de Educação num

movimento de preparação dos sujeitos coordenadores para o desenvolvimento do

projeto no ano posterior. Uma das formações pensadas, o “II Encontro Pedagógico

‘Alfabetização: uma Ação Interdisciplinar’”, permitiu-nos perceber os movimentos de

mudanças que se esperavam com a implantação do Bloco Único. Reflexões sobre o

lúdico, a cidadania e a avaliação das crianças preparavam – ou pelo menos tentavam

preparar – os professores para as novas proposições do projeto.

A coordenadora ainda possibilitou o contato com um programa de capacitação e

assessoria do projeto Bloco Único. Além dos objetivos gerais e específicos dessas ações

(que não eram direcionados apenas aos envolvidos com o Bloco Único), o cronograma

de ações para o ano de 1995 visava à fundamentação teórica dos professores naquilo

que se refere à prática alfabetizadora. Como percebemos nesses documentos, houve

uma preocupação com a formação de professores, pedagogos e previu-se tempo para

assessoria às escolas.

Ao cotejarmos as informações obtidas e as narrativas docentes, algumas

questões contraditórias emergiram, principalmente no que diz respeito às formações

docentes da época. Das alfabetizadoras entrevistadas, apenas três afirmaram que a

implementação desse projeto transcorreu de forma tranquila. A maioria, porém,

descreve a implementação do Bloco sem a devida preparação docente, apontando

poucos cursos realizados e/ou formação aligeirada e sem aprofundamento. Elas

aconteceram, mas sua configuração e seu quantitativo não foram suficientes. Decorre

disso, em suas opiniões, resistência docente, falta de entendimento ao que estava sendo

pedido, manutenção de práticas tradicionais de alfabetização, além de muito sofrimento.

Em suas falas, ainda revelam um tempo de muita desorganização e espontaneísmo e de

necessidade de o professor, autonomamente, resolver as demandas do cotidiano

pedagógicov.

EGSvi: “eles deram uma formação mas MUItovii vaga... [...] eles não/não/não tem um

enfoque assim... de você trabalhar isso... e/ou... uma sequência... eles jogam e:: e:: eu

acho que fica muito subjetivo você/não tem um direcionamento para o professor... (...)

aí eu vi assim... muita desorganização... (...)”.

Algumas professoras, mesmo garantindo a existência das formações, reiteram a

resistência/reclamações e/ou a dificuldade dos professores nesse primeiro momento de

implementação do Bloco Único, tendo em vista que não se sentiam preparados para

lidar com as mudanças propostas pelo projeto. Para uma delas, as discussões eram muito

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novas e os professores não conseguiram alcançar a proposta que se almejava. Associado

a isso, a experiência do Bloco Único no Estado trazia referências negativas para o

município, o que criava certas expectativas que culminavam nessa resistência:

PCAC: (...) teve distribuição do/de dois livrinhos sobre o bloco único explicando o que

que era... mas eu lembro assim que a gente não conseguia alcançar a proposta

entendeu?... e muita resistência... por quê? porque a gente vinha de uma:: formação

pessoal... né?... (a gente) tinha sido alfabetizado éh:: usando métodos e aí com confusão

do construtivismo... ah não é mais método e tal... e misturou bloco único – que não tem

nada a ver com essa proposta específica né? de... de:: construtivismo – com:: com a::... a

política de – na verdade o bloco único era isso né? – a política de:: de educação/de

alfabetização do/no município... e o Estado já tinha uma experiência né?... um pouco

anterior a nossa... pouquinho tempo... e já não estava/as pa/as pessoas não/não tinha

uma boa visão né? do bloco único... então quando chegou no município já chegou com

muita resistência... como aliás toda:: proposta nova costuma ser assim...”.

Um dado importante foi a afirmação de quatro professoras de que não tiveram

nenhum tipo de orientação para o trabalho com a alfabetização nessas classes. Elas

assumiram turmas de Bloco Único após a implementação do projeto e relataram-nos que

a falta de preparação docente continuava sendo uma necessidade.

De posse desses dados, já podemos sinalizar o que compreendemos ser essa

suposta resistência docente: respostas de sujeitos aos enunciados produzidos pelo

sistema. Para Bakhtin; Volochínov (p. 101, 2010),

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da

escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída

como tal [...]. Toda inscrição prolonga aquelas que a

precederam, trava uma polêmica com elas, conta

com as reações ativas da compreensão, antecipa-as.

Partindo dessa afirmação bakhtiniana que garante que as relações entre os seres

humanos são dialógicas, ressaltamos a posição ativa de todos os sujeitos no diálogo da

vida, e, por isso, consideramos as reações das professoras como réplicas de mulheres

que, diante das enunciações a respeito de mudanças e ressignificações e, em meio a

dúvidas e incertezas, posicionavam-se responsivamente a elas, seja mantendo práticas

tradicionais de ensino, seja questionando e polemizando as mudanças sugeridas pelo

projeto, seja acatando mudanças com cautela. A partir desse ponto, portanto,

assumiremos resistência docente/resposta docente como conceitos sinônimos.

Uma possível explicação para essa falta de formações docentes sinalizadas pelas

professoras é a afirmação da coordenadora entrevistada de que elas ocorreram nos

primeiros anos de implementação do projeto e, posteriormente, os grupos de estudo –

formações nas próprias unidades escolares – funcionaram com mais frequência. E, no

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que se refere a expectativas não correspondidas, ela também tece comentários sobre o

que não foi assegurado pelo próprio sistema ao trabalho da Secretaria de Educação: não

garantia de continuidade de um mesmo professor no Bloco; a dificuldade com materiais

no início do projeto e com formações na vigência do Bloco (segundo a coordenadora,

ocorreram nos primeiros anos); o processo de escolha dos professores que assumiriam

as classes de Bloco Único Iniciante (sempre deixadas para os menos experientes).

Na esteira das problematizações, as professoras ainda afirmaram não ter nenhum

tipo de material para o trabalho e destacam isso como uma grande dificuldade desse

momento. A coordenadora do projeto nos evidencia que, no início, houve dificuldades

na chegada do material e que a orientação era trabalhar a criança que constituía o

material humano já disponível; não era preciso, pois, esperar pela chegada de outros

recursos para iniciar a alfabetização. Nesse sentido, a sugestão era trabalhar com

sucatas, embalagens descartáveis que poderiam ser reaproveitadas pelos professores

como materiais didáticos. Ela relata, ainda, que os professores estavam ansiosos pela

chegada de material e que orientações já haviam sido dadas quanto ao manuseio,

alertando que deveria estar situado num ambiente de intensa interação entre professor-

aluno-jogos e ser antecedido por um planejamento flexível. Além disso, sinaliza dúvidas

dos professores quanto à efetivação desse trabalho.

Entre indicativos da presença de poucos e muitos materiais, foram apontados

pelas alfabetizadoras um ou mais para o trabalho no Bloco Único que seguem listados

na Tabela 1.

TABELA 1 – BASES MATERIAIS PARA O TRABALHO NO BLOCO ÚNICO

NA SERRA

Materiais apontadosviii Reincidência de respostas

Livros didáticos e/ou cartilhas 10

Material elaborado pelo próprio professor 9

Jogos 7

Livros para leitura (literatura, revistinhas) 4

Material adquirido pelo professor 3

Brinquedos 3

Mimeógrafo 2

Cartolina e pincel atômico 1

Jornais 1

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Gravuras 1

Material em EVAix, materiais concretos e material

dourado

1

Diante dos dados, constatamos que os livros didáticos e/ou as cartilhas foram os materiais

didáticos mais presentes; fato que, por si, reflete uma contradição: a manutenção de cartilhas em um

período de intensas críticas a elas e aos métodos tradicionais de alfabetização.

Na sequência da tabela, aparecem os materiais elaborados pelos próprios

professores que se referem à confecção de jogos, alfabeto móvel, brinquedos, cartazes,

dado de palavras, histórias seriadas, quebra-cabeça, dominós, corridas de tabuleiro.

Duas professoras relatam que uma formação realizada nesse período orientou quanto à

elaboração de jogos. Muitas alfabetizadoras reiteram o reaproveitamento de sucatas para

a confecção desse material e uma delas, muito enfaticamente, declara que esse discurso

desresponsabilizava o sistema de fornecer material apropriado para o trabalho.

A intensa confecção de material pelo próprio professor, associada à presença

maciça dos livros didáticos – fornecidos pelo Governo Federal – e à aquisição de livros

e brinquedos educativos pelo profissional evidenciam a falta de material fornecido pelo

município. A existência de jogos de encaixe e que envolviam o alfabeto, além de jogos

da memória, ábaco, joguinhos de alfabetização, pedacinhos de sílabas para formar

palavras, palavras cruzadas e outros que tratavam de geometria, marca a presença dessa

instância municipal fornecendo materiais didáticos para o trabalho em sala de aula.

As reflexões produzidas sobre a falta de materiais diversificados para o trabalho

no Bloco Único conduziram-nos à outra questão, solicitando uma descrição mais

minuciosa das principais dificuldades vivenciadas pelos professores na alfabetização de

crianças inseridas nesse projeto. Apenas duas professoras afirmaram não ter

dificuldades no trabalho dessa época. As demais fizeram apontamentos importantes,

relacionando as condições de trabalho do professor como as principais dificuldades do

trabalho pedagógico. Justificam essa conclusão os seguintes aspectos citados pelas

professoras: a falta de materiais, o número elevado de crianças em sala (que segundo

alguns relatos superava 30 crianças), a falta de formação e/ou orientação para o

trabalho, o registro das fichas descritivas (que era trabalhoso e, segundo algumas

professoras, não havia previsão de tempo para sua escrituração), a falta de professora

auxiliar, a estrutura física comprometida (uma professora comenta que patrocinou

pequena reforma em sua sala), a ausência de fotocopiadoras (todas as atividades eram

reproduzidas no mimeógrafo), a ausência de bibliotecas, a falta de tempo para

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planejamento, atraso nos pagamentos dos salários docentes, falta de apoio da pedagoga

e de outros setores e a falta de respostas às necessidades especiais de algumas crianças.

São apontadas outras dificuldades que se referem à realidade da própria turma

(sua heterogeneidade, indisciplina, preconceito e falta de interesse), às dúvidas e

inquietações quanto ao processo de alfabetização em si, à falta de apoio dos órgãos

gestores, ao comprometimento docente com a continuidade e qualidade do processo de

alfabetização das crianças e outras questões que extrapolam os muros da escola e que se

referem ao acompanhamento da família e questões socioeconômicas do público

atendido. Entretanto, foram citados em menor proporção.

Diante do exposto, percebemos que as enunciações das professoras que

vivenciaram esse período de implementação do Bloco Único sempre remetem à falta de

informação, de preparação e de materiais para a ação, fato que redundou em incertezas,

dúvidas e em manutenção de práticas tradicionais de alfabetização. Compreendemos, no

entanto, essas reações como respostas habitadas pelo desejo de uma educação de

qualidade necessitando, para isso, de formação, bem como de condições materiais para

o desenvolvimento do trabalho.

Considerações finais

Desde o início desse estudo, delineamos uma proposta de pesquisar elementos

invisibilizados, interditos, na afirmação recorrente de que os professores são resistentes

a novidades pedagógicas. E, analisando um momento histórico específico,

descortinamos uma totalidade desconsiderada ao se assumir esse discurso,

compreendendo que esses professores, ao reagirem negativamente às mudanças dessa

época, denunciavam uma realidade de dificuldades frente a um discurso inovador que

pretendia revolucionar o ensino da leitura e da escrita no Espírito Santo, mas que não

garantia condições de trabalho para efetivação dessa proposta.

Naquilo que se refere ao trabalho específico no município da Serra, pudemos

constatar que os documentos, que asseguravam condições de trabalho para o ensino e

aprendizagem da leitura e da escrita, não as garantiram efetivamente, deixando ao

professor, as resoluções práticas para o exercício de sua profissão (trabalhar com o

material humano, transformar materiais recicláveis em didáticos, resolver questões de

tempo para planejamento e registro de avaliações descritivas,...). Em nossas análises,

percebemos que respostas docentes, muitas vezes transgressoras, distanciam-se desses

textos em muitos aspectos, criticam algumas de suas determinações bem como a não

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6904ISSN 2177-336X

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garantia de direitos. Enfim, muitas das réplicas docentes constituídas no cotidiano que

envolvia a realização desse projeto não foram consideradas por aqueles que dirigiam a

educação no momento da implementação do Bloco. Ao contrário, foram rotuladas como

resistência a inovações didático-pedagógicas. A partir das contribuições de Marx (1985;

2011) e Bakhtin e Volochínov (2010), entendemos que essa suposta resistência foi

produzida por um contexto de dificuldades (sejam materiais, ou mesmo conceituais),

constituindo-se em uma resposta a essa realidade que sonegava ao trabalhador da

educação condições de trabalho básicas.

Mesmo partindo de uma experiência específica na história da alfabetização,

acreditamos que nossas análises permitem compreender movimentos atuais de réplicas

negativas dos professores diante das propostas de mudanças pedagógicas,

principalmente com o reaquecimento das discussões sobre o sistema de ciclos (a

ampliação do ensino fundamental para nove anos, com reunião dos primeiros anos de

escolaridade e eliminação da reprovação e retenção das crianças que frequentam o

ciclo). Nesse sentido, desejamos que as vozes dos professores sejam ouvidas em meio à

implementação de políticas públicas, que as desconsideram e ainda as criticam.

Referências

BAKHTIN, M.; VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas

fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Estado da Educação. Grupo de

Planejamento e Orçamento. Relatório da SEDU biênio – 1995/1996. Vitória, 1997.

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Plano

Estadual de Educação 92/95. Vitória, 1992.

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Estado da Educação e Cultura.

Projeto Desenvolvimento da Educação Pré-escolar e do Ensino Fundamental:

documento apresentado ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento –

BIRD (Banco Mundial). Vitória, 1992a.

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Conselho Estadual de Educação. Parecer n. 161/96.

Vitória, 1996.

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6905ISSN 2177-336X

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122/96. Vitória, 1996.

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Conselho Estadual de Educação. Resolução n.

76/92. Vitória, 1992.

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2011.

______. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 2. ed, 1985.

MUNICÍPIO DA SERRA. Prefeitura Municipal de Serra. Secretaria Municipal de

Finanças. Decreto Municipal n.º 2947, de 20 de janeiro de 2003.

__________________________________________

i Artigo produzido a partir de recorte de pesquisa de mestrado, intitulada O Bloco Único no Município da

Serra: contribuições à História e à Política de alfabetização (1995-2003), orientada pela Profª Drª Cláudia

Maria Mendes Gontijo, no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito

Santo. i Professora da Educação Básica da Prefeitura Municipal da Serra – ES e Doutoranda em Educação, na

linha de Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal

do Espírito Santo (PPGE/UFES). Endereço eletrônico: [email protected] iii O quantitativo não alcança o percentual de 100% em virtude de evidenciarem conclusões voluntárias,

não solicitadas previamente pela pesquisadora. iv Fizemos a opção por identificar os profissionais envolvidos nesta pesquisa pelas iniciais de seus nomes

e sobrenomes. iii Todas as transcrições das entrevistas seguem convenções definidas por FAVERO, L. L.; ANDRADE,

M. L. C. V. O. ; AQUINO, A. G. O., grupo de pesquisadores que tem investido em estudos sobre as

diferenças entre as modalidades de linguagem oral e escrita. Essas normas são apresentadas na obra

intitulada Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. v O quantitativo final supera o número de professoras entrevistadas uma vez que apontaram um ou mais

materiais disponíveis na época para o trabalho nas salas do Bloco Único. vi Material emborrachado muito utilizado na elaboração de jogos pedagógicos.

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OS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO PARA PROFESSORES

ALFABETIZADORES E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS DE

AVALIAÇÃO

Kaira Walbiane Couto Costax

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

O presente estudo apresenta um panorama das políticas públicas voltadas para a

alfabetização de crianças a partir da década de 1990. Nosso objetivo foi compreender o

conceito de alfabetização e de letramento que balizam os principais programas de

formação do Governo Federal. Para a realização desta pesquisa, adotamos os

pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin e seu círculo, bem como os estudos que

dialogam com a perspectiva de pesquisa de base histórico-cultural, pois entendemos que

o signo linguístico é carregado de conteúdo axiológico, marcado pelo tempo-espaço de

produção e pelas relações dialógicas de interação verbal entre os seres humanos. A

metodologia utilizada neste trabalho tem como base a modalidade de pesquisa de cunho

bibliográfico. Assim, o corpus analítico deste estudo foram pesquisas que versam sobre

as propostas de formação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores

(Profa), do Programa Pró-letramento e do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade

Certa (Pnaic). Nesse sentido, ao analisarmos esses documentos, tomaremos as vozes

presentes nos textos, considerando-as como vozes carregadas de valor e endereçadas a

interlocutores concretos, que são os professores alfabetizadores e toda a equipe que

integra as ações de formação. Destacamos que no diálogo com as pesquisas, vimos que

o movimento discursivo que embasa os programas de formação do Ministério da

Educação (MEC), concebe a alfabetização como um processo de aquisição das

habilidades de ler e escrever - decodificação e codificação. Tais conhecimentos são

considerados como antecedentes às práticas de letramento e privilegiam apenas uma das

dimensões da alfabetização: a aquisição do código.

Palavras-chave: Alfabetização. Formação de Professores. Avaliação

OS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO PARA PROFESSORES

ALFABETIZADORES E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS DE

AVALIAÇÃO

Neste texto temos como objetivo compreender o conceito de alfabetização e de

letramento que são balizados nos principais programas de formação do Governo

Federal, bem como evidenciar a relação entre as formações e as políticas de avaliação

implementadas a partir da década de 1990. Desse modo, dialogaremos com diferentes

autores que se detiveram a investigar a alfabetização, no que tange aos programas de

formação do Governo Federal voltadas para os professores alfabetizadores.

Para análise dos textos adotamos os pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin e

seu círculo. A base teórica deste estudo é a perspectiva histórico-cultural, de cunho

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qualitativo e a modalidade de pesquisa adotada é a bibliográfica. Ancorados nos estudos

de Marcuschi (2008), entendemos que as pesquisas se configuram como suportes que

comportam diferentes enunciados e gêneros do discurso. Para esse autor, a ideia de

suporte abrange três aspectos: suporte é o lugar (físico ou virtual); suporte tem formato

específico; e suporte serve para fixar e mostrar o texto. Portanto, o suporte é base física

ou virtual onde são registrados textos de diferentes gêneros. Assim, todo gênero

discursivo exige um determinado tipo de suporte que irá depender das intenções do/s

autor/es. De acordo com Marcuschi (2008, p. 11), “[...] o suporte não é neutro e o

gênero não fica indiferente a ele”.

A partir das contribuições desse autor, consideramos que o banco de dados da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), são suportes

convencionais, que contemplam pesquisas que trazem em seu bojo discursos que

revelam as políticas de formação de professores, as didáticas de ensino e as propostas de

avaliação voltadas para os alunos matriculados no ciclo inicial de aprendizagem do

ensino fundamental. Esses discursos são organizados em forma de textos/enunciados

que são elaboradas a partir das escolhas e objetivos do/s autor/es. De acordo com

Bakhtin (2003, p. 274),

[...] o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações

concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O

discurso sempre está fundido em forma de enunciado

pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa

forma não pode existir.

A concepção de alfabetização defendida neste estudo, parte do princípio que a

alfabetização é “[...] uma prática social e cultural em que se desenvolvem a formação da

consciência crítica, as capacidades de produção de textos orais e escritos, de leitura e de

compreensão das relações entre sons e letras” (GONTIJO, 2008, p. 198). Guiados por

esse conceito, entendemos que as práticas de alfabetização envolvem a articulação

dessas dimensões, de modo a possibilitar aos sujeitos uma reflexão crítica e discursiva

sobre a língua escrita. Nesse sentido, consideramos as crianças como sendo sujeitos

concretos, situados em um contexto histórico-cultural, sujeito de direitos, que dialogam,

sofre influências e influenciam a sociedade.

Um olhar sensível sobre as políticas de alfabetização a partir da década de 1990

A década de 1990 é considerada o marco da educação. Durante esse período a

alfabetização foi objeto de estudos e debates nos campos acadêmicos, políticos e

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econômicos. No ano de 1990 foi realizada a Conferência Mundial de Educação Para

Todos, em Jomtien, na Tailândia. Esse encontro teve como objetivo discutir e assumir

como meta as necessidades básicas de aprendizagem para todos, a universalização do

ensino fundamental e a ampliação da educação para as crianças, os jovens e os adultos.

De acordo com o relatório elaborado nesse encontro, a educação teria como objetivo

proporcionar aos indivíduos conhecimentos que lhes possibilitassem responder aos

desafios do mundo do trabalho e da globalização.

Destacamos que nesse período foi iniciado a implementação das avaliações em

larga escala. Em 1990 foi realizada a primeira avaliação por amostragem do Sistema de

Avaliação da Educação Básica (Saeb), organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Os alunos matriculados nas turmas de

1ª, 3ª, 5ª e 7ª séries do ensino fundamental participaram dessa avaliação, sendo

avaliados os conhecimentos de língua portuguesa, matemática e ciências. As avaliações

por amostragem do Saeb foram realizadas nas edições de 1990 a 2003, cujo objetivo foi

realizar um diagnóstico do sistema educacional brasileiro para saber quais fatores

interferiam no desempenho dos alunos e quais os indicativos sobre a qualidade do

ensino educacional brasileiro. A partir dos dados, a proposta do Governo era elaborar

ações que contribuíssem para a melhoria do ensino.

Podemos dizer que os acordos firmados com instituições internacionais e os

documentos elaborados pelo Governo Federal, durante a década de 1990, tiveram como

objetivo a redução das taxas de analfabetismos e evasão escolar e, sobretudo, a

formação da mão-de-obra qualificada para atender às exigências do mercado. Com base

em tal perspectiva, a Lei nº 9.394/96 é aprovada no governo Fernando Henrique

Cardoso. A educação, nesse documento, tem como finalidade a formação para o

exercício da cidadania, progressão no trabalho e estudos posteriores.

De acordo com Frigotto e Ciavatta (2003), a era FHC foi permeada por políticas

neoliberais que acabaram aumentando, ao invés de diminuir, a exclusão e as

desigualdades sociais. As ideias neoliberais foram utilizadas para justificar a

implantação de reformas no âmbito educacional no Brasil, com forte influência de

organismos internacionais. Em seu texto, vimos que os autores nutriam uma esperança

no governo de Lula. No entanto, ao dialogarmos com a pesquisas no campo da

alfabetização percebemos que houve nesse governo uma continuidade de políticas de

cunho neoliberal. Assim, no ano de 2005, foram criadas mais duas maneiras de avaliar o

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desempenho dos alunos do ensino fundamental, a Prova Brasil e o Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), e no ano de 2007, a Provinha Brasil.

Ressaltamos que o Ideb é uma proposta de avaliação desenvolvida pelo Governo

Federal e criada no ano de 2005, pelo doutor, formado em economia, Sr. Reynaldo

Fernandes, diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira (INEP). O Ideb é um instrumento que serve como indicador de qualidade

educacional dos níveis escolares do ensino fundamental do País. As bases de cálculo do

Ideb são as notas obtidas pelos alunos na Prova Brasil ou Saebxi mais os anos escolares

que o aluno leva para concluir o ensino fundamental.

O Ideb é um indicador de qualidade educacional que combina

informações de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil

ou Saeb) – obtido pelos estudantes ao final das etapas de ensino (4ª e

8ª séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio) – com

informações sobre rendimento escolar (aprovação) (INEP, acesso em

2 out.2009).

Por meio dos dados coletados pelo Ideb, é possível saber quais as regiões e

escolas que apresentam maior e menor índice de desempenho escolar. A partir de tais

dados, a proposta do Governo Federal visa definir políticas públicas que contribuam

com a melhoria dos sistemas educacionais. Já a Provinha Brasil foi instituída pela

Portaria Normativa nº 10, de 24 de abril de 2007. Tendo como objetivo diagnosticar as

habilidades de leitura e de matemática das crianças matriculadas no 2º ano do ensino

fundamental das escolas públicas brasileiras. Sua aplicação é anual, sendo realizado em

dois momentos, no início e final do ano.

Acreditamos que as formas padronizadas de avaliação desenvolvidas pelo

Governo Federal demandam muitas reflexões a respeito do que se tem feito para a

melhoria da realidade educacional brasileira, a partir dos dados obtidos nesses exames.

Consideramos que esses mecanismos de avaliação não levam em consideração os

contextos reais onde os alunos e os professores estão inseridos.

Tessituras dialógicas com as pesquisas em educação: formação de professores

Tomando como base nosso objeto de estudo, dialogaremos com as pesquisas que

trazem em destaque as ações realizadas pelo Governo Federal a partir dos dados obtidos

nos instrumentos de avaliação em larga escala. Ao dialogarmos com as pesquisas,

buscaremos estabelecer as fronteiras que possibilitam a contrapalavra e o nosso

excedente de visão. Pois entendemos que,

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[...] nenhum leitor comparece aos textos desnudado de suas

contrapalavras de modo que participam da compreensão construída

tanto aquele que lê quando aquele que escreveu, com predominância

do primeiro porque no diálogo travado na leitura o autor se faz falante

e se faz mudo nas palavras cujos fios de significação reconhecidos são

reorientados segundo diferentes direções impostas pelas

contrapalavras da leitura (GERALDI, 2010, p. 133).

Desse modo, consideramos que as pesquisas apresentam diferentes vozes

sociais, que nos possibilitam entender o cenário educacional brasileiro, bem como o

conceito de alfabetização e de letramento que são balizados nos programas de formação.

A partir das nossas ancoragens com os textos, selecionamos os trabalhos realizados por

Becalli (2007), Giardini (2011), Lúcio (2011), Antunes (2015), por percebermos que

esses trabalhos evidenciaram que os resultados das avaliações nacionais são utilizados

para justificar as políticas de formação do MEC, voltadas para os professores

alfabetizadores.

A pesquisa de Becalli (2007), a respeito da abordagem de ensino da leitura do

Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), buscou compreender a

concepção de leitura e de texto legitimada por esse programa, bem como os

pressupostos teóricos e metodológicos que balizaram seu modelo de ensino da leitura.

De acordo com o Guia do formador, o Profa foi um programa criado pelo Governo

Federal, no ano de 2001, com o objetivo de “[...] instrumentalizar o professor para que

possa organizar boas situações de aprendizagem a partir de textos como parlendas,

canções, poesias etc.” (BRASIL, 2002, p. 49). A autora destaca que o Profa foi um

programa implantado durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, cuja

proposta foi elevar os índices do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), já

que a média de proficiência em Língua Portuguesa dos anos de 1995 a 2001 foi muito

baixa.

Segundo Becalli (2007), a proposta de formação materializada no Profa é

constituída de vozes que incorporam os discursos produzidos por Piaget, Ferreiro e

Teberosky e Telma Weisz. Tais falas visam a dar legitimidade e credibilidade ao

programa. “[...] Esses discursos buscaram, numa perspectiva monológica e vertical,

construir um determinado regime de verdade legitimando o construtivismo como a

teoria adequada para sustentar o trabalho do professor nas classes de alfabetização”

(BECALLI, 2007, p. 199). Destacou, ainda, que,

[...] o material do PROFA não favoreceu para que os professores

formadores e os cursistas pudessem se constituir como sujeitos

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no processo de formação, uma vez que o material não propiciou

o diálogo com a produção de conhecimento na área da

alfabetização e, portanto, com diferentes vozes. Dessa forma,

consideramos que os materiais do PROFA não favoreceram para

que os professores cursistas e os formadores se colocassem

como interlocutores diante das várias vozes responsáveis pelo

conhecimento produzido historicamente sobre a alfabetização

(BECALLI, 2013, p. 199).

Ancorada na perspectiva bakhtiniana de linguagem, a autora concluiu que as

atividades destinadas à leitura e à escrita propostas no programa de formação são

voltadas, sobretudo, para o ensino de palavras. De acordo com Becalli (2007), apesar de

algumas atividades enfatizarem o texto, este não é explorado de forma a possibilitar que

os alunos construam uma atitude responsiva, pois é tomado apenas como pretexto para

o estudo das relações entre o oral e o escrito. Considerou também que o ensino da

leitura precisa ser sustentado por uma concepção que visualize os alunos como sujeitos

sócio-históricos que dialogam com os textos, produzindo discursos e se constituam

como sujeitos de seus próprios discursos.

O trabalho de Giardini (2011) é fruto de uma pesquisa bibliográfico-documental,

cujo objetivo foi analisar a qualidade da formação continuada de professora no

Programa Pró-Letramento, verificando a sua coerência e/ou incoerência interna. Os

dados analisados evidenciam, segundo a autora, que a formação é apresentada como

sendo uma inovação capaz de melhorar os problemas da educação, apresentando caráter

compensatório, uma vez que reforça a qualidade apenas pela via da prática docente. A

autora considera que a formação não contribuiu para a atualização de práticas, uma vez

que não possibilitou momentos dialógicos em que os professores pudessem refletir

sobre seus fazeres docentes, seus contextos e sua valorização profissional.

O discurso “inovador” do Programa Pró-Letramento também foi evidenciado no

trabalho apresentado por Lúcio (2011), na 34a reunião da Anped. Ao analisar os

fascículos do curso, a autora constatou que os pressupostos construtivistas de Emília

Ferreiro e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita são amplamente

divulgados nos fascículos e viu que há uma homogeneização discursiva que evidencia

os enunciados de dois centros, CEALE/UFMG e CEEL/UFPE, em defesa do

“alfabetizar letrando”. Assim, a autora salienta que o conceito de alfabetização é

apresentado ao nível das habilidades linguísticas, ou seja, de domínio do código escrito,

e antecede as discussões de letramento.

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De acordo com Antunes (2015), o objetivo da formação Pró-Letramento é

contribuir para a melhoria da qualidade do ensino de Língua Portuguesa e Matemática,

uma vez que os dados das avaliações do Sistema Nacional de Educação Básica (Saeb) e

o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) têm demonstrado que muitas

crianças não estão se apropriando dos conhecimentos da leitura e da interpretação de

textos. A autora destaca que o Programa Pró-Letramento foi uma medida tomada pelo

Governo Federal para resolver os problemas de aprendizagem das crianças, tendo como

principal agente transformador os professores. O discurso da formação referenda o

letramento de Magda Soares, como sendo o “[...] marco orientador das ações conjuntas

da união, municípios e sociedade civil” (BRASIL, [200-], p. 1).

Outro trabalho que destaca a relação conjunta entre avaliação e formação, é o

trabalho realizado por Luz e Ferreira (2013). De acordo com as autoras, os resultados do

Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ano de 2007 indicaram que

houve melhoria do sistema educacional nas séries iniciais do ensino fundamental, cujo o

índice foi de 4,2 e, no ano de 2009, foi de 4,6, superando, assim, as metas estimadas

para os referidos anos. As autoras ponderam que esses resultados serviram de

argumentos para justificar o êxito do Programa Pró-Letramento, pelo MEC, servindo de

referência para a implementação do Programa de Formação do Pacto Nacional pela

Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Acrescentam ainda que o “[...] o Pacto é a

continuação dos programas implementados durante o Governo Lula (2003-2010) e que

trata a relação formação, trabalho docente e avaliação como estratégica para atingir

melhores resultados nas avaliações nacionais” (LUZ; FERREIRA, 2013, p. 3).

Ressaltamos que o Pacto foi instituído no Governo da presidenta Dilma

Rousseff, no ano de 2012, e apresenta vínculos com os programas implementados na

gestão do Governo Lula (2003-2010). É um compromisso assumido entre os Governos

Federal, Estadual e Municipal, que visa a assegurar que todas as crianças de até oito

anos se tornem alfabetizadas ao final do 3º ano do ensino fundamental. Podemos dizer

que Pnaic é fruto de uma política de governo pautado na política educacional e

internacional, portanto segue as orientações e objetivos de diferentes instituições, entre

as quais, o Banco Mundial (BM), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (Unesco), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Plano Nacional de

Educação (PNE) e o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

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No entanto, observamos na pesquisa bibliográfica e documental de Oliveira

(2012) intitulada “As estratégias utilizadas por crianças em fase de apropriação da

leitura: uma análise baseada na interação com instrumentos de avaliação em larga

escala”, que, anteriormente ao Pnaic, houve um outro programa que também serviu de

base para sua implantação. A autora destacou que, em 2006, a Associação dos Prefeitos

do Ceará (Aprece) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação do Ceará

(Unidime-CE), com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),

assumiram o compromisso com a alfabetização das crianças, dando origem ao Programa

Alfabetização na Idade Certa (Paic), que compreendia uma avaliação de larga escala,

cujo objetivo principal era fornecer subsídios para que as unidades municipais criassem

seus próprios sistemas de avaliação, garantindo, assim, a alfabetização das crianças na

idade certa ou no segundo ano do ensino fundamental. Conforme a autora, os

instrumentos utilizados pelo Paic foram cadernos de testes, elaborados de acordo com

uma matriz de referência. Segundo Oliveira (2012, p. 84), as competências avaliadas

pela matriz do Paic foram referentes “[...] à ‘Apropriação do sistema de escrita:

habilidades relacionadas à identificação, ao reconhecimento de aspectos relacionados à

tecnologia da escrita’ e ‘Leitura: habilidades ligadas à decodificação e compreensão de

palavras e textos’”.

Conforme assinala Bakhtin (2003), nos comunicamos por meio de enunciados

que são produzidos para dar continuidade a cadeia discursiva, objetivando responder a

enunciados elaborados por outros sujeitos. Nessa perspectiva, entendemos que as

pesquisas apresentadas são enunciados permeados de vida, que carregam um conteúdo

ideológico, um tom valorativo dos sujeitos que os produzem. Tais enunciados nos

possibilitaram o entrelaçamento de fios e tramas discursivas que ampliaram nosso olhar

a respeito das políticas públicas em alfabetização.

Nossas Considerações

Ao dialogarmos com as pesquisas, vimos que os programas de formação dos

professores alfabetizadores são medidas propostas pelo Governo Federal para melhorar

os índices de leitura e escrita dos alunos matriculados no ensino fundamental. A teoria

construtivista e o termo letramento adotado por Magda Soares, constituem o discurso

hegemônico das formações oferecidas pelo MEC, sendo considerados como propostas

inovadoras capazes de melhorar significativamente os índices de fracasso escolar.

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Destacamos que a teoria construtivista tem orientado as políticas de

alfabetização no Brasil principalmente a partir da década 1990, e atualidade, norteando

as práticas de alfabetização desenvolvidas nos sistemas que aderiram o Ciclo Básico de

Alfabetização. Observamos que tal abordagem teórica é amplamente divulgada nos

programas de formação do Profa, Pró-letramento e Pnaic, servindo de argumentação

teórica para enfatizar os processos didáticos que concebem a alfabetização como

aquisição do código escrito. A ênfase dada aos agrupamentos dos alunos a partir dos

níveis/hipóteses de escrita, orientam as propostas didáticas dos professores, servindo de

referência para elaboração dos instrumentos das avaliações nacionais.

No que tange ao termo letramento, vimos que ele foi incorporado com muita

força no meio acadêmico e nas pesquisas, nos anos de 1980 e 1990, período em que se

afirmava que a alfabetização havia perdido sua especificidade, devido à incorporação da

teoria construtivista e à adoção do sistema de ciclos e progressão continuada, que,

segundo Soares (1998), acabou gerando uma “pulverização” do que devia ser

aprendido. De acordo com a autora

[...] alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não

inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou

seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da

leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao

mesmo tempo, alfabetizando e letrado (SOARES, 1998, p. 47).

O discurso de Soares do alfabetizar letrando fundamenta os programas de

formação e as políticas de avaliação do MEC. Apesar dessa fundamentação, é possível

notar no diálogo com as pesquisas, que há uma dissociabilidade entre esses conceitos.

De acordo com as orientações didáticas das formações, a apropriação da linguagem

escrita, ocorre por meio do ensino de palavras, sílabas e letras. O letramento é

referendado a partir do uso dos diferentes gêneros textuais. No entanto, os textos “[...]

não respondem a nenhum interesse mais imediato daqueles que sobre os textos se

debruçam” (GERALDI, 1997, p. 168). Ou seja, os textos são utilizados como pré-texto

para ensinar os conhecimentos do sistema de escrita alfabético. A leitura como

produção de sentidos não é aprofundada nas propostas de formação. Essa

indissociabilidade entre alfabetização e letramento, também é observada nos

instrumentos de avaliação dos Governos. Schwartz e Gontijo (2011), no texto

“Alfabetização, letramento e a política de avaliação diagnóstica no Brasil”, apontam que

[...] a Provinha Brasil avalia a leitura e a escrita apenas como mera

aquisição da técnica de ler e escrever e dissociada das diferentes

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práticas de uso da linguagem escrita na sociedade, negando o princípio

da indissociabilidade entre conhecimento linguístico e práticas sociais

de leitura e escrita (SCWARTZ; GONTIJO, 2011, p.187).

Assim, os enunciados apresentados revelam que o discurso expresso nos

programas de formação do MEC é um discurso acabado, pois não levam em conta os

fatores históricos, culturais e sociais que interferem no processo de ensino-

aprendizagem.

Podemos concluir que o conceito de alfabetização apresentado pelas pesquisas sobre os

programas de formação do MEC, reforçam as habilidades linguísticas e a aquisição do

código escrito, esses são vistos como conhecimentos que antecedem as práticas de

letramento. Essa concepção sustenta as políticas de avaliação, desconsiderando o caráter

emancipatório, político e ativo do ensino da língua materna e as relações sociais-

históricas-políticas da sociedade.

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i Artigo produzido a partir de recorte de pesquisa de mestrado, que analisou as concepções de

alfabetização, leitura e escrita subjacentes à Provinha Brasil no período 2008-2012 e o panorama em que

esse programa de avaliação foi produzido, orientada pela Profª Drª Cláudia Maria Mendes Gontijo, no

programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. ii Doutoranda em Educação, na linha de Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES). Endereço eletrônico:

[email protected].

iii Artigo produzido a partir de recorte de pesquisa de mestrado, intitulada O Bloco Único no Município da

Serra: contribuições à História e à Política de alfabetização (1995-2003), orientada pela Profª Drª Cláudia

Maria Mendes Gontijo, no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito

Santo.

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iv Professora da Educação Básica da Prefeitura Municipal da Serra – ES e Doutoranda em Educação, na

linha de Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal

do Espírito Santo (PPGE/UFES). Endereço eletrônico: [email protected] v O quantitativo não alcança o percentual de 100% em virtude de evidenciarem conclusões voluntárias,

não solicitadas previamente pela pesquisadora. vi Fizemos a opção por identificar os profissionais envolvidos nesta pesquisa pelas iniciais de seus nomes

e sobrenomes. vii Todas as transcrições das entrevistas seguem convenções definidas por FAVERO, L. L.; ANDRADE,

M. L. C. V. O. ; AQUINO, A. G. O., grupo de pesquisadores que tem investido em estudos sobre as

diferenças entre as modalidades de linguagem oral e escrita. Essas normas são apresentadas na obra

intitulada Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. viii O quantitativo final supera o número de professoras entrevistadas uma vez que apontaram um ou mais

materiais disponíveis na época para o trabalho nas salas do Bloco Único. ix Material emborrachado muito utilizado na elaboração de jogos pedagógicos. x Professora da Educação Básica da Prefeitura Municipal de Vitória – ES e Doutoranda em

Educação, na linha de Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES). Endereço eletrônico:

[email protected]

xi A Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) são avaliações

para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC). Têm o objetivo de avaliar a qualidade do ensino

oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários

socioeconômicos.

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