ENTRE O PENUMBRISMO E A DICÇÃO MODERNISTA: …
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA E TEORIA LITERÁRIA
Ana Carolina Botelho dos Santos
ENTRE O PENUMBRISMO E A DICÇÃO MODERNISTA:
PROCESSOS DE REELABORAÇÃO ESTÉTICA NA POESIA
INAUGURAL DE DRUMMOND NOS ANOS 20
Niterói
2020.2
Ana Carolina Botelho dos Santos
ENTRE O PENUMBRISMO E A DICÇÃO MODERNISTA:
PROCESSOS DE REELABORAÇÃO ESTÉTICA NA POESIA
INAUGURAL DE DRUMMOND NOS ANOS 20
Dissertação apresentada à coordenação do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Literatura do Instituto de
Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito
para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração:
Estudos Literários. Subárea: Literatura Brasileira e Teoria
literária.
Orientadora: Profª Drª Flávia Vieira da Silva do Amparo
Niterói
2020.2
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Profª Drª Flávia Vieira da Silva do Amparo (Orientadora – UFF)
_____________________________________________________________
Profª Drª Matildes Demétrio dos Santos (UFF)
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Estevão Gomes Pasche (UFRRJ)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa (Colégio Pedro II)
Suplente
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Pascoal Farinaccio (UFF)
As almas são árvores. De vez em quando uma
folha da minha vai avoando poisar nas raízes
da de você. Que sirva de adubo generoso.
Com as folhas da sua, lhe garanto que cresço
também.
- Mário de Andrade
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
- Carlos Drummond de Andrade
AGRADECIMENTOS
Muitas foram as pessoas que, de formas diferentes, participaram da minha
trajetória e me ajudaram a ter força, serenidade e inspiração para ingressar na Graduação
de Letras da Universidade Federal Fluminense e, posteriormente, dar prosseguimento aos
meus estudos no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura pela mesma
Universidade.
À minha mãe, Roberta, que nunca mediu esforços para que eu tivesse uma
excelente educação e, por muitos anos sozinha, assumiu a responsabilidade de me educar,
vestir, alimentar, zelar pela minha saúde mental e física e investir na minha carreira. É a
ela que devo a possibilidade de crescer em um lar repleto de afeto.
Ao meu dindo, Amaury, que foi o único pai que tive. Meus sinceros
agradecimentos a tudo que fez por mim em vida e também por me fazer acreditar que era
possível ir longe.
À minha dinda, Lourdes, que sempre me motivou a estudar e me ensinou, quando
da luta contra seu terceiro câncer, que é preciso força e coragem para alcançar nossos
objetivos.
Ao meu namorado, Raphael, que, há quase cinco anos, tem sido meu porto seguro
com sua paciência e disposição infinitas.
Às amigas que fiz na Graduação, Nathália Primo e Marina Campos, que até hoje,
independente da hora, oferecem-me suporte não só acadêmico, como também emocional.
Às minhas amigas de longa data, Anna Marina, Juliana Melo, Juliana Póvoa e
Bárbara, que acompanham minha trajetória e vibram com minhas conquistas.
À minha querida orientadora, Flávia Amparo, que vem, desde a Graduação,
ajudando-me a evoluir acadêmica, profissional e humanamente.
Aos excelentes professores que integram a banca examinadora, Matildes
Demétrio, Marcos Pasche e Luiz Guilherme Barbosa, que aceitaram participar desta
importante etapa de minha carreira acadêmica.
Ao meu professor de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental da E. M. João
Monteiro, Waldemar, que foi o primeiro a depositar em minhas mãos um livro de
Literatura Brasileira, abrindo uma porta que nunca mais se fechou.
RESUMO
A presente pesquisa analisa as ressonâncias penumbristas em Os 25 poemas da
triste alegria (1924), de Carlos Drummond de Andrade, livro que reúne poemas iniciais
da carreira literária do poeta quando o jovem itabirano se inspirava em autores que
encabeçaram a tendência penumbrista, como Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra e
Ribeiro Couto. A fim de alcançar esse objetivo, elucidamos as bases da formação do
Penumbrismo brasileiro e suas características, assim como analisamos poemas
selecionados de Os 25 poemas da triste alegria. Em seguida, discutimos de que forma
Drummond materializa, em Alguma poesia (1930), o amadurecimento de uma dicção
modernista, também investindo em uma análise de poemas selecionados dessa segunda
obra. São analisados textos críticos e periódicos da época a fim de entendermos como
Drummond ligou-se aos dois movimentos nessa década de riquíssimo experimentalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Penumbrismo; Modernismo; poesia; Belle Époque; Carlos
Drummond de Andrade.
ABSTRACT
The present research analyzes the echoes of a gloomy tendency in Carlos
Drummond de Andrade’s Os 25 poemas da triste alegria (1924), a book that gathers the
early poems of the poet’s literary trajectory when Drummond was inspired by writers
who led the gloomy tendency, such as Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra and Ribeiro
Couto. In order to achieve this objective, we elucidate the bases of the Brazilian gloomy
tendency’s formation and its characteristics, as well as we explore selected poems of Os
25 poemas da triste alegria. Then, we discuss how Drummond materializes, in Alguma
poesia (1930), a strictly and mature Modernist look, analyzing select poems of this book
to prove this proposition. We also analyze texts withdrawn from journals and magazines
of the 20’s in order to understand how Drummond has connected to both movements in
this decade of very rich experimentalism.
KEYWORDS: Penumbrism; Modernism; poetry; Belle Époque; Carlos Drummond de
Andrade.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
1. UM PEDAÇO DA EUROPA NO BRASIL ............................................................. 15
1.1 O Decadentismo francês ........................................................................................... 16
1.1.1 O outono e a cidade de Mallarmé e Rimbaud ........................................................ 23
1.2 O veio penumbrista ................................................................................................... 28
2. A POESIA CREPUSCULAR DE OS 25 POEMAS DA TRISTE ALEGRIA ........ 40
2.1 Fortuna crítica e recepção do “quase livro” .............................................................. 43
2.2 A alegria melancólica de um jovem poeta ................................................................ 51
3. MAIS DO QUE UMA ESTÉTICA, UM ESTADO DE ESPÍRITO .................... 61
3.1 Pré-modernismo: uma nomenclatura, vários tensionamentos ................................. 62
3.1.1 Antecedentes da Semana de Arte Moderna .......................................................... 69
3.2 A vez do sapo-cururu: a Semana e o Modernismo de 1922 .................................... 77
4. NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DRUMMOND ..................................... 88
4.1 “Era tão gostoso brincar de Modernismo...” ........................................................... 90
4.2 O homem que espia a vida: o Modernismo de Alguma poesia ............................. 102
4.2.1 “Vai, Carlos! ser gauche na vida” ...................................................................... 106
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 126
ANEXOS ..................................................................................................................... 132
10
INTRODUÇÃO
Em entrevista radiofônica a Lya Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade
(1987) recuperou, em síntese, uma boa parte de sua trajetória literária, mencionando não
só a infância em Itabira, sua cidade natal, como também o início do movimento
modernista em Minas e alguns desdobramentos de sua filiação a essa estética que
revolucionou as artes brasileiras, sobretudo a partir de 1922.
O atraso cultural de Itabira, onde sequer havia circulação de jornal por volta de
1918, e os periódicos que recebia de um farmacêutico chamado Eurico Camilo
impactaram de forma decisiva a formação da primeira base de influência do poeta
Drummond. “Essas revistas, lidas, relidas, alisadas no excelente papel couché”
(ANDRADE, 1987, p. 17) transformaram-se na “iniciação literária, muito imperfeita mas
decisiva” (ANDRADE, 1987, p. 17), do itabirano.
Sob esse aspecto, é a essência desses periódicos que deve ser mencionada e é dela
que partiremos a fim de traçarmos o objetivo desta pesquisa. Reproduzindo o que de mais
tradicional e purista havia em poesia brasileira, a Careta, revista carioca, propiciava a
Drummond o deleite das formas fixas de Bilac, por quem o mineiro sempre guardou uma
intensa admiração, “embora não o confessasse no período modernista” (ANDRADE,
1987, p. 17). Em contraposição à rigidez formal parnasiana, também era lida por
Drummond a Fon-Fon!, periódico que distribuía “os últimos ecos do simbolismo”
(ANDRADE, 1987, p. 17) com sua literatura um pouco mais livre na forma, porém
extremamente intimista, atenuante e melancólica no conteúdo.
Foi por meio das leituras dessa última que Drummond passou a conhecer e a
apreciar a “arte delicada de escrever” (ANDRADE, 1987, p. 26) de Álvaro Moreyra,
importante figura do simbolismo tardio no Rio de Janeiro. Seja pela falta de grandes
modelos a serem seguidos em Itabira, seja por uma afinidade psicológica estabelecida
com o tipo de literatura que Moreyra fazia, fato é que Drummond, em sua juventude,
enxergou no escritor carioca uma referência para sua iniciação na poesia, chegando a
reproduzir alguns “cacoetes” do estilo de Moreyra:
Como as reticências alongavam, refinavam, musicalizavam o bloco de
palavras, fazendo com que elas continuassem suspensas no ar, depois
de concluído o texto! Não me envergonho do meu alvaromoreyrismo
descarado, de simples repetidor canhestro, sempre aquém do modelo.
Entre modelos de banalidade ou mau gosto, vigentes na época, sua
11
prosa sensível e irônica seduzia pela finura. Fiquei fascinado
(ANDRADE, 1987, p. 27).
Álvaro Moreyra não se tornou o único escritor de viés Neo-simbolista que
Drummond iria ler e apreciar em sua juventude. A própria Fon-Fon! e outros periódicos
que custosamente arranjava em Itabira trataram de apresentar ao mineiro diferentes faces
da literatura intimista carioca, como a poesia de Ribeiro Couto e de Ronald de Carvalho,
a quem Drummond certamente deve a ressonância do cotidiano humilde e do ambiente
crepuscular em seus passos poéticos iniciais. Devemos juntar à influência penumbrista o
apego que o itabirano tinha aos romances de estilo cético e decadentista do escritor
francês Anatole France.
Toda essa bagagem – aqui extremamente simplificada – corroborou a edificação
de uma personalidade que materializava, na poesia que escrevia, nos artigos que
publicava e nas opiniões que tinha acerca da tradição literária de seu país, o rosto de uma
geração ambígua. Desse modo, o jovem Drummond, a um só tempo, evidenciava a
existência de uma nostalgia do passado, inspirada nos artistas da Belle Époque e do
Decadentismo francês, e as incertezas das novas tendências artísticas de vanguardas
europeias, que já podiam ser notadas no material penumbrista que o mineiro guardava,
com carinho, em sua mesa de cabeceira.
Assim, marcado por um decadentismo fin-de-siècle que atravessou o Atlântico e
se instaurou em alguns setores intelectuais do Brasil, o que ajudou o surgimento do que
muitos críticos literários chamam de Penumbrismo, Drummond mostrava-se, nessa época,
extremamente pessimista, variando o tom entre uma ternura quase sempre triste e um
evidente ceticismo. Não é à toa que Mário de Andrade, tão logo iniciado o contato
epistolar com Drummond, em 1924, percebeu essas características tanto no espírito do
itabirano quanto nos seus escritos. Diante desse contexto, o escritor paulista decretou:
Drummond não tinha provado, pelas suas conversas até então, “peraltice, vida, vitalidade,
fraqueza juvenil” (ANDRADE, 2002, p. 67)
Sua aproximação com a poética finissecular francesa e, por conseguinte, com a
estética penumbrista rendeu ao primeiro livro de poesia de Drummond, Os 25 poemas da
triste alegria – datilografado em 1924, mas de publicação póstuma em 2012 –, um tom
cético, passadista, melancólico e de observação das coisas sem grande aprofundamento
psicológico. Nas cartas trocadas entre Mário de Andrade e Drummond, muitos dos
poemas contidos nessa primeira obra foram compartilhados, comentados e discutidos
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pelos dois escritores, possibilitando que o autor de Pauliceia desvairada pudesse criticar
a postura decadentista, isolacionista e pessimista do poeta mineiro.
Incontáveis palavras colocadas em papel pautado foram utilizadas por Mário de
Andrade para, insistentemente, convocar Drummond a produzir uma literatura que
estivesse mais vinculada às suas experiências e às mudanças culturais por que o Brasil
estava passando. A solução, então, seria única, porém não menos simples por isso: era
necessário abrasileirar-se, aprender a amar a pátria, ir às ruas e tirar do contato com o povo
o alimento vivo de sua poesia.
Assim, quando lançada Alguma poesia (1930) – obra essencialmente modernista
do poeta –, foi perceptível a mudança de postura de Drummond refletida na construção
de seus versos. Aparentemente, a resposta encontrada pelo poeta para abandonar seus
ídolos do passado e depositar sua atenção na matéria viva do presente foi tirar do próprio
equívoco cosmopolita (SANTIAGO, 2007, p. 10) – fomentado pela literatura
decadentista francesa – os recursos necessários para entrar em contato com a realidade
nacional. Dessa maneira,
Coube a Drummond transformar o equívoco cosmopolita, gerado pela
macaqueação do colono nos trópicos, em certeza inabalável, verdadeiro
motor do seu fazer poético. (...) A convivência com a realidade
provinciana torna cego o observador e empobrece o analista. Por mais
nocivo que seja o despaisamento, ele sempre alarga o raio de visão do
intelectual para que enxergue de maneira provocadora ou irônica o que
não consegue ver na naturalidade do dia a dia (SANTIAGO, 2007, p. 16-
17).
Atribuindo crítica e autocrítica, a partir de um recorrente tom de ironia e humour,
à sua visão da realidade brasileira, Drummond encerra, com a publicação de Alguma
poesia, o isolamento até então existente entre o poeta mineiro e a vida presente, sem se
coadunar, no entanto, ao nacionalismo típico dos modernistas de 1922 – resultado
permitido pelo distanciamento de olhar que o despaisamento provocava.
Não é à toa que são encontrados na obra de 1930 poemas que expõem
particularidades do tempo moderno, longe de qualquer idealização. Nesse sentido, é
recorrente a caracterização do poeta não como herói, mas como “qualquer homem da
terra” (ANDRADE, 2013, p. 43), assim como a consciência dos dramas de seu tempo,
como a Primeira Guerra Mundial, e da inconformidade perante o embate entre o poder do
capital e a fragilidade do homem, evidente na indagação do poema “Cota zero”: “a vida
parou ou foi o automóvel?” (ANDRADE, 2013, p. 60). Por outro lado, há ainda nesse
livro o testemunho quase sempre irônico da vida cotidiana e provinciana das origens do
13
poeta itabirano: “um homem vai devagar” (ANDRADE, 2013, p. 49), reencenando o
despaisamento de uma outra forma, na medida que o eu lírico encontra-se como um
deslocado – seja na cidade, seja no campo – sempre tropeçando naquela pedra que estava
“no meio do caminho” (ANDRADE, 2013, p. 36).
Essa interessante reelaboração estética drummondiana motivada por um novo
olhar do sujeito poético levando em consideração as obras Os 25 poemas da triste alegria
(1924) e Alguma poesia (1930) é, portanto, o foco desta pesquisa. Pretende-se, nesse
sentido, analisar como Drummond, com seu inquietante espírito, materializou nessas
obras a rica e híbrida influência literária sofrida na década de 1920 e o amadurecimento
de sua escrita – fatores responsáveis pela edificação de uma poética tão singular logo no
início de sua carreira.
Daí a importância de discutirmos, em um primeiro momento, as bases do
Penumbrismo – tendência a que se liga Drummond em seus primeiros passos como poeta
– para que, posteriormente, em poemas selecionados de Os 25 poemas da triste alegria,
seja possível identificar as ressonâncias penumbristas na obra. A análise desses versos
revela, sobretudo, um jovem poeta em repetição irrestrita e quase acrítica de valores
temáticos e estilísticos de importantes figuras dessa atitude estética, como Álvaro
Moreyra, Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho.
Em seguida, a fim de chegarmos ao estudo da afirmação de uma poética singular
drummondiana logo no início de sua carreira, sobretudo motivada pela dicção modernista
expressa e evidente em Alguma poesia, será igualmente necessária a discussão da
consolidação do Modernismo no panorama cultural brasileiro. Para isso, o capítulo III, de
caráter mais teórico, torna-se fundamental à análise dos processos e dos agentes que
corroboraram a “explosão” do movimento em São Paulo no ano de 1922, bem como dos
programas estéticos e ideológicos idealizados pelos modernistas paulistas. A exposição
dessas características permitirá que reconheçamos o lugar que ocupou Drummond na
tentativa de institucionalização de uma tradição literária mais nacional.
Após a explanação dos fatores literários e extraliterários que levaram à elaboração
da Semana de Arte Moderna, em 1922, e dos desdobramentos do Modernismo nos oito
anos seguintes ao evento no Teatro Municipal de São Paulo, o capítulo IV ocupa-se da
interiorização do movimento, que apresentou uma face vanguardista-tradicional em Belo
Horizonte, e do amadurecimento da dicção modernista de Drummond. Para realizar essa
tarefa, serão discutidas a influência de Mário de Andrade nesse processo e a relação que
Drummond passou a estabelecer com o Modernismo.
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Por fim, por meio da análise de poemas selecionados de Alguma poesia,
procuramos evidenciar, ainda no capítulo IV, as múltiplas características que compõem a
reunião de 1930 e mostrar como essa heterogeneidade contribuiu para uma filiação
singular de Drummond ao movimento. Afinal, o gauchismo, o ceticismo e o humour
drummondianos acrescentaram ao Modernismo uma outra face ainda mais complexa e
interessante.
Ressaltamos, enfim, a necessidade de (re)pensarmos a importância da década de
1920 para Drummond, sobretudo porque ainda é muito recente o contato da crítica
literária com Os 25 poemas da triste alegria, que de certa forma reconfiguram a trajetória
poética do escritor. Por isso, assim como coube ao poeta achar um caminho singular em
que pudesse inscrever a sua poesia em uma época de híbrida influência intelectual e de
grande experimentalismo, compete a esta pesquisa investigar seu percurso e discuti-lo à
luz dos maiores nomes da crítica literária brasileira.
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1. UM PEDAÇO DA EUROPA NO BRASIL
Dada a importância do contexto finissecular francês para o surgimento de uma
literatura brasileira de viés penumbrista, antes de adentrarmos nas especificidades dessa
tendência literária e compreendermos as suas ressonâncias nos primeiros escritos de
Drummond, é necessário explorar, a princípio, as raízes do Decadentismo e as
características desse movimento francês que chegaram às nossas letras. Para isso,
contaremos como aporte teórico, principalmente, os apontamos de Fulvia M. L. Moretto,
em Caminhos do Decadentismo Francês (1989), e de alguns outros críticos que se
empenharam em desenvolver um estudo a respeito desse importante período literário.
Desde muito jovem, antes mesmo de deixar sua pequena província itabirana,
Drummond entrou em contato com a literatura estrangeira, principalmente a europeia, por
meio de suas infinitas leituras, implicando a grande afinidade que tinha – no início de sua
carreira como poeta, na década de 1920 – com alguns escritores franceses, principalmente
Anatole France. O interesse pela cultura e pela literatura francesa, todavia, não era uma
particularidade exclusivamente de Drummond, mas uma tendência de sua geração:
muitos jovens literatos viam a França, sobretudo Paris, como modelo e inspiração,
seguidos, é claro, de inúmeros setores da sociedade brasileira que também adotavam
como parâmetro o estilo de vida e os traços da cultura do país europeu.
Em Belle époque tropical (1993), livro voltado exclusivamente à vida cultural e
literária do Rio de Janeiro na virada do século, Jeffrey D. Needell analisa as
consequências da influência francesa sobre as nossas letras, em especial para a produzida
na capital fluminense, e as implicações dessa relação passional que os brasileiros
estabeleceram, desde o século XVIII1, com a França. Esse elo foi intensificado com a
vinda da Corte para o Rio, aflorando – entre o século XIX, com o Romantismo, e o início
do século XX – uma literatura, sobretudo a carioca, que constantemente adaptava e
assimilava modelos franceses de escrita. A consequência, inevitavelmente, “foi um gosto
carioca fin-de-siècle, formado e alimentado por obras francesas de uma forma cumulativa
e discriminatória” (NEEDELL, 1993, p. 231).
1 Segundo Needell, as raízes dessa relação foram criadas por volta do século XVIII, quando, sob o comando
do déspota esclarecido Marquês de Pombal, foram inauguradas em Portugal, inspiradas nos modelos de
instrução do Iluminismo francês, inúmeras instituições de educação superior. Academias similares a essas
também foram construídas na Colônia brasileira, favorecendo o vínculo de admiração que uma parte dos
setores médios e da elite da Colônia teria pela França, sobretudo pelos seus costumes e literatura
(NEEDELL, 1993, p. 211-212).
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Com um histórico de influência que ultrapassa os séculos, o que vale para esta
pesquisa, todavia, é atentar-nos à interferência francesa na literatura brasileira, sobretudo
a carioca e a mineira, nas duas primeiras décadas do século XX. Assim, mais que hábitos
e traços estilísticos e arquitetônicos, a França também exportou um modelo decadentista
fin-de-siècle de escrita, que, em meio a uma poesia juvenil brasileira inserida em um
período de transição entre o Simbolismo e o Modernismo, encontrou possibilidades
oportunas de desenvolvimento. A adoção de aspectos decadentistas fomentou a criação
de uma poesia brasileira de penumbra2, à qual se liga o iniciante Drummond, cujos
poemas vinculados a essa estética penumbrista foram datilografados em 1924 e reunidos
na obra Os 25 poemas da triste alegria, que será analisada pontualmente mais adiante.
Vale ressaltar, por fim, que Gentil de Faria, em A presença de Oscar Wilde na
Belle Époque literária brasileira (1988), tece um interessante estudo não somente sobre
a influência do escritor inglês em nossa literatura durante a Belle Époque, como também
a respeito de um comportamento comum entre escritores brasileiros. Essa prática fez uma
parcela significativa das obras literárias produzidas no Brasil nas duas primeiras décadas
do século XX recorrer à literatura francesa como referência técnica e temática de
inspiração e de adaptação, afirmando serem essas manifestações brasileiras um “reflexo
de toda a literatura decadente reinante na França nas últimas décadas do século XIX”
(FARIA, 1988, p. 55).
1.1 O Decadentismo francês
A instabilidade peculiar de momentos de transição, caracterizados frequentemente
por releituras de uma tradição aparentemente consolidada, costuma promover a
construção de novos importantes paradigmas, processo ainda mais evidente quando da
passagem de um século para outro. A dicotomia “melancolia” versus “desejo de
renovação” ilustra essa perspectiva, o que se percebe quando, geralmente, em poéticas
finisseculares coexistem ímpetos de ruptura e desejos por novas opções estéticas. Nesse
sentido, como evidencia Moretto (1989), nas últimas décadas do século XIX surgiu, em
2 A expressão “poesia da penumbra” foi usada, pela primeira vez, em um artigo de mesmo nome escrito
por Ronald de Carvalho, publicado em O Imparcial, com data de setembro de 1921. Nesse artigo, o poeta
trata do lançamento do livro de poesia O Jardim das Confidências (1921), de Ribeiro Couto, tecendo
inúmeros elogios à forma com que Couto construiu seus poemas, uma vez que nas páginas de O Jardim
das Confidências havia versos que se distanciavam do estilo brasileiro tecnicista de escrita do
Parnasianismo (BEZERRA, 2007, p. 139).
17
meio à elite francesa3, “um mal-estar, uma agitação que se volta contra a ideologia
positivista” (MORETTO, 1989, p. 14), fazendo com que o sentimento em comum fosse
o “de um mundo em decomposição” (MORETTO, 1989, p. 14), no mesmo momento em
que se buscava por uma renovação do objeto literário caracterizado, principalmente, pelo
Naturalismo de Zola. Essas questões contribuíram para o desenvolvimento de um
movimento decadentista historicamente localizado entre o Naturalismo e o Simbolismo.
Não obstante, ainda que grande parte dos críticos e estudiosos literários conceba
o Decadentismo como um movimento pré-simbolista, há uma parcela da crítica que
entende as duas estéticas como um só grupo, frequentemente relegando ao Decadentismo
o papel de simples ramificação do Simbolismo, sendo, inclusive, muito inferior a este.
Dessa questão nos fala Fernando Monteiro de Barros (2009), em “Ressonâncias
baudelairianas na poesia decadentista: Emiliano Perneta”, ao apontar a reivindicação,
pelos dois movimentos, da influência da poesia de Charles Baudelaire e a flutuação de
vários autores entre esses estilos como os dois fundamentais motivos para,
frequentemente, analisarem as duas tendências como uma só (BARROS, 2009, p. 291).
Ainda assim, Barros (2009) acredita na imprescindibilidade de pensarmos o
Decadentismo e o Simbolismo como movimentos distintos, sobretudo porque, em
contraposição à sacralidade e à produção de uma poesia metafísica simbolista, estavam o
niilismo, o hedonismo e o negativismo decadentistas. Por isso, “o Decadentismo, no seu
desejo de afrontar e transgredir, cultivou tédios, nevroses, perversões sexuais e satanismo,
a resposta decadentista à sede de sacralidade dos simbolistas” (BARROS, 2009, p. 293).
Antes de serem discutidas as características do Decadentismo, é necessário,
primeiramente, expor, ainda que de forma breve, as raízes do movimento. Por isso, é
fundamental atentar-nos ao fato de que a sensação de um mundo em ruínas enfrentada
pelos escritores da elite francesa a partir, sobretudo, de 1880, fundamenta-se,
primordialmente, em uma base histórico-filosófica. Essa questão se deve ao fato de, nas
últimas décadas do século XIX, o corpo intelectual francês estar inserido em um contexto
de eclosão dos ideais de modernidade definidos por Baudelaire, cujos estudos sobre o
assunto e lançamento de As Flores do Mal, em 1857, agitaram a elite francesa, o que
levou o jornalista Anatole Baju4, em 1887, a dizer que o fundador da tradição moderna
3 Moretto nos elucida que, diferentemente do que ocorreu entre a elite francesa, o povo em geral e algumas
classes mais ricas ainda viviam, naquela época, sob um “falso otimismo da Belle Époque que se esfacelará
em 1914” (MORETTO, 1989, p. 11). 4 As citações dos textos de Anatole Baju, Paul Bourget, Paul Verlaine, Mallarmé e Rimbaud foram retiradas
de Moretto (1989), haja vista a dificuldade de obtenção desses textos traduzidos para o português.
18
poderia receber o título de verdadeiro pioneiro do movimento decadentista, já que
“encontramos nas Fleurs du mal o germe de todas as belezas que admiramos e sobretudo
a ideia que presidiu a concepção da escola decadente” (BAJU apud MORETTO, 1989, p.
89).
A Baju também se liga Paul Bourget, que, em texto intitulado “Teoria da
decadência”, de publicação original datada de 1883, discute a importância de Baudelaire
para o movimento, assim como aponta alguns de seus traços estilísticos que são
encontrados na poesia decadentista, afirmando que o poeta
proclamou-se decadente e procurou, sabemos com qual parti pris de
jactância, tudo o que, na vida e na arte, parece mórbido e artificial às
naturezas mais simples. Suas sensações são aquelas trazidas pelos
perfumes, porque excitam mais do que as outras este não sei quê de
sensualmente obscuro e triste que trazemos em nós. Sua estação
preferida é o final do outono, quando um encanto de melancolia
enfeitiça o céu que se turva e o coração que se crispa. Suas horas de
delícias são as horas da tardinha, quando o céu se colore, como nos
fundos dos quadros lombardos, com as nuanças de um rosa morto e de
um verde agonizante (BOURGET apud MORETTO, 1989, p. 57).
Dessa forma, não é um equívoco apontar que Baudelaire pode ser considerado
uma espécie de mentor do movimento, tendo em vista a opinião de críticos, jornalistas e
escritores que estavam ligados ao Decadentismo ou que contribuíram para a fortuna
crítica da época. Assim sendo, serão recuperados na poesia e na prosa poética
decadentistas aspectos presentes na concepção dos poemas de As Flores do Mal, como a
“ideia de modernidade através do interesse pela cidade” (MORETTO, 1989, p. 32),
característica que será melhor analisada mais adiante.
O desmantelamento da concepção de arte como expressão do sublime, importante
questão na poesia baudelairiana, foi tomada pelos decadentistas como inspiração para a
ruptura da literatura decadente com os basilares valores da burguesia, como o Bem e a
Virtude (BARROS, 2009, p. 293), transformando a poesia decadentista em uma “seiva
venenosa” (BARROS, 2009, p. 293). Além disso, também veio de Baudelaire o estímulo
à cisão entre arte e representação da verdade, o que evidencia o desejo desses escritores
finisseculares de devolverem ao objeto poético a sua condição de simulacro,
distanciando-se, portanto, da concepção utilitarista de reprodução da realidade com que
era vista a literatura pelos naturalistas.
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Ainda sob o ponto de vista das “linhas de força”5 que ajudaram a edificar o
movimento decadentista, Moretto (1989) chama atenção para a influência inegável de
Schopenhauer à luz da concepção de que os homens são guiados por uma força
inconsciente denominada Vontade – que é uma aspiração que jamais será atingida, sendo
encarada, por isso, como um mal. Segundo Moretto (1989), a obra O Mundo como
vontade e Representação, de Schopenhauer, “é o substrato de um pessimismo total e
absoluto, baseado no mal que é a vontade de viver”, o que potencializou a formação de
uma estética pessimista decadentista finissecular. Assim, para combater o mal que é a
Vontade, a solução estaria no não-desejo e “na contemplação desinteressada da arte,
prazer puro, liberto das paixões, o único capaz de trazer felicidade” (MORETTO, 1989,
p. 19).
Ainda assim, ao pensarmos no ponto de partida para a propagação do
Decadentismo frente à ideologia positivista e racionalista da época, o que mais nos
interessa evidenciar é a influência de Baudelaire no que tange à associação que o poeta
faz entre modernidade e transformação. Nesse sentido, viver a modernidade seria, antes
de tudo, compreender que é necessário estar em constante enfrentamento com o passado
ao mesmo tempo em que se fomenta o germe da transformação contínua; grosso modo,
contestar o que se tem feito e trabalhar em uma renovação (VERNIER, 2007, p. 62).
Uma vez cultivada a semente da modernidade baudelairiana nos poetas que
formariam o movimento decadentista, foi inevitável o descontentamento com o
Positivismo e sua ideologia progressista, que valorizava exponencialmente o sistema
capitalista e a industrialização que passariam a guiar o pensamento francês por quase todo
século XIX. Essa insatisfação instigou um cenário de extrema revolta contra o
consumismo burguês desenfreado, responsável por produzir desequilíbrios sociais e
econômicos evidentes aos olhos da sociedade francesa, em especial, no panorama físico
parisiense.
É nesse contexto de expansão da importância da burguesia que Baudelaire projeta
a imagem do dandy – figura aristocrática que surge, na modernidade, como enfrentamento
crítico-estético à ideologia materialista burguesa, que tende a transformar a arte em
mercadoria. O dandy, portanto, é revestido de rebeldia e resistência a esse período do
5 Moretto usa essa expressão para discutir as grandes bases filosóficas nas quais se apoiou o movimento
decadentista para que pudesse buscar uma renovação estética. Além de Schopenhauer, a professora também
cita Richard Wagner e Edouard von Hartmann. Em Wagner ressalta o lirismo voltado ao sonho e ao
misticismo e, em Hartmann, as noções de Inconsciente e de autodestruição (MORETTO, 1989, p. 18-21).
20
século XIX encarado como um momento de ruína, de decomposição. A incorporação do
dandismo à escrita decadentista corroborou um discurso voltado ao preciosismo estético
e ao ornamentalismo, estratégias que iam de encontro ao processo naturalista de
representação objetiva e prática da realidade e aproximavam, de certa forma, os
decadentistas dos parnasianos, na medida em que tinham em comum a tendência ao
beletrismo e a uma opulenta construção verbal.
Segundo Luiz Edmundo Bouças Coutinho (2009), em “Parcerias do
Decadentismo na Belle Époque carioca”, a construção desse discurso centrado no exótico
e no esteticismo viabilizou que o termo “bizantino” pudesse ser associado às práticas
textuais decadentistas, numa clara relação entre a exuberância da arte bizantina e a
estilização hiperbólica do Decadentismo. Nesse sentido,
Submetendo a natureza ao estilo, tais flutuações disseminaram em suas
práticas o emprego do termo bizantino, que passaria a ter uma dupla
referência: “a arte altamente estilizada do oriente cristão e o esteticismo
do fim do século dos decadentes”. Por sua inclinação aguda de estilo,
Oscar Wilde destaca-se como um dos expoentes do neomaneirismo
decadentista, como o grande propagador da afetação bizantina que
estimulou a escrita a subverter a visão tradicional da arte como imitação
do real, a rescindir o contrato com o bom senso e o senso comum
positivistas (COUTINHO, 2009, p. 313).
Assim, influenciados pelos evidentes paradoxos provocados pelo progresso
científico e tecnológico, bem como aflitos pelas distorções originadas de um Positivismo
incapaz de cumprir efetivamente suas ideias de progresso, sobretudo humano, escritores
franceses, como Verlaine, Mallarmé e Rimbaud, principalmente a partir do fim da década
de 1860 e início de 1870, envolveram-se em perspectivas pessimistas e negativistas. A
literatura decadentista era, portanto, sintoma inevitável da crise do sujeito frente a um
mundo desproporcional, alijado da certeza e da segurança tão proclamadas pela corrente
filosófica positivista. Esse cenário possibilitou a esse movimento fin-de-siècle apresentar-
se “muito mais ‘meditado, mais profundo, mais passivo também e mais desesperado’ do
que o mal du siècle romântico, de Chateaubriand e do primeiro Lamartine” (MORETTO,
1989, p. 19).
A sensação, portanto, era de que “o homem de bem, exasperado pelo triunfo do
Mal e vencido pela onipotência de um destino hostil” (BAJU apud MORETTO, 1989, p.
93) estava cansado, desmotivado e marcado, principalmente, pelo tédio. Esses poetas,
para se salvarem de um mundo que se encontrava em ruínas, buscaram na solidão, no
sonho, na lenda, na arte e no preciosismo da linguagem um porto seguro. Daí uma
21
literatura voltada para si mesma e escrita pela e para elite francesa, atestando que “os
próprios decadentes tinham tomado o cuidado de se premunirem contra todo o excesso
de popularidade” (BAJU apud MORETTO, 1989, p. 108).
Em carta datada de janeiro de 1888 endereçada à revista Le Décadent, de Anatole
Baju, Paul Verlaine define o que seria, para ele, essa literatura decadentista:
(...) é propriamente uma literatura que resplandece em tempo de
decadência, não para seguir os passos de sua época, mas exatamente “às
avessas” para insurgir-se contra, para reagir pela delicadeza, pela
elevação, pelos refinamentos, se quisermos, de suas tendências, contra
a insipidez e as torpezas, literárias e outras ambientais, - isso sem
nenhum exclusivismo e com toda a confraternidade confessável
(VERLAINE apud MORETTO, 1989, p. 115).
Um dos grandes potencializadores desse sentimento de decadência era, segundo
os decadentistas, o Naturalismo. Considerada até mesmo a mais obscena e lasciva de
todas as literaturas6, a escola literária inspirada nas ideias de Zola representaria, ainda
para os poetas finisseculares, uma imagem perfeita da sociedade em que estavam
inseridos, já que eram “tempos de carniça, quando, sem freios, sem governo, os homens
de todas as classes, torturados pelo ventre, abandonam-se a seus instintos brutais” (BAJU
apud MORETTO, 1989, p. 92). Baju acreditava que o sucesso das obras naturalistas se
devia a uma incapacidade que se arrastava por inúmeras camadas sociais francesas “de
ver ou de sentir de outra forma que não a de seus sentidos” (BAJU apud MORETTO,
1989, p. 91).
No entanto, ainda que enojado pela contemplação de uma sociedade que cedia
cada vez mais espaço para a literatura inspirada nos ideais de Zola, Baju mostrava-se
confiante com os novos rumos que seus companheiros queriam dar ao cenário literário
francês: “Era à Escola decadente que estava reservada a honra de esmagar o Naturalismo
e de criar um gosto melhor que não mais estivesse em contradição direta com o progresso
moderno” (BAJU apud MORETTO, 1989, p. 92).
Vale ressaltar que, ao lado desse espírito de decadência, no sentido usual da
palavra, havia, também, entre esses poetas, a necessidade de uma renovação do objeto
literário, o que, segundo Moretto (1989), constituía uma grande contradição: “se, de um
lado, a geração de 1880 sente um frio vento de morte e de decadência, há por toda parte
a necessidade de uma luta por algo diferente, por uma renovação” (MORETTO, 1989, p.
6 Anatole Baju chama de imoral o Naturalismo em texto intitulado “A escola decadente” (MORETTO,
1989, p. 91).
22
15). A busca pela atualização do fazer poético fez surgir entre os decadentistas uma
“revolta contra as escolas parnasiana e naturalista, contra o academismo poético e a
‘brutalidade’ que, em nome do cientificismo, se apossara da literatura narrativa”
(MORETTO, 1989, p. 15). Esses poetas finisseculares ansiavam por diferentes formas de
expressão e de percepção da sensibilidade poética baseadas, sobretudo, na retomada do
destaque ao “eu” e do verso livre. Sobre esse aspecto, para Moretto (1989),
o trabalho da Plêiade, ou seja, a enunciação do eu, o lirismo pessoal,
com a criação de uma nova linguagem e de novas formas poéticas,
foram esquecidos por mais de dois séculos: triunfou a razão, a “arte”,
isto é, a técnica do verso. A liberdade poética ressuscitou com todo o
seu brilho somente no final do século XIX, justamente com os
decadentistas e os simbolistas, conservada que fora pelas correntes
misteriosas do sonho e das “fontes ocultas do romantismo”
(MORETTO, 1989, p. 16).
Essa procura pela retomada da expressão que se volta ao sujeito poético e pelo
verso livre fez com que Moretto (1989) concluísse que o Decadentismo poderia ser
considerado uma espécie de novo Romantismo, na medida em que o movimento
finissecular tenta consolidar traços estéticos que a poesia romântica francesa não
conseguira. Acreditando que o “Romantismo não morreu mas, como bom camaleão,
mudou de roupagem” (MORETTO, 1989, p. 15), a professora completa:
O verso livre é uma das facetas, e não a menor, da liberdade poética que
o Romantismo de 1820 não pudera ou não ousara realizar. Pois a
verdade é que faltou ao Romantismo francês uma linguagem poética. O
Decadentismo e, depois dele, o Simbolismo, irão criá-la. (...) Além
disso, o vocabulário que o Decadentismo usa ou inventa é formado de
palavras arcaicas ou de neologismos, de palavras técnicas, de palavras
compostas e derivadas; há o uso plural de palavras que só possuem
singular, há deslocamentos de palavras dentro da frase, repetições,
supressões de verbos, o que significa a retomada, acentuada é claro, do
trabalho dos poetas da Plêiade, do grupo de Ronsard, no final do século
XVI (MORETTO, 1989, p. 31).
O Decadentismo foi, portanto, um movimento anticientificista e antimaterialista
que apresentou como elemento incisivo, sobretudo, o retorno à sensibilidade de um “eu”
esquecido pela arte parnasiana. Juntamente com o retorno da subjetividade, vinham o
resgate de aspectos e posturas líricas como a intuição, a imaginação e o sonho – que
representavam a fuga diante de uma sociedade em decomposição – e uma leitura
pessimista e melancólica da vida e da atitude humana, devido, principalmente, à
constatação da desproporção do sujeito perante o mundo.
23
A percepção da falibilidade do eu diante do mundo resulta artisticamente num
entendimento diferente da realidade, acarretando a pintura de um retrato quase estéril do
cotidiano e a ingenuidade da percepção de contextos banais. Portanto,
é decadentista o fascínio pelas arquetípicas lendas antigas e medievais.
(...) É decadentista, ainda, o gosto pela natureza petrificada e fria dos
bizantinos e dourados reflexos do outono; pela refinada maquiagem das
coisas, de proveniência baudelairiana; pela estranha flora da casa de
Des Esseintes; é decadentista o tema do reflexo na água, transparente
ou espelhada (obras de Samain e de Régnier); o gosto pelas pedrarias
(Huysmans, G. Moreau), pelos metais (Tetralogia de Wagner), pelos
vegetais terrestres ou submarinos, que acabarão por tornar-se parte
integrante da decoração art nouveau. (...) Finalmente, o Decadentismo
é um clima, é o extremo e exacerbado individualismo, mais acentuado
que o romântico, é um cansaço de quem vive os últimos tempos mas
que, ampliando-se, ultrapassa seus limites históricos, derramando-se
pelo século XX através das obras de arte de Yeats, D’Annunzio,
Pascoli, Malher, Thomas Mann, Joyce, Proust, Italo Svevo
(MORETTO, 1989, p. 32-33).
Essas características ficam ainda mais evidentes quando lidas as produções tanto
dos que estavam escrevendo no período entre 1870-1890 quanto dos que, alguns anos
antes, já demonstravam sinais da nova poética que estava por vir, como era o caso de
Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud, que, segundo Moretto (1989), “iluminam
antecipadamente um fazer e se tornam, portanto, avant-coureurs do movimento
decadentista” (MORETTO, 1989, p. 14).
Tendo em vista essa questão, cabe analisar alguns aspectos do poema em prosa
“Lamento de outono”, de Mallarmé, publicado originalmente em 1864, e “Cidade”, de
Rimbaud, escrito em 1872. Ambos os textos representam ideias que a estética
decadentista desenvolveria posteriormente, o que nos será útil para que, mais adiante,
possamos perceber como muitas dessas particularidades serão também utilizadas pelos
poetas penumbristas brasileiros.
1.1.1 O outono e a cidade de Mallarmé e Rimbaud
Como traço importante da poesia finissecular decadentista francesa, o foco nas
explosões internas do sujeito poético fará de “Lamento de outono” (“Plainte d’automne”7)
um belo exemplar de um poema em prosa voltado ao “eu” e aos seus conflitos existenciais
7 Ver anexo F.
24
– aspectos que ressaltam a influência de Mallarmé como um dos precursores do
movimento:
Desde que Maria me deixou para ir para uma outra estrela – qual, Orion,
Altair, e tu, verde Vênus? – sempre amei a solidão. Quantos longos dias
passei sozinho com meu gato! Por sozinho, entendo sem um ser
material e meu gato é um companheiro místico, um espírito. Posso
portanto dizer que passei longos dias a sós com meu gato e, sozinho,
com um dos últimos autores da decadência latina; pois, desde que a
branca criatura não mais existe, estranhamente e singularmente amei
tudo o que se resumia nesta palavra: queda. Assim, durante o ano,
minha estação favorita são os últimos dias enlanguescidos do verão, que
precedem imediatamente o outono e, durante o dia, a hora em que
passeio é aquela em que o sol descansa antes de desvanescer-se, com
raios de cobre amarelo sobre as paredes cinzentas e de cobre vermelho
sobre as lajes. Da mesma maneira, a literatura à qual meu espírito pede
voluptuosidade será a poesia agonizante dos últimos momentos de
Roma, contudo, enquanto absolutamente não respirar a aproximação
rejuvenescedora dos Bárbaros e não balbuciar o latim fácil das
primeiras prosas cristãs.
Lia, pois, um desses caros poemas (cuja maquiagem possui para mim
maior encanto do que o colorido da juventude) e mergulhava a mão no
pelo do puro animal, quando um realejo cantou languidamente e
melancolicamente sob minha janela. Tocava na grande alameda dos
choupos, cujas folhas me parecem sombrias mesmo na primavera,
desde que Maria por lá passou, com círios, pela última vez. O
instrumento dos tristes, sim, realmente: o piano cintila, o violino
ilumina as fibras dilaceradas, mas o realejo, no crepúsculo da
lembrança, fez-me sonhar desesperadamente. Agora, quando
murmurava uma canção alegremente vulgar e que derramou alegria no
coração dos arrabaldes, uma melodia antiquada, banal: por que razão
seu refrão atingia-me na alma e me fazia chorar como uma balada
romântica? Saboreei-a lentamente e não atirei nem um vintém pela
janela por medo de desacomodar-me e de perceber que o instrumento
não cantava sozinho (MALLARMÉ apud MORETTO, 1989, p. 39-
40)8.
No poema em prosa, o eu lírico, após a morte da amada (Maria), apresenta uma
voz de resignação quanto à vida, celebrando a solidão e tudo o que melancolicamente se
associa ao declínio: “pois, desde que a branca criatura não mais existe, estranhamente e
singularmente amei tudo o que se resume nesta palavra: queda” (MALLARMÉ apud
MORETTO, 1989, p. 39).
A associação entre o declinar da vida e o esvaecer do dia (crepúsculo e pôr do
sol), assim como a afinidade do poeta com a passagem das estações, mais precisamente
com o “pranto de outono”, simbolicamente representado pelo declínio das folhas e de
todo vigor da natureza advindo do verão, dão mostras da efemeridade humana. De igual
8 Tradução de Moretto (1989).
25
modo, a ruína de Impérios parece representar o desequilíbrio da vida, o que desmente a
crença positivista no caminho ascensional da humanidade: “poesia agonizante dos
últimos momentos de Roma” (MALLARMÉ apud MORETTO, 1989, p. 39).
Une-se a essa atitude mallarmiana de aceitação da decadência da vida uma
contemplação melancólica da paisagem à sua volta. Não é à toa, portanto, que, mesmo na
primavera, pareçam-lhe sombrias as folhas da “grande alameda dos choupos”
(MALLARMÉ, 1989, p. 40), por onde passava Maria, e o som de instrumentos musicais
passem a soar melancólica e languidamente. Assim, como antecipação de uma poética
que ressaltará as dores, os prazeres e os lamentos mais profundos do “eu”, caracterizando
uma retomada do lirismo subjetivo pelos poetas decadentistas, o texto de Mallarmé nos
leva à observação de um sujeito poético que se deixa tocar agudamente pelo som que
ouve e pelos efeitos sinestésicos que este pode provocar nos sentidos, culminando em
evasão e sonho.
Ainda que partindo de um viés distinto ao de Mallarmé, Rimbaud também lançará
mão, para compor “Cidades” (“Villes”9), poema em prosa que integra a obra
Illuminations, de um traço que será muito caro aos decadentistas: desta vez, o interesse
por um olhar que se volta à observação da cidade moderna. Moretto (1989) nos aponta,
como já foi comentado anteriormente, que a inspiração em Baudelaire, mais precisamente
em As Flores do Mal, foi o motivo do gosto dos poetas decadentistas pela concepção
moderna das cidades. Em Vernier (2007), vemos que a ligação existente entre a
modernidade e a cidade se deve, sobretudo, ao fato de que é nela que se materializam as
transformações que acompanham os novos tempos:
É na cidade então que se concretizam todos os aspectos mais marcantes
da revolução industrial, é nela e nela só que de maneira maciça e
espetacular a modernidade surgiu. Imigração súbita, desordenada e
imprevista que faz engordar monstruosamente Paris, transbordar os
seus muros formando periferias improvisadas, misturando bruscamente
nos mesmos bairros miséria e luxo (a estratificação se faz por andares
conforme se constroem as casas), ruas férvidas nas quais se acotovelam
multidões de seres anônimos e contrastantes, prefiguração sensível
desse temível mundo no qual os homens nada seriam senão números
(VERNIER, 2007. P. 64).
Nesse sentido, duas leituras podem ser feitas da cidade dos tempos modernos: uma
que corresponde aos centros urbanos como materialização positiva dos feitos da
modernidade, a citar como exemplo a iluminação a gás, e outra que enxerga a cidade
9 Ver anexo G.
26
como local que, de forma negativa, altera profundamente o homem no tocante à sua
sensibilidade e ao seu estilo de vida. Sobre isso, Vernier (2007) conclui que esse espaço
“se torna nessa altura o monstro que transforma brutalmente o modo de vida e a
sensibilidade, e o citadino acaba por não se sentir mais do que uma secreção da cidade: é
ela que dá uma nova fisionomia ao amor, ao sonho ou à solidão” (VERNIER, 2007, p.
65).
Assim como em As Flores do Mal, Rimbaud, em “Cidades”, também nos
presenteia com essa dicotomia citadina, na medida em que o poeta reconhece a
necessidade de um olhar voltado ao futuro, ao novo, mas sente as consequências de um
progresso que atropela o homem, a história e a arte. Daí o sujeito poético cantar as
modificações modernas, mas também reconhecer seus prejuízos e impactos:
A acrópole oficial ultrapassa as concepções das mais colossais barbáries
modernas. Impossível exprimir a luz baça produzida pelo céu
imutavelmente cinza, o brilho imperial das construções e a neve eterna
do solo. Reproduziram-se, num gosto de enormidade singular, todas as
maravilhas clássicas da arquitetura. Assisto a exposições de pintura em
ambientes vinte vezes mais vastos do que Hampton-Court. Que pintura!
Um Nabucodonosor norueguês mandou construir as escadas dos
ministérios; os subalternos que pude ver são já mais altivos do que
brâmanes, e tremi diante do aspecto dos guardas de estátuas e oficiais
de construções. Pelo agrupamento das edificações, em squares, pátios
e terraços fechados, foram excluídos os cocheiros. Os parques
representam a natureza primitiva trabalhada por uma arte esplêndida. O
bairro alto possui partes inexplicáveis: um braço de mar, sem navios,
rola sua superfície de granizo azul entre cais carregados de candelabros
gigantescos. Uma ponte curta conduz a uma poterna situada
imediatamente sob a cúpula da Sainte Chapelle. Essa cúpula é uma
armadura de aço artística de quinze mil pés de diâmetro, mais ou menos.
Em alguns pontos, passarelas de cobra, plataformas, escadas que
contornam os hangares e os pilares, pensei poder julgar a profundidade
da cidade! É o prodígio do qual não pude me dar conta: quais são os
níveis dos outros bairros sobre ou sob a acrópole? Para o estranho à
nossa época o reconhecimento é impossível. O bairro comercial é um
circus de um único estilo, com galerias em forma de arcadas. Não se
veem lojas, mas a neve da rua está esmagada; alguns nababos, tão raros
quanto os caminhantes de uma manhã de domingo em Londres,
dirigem-se para uma diligência de diamantes. Alguns divãs de veludo
vermelho: servem-se bebidas polares cujo preço varia de oitocentos a
oito mil rúpias. À ideia de procurar teatros neste circus, respondo a mim
mesmo que as lojas devem conter dramas bastante sombrios? Penso que
há uma polícia; mas a lei deve ser tão estranha, que renuncio a imaginar
os aventureiros deste local.
O bairro, tão elegante quanto uma bela rua de Paris, é favorecido por
uma atmosfera de luz; o elemento democrático conta umas cem almas.
Aqui também as casas não se tocam; o bairro se perde, estranhamente,
no campo, o “Condado” que preenche o ocidente eterno das florestas e
das plantações prodigiosas onde os cavalheiros selvagens caçam suas
27
crônicas sob a luz criada (RIMBAUD apud MORETTO, 1989, p. 52-
53)10.
Numa explosão imagética, o poema em prosa faz uso de uma linguagem do
exagero para demonstrar a grandiosidade que é vista pelo eu lírico. Nesse sentido,
“enormidade singular”, “ambientes vinte vezes mais vastos do que Hampton-Court” e
“uma armadura de aço artística de quinze mil pés de diâmetro” são exemplos de
expressões a que recorre o poeta a fim de passar a quem não está diante daquele cenário
um simulacro da grandiloquência da transformação urbana em tempos modernos.
A cidade moderna é, então, vista como um resultado da combinação entre
inovações tecnológicas que permitem essas modificações e a incessante atuação do
homem nesse espaço. Daí os parques representarem “a natureza primitiva trabalhada por
uma arte esplêndida” (RIMBAUD apud MORETTO, 1989, p. 52) e a exclusão dos
cocheiros possibilitar a construção de edificações, squares e terraços de prédios –
estruturas sólidas e com caráter de permanência, representação perfeita da potência
capitalista que incide na metade do século XIX.
Esse olhar mais crítico aos efeitos da modernidade no espaço da cidade,
viabilizado por um poema em prosa extremamente imagético que reforça a expansão
feroz do progresso, faz com que Rimbaud se aproxime, mais uma vez, da poética
inquietante de Baudelaire. Assim, tirando o poema do universo dos temas sublimes, o
autor de Illuminations também instaura uma poesia que tende a nos tirar da zona de
conforto, devido não só à sua linguagem mais hermética, mas também a uma poesia do
confronto, do trabalho com as fissuras humanas, estruturais e econômicas da
modernidade. Não é à toa, portanto, que, tal como a poética de Baudelaire, a poesia da
crise do sujeito moderno de Rimbaud também seja de extrema importância para a
produção literária decadente francesa finissecular.
Por isso, não é um equívoco apontar que a face negativa da cidade moderna é o
que mais aturde o sujeito poético de Rimbaud. Ao observar a quantidade de plataformas
e de passarelas construídas rapidamente no bairro em que se encontra, a voz que nos fala
divide com o leitor um questionamento que se liga a um desconhecimento do espaço em
que vive diante de tamanha alteração: “quais são os níveis dos outros bairros sobre ou sob
a acrópole?” (RIMBAUD apud MORETTO, 1989, p. 53). É, então, nesse momento, que
o “eu” do relato se percebe estrangeiro não só em sua cidade, como também em seu
10 Tradução de Moretto (1989).
28
tempo, o que lhe confere a incapacidade de responder à pergunta acima: “para o estranho
à nossa época o reconhecimento é impossível” (RIMBAUD apud MORETTO, 1989, p.
53).
1.2 O veio penumbrista
A análise da construção do cânone na literatura brasileira nos evidencia que, por
variados motivos, é concedido a certos autores um papel de menor destaque, rendendo-
lhes pouca visibilidade nos estudos críticos e, por conseguinte, inferior repercussão a
respeito de suas obras e de sua importância no cenário de nossas letras. Muitas vezes, essa
atitude acomete também grupos cujas tendências artísticas ficam à margem do interesse
da crítica literária, ora aparecendo raramente nos manuais de literatura, ora sendo
englobados em contextos artístico-culturais mais generalistas que acabam por minimizar
sua relevância.
Atitude parecida com esse segundo caso apresentado pode ser vista no que
concerne ao estudo das produções literárias do Brasil nas duas primeiras décadas do
século XX, na medida em que a maior parte da crítica literária limita-se a falar da
existência de um Pré-Modernismo. Esse momento da literatura nacional, segundo os
autores desses materiais, equivaleria a uma grande parte das obras produzidas no país
entre 1900 e 1922, sendo este ano também o que assinala o início do Modernismo.
Deve-se ressaltar, entretanto, que, muito além de uma nomenclatura algo genérica,
as duas primeiras décadas do século XX para a literatura brasileira, mais precisamente o
espaço de transição entre o Simbolismo e o Modernismo, foram extremamente ricas,
heterogêneas e ainda pouco estudadas. Neste tópico da pesquisa, trataremos, brevemente,
de um recorte temporal específico dentro desse contexto: a produção literária do
Penumbrismo, datada, primordialmente, dos primeiros anos da década de 1920.
A tendência penumbrista desenvolveu-se a partir de uma poética de inquietação
existencial, necessidade de adequação da poesia à cena contemporânea, inovação formal
e uma sensação de tédio diante do esfacelamento do contexto socioeconômico brasileiro.
Norma Goldstein, em Do penumbrismo ao modernismo (1983), chamará o movimento de
um “veio crepuscular, produção poética em tom menor” (GOLDSTEIN, 1983, p. 5), que,
29
inspirado nos modelos franceses decadentistas11, adequar-se-á também nessa atmosfera
de angústia existencial, caracterizando-se, sobretudo, por
uma melancolia agridoce, pelos temas ligados ao quotidiano, por uma
morbidez velada – atitude doentia de perplexidade em face do progresso
e da técnica, traduzida, no plano afetivo, por uma atenuação dos
sentimentos. Paralelamente, os poetas crepusculares praticam a
desarticulação do verso por via do ritmo dentro da métrica tradicional,
chegando a modificá-la. Poderíamos falar, portanto, num processo de
meio-tom formal correlacionado a um processo de meio-tom
psicológico. (...) Seu canto aproximar-se-ia do tom da linguagem
falada, a meia-voz, com imagens em meios-tons, com uma temática
ligada à vida quotidiana, aos ambientes provincianos, às recordações da
infância (GOLDSTEIN, 1983, p. 5-6).
Segundo Goldstein (1983), para que sejam conhecidas as raízes do Penumbrismo,
deve-se voltar o olhar à produção poética francesa do final do século XIX e início do XX,
em que havia “um estado de espírito, uma atmosfera de inquietação metafísica e de busca”
(GOLDSTEIN, 1983, p. 5), a que se ligaram várias produções poéticas, como o próprio
Decadentismo. Daí a opção da autora pela expressão “veio crepuscular” para se referir ao
Penumbrismo, uma vez que o considera um produto do movimento decadentista francês,
atribuindo-lhe a condição de uma das ramificações possíveis dessa atmosfera criada não
só na França, mas também em muitos outros centros europeus, de um desejo de ruptura
vinculado a um, igualmente profundo, anseio por renovação.
Nesse sentido, é necessário evidenciar que essa renovação do objeto estético dar-
se-ia, sobretudo, por um movimento antiparnasiano de liberação formal. Assim, os poetas
vinculados ao Penumbrismo ensaiaram uma emancipação do verso, livrando-o, muitas
vezes, da tradição clássica por meio, principalmente, da quebra rítmica. Todavia, é
importante dizer que a escolha por versos livres não pressupôs o abandono total da
métrica regular, visto que a tradição e o esboço de liberdade formal caminharam lado a
lado nas produções poéticas desse período.
Além desse desejo de ruptura com a estética parnasiana, a busca por uma evasão
do contexto em que viviam também aproximou os penumbristas dos decadentistas
franceses. Como vimos anteriormente, os autores do Decadentismo procuraram no sonho,
na lembrança e na arte um porto seguro em que podiam se esconder do avanço das
ideologias burguesas e positivistas. De maneira análoga, é possível ver esse tipo de
11 Segundo Goldstein (1983), pode-se afirmar que, da tríade decandetista Verlaine-Rimbaud-Mallarmé, os
traços que mais incentivaram a produção poética brasileira no Penumbrismo foram a musicalidade e a
inovação formal de Verlaine, principalmente porque os poetas penumbristas ficaram conhecidos por
flertarem com a quebra da rima tradicional.
30
comportamento se alastrar pelas produções poéticas do Penumbrismo, a citar como
exemplo as obras O Jardim das Confidências (1921), de Ribeiro Couto, e Epigramas
irônicos e sentimentais (1922), de Ronald de Carvalho, que evidenciam um gosto por
uma poesia intimista de valorização estética, de isolamento e de recordação da infância e
de pequenos acontecimentos. Essa reação, tal como na França, volta-se contra a noção de
utilitarismo do contexto industrial e capitalista, em que é atribuído mais valor aos bens
materiais do que aos homens, daí a presença, de igual forma, de um tom bastante
melancólico.
Norma Goldstein (1983) somará à sua análise a respeito da estética penumbrista
um fator definido pela crítica literária como chave de leitura frequentemente ligada aos
textos relacionados a esse movimento, espelhando-se nessas obras de variadas formas. A
atenuação, dessa maneira, segundo a pesquisadora, guiará os versos penumbristas seja
do ponto de vista psicológico, descritivo, sintático ou temático, a saber:
A atenuação psicológica se revela em sentimentos e atitudes:
esvaimento, languidez, indecisão, relacionamento amoroso ambíguo
(misto de paixão e amor fraternal), ou frustrado (aceitação da não-
realização amorosa), passividade. Nos poemas descritivos, surge a
atenuação na captação sensorial: meia-luz (crepúsculo, penumbra),
meio-tom (murmúrio, nasalização), movimentos lentos, suavizados.
(...) Do ponto de vista sintático, combinam-se elementos que se
atenuam mutuamente: o substantivo com seu caracterizador; o verbo
com seu objeto ou com seu predicativo. (...) Na temática – ou, se
preferir, no “assunto” –, também ocorre a atenuação. Dos temas
“nobres”, a poesia crepuscular passa para os “banais”: o quarto do
poeta; a vista encaixilhada pela janela, a praça, a árvore desfolhada, os
interiores penumbrosos, a “lâmpada velada” (Hermes Fontes), o jardim
dissolvido pela chuva, a névoa, a cena quotidiana (GOLDSTEIN, 1983,
p. 10-11).
Denominando “tendência poética” e não “escola” ou “grupo”, Goldstein (1983)
associa-se a alguns outros críticos também engajados em conceituar com certa precisão o
que foi o Penumbrismo, ainda que a poesia desse grupo, infelizmente, não tenha sido tão
analisada como necessário, permanecendo – se possível o trocadilho – na penumbra da
tradição literária brasileira. Dessa forma, mantendo a tentativa de esclarecimento desse
momento da literatura brasileira, Rodrigo Octavio Filho, em “Sincretismo e transição: o
Penumbrismo”, presente em Simbolismo e Penumbrismo (1970), trabalhará com a ideia
de período intermediário entre duas escolas (OCTAVIO FILHO, 1970, p. 69), pensando,
assim como Goldstein, na tendência penumbrista como uma etapa intermediária entre o
Simbolismo e o Modernismo.
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Para o crítico, períodos de transição são importantes momentos para a construção
de novos caminhos para a literatura, pois “sugerem a negação e a destruição de tudo o
que tenha sido considerado norma literária definitiva” (OCTAVIO FILHO, 1970, p. 67).
Por ser “ânsia e coragem de acabar com os tabus” (OCTAVIO FILHO, 1970, p. 67), o
Penumbrismo torna-se, aos olhos de Octavio Filho, uma fase significativa, ainda que
curta, da nossa literatura.
Assim, caracterizando o Penumbrismo como “uma espécie de fumaça ou poeira
do Simbolismo, e que exerceu em nosso campo poético, em dado momento, a mesma
função que, sob certos aspectos, o de algumas obras de Debussy” (OCTAVIO FILHO,
1970, p. 70-71), o mesmo estudioso também não crê na ocorrência de uma escola
penumbrista, mas sim de uma
atitude, um movimento emocional, uma coincidência temática, tendente
a um acentuado intimismo poético, já nitidamente manifestado em certa
fase da obra de Mário Pederneiras e que pode ser definido numa
tentativa de enquadramento em nossa história literária como nítido
exemplo de literatura de transição ou intermediária. Foi uma espécie de
flecha de voo lento que, vindo de um decadentismo um tanto mórbido,
influenciada por certo nefelibatismo passageiro, e por hermetismo que
esteve em moda, atravessasse brilhantemente a zona simbolista para, ao
fim do voo, criar e alimentar o Modernismo (OCTAVIO FILHO,
1970, p. 72, grifo do autor).
Para chegar às conclusões publicadas nesse estudo que integra a obra Simbolismo
e Penumbrismo (1970), Rodrigo Octavio Filho, que era bastante próximo a Ribeiro
Couto, enviou uma carta ao escritor das Confidências datada de 22 de janeiro de 1957.
Na correspondência, Octavio Filho pede mais informações a Couto a respeito do
Penumbrismo, uma vez que considera o poeta o precursor dessa tendência. Pouco tempo
depois, em missiva de 10 de março de 1957, Couto responde-lhe de maneira inusitada:
para ele, não se podia falar na existência de uma escola penumbrista, a despeito de ser
conceituado por Ronald de Carvalho como o pioneiro do movimento, mas sim de uma
forma de “contágio” passageiro que acometeu um grupo de poetas entre 1920 e 1923.
Diferentemente de muitos escritores que, ao atingirem uma maturidade literária,
procuram negar a existência dos primeiros materiais produzidos, Couto, nessa carta, não
refuta seu livro inicial de poesias, porém é enfático ao dizer que, se havia algo de novo
que estava produzindo, era a inserção do cotidiano à poesia e não um inédito estilo
poético. Por isso, o que muitos identificaram como traços que talvez estivessem
inaugurando uma nova escola literária, eram, na verdade, reflexos das condições do
32
ambiente em que se encontrava o escritor quando esteve em São Paulo, entre 1915 e 1918.
Inclusive, o fato justifica a dedicatória do autor na abertura do livro às manhãs nevoentas
paulistas, o que esclarece muito da chuva e da melancolia presentes em O Jardim das
Confidências.
Assim, afirmando que foi um “certo jeito, um tom, um clima de expressão poética”
(COUTO, 1957) o que passou a ser entendido como Penumbrismo, Ribeiro Couto reduz
a questão da penumbra a um plano inferior de importância quando da análise do legado
deixado pelos seus primeiros poemas à literatura brasileira do início do século XX. Para
o poeta, então, a sua atitude de contemplação do cotidiano e de escrita desse material da
vida de forma natural e autêntica em suas poesias foi muito mais significativa à sua obra
inicial do que as sugestões de névoa, melancolia e meio-tom que fizeram fama no início
da década 1920 e impulsionaram algumas publicações nesse mesmo estilo durante,
primordialmente, os três anos seguintes.
De certo modo, fica difícil dizer se Couto estava equivocado. Ao pensarmos no
Penumbrismo como um período de antecipação do Modernismo, como apontaram
Goldstein (1983) e Octavio Filho (1970), o trabalho com a matéria simples do cotidiano
foi aprimorado com os modernistas ao passo que os cenários crepusculares e nevoentos
perderam espaço na literatura brasileira. Dessa forma, os traços que rapidamente
contagiaram uma pequena parcela de escritores no país, de igual forma, foram
abandonados, sacramentando o Penumbrismo como uma tendência literária passageira,
embora importante para o momento seguinte das nossas letras.
Localizado, assim, em um momento transitório, mas também encarado como uma
literatura de permanência, o Penumbrismo, à sua época, concentrou elogios e críticas aos
que buscaram se engajar em uma poética de penumbra. No que tange à obra O Jardim
das Confidências (1921), de Ribeiro Couto, que marcou efetivamente a constatação de
uma estética penumbrista12, Ronald de Carvalho, em capítulo intitulado “Ribeiro Couto”,
fragmento do livro Estudos Brasileiros (1931), atentará para o fato de Couto integrar um
restrito grupo de poetas que, verdadeiramente, “fazem poesia” (CARVALHO, 1931, p.
70) ao se conectar a uma vertente estética que apreciava uma exploração sutil do
12 Já foi apontado, nesta dissertação, o fato de a expressão “penumbra”, no que tange a uma estética poética,
ter surgido, diante dos dados reunidos pela crítica literária até o presente momento, em artigo de Ronald de
Carvalho intitulado “A Poesia da penumbra”, publicado em O Imparcial. O texto “Ribeiro Couto”, que faz
parte do livro Estudos Brasileiros, é uma síntese das ideias contidas nesse artigo de 1921.
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cotidiano, atingindo, como ponto final, o despertar de emoções e de dramas profundos de
um “eu” ignorado pela poesia de grandiloquência parnasiana.
Nesse sentido, Ronald de Carvalho (1931) aponta para uma nova poesia brasileira,
que tinha sugestão de “silêncio” e de “sombra”, considerando Ribeiro Couto um mestre
desse fazer poético. É a partir da análise de alguns poemas de Couto, presentes no já
referido livro do autor, que se pode entender quais as características desse movimento
que se sobressaltaram aos olhos de Carvalho:
Ele não vai diretamente às coisas, mas parte sempre de um estado de
alma sutil para chegar ao ambiente circunstante. (...) Ribeiro Couto
soube ver no “eterno cotidiano” uma trama de motivos realmente
dramáticos. Seu pendor é para os assuntos humildes, cuja terrível
trivialidade aumenta ainda a humanidade dos símbolos. Um dia de
chuva, uma praça abandonada, um portão solitário, uma frase
murmurada apenas, um trecho de jardim, onde turbilhonam folhas,
bastam para o impressionar. E com que delicadeza transmite o poeta as
suas impressões mais sutis, com que clareza desvenda as emoções mais
imponderáveis! (CARVALHO, 1931, p. 71-72)13.
A publicação de O Jardim das Confidências também foi comemorada por outros
escritores e intelectuais brasileiros, como Claudio Ganns, que, em texto intitulado “Poesia
nova”14, publicado na revista Fon-Fon! em 1º de outubro de 1921, menciona a alegria de
ver surgir um novo fazer poético que buscava novas tonalidades em contraposição à
poética parnasiana. Ganns parecia compreender que a época em que vivia necessitava de
modificações na literatura e, possivelmente, já sentia os ventos de mudança que invadiam
o cenário literário brasileiro e que culminariam, pouco tempo depois, na organização da
Semana de Arte Moderna de 1922.
Ressaltando, ao longo de todo o texto, a maneira singela, sem grandes floreios,
com que Ribeiro Couto constrói seus poemas, Ganns (1921) conclui o que para ele
significava uma das melhores características da poesia moderna: “versos curtos, mas
intensos, sem rodeios nem perorações discursivas que, na singeleza de algumas sugestões
rápidas, vibrantes e sutis, conseguem fixar um momento, um sonho, um estado de alma”
(GANNS, 1921, p. 19).
Os elogios a Ribeiro Couto não se limitaram ao seu primeiro livro de poesia15. Em
1925, em seu volume I, a revista Estética trouxe um texto de Rodrigo M. F. de Andrade
13 As citações dos periódicos aqui feitas foram atualizadas para a forma de escrita atual da língua
portuguesa. 14 Ver anexo A. 15 O Jardim das Confidências, 1921.
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a respeito da publicação de outra obra de Couto, Poemetos de Ternura e de Melancolia
(1924), que reunia poemas escritos entre 1920 e 1922. Nesse texto, Andrade indica Couto
como um dos grandes capítulos de nossa história, na medida em que, com esse livro, o
escritor penumbrista tornava-se um precursor da literatura moderna, uma vez que, “se não
pode dizer, rigorosamente que ele foi o iniciador do movimento abolicionista da poesia
nacional, é certo, pelo menos, que inspirou o primeiro epíteto de que foram crismados os
artistas da nova geração” (ANDRADE, 1925, p. 213).
Andrade (1925) acreditava que, mesmo mantendo o processo de apreensão sutil e
direta das sensações e das imagens do cotidiano – marca dos poemas de seu primeiro livro
–, Ribeiro Couto havia amadurecido sua escrita e agora não mais era levado pelas
emoções de maneira incontrolada, pois havia conseguido reger tudo que sentia, tornando-
se o senhor de seus sentimentos. Assim, após elencar inúmeras características que faziam
de Couto um excelente poeta, o jornalista afirmou não compreender o motivo de uma
parte da crítica conservadora ter dirigido ao poeta duros comentários, ressaltando que “o
seu lirismo melancólico é muito mais autenticamente nosso que o colorido exasperado e
as notas clangorosas de tantos versos de Castro Alves, ou mesmo dos parnasianos”
(ANDRADE, 1925, p. 214).
Ainda assim, muitos foram os intelectuais, poetas e críticos que se voltaram contra
o Penumbrismo e atacaram seus seguidores publicamente. Um dos casos que mais se
destaca é o comentado por Brito Broca, em texto datado de 19 de março de 1960, no
Correio da Manhã. Nesse artigo, intitulado “Ribeiro Couto, Paulo Geraldino e a ‘blague’
penumbrista”, Broca relembra uma das maiores perseguições públicas que os poetas
penumbristas – principalmente Ribeiro Couto, por ser considerado o mentor do grupo –
sofreram no início da década de 1920, quando Couto lança O Jardim das Confidências e
Ronald de Carvalho escolhe a palavra “penumbra” para qualificar a sua poesia.
Broca (1960) comenta a respeito do escritor José Augusto de Lima, o qual, na
época em questão, publicava em periódicos poemas parnasianos sob o pseudônimo de
Paulo Moreno. Posteriormente, em O Imparcial, na seção “Senhoras e Senhores”, Lima
também passou a atacar os penumbristas com poemas parodiando as características
estéticas da poesia dos escritores que estavam vinculados ao movimento, como Manuel
Bandeira, Ronald de Carvalho, Rodrigo Octavio Filho e, obviamente, Ribeiro Couto.
Assim, sob o pseudônimo de Paulo Geraldino, Augusto de Lima iniciou, nesse periódico,
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aparentemente em 18 de março de 192216, uma série de sátiras que iria se estender por
quase um ano:
Paulo Geraldino é o pseudônimo sob o qual se oculta um dos nossos
poetas mais festejados. O seu nome, que até há pouco brilhava no céu
do nosso parnasianismo, é um dos mais autênticos padrões de glória da
literatura poética do nosso tempo. Hoje, porém, depois de longos anos
de arte, Paulo Geraldino vem se ligar à nova corrente “futurista”, pondo
à margem o seu envelhecido “éstro declamatório” e abraçando
definitivamente o “penumbrismo” (GERALDINO, 1922, p. 4).
Essa pequena apresentação introduz um poema feito em “homenagem” aos
penumbristas, cujo título “A plangência lilás de um sino que vibra na torre da minha
emotividade”, dedicado, especificamente, a Ribeiro Couto e a Oswaldo Orico, não buscou
esconder qual característica do movimento seria satirizada nesses versos e em quase todos
os outros escritos posteriormente: a intensa expressão da sentimentalidade do sujeito
poético. Não é à toa, portanto, que, usando como cenário uma singela e pacata aldeia,
Lima apostou na transcrição do badalo triste e contínuo de um sino como companhia de
uma evidente – e talvez excessiva – melancolia.
Vale ressaltar, ainda, que José Augusto de Lima – em seus poemas-paródia quase
sempre finalizados com a expressão “de um livro futurista”17 – não incomodou os poetas
penumbristas apenas sob a alcunha de Paulo Geraldino. Sob o pseudônimo de Paulo
Moreno, Lima também publicou em O Imparcial pequenas notas de repúdio e ataques ao
movimento. Em outra ocasião, em 5 de março de 1922, divulgou um pequeno texto sob
o título de “Balcão de retalhos”18, endereçado a Manuel Bandeira, no qual ironizava a
sentimentalidade que o poeta vinha empregando em seus poemas, chegando a afirmar que
o autor de A Cinza das Horas parecia uma moça de tão sutil que eram seus versos: “tudo
em ti transpira a delicadeza, suavidade e pudor” (MORENO, 1922, p. 4).
No dia seguinte, na revista Fon-Fon!19, Bandeira respondeu aos ataques de
Moreno, satirizando a pouca visibilidade que Augusto de Lima possuía no cenário
intelectual carioca:
16 Em nossas pesquisas feitas no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, usando como base de procura
o nome de Paulo Geraldino em O Imparcial, é a data de 18 de março de 1922, ano X, n. 1.212, que
encontramos como primeira aparição. Ver anexo B. 17 A partir da edição de O Imparcial do dia 11 de outubro de 1922, começaram também a ser divulgados
anúncios de que um livro chamado Badalo Innocente, de Paulo Geraldino, iria ser publicado. Os dizeres
eram sempre os mesmos, todos sem assinatura: “Badalo Innocente é o livro futurista de Paulo Geraldino,
prestes a sair”. 18 Ver anexo C. 19 Ver anexo D.
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Por isso o meu ideal em poesia, o meu mestre, o meu modelo é o sr.
Augusto Lima, tão injustamente esquecido por esta geração frívola de
agora. Só vejo um senão na sua obra – a pobreza dos temas
verdadeiramente nacionais. (...) No dia em que o poeta mineiro deixar
esta cidade dissoluta, “de almofadinhas sem talento e mocinhas sem
moral”, e for morar no sertão, como fazem os srs. Catulo Cearense,
Afranio Peixoto, Viriato Correia e outros adoradores sinceros da roça,
estou certo de que escreverá um livro que será para esta terra de
[ilegível] o que Os Lusíadas são para Portugal (...). Até lá, temos de nos
contentar com os srs. Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho, Ribeiro
Couto e outros “conhecidos ladrões de canais belgas” (BANDEIRA,
1922, p. 21).
Em 11 de outubro de 192220, dado o destaque positivo e negativo que o
movimento penumbrista vinha recebendo, a revista D. Quixote realizou uma entrevista
com Ronald de Carvalho; nesse mesmo ano, o autor publicou Epigramas irônicos e
sentimentais, seu livro de poemas ao estilo da lírica da primeira obra de Ribeiro Couto.
Nessa entrevista, Carvalho falou sobre o Penumbrismo, o Futurismo e os caminhos que a
literatura brasileira estava tomando naquele início de década. Disse o poeta que os novos
estilos eram o que de mais próximo à arte poder-se-ia chegar enquanto expressão fiel,
assim como a literatura brasileira alcançaria o mais alto nível de civilização com o
trabalho não só dos penumbristas, mas também dos poetas que, nos anos seguintes,
seguiriam cultivando as raízes do movimento.
Em Epigramas irônicos e sentimentais, portanto, Carvalho traduziu em versos o
que esperava de nossa literatura: prosseguimento ao que foi iniciado com Ribeiro Couto.
Daí a repetição de temas e estilística caros ao autor de O Jardim das Confidências, como
a valorização da penumbra e da apreciação da vida cotidiana. No soneto “Solitude”21 é
possível observar como Couto reúne esses dois traços que são os pilares de sua primeira
obra de poesia:
Na penumbra em que jaz o jardim silencioso
a tarde triste vai morrendo... desfalece...
Sobre a pedra de um banco um vulto doloroso
vem sentar-se, isolado, e como que se esquece.
Deve ser um sutil, imponderável gozo
permanecer assim, na hora em que a noite desce,
anônimo, na paz do jardim silencioso,
numa imobilidade extática de prece.
Em lugar tão propício à doçura das almas
20 Revista D. Quixote, ano 6, n. 283, p. 14. Ver anexo E. 21 Na edição de Poesias reunidas, publicada pela José Olympio em 1960, Couto trocou o nome do poema,
chamando-o de “No jardim em penumbra”.
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esse homem vem pensar quase sempre, sozinho,
no mesmo banco, sob a carícia das palmas.
E uma só vez o vi chorar, um choro brando...
Fiquei a ouvir... caíra a noite, de mansinho...
Longe, andava uma voz de menina cantando.
(COUTO, 1934, p. 46-47)
No poema, a contemplação de uma cena cotidiana se passa em um dos ambientes
mais trabalhados na poesia de Couto e usados à exaustão pelos seus seguidores
penumbristas. O jardim, portanto, nesse soneto, assim como em muitos outros poemas
vinculados a essa estética literária, assumiu o papel de cenário principal para inspiração,
reflexão e isolamento do sujeito poético. No poema, não somente há um homem
desconhecido que passa seu tempo em introspecção, como também um eu lírico que
observa essa atitude e se deleita com ela.
Contrapondo-se ao cenário lamurioso, fortalecido pela imagem da tarde triste e do
choro brando e doloroso do homem desconhecido, há a paz e a doçura que emergem do
jardim. A impressão da paisagem ajuda a estabelecer um efeito de interessante
complementação entre o homem e o ambiente – se um dos lados representa o vazio, o
outro é capaz de promover serenidade e equilíbrio. Essa cena ocorrida diante dos olhos
de nosso observador ganha, com a valorização da penumbra e do silêncio, um aspecto
melancólico e atenuante, principalmente devido aos não-ditos que preenchem o poema.
Ainda que escrito com uma carga semântica bem mais positiva do que a trabalhada
nesses versos de Ribeiro Couto – se confrontada a penumbra do soneto à explosão de luz
da manhã ensolarada do poema a seguir –, “Canção da vida cotidiana”, de Ronald de
Carvalho, também traz o elemento cotidiano em sua simplicidade e banalidade:
O sol brilha nas pedras da rua pobre e pequenina,
entre as pedras da rua humilde o mato cresce.
De uma janela aberta vem uma voz dolente,
uma voz sem timbre, uma voz de lágrimas ignoradas.
O sol queima as couves dos quintais desertos.
Vibra na luz o olho metálico de uma poça d’água.
(Rua pobre e pequenina, onde o mato cresce,
rua monótona como o céu azul,
rua monótona como a noite cheia de estrelas,
rua dos muros caiados e dos jardins sem flores,
rua dos pregões melancólicos e inúteis,
rua da vida cotidiana...)
(CARVALHO, 1922, p. 11-12)
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Assim, fica evidente que Ronald de Carvalho segue os passos de Couto ao fazer
um poema de valorização e de exaltação da vida cotidiana exatamente como ela parecia
a partir de uma perspectiva social do contexto em que ambos os autores estavam
inseridos: simples e sem grandes idealizações. A captação direta e sensorial da imagem
que os olhos do poeta enxergam ajuda a construir esse cenário que tende a admirar o
prosaico. Por isso, somos conduzidos a uma rua banal, como outra qualquer, que serve
como palco para o acontecimento de situações tão banais quanto: um sol que ilumina as
pedras da rua e reflete em uma poça d’água, um mato que cresce ou um lamento vindo de
uma janela qualquer.
A vida vai acontecendo ali, devagar, bem na frente do poeta, que parece também
se entregar ao marasmo apresentado pelo lugar. Em poucas linhas, a indicação de uma
cena melancólica, a percepção de um murmúrio que vem pela janela, a repetição de
palavras e/ou expressões garantindo um ritmo e o bom proveito de adjetivos já nos bastam
para perceber que, assim como outros poetas do movimento, Carvalho foi ao jardim de
Couto buscar alimento para a sua poesia.
Questão parecida ocorre em “Doçura da chuva”, “Dança das folhas”, “Interior”,
“Bucólica”, “Elegia”, “Noite de junho” e em tantos outros poemas nos quais, pela singela
observação da paisagem cotidiana, o poeta conseguiu expressar uma tendência bastante
sentimentalista. Vale ainda dizer que a parte irônica do título se deve, sobretudo, a uma
outra grande e importante característica do movimento penumbrista: a liberdade formal.
Em “Literatura”, Ronald de Carvalho parece atacar em seus versos a rigidez dos
parnasianos:
(...)
São perfeitos os teus alexandrinos!
Mas como têm mais graça as asas dessa abelha,
ou essa fúlvida centelha
que turbilhona sem parar!
Como são muito mais interessantes
que aqueles negros, inúteis elefantes,
esses pares de andorinhas que volteiam
em curvas longas, lentas pelo ar...
(CARVALHO, 1922, p. 79-80)
Como disse na entrevista à D. Quixote (1922), Carvalho acreditava que o processo
de liberação formal por que passavam os penumbristas era o futuro da literatura – e
realmente foi. Ainda que em momentos posteriores a poesia brasileira tenha recorrido à
39
produção de versos com marcação rítmica mais “fechada”, nunca mais se chegou perto
do engessamento e do rigor provocados pela incessante busca por rimas ricas e raras a
que os parnasianos se propunham.
Muito bem metaforizado por Carvalho no poema, contra o prestígio que os
alexandrinos tinham em relação à intelectualidade brasileira, um grupo de poetas-
andorinha passou a movimentar o cenário literário do início do século XX de tal forma
que seus reflexos são sentidos até hoje. Nesse sentido, ao cultivar muitas das sementes
plantadas pelo Decadentismo francês, o Penumbrismo foi um movimento de “intimismo,
temas relacionados ao quotidiano, sentimentos melancólicos, gosto pela penumbra e pelo
crepúsculo, (...) tudo composto em versos cujo ritmo em liberação e cujo meio-tom
musical se opunha à eloquência parnasiana em moda” (GOLDSTEIN, 1983, p. 13).
O movimento recebeu críticas severas vindas de alguns intelectuais e direcionadas
aos seus participantes, mas também serviu como prenúncio de uma revolução estética no
cenário literário brasileiro. Esse novo fazer poético se fez presente em pequena ou boa
parte da produção de alguns escritores brasileiros, como Ronald de Carvalho, Ribeiro
Couto, Álvaro Moreyra, Manuel Bandeira e Mário Pederneiras, sem nos esquecer,
também, de Carlos Drummond de Andrade, em cujos passos iniciais como poeta
permitiu-se mergulhar em uma estética de penumbra, perpetuando esse momento
crepuscular em Os 25 poemas da triste alegria.
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2. A POESIA CREPUSCULAR DE OS 25 POEMAS DA TRISTE ALEGRIA
Na historiografia literária, costuma-se estabelecer um escritor dentro de algum
contexto histórico e literário específico, quase sempre o filiando a um grupo, um modelo
ou estilo de uma época. Também vemos que, dentro dessa perspectiva, esses períodos
costumam ter uma longa duração, não havendo condições, muitas vezes, de análise de
períodos mais curtos de tempo, pressupondo que significariam mudanças muito tênues
ou até nenhuma mudança.
Nesse sentido, quando pensamos em poesia, o cenário parece se confirmar: poucos
escritores revolucionaram sua carreira em um curto espaço de tempo. Fugindo à regra, é
de conhecimento da grande crítica literária a capacidade de reelaboração estética que
Carlos Drummond de Andrade apresentou, durante toda a sua trajetória enquanto poeta,
em pequenos intervalos – daí termos, quase a cada década de produção, a oportunidade
de lermos um novo Drummond.
Por muito tempo, a crítica literária a respeito do poeta tratou de sua obra tomando
como ponto de partida a publicação de Alguma poesia, de 1930, o que, segundo John
Gledson (2018), ajudou a criar uma falsa ideia de um Modernismo nato do escritor. O
fato é que poucos tinham conhecimento de um Drummond que, além de artigos, crônicas,
resenhas e poemas esparsos publicados em periódicos e em revistas na década de 1920,
também reuniu, nesse mesmo período, um projeto de livro, Os 25 poemas. Sendo a obra
uma descoberta tardia e póstuma, só na atualidade podemos alcançar a dimensão da
“quase” estreia drummondiana e compreender os primeiros passos do jovem Carlos, bem
como entender em que e em quem se amparava o seu fazer poético nos anos 20.
Os 25 poemas da triste alegria, quando situados corretamente na cronologia
literária de Drummond, permitem-nos enxergar não só como o poeta teve uma década
riquíssima em estímulo criativo e intelectual, como também que a sua adesão ao
Modernismo não foi tão instantânea como por alguns anos fez-se crer. Contendo poemas
escritos no início da década de 1920 por Drummond, a obra foi datilografada em 6 de
setembro de 1924, por Dolores Dutra de Morais, com quem o poeta se casaria
posteriormente.
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Nessa época, o itabirano vivia reunido com um grupo de escritores que
costumavam frequentar o café Estrela22, em Belo Horizonte, tais como Emilio Moura,
Francisco Martins de Almeida, Gustavo Capanema Filho e João Alphonsus de
Guimarães. Vale mencionar, ainda, que é também no ano de 1924 que esse grupo de
poetas encontrar-se-ia com a caravana modernista vinda de São Paulo, da qual faziam
parte figuras emblemáticas do movimento, como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade
e Mário de Andrade.
Em relação aos textos poéticos que compõem Os 25 poemas da triste alegria,
segundo John Gledson, em Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (2018),
alguns poemas desse datiloscrito já haviam sido publicados em periódicos da época, como
“Na tarde cheia de doçura...” e “A beleza da vida na alegria da manhã”, que saíram no
Diário de Minas, entre 1922 e 1923, sob o pseudônimo de Manuel Fernandes da Rocha
(GLEDSON, 2018, posição 392).
O professor, ensaísta, poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin (2012)23
afirma que, entre os anos de 1922 e 1924, nove poemas de Os 25 poemas da triste alegria
já haviam sido publicados em veículos informacionais da época, como o já referido
Diário de Minas, além das revistas Ilustração Brasileira e Para Todos. Secchin (2012)
também chama atenção para a publicação tardia de alguns poemas em 1926, como é o
caso de “Biblioteca”, “Uma lâmpada brilha” e “Canção do grego desencantado”.
Em pesquisas realizadas para esta dissertação no site da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional, mais um poema de Os 25 poemas foi encontrado em publicação
posterior a 1924, dessa vez no Diário do Comércio (MG), no ano de 1928, mesma época
em que, curiosamente, Drummond publica o poema “No meio do caminho”, uma
expressão do Modernismo brasileiro. No exemplar de 1924, esse poema recebeu o título
de “Ainda um noturno”. No Diário do Comércio (MG)24, de 1928, há algumas mudanças:
Drummond fez um adendo ao título, passando o poema a se chamar “Ainda um noturno,
se permitem”; no 3º verso houve a substituição do adjetivo “imensa” por “enorme” e, no
6º verso, o poeta suprime o vocábulo “mais”.
22 Em 1925, de quatro integrantes desse grupo – Carlos Drummond de Andrade, Emilio Moura, Francisco
Martins de Almeida e Gregoriano Canedo – surgiu a ideia de criar o veículo informacional modernista A
Revista, do qual falaremos com mais precisão em capítulo posterior. 23 SECCHIN, Antonio Carlos. O quase livro do pré-poeta. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Os 25
poemas da triste alegria. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 12-13. 24 1928, ano I, n. 51, p. 2. Apesar de o poema ser republicado em 1928 e ter sofrido as alterações
mencionadas, a data de escrita no periódico aparece como 1924, como consta na imagem do poema presente
no anexo L.
42
No início dos anos 2000, Antonio Carlos Secchin encontrou o datiloscrito original
de Os 25 poemas da triste alegria em acervo pessoal de um bibliófilo carioca, o que
possibilitou ao crítico e à editora Cosac Naify a elaboração de uma excelente edição fac-
similar, publicada em 2012, fazendo com que o público tivesse acesso a mais um
importante capítulo da história de Drummond. Nessa edição, estão presentes também
comentários afiados que Drummond acrescentaria ao exemplar original, em 193725 –
relacionados, principalmente, ao esvaziamento de sentido e ao exagerado
convencionalismo que seus textos carregavam –, além de alguns comentários feitos por
Mário de Andrade a uma boa parte desses poemas nas cartas trocadas, os quais foram
transcritos por Drummond nas mesmas anotações de 1937.
Ademais, também estão presentes no livro interessantes notas feitas por Secchin
aos poemas e aos comentários de Drummond e Mário. Vale ainda dizer que a edição
reuniu cinco textos publicados no início da década de 1920, nos periódicos Diário de
Minas e Gazeta Comercial e na revista Para Todos ̧em que Drummond se manifesta a
respeito de algumas de suas inspirações literárias e também discute os caminhos que a
literatura brasileira estava tomando naquela época.
Um importante texto escrito por Drummond presente na coletânea (2012) é o que
diz respeito a Álvaro Moreyra, principalmente porque a influência exercida nos primeiros
passos poéticos do itabirano é inegável quando da leitura de Os 25 poemas da triste
alegria. Nesse texto, intitulado “Um sorriso para tudo...”26, em referência ao título do
livro de Moreyra publicado em 1915, Drummond ressalta uma das maiores características
de boa parte da obra do escritor penumbrista: a capacidade de ser, ao mesmo tempo,
sensível às coisas sem perder o ceticismo e a sua ácida ironia. Com grande admiração, é
a esses traços que o jovem mineiro recorre, junto à influência de outros poetas que
também produziam essa literatura mais crepuscular da Belle Époque, ao elaborar os
primeiros poemas de sua carreira.
Quando lidos os poemas do datiloscrito em sequência, fica inegável o
aproveitamento de um “modelo” criado por Moreyra sobre o qual nos fala o jovem
Drummond neste fragmento:
25 Não são todos os poemas que recebem comentários de Drummond em 1937 e, em alguns deles,
Drummond limita-se a transcrever a crítica feita por Mário de Andrade. Vale também dizer que os
comentários de Mário, por vezes, não são transcritos na íntegra. Há ainda poemas que foram comentados
pelo escritor paulista nas cartas trocadas, mas que, no datiloscrito de 1924, não tiveram a sua crítica
assinalada pelo itabirano. 26 Texto originalmente publicado na revista Para Todos, em 3 de março de 1923.
43
A vida presenteou o sr. Álvaro Moreyra com uma felicidade meio triste:
a de sentir com doçura e de pensar com indulgência. A doçura não
exclui o ceticismo, como a indulgência não exclui a ironia. E assim, eis
aí um fino escritor que nos fala das coisas cotidianas com irônica e
melancólica suavidade. (...) Parece que o poeta, o homem lírico e terno,
que os dias fizeram mais irônico, mais atual, sentiu uma ponta de
saudade, e foi então que nos entregou de novo essas páginas de uma
sensibilidade virgem, cheia de arrepios, de dolências muito íntimas, de
adoração às lindas paisagens, de encantamento e beatitude
(ANDRADE, 2012, p. 119-121).
A respeito dessa questão, Gledson (2018) afirma que Drummond ficara, no início
da década de 1920, encantado com o cultismo e a estética da penumbra do grupo de que
Moreyra fazia parte, o que “trouxe consigo muita parafernália; as mulheres esguias, os
ambientes crepusculares e melancólicos e os jardins misteriosos que eram as marcas da
fábrica penumbrista, repetidas ad infinitum” (GLEDSON, 2018, posição 430). O crítico
defende, então, que, mesmo tendo assimilado sem criticar e passado aos seus poemas de
forma desmedida o modelo poético de Moreyra, o poeta estava “perto de reconhecer o
papel da persona do artista, da convenção literária e da ironia”, fazendo com que, ainda
que tímidas, algumas das importantes características que estariam presentes em toda a sua
obra poética já aparecessem em Os 25 poemas da triste alegria.
Entretanto, mais vale a esta pesquisa, neste capítulo, o olhar voltado para a
sondagem das ressonâncias penumbristas nos primeiros escritos poéticos de Drummond
do que a investigação sobre a possibilidade de existência, no “quase livro”, de traços
prematuros que tanto marcaram a sua personalidade literária ao longo da sua solidificação
como um dos maiores poetas brasileiros. Portanto, tendo em vista que Os 25 poemas são
um “documento histórico relevante para uma compreensão mais ampla das
transformações da poesia brasileira na década de 1920” (SECCHIN, 2012, p. 15), após
colocarmos em evidência a singela fortuna crítica dessa obra do jovem Drummond, serão
analisados poemas que podem ajudar a traçar esse panorama.
2.1 Fortuna crítica e recepção do “quase livro”
Por sustentar – e com razão – o título de um dos maiores poetas brasileiros do
século XX, a fortuna crítica da obra de Drummond é extensa e contínua; nas academias,
estando já nos encaminhando para a segunda década do século XXI, o poeta continua
sendo tema recorrente de artigos, palestras, mesas-redondas, cursos e pesquisas
acadêmicas. No entanto, fugindo à regra do prolífico e necessário diálogo que as letras
44
brasileiras têm travado com a poesia do itabirano, Os 25 poemas da triste alegria ainda
vivem à sombra da crítica literária, como um passado que Drummond pareceu esconder
e que ainda não se fez conhecer da maneira que merecia. O motivo é um e não menos
óbvio por isso: de publicação póstuma e extremamente tardia, a edição fac-similar de Os
25 poemas (2012) ainda está sendo lida e assimilada, o que relega à crítica contemporânea
a importante missão de pôr em (re)discussão os primeiros passos poéticos desse grande
escritor brasileiro.
Felizmente, os primeiros movimentos rumo a uma nova investigação sobre o
passado criativo e literário de Drummond já podem ser notados. Em 2017, em dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade
Federal Fluminense, a pesquisadora Urânia Karim Gomes desenvolveu, sob o título
“Carlos Drummond de Andrade: a poesia de penumbra em seus 25 poemas da triste
alegria”, uma interessante pesquisa voltada ao datiloscrito drummondiano de 1924.
Além de analisar poemas da obra, Urânia Karim (2017) também discutiu o
Penumbrismo brasileiro usando como estratégia de leitura de poesia o Stimmung, que,
segundo a pesquisadora, é uma importante maneira de fazer com que seja levada “em
consideração a capacidade que os estados de espírito e os ambientes têm de nos envolver
para além da linguagem” (GOMES, 2017, p. 20). Nas academias, trabalhos como o de
Gomes ainda não representam um número expressivo, mas a tendência é a de que esse
cenário seja revertido, sobretudo porque a obra de Drummond é constantemente
revisitada, de tal modo que Os 25 poemas poderão ainda receber o devido destaque
conforme seus leitores e críticos passarem a assimilá-los como parte do conjunto da obra
do poeta.
Em outros segmentos da crítica literária a situação é parecida: ainda que tímidos,
os estudos sobre esse passado literário de Drummond já estão sendo efetivados. Nessa
perspectiva, vale mencionar o ensaio da professora Flávia Amparo publicado na Revista
Brasileira, em 2015, que trata dos primeiros passos poéticos do jovem itabirano e do
caminho da “desinstrução” oferecido por Mário de Andrade, com quem Drummond
travou um intenso e fecundo diálogo, sobretudo por meio das cartas trocadas a partir de
1924, possibilitando um amadurecimento poético para além dos ensinamentos do mestre
paulista. Ainda que riquíssimo na observação das inúmeras formas com que o autor de
Macunaíma esteve presente na obra do poeta mineiro, o que mais nos interessa são alguns
comentários que a professora tece sobre o recém-descoberto primeiro livro de
Drummond:
45
O que se ignorava até bem pouco tempo era a existência de um pré-
Drummond, penumbrista, fortemente influenciado pelos seus
conterrâneos e por outros grandes nomes do panorama literário da
época, como Álvaro Moreyra e Ronald de Carvalho. O primeiro livro
de poesia projetado por Drummond, Os 25 poemas da triste alegria (...),
nos oferece uma oportunidade de conhecer a gênese do poeta mineiro e
também de atestar o importante papel que Mário de Andrade
desempenhou na formação, ou melhor, na desconstrução desse pré-
Drummond (AMPARO, 2015, p. 116).
Tal como esta dissertação pretende mostrar, Amparo (2015) também acredita na
importância dos estudos sobre Os 25 poemas a fim de compreendermos o início da
trajetória literária de Drummond e quais os alicerces que ajudaram a formar a sua poesia
como nós a conhecemos hoje. Assim, antes de estabelecer um contato duradouro com
Mário de Andrade, em quem Amparo nota o papel de grande mestre de Drummond, o
jovem itabirano, “demasiadamente velho e sem esperança em suas convicções
ideológicas” (AMPARO, 2015, p. 116), reuniu 25 poemas que demonstravam a sua total
adesão a uma estética da penumbra, principalmente devido à produção de versos que
revelavam uma postura apática diante da vida e um sorriso triste de canto de boca, aos
moldes de Álvaro Moreyra.
Em muitas das cartas trocadas, Mário de Andrade menciona essa acomodação do
jovem poeta mineiro em relação à sua existência e o aparente desdém com que levava a
vida e encarava a paisagem à sua volta, alegando vir de Anatole France a fonte desse
alheamento. Nesse ensaio, acreditando que resquícios dessas marcas foram fiéis
companheiras de Drummond enquanto poeta ao longo de toda a sua vida, Amparo (2015)
também ressalta a significativa presença da alegria triste e do desdém em Os 25 poemas,
levando em consideração não só o título paradoxal do livro, mas também a composição
dos poemas datilografados:
Não apenas o título antitético de Os 25 poemas da triste alegria, mas
também o poema que abre o livro, “A sombra do homem que sorriu”,
revelam o desdém descrito por Mário, que, de fato, acaba por anular a
alegria “fingida” pelo eu lírico. Se há instantes de conciliação em alguns
poemas, como vimos anteriormente em “A beleza da vida na alegria da
manhã”, o penumbrismo mineiro se revela paradoxal, uma vez que a
tristeza passa a se consolidar antes da alegria, enquanto a sombra trata
de encobrir o homem antes que possamos vê-lo sorrir. (...) Embora
Drummond tenha abandonado o Penumbrismo pelas luzes modernistas,
a sua passagem pelo universo de Anatole France não abandonaria sua
memória de todo. Esse riso triste seria um obstáculo no caminho do
poeta, que faria opção pela vereda modernista, mas jamais deixaria de
46
registrar em suas retinas a presença sombria da pedra do ceticismo
(AMPARO, 2015, p. 121).
Sob um outro ponto de vista, em composição já referida, Secchin (2012)
presenteou os leitores ao abrir a edição da Cosac Naify com um pequeno texto, porém
extremamente significativo, a respeito desse “quase livro” de Drummond. Além do
prefácio, o exemplar também traz notas do crítico literário acompanhando a maior parte
dos 25 poemas que o compõem, comentando não só os versos do jovem poeta, como
também as ponderações e os acréscimos manuscritos de Drummond, em 1937, incluídos
no datiloscrito original.
Assim, cabe evidenciar o interessante paralelo existente em Os 25 poemas a que
Secchin (2012, p. 14) faz menção: se temos agora acesso a um livro datiloscrito de 1924,
pertencente ao penumbrista Carlos Drummond, é possível vê-lo ao lado de um livro
manuscrito, em 1937, pelo já experiente e crítico Carlos Drummond de Andrade (grifos
nossos). Acerca desse processo de autocrítica imposto pelo próprio poeta 13 anos depois
de reunidos os poemas, Secchin nos fala que
a maior restrição que o crítico CDA faz ao poeta CD refere-se ao
convencionalismo e à artificialidade dos textos, ao descreverem
realidades alheias à sensibilidade ou à experiência do poeta, e, por isso
mesmo, tributárias de um conceito do “literário” necessariamente
retórico e postiço. Um pré-modernismo bem-comportado, cultor de
formas moderadas, cantor de subtons e de medianias da vida, alheio à
modernidade, a que simula aderir, por exemplo, no emprego do verso
livre, mesclado a padrões regulares ou à polimetria: versos não
necessariamente “antigos”, mas apenas esporadicamente “novos”.
Atmosfera algo anestésica, de que, no início do século, Mário
Pederneiras se fizera cantor, e que pouco depois, com mais rendimento
estético, seria retomada por Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho e
Ribeiro Couto. É nessa linhagem que assumidamente se inscreve o
primeiro Drummond (SECCHIN, 2012, p. 14).
Dessa forma, não seria um engano apontar Drummond como um dos maiores
críticos de Os 25 poemas. No entanto, de forma mais concisa que a observada nos
comentários de 1937, em duas cartas trocadas com Mário de Andrade, em 1926, já se
fazia notar a postura de um poeta que analisa a sua poesia e confere julgamentos a respeito
de si mesmo.
Na carta em que envia ao escritor paulista um montante de textos com 61
poemas27, datada de 3 de junho de 1926, Drummond divide o conteúdo do que foi
27 Tanto Secchin (2012) quanto Silviano Santiago (2002), este nas notas à correspondência trocada entre
Mário de Andrade e Drummond, informam que havia duas partes no montante de textos enviado ao escritor
47
endereçado da seguinte maneira: a primeira seção – a que continha boa parte dos poemas
de Os 25 poemas – havia enviado apenas por amizade; a segunda parte continha o que de
melhor tinha feito até então. A causa dessa separação, claramente, tinha como base o
mesmo pensamento que norteou os comentários de 1937, isto é, Drummond já atribuía
baixa qualidade aos poemas escritos antes do encontro com Mário e a trupe modernista,
em Belo Horizonte, dois anos antes.
Assim, antecipando o acrimonioso poeta que manuscreveu críticas sinceras e
duras em seu datiloscrito, o jovem Drummond avisou ao amigo: “Sei que são versos
inferiores, até penumbristas; só valeu como documentação. Tem muita lagrimazinha besta
e muito estrepe sentimental nesses papéis. Você dê o devido desconto” (ANDRADE,
2002, p. 220). Em carta posterior, com data de 31 de agosto de 1926, Drummond volta a
falar a respeito da baixa qualidade dos poemas reunidos na primeira parte:
Devo observar a você que toda a primeira parte do caderno não se
destina a publicação; mandei só para você ler, ninguém mais lerá isso,
inclusive o famigerado “Momento feliz” que você achou a coisa pior
deste mundo e que de fato não está longe disso. (...) nada disso me
interessa hoje que me sinto orgulhoso de ter tido coragem bastante pra
romper com o pós-simbolismo, o penumbrismo e outras covardias
intelectuais (ANDRADE, 2002, p. 240) 28.
Se o jovem poeta em 1926 era mais comedido na autocrítica, o já experiente
escritor de 1937 tratou de aprofundar o juízo de valor a respeito dessa poesia prematura.
Por isso, no comentário adicionado logo no poema que abre o livro, “A sombra do homem
que sorriu”29, o itabirano não demonstra timidez em apontar, com dureza, o que tinha em
mente sobre a quase totalidade de sua obra: faltava aos versos substância de experiências
reais, vividas por quem os escreveu, enquanto sobravam linhas de construção mecânica e
tímida, deixando-os extremamente artificiais (ANDRADE, 2012, p. 23).
paulista: na primeira estariam 29 poemas, dos quais 23 compõem a obra de 1924 de Drummond; na segunda
parte, intitulada Minha terra tem palmeiras, estavam presentes 34 poemas, dos quais 20 seriam integrados
a Alguma poesia, em 1930. Os dois poemas de Os 25 poemas não mencionados por Mário nas cartas foram
“A sombra do homem que sorriu” e “Minha tristeza de porcelana”, o que nos leva a crer que estes não
estavam presentes no montante enviado. 28 Nesse trecho, Drummond fala sobre ninguém mais ter acesso a esses poemas. Os anos seguintes,
entretanto, revelam o contrário. Secchin (2012) aponta que, pelo menos, mais dois escritores receberam os
poemas: Manuel Bandeira e Rodrigo M. F. de Andrade. Além disso, alguns poemas dessa parte foram
publicados em periódicos muito após 1926, como é o caso de “Gravado numa parede”, levado a público
em 1934. 29 Os títulos e os versos dos poemas de Os 25 poemas da triste alegria serão escritos nesta dissertação
conforme grafia atual da Língua Portuguesa.
48
Logicamente, o Drummond de 1937 enxergaria no estilo literário da época e em
escritores como Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, que serão
mencionados em alguns desses comentários, a fonte da “corrupção” por que passou o
jovem Carlos no início da década de 1920. No comentário em questão, é a Moreyra que
o escritor dedica as 32 vezes em que fez uso das reticências – necessárias ou não. Dizendo
que os poemas eram “puramente literários (no mau sentido)” (ANDRADE, 2012, p. 23),
sem parcimônia sentencia: “É impossível não ter pena do pobre poeta que os escreveu”
(ANDRADE, 2012, p. 23).
Em “Quase noturno, em voz baixa”, outra figura importante do Penumbrismo
brasileiro, Ronald de Carvalho, é mencionada, dessa vez ganhando a alcunha de principal
fonte a quem o poeta mineiro recorreu quando da elaboração dos poemas que compõem
a obra de 1924. Drummond ainda vai acrescentar ao comentário um conjunto de
características que chama de “instrumental poético da época”, do qual,
descomedidamente, o poeta fez uso no livro: “silêncio, crepúsculo, humildade, malícia,
repuxo, doçura da hora, quintal, arrabalde, noturno” (ANDRADE, 2012, p. 35), isto é,
todo material que figurava em qualquer poema da estética penumbrista, principalmente
os do autor de Epigramas irônicos e sentimentais.
Em outro comentário que acompanha o poema “Vê como a água sussurra”,
Drummond observa a utilização de um verso final entre parênteses indicando reflexão
irônica ou sentimental – “(Que ridículo pensamento...)” (ANDRADE, 2012, p. 58) – e
também aponta Carvalho como a sua matriz: “eis o substitutivo que Ronald de Carvalho
propôs para a chave de ouro, na poesia modernista. O verso acima constitui modesta
aplicação dessa fórmula” (ANDRADE, 2012, p. 59).
Outra relevante nota é a que segue junto com o poema “Na tarde cheia de
doçura...”, na qual Drummond diz que, à luz do meio literário da Belle Époque brasileira
e das influências recebidas nessa época, acreditava estar fazendo, com originalidade, o
que de melhor do Penumbrismo ele poderia tirar: a matéria cotidiana. Dedicando a lírica
dos arrabaldes a Carvalho e à maneira com que construiu a imagem da protagonista no
poema a Ribeiro Couto, o já experiente poeta, em 1937, confidencia-nos que, a seu ver,
àquela época, dava à poesia moderna brasileira uma significativa contribuição.
Em outro momento, Drummond volta a se pronunciar a respeito da ligação de sua
poesia com a matéria cotidiana. No comentário adicionado a “Uma lâmpada brilha...”,
chama atenção ao uso do nome próprio feminino “Carolina” no poema, o que, segundo o
poeta, representava uma preocupação de relacionar a sua poesia à vida real, “representada
49
menos nos fatos ocorrentes do que nesses nomes usuais que têm para mim um forte poder
de materialização” (ANDRADE, 2012, p. 77).
Embora afirmasse que quase todos os poemas não deveriam ter sido escritos
(ANDRADE, 2012, p. 23) ou que receava a possibilidade de os versos caírem em mãos
inimigas (ANDRADE, 2012, p. 101) – em referência irônica à baixa qualidade desses
mesmos poemas –, Drummond não aparentou temer as críticas a que estava suscetível
quando os enviou a Mário de Andrade, em 1926, tampouco pareceu se preocupar com o
destino que o exemplar poderia ganhar ao concedê-lo, anos depois, a Rodrigo Mello
Franco de Andrade. O livro não foi publicado na época em que foi datilografado e,
portanto, é impossível colher resenhas ou críticas produzidas no século XX, mas, graças
a uma correspondência datada de 1º de agosto de 1926, temos hoje conhecimento de como
23 dos 25 poemas foram recepcionados por uma das figuras que mais participaram do
processo de amadurecimento do poeta mineiro.
Após acusar recebimento do caderno de versos em carta de 8 de junho de 1926,
Mário de Andrade vai comentar sobre esse material na correspondência seguinte, datada
de 1º de agosto de 1926. O carinho, o respeito e a admiração pelo então jovem Drummond
fizeram com que o escritor paulista tivesse o cuidado de tecer comentários para cada um
dos poemas separadamente, sendo bastante incisivo em alguns momentos ao sugerir
modificações, em outros não poupando elogios, mas sempre muito sincero em suas
críticas, característica pela qual, inclusive, o autor de Macunaíma ficou marcado.
As notas de Mário aos versos seguiam, basicamente, a mesma lógica de
construção: o escritor demonstrava seu juízo de valor a respeito do que foi lido – isto é,
se havia gostado, se era um interessante poema que poderia passar por aperfeiçoamentos
ou se eram versos completamente infundados – e, constantemente, propunha algumas
alterações relacionadas a vocábulos, a expressões, a repetições e à organização rítmica
dos versos. Drummond tinha Mário de Andrade como um grande mestre e, por isso, a sua
opinião era de extremo valor ao poeta, seguindo, quase sempre, seus conselhos.
Republicado em 1928 no Diário de Minas, o poema “Canção do grego desencantado” é
prova cabal disso: Mário sugere que o adjetivo “perfumadas” que acompanha o
substantivo “flautas”, no último verso, seja trocado por “coelhonéticas” e, nessa
reprodução, Drummond assim o faz.
Nos comentários, é nítido como alguns dos “tiques” do Penumbrismo que
Drummond repetia à exaustão incomodavam Mário. Sobre “Sensual”, o escritor sugere a
retirada de duas reticências que havia achado “defeituosas” (ANDRADE, 2002, p. 229),
50
assim como também assinala a existência de expressões pouco íntimas do português
brasileiro ou, então, “passadistas” demais, como é o caso de “velho carvalho”, nesse
poema, “repasto frugal”, “vinho velho” e “vianda tenra”, presentes em “Convite”, “louro
príncipe fatigado”, em “Doçura da hora”, e “barro perecível”, de “O momento feliz”
(grifos nossos).
A repetição de versos, técnica muito utilizada na poesia penumbrista, igualmente
chamou a atenção do escritor paulista, que, sobre “Na tarde cheia de doçura”, disse: “O
processo de repetição da mesma palavra ou ideia que você emprega que nem Ronald,
Manu, Ribeiro Couto é perigoso e decadente. Neste poema está irritante pela frequência.
Os quatro primeiros versos se reduzem a dois” (ANDRADE, 2002, p. 230).
Sob seu olhar aguçado, alguns poemas receberam ásperas e francas críticas.
Dentre esses, Mário faz uma ressalva, dizendo que “A noite com uma lua” seria um
“poema que depois de feito não ficou bom” (ANDRADE, 2002, p. 231). Esse poema a
que Mário se referiu pode ser colocado no mesmo rol das composições que não deveriam
ser escritas, a que pertencem “O momento feliz”, sobre o qual Mário disparou que “não
vale absolutamente nada” (ANDRADE, 2002, p. 231), e “Vê como a água sussurra”, que
também “não tem nada” (ANDRADE, 2002, p. 231).
A respeito de “Longe do asfalto”, Mário confessa que outros já haviam falado
sobre o assunto do poema de melhor maneira, e, sobre “Na tarde cheia de doçura”, não
achou “grande coisa”. Na contramão das afirmações categóricas está “Primavera nas
folhinhas e nos jardins”, que recebeu um parecer indefinido: “Podia ser um poema lindo.
Parece que falta alguma coisa ou tem demais” (ANDRADE, 2002, p. 229).
A presença ostensiva de características penumbristas não impediu, entretanto, que
Mário de Andrade gostasse de alguns poemas presentes nessa primeira parte do caderno
de versos. Os elogios aos poemas que o agradaram pairavam, principalmente, no aspecto
da doçura intrínseca aos versos – traço que o escritor paulista afirmou estar presente em
Drummond mais do que em todos os outros poetas da estética da penumbra (ANDRADE,
2002, p. 229).
Assim, uma sensibilidade mais doce fez com que “A beleza da vida na alegria da
manhã”, “Quase noturno, em voz baixa”, “Ainda um noturno”, “Ninguém sabe”, “A
mulher do elevador”, “Cromolitografia”, “Boneca de pano” e “Doçura da hora” caíssem
no gosto do crítico exigente. Também participa dessa lista o poema “Gravado numa
parede”, que, segundo Mário, “é dos poemas mais profundamente comovidos do pós-
simbolismo nosso” (ANDRADE, 2002, p. 231).
51
A fortuna crítica de Os 25 poemas da triste alegria, embora pequena, ajuda-nos,
portanto, a compreender a importância do estudo dos primeiros passos na poesia de
Drummond a fim de um melhor entendimento de sua construção como poeta. Além disso,
mostra-se igualmente necessária para que possamos discutir como a sua trajetória poética
está intrinsecamente ligada à perpetuação do Modernismo como o maior movimento
literário do Brasil no século XX. Essa base crítica tende a crescer ainda mais na medida
em que o meio acadêmico vem, gradativamente, descobrindo essa nova faceta de
Drummond.
2.2 A alegria melancólica de um jovem poeta
A discussão até aqui nos revelou um início de trajetória literária drummondiana
marcado, primordialmente, por diálogos travados com o Penumbrismo brasileiro e a
literatura francesa – esta, indiretamente, a partir das ressonâncias decandentistas na poesia
de penumbra, e, de forma mais direta, pela leitura de escritores como Anatole France,
perpetuando, assim, a presença de um inegável ceticismo em relação à vida. Situados,
portanto, nessa perspectiva penumbrista, os 25 poemas que compõem o livro irão registrar
boa parte da estética desse momento de transição da literatura brasileira.
Daí não nos espantarmos com marcas importantes de seu estilo, que se manifestam
pela presença dos subtons e da apreensão sutil, sensorial, pura e direta da paisagem e do
cotidiano. Outros aspectos se deixam marcar pela expressão do “eu” poético, pela evasão
da realidade (quase sempre se distanciando do cenário brasileiro), pela anestesia diante
da existência e pela presença de uma melancolia tenra, manifesta por um sorriso triste de
canto de boca. Além desses traços, o poeta também apreciava a exploração das emoções
de forma mais abstrata, assiduamente manifestando o gosto pela penumbra e pelo
crepúsculo e, por fim, adotando um preciosismo estético, o qual, por vezes, teve como
efeito um esvaziamento do sentido do poema em favor da aplicação mecânica de uma
tática de escrita penumbrista.
Nesse sentido, o poema que abre Os 25 poemas pode servir para demonstrar como
predominava no livro certa falta de densidade psicológica, percebida no comentário feito
posteriormente pelo poeta, no qual constatou que os versos não atenderam “a nenhuma
necessidade íntima” (ANDRADE, 2012, p. 23). Essa mecanicidade empregada pelo
jovem poeta era não só prejudicial à construção dos poemas do livro, como também
52
refletia um Drummond extremamente distante do engajamento visto em obras
posteriores, como em A rosa do povo, de 1945.
Assim, em “A sombra do homem que sorriu”, o itabirano pareceu querer reunir
num só poema quase tudo que havia coletado de suas leituras penumbristas, marcadas
pelo declínio da experiência histórica, pelo esvaziamento da memória e, especialmente,
pelo desdém ao momento presente:
Ah! que os tapetes não guardem
a sombra inútil dos meus passos...
Eu quero ser, apenas,
um homem que sorriu e que passou,
erguendo a sua taça, com desdém.
(ANDRADE, 2012, p. 22)
A consequência dessa atitude, entretanto, foi nefasta: descartando-se a interjeição
que começa o poema – responsável por um início já marcado pela presença de um tom de
lamento melancólico –, as linhas seguem sem qualquer testemunho de energia ou
entusiasmo daquele que as escreveu, limitando-se à camada rasa dos vocábulos. A
questão central desse poema é, portanto, a forma anestésica com que o sujeito poético se
lança em relação à vida, característica simbolizada no elevar da taça com desdém. Aliás,
vale ressaltar que essa postura alheia à existência perpetuada com a insistente figura da
indiferença muito diz respeito à influência de Álvaro Moreyra e seu sorriso triste de canto
de boca nesses primeiros passos poéticos de Drummond.
Tomada por uma perspectiva indiferente, a existência daquele que fala no poema
ganha também uma outra negativa qualificação: inútil. A percepção de uma vivência de
caminhadas improdutivas transfere a sua vida para o rol das coisas sem importância,
infrutíferas, e, por isso, sem necessidade de estabelecer um legado: os tapetes não têm por
que guardar as marcas dos passos de alguém que permaneceu sempre à sombra da vida.
Esse Drummond do início da década de 1920, pouco preocupado com a falta de
herança deixada pelo Homem – aqui pensado no sentido mais universal da palavra –, em
quase nada se assemelha ao poeta dos vestígios da memória tão presente em A rosa do
povo. Fica até difícil acreditar que tenha havido um Drummond cético no que tange à
relevância da transmissão de seu legado depois que o poeta nos apresentou os resíduos
que fazem com que “de tudo fique um pouco” – como o elefante do poema homônimo,
solto às ruas com vistas a espalhar os recursos de sua poesia pelos muros cinzentos e
mudos da cidade.
53
Paradoxalmente, ainda que no datiloscrito de 1924 a conduta que rege com
soberania a maior parte dos versos seja a de uma visão melancólica e triste da vida, nem
todos os poemas foram construídos a partir dessa postura apática do eu lírico. Essa
questão, aclarada pelo título do livro, coloca lado a lado as noções de alegria e tristeza,
tornando-se ainda mais perceptível quando da leitura de poemas como “A beleza da vida
na alegria da manhã”. O poema em questão traz não só um outro campo semântico de
palavras, como também uma diferente maneira de enxergarmos a relação do sujeito
poético com o ambiente que o cerca:
Eu corria sobre a areia, com os pés nus.
A areia faiscava.
Na claridade da manhã,
as árvores eram mais verdes e felizes.
Eu corria sobre a areia, com os pés nus.
Penetrava-me as veias a beleza da vida.
O sol ria no alto.
Dentro e fora de mim,
floriam ritmos desconhecidos.
Penetrava-me as veias a beleza da vida.
Era como se eu nascesse naquele dia.
A luz embriagava-me.
Tudo parecia novo,
e feito pelas mãos de um deus risonho.
Era como se eu nascesse naquele dia...
(ANDRADE, 2012, p. 28)
Nessa atmosfera de positividade e claridade, palavras como “alegria”, “felizes”,
“risonho”, “luz”, “floriam” e “manhã” ajudam a compor um cenário diferente do anterior,
na medida em que a apatia dá lugar ao aproveitamento de sensações exteriores. Assim,
de forma simbólica, o sujeito poético compartilha com o leitor as consequências trazidas
pela mudança de um estado de alheamento quase parnasiano para uma postura de contato
direto com a matéria da vida. Por isso, parecendo organizar os versos em uma lógica de
causa e efeito, tem-se a construção da imagem de um indivíduo que, por sentir a areia
tocar os pés, por receber a claridade de um sol forte e risonho – obra de um Deus tão
sorridente quanto – e por ser embriagado por essa luz, recolhe nas veias a beleza da vida.
É interessante apontar que todos os elementos responsáveis pelo êxtase do eu
lírico são figuras banais e simples de seu cotidiano, o que aproxima o poema de tantos
outros da vertente penumbrista que partiram da observação da paisagem e do contato com
os elementos que a constituem para promover a explosão da sentimentalidade do sujeito
54
poético. Marcado por uma trajetória literária que quase sempre deixou transparecer uma
procura incansável pelo segredo da máquina do mundo, ao menos em sua fase jovem e
crepuscular, Drummond parecia ter enxergado na simplicidade do cotidiano a solução
para esse mistério.
Ainda sobre esse poema, se não é possível apontar com precisão se a falta de
especificidade do local em que se encontra o eu lírico foi proposital (ele está numa praia?
Numa ilha? Num campo? Num jardim?), a repetição do primeiro e do último versos em
cada estrofe não deixa dúvidas de que Drummond teve como inspiração a estratégia
penumbrista de replicar palavras, expressões e até mesmo versos inteiros em busca de
efeitos rítmicos e sonoros ao poema. As reticências também aparecem aqui e em quase
todas as outras composições do livro como uma ressonância impregnada dessa estética
na poesia inicial do itabirano. Elas apontam para uma forma de materialização, na folha
de papel, da presença de não-ditos e hesitações, traços que ganharam bastante relevo na
lírica desse momento literário brasileiro.
Também é interessante notar como a simbologia genesíaca aparece no poema de
forma positiva, na medida em que todo o cenário pressupõe uma atmosfera de
positividade, de claridade e de felicidade. O êxtase que vem do contato com esse ambiente
culmina na sensação de um novo nascimento do eu lírico, como se sua vida pudesse ser
dividida em dois momentos num fracionamento antes simbólico do que de fato
cronológico: a vida antes e depois de se lançar à matéria in natura do cotidiano.
Fato curioso é que, pouco tempo depois, a imagem do nascimento para Drummond
será marcada pelas figuras do gauche, do torto e do obscuro. Assim, em Alguma poesia,
o antológico “Poema de sete faces” marca o início de um importante tópico na obra do
itabirano: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida” (ANDRADE, 2013, p. 11), retomando o viés genesíaco pela sua
versão mais sombria e desestruturante.
Em paralelo aos poucos poemas, em Os 25 poemas, que têm como cenário
ambientes extremamente iluminados, há um expressivo número de composições que
exploram a penumbra e o crepúsculo seja de forma doce, triste ou melancólica. Nessa
perspectiva, a matéria poética penumbrista que se firma no gosto pela meia-luz e pelo
meio-tom se faz presente em poemas como “Quase noturno, em voz baixa”:
Tuas mãos envelhecem,
na prata fosca do silêncio.
55
O silêncio, pelo crepúsculo,
é um arminho
onde as mãos repousam com doçura.
Tuas mãos, no silêncio,
pelo crepúsculo, são mais finas
e mais leves.
O silêncio, o doce silêncio,
vestiu de cinza transparente
as tuas mãos, pelo crepúsculo.
(ANDRADE, 2012, p. 34)
Segundo Norma Goldstein (1983), como já apontado anteriormente, o
Penumbrismo brasileiro foi marcado por um processo de atenuação que se deu de várias
formas: psicológica, sensorial, sintática, rítmica e temática (GOLDSTEIN, 1983, p. 10).
A que nos interessa aqui, pelo fato de o poema ser de ordem extremamente descritiva, é
a captação sensorial atenuada pela imagem do crepúsculo e do meio-tom, características
que, inclusive, o próprio título do poema explicita antes mesmo da leitura dos versos.
Assim, ao dirigir a sua exclusiva atenção aos efeitos da penumbra em mãos que
lhe interessam, intensificando-os com uma repetição doce e suave ao longo dos versos, o
eu lírico se envereda pelos caminhos da evasão da realidade de seu espaço-tempo, de tal
forma que a duração do momento é sentida, única e exclusivamente, pela observação da
metamorfose por que passam as mãos ao entrar em contato com os resquícios de
luminosidade presentes no dia que termina.
Essa atitude intimista que valoriza, na construção das cenas poéticas, as sensações
particulares do eu lírico, como o interesse em fixar a sua atenção no efeito da penumbra
nas mãos ou no contato com os elementos mais banais do cotidiano visto no poema
anterior, coloca em segundo plano a preocupação com a realidade sociopolítica em que o
poeta está inserido. Não é à toa que Mário de Andrade, nas correspondências trocadas,
levou à exaustão o pedido por um maior engajamento de Drummond nas questões
referentes ao país, uma vez que, numa espécie de meia-descida do Parnaso, o itabirano
ainda se encontrava num ponto indefinido entre o total distanciamento parnasiano e o
contato com a vida presente – este último materializado pelo uso da matéria cotidiana nos
poemas do início da década de 1920.
Conforme apontou Goldstein (1983), o alheamento na literatura brasileira do
período em questão tinha como base a descrença no mundo capitalista, sendo, portanto,
“a reação ao predomínio das coisas sobre o homem: refreada no homem comum, ela
aparece no plano poético sob a forma de fuga doentia, de refúgio no campo, de evocação
56
da infância, (...) de desejo de repouso e abandono, de alheamento” (GOLDSTEIN, 1983,
p. 6).
Em “Ainda um noturno”, poema seguinte a “Quase noturno, em voz baixa”, a
penumbra dá lugar à imensa escuridão da noite em versos que potencializam a postura
passiva de observação da paisagem. Se lidos em continuidade, conforme sugerem as suas
posições no datiloscrito, os poemas aparentam formar uma sequência imagética: se antes
a chegada da noite era sentida pelos efeitos da diminuição da luminosidade no poente do
dia, agora o eu lírico e talvez a pessoa a quem pertence a mão descrita entregam-se ao
aproveitamento da total escuridão:
Uma estrela brilha no alto, indiferente.
Os grilos cantam na relva, maliciosos.
Vê como somos pequenos dentro da noite imensa,
debruçados à janela que dá para o quintal!
Vê como somos pequenos...
E abraça-me com mais força. Calados. Nenhum verso entre nós.
Longe, o veneno da poesia. Vê como somos pequenos...
Como nos despreza aquela estrela, no alto, indiferente,
única estrela no céu de verão!
E como somos humildes, e como os grilos são maliciosos.
(ANDRADE, 2012, p. 36)
Recorrentes nesse livro, as figuras da indiferença e do desprezo retornam a esse
poema possivelmente devido à pequenez e à humildade humana frente à grandiosidade
de elementos naturais, como a única estrela no céu de verão apontada pelo sujeito poético.
A colocação do homem em posição inferior a esses elementos, como faz Ribeiro Couto,
por exemplo, a partir da supervalorização de efeitos climáticos como a chuva, é frisada
no poema de Drummond pela tripla repetição da expressão “vê como somos pequenos”.
Dessa forma, esses componentes da vida, tão esquecidos em alguns momentos anteriores
da poesia brasileira, voltam à cena com um papel de destaque; daí a insistência pelo
quintal e pelo jardim, colocados, quase sempre, em um quadro simbólico de observação
que é a moldura da janela.
Como bem observou Secchin (2012), em referência a uma expressão presente no
7º verso desse poema, faltava o “veneno da poesia” drummondiana ao datiloscrito de
57
1924 (SECCHIN, 2012, p. 37), sobretudo porque a acomodação do sujeito poético diante
da cena que observa criava uma atmosfera anestésica a essa poesia inicial.
Aparentemente, quando em comparação a poemas reunidos em O Jardim das
Confidências, o jovem Drummond parece não ter conseguido obter o mesmo êxito que
Ribeiro Couto, que, do grupo penumbrista, foi mestre em tirar da contemplação da
paisagem as mais profundas sensações do “eu”.
Fato semelhante ocorre em “Uma lâmpada brilha...”, poema em que Drummond
trabalha um acontecimento banal numa noite qualquer, mas sem dar vazão a qualquer
necessidade íntima de quem fala:
Uma lâmpada brilha, como um olho triste, na rua pobre.
Destinos humildes!
Destino de lâmpada solitária,
a um canto da rua, entre árvores cansadas
e pedras sonolentas.
Pelos muros onde não há cartazes,
tapeçarias de aranhas pacientes
cobrem velhos desenhos
de corações acorrentados.
Um homem que passa, dentro de um capote
(faz frio, na noite lenta),
olha a rua e murmura:
- É curioso...
Aquela casa, como envelheceu!
(A casa onde morava Carolina.)
E a lâmpada olha tudo, indiferente.
Ah! o abandono dessa lâmpada!
O abandono desse olho imoto, amarelo,
brilhando sem desejo,
sozinho,
no alto do poste fino e lírico!
(ANDRADE, 2012, p. 72-75)
É interessante notar, em um primeiro momento, como, em contraposição à luz da
manhã, esse poema, que se passa numa noite lenta e fria, carrega um campo semântico de
negatividade. O olhar negativo atribuído à noite, como se a melancolia e a tristeza fossem
intensificadas com o fim do dia, persegue o datiloscrito e encontra porto seguro em muitos
outros poemas da obra. Corroborando esse tópico, “sonolentas”, “cansadas”, “solitárias”,
“triste”, “acorrentados”, “sem desejo”, “abandono” e “sozinho” preenchem o poema com
58
um tom pessimista, muito distante da alegria vista e sentida pelo sujeito poético em “A
beleza da vida na alegria da manhã”.
De igual forma, também se repetem as imagens dos arrabaldes, da humildade, do
desdém e da indiferença: na rua pobre, uma lâmpada solitária, triste e indiferente observa
o marasmo de uma noite que demora a passar. A atmosfera melancólica fica ainda mais
acentuada pelo tom de murmúrio vindo da única ação humana presente no poema, cuja
fala é suspensa, sem nenhuma surpresa, pelo uso de reticências: “Um homem passa,/
dentro de um capote/ (faz frio, na noite lenta),/ olha a rua e murmura:/ – É curioso...”
(ANDRADE, 2012, p. 72).
A opção penumbrista de elevar à condição de tema nobre a matéria banal e sem
idealização do cotidiano é marcada aqui com uma curiosa adjetivação feita pelo poeta
para qualificar o poste da rua. Chamando-o de “lírico”, Drummond reafirma, assim como
foi feito tantas vezes por Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, a capacidade de criar
poesia a partir de um elemento cotidiano.
Além disso, nota-se, também, uma tentativa – apontada, inclusive, pelo próprio
poeta nos comentários adicionados em 1937 – de vincular sua poesia ainda mais a esse
cotidiano, a partir do uso de substantivos femininos próprios, como é o caso de
“Carolina”, colocado em um comentário isolado por parênteses na 4ª estrofe. Vale dizer
que esse recurso não abandonará o poeta, basta nos lembrarmos de “Quadrilha”, em
Alguma poesia: Teresa, Maria e Lili compõem uma histórica irônica de amor típica de
uma vida provinciana.
Em “Minha tristeza de porcelana”, intrigante poema em que Drummond
personifica o sentimento e o vislumbra em um corpo feminino, temos a prova cabal de
que, embora haja momentos de alegria no livro, é à tristeza que o poeta se entrega
inteiramente:
Minha funda tristeza, minha tristeza
de todos os momentos,
dize:
queres cear comigo?
Hoje estás tão esquiva e tão vulgar,
tão cotidiana, tão humana,
minha pobre tristeza.
Ouve: quero beijar-te
toda; beijar-te dos pés à cabeça,
doidamente, num arrepio.
E possuir o teu pequenino corpo,
teu frágil e pequenino corpo,
onde se esconde uma alma tiritante de frio.
59
Minha tristeza de porcelana,
és como um vaso chinês, onde floresce, longo,
o lírio artificial da minha dor.
Se alguém te esfacelasse,
dize:
se alguém, um pobre alguém, te apertasse entre os dedos,
e eu te perdesse,
que seria de mim?
Não tenho o luxo dos prazeres ricos,
não tenho o dinheiro que é preciso
para vestir a minha alma um pijama de seda
com que ela passearia o seu tédio na alameda
vazia e branca da minha vida.
Vê: eu só tenho dois olhos
para te olhar, minha tristeza;
só tenho uma boca
para te beijar, minha tristeza;
só tenho duas mãos
para apertar as tuas mãos.
(ANDRADE, 2012, p. 96-98)
Ao transformar a tristeza em algo corpóreo, palpável, o poeta sai do nível abstrato
para o concreto a fim de se conectar a esse sentimento da forma mais humana possível.
Daí a sugestão do envolvimento carnal, num desejo quase incontrolável de não só sentir
essa tristeza, como também de possuí-la: “E possuir o teu pequenino corpo,/ teu frágil e
pequenino corpo,/ onde se esconde uma alma tiritante de frio” (ANDRADE, 2012, p. 96).
A relação sexual com vistas a unir o sujeito poético à sua tristeza, entretanto, não
seria necessária, uma vez que a esse estado de alma já pertence o eu lírico, de tal forma
que os dois são como um só: “se alguém, um pobre alguém, te apertasse entre os dedos,/
e eu te perdesse,/ que seria de mim?” (ANDRADE, 2012, p. 98). Os tópicos do vazio, da
humildade e da pobreza ressurgem ligados à essência do sujeito poético, admitindo viver
em função da tristeza e não precisar de mais nada além dela mesma.
O uso da matéria poética calcada na alegria e na melancolia ainda ronda os versos
de outros poemas, como “Vê como a água sussurra”, “Como se eu fosse um poeta
resignado”, “Gravado numa parede” e “Na tarde cheia de doçura...”. Nesse último, ao
tratar da rotina de uma menina que perdeu o pai num desastre de trem, o poeta parece
ratificar, por meio da sentença a respeito do destino da garota, a soberania da tristeza em
relação à alegria em um livro cujo título tentou, a princípio, fazer crer que ambos os
sentimentos estariam em igual proporção:
(...)
Pobrezinha
60
da menina que perdeu o pai num desastre de trens,
e vestiu o corpinho tenro com um luto triste,
que vive sonhando com fadas, alegrias e bens,
que vive sonhando, com um semblante triste,
as míseras alegrias
de uma felicidade que não virá.
(ANDRADE, 2012, p. 60)
Nessa perspectiva, colocar em relevo alguns dos poemas de Os 25 poemas da
triste alegria evidencia, portanto, um protagonismo de temas “menores”, banais,
esquecidos por momentos anteriores da literatura brasileira, que foi, sobretudo, motivado
pela influência da estética da penumbra sobre Drummond. Daí a presença dos dois
grandes pilares que sustentam, junto ao elemento noturno, a poesia crepuscular
drummondiana: a atitude passiva no que tange à existência e à observação da paisagem e
o uso da matéria do cotidiano e do fato banal como alicerce da construção poética. Esse
primeiro caminho por que andou o jovem Drummond fez com que o material de Os 25
poemas fosse extremamente inferior ao restante de sua poesia, não pela escolha desse
conteúdo, mas pelo fato de o poeta aparentemente não ter percebido, a essa época, que os
elementos mais substanciais e de permanência da sua poesia precisavam considerar as
palavras para além de seu “estado de dicionário”, ultrapassando a camada mais aparente
de neutralidade.
61
3. MAIS DO QUE UMA ESTÉTICA, UM ESTADO DE ESPÍRITO
Como parte importante da pesquisa, que pretende discutir as reelaborações
poéticas de Drummond na década de 1920, este capítulo tem por objetivo analisar o
projeto estético-ideológico do Modernismo de 1922 a partir de textos teóricos e críticos.
Por ser um momento da escrita mais voltado ao movimento em si, não focaremos na
relação que o poeta mineiro manteve com o Modernismo – assunto que será explorado
no capítulo seguinte.
Substancial para a revolução não só da literatura, mas da arte brasileira como um
todo, o Modernismo é, sem dúvida, o maior movimento do século XX e seus ideais, ainda
que ressignificados, continuam influenciando nossas letras e artes plásticas no milênio
em que vivemos. Das três significativas e singulares facetas que assumiu, importa-nos
nesta dissertação aquela que os materiais didáticos e uma boa parte da crítica chamam de
primeira fase – ou fase heroica –, recebendo a Semana de Arte Moderna de 1922 a alcunha
de ponto de partida oficial desse primeiro momento do Modernismo no Brasil.
Insatisfeitos com o cenário intelectual brasileiro da época e desejando uma
atualização da mente artística, a fim de que fosse criado algo novo e definitivamente
nosso, artistas e escritores que se envolveram com o movimento modernista nessa
primeira fase tiveram de lidar com a recusa de uma boa parte dos intelectuais paulistas e
também do público, setores que ainda mantinham gosto pelo academismo e por um
panorama cultural mais voltado aos padrões clássicos dos beletristas e parnasianos. Na
disputa por um espaço nesse ambiente um tanto avesso às modernidades, escolheram os
modernistas caminhar pela trilha do choque e a Semana foi o ápice desse caminho
tomado.
Longe de serem um fato isolado, entretanto, esses famosos dias de fevereiro de
1922 surgiram a reboque de uma série de outros eventos e escritores que direta ou
indiretamente também foram, antes da Semana, cruciais para a solidificação desse
primeiro Modernismo. Comumente chamado de “Pré-Modernismo”, esse ponto anterior
à explosão do movimento no Teatro Municipal de São Paulo deve ser analisado pelo que
esse período realmente foi: um momento de tensionamento artístico.
Portanto, além de analisar o projeto estético-ideológico proposto pelos
modernistas de 1922, este capítulo tem ainda a intenção de discutir as bases desse
movimento, colocando em evidência o Pré-Modernismo enquanto nomenclatura e
momento cronológico e artístico.
62
3.1 Pré-Modernismo: uma nomenclatura, vários tensionamentos
Segundo a crítica literária, o termo “Pré-Modernismo” foi primeiramente definido
pelo escritor Tristão de Ataíde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima), em 1939, no
primeiro volume de seu livro Contribuição à história do modernismo, no qual o crítico
retoma a análise do momento anterior à Semana de Arte Moderna de 1922. Nesse estudo,
Ataíde restringe o período do Pré-Modernismo como o momento entre 1916 e 1920 em
que havia “uma ansiedade de renovação intelectual, que alguns anos mais tarde
redundaria no movimento modernista” (ATAÍDE, 1939, p. 7).
Curiosamente, anos mais tarde, Ataíde concederia ao Pré-Modernismo uma outra
delimitação cronológica. Em um texto intitulado “Pressentimentos”30, publicado no
Jornal do Brasil, em 11 de abril de 1975, o crítico expandiu a sua primeira visão desse
período ao afirmar que os 25 primeiros anos do século XX “foram o prolongamento pré-
modernista do último quartel do século XIX” (ATAÍDE, 1975, p.7), incluindo,
claramente, nesse recorte temporal, as produções do fim da década de 1890, além de
ultrapassar em três anos os acontecimentos da Semana. Ainda que o foco do texto da
década de 1970 seja sobre os pressentimentos do autor a respeito do que estava sendo
produzido após a “Geração de 45”, o trabalho no artigo com os sentidos de “geração” e
de “gestação” confirmou o que era o momento do Pré-Modernismo para Ataíde: uma fase
gestacional da “Geração de 22”.
A atualização feita por Ataíde, nesse curto espaço de tempo, do que ele
considerava ser o período do Pré-Modernismo apenas corrobora a dificuldade da crítica
em determinar com precisão não só o recorte cronológico desse momento, mas também
as atitudes estéticas que ajudaram a definir esse recorte como um período crucial para a
solidificação do Modernismo. Isso fica claro ao analisarmos diferentes estudos sobre esse
período realizados por grandes nomes da crítica literária, como Alfredo Bosi e Antonio
Candido, que apresentam opiniões que se assemelham e também que divergem umas das
outras a respeito dos autores que devem ser considerados pré-modernistas e suas
respectivas justificativas.
O Pré-Modernismo aparece-nos, então, como um complexo tópico dos estudos
literários, sobretudo pelas divergências quanto ao seu recorte temporal e estético, o que
gera, consequentemente, ressalvas à utilização dessa terminologia. Antes de colocarmos
30 Ver anexo H.
63
em relevo as controvérsias da nomenclatura criada por Tristão de Ataíde, cabe comparar
alguns estudos realizados sobre esse momento do nosso panorama cultural, como o
elaborado por Antonio Candido (1976) em artigo sobre a literatura e a cultura brasileira
dos anos 1900 a 1945.
Tendo como referencial o ano de 1950, quando redige esse artigo, Candido
apresenta aos leitores uma divisão da literatura brasileira no século XX em três fases:
1900-1922, 1922-1945 e 1945-x (CANDIDO, 1976, p. 112). Sem mencionar o termo
“Pré-Modernismo”, mas afirmando que o Modernismo recuperou, em forma de ruptura,
certos temas e atitudes estéticas presentes nessa primeira etapa da nossa literatura no
milênio passado, é possível compreender que o crítico entende como momento crucial
anterior ao movimento modernista a fase 1900-1922, cujas tensões ajudaram a fomentar
o desejo de uma renovação artística.
Esse anseio por renovação se deve, sobretudo, à condição de “literatura de
permanência” que Candido atribui às produções literárias dessa primeira fase do século
XX, porque a grande maioria apenas conservava as características desenvolvidas após o
Romantismo. Alastrava-se pela Academia e permanecia no gosto de uma boa parte do
público leitor, portanto, “uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião, nem
abismos” (CANDIDO, 1976, p. 113), encarcerada nas suas limitações e com grande
apego pelo academismo, tornando-se, posteriormente, um dos maiores contrapontos dos
modernistas de 1922.
Passeando pelas dissidências do Parnasianismo e do Simbolismo, pelo surgimento
do “naturalismo acadêmico” e do conto sertanejo pitoresco, Candido deixa claro que
considera como pouco expressivo esse início de novo século da literatura em relação às
décadas subsequentes, principalmente a de 1920, quando o crítico afirma que os rumos
das nossas letras foram alterados de forma significativa (CANDIDO, 1976, p. 112).
Ainda assim, assemelhando-se à perspectiva de Ataíde em sua primeira definição
de Pré-modernismo, isto é, em 1939, Candido também reconhece que o pós-Primeira
Guerra Mundial ajudou a esboçar um “fermento de renovação literária” (CANDIDO,
1976, p. 117). Esse movimento chegou ao país e se materializou na elaboração de uma
tendência lírica voltada ao intimismo e ao cotidiano, no plano temático, e a um flerte com
o verso livre, no plano estrutural.
Encaixa-se nesse esboço de novos ventos literários o Penumbrismo, embora
Candido considere a poesia penumbrista ainda muito presa a um idealismo simbolista,
com certo academismo e pouco vigor para irromper num cenário sociocultural que,
64
inevitavelmente, ia sentindo a força das transformações culturais e políticas da
modernidade, conforme os anos avançassem no novo século. No entanto, situado em um
momento de transição entre o Simbolismo e o Modernismo, é possível dizer que o
Penumbrismo brasileiro prenunciou, de certa forma, no plano estrutural e também no
temático, alguns valores apreciados pelos modernistas em sua primeira fase, como
Goldstein (1983) e Octavio Filho (1970) endossaram em seus estudos sobre essa fase.
Como já mencionado no primeiro capítulo desta dissertação, os penumbristas
materializaram em suas poesias a necessidade, sobretudo no momento de pós-Guerra, de
uma maior adequação da literatura aos rumos contemporâneos culturais e políticos, o que
ficou claro pelo ensaio do verso livre – embora ainda presos a uma certa tradição formal
–, pelo retorno do “eu” numa lírica intimista e pela inserção de elementos do cotidiano
em seus versos, transformando o dia a dia em material poético. Obviamente, a escolha
por essa estética insurgiu contra o trabalho que os parnasianos faziam de lapidação de
seus versos, fato que transformou os penumbristas em um conjunto, ainda que tímido, de
escritores com uma certa ânsia de dissolver alguns paradigmas incrustados na literatura
brasileira.
A despeito da ainda resistente dose de conservadorismo na escrita e do alheamento
à realidade política e social do país, o Penumbrismo iniciou a descida da torre de marfim
onde estavam trancafiados os parnasianos e respirou lá embaixo os ares das mudanças do
novo século, sintomatizando uma renovação estética na medida em que esboçaram
atitudes poéticas que seriam, posteriormente, o âmago da primeira fase do movimento
modernista. Não é à toa que Goldstein (1983) considera essa tentativa de inovação como
um prenúncio para a revolução que os modernistas de 1922 empregariam em nossa
literatura, caracterizando o Penumbrismo como uma “típica poesia de transição,
ocupando importante faixa do leque que se abrirá com a poética do Modernismo”
(GOLDSTEIN, 1983, p. 13).
A ideia de concebermos a produção penumbrista como uma espécie de degrau
para o alçamento de uma poesia modernista faz com que certos entrelaçamentos sejam
estabelecidos entre as duas estéticas. O trabalho com a matéria do cotidiano foi elevado
ao nível máximo de aproveitamento quando os modernistas, na intenção de produzir uma
literatura mais próxima à realidade do povo brasileiro e mais fiel às transformações da
modernidade, concederam protagonismo a temas considerados banais e aos personagens
característicos da vida moderna, como os operários, as fábricas, os automóveis.
65
Ainda no plano temático, o resgate ao “eu” esquecido pela poesia fechada nela
mesma dos parnasianos é outra atitude intentada pelos penumbristas e solidificada pelos
modernistas. A partir de 1922, o intimismo vira consciência político-ideológica, ora
coletiva, ora individual, na mão de escritores como Oswald de Andrade, que fez da poesia
lugar de resgate às origens brasileiras, de crítica à colonização portuguesa e de expressão
do estilo de vida da sociedade burguesa paulista da época.
No plano estrutural, o ensaio de uma liberação métrica a partir da quebra rítmica
dos versos, vista na poesia de penumbra, ajudou a concretizar a liberdade como um dos
principais ideais estéticos desse primeiro momento do Modernismo, em que não ter regra
era de fato a única regra que os modernistas pareciam seguir. O Penumbrismo, desse
modo, faz jus à característica gestacional de uma nova era atribuída ao Pré-Modernismo,
principalmente porque está inserido em um momento de transição entre duas escolas, isto
é, entre o Simbolismo e o Modernismo. Pelas palavras de Rodrigo Octavio Filho (1970),
As épocas de transição são geradoras daqueles que virão, um pouco
mais tarde, realizar o movimento destruidor e revolucionário, em cuja
base de renovação se aglutinam elementos que por vezes figuraram em
escolas anteriores. E a história se repete: concretizada a revolução em
normas, princípios, gostos e tendências diferentes, os paredros da nova
ordem literária espantam-se com a renovação que provocaram,
deslembrados do que fizeram e pregaram pouco tempo antes. (...) A
verdade é que de longa data vinha a literatura brasileira à procura de um
sentido novo, através do claro-escuro de uma época de transição, de
uma época de incertezas, como são, na vida literária, os períodos
intermediários entre duas escolas (OCTAVIO FILHO, 1970, p. 68-69,
grifos do autor).
Vale ressaltar, por fim, que diversos escritores que se alinharam de certa forma à
estética do Penumbrismo também se envolveram, direta ou indiretamente, na Semana de
Arte Moderna, aderindo, cada um a seu modo, ao projeto modernista encabeçado por
Oswald e Mário, como Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira.
O mais conservador dos três, Ronald de Carvalho teve importante participação na Semana
ao ler o poema “Os Sapos”, de Bandeira, marcando o confronto entre modernistas e
parnasianos sobre o qual falaremos melhor adiante.
Já Bandeira, que só aderiria completamente à estética de 1922 com a publicação
de Libertinagem31, em 1930, mas teve papel fundamental antes, durante e após a
“explosão” modernista na Semana, estreou no campo da poesia com A cinza das horas,
31 Em 1919, Bandeira flerta com a poesia moderna com a publicação de Carnaval, livro em que ficou claro
o seu gosto pela liberdade formal.
66
em 1917, livro marcadamente penumbrista. Isso fica muito claro logo pela leitura do
poema que abre a obra, intitulado “Epígrafe”, em que o eu lírico relata uma série de
episódios ruins que aconteceram em sua vida, num intimismo típico da poesia de
penumbra, muito mais melancolicamente resignado com as cinzas frias que sobraram de
uma vida que um dia foi feliz do que de fato revoltado com a situação. A atitude de pensar
sobre a vida a partir de uma percepção melancólica da existência, apostando em
ambientes, situações e sensações que permanecem sempre na paleta da penumbra e do
escuro, insere não só esse poema, mas também a grande maioria desse livro no cosmo
crepuscular dessa literatura que pode ser considerada pré-modernista.
Todas essas conexões, portanto, corroboram a legitimidade do Penumbrismo
como uma atitude poética, porque não escola, cujos valores estéticos caminhavam, nesse
período de transição, para os ideais aperfeiçoados, explorados e desenvolvidos pelo
Modernismo de 1922. Ainda assim, há autores que, ao realizarem ensaios sobre o Pré-
Modernismo, sequer mencionam o Penumbrismo como parte dessa literatura
antecipatória, como é o caso de Alfredo Bosi, em capítulo destinado à produção pré-
modernista em História Concisa da Literatura Brasileira (2003).
É provável que essa atitude se explique pela forma como o crítico define esse
período: “creio que se pode chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos
temas vivos em 22) tudo o que, nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa
realidade social e cultural” (BOSI, 2003, p. 306, grifos do autor). Como os penumbristas
se voltaram a uma poesia intimista de contemplação melancólica da vida sem se
coadunarem aos discursos que tematizavam as tensões sociopolíticas da época, a sua
ausência nesse estudo de Bosi torna-se, se não muito compreensível, no mínimo
justificável.
A partir desse recorte temático, o crítico e ensaísta concedeu a Euclides da Cunha,
Lima Barreto e Graça Aranha32 o papel de protagonistas dessa literatura prenunciativa da
revolução estética de 1922, encarando-os como os principais personagens do Pré-
Modernismo brasileiro. Isso se deve ao fato de que em seus textos havia o trabalho com
temas “modernos”, o que ia de encontro à literatura que vinha sendo feita no início do
século XX pelos dissidentes do Parnasianismo e do Simbolismo.
32 Em certos momentos de seu estudo, Bosi (2003) fala de Monteiro Lobato como um escritor que, em
relação à questão do nacionalismo mais crítico, antecipou esse ideal modernista. Ainda assim, Bosi ratifica
que existe uma contradição “moderno-antimodernista” (BOSI, 2003, p. 333) quando falamos na produção
literária e crítica de Lobato, o que não o qualifica efetivamente como um pré-modernista se comparada a
sua atuação, no início do século XX, à de Graça Aranha, Lima Barreto e Euclides da Cunha.
67
Desse modo, no entendimento de Bosi (2003) a respeito desse período, pareciam
existir dois grupos distintos e conflitantes: de um lado, aqueles que se alinhavam aos
valores clássicos; de outro, os que criticavam o academismo e se aprofundavam na
realidade sociopolítica brasileira. Por isso, afirma o crítico,
Parece justo deslocar a posição desses escritores: do período realista,
em que nasceram e se formaram, para o momento anterior ao
Modernismo. Este, visto apenas como estouro futurista e surrealista,
nada lhes deve (nem sequer a Graça Aranha, a crer nos testemunhos
dos homens da “Semana”); mas, considerado na sua totalidade,
enquanto crítica ao Brasil arcaico, negação de todo academismo e
ruptura com a República Velha, desenvolve a problemática daqueles,
como o fará, ainda mais exemplarmente, a literatura dos anos de 30
(BOSI, 2003, p. 307, grifos do autor).
A adição de uma curta reflexão a respeito das diferenças entre os termos
“modernista” e “moderno” nesse estudo facilita a compreensão do motivo pelo qual esses
autores configuram um conjunto pré-modernista para o crítico. Bosi afirma que, enquanto
o primeiro termo “veio a caracterizar, cada vez mais intensamente, um código novo,
diferente dos códigos parnasiano e simbolista” (BOSI, 2003, p. 331, grifos do autor), o
segundo relaciona-se também aos temas e mitos modernos, como se, respectivamente, as
expressões se referissem a código e tema.
Nessa linha de raciocínio, se entendêssemos o Modernismo apenas como ruptura
total com os códigos anteriores, não poderíamos afirmar que houve escritores pré-
modernistas. Em contrapartida, enxergando esse movimento não só como possibilidade
de inovação formal, mas também como aproximação à realidade nacional e crítica aos
valores clássicos, conclui Bosi que “houve, no primeiro vintênio, exemplos probantes de
inconformismo cultural” (BOSI, 2003, p. 332). Assim, a despeito de Graça Aranha, que
passou do cosmo do moderno para o universo do Modernismo, encabeçar questões e
temas modernos não necessariamente vincula um escritor à esfera modernista.
Na antecipação de alguns elementos estéticos e temáticos explorados pelo
Modernismo de 1922, pode-se dizer, então, de forma bastante sucinta, que é moderno em
Euclides da Cunha, Lima Barreto e Graça Aranha, respectivamente, a vontade de
conhecer melhor a vida do homem e a sua relação com a terra; o estilo de escrita mais
natural e menos engessado, além da crítica à República Velha; e o espírito nacionalista
que fomentava uma percepção crítica dos problemas brasileiros.
Desse modo, Os Sertões, 1902, Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1915, e
Canaã, 1902, figuram entre os principais romances pré-modernistas se adotada a
68
perspectiva de Bosi (2003), evidenciando que a prosa desse período, para o crítico,
caminhava para o Modernismo a passos mais largos que a poesia.
Acerca do Pré-Modernismo enquanto nomenclatura, há um outro estudo de Bosi,
denominado A literatura brasileira – o Pré-Modernismo (1973), que mais nos interessa.
Isso porque nessa obra o crítico chama atenção para duas importantes e distintas acepções
que podem ser atribuídas ao prefixo “pré-”, cujos sentidos interferem diretamente no que
podemos entender ou não como literatura pré-modernista. Bosi, então, põe lado a lado o
“pré” enquanto momento puramente cronológico, isto é, anterior ao Modernismo, em que
também estão produzindo escritores passadistas, e o “pré” enquanto esfera estética,
consolidando um momento de antecipação de valores formais e temáticos caros aos
modernistas de 1922.
Essa análise de Alfredo Bosi (1973) evidencia ainda mais a fragilidade do termo
“pré-modernista” e a imprecisão que o prefixo “pré-” pode suscitar aos estudos literários.
Sob esse viés, tomando o Pré-Modernismo como período estritamente cronológico,
seriam considerados pré-modernistas os que produziam no momento anterior à Semana
de Arte Moderna de 1922, incluindo aqueles que sequer possuíam relação com os valores
apregoados pelos modernistas dessa primeira fase.
Em contrapartida, pelo olhar estético e psicológico, o Pré-Modernismo é antes
uma atitude artística e sociopolítica do que período temporal, sendo, portanto, pré-
modernistas aqueles que se afastaram, de alguma forma, das tradições que vinham sendo
mantidas desde o fim do século XIX, antecipando, seja estrutural, temática ou
politicamente, a renovação do panorama cultural proposta pelo Modernismo. Por isso,
parece-nos mais apropriado compreender o Pré-Modernismo como um comportamento,
um modo de atuação, tencionado por alguns artistas e escritores, que ajudou a aclimatar,
aos poucos, a elite intelectual, sobretudo a paulista, em relação aos novos ventos artísticos
trazidos com a chegada daquele novo milênio.
Se mantida a qualidade de período, o Pré-Modernismo deve ser analisado como
momento heterogêneo, de difícil e impreciso recorte temporal, em que artistas e escritores
de diversos estilos e escolas disputavam por espaço e pelo gosto do público e da crítica.
Enquanto uns permaneciam presos aos valores clássicos, outros já prenunciavam, cada
um a seu modo, a reviravolta que a literatura e as artes brasileiras sofreriam logo na
segunda década do século.
Essa percepção nos leva a crer que os escritores desse momento não devem ser
analisados em conjunto, sob risco de não diferenciarmos suas intenções estéticas ou de
69
não identificarmos corretamente aqueles que contribuíram realmente para o caráter
gestacional de uma nova escola, aspecto que podemos atribuir à ideia de Pré-
Modernismo, como é o caso de certos penumbristas. Avaliando individualmente, o Pré-
Modernismo – atitude artística ou período de transição – torna-se menos impreciso e mais
fiel ao que realmente foi.
Tanto Bosi (2003) quanto Candido (1976), apesar de reconhecerem que existem
grandes nomes que produziram no momento que chamam de Pré-Modernismo, afirmam
que as produções literárias do início do século XX até 1922 foram pouco inovadoras.
Talvez seja por causa desse tímido potencial inventivo que o movimento mais notório do
século – o Modernismo – integre a nomenclatura comumente dada ao período anterior à
Semana de Arte Moderna. Assim, o termo “Pré-Modernismo” parece seguir a lógica das
siglas a.C. e d.C.: o acontecimento principal vira parâmetro para o que veio antes ou o
que veio depois.
O inconveniente é que a nomenclatura “Pré-Modernismo” rendeu um certo
conforto à crítica literária, que, em sua grande maioria, resume os acontecimentos
artísticos e literários do início do século como aquilo que antecipou o Modernismo ou,
quando muito, um momento de embate entre passadistas e modernos. Essa conduta, que
tende a homogeneizar um momento extremamente heterogêneo e complexo do nosso
panorama cultural, também se estende às escolas e ao ensino de literatura nos livros
didáticos. É perpetuada, desse modo, uma compreensão limitada dessa atitude político-
artística, o que afeta, inclusive, o cânone literário, na medida em que apenas costumam
ser valorizados os autores já conhecidos e endossados pelos grandes nomes da crítica.
3.1.1 Antecedentes da Semana de Arte Moderna
Conforme os anos avançavam no novo século, certos eventos históricos e atitudes
estéticas aliadas a algumas ideologias, como o Futurismo, iam, aos poucos, agitando uma
parcela dos intelectuais brasileiros, o que passou a abalar tanto nosso provincianismo
típico da República Velha quanto a literatura e a arte tradicionais que vinham sendo
produzidas em território nacional. Principalmente à época da Primeira Guerra Mundial,
ressalta Candido (1976), “alguns estímulos da vanguarda artística europeia agiam
também sobre nós: a velocidade, a mecanização crescente da vida nos impressionavam
em virtude do brusco surto industrial de 1914-1918” (CANDIDO, 1976, p. 121),
encaminhando-nos a uma inevitável renovação de valores socioculturais.
70
O país ia se tornando cada vez mais mecanizado, cosmopolita. As grandes capitais
começavam a se acostumar com a presença gradativamente maior de elevadores e de
outras construções típicas da modernidade, como os prédios altos e os bulevares –
inspirações arquitetônicas da vida urbana europeia. O Brasil ansiava se tornar,
implacavelmente, moderno, fato que também acentuaria o anseio por expressões artísticas
que estivessem sincronizadas com o momento vivido no país e no mundo.
São Paulo foi, sem dúvida, o estado que mais sentiu as mudanças desse período
efervescente tanto nas letras e nas artes quanto no contexto sociopolítico. O surto
imigratório e industrial causou um inchaço populacional na capital e a ideologia
comunista, que passou a ser disseminada no Brasil principalmente após a Revolução
Russa em 1917, inspirou a grande greve operária paulista e as reivindicações dessa época
por mais direitos para além do setor trabalhista. Também é do princípio da década de
1910 o aumento da divulgação de ideias futuristas, que valorizavam o novo e rechaçavam
qualquer estima às velhas tradições.
Podemos acrescentar a esse panorama um maior trânsito cultural entre Brasil e
Europa provocado, principalmente, pelas viagens que uma parcela dos intelectuais
paulistas realizava, propagando em território nacional, quando voltavam do continente
europeu, valores da literatura e da arte plástica modernas para desespero e horror dos
apegados ao tradicionalismo, como os parnasianos. Todas essas questões, juntamente a
específicos eventos dos quais falaremos adiante, foram solidificando a necessidade de
uma renovação das nossas letras e artes plásticas, intentada, sobretudo em São Paulo, por
alguns intelectuais que, na chegada da década de 1920, já formavam um grupo mais coeso
com um único objetivo: atualizar nossa produção cultural.
Assim, ao analisarmos essas duas décadas iniciais do século XX, é possível
identificarmos episódios, atitudes e personagens cruciais para que a Semana de Arte
Moderna fosse elaborada, criando uma nova estética artística no país, o Modernismo. A
partir dos apontamentos do mais completo estudo sobre os antecedentes da Semana de
Arte Moderna realizado por Mário da Silva Brito (1978), podemos dizer, então, que
O caminho estava aberto. O desgaste parnasiano, fato notório; o
nacionalismo, que levava o intelectual à sua adequação com o país; a
revigoração cívica, fermentada pela guerra; o mundo novo que se
anunciava através dos novos engenhos – facilitavam a tarefa. (...) O
intelectual vai mudar de posição e acompanhar os rumos novos do seu
mundo, de sua terra e de sua época (BRITO, 1978, p. 94).
71
Entre o esboço de valores modernistas, pintado pelos escritores que a grande
crítica denomina pré-modernistas, e a tumultuada e famosa semana em fevereiro de 1922,
em São Paulo, muitos passos foram trilhados. O início da caminhada efetivamente
determinada em direção à concretização da Semana, todavia, pode ser atribuído a Oswald
de Andrade, sobretudo após o seu retorno da Europa, em 1912, local em que o poeta
entrou em contato com as vanguardas europeias, tornando-se o maior propagador entre
os intelectuais paulistas dos ideais futuristas.
A primeira vez que o termo “futurismo” apareceu na imprensa, entretanto, ainda
é um mistério. Bosi (2003) menciona o artigo do professor Ernesto Bertarelli, intitulado
“As lições do futurismo”, publicado em 12 de julho de 1914 no Estado de S. Paulo, como
aquele que apresenta os “primeiros ecos” (BOSI, 2003, p. 332) dessa intrigante escola na
imprensa brasileira. No entanto, ao buscarmos no acervo da Hemeroteca Digital
Brasileira, do site da Biblioteca Nacional, encontramos registros não só do termo
“futurismo”, como também do próprio manifesto de Marinetti veiculados no Brasil antes
mesmo da volta de Oswald do continente europeu. Um desses artigos tem o título de “O
futurismo”33 e foi publicado no jornal carioca O Paiz, em 29 de setembro de 1909,
assinado por “Pedro Leitor”.
Independentemente da data de “estreia” do termo em território nacional, fato é que
o retorno de Oswald ao país fez com que os ideais futuristas inspirassem a busca por uma
renovação artística, uma vez que estava no bojo do movimento de Marinetti o espírito
transgressor. Do contato com os valores do Futurismo, Oswald tirou, principalmente, o
desejo de uma literatura feita com mais liberdade, como a poesia em verso livre. A
liberdade também seria alcançada pela ruptura com as amarras do academismo, que
impedia que a arte brasileira se modernizasse. Apesar de inspirado em padrões e conceitos
europeus, o escritor ansiava por uma produção artística brasileira de valorização ao
elemento nacional e de resgate às origens do país.
A fundação d’ O Pirralho – revista que circulou em São Paulo entre os anos de
1911 e 1918 – certamente ajudou Oswald nessa empreitada. Suas publicações nessa
revista e no Jornal do Comércio foram importantes para a propagação de valores
futuristas e modernistas, inspirando outros artistas a fazerem o mesmo, como é o caso de
Menotti del Picchia34, por quem Oswald tinha um grande apreço desde a publicação de
33 O início do extenso texto pode ser consultado no anexo I. 34 Também é no ano de 1917 que Menotti del Picchia publica Juca Mulato, livro de poesia aclamado pela
crítica em que Menotti dá voz a um dos grandes valores modernistas: o sentimento de nacionalidade.
72
Moisés, em 1917, “pelos seus sinais de renovação, se bem que vagos e imprecisos”
(BRITO, 1978, p. 81). Assim, por meio do Correio Paulistano, sob o pseudônimo de
Helios, Menotti del Picchia se tornou, principalmente a partir de 1920, um essencial porta-
voz dos vanguardistas e de seus posicionamentos, que ficaram melhor conhecidos durante
a Semana (BRITO, 1978, p. 167).
Não demorou muito para que o termo “futurismo” e todos os princípios a ele
relacionados fossem amplamente disseminados pela imprensa brasileira, em especial a
paulista. Quando os intelectuais que organizariam a Semana se transformaram em um
grupo com uma pauta mais coesa, já em 1920, passaram a receber a alcunha de
“futuristas”, assim como também era chamada de futurista qualquer representação
artística que fugisse aos padrões da arte tradicional (BRITO, 1978, p. 162). Em
depoimento a Mário da Silva Brito (1978), Oswald afirmou que “achava boa a palavra
futurismo, julgava que ela correspondia, nos primeiros instantes do movimento, aos
interesses do grupo” (ANDRADE apud BRITO, 1978, p. 167), apesar de sabermos que,
no início das arregimentações, muitos negavam apreço pela filosofia de Marinetti, como
o próprio Menotti del Picchia.
Antes desse momento em que os intelectuais de tendências modernistas passaram
a se reunir, discutindo, com frequência, as novas estéticas, é preciso voltar a 191735,
período em que os jovens aspiravam à renovação artística, mas ainda de forma muito
dispersa. O evento que iria aproximar esses intelectuais é também, pelas palavras de Bosi
(2003), “o fato cultural mais importante antes da Semana e que serviu de barômetro da
opinião pública paulista em face das novas tendências” (BOSI, 2003, p. 333). Nesse
sentido, a exposição de Anita Malfatti36, em dezembro de 1917, agitou o panorama
cultural paulista com obras que chocaram a crítica.
A partir de experiências no campo das Artes, especialmente de pintores dos
Estados Unidos e da Europa que prezavam pela liberdade do artista e pelo uso
indiscriminado das cores, Anita Malfatti criou uma série de quadros que expôs em São
Paulo a pedido de Di Cavalcanti e Arnaldo Simões Pinto (BRITO, 1978, p. 48). Suas
obras revelavam o caminho que as artes plásticas estavam tomando mundo afora,
transformando-se, com seu evento, na pioneira das artes plásticas modernas do Brasil e
35 Segundo Brito (1978), Oswald e Mário de Andrade também se conheceram nesse ano, em 21 de
novembro (BRITO, 1978, p. 73). 36 Cabe dizer que muitos dos jovens que se envolveriam com a Semana visitaram a exposição de Malfatti e
ficaram encantados com o estilo transgressor e moderno da jovem.
73
também no estopim do Modernismo, uma vez que sua exposição uniu ainda mais os
intelectuais em prol de uma arte e de uma literatura mais atualizadas, o que culminaria,
cinco anos depois, na realização da Semana.
Vale dizer que, na época, uma adversidade surgiu no caminho de Malfatti: tanto a
crítica quanto uma boa parte do público consumidor de arte em São Paulo não estavam
acostumados a quadros que rompiam com preceitos estéticos da época e ficaram chocados
com as obras de influência modernista, pós-impressionista e até mesmo futurista e cubista
de Malfatti. A avaliação mais marcante para a autora e também para a historiografia
literária foi a realizada por Monteiro Lobato, na edição noturna do Estado de S. Paulo,
em 20 de dezembro de 1917, sob o título de “A propósito da exposição Malfatti”, na qual
o escritor ratifica sua visão conservadora e purista da arte. Nesse artigo, Lobato constrói
sua crítica à pintora a partir da distinção de dois tipos de artistas:
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente
as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os
eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções
estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. (...) A outra
espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e
interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de
escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva
(LOBATO, 1917, p. 4)
Não é preciso muito esforço para percebemos que Lobato encaixa Malfatti e suas
obras na segunda espécie de artista, fazendo questão de reforçar ao longo de todo o texto
a extravagância das artes modernas que a pintora estava reproduzindo em seus quadros.
Sem perder o tom rígido, Lobato admite que Malfatti tem talento, mas está cega pelas
novas correntes artísticas, como Cubismo e Expressionismo, que “não passam de outros
tantos ramos da arte caricatural” (LOBATO, 1917, p. 4), cuja única função é “desnortear,
aparvalhar o espectador” (LOBATO, 1917, p. 4).
Como aponta Brito (1978), as duras palavras do escritor afetaram tanto a pintora
a ponto de atrapalhar a sua evolução, na medida em que Malfatti passou a desacreditar de
si mesma – situação que os novos amigos modernos tentaram reverter por meio de apoio
e de artigos que endossavam o valor de sua pintura. Querendo desmantelar o avanço da
arte moderna, Lobato, entretanto, conquistou
o não pretendido nem almejado mérito de congregar, em torno da
pintora escarnecida, o grupo dos modernos. Ao seu lado estão muitos
dos jovens que organizariam e participariam, poucos anos depois, da
Semana de Arte Moderna. Sua exposição é a primeira etapa da
arrancada inovadora. Com ela, desde esse momento, ficam Oswald de
74
Andrade, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida,
Agenor Barbosa, Ribeiro Couto, George Przyrembel, Cândido Mota
Filho e João Fernando de Almeida Prado. Mais: à incompreensão
histórica de Lobato, que antecedeu Hitler ao rotular de teratológica a
arte moderna, se deve o despertar da consciência antiacadêmica, a
arregimentação das forças novas, o preparo do assalto que terminaria
por determinar a derrocada dos bastiões tradicionalistas (BRITO, 1978,
p. 60).
Extremamente importante, portanto, para a percepção do novo e o despertar do
Modernismo, a exposição de Anita Malfatti marcou um ano em que não só as artes
plásticas brasileiras tradicionais entravam em crise, mas também as nossas letras. Na
imprensa, eram veiculadas notícias e artigos sobre as novas tendências estéticas
europeias; nas artes plásticas, pintura e escultura com traços modernos chocavam crítica
e público; nas letras, escritores começavam a ensaiar versos mais livres e narrativas que
voltavam a enxergar o Brasil. Esses fatos, unidos ao contexto sociopolítico do anúncio do
fim da Guerra, iam ruindo o espaço de prestígio de escolas como o Simbolismo e o
Parnasianismo, evidenciando que o que estava sendo feito já não agradava como antes.
Como mencionado anteriormente, a exposição de Malfatti e a repercussão
negativa, principalmente vinda das mãos de Lobato, corroboraram a união dos modernos,
cujo fortalecimento se deu, principalmente, nos anos 1920 e 1921, quando as reuniões se
tornaram mais frequentes e os ataques aos passadistas também. Em artigo sobre o
movimento modernista, Mário de Andrade (1974) ressalta esse estado de completa
exaltação em que vivia o pequeno grupo de intelectuais paulistas nos anos anteriores à
Semana. O depoimento de Mário reforça o Modernismo como um estado de espírito que
se alastrava e a arte moderna como pauta principal do momento:
Havia a reunião das terças, à noite, na rua Lopes Chaves. Primeira em
data, essa reunião semanal continha exclusivamente artistas e precedeu
mesmo a Semana de Arte Moderna. Sob o ponto de vista intelectual foi
o mais útil dos salões, se é que se podia chamar são àquilo. Às vezes
doze, até quinze artistas, se reuniam no estúdio acanhado onde se comia
doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcoolzinho econômico. A
arte moderna era assunto obrigatório e o intelectualismo tão
intransigente e desumano que chegou mesmo a ser proibido falar mal
da vida alheia! (ANDRADE, 1974, p. 239).
Se antes agiam e pensavam de maneira dispersa, naquele momento o grupo de
intelectuais afeitos à modernidade, de forma mais coesa, colocavam-se como oposição
direta àqueles que lutavam pela permanência das tradições, sendo tachados de
“perturbadores da ordem estética” (BRITO, 1978, p. 167) por causa disso.
75
Incansavelmente, esse grupo disseminava os princípios da arte moderna e a sua ânsia pelo
novo. Em um ritmo frenético, sobretudo pelas mãos de Oswald de Andrade e Menotti del
Picchia, publicavam, nos periódicos da época, artigos que antecipavam o bojo do
movimento de 1922, como se quisessem vencer, por meio da insistência, a supremacia
dos conservadores. Vale dizer que a esse ato Brito (1978) concede a alcunha de
“doutrinação reformista, efetivada em 1921 como preparo à Semana de Arte Moderna”
(BRITO, 1978, p. 191).
O caso mais expressivo e importante de exposição pública dos ideais do grupo dos
modernos foi o discurso de Oswald de Andrade em ocasião do jantar oferecido ao escritor
Menotti del Picchia, em 9 de janeiro de 1921, no Trianon. Com o objetivo de prestar
homenagem à figura, Oswald aderiu prontamente a um discurso em forma de manifesto.
O jantar foi noticiado na edição do dia posterior do Correio Paulistano, que trouxe a
íntegra da fala de Oswald, juntamente às de outros intelectuais que estiveram presentes
na reunião.
Em seu discurso, Oswald, em meio à exaltação ao talento de Menotti del Picchia,
ataca os passadistas, afirma que haverá luta por parte dos “artistas moços de S. Paulo”
(ANDRADE, 1921, p. 3) e declara que a cidade paulista traz em seu âmago “as profundas
revoluções criadoras de imortalidades” (ANDRADE, 1921, p. 3). A fase heroica era
anunciada em alto e bom tom um ano antes dos festivais da Semana, em uma declaração
que pintava um cenário de guerra em que os modernos eram soldados corajosos prontos
para atuarem no campo de batalha, ainda que desordenadamente, em prol da salvação da
arte brasileira:
Venha talvez chocar, senhores, esse tinir de armas heroicamente
arengadas em pacífica consagração literária, mas nós, que
arrogantemente subimos os espantosos caminhos da arte atual, por força
havemos de trazer, como soldados em campanha, um pouco do nosso
farnel de assaltos. Somos um perdido tropel na urbe acampada em
território irregular e hostil, e, como ela, temos a surpresa dos acessos e
a abismada contorção das alturas (ANDRADE, 1921, p. 3).
Como uma consequência direta dos fatos e eventos que vinham acontecendo
sobretudo depois de 1917, o discurso de Oswald sinaliza uma ruptura com os padrões da
arte da época antes mesmo da deflagração do Modernismo em 1922. Extremamente
agitada, a história dos antecedentes da Semana de Arte Moderna ajuda a ressignificar a
teoria de ruptura total imposta pelos modernistas apenas a partir dos acontecimentos da
76
Semana, uma vez passamos a entender o movimento como efeito de um longo processo
de insatisfação e de pequenas realizações com vistas à renovação cultural.
Ao falar de como parnasianos, simbolistas, neoparnasianos e penumbristas
conviviam, opostamente, no mesmo cenário cultural do início do século XX, Luciana
Stegagno-Picchio (2004) corrobora o movimento modernista como consequência de uma
revolução que vinha sendo travada até mesmo por aqueles que se colocavam contra a
renovação artística. Por sua ótica, esses escritores preparavam, por oposição ou por
filiação, um “Modernismo que não mais deverá ser apresentado como revolução
improvisada, mas como revolução na evolução” (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 357)
que teve como etapas o Parnasianismo, o Simbolismo, o Neoparnasianismo e o
Penumbrismo.
A discussão a respeito dessa ruptura anterior à Semana necessita, claramente, de
mais aprofundamentos do que os aqui apresentados e de estudos mais amplos e atuais
sobre a questão. O que nos interessa nesta pesquisa, entretanto, é ressaltar que existe uma
parte da crítica que apresenta uma outra perspectiva sobre o assunto, resultando na
reavaliação das raízes do movimento convencionalmente intitulado “de 1922”. Uma fala
pinçada do estudo de Wilson Martins (1973) endossa nossa conclusão: “foram os
modernistas que fizeram a Semana de Arte Moderna e não a Semana de Arte Moderna
que fez o Modernismo” (MARTINS, 1973, p. 55).
Em termos gerais, é evidente que o país mudava, a vida ficava mais vertiginosa e
São Paulo se tornava, pelo surto industrial, pelo boom de imigrantes e pelo esforço desses
jovens, paulatinamente, mais aberta à renovação. Brito (1978) também chama atenção
para a onda nacionalista que envolve o país e, em especial, a cidade paulista por volta de
1920, criando uma atmosfera ufanista. Essa questão sociopolítica influencia o panorama
literário, na medida em que alguns escritores passam a rejeitar o regionalismo “caboclo”,
que exclui os estrangeiros, idealizado, por exemplo, em obras como Urupês, de Monteiro
Lobato, que, em 1918, lançou o famoso personagem Jeca Tatu. O “novo” sentimento
nacionalista dos modernos era mais abrangente, por assim dizer, e abraçava a
miscigenação e a imigração.
É nessa cidade, que vive um momento sociopolítico peculiar, que se reúnem os
reformistas paulistas37, prontos para chocar, em fevereiro de 1922, os que ainda estavam
37 Não se deve ignorar, entretanto, a importância de figuras cariocas na elaboração da Semana e na
construção do espírito modernista que antecedeu em alguns anos o histórico evento no Teatro Municipal.
77
presos ao passado e iniciar um novo paradigma na literatura e nas artes plásticas. Em
síntese, esses eventos – literários e extraliterários – foram fundamentais para a efetivação
da Semana, que contou com a participação de escritores, pintores, escultores e músicos
em prol dessa reviravolta cultural.
3.2 A vez do sapo-cururu: a Semana e a “fase heroica” do Modernismo brasileiro
Se os antecedentes da Semana de Arte Moderna são muito evidentes e explorados
pelos críticos que há décadas se propõem a pesquisar esse período, não podemos dizer o
mesmo a respeito da origem da ideia da elaboração do evento ocorrido no Teatro
Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. O motivo é explicado por Wilson Martins
(1973) em estudo sobre o Modernismo brasileiro, obra em que o escritor aponta a
existência de muitas lendas e mitos heroicos em torno da preparação da Semana.
Martins (1973) parece crer que a ideia original de uma semana de exposição dos
mais variados tipos de arte moderna partiu de Di Cavalcanti38 (MARTINS, 1973, p. 64),
opinião que é endossada por alguns outros integrantes da crítica literária. Um desses é
Renato Almeida, que, em texto na revista Lanterna Verde sobre o envolvimento de
Ronald de Carvalho com o Modernismo, disse ter vindo de Di Cavalcanti a concepção
inicial do evento:
Numa das tardes do Monitor Mercantil, Graça Aranha nos chamou – a
Elysio de Carvalho, a Ronald e a mim – e nos disse que Di Cavalcanti
lhe sugerira uma ideia admirável. Era realizar uma grande festa de arte,
com elementos modernos, em que se fizessem conferências, recitassem
versos, tocassem músicas e expusessem coisas modernas. Graça Aranha
estava disposto a promover essa reunião, mas achava preferível fazê-la
em São Paulo, sobretudo porque havia lá um grupo muito forte de
modernistas, não só escritores e poetas, como ainda pintores e
escultores. A coisa inflamou facilmente e Graça Aranha começou a
cogitar a série da realização, com aquele magnífico espírito de
organizador, enérgico e prático (ALMEIDA, 1936, p. 70).
Independentemente de quem lançou ao grupo pela primeira vez a ideia do evento,
a Semana ocorreu, como é de conhecimento geral, em fevereiro de 1922 no Teatro
Municipal de São Paulo e foi dividida em três festivais cujas apresentações se deram nos
dias 13, 15 e 17 desse mês. Os espetáculos contaram com exposição de música, pintura,
Algumas das reuniões a que Mário de Andrade (1974) faz menção, inclusive, ocorreram na cidade do Rio
de Janeiro. 38 A afirmação é feita com base no livro de Di Cavalcanti Viagem da minha vida, conjunto de memórias
em que o autor afirma ter sugerido a Paulo Prado uma semana com eventos voltados à arte moderna.
78
escultura e poesia modernas, além de discursos aclamados, como o realizado por Graça
Aranha, no primeiro dia, e o feito por Menotti del Picchia, no segundo.
De acordo com Bosi (2003), a Semana “foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro
das várias tendências que desde a I Guerra se vinham firmando em São Paulo e no Rio, e
a plataforma que permitiu a consolidação de grupos, a publicação de livros, revistas e
manifestos” (BOSI, 2003, p. 340, grifos do autor), isto é, uniu os modernos e permitiu o
desdobramento de seus ideais em atitudes concretas. Apesar de propiciar a renovação da
mentalidade artística, situando a cena cultural brasileira em relação ao que havia de
moderno em termos de produção estética do século XX, o evento gerou repulsa por parte
dos passadistas e cultores da arte tradicional.
De tudo o que foi apresentado, o que certamente mais incomodou os puristas e os
passadistas foram as artes plásticas e a literatura modernas, em destaque a poesia. Não é
à toa que o segundo dia, 15 de fevereiro, foi o de maior repercussão, na medida em que
houve, no salão do Teatro, muita algazarra, barulho de batidas de pés no chão e até mesmo
imitação de latidas de cachorro feitas por quem estava sentado na plateia. Muito
contribuíram para esse efeito Menotti del Picchia e Mário de Andrade, assim como
Ronald de Carvalho – que declamou o poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira, além de
poemas de Ribeiro Couto e Plínio Salgado – e Oswald de Andrade, que leu trechos de Os
Condenados39.
Mais incisivo que Graça Aranha em sua conferência de abertura da Semana no
primeiro festival, Menotti del Picchia acendeu a ira da plateia ao apresentar-lhes os ideais
do grupo em forma de ataque direto aos passadistas. Seu discurso – que foi reproduzido
na íntegra numa edição comemorativa dos 50 anos40 do evento realizada por O Estado de
S. Paulo – antecipava a ironia e a irreverência como armas que seriam utilizadas pelos
modernistas pelo menos nos oito anos após o evento. Para os passadistas, declara Menotti,
os intelectuais que faziam a Semana não passavam de “bolchevistas da estética” e, se
pudessem, aqueles não hesitariam em enforcá-los. Em meio às ousadas declarações,
estava o cerne das ambições modernistas:
A nossa estética é de reação. Como tal, é guerreira. (...) O que nos
agrupa é a ideia geral de libertação contra o faquirismo estagnado e
contemplativo, que anula a capacidade criadora dos que ainda esperam
39 Também estavam presentes, mas não renderam tamanha objeção, Agenor Barbosa, Yvonne Daumerie e
Guiomar Novais. Sérgio Milliet apresentou-se sob vaias, mas estas ainda eram consequência dos discursos
e das declamações anteriores. 40 A capa do Suplemento Literário comemorativo pode ser vista no anexo J.
79
ver erguer-se o sol atrás do Partenon em ruínas. Queremos luz, ar,
ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores,
chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte! E que o
rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o
último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e sonhar,
na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia
e os seios divinos de Helena! (DEL PICCHIA, 1972, p. 278).
Assumidamente, o grupo de modernistas dava como desatualizadas e anacrônicas
as artes plásticas e principalmente a literatura que vinham sendo feitas, uma vez que os
passadistas insistiam em recuperar elementos da tradição greco-romana em um contexto
de modernidade, aludida no discurso de Menotti através de símbolos modernos, como o
automóvel e o cinema. A leitura de “Os Sapos”, feita por Ronald de Carvalho, também
teve como objetivo atacar, por meio da ironia elaborada por Bandeira, os cultores da rima
rara e rica, isto é, parnasianos e neoparnasianos.
Esses dois momentos do festival, como mencionado, fizeram o Teatro Municipal
explodir em reações efusivamente negativas. A guerra contra o academismo estava
definitivamente lançada e o ideal modernista na literatura devidamente deflagrado a partir
de poemas e discursos que expuseram os valores estéticos daquele pequeno grupo de
intelectuais paulistas e cariocas. Em artigos publicados no Correio Paulistano nos dias
15 e 16 de fevereiro de 1922, intitulados “A segunda batalha” e “O combate”
respectivamente, Menotti repercute a ira dos passadistas e reforça o clima de guerra nos
títulos atribuídos aos textos.
Sob o pseudônimo “Helios”, Menotti declarou, em “O combate”, que poucos
latiram ou fizeram som de galos – diminuindo a ojeriza do público –, mas que havia quem
na plateia entendesse a necessidade de renovação e aplaudisse os que ali davam “ao Brasil
esta forte e nacionalíssima documentação de autonomia artística” (DEL PICCHIA, 1922,
p. 4). Afirma, ainda nesse texto, que a noite anterior (a segunda do evento) foi uma batalha
vencida, e decreta no último parágrafo: “com o tempo, os mais retardatários denegridores
do belo combate do espírito travado no país aderirão, penitenciados, ao movimento, cujas
bases, serenas, claras, na minha pequena palestra, procurei definir” (DEL PICCHIA,
1922, p. 4).
Finalizada a Semana, os modernistas lançaram, por toda a década de 1920, livros,
manifestos e revistas importantes para a consolidação de um novo pensamento estético.
Divulgadas à crítica e ao público, obras como Pauliceia desvairada – em cujo “Prefácio
Interessantíssimo” Mário de Andrade procurou apontar as diretrizes do grupo – e Pau-
Brasil, de Oswald de Andrade, ajudaram a definir os rumos estéticos e ideológicos do
80
movimento. A Klaxon, primeira revista modernista lançada após o grande evento,
reforçava em suas páginas a concepção de arte desses jovens intelectuais. Essas produções
culminaram na percepção de que duas linhas de vanguarda se confundiam no projeto
modernista de 1922: uma futurista e outra primitivista.
Segundo Bosi (2003), enquanto a primeira está ligada à experimentação da
linguagem moderna, a segunda se vincula à liberação do inconsciente como oposição ao
predomínio da razão e também como busca da autenticidade do homem brasileiro (BOSI,
2003, p. 340). A razão dessa coexistência de linhas vanguardistas pode ser explicada pelo
desejo simultâneo de experiência e pesquisa estética e de afirmação da vivência nacional,
como nos explica o crítico:
A indefinição dos dois maiores renovadores, porém, se de um lado
revela sofrível coerência estética e incapacidade de discernir ou de
escolher no turbilhão de ismos importados da Europa, terá sua
explicação no próprio contexto do Modernismo brasileiro: dividido
entre a ânsia de acertar o passo com a modernidade da Segunda
Revolução Industrial, de que o futurismo foi testemunho vibrante, e a
certeza de que as raízes brasileiras, em particular, indígenas e negras,
solicitavam um tratamento estético necessariamente primitivista
(BOSI, 2003, p. 341, grifo do autor).
No que tange à experiência e pesquisa estética, portanto, os modernistas da “fase
heroica” praticaram sobretudo o experimentalismo tanto na prosa quanto na poesia,
reinventando o código literário, na medida em que feriram “a intimidade da expressão
artística, a corrente dos significantes” (BOSI, 2003, p. 345). Ao lado da invenção formal,
vale ressaltar, também caminhava a ruptura com certos padrões clássicos comuns à
literatura reinante do início do século XX. O verso livre, a quebra da sintaxe convencional
e a opção por imagens menos alegóricas corroboraram, nessa década em questão, um
fazer literário mais preocupado com aquilo que se diz do que com a forma como é dito.
Em relação à poesia especificamente, a ruptura com o tradicional
(...) era de fundamental significado como símbolo. A libertação das
formas clássicas era, para os poetas, como que uma declaração dos
direitos do homem, ou pelo menos como uma tomada de Bastilha; os
cânones significavam a ideia de poesia como instrumento; o seu
abandono afirmava a poesia como valor próprio, e como lei de si própria
(MONTEIRO, 1972, p. 82).
No já referido depoimento acerca do Modernismo, Mário de Andrade (1974)
aproveita o distanciamento dos anos para analisar o movimento modernista em suas falhas
e acertos, reforçando seu caráter de “abandono de princípios e de técnicas consequentes”
81
(ANDRADE, 1974, p. 235) e de “revolta contra o que era a Inteligência nacional”
(ANDRADE, 1974, p. 235). Assumindo a importação da Europa desse estado de espírito
de revolta modernista, Mário não deixa de enfatizar a face nacionalista, radicada à pátria,
do movimento. Destruidor é o adjetivo que o poeta da Pauliceia desvairada mais usa
para se referir a esse primeiro momento do Modernismo.
Vale mencionar que a importação de ideias vanguardistas e do próprio espírito
modernista de revolta muito se diferenciava da importação passiva de formas e temas
cediços, que culminou, por exemplo, na mecanicidade e no academismo da poesia
parnasiana. Devido a um cenário de carência de tradição e de substrato cultural, como
apontou Ivan Junqueira (2004, p. 640), os intelectuais brasileiros incomodados com o
marasmo artístico em que se encontrava o Brasil tiveram de importar as diretrizes da arte
moderna, mas trataram de, crítica e criativamente, usá-las na construção dos alicerces de
uma nova arte nacional.
Os três princípios basilares dessa nova estética brasileira, segundo Mário (1974),
podiam ser resumidos em: “o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da
inteligência artística brasileira; e a estabilização da uma consciência nacional”
(ANDRADE, 1974, p. 242). Em literatura, isoladamente, esses preceitos foram intentados
por autores específicos, mas o Modernismo proporcionou, pioneiramente, “a conjugação
dessas três normas num todo orgânico da consciência coletiva” (ANDRADE, 1974, p.
242, grifo do autor), construindo um programa artístico ao mesmo tempo heterogêneo na
produção e um tanto uniforme nos princípios.
Oswald de Andrade parecia ter, em relação aos fundamentos que uniam os jovens
intelectuais modernistas, a mesma visão do colega paulista. É o que justifica o fato de
Oswald, em texto apresentado numa conferência em 15 de outubro de 1945, intitulado
“Informe sobre o Modernismo”, citar, como elementos que o grupo usou contra a velha
poesia metrificada, a plena liberdade de criação e a valorização do cotidiano e do
inconsciente (ANDRADE, 2019). O posicionamento dos dois maiores ícones da primeira
fase do movimento corrobora o entendimento de que os modernistas, nesse momento,
ambicionavam uma nova maneira de cantar o Brasil e o tempo em que viviam, buscando
modificar a forma, o conteúdo e a expressão, principalmente, da literatura e das artes
plásticas.
Ainda assim, talvez pela urgência de mudanças de que o cenário cultural brasileiro
transparecia necessitar, “o movimento modernista incorreu numa série de rupturas que
não se justificavam em absoluto, mas que afinal tiveram lá sua utilidade, pois (...)
82
conseguiram tirar nossa literatura do marasmo e da subserviência” (JUNQUEIRA, 2004,
p. 632). Daí Junqueira (2004), Mário de Andrade (1974) e tantos outros críticos
acreditarem que os maiores beneficiários das revoluções causadas pelo Modernismo de
1922 tenham sido os que vieram após o furor desse momento, na medida em que tiveram
tempo para “digerir o que então se propunha” (JUNQUEIRA, 2004, p. 633), como é o
caso de Manuel Bandeira, Drummond e Guimarães Rosa.
No que tange à crítica a uma certa ingenuidade e até mesmo à precipitação típica
de jovens deslumbrados com a velocidade dos acontecimentos, Mário de Andrade foi,
definitivamente, o que melhor conseguiu apontar, já distanciado pelo poder implacável
dos anos, os erros substanciais dos “heróis de 1922”. Não nos cabe aqui tecer uma análise
aprofundada do julgamento que o escritor paulista fez do movimento do qual foi líder em
sua fase inicial, mas é pertinente recuperar certos apontamentos.
Dos anseios modernistas discutidos por Adolfo Casais Monteiro em Figuras e
problemas da literatura brasileira contemporânea (1972), merece destaque a tentativa de
recorrer à fala do povo como sugestão para enriquecer a língua literária (MONTEIRO,
1972, p. 35), sobretudo porque é esse um ponto da “revolução” intentada pelo
Modernismo que será muito analisado pela crítica literária, inclusive pelo próprio Mário
de Andrade (1974) duas décadas após a Semana. A respeito dessa pesquisa linguística de
descobrimento da verdadeira “língua brasileira” Mário nos confidencia:
O espírito modernista reconheceu que, se vivíamos já de nossa realidade
brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que
nos expressássemos com identidade. Inventou-se do dia pra noite a
fabulosíssima “língua brasileira”. Mas ainda era cedo; e a força dos
elementos contrários, principalmente a ausência de órgãos científicos
adequados, reduziu tudo a manifestações individuais (ANDRADE,
1974, p. 244).
Coube a Mário (1974) perceber, tempos depois do furor dos acontecimentos de
1922, que a pesquisa linguística era vasta e complexa – definitivamente mais profunda
que a elaborada pelos modernistas em sua fase inicial – e que o experimentalismo de uma
nova forma de expressão mais brasileira se manifestou antes individual do que
coletivamente. “Nós estamos ainda atualmente tão escravos da gramática lusa como
qualquer português” (ANDRADE, 1974, p. 244), constata o poeta paulista em 1942,
sabendo que o Brasil possuía “numerosas tendências e constâncias sintáxicas que lhe dão
natureza característica à linguagem” (ANDRADE, 1974, p. 247), aspecto que os jovens
de 1922 não conseguiram traduzir suficientemente no plano estético.
83
Ivan Junqueira (2004) também analisou a preocupação modernista de formular
“uma linguagem que não mais ignorasse as muitas características (...) de uma fala
autenticamente brasileira” (JUNQUEIRA, 2004, p. 635) e, assim como Mário, apontou
cruciais falhas nessa tentativa. Utilizando Macunaíma como base para criticar o
experimento da nacionalização da linguagem, chamou de “fragoroso malogro”
(JUNQUEIRA, 2004, p. 636) o que foi feito por Mário de Andrade no romance por não
conseguir representar no plano estético as pesquisas folclóricas que realizou.
Fica muito evidente que entre o desejo modernista de usar uma língua portuguesa
mais brasileira na expressão literária e a prática efetiva desse desejo havia um abismo
causado, principalmente, pela falta de aprofundamento na pesquisa linguística e até
mesmo pela ausência de uma perspectiva mais nacional – o que aparenta ser um grande
paradoxo do movimento de 1922. Tentando melhor representar a pluralidade linguística
brasileira, contraditoriamente foi o modo de falar dos paulistas que mais imperou, fazendo
transparecer “uma galáxia de trejeitos e cacoetes dialetais, o próprio triunfo da afetação,
da impotência e da impropriedade linguísticas” (JUNQUEIRA, 2004, p. 636).
Apesar de não ter surtido o efeito esperado nas produções literárias desse primeiro
momento do movimento, a empreitada pela nacionalização da língua abriu caminho para
que grandes escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, pudessem, posteriormente, tirar
a existência de uma “língua brasileira” do plano do mito. O Modernismo, enquanto
“estado de espírito revoltado e revolucionário” (ANDRADE, 1974, p. 251), ocupou-se de
lançar à sua maneira, ainda que abrupta, essa tentativa, gerando a possibilidade de futuras
transformações. Por isso,
O malogro de Macunaíma tem o mérito, afinal, de chamar a atenção
para a possibilidade – e, mais ainda para a urgente necessidade – de nos
libertamos de uma língua irreal, falada e escrita a muitos quilômetros
de distância na Península Ibérica e nas colônias da África e da Ásia. É
assim que todos esses malogros e equívocos acabam por trazer um
inestimável benefício ao português falado no Brasil. E foi essa nova
língua literária, essa nova forma de expressão pela qual se bateu sem
trégua no Modernismo, que possibilitou o advento de uma literatura da
qual já não se poderia dizer que não fosse pelo menos brasileira
(JUNQUEIRA, 2004, p. 636).
No plano da temática, a busca por temas nacionais – característica que já podia
ser vista no que se convencionou chamar de literatura pré-modernista – ganhou força
expressiva e acentuado sentido crítico no programa estético-ideológico na década de 1920
do Modernismo. Havia, claramente, o desejo de redescobrir o Brasil a partir de nossas
84
lendas, do nosso folclore e da representação do nosso cotidiano. Rompendo com “as
máscaras do bom comportamento e de um falso heroísmo sob as quais era sempre
representado o homem brasileiro” (JUNQUEIRA, 2004, p. 638), toda a sorte de gente do
país – ressaltando-se os negros, os mulatos, o nordestino, o índio e os imigrantes – passou
a ocupar a literatura sem o véu da idealização, surgindo com “suas fraquezas e seus vícios,
com toda essa carga humana, demasiado humana, que é a mesma em todas as latitudes do
planeta” (JUNQUEIRA, 2004, p. 638).
Sem deixar de atualizar o relógio da literatura brasileira ao tempo em que viviam,
os integrantes do Modernismo inseriram, no mesmo “pacote de temas”, a industrialização,
a vida nas fábricas, o primitivismo indígena, a vida social do homem burguês e tantos
outros componentes da vida paulista e brasileira da época, mas também de um passado
histórico, em prol da afirmação da vivência nacional. Por isso, segundo Antonio Candido
(1976), há, nessa fase heroica do movimento, um “desrecalque localista”, fundamentado
na “libertação de uma série de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos
triunfalmente à tona da consciência literária” (CANDIDO, 1976, p. 119).
Daí a aceitação do negro, do mulato, do primitivismo e de toda a nossa
mestiçagem como componentes não só importantes para a formação da nossa identidade,
mas também como características que nos singularizavam e nos potencializavam
enquanto nação brasileira. Assim, “as nossas deficiências, supostas ou reais, são
reinterpretadas como superioridades” (CANDIDO, 1976, p. 120, grifos do autor),
fomentando o culto do pitoresco nacional a partir da aceitação “destas componentes
recalcadas da nacionalidade” (CANDIDO, 1976, p. 120).
Como mencionado anteriormente, devido ao marasmo artístico que o país
enfrentava, sobretudo na poesia, desde o fim do século XIX, e ao raso substrato cultural
típico de uma nação cuja independência política não tinha mais que 100 anos, os
modernistas tiveram de importar os moldes da nova expressão literária do berço da
literatura ocidental. Para representar a vivência nacional e, ao mesmo tempo, atualizar a
consciência artística brasileira, o grupo de 1922 bebeu da fonte das vanguardas europeias,
reformulando o paradigma do local e do universal na nossa literatura, na medida em que
(...) se informaram pois rapidamente da arte europeia de vanguarda,
aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local
e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por um
mergulho no detalhe brasileiro. É impressionante a concordância com
que um Apollinaire e um Cendrars ressurgem, por exemplo, em Oswald
de Andrade (CANDIDO, 1976, p. 121).
85
Ao buscar a afirmação nacional, integrando a literatura brasileira à herança da
literatura universal, o Modernismo preencheu o vazio deixado pelos parnasianos e, de
certa forma, pelos simbolistas, além de aperfeiçoar o entrelaçamento do local e do
universal intentado pelo Romantismo brasileiro. Esse caminho (re)iniciado pelos
modernistas fez Adolfo Casais Monteiro (1972) concluir que “o Modernismo foi, pelo
menos nos seus grandes poetas, a fusão de dois estados de espírito até então divorciados
na literatura brasileira” (MONTEIRO, 1972, p. 85), a saber, o nacionalismo e a
universalidade.
Vale ressaltar ainda que, da vontade de expressar o elemento nacional, Candido
(1976) aponta que surgiram duas linhas bastante delimitadas: “enquanto certos escritores
procuravam exprimir a forma e a essência do seu país, outros mais arrojados porfiavam
em pesquisar, em experimentar formas novas e descobrir sentimentos ocultos”
(CANDIDO, 1976, p. 122, grifos do autor). No primeiro grupo, encontram-se Ronald de
Carvalho e Guilherme de Almeida, mais presos à exaltação da paisagem e ao nativismo.
Também é do primeiro grupo que surgiu o desvio para um nacionalismo político com viés
fascista representado pelo Verde-Amarelismo e pelo movimento da Anta.
O segundo grupo, para o crítico, aborda temas semelhantes aos do grupo anterior,
caminhando, entretanto, pelas trilhas do humour, da experimentação formal, da
valorização dos símbolos brasileiros, como a lenda e o folclore, do cotidiano brasileiro e
da miscigenação do país (CANDIDO, 1976, p. 122). O reconhecimento na literatura da
importância do índio, do mestiço, do negro e do imigrante na formação do povo brasileiro
é sobretudo praticado por Oswald e Mário de Andrade. Os movimentos da Poesia Pau-
Brasil e da Antropofagia também se encontram vinculados a esse segundo grupo e
representam uma relação mais crítica com o elemento nacional a partir da exploração do
inconsciente coletivo e individual.
Por fim, cabe dizer que esses movimentos dentro do Modernismo, situados em
distintos grupos por Candido (1976), representam, para Bosi (2003), a superação do
literário pelo viés político-ideológico, tornando-se “filosofias de vida” e “programas
existenciais mais amplos” (BOSI, 2003, p. 342). Em 1924, o Manifesto Pau-Brasil41
lançado por Oswald atacava a metrificação na poesia e propunha a elaboração de uma
41 O lançamento do primeiro livro de versos de Oswald de Andrade, Pau-Brasil (1925), está intimamente
ligado ao manifesto homônimo, sobretudo porque este antecipa estética e ideologicamente as escolhas
linguísticas e temáticas percebidas naquele.
86
poesia que fosse exportada e não importada, fazendo clara alusão, até mesmo pelo nome
do manifesto, à edificação de uma literatura originalmente brasileira.
Para Bosi (2003), Oswald, por meio do Manifesto Pau-Brasil, “entra por uma linha
de primitivismo anarcóide, afim às suas origens de burguês culto em perpétua
disponibilidade” (BOSI, 2003, p. 342), e receberá, como contraposição, o Verde-
Amarelismo, de 1926. Também nacionalista, este último, diferentemente do lançado por
Oswald, assume diretrizes típicas da direita política do país que beiram ao fascismo,
culminando, em 1927, no grupo da Anta. São representantes desse movimento de
nacionalismo ufanista “cheio de apelos à Terra, à Raça, ao Sangue” (BOSI, 2003, p. 342)
Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cândido Motta Filho.
Como resposta a essa expressão direitista com viés nazifascista promovida pelo
grupo da Anta, Oswald, com a valorosa ajuda de Tarsila do Amaral e Raul Bopp, difunde
o Manifesto Antropófago, em 1928, e a consequente Revista de Antropofagia, também
no mesmo ano. Exacerbando as posições políticas e estéticas de Pau-Brasil, o movimento
de 1928 propunha reelaborar a produção artística brasileira pela metáfora da antropofagia,
ritual primitivo indígena. Metaforicamente, o grupo de antropófagos sugeria a deglutição
crítica de outras culturas a fim de que a cultura brasileira, a partir dessa ingestão, pudesse
se tornar efetivamente nacional.
Seguindo a mesma perspectiva das falhas estéticas devido à falta de
aprofundamento das pesquisas realizadas e à limitação do ponto de vista do grupo de
1922, muito restrito à capital paulista, não é de se admirar que esses movimentos – mais
políticos, muitas vezes, do que literários – também apresentassem inconsistências, no
caso, ideológicas. O maior problema, ressalta Bosi (2003), encontrava-se no desejo de
resolver as lacunas socioculturais brasileiras a partir de fórmulas vagas irracionalistas, o
que apequenou, em certa medida, o potencial transformador dessa fase heroica. Dessa
forma,
O culto da blague e o vezo das afirmações dogmáticas acabaram
impedindo que os modernistas da “fase heroica” repensassem com
objetividade o problema da sua inserção na práxis brasileira. Os
resultados conhecem-se: o vago liberalismo de uns vai desaguar na
adesão ao movimento de 32, tão ambíguo entre os seus polos
democrático-reacionário (Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo,
Alcântara Machado); nada impediria que o nacionalismo da Anta
resvalasse no parafacismo integralista de Plínio Salgado, nem, enfim,
que o antropofágico Oswald se esgotasse no comprazimento da crise
moral burguesa em que ele próprio estava envisgado. Considerações
que não implicam juízo idealista: constatam apenas as fatais limitações
87
de um grupo nascido e crescido em determinados estratos da sociedade
paulista e carioca numa fase de transição da República Velha para o
Brasil contemporâneo. E considerações que, ressaltando embora o
extraordinário talento verbal de alguns modernistas, entendem
sublinhar o risco que representa a mitização das suas brilhantes
inconsistência, no nível do pensamento e da prática (BOSI, 2003, p.
343-344).
Apesar dos equívocos, é inegável a importância desse primeiro grupo modernista
para a reviravolta que sofreu o panorama artístico brasileiro sobretudo a partir da segunda
década do século XX. Ainda que localista demais para um movimento que se pretendia
nacional, o Modernismo conseguiu aos poucos se espalhar para além dos principais
núcleos urbanos da época – Rio de Janeiro e São Paulo –, alastrando a literatura moderna
pelo país. Se a partir de 1930 as manifestações modernistas que surgiam em pouco se
assemelhavam ao espírito irracional da fase heroica, na década de 1920 ainda era a
ideologia inicial do grupo que servia de inspiração para artistas de fora das capitais.
É o caso, por exemplo, de Minas Gerais, que foi palco, no período em questão, de
duas importantes manifestações modernistas: a revista Verde, de 1927, mantendo a
temática nacionalista e a valorização da liberdade criativa, e A Revista, lançada em 1925
por jovens intelectuais mineiros, como Drummond, Pedro Nava e Emílio Moura. Na visão
de Adolfo Casais Monteiro (1972), a expansão dos ideais modernistas – levados à risca
ou aprimorados – atesta a “vitalidade interna do movimento” (MONTEIRO, 1972, p. 34),
o que definitivamente pode ser comprovado quando analisados os rumos tomados pela
literatura brasileira e pelas artes plásticas do país após 1922.
Lançadas as fagulhas na década de 1920, os artistas posteriores conseguiram
aprimorar, estética e ideologicamente, as diretrizes do movimento, como o próprio
Drummond, sobre o qual falaremos a seguir. Ainda assim, para que pudessem chegar à
máxima expressão da linguagem nacional ou ao apurado envolvimento com as questões
sociais de seu tempo, primeiro foi necessário que meia dúzia de jovens destemidos
tivessem coragem de levantar a sua voz à altura de gritos, batidas de pés no chão e latidas
de cachorro. De todas as notáveis falhas dos “primeiros modernistas”, não se pode dizer,
definitivamente, que a audácia foi uma delas.
88
4. NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DRUMMOND
O percurso literário de Drummond foi marcado por inúmeras reelaborações no
olhar do sujeito lírico e por constante experimentação de novas formas do poético,
abrindo margem para que a crítica pudesse, inclusive, dividir a sua obra em períodos
levando em consideração a época em que os escritos se inserem e as escolhas estéticas e
ideológicas do poeta mineiro. A década que tem nos interessado nesta pesquisa é a de
1920, uma vez que podemos notar, a partir da leitura dos poemas, das crônicas e dos
artigos produzidos nesse momento, um jovem Drummond cujo espírito inquietante recebe
diversos e importantes estímulos literários.
Em Influências e impasses (2003), John Gledson sustenta a tese de que os anos
anteriores à publicação de Alguma poesia, em 1930, foram cruciais para a construção da
inteligência poética de Drummond (GLEDSON, 2003, p. 15), corroborando o grande
escritor que se tornou. Definitivamente, o estímulo literário sofrido nessa década pelo
itabirano rendeu à sua poesia características singulares, o que pode ser comprovado pelo
ceticismo e pela ironia – atitudes extremamente drummondianas, mas certamente
embrionadas em sua juventude quando mergulhou nas letras do cético Anatole France e
no sorriso de canto de boca de Álvaro Moreyra.
Assim como o apreço ao simbolismo tardio brasileiro inspirou a produção de
poemas que buscavam a evasão à realidade, escritos por um jovem Drummond pessimista
do início do anos 1920, também é nessa década que o itabirano amadurece não só a sua
escrita, como o entendimento da persona do poeta e a sua relação com o país em que vive
e com a tradição literária a que está ligado. Este capítulo, portanto, pretende discutir esse
amadurecimento – que está diretamente relacionado ao apuramento de uma dicção
modernista – a fim de chegar à análise de poemas selecionados de Alguma poesia,
buscando compreender como os estímulos modernistas – até mesmo penumbristas –, tão
fortes e cruciais nessa época, permeiam, de diferentes formas, essa reunião de poemas.
É válido pontuar, de início, que o estudo da construção desse Drummond
modernista deve passar pelo estudo das influências que contribuíram para a formação do
processo criativo do poeta. Apesar de, nessa década, o Penumbrismo ocupar um
importante papel no princípio da jornada literária de Drummond, como vimos em
capítulos anteriores, é a figura de Mário de Andrade, enquanto professor, amigo e escritor,
que ganha destaque nesse momento, sobretudo porque tem grande relevo para a
associação do itabirano a alguns ideais do grupo de 1922.
89
Sob forma de conversa radiofônica dividida em oito programas dominicais na
PRA-2, Rádio Ministério da Educação e Cultura, em 1955, eternizada no volume Tempo,
vida, poesia (1987), Drummond dialoga com Lya Cavalcanti a respeito dessa década,
dando-nos importantíssimas informações sobre seu passado literário. Em uma de suas
falas, gasta algumas palavras para explicar “como é que a ação dos outros se reflete no
espírito” (ANDRADE, 1987, p. 13) de um escritor, ressaltando que
A vida literária pode ser comparada a uma superfície espelhante, não
direi manso lago azul, em todo caso um lago ou piscina. Cada escritor
que surge e se reflete nele é por sua vez reflexo mais ou menos vivo de
outros escritores, que por sua vez... Em suma, a literatura é um
fenômeno de imitação ou repetição. Não havendo, por exemplo, o
laguinho dos suplementos e revistas literárias, como diminui o número
de poetas! (ANDRADE, 1987, p. 13-14)
Reconhecendo esse poder de “digestão literária” de Drummond, Gledson (2003,
p. 32) realiza um interessante estudo sobre os estímulos recebidos pelo poeta, dividindo-
os em três momentos distintos. Antes da apresentação dessa divisão levando em
consideração a época em que as influências ocorreram, o pesquisador ressalta o foco
duplo que todo estudo da influência deve ter:
De um lado – e isso não deve ser esquecido –, ele pretende mostrar algo
do processo criativo: estamos alegando que certos materiais foram
utilizados pelo poeta segundo suas próprias finalidades. Em segundo
lugar, admite – deve admitir – uma teoria geral sobre o porquê de uma
determinada obra ter sido escolhida pelo poeta entre outras possíveis.
Igualmente, deve-se investigar o porquê de certos elementos não terem
sido utilizados, já que qualquer influência tem seus limites. É claro, é
uma questão de aplicar diferentes focos sobre um assunto único, mas o
ponto essencial é que, sem alguma hipótese mais ampla sobre as metas
e a índole do poeta, o estudo da influência se torna uma série de fatos
isolados e sem significado (GLEDSON, 2003, p. 32, grifos do autor).
Dos três momentos singulares de influência que Gledson (2003) menciona, o que
nos interessa, até pelo recorte temporal da pesquisa, é a “juventude impressionável”
(GLEDSON, 2003, p. 34) da qual Drummond não escapou, assim como a grande maioria
dos escritores. Nesse período importantíssimo de formação de estilo e de concepção de
vida, o itabirano contou, principalmente, com duas figuras distintas divididas pelo que
Gledson (2003) chama de “conversão ao modernismo”, que teria sido efetivamente
iniciada após o encontro de jovens penumbristas mineiros com a caravana modernista
paulista em Belo Horizonte no ano de 1924.
90
As duas principais figuras desse período – Álvaro Moreyra e Mário de Andrade –
representam, nessa década, respectivamente, o apego do jovem Drummond ao
simbolismo tardio brasileiro e o amadurecimento de uma dicção modernista pela
vinculação do poeta aos ideais da arte moderna que chegavam até Minas. No entanto, não
é apenas o estilo de ambos que diferencia o tipo de influência que tiveram na formação
do poeta Drummond: o contato com Mário foi substancialmente mais fecundo, na medida
em que o itabirano “foi afetado também por uma forte consciência crítica que lhe permitiu
desenvolver seu próprio estilo” (GLEDSON, 2003, p. 34), o que era extremamente
estimulado não só por Mário, mas por outros modernistas.
Assim, o diálogo epistolar travado com Mário e as outras formas de contato que
Drummond estabeleceu com os ideais modernistas da época possibilitaram que o mineiro
elaborasse a sua própria poética, em contraposição ao “resultado” imediato das
influências penumbristas já analisadas em Os 25 poemas da triste alegria, das quais se
destaca a imitação irrestrita e quase acrítica de trejeitos dos escritores crepusculares. A
poética drummondiana, ainda que escrita com os resquícios de tinta retirados da pena de
outros escritores, inscreve-se no Modernismo brasileiro como fruto de trabalhosa
formação de uma consciência social e literária de que fizeram parte muitos personagens,
com destaque para a figura de Mário de Andrade.
4.1 “Era tão gostoso brincar de Modernismo...”42
O ano era 1921. Numa cidade ainda provinciana demais para uma capital, jovens
“dados a letras” (ANDRADE, 1987, p. 43) vindos de diversos pontos diferentes do
interior de Minas Gerais se reuniam, frequentemente, em uma “casa de elite”43 para
discutir literatura e praticar versos de forma despretensiosa. Para dar nomes aos
personagens dessa história, passemos a palavra ao memorialista Pedro Nava, que, em
prefácio à reimpressão fac-similar de A Revista, escreve:
Desde 1921 constituiu-se em Belo Horizonte numeroso grupo de moços
integrado pelos nomes de Abgar Renault, Alberto Campos, Carlos
Drummond de Andrade, Emílio Moura, Francisco Martins de Almeida,
Gabriel de Rezende Passos, Gustavo Capanema Filho, Hamilton de
Paula, Heitor Augusto de Souza, João Alphonsus de Guimaraens, João
Guimarães Alves, João Pinheiro Filho, Mário Alvares da Silva Campos,
42 Expressão dita por Carlos Drummond de Andrade em Tempo, vida, poesia (ANDRADE, 1987, p. 50). 43 Assim se referia ao Café Estrela a propaganda presente no segundo número, publicado em agosto de
1925, d’A Revista. Ver anexo K.
91
Mário Casassanta e Milton Campos. Era o chamado Grupo do Estrela
– nome do café em que se reuniam. (...) Deles alguns já se tinham
iniciado na literatura mas os outros eram também rapazes preocupados
com poesia, prosa, arte e filosofia. Muitos foram literatos a vida inteira,
dois retomaram essa posição tardiamente e os mais foram inteiramente
absorvidos pelas profissões liberais, pelo magistério e pela política
(NAVA, 1978, p. 1, grifos do autor).
Recém-expulso do colégio em que estudava por ser considerado um “anarquista”,
Drummond experimentou, em Belo Horizonte, os prazeres da liberdade e um
enriquecimento literário sem tamanho adquirido nas constantes trocas de ideias realizadas
à mesa do café com o “Grupo do Estrela”. No registro radiofônico (1987), o itabirano
ressaltou o papel crucial desses jovens amigos em sua vida para além da influência
literária, na medida em que o contato permitia que Drummond não afundasse na inércia
ou no desespero existencial, dando-lhe “um rumo qualquer que não fosse aniquilamento”
(ANDRADE, 1987, p. 44).
Uma boa parte dessa geração de jovens intelectuais, que misturava ceticismo e
ironia (ANDRADE, 1987, p. 44), foi a grande responsável pela inclusão de Belo
Horizonte no “mapa” do Modernismo brasileiro, que, a essa época, centralizava-se,
sobretudo, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nas vezes em que tinha a oportunidade de
falar sobre o início do movimento em Minas, Drummond gostava de ressaltar a
naturalidade com que começaram a praticar o verso livre e a “fazer modernismo”,
afirmando que não lançaram manifesto, tampouco elaboraram alguma estratégia literária,
apenas se uniram pelo acaso devido às suas afinidades (ANDRADE, 1987, p. 49).
A respeito dessa questão, cabe recuperar alguns apontamentos feitos pelo próprio
poeta em texto intitulado “Imagens de 22: a semana e os mineiros”, publicado no Correio
da Manhã, em 1962. Perguntado sobre como repercutiu a Semana entre o grupo de
rapazes de Belo Horizonte, Drummond foi categórico ao dizer que sequer tomaram
conhecimento do evento, já que raramente recebiam jornais paulistas. Apesar disso, e por
serem “também inquietos, embora menos informados” (ANDRADE, 1962, p. 6), os
jovens viviam à procura do novo – onde quer que ele pudesse ser encontrado naquela
cidade de tamanha limitação.
Foi esse estado de espírito inquieto que levou Drummond e outros integrantes do
grupo a encontrarem em uma livraria da capital mineira alguns exemplares de Carnaval,
de Manuel Bandeira, em que o itabirano se chocou com um verso de 25 sílabas poéticas,
“contrariando tudo que era beleza e simetria ostentadas em Bilac” (ANDRADE, 1962, p.
6). O contato precoce com Bandeira, confessa Drummond, tornou o autor de
92
Libertinagem a sua “verdadeira e pessoal Semana de Arte Moderna” (ANDRADE, 1962,
p. 6).
Sem desmentir a importância dessa natural inquietude do grupo de jovens para a
sua abertura à arte moderna, Ivan Marques, em Cenas de um modernismo de província
(2011), acrescenta às teorias já existentes da gênese do movimento em Minas44 outros
dois fatores de grande relevância. Apresentada nesta dissertação, a relação dos mineiros
com escritores cariocas, como Ribeiro Couto, que principiava no Rio de Janeiro uma
poesia intimista de verso livre, igualmente aparece no estudo de Marques (2011), que
escreve:
Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto não se furtaram, entretanto, às
conexões com o modernismo paulistano. Diretor da revista Para Todos,
Álvaro Moreyra também estava aberto às inquietações. Drummond, que
com ele mantinha contatos desde 1921, considerava esse “sutil anotador
de almas” a principal influência literária de sua juventude. Essa
proximidade entre cariocas e mineiros, anterior ao entrosamento com
os paulistas, é que tornou possível a afirmação de que o modernismo
teria chegado a Belo Horizonte “pelo diurno do Rio” – o que não
elimina, é claro, a fantasia de que ele havia surgido “no ar”
(MARQUES, 2011, p. 26-27).
A esse estreito contato com os praticantes do verso livre da capital carioca
Marques (2011) soma a constante busca dos integrantes do “Grupo Estrela” por livros
estrangeiros, sobretudo de tradição francesa, que chegavam lentamente às poucas livrarias
de Belo Horizonte, o que revelava “o interesse cosmopolita que está na base do ‘espírito
moderno’” (MARQUES, 2011, p. 18). Analisados em conjunto, o contato com os versos
de Bandeira e a poesia vers-libriste penumbrista, assim como a busca por novidades
estrangeiras, apontam para uma identidade comportamental desses jovens calcada na
inquietação, na rebeldia e no anseio pelo experimentalismo – isto é, no alicerce de todo e
qualquer movimento de vanguarda.
No já referido Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (2018), John
Gledson, ao analisar artigos escritos por Drummond antes do encontro com os paulistas
em 1924, também encontra rebeldia e inquietação nessas letras. Segundo o crítico, esses
textos denotam “o desejo de evitar formulações excessivamente definitivas ou restritivas,
uma complacência em abrir-se a experiências novas, que é talvez a dádiva maior do
modernismo” (GLEDSON, 2018, posição 922). Daí a importância desses registros para
44 Apesar de o Modernismo mineiro apresentar dois encaminhamentos, um em Belo Horizonte e outro em
Cataguases, este tópico da dissertação pretende pôr em evidência o primeiro.
93
compreendermos como Drummond inicialmente enxergava a sua posição dentro do
movimento e como o poeta respondia às novas ideias que lentamente chegavam a Minas.
Um dos artigos comentados por Gledson (2018) é o “Sobre a arte moderna”,
publicado na revista Para Todos, de Álvaro Moreyra, em 1923, no qual Drummond se
mostrava incerto quanto ao rumo da arte moderna, mas não negava sua simpatia pelos
modernistas. Vale a menção de que 1923 é um ano curioso no que diz respeito à produção
poética de Drummond quando examinada a bibliografia comentada do itabirano por
Fernando Py (1980). Enquanto publicava poemas reunidos em Os 25 poemas da triste
alegria, como “Quase noturno, em voz baixa” e “Matinal”, Drummond já ensaiava versos
modernistas com “Nota social” e “Coração numeroso”, que fariam parte, posteriormente,
de Alguma poesia.
Ainda assim, não se pode dizer que, nessa época, o itabirano compreendia
integralmente os ideais do movimento paulista. Como mencionamos, Belo Horizonte, no
período em questão, não era uma grande receptora de periódicos ou de suplementos
literários de valor modernista, o que diminuía o contato dos jovens mineiros com poemas
e outros tipos de texto dos intelectuais de São Paulo45. Com o acesso a esses materiais
reduzido, era normal que os rapazes do Café Estrela se sentissem um pouco desnorteados,
como afirma Drummond, em 1927, na ocasião de um discurso em homenagem à formação
em Direito de Martins de Almeida:
Me sinto contente, Martins de Almeida, meditando na responsabilidade
que tenho nesse acontecimento [a aceitação do modernismo por
Almeida]. Você teimava em não admitir as expressões novas da arte e
da literatura que começavam a aparecer no Brasil, expressões que eu
também ainda não assimilara bem, mas pelas quais tinha uma larga
simpatia. Mas quando eu o peguei ali no Bar do Ponto e o levei ao
Grande Hotel, onde o pus em contato com os viajantes mais inteligentes
que já estiveram em Minas Gerais – Mário e Oswald de Andrade,
Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars – você não pôde deixar de sofrer a
forte ‘ação de presença’ daquelas personalidades tão agressivamente
novas e tão fascinadoramente irradiantes (ANDRADE apud
GLEDSON, 2018, posição 381).
Certamente, o evento mais marcante para o Modernismo mineiro foi esse encontro
com os intelectuais de São Paulo, em abril de 1924, de que fala Drummond em seu
discurso. Essa reunião ocorrida no Grande Hotel, em Belo Horizonte, garantiu efeito de
mão dupla: ao passo que revelava um Brasil histórico e ainda desconhecido aos
45 Isso não impediu que Drummond lesse Pauliceia desvairada antes mesmo da chegada da caravana
paulista a Belo Horizonte, como comenta o itabirano em carta que será analisada ainda neste tópico.
94
paulistas46, concedia, aos mineiros, uma singela versão da Semana de Arte Moderna no
saguão do hotel. De todos os integrantes da caravana, indubitavelmente Mário de Andrade
foi o que mais contribuiu para o desenvolvimento da dicção modernista dos mineiros,
sobretudo de Drummond, enviando – através de grande volume de cartas – periódicos,
livros, conselhos e palavras de incentivo; sem falar na mediação que realizou entre os
jovens de Minas e os veículos informacionais modernistas paulistas e cariocas, fazendo
com que fossem publicados poemas mineiros nas duas capitais.
Por essa contribuição, que se estendeu por toda a década de 1920, é que
Drummond (1962) julga ter sido Mário “mais do que a Semana, o Tempo modernista”
(ANDRADE, 1962, p. 6) para os mineiros. Conta o itabirano na crônica “Suas cartas”,
que, apesar de animados em certa medida com o pouco que sentiam da arte moderna,
havia ainda entre os rapazes do “Grupo Estrela” uma educação calcada no simbolismo
tardio e na poesia de gabinete, isto é, esteticamente rebuscada. A “deseducação salvadora”
(ANDRADE, 2011, p. 72) veio por meio do escritor paulista, que apresentava
entusiasmada necessidade de “se sentir junto com os homens” (ANDRADE, 2011, p. 73).
No que diz respeito especificamente a Drummond, a passagem dos intelectuais
paulistas por Minas acentuou a sua visão crítica sobre a literatura do momento e o seu
posicionamento diante do movimento modernista. Segundo Gledson (2018), o poeta
mineiro pensava a descoberta nacional como uma missão altamente desafiadora e
complexa e, portanto, “desconfiava muito de tentativas para criar uma “tradição”
brasileira da noite para o dia” (GLEDSON, 2018, posição 626). Daí sua impossibilidade
em defender os ideais de Oswald de Andrade expostos no Manifesto Pau-Brasil, de 1924,
na medida em que desacreditava na viabilidade de voltarmos a um estado de inocência
pré-cabralino.
Esse desencontro de perspectivas entre Oswald e Drummond ficou ainda mais
claro quando o mineiro se recusou a participar da segunda dentição da Revista de
Antropofagia, realizada em 1929. Ainda assim, não há como negar que Drummond “foi
atingido pela onda de interesse na paisagem e no povo brasileiros que o modernismo
estimulou” (GLEDSON, 2018, posição 588), o que pode ser visto na reunião de poemas
em Alguma poesia. Por isso, não é errado afirmar que o posicionamento crítico-ideológico
do itabirano frente à cultura e à tradição brasileiras foi o responsável por uma filiação
muito maior às concepções de Mário de Andrade do que às de Oswald.
46 Mário eterniza essa descoberta no imenso e belíssimo poema “Noturno de Belo Horizonte”.
95
A admiração ao escritor de Pauliceia desvairada não começou na visita dos
paulistas a Belo Horizonte, mas se intensificou logo após o evento. A despeito de sua
contribuição ao fortalecimento do Modernismo em Minas como um todo, foi na relação
estabelecida com Drummond que Mário de Andrade pôde exercer o papel de professor,
pregando em suas aulas epistolares “simplesmente a vida, a ‘gostosura’ sempre
encontrada no ato natural de viver, com todas as suas consequências e responsabilidades”
(ANDRADE, 2011, p. 74). Para os mineiros, Mário rapidamente se tornou um ideário
intelectual; para Drummond, o paulista virou um alicerce:
Mário foi um caso especial, desses reconhecimentos instantâneos, que
nos fazem quase adivinhar o futuro: daí por diante haverá um elemento
novo em nossa vida intelectual. Descobrimos um veio de ouro. Mas
veio de ouro não define bem o que senti diante da figura literária dele.
Não era riqueza a explorar, com maior ou menor esforço. Era riqueza
dada sem condições, a não ser a de merecê-la por nós mesmos. O que
Mário esperava de nós não era que o seguíssemos, mas que nos
descobríssemos a nós mesmos, ao que pudesse haver de bom em nós,
no sentido de inquietação, desejo de investigação e reflexão: queria (e
foi explicitando isto nas cartas que passaria a nos escrever, paciente,
pedagógico, obstinado) que adquiríssemos consciência social da arte e
trabalhássemos utilitariamente nesse sentido, pela descoberta ou
redescoberta gradativa do Brasil em nós, atualizados e responsáveis.
Nunca segui a fundo lição de Mário, mas o pouco de ordem (sob a
desordem superficial) que passei a pôr no que escrevia é consequência
da ação dele para me salvar do individualismo e do estetismo puro
(ANDRADE, 1987, p. 108).
O contato epistolar entre os dois Andrades foi iniciado por Drummond, em 28 de
outubro de 1924, e durou até perto da morte de Mário, em 1945. O período que nos
interessa é o dos 6 anos após o início das correspondências – momento de maior influência
do paulista para a “conversão”47 de Drummond ao Modernismo. Nessas cartas, Mário
muito criticou a postura cética, isolacionista e pessimista do itabirano, convocando-lhe,
insistentemente, a produzir uma literatura que estivesse mais vinculada às suas
experiências e às mudanças culturais por que o Brasil estava passando. Mário falava em
alcançar a comunhão com o homem para o jovem que mais “antipatizava com o gênero
humano” (ANDRADE, 2011, p. 73).
Apesar do interessante embate que resultou do contraste entre essas duas
concepções de vida (e também do fazer literário) e que pode ser percebido na leitura das
correspondências, essas trocas foram muito importantes para o amadurecimento poético
do jovem mineiro. Não à toa Drummond chegou a dizer, em texto que se encontra na
47 Reiteramos: expressão usada por John Gledson em Influências e impasses (2003).
96
apresentação das cartas reciprocamente enviadas, que esse contato foi “o mais constante,
generoso e fecundo estímulo à atividade literária” (ANDRADE, 2002, p. 34) por ele
recebido em toda a sua existência.
Além dos muitos poemas contidos em Alguma poesia, que foram compartilhados,
comentados e discutidos pelos dois escritores, Drummond aproveitava o contato para tirar
dúvidas sobre estilística, língua portuguesa e até mesmo sobre a experiência matrimonial.
Às vezes professor, às vezes suporte às inúmeras angústias do itabirano, Mário de
Andrade entregou a Drummond grandes doses de incentivo e de coragem para não só
aproveitar melhor a vida, mas também desenvolver seu próprio estilo, que acabou se
tornando uma das maiores expressões do movimento brasileiro.
Iniciado o contato, não demorou muito para que Mário observasse a atitude
psicológica e literária de Drummond voltada a uma melancolia, a um certo “desaniminho”
(ANDRADE, 2002, p. 154) que o mineiro, confessando não ser “dado de natureza aos
grandes entusiasmos” (ANDRADE, 2002, p. 131), apresentava em sua escrita sobre a sua
vida e também em seu material poético, muitas vezes compartilhado com o paulista. Em
resposta à primeira carta recebida de Drummond, Mário vai direto ao ponto sobre o que
pensa a respeito desse modo de viver e de sentir as coisas:
Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. (...) Eu acho, Drummond,
pensando bem, que o que falta para certos moços de tendência
modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida. Como não
atinaram com o verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam-se, ficam
tristes ou então fingem alegria o que ainda é mais idiota do que ser
sinceramente triste. Eu não posso compreender um homem de gabinete
e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem um pouco de
gabinete demais. (...) Você é uma sólida inteligência e já muito bem
mobiliada... à francesa (ANDRADE, 2002, p. 46-50).
Essa resposta, escrita em 10 de novembro de 1924, faz menção direta a um artigo
que Drummond lhe enviara em carta, que inicia o diálogo epistolar, cujo tema era Anatole
France, um “velho vício dos brasileiros” (ANDRADE, 2002, p. 40). Mário destaca que,
diante do artigo produzido pelo itabirano, pôde perceber que lhe faltava “espírito de
mocidade brasileira” (ANDRADE, 2002, p. 50, grifo do autor), levando o autor de
Pauliceia desvairada a fazer-lhe um apelo nessa mesma correspondência: “Carlos,
devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o
pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um
sacrifício é lindo” (ANDRADE, 2002, p. 51).
97
Com o Modernismo, Mário queria “dar uma alma ao Brasil” (ANDRADE, 2002,
p. 51) e gostaria que Drummond se juntasse a ele nessa empreitada, embora soubesse que,
para o mineiro, essa seria uma tarefa mais árdua do que em comparação aos outros
escritores. Isso porque, segundo o paulista, Drummond estava sofrendo do mal do
despaisamento provocado pelas leituras de obras particulares da literatura estrangeira, que
costumavam macaquear a representação dos seres primitivos (SANTIAGO, 2007, p. 16)
e criar raízes prejudiciais em quem as tomava como parâmetro. Essa atitude, nas palavras
de Mário, era fatal “num país primitivo e de pequena tradição como o nosso”
(ANDRADE, 2002, p. 70).
Sem dúvida, o maior conflito entre os amigos era a questão da nacionalização da
arte e a dificuldade que Drummond tinha em criar raízes afetivas e literárias com o Brasil.
Na 3ª carta, datada de 22 de novembro de 1924, o nome do decadentista francês volta à
cena em um discurso drummondiano tão sincero quanto melancólico, que só poderia ser
confiado a um amigo disposto a ouvir tudo:
Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto
se vale a pena sê-lo. Pessoalmente, acho lastimável essa história de
nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma
estima bem medíocre pelo panorama brasileiro. Sou um mau cidadão,
confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não veja
cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo
me é estranho: sou um exilado. (...) Sabe de uma coisa? Acho o
Brasil infecto. (...) Detesto o Brasil como a um ambiente nocivo
à expansão do meu espírito. Sou hereditariamente europeu, ou
antes: francês (ANDRADE, 2002, p. 56-59).
Ainda assim, Drummond sabia que, para a resolução do paradigma universal x
nacional, essa mesma tradição francesa à qual era apegado teria de ser renunciada. Cada
um dos jovens mineiros haveria de “deseducar-se” como podiam para se unirem à
empreitada da nacionalização da arte. A Drummond caberia, antes, convencer-se a si
mesmo da necessidade dessa renúncia a fim de, posteriormente, ajudar a convencer aos
outros que deveriam “repudiar a experiência europeia” (ANDRADE, 2002, p. 59).
Finaliza a carta reconhecendo que a leitura de Pauliceia desvairada o inspirou a produzir
versos com as ideias modernistas que ainda relutava em aceitar e envia esses poemas48 ao
amigo paulista, sempre ansioso por sua opinião.
48 Em nota, Silviano Santiago deduz, pelos comentários em cartas posteriores, que os poemas enviados
foram “Política”, “Construção”, “Nota social”, “Sentimental”, “No meio do caminho” e “Passa uma
aleijadinha” (SANTIAGO apud ANDRADE, 2002, p. 64).
98
Obviamente, o tópico “nacionalismo” não se limitou a essas três
correspondências. Ainda em 1924, em carta sem dia e mês especificados, Mário insiste
que o nacionalismo é, simplesmente, “ser nacional” (ANDRADE, 2002, p. 70) – ou,
melhor, apenas ser –, acrescentando que Drummond ainda não pode ser porque enfrenta
o drama do despaisamento. Reforçando o fato de que o mineiro dá preferência à arte em
detrimento da vida, apresentando ainda muita inteligência de gabinete para se entregar ao
lirismo, o paulista lhe faz outro pedido: “Você faça um esforcinho pra abrasileirar-se.
Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer” (ANDRADE, 2002,
p. 71).
Seguindo a leitura, vamos nos deparando com um Drummond cada vez mais
interessado no que Mário e o Modernismo tinham a oferecer; além dos diálogos sobre
poemas do paulista e do itabirano, Drummond também costumava pedir ao amigo
exemplares de periódicos modernistas, como a Klaxon. Embora permanecesse aflito com
o dilema do pertencimento e do nacionalismo, a sequência das correspondências
transparece um jovem poeta se desvinculando das amarras do simbolismo tardio enquanto
caminhava, gradual e trabalhosamente, para uma dicção modernista.
As cartas de 1925 – mesmo ano da publicação de A Revista – comprovam essa
evolução de espírito por que passava Drummond. A temática da apreciação e do
pertencimento ao Brasil permanece intrínseca à conversa dos dois amigos, mas, nesse
ponto, se não podemos dizer que o mineiro atendia a todas as solicitações de Mário,
certamente podemos afirmar que Drummond estava muito mais próximo ao Modernismo
e à sua terra como nunca:
Ah! Quando penso que também eu andei a esmo pelos jardins
passadistas, colhendo e cheirando flores gramaticais, e bancando
atitudes de sabedoria! Pois veio o imprevisto e me expulsou do jardim.
Você, com duas ou três cartas valentes acabou o milagre. Creio agora
que, sendo o mesmo, sou outro pela visão menos escura e mais amorosa
das coisas que me rodeiam. Respiro com força. Berro um pouco.
Disparo. Creio que sou feliz! (ANDRADE, 2002, p. 95).
Caminhando para fora dos jardins penumbristas, Drummond também mandou “ao
diabo as atitudes literárias” (ANDRADE, 2002, p. 131), fazendo com que Mário
escrevesse, em 23 de agosto de 1925, que naquele momento o itabirano conseguiria
compreender seu conceito de ser: ser em relação à humanidade, ser em relação à família
e ser em relação a si mesmo (ANDRADE, 2002, p. 140). Diante disso, explica o paradoxo
resultante dessa mudança de perspectiva:
99
Engraçado: pela própria evolução que observo em mim, acho que agora
que você abandonou as atitudes literárias você tem mais possibilidades
de ser um bom literato. (...) Acho que agora você está em melhores
condições de ser literato bom porque apesar de teorias e teorias de que
já ando farto o que eu vejo nos artistas fecundos, não digo artistas
grandes, é total abandono das atitudes literárias e apego a atitudes vitais.
São seres de relação e por isso são, muito mais que os outros
(ANDRADE, 2002, p. 140, grifo do autor).
O mal do jovem passadista era não ter vontade de viver, enchendo-se de literatices
sem provar nada relacionado à existência, ao humano – era a literatura de gabinete,
“anatoleante”. Era preciso ser e viver para que a poesia pudesse ter esse gosto de vida de
que tanto Mário falou em suas cartas entusiasmadas. Alheio à sua realidade, as
composições penumbristas de Drummond constituíam-se de versos que não foram
vividos e, portanto, que permaneceram bem distantes dos homens. Para o paulista, o
lirismo estava intrinsecamente relacionado a tirar da substância brasileira o alimento vivo
do poema, atitude que Drummond atribuiu à reunião publicada em 1930.
Não podemos negar, certamente, a influência do estilo de escrita de Mário na
construção dos versos modernistas de Drummond, que chegou a fazer correções em
determinados versos após as sugestões apontadas pelo paulista em carta49 na qual comenta
alguns poemas que integrariam Alguma poesia50. Ainda assim, o maior impacto desses
seis anos iniciais de contato entre os dois escritores é, sem dúvida, o convite à apreciação
do Brasil e da modernidade, caminho alumbrado por Mário, mas adaptado por Drummond
à sua própria poética.
Dessa forma se segue a conversa epistolar até 1930 – Drummond expondo a sua
“absoluta necessidade” (ANDRADE, 2002, p. 317) dos conselhos do amigo e Mário
reforçando que poderia apresentar as ideias e os dados, mas a resolução precisaria vir do
mineiro (ANDRADE, 2002, p. 322). O diálogo materializa não só a importância que o
paulista dava ao estímulo de uma consciência literária crítica, longe de mimetismo, como
também a crença de que aguçava com seus “empurrõezinhos” algo que já estaria dentro
de Drummond:
49 1º de agosto de 1926. 50 Já foi comentado, no Capítulo II, que Drummond envia, em carta do dia 3 de junho de 1926, um montante
de poemas dividido em duas partes: poemas de viés penumbrista, a maior parte reunidos em Os 25 poemas
da triste alegria, e outros modernistas, sob título de “Minha terra tem palmeiras”, dos quais 20 integrariam
Alguma poesia em 1930. Além de as cartas a respeito desses versos demonstrarem um intenso debate acerca
de questões estilísticas, como a sugestão da supressão de pronomes possessivos em excesso, as missivas
também evidenciam que uma boa parte do livro de estreia de Drummond foi produzida pouco tempo depois
do encontro dos mineiros com a caravana paulista em Belo Horizonte, no ano de 1924.
100
(...) tudo é influência neste mundo. Cada indivíduo é fruto de alguma
coisa. Agora, tem influências boas e tem influências más. Além do mais
se tem que distinguir entre o que é influência e o que é revelação da
gente própria. (...) Se os meus exemplos declancharam alguma coisa em
você, se lembre sempre que você nunca me olhou com mimetismo nem
servilismo graças-a-Deus, porém me critica, me pesa, escolhe e ama o
que é também seu. (...) Se você já tem coragem de escrever “de
repentemente” tão brasileiramente, lembre que isso não é meu nem de
ninguém, é brasileiro. (...) Como sou mais velho resolvi já algumas
equações. Então mostro não o resultado, mas como fiz elas. E depois,
Drummond, quando a gente se liga assim numa amizade verdadeira tão
bonita, é gostoso ficar junto do amigo, largado, inteirinho nu. As almas
são árvores. De vez em quando uma folha da minha vai avoando poisar
nas raízes da de você. Que sirva de adubo generoso. Com as folhas da
sua, lhe garanto que cresço também (ANDRADE, 2002, p. 116-118).
Apesar de todo esse contato com Mário ter amadurecido a dicção modernista de
Drummond, é necessário ressaltar que nem todas as lições do amigo-professor paulista
foram assimiladas pelo itabirano, sobretudo porque os dois Andrades entendiam a
substância do fazer poético de maneira muito distinta. Assim, enquanto Mário “manteve
uma visão da poesia que separava a inspiração, de um lado, e, do outro, o seu uso pelo
escritor consciente do que deseja fazer com ela” (GLEDSON, 2003, p. 71), Drummond
se solidificava como um poeta mais lírico que racional.
Daí o fato de muitos poemas de Alguma poesia, que foram elaborados sob
influência da leitura de Pauliceia desvairada, realmente demonstrarem certa filiação
estética a Mário – rimas internas, exclamações, tom de conversa –, mas não repetirem
exatamente, por exemplo, a mesma postura incisiva quanto à estilização do português
brasileiro. De todos os paralelos que podem ser traçados entre essas duas obras, Gledson
(2003) ressalta o mais interessante: do aspecto duplo da persona de Mário – ora
identificada com a cidade, ora afastada dela – é que Drummond tirou o eu “distanciado”
de Alguma poesia.
Nesse sentido, o uso do detalhe autobiográfico em diversos poemas dessa reunião
drummondiana impossibilita a identificação da persona construída por Drummond, na
medida em que ressalta o “quão indefinível é o poeta” (GLEDSON, 2003, p. 83). Assim,
após analisar os poemas “Bucólica no caminho do Pontal” e “Explicação”, o crítico nos
explica:
Em muitos aspectos, a persona de Drummond é obviamente semelhante
ao palhaço contraditório de Mário (...). Mas embora tomando
emprestado de Mário o tom leviano e de conversa, Drummond não
assume a preocupação com a identificação com a cidade e a sociedade,
nem afirma a natureza representativa desse palhaço, ambos aspectos
101
cruciais da persona de Paulicéia. O uso do detalhe autobiográfico em
ambos os poemas é um aspecto disso, pois neutraliza qualquer
possibilidade de identificação. A persona de Drummond, como ela
aparece, ou melhor, como foi se desenvolvendo ao longo da
composição dos poemas de Alguma poesia, retém a fugacidade e o
caráter contraditório de Mário (GLEDSON, 2003, p. 83).
Assim como existe uma autenticidade no estilo drummondiano, o Modernismo
mineiro também desenvolveu marcas próprias. Segundo Ivan Marques (2011), o
movimento em Minas adquiriu feição particular, sobretudo porque as condições
sociológicas da sociedade histórica mineira, extremamente diferentes das de São Paulo,
interferiram nas produções literárias, corroborando peculiaridades à dicção modernista
dos rapazes de Belo Horizonte (MARQUES, 2011, p. 24).
Analisando como a condição específica do meio repercutiu no Modernismo de
Minas, Marques (2011) conclui que o movimento em Belo Horizonte nasceu do encontro
entre o velho e o novo, o urbano e o rural. A dicotomia tradição e vanguarda – tão
presente na literatura dos jovens mineiros – materializava a angústia de intelectuais
afeitos ao passado histórico, mas ansiosos por uma renovação artística. Logo,
Desse convívio entre o novo e o velho é que se nutre, em grande parte,
a estética modernista. Daí ser comum que ela floresça em locais
atrasados – nos terrenos pedregosos em que a novidade irrompe da
própria repetição. Modernista e passadista, atualizado e provinciano, o
vanguardismo dos rapazes de Belo Horizonte nasce do encontro de
tempos que define o modernismo em todas as épocas e lugares. No
contexto brasileiro, o embate entre a cultura urbana e a herança rural
marca essencialmente não só o modernismo, mas a própria formação
social do país. Afinal, concluiremos que tudo são partes da mesma
história (MARQUES, 2011, p. 47).
O duplo tradição-vanguarda também norteava as páginas do Diário de Minas,
periódico conservador vinculado ao Partido Republicano Mineiro e que trazia, em seção
intitulada “Crônica social”, poemas de viés parnasiano-simbolista ao lado de
contribuições associadas às novas diretrizes da arte moderna. Como Drummond e outros
rapazes do “Grupo do Estrela” participavam do jornal, tão logo o Diário se tornou uma
espécie de “quartel-general” do Modernismo mineiro (ANDRADE, 1987, p. 82), cuja
redação serviu de “laboratório de onde emergiu” (MARQUES, 2013, p. 50) A Revista,
terceiro periódico do movimento que tratava de arte e de política.
Com apenas três números lançados, de julho de 1925 a janeiro de 1926, A Revista
tinha essência diplomática. Na contramão do “choque” a que Klaxon se predispusera, por
exemplo, o periódico de Minas apresentava ao público as novas perspectivas da arte de
102
“de forma comedida” (MARQUES, 2013, p. 50). Misturavam modernismos e
passadismos como bem alertavam os editoriais dos dois primeiros números da revista –
“Para os céticos” e “Para os espíritos criadores” –, escritos, respectivamente, por
Drummond e Martins de Almeida. Assim, reforçavam seu desejo de “não querer atirar
pedras ao passado” (ALMEIDA, 1925, p. 11) praticando uma reforma estética que
pudesse valorizar a herança deixada pelas gerações anteriores.
No prefácio à edição fac-similar de A Revista, Nava (1978) menciona que a
caravana paulista e o posterior contato epistolar com Mário de Andrade agitaram os belo-
horizontinos, impulsionando-os a lançar um veículo informacional que representasse a
feição particular do grupo. De fato, inúmeros são os momentos em que, nas missivas com
Drummond, o paulista incentiva a publicação do periódico, chegando a enviar, para o
primeiro número da revista, trecho inédito de seu posterior livro Amar, verbo intransitivo.
Quanto ao vanguardismo-passadismo, Mário tinha uma sugestão:
(...) botem bem misturado o modernismo bonito de vocês com o
passadismo dos outros. Misturem o mais possível. É o único meio da
gente fazer do público terra-caída amazonense. E isso é que é preciso.
Ele pensa que está firme no passadismo e de supetão vai indo de
cambulhada, não sabe e está se acostumando com vocês (ANDRADE,
2002, p. 142).
Infelizmente, A Revista não teve fôlego para seguir adiante. Conforme Drummond
conta na conversa radiofônica (1987), o fim da década de 1920 significou a diáspora do
“Grupo do Estrela” (ANDRADE, 1987, p. 75), na medida em que a maioria dos jovens
vinham do interior e voltaram para suas cidades após se formarem, seguindo suas vidas.
De início “natural”, também foi, em certa medida, inconsciente a dispersão do movimento
em Belo Horizonte, cuja maior expressão ficou a cargo do próprio itabirano ao representar
ao Modernismo “complexidade psicológica, densidade de pensamento e ampliação
intelectual” (MARQUES, 2011, p. 13).
4.2 O homem que espia a vida: o Modernismo de Alguma poesia
Em uma crônica cujo intuito era realizar uma singela autobiografia e que integra
o volume Confissões de Minas, Drummond, ao descrever o que pensava a respeito de sua
produção poética, dividiu em fases o lançamento de seus livros, sugerindo evolução entre
as publicações e, obviamente, entre os poemas que compõem essas reuniões. Sob esse
aspecto, o poeta declara que Alguma poesia, de 1930, “traduz uma grande inexperiência
103
do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo” (ANDRADE, 2011, p.
68), de certa maneira resumindo o livro a uma de suas principais características: o
autobiografismo confessional.
De forma semelhante reagiu uma grande parte da crítica literária especializada em
Drummond, que insistiu, por décadas, na teoria de que Alguma poesia, com seu
individualismo e humor modernista apurado, serviu apenas de alçamento para a
construção de uma poesia mais madura, política e coletiva, como a da década de 1940 –
a saber, Sentimento do mundo e A rosa do povo. Essas posições, entretanto, suprimem e
desvalorizam o aspecto multifacetado dos poemas lançados em conjunto em 1930, muitas
vezes desconsiderando a maturidade poética reconhecível já em sua “estreia”51.
Felizmente, há um outro conjunto de críticos que legitima não só a qualidade dos
versos lançados no primeiro livro de Drummond, mas também a heterogeneidade de
temas, estilos e técnicas – aspectos presentes em Alguma poesia assim como em outros
volumes. É o caso, por exemplo, de Marlene de Castro Correia (2015), ao afirmar que
certos versos do livro de 1930 antecipam atitudes poéticas que acompanham toda a obra
drummondiana. Assim nos escreve sobre o símbolo da pedra, eternizado no polêmico “No
meio do caminho”:
O que no poema de 1928 poderá ter sido premonição de Drummond
quanto ao desenvolvimento de sua obra parece aflorar ao nível da
consciência no “Legado” de 1948-1951: a pedra no meio do caminho
como sinal da concepção e execução de sua poesia, do relacionamento
contundente entre leitor e texto, e como sinal de uma autobiografia
poética traumatizada e dramatizada por contínuos questionamentos,
tensões e desconfianças (CORREIA, 2015, p. 47).
Reconhecendo a maturidade poética demonstrada por Drummond em Alguma
poesia, Eucanaã Ferraz se une à Marlene de Castro Correia na afirmação da pluralidade
de faces existente no livro. Define, portanto, que na reunião presenciamos “um ponto alto
da liberdade modernista e surpreendente habilidade – nata sim, mas igualmente
conquistada – para a gesticulação do imaginário e da escrita” (FERRAZ apud
ANDRADE, 2013, p. 98), culminando na capacidade de “aproximar com destreza a
melancolia, a irrisão, o desânimo, o vigor, a timidez, a confissão, a sensualidade”
(FERRAZ apud ANDRADE, 2013, p. 99).
51 Estreia em livro, uma vez que Drummond, ao longo da década de 1920, já havia publicado em dezenas
de revistas e periódicos, inclusive cariocas e paulistas. Vale lembrar que o icônico “No meio do caminho”
integrou o primeiro número da Revista de Antropofagia, dois anos antes do lançamento de Alguma poesia.
104
Comentando o “Poema de sete faces”, Ivan Marques (2011) traça um paralelo
entre as fisionomias fragmentadas do poema e toda a maleabilidade das faces notada no
livro. Mais uma vez, o estudo foge ao duplo simplista individualismo/ironia e apresenta
um posicionamento que endossa a visão de Ferraz (2013) e de Marlene de Castro Correia
(2015):
Verso livre, “palavras em liberdade”, descontinuidade, enumerações
caóticas, técnicas de montagem, mistura de gêneros e de estilos etc. (...)
Por todo o livro se irradiam as marcas da instabilidade. Os demais
poemas também apresentam múltiplos temas, estilos e inflexões. O
leque vai do epigrama à confissão, da memória sentimental à crônica
do cotidiano, do nacionalismo à temática amorosa (MARQUES, 2011,
p. 55).
A flexibilidade, portanto, está no bojo de Alguma poesia e reflete uma absurda e
trabalhosa adequação de Drummond aos ideais da arte moderna. Lançado apenas em
1930, o livro reúne poemas elaborados ao longo de, pelo menos, 7 anos – isto é, quase a
totalidade da década de 1920. Em certa medida, a matéria pessoal das cartas trocadas
entre Drummond e Mário de Andrade serve-nos como uma importante chave para a
leitura desses poemas e a compreensão dos difíceis e tortuosos caminhos percorridos pelo
itabirano para que chegasse a composições de uma poética heterogênea, mas tão somente
dele.
Como peça que integra o panorama do Modernismo brasileiro, deve-se frisar que
Drummond, em Alguma poesia, adere com parcimônia e relativização aos programas
propostos pelo movimento. Vista sobretudo no aspecto formal e estilístico do livro, a
influência dos ideais do movimento se materializa na adoção do experimentalismo na
linguagem e na estrutura composicional dos poemas, estimulado pela liberdade inerente
à concepção de arte moderna. Daí o gosto pelo prosaico, pela comicidade, por uma
linguagem poética mais próxima à fala, pelo verso livre e por outras atitudes de
vanguarda.
Em contrapartida, certas opções mais exaltadas, adotadas por alguns modernistas
– como o princípio antropófago de Oswald de Andrade e a estilização exacerbada do
português brasileiro de Mário de Andrade em Pauliceia desvairada –, ficaram de fora da
reunião de 1930 e sequer apareceram em qualquer outra obra do poeta mineiro. Isso se
deve, sobretudo, à relação crítica e consciente que Drummond estabeleceu com as suas
matrizes de influência modernista, fazendo com que o itabirano realmente se filiasse ao
105
movimento, mas impregnando em seus versos uma marca que borra os limites entre o
poético e o pessoal, entre a ficção e a biografia.
Desse modo, é perceptível que, em Alguma poesia, foi amalgamada às qualidades
do movimento uma série de traços particulares do poeta, corroborando especificidades
importantes no trato da poesia modernista. A título de exemplo está o humour
drummondiano, que extrapolou os limites dos poemas-piada com sua feição mais
sombria, melancólica e irônica. Deve-se mencionar, ainda, que, sob o véu da sátira e do
cômico, há importantes reflexões, muitas delas, inclusive, de cunho social e político.
Acrescentemos ao humour drummondiano a questão da matéria pessoal,
culminando numa poesia de tom confessional porque autobiográfica e muitas vezes
memorialista. O mergulho no detalhe biográfico pela transformação do poeta em
personagem de sua própria obra foi o responsável pela criação de um “eu” extremamente
particular – o gauche –, tornando-se, a um só tempo, atitude estética e existencial. A
temática do desajuste/gauchismo demonstra a sua mais bela e dolorosa face nos embates
entre o sujeito e o mundo, a província e a metrópole.
Impregnado, pois, de ficcionalização da vida pessoal do poeta, Alguma poesia,
conforme aponta Mário de Andrade no ensaio “A poesia em 1930” (1974), apresenta de
fato particularidades interessantes. Chamando de “o sequestro da vida besta”, Mário
enxerga a luta existente entre o poeta provinciano e as modulações da vida contemporânea
e urbana como um dos valores artísticos mais importantes do livro. Ao adquirir “uma
consciência penosa da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana da ‘vida
besta’” (ANDRADE, 1974, p. 36), Drummond teria conseguido “poetificar melhor, fazer
disso mais lirismo e mais poesia” (ANDRADE, 1974, p. 36).
Apesar dessa dicção modernista particular, não se pode negar que há por todo o
livro ressonâncias do lirismo penumbrista. A herança provinciana ajuda nesse sentido: a
referência à simplicidade da “vida besta” faz alusão direta à busca pelo cotidiano humilde
tão trabalhada nos livros de Ribeiro Couto, por exemplo. A atitude contemplativa e o tom
melancólico ainda podem ser percebidos em Alguma poesia, porém sob nova roupagem.
Sempre espiando a vida está um eu “contemplativo irônico”52, que, devido ao seu
desajustamento, observa tudo com a perspectiva de quem está de fora, daí a sensação de
que esse sujeito mais veja a vida do que de fato a viva.
52 Mário usa essa expressão para se referir a Drummond em uma de suas cartas (ANDRADE, 2002, p. 373).
106
Os ecos penumbristas, obviamente, não prejudicam o sentimento de descida total
do Parnaso que Alguma poesia nos causa em comparação à leitura dos poemas de Os 25
poemas da triste alegria, construídos sob a égide do alheamento. Ainda que Drummond
não tenha seguido completamente todas as “lições” do amigo-professor Mário de
Andrade, seu primeiro livro publicado evidencia que o itabirano tomou consciência do
papel do poeta e de sua poesia em face ao seu tempo e meio. Convocado à modernidade
e à comunhão com os homens de seu país, Drummond tratou de aceitar o convite à sua
própria maneira.
4.2.1 “Vai, Carlos! ser gauche na vida”
Como já mencionado, o livro de estreia do itabirano inicia um percurso de escrita
marcado por diversas e complexas elaborações estéticas e tensionamentos poéticos,
dentre os quais devemos destacar a figura do gauche – identidade forjada pelo poeta – e
a sua relação com o espaço que a cerca. Marca de fundamental importância em toda a
trajetória poética do escritor, o gauche de Alguma poesia rende à temática do
desajustamento – do poeta, do homem – tão trabalhada na literatura ocidental uma nova
perspectiva calcada em uma comicidade dramática que só o humour específico da escrita
desse Drummond de 1930 pode proporcionar à poesia.
É a partir dessa peculiar fusão do dramático com o cômico que Drummond, de
distintas maneiras na obra inaugural, tece o embate entre a figura do gauche e o seio
familiar, o campo e a cidade, numa escrita que, muitas vezes, não se sabe, por seu caráter
de indistinção, se está voltada ao registro autobiográfico ou se aponta para a percepção
de exílio sentida pelo itabirano enquanto poeta.
Em Carlos Drummond de Andrade: análise da obra (1980), Affonso Romano de
Sant’Anna ressalta esse duplo com que a personagem gauche de Drummond foi elaborada
dividindo sua análise em duas seções interessantes: “o gauche enquanto artista” e “o
artista enquanto gauche”. Claramente, enquanto a primeira se refere à personagem
gauche como uma identidade que expõe a tentativa do poeta em eliminar as barreiras
entre o artista e a realidade, a segunda diz respeito ao que penetra “pela biografia do
indivíduo enquanto ser social” (SANT’ANNA, 1980, p. 25). Por baixo da camada de
humor corrosivo que será investida nessa dupla projeção, então, é possível trazer à tona
uma dura, brutal e até mesmo feroz consciência de desajustamento vivido por essa
personagem a partir do momento em que se percebe como não pertencente à realidade em
107
que está inserida, fazendo com que a identidade gauche seja o próprio Cabo das
Tormentas drummondiano, porque transforma em conflituosa e tensa a travessia pela vida
e pela poesia.
Caracterizado como uma figura que representa um duro e contínuo
desajustamento entre o Eu e o Mundo, o gauche drummondiano assumirá várias faces ao
longo de toda a obra do poeta, ressignificando, em cada nova face, o abismo existente
entre essa identidade e a realidade que a cerca. É possível dizer, nesse sentido, que o
gauche de Alguma poesia não é o mesmo visto em Boitempo, mas, por ser a primeira
representação dessa personagem de suma importância, é inevitavelmente responsável
pelas transformações a que essa identidade é submetida no decorrer da solidificação da
obra do mineiro.
Trabalhar a imagem gauche em Drummond, seja em qual livro for, significa
também levar em consideração o brilhante – e talvez mais significativo e profundo –
estudo sobre essa personagem já feito na tradição crítica brasileira. Sob esse aspecto, a
obra de Affonso Romano de Sant’Anna (1980) nos ajuda a compreender a inserção dessa
identidade nos poemas do itabirano, bem como a guiar nossa percepção à existência de
várias fases por que passou o gauchismo no decurso dessa poética. Definindo a primeira
aparição da personagem em Alguma poesia como um “ser embrionário”, Sant’Anna
afirma que
O personagem que assim se apresenta, malgrado o disfarce irônico, aos
poucos vai mostrando as diversas faces de seu conflito: o gauche
psicológico e sentimental, o displaced geográfica e culturalmente, o ex-
cêntrico literário e social. Esses dados, presentes já na primeira fase,
informam a constituição de um tipo estruturalmente antitético, que mais
tarde derivaria para um gauche metafísico procurando solucionar
dialeticamente seus conflitos. Seja qual for a variante sob a qual se
apresenta o gauche, ele sempre se articula como uma dramatis personae
(SANT’ANNA’, 1980, p. 39, grifos do autor).
Realizada a leitura de Alguma poesia, fica difícil não concordar com o crítico: o
abismo existente entre o Eu (o gauche) e o Mundo nessa obra inaugural será refletido,
sobretudo, na sensação de desajuste com o seio familiar, com o cenário social da época e
com o espaço geográfico em que essa identidade estava inserida ou no qual gostaria de se
inserir, materializando, por exemplo, o conflito metrópole versus província. Nessas
diferentes facetas por que se apresenta esse conflito entre a personagem e o mundo na
obra de 1930, é inegável a existência do que Sant’Anna (1980) chamará de “estrato
psicológico” da obra, corroborando um apontamento feito por Mário de Andrade (1974):
108
“A análise de Alguma poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não
conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade pra melhor achar pelo livro o
tímido que ele é” (ANDRADE, 1974, p. 33).
Assim, Sant’Anna (1980) e Andrade (1974) teorizam que Drummond internalizou
no gauche alguns de seus traços psicológicos, por meio dos quais foi construída,
esteticamente, uma personagem que aponta para questões biográficas do escritor e para a
sua persona excêntrica e tímida enquanto poeta. Sant’Anna, então, conclui:
O gauche tímido que a tudo assiste a distância é a tomada de
consciência do poeta de sua própria constituição psicológica. Sendo, no
entanto, uma projeção, é um ser diferente do autor, porque é a
idealização daquilo que o autor pensa que um gauche é. Autor e
personagem se alternam e se mesclam no mesmo contexto. O
personagem gauche é a projeção de uma personalidade tal qual ela se
imagina enquanto gauche (SANT’ANNA, 1980, p. 23, grifos do autor).
A personalidade projetada a que Sant’Anna (1980) faz menção aparece logo no
poema que abre Alguma poesia. Emblemático e fundamental para a compreensão desse
“primeiro” gauche, “Poema de sete faces” dramatiza de forma irônica o desajustamento
e a fragmentação do Eu diante da realidade e marca o nascimento desse ser desarticulado:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pernas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
109
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(ANDRADE, 2013, p. 11-12)
Pela leitura da primeira estrofe pode-se compreender o que talvez tenha motivado
Drummond a escolher “Poema de sete faces” como abertura de Alguma poesia. Nesse
sentido, o primeiro poema assim como o primeiro livro marcam o nascimento dessa
identidade tão importante para a sua obra, além de indicar, ao cenário das letras, o também
nascimento de um poeta que se sentia desarticulado ao espaço intelectual em que produzia
– reafirmando a figura de escritor tímido e excêntrico –, sensação que parece tê-lo
acompanhado em todo o seu percurso literário. A simbologia da gênese, então, aparece
no primeiro conjunto de versos imbricada numa atmosfera de falta de luminosidade que
beira à maldição: o gauche nasce a partir da condenação de um anjo torto que vive às
sombras.
A perspectiva de errância acentuada pela semântica das palavras escolhidas pelo
escritor – “torto”, “sombra” – coaduna-se ao duplo “Carlos”, com quem o poeta mantém
diálogo, confirmando que a personagem gauche que acabara de nascer, dentre as várias
“faces” que pode assumir, representa nessa obra uma projeção do próprio itabirano
enquanto ser social e poeta, ambos desarticulados. Isso fica muito claro se observada a
atitude contemplativa do eu lírico diante das cenas cotidianas expostas nas segunda,
terceira e quarta estrofes.
Fadado à exclusão promovida pela incapacidade de se relacionar com a vertigem
da dinâmica urbana, o gauche vira espectador da vida, assistindo “de fora”, aparentemente
sem muito interesse, o que se passa “dentro” desse mundo que comporta todos, menos o
condenado pelo anjo torto: “O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pernas pretas
amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos/
não perguntam nada.” (ANDRADE, 2013, p. 11).
Essa condição de espectador da vida, se levarmos em consideração a crítica de
Sant’Anna (1980), é o que permite o surgimento de um discurso irônico e cômico.
Partindo do pressuposto de que a ironia é bem estabelecida por aqueles que se postam
fora da cena, isto é, fora do conflito, o teórico entende que a insociabilidade do gauche
junto à sua insensibilidade como espectador são peças fundamentais para traduzir o que
110
enxerga a partir de uma esfera cômica e crítica. Como se o poeta quisesse atingir algo ou
alguém usando como artimanha esse discurso irônico, Sant’Anna (1980) ressalta que a
ironia “em seus livros iniciais corresponde a um recurso, posto em voga durante os
primeiros anos de Modernismo, através do qual se fazia a crítica e autocrítica de uma
cultura” (SANT’ANNA, 1980, p. 60).
Na esteira desse raciocínio, as segunda, terceira e quarta estrofes transfiguram-se
em claras críticas e ríspidas observações acerca dos costumes da época e da realidade
socioeconômica de seu tempo. Assim, respectivamente, a denúncia da busca pela
concretização dos desejos sexuais masculinos, a observação do inchaço urbano
característico da modernidade e a exposição da seriedade da figura do burocrata solitário
evidenciam o cenário peculiar das primeiras décadas do século XX e o juízo de valor que
esse ser desajustado faz daquilo que vê.
Deve-se ressaltar, entretanto, que a comicidade empregada ao longo dos versos –
a qual desemboca numa sétima e última estrofe em tom de epílogo sentimental-irônico –
não faz desaparecer a dura e angustiante percepção de desajustamento sentida pelo
gauche. Por baixo da camada de humor corrosivo empregado no poema, a preocupação e
o sofrimento causados por essa feroz consciência de desarticulação diante da realidade
acompanham toda a composição, acentuando-se na apóstrofe inserida na quinta estrofe
que marca tanto a sensação de abandono quanto a certeza da fragilidade desse ser de
existência à esquerda: “Meu deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/
se sabias que eu era fraco” (ANDRADE, 2013, p. 11).
Em Verso e Universo em Drummond (2012), José Guilherme Merquior recupera
a idealização do Poeta como um gênio incompreendido e solitário extremamente
difundida entre os escritores do século XIX, como Mallarmé e Baudelaire, a fim de fazer
uma comparação às atitudes do gauche drummondiano em “Poema de sete faces”. Na
construção dessa associação, Merquior chega à conclusão de que o gauchismo do
itabirano se insere na tradição dos que trabalham o tema do desajuste, mas subverte o
cenário trágico de incompreensão e exclusão desse poeta-gênio, porque transforma, pelo
humor, esse “pathos tragicizante” (MERQUIOR, 2012, p. 36) em perspectiva grotesca.
Ao subverter o topos do poeta maldito, Drummond constrói um novo perfil de
identidade desajustada e, à sua maneira, vai desenhar, pelo menos nessa obra inaugural,
uma personagem que de soberana não tem nada. Assim, tendo em vista as seis diferentes
classes de escritores que produzem literatura propostas por Ezra Pound em ABC da
111
literatura (1970)53, podemos certamente considerar o itabirano como figura pertencente
à categoria dos inventores, não só porque rompe com a tradição, mas porque cria uma
outra, no século XX, que marcará a sua obra e a literatura brasileira como um todo. Nesse
sentido, o caráter inovador do gauche drummondiano concebe o surgimento de uma
marca literária que insere o poeta no rol dos “homens que descobriram um novo processo
ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo” (POUND, 1970, p.
42).
Deve-se pontuar, ainda, uma outra interessante representação do conflito Eu
versus Mundo materializada no distanciamento entre a imagem gauche e o seio familiar.
Sobre essa questão, “Infância” corrobora o gauchismo de nascença anunciado em “Poema
de sete faces” – e não por caso vem logo na sequência desta composição em Alguma
poesia – e afirma a permanência desse desajuste ao longo da vida do sujeito poético:
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre as mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
(ANDRADE, 2013, p. 13)
Em tom de relato memorialístico, o sujeito poético inicia a cena da lembrança de
sua infância pela representação dos costumes e das tradições de sua família de origem
53 A saber: inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lançadores
de modas.
112
rural, patriarcal e escravocrata. Por isso, é normal que, tal como é mostrado na primeira
estrofe, o pai, chefe da família, esteja trabalhando no campo enquanto a mãe, designada
a cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos, apareça aí “sentada cosendo” (ANDRADE,
2013, p. 13). Em referência à monotonia característica no decorrer de um dia de uma
família de fazendeiros, essas ações – campear e coser – irão aparecer, novamente, nas
terceira e quarta estrofes, numa tentativa, quem sabe, de reafirmar por meio da linguagem
os papéis que cada figura estava assinalada a cumprir.
É a partir da descrição dos costumes dessa família que nos deparamos com a
primeira “face” do deslocamento do eu lírico presente nesse poema. Embora fruto de um
núcleo familiar voltado ao tratamento da terra e a todas as ações que derivam dessa
tradição, o sujeito poético, ainda menino, encontra-se sozinho, distante espacial – porque
observa da mangueira a cena cotidiana – e emocionalmente dessa realidade, na medida
em que não se encaixa naqueles costumes. No lugar de ir ao campo com o pai e trabalhar
a terra, o menino passa o dia lendo uma “história comprida que não acaba mais”
(ANDRADE, 2013, p. 13).
Cabe reparar na escolha do livro do menino. Propositalmente, a história que ocupa
as tardes de nosso gauche é a de Robinson Crusoé, náufrago que passa 28 anos perdido
em uma ilha deserta, longe de tudo que estava relacionado à sua vida. A referência ao
romance de Daniel Defoe parece ser justamente devido ao seu caráter de exílio: isolado
na ilha, Crusoé teve de reestabelecer seu estilo de vida estando à parte do mundo. Talvez
sentisse o menino um apreço por esta personagem, pois ambos estavam, verdadeira ou
metaforicamente, deslocados de sua realidade.
Fica perceptível neste ponto do poema o traço biográfico do autor sobreposto nos
versos. Ainda que não tenhamos a presença do duplo “Carlos”, marcando o diálogo do
poeta com ele mesmo, o teor da composição indica claramente a relação estabelecida
entre a poesia e a infância do itabirano. A confluência entre vida e literatura vista em
“Infância” apenas sinaliza uma das principais marcas da obra de Drummond: a
transformação de dados biográficos em tecido poético. A recorrente presença de Itabira –
cidade natal do poeta – na construção de sua poesia comprova esse interessante traço
estético.
Desse modo, o fato de Drummond não ter virado também um fazendeiro aos
moldes de seu pai, tornando-se, na verdade, um funcionário público e escritor, ajuda a
compreender o cenário de desajuste vivido pelo menino em sua infância no poema – isto,
é claro, levando em consideração que o poeta institucionaliza na imagem gauche um
113
“estrato psicológico”, recuperando Sant’Anna (1980) e as considerações já feitas neste
capítulo anteriormente. Dessa maneira, exilados dessa atmosfera ruralista e desse destino
patriarcal, encontram-se o menino Carlos e o gauche, aquele projetado neste.
Seguindo a leitura dos versos, o abismo existente entre o menino e a família fica
ainda mais evidente na segunda estrofe quando, em contraposição à objetividade com que
fala de seus pais e de seu irmão mais novo, é usado um tom extremamente subjetivo e
saudoso para inserir à cena a imagem da negra, possivelmente criada da família. O carinho
que sente pela “preta velha” (ANDRADE, 2013, p. 13) é sinestésico e perceptível pela
lembrança de seu café: “Café preto que nem a preta velha/ café gostoso/ café bom”
(ANDRADE, 2013, p. 13).
A falta de aproximação entre o eu lírico e o restante da família ainda é bem
acentuada na terceira estrofe. O único momento em que há um direcionamento do olhar
e da atenção da mãe para o menino surge em forma de repreensão; ainda que estivesse
quieto lendo, recebeu ordens para não acordar o irmão pequeno. O contraste de afeto dado
pela mãe aos dois filhos fica mais visível nos versos que seguem. “Para o berço onde
pousou um mosquito” (ANDRADE, 2013, p. 13), a mãe dá um longo suspiro, porque
talvez acreditasse que ali dormia quem pudesse, quando mais velho, dar prosseguimento
à tradição da família, uma vez que o nosso gauche já se encontrava em um estado de
deslocamento irreparável.
A quinta e última estrofe sela o fim da recuperação das memórias e o aparecimento
de um epílogo sentimental que nada tem de irônico se comparado ao escrito em “Poema
de sete faces”. A confissão feita pelo eu lírico, então, dentro da perspectiva temporal com
que é construído o poema, é introduzida no momento da recomposição dessas memórias
em versos e não no momento em que o menino vivia a sua infância. Isso explica o tom
de lamento do sujeito poético ao afirmar que não sabia, àquela época, que a sua história
“era mais bonita que a de Robinson Crusoé” (ANDRADE, 2013, p. 13).
Assim, ao marcarem o lamento pela descoberta tardia da beleza de sua história
ainda que tivesse vivido como um exilado daquela realidade rural e patriarcal em sua
infância, esses dois versos finais apontam para uma outra “face” do deslocamento do eu
lírico presente nesse poema. Enquanto a primeira “face” diz respeito à sensação de não
pertencimento a essa tradição familiar, a segunda põe em evidência um sujeito que
também vive deslocado diante do tempo.
Nesse sentido, deparamo-nos com um dos mais angustiantes impasses pelo qual
passa o gauche na obra do itabirano: não tendo desfrutado de sua infância e adolescência
114
devido ao seu contínuo desajuste, o gauche tenta, pelas lembranças evocadas no presente,
aproximar-se daquilo que não conseguiu viver de forma efetiva. Por isso, na poesia de
Drummond, é comum que, em paralelo à exposição da eterna sensação de deslocamento
sentida pelo eu lírico quando vivia no interior, exista a evocação constante do seu tempo
de província. Não é à toa, portanto, que o poeta configure Itabira como um retrato na
parede que dói permanentemente.
A dificuldade em achar um meio-termo em que possa se encaixar faz com que o
gauche viva sempre entre uma coisa e outra – problema que, geralmente, como já visto
até aqui, materializa-se entre o passado e o presente, a província e a metrópole. Essa
existência em uma “terceira margem” da vida é concretizada em vários outros poemas
que compõem Alguma poesia, mas vale destacar, por último, o conflito exposto em
“Explicação”:
(...)
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
(ANDRADE, 2013, p. 74-75)
É interessante notar nesse poema como a herança familiar e provinciana de
Drummond é realmente um ponto complexo na obra do poeta. Entre a sensação de exílio
por não pertencer à realidade provinciana do interior de Minas e o desejo de morar numa
“cidade grande”, o gauche drummondiano irá se inserir num terceiro lugar: no elevador
vai pensar na roça, na roça vai pensar no elevador. Esses versos sinalizam o sofrimento
de um sujeito poético sempre em trânsito, na medida em que nunca consegue se vincular,
efetivamente, a um determinado local, a uma determinada conjuntura.
Embora de corpo presente na metrópole, o passado interiorano faz com que seja
sempre a “mesma sen-si-bi-li-da-de” (ANDRADE, 2013, p. 74) quando algo na cidade o
faz relembrar os tempos de Itabira, como, por exemplo, “a voz de uma viola”
(ANDRADE, 2013, p. 74). Contestada pelo menino, que na infância assistia a tudo
distantemente e sonhava com uma “ilha” em que pudesse também se exilar, a “casa
115
colonial da fazenda” (ANDRADE, 2013, p. 74) surge, nesse poema, em patamar de
igualdade aos prédios comerciais de um grande centro urbano. Apesar de desejada no
passado, a vida urbana e moderna em uma grande metrópole não será verdadeiramente
comemorada por essa personagem, mas sentida.
É em relação a este aspecto que Merquior (2012) afirma que, em Alguma poesia,
“o espaço natural da vida moderna – a grande cidade – é um objeto ambivalente, ao
mesmo tempo desejado e rejeitado” (MERQUIOR, 2012, p. 47). Isso faz com que o
conflito província versus metrópole seja uma das mais dolorosas “faces” do desajuste do
Eu diante do Mundo, porque não está apenas presente na infância desse ser deslocado,
mas o acompanha por toda a sua vida.
O desajuste também pode ser notado entre o sujeito e o seu país, como assinalado
em “Europa, França e Bahia”. Tensionamento recorrente entre Mário e Drummond nas
cartas, a questão do nacionalismo no poema evidencia o reconhecimento do desarranjo
entre o poeta – aqui transformado em personagem – e o Brasil, na medida em que há a
confissão, logo no verso que abre o poema, de que, apesar de brasileiros, os olhos e o
imaginário desse sujeito estão “voltados”, simbolicamente, à Europa.
A rápida associação dessa declaração à dificuldade que Drummond apresentava
em abandonar a tradição europeia a fim de criar um maior laço com o elemento nacional
é inevitável. Embora tenha revelado a Mário que a sua influência tinha o transformado
em um verdadeiro brasileiro, sabemos que Drummond jamais atendeu ao programa
modernista de valorização do elemento nacional como os intelectuais paulistas, sobretudo
Oswald, fizeram.
A última estrofe é prova disso: os olhos brasileiros que “se fecham saudosos”
(ANDRADE, 2013, p. 20) da tradição com a qual possuíam anos de vínculo abrem-se,
forçada e dolorosamente, ao seu país de origem. Recuperando um dos maiores símbolos
da nacionalidade em literatura brasileira, a “Canção do exílio”, o eu lírico tenta, evocando
as palmeiras e o sabiá, estabelecer esse vínculo tão necessário à tradição literária nacional.
À figura do desajustado unem-se outras marcas que personalizam e ajudam a
compor a dicção modernista de Drummond em Alguma poesia. “Cota zero” serve-nos
como exemplo da camada de consciência de seu tempo que o poeta atinge já nesses
versos, aspecto que é potencializado à medida que o escritor vai lançando suas obras.
Atrás da máscara do riso em um poema extremamente curto, o itabirano lança uma
reflexão sobre a vida do homem moderno:
116
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(ANDRADE, 2013, p. 60)
Em um artigo intitulado “Nosso clássico moderno”, Merquior (1983) declara que
muitos dos poemas da reunião de 1930 estão assinalados pela consciência histórica do
poeta, construída pelo seu passado provinciano e por toda a peculiaridade do meio em
que vivia. Na esteira desse raciocínio, é perceptível a transferência para alguns versos de
uma angústia sentida pelo eu de origem provinciana que se depara com a rápida
transformação de seu país agrário em sociedade industrial (MERQUIOR, 1983, p. 142),
gerando todo o desconforto e o desajuste com as aceleradas mudanças que presencia.
Em “Cota zero” é justamente isso que vemos: atrás da face cômica, há uma outra
que denuncia a perturbação diante de uma vida moderna tão dependente das inovações
típicas dos novos tempos. Em contraposição ao sujeito poético que preferia contemplar a
beleza de jardins ermos, temos aqui um “eu” que vai à rua e não gosta do que vê, porque
a vertigem urbana e o monstruoso poder do capital o deixam, dentre outros sentimentos,
tonto e inconformado.
A curta composição, então, prenuncia uma troca de papéis que só foi se acirrando
ao longo das décadas e, hoje, é pauta de discussões sociológicas e filosóficas. Ao indagar
se era a vida do indivíduo moderno que havia parado ou se era o automóvel, o poeta
transpõe para o poético a perda de controle do homem sobre sua autonomia ocasionada
pelo avanço do poderio da máquina, que, ao final dos anos 1920, já demonstrava perigoso
domínio perante a atuação humana. As implicações da modernidade também atingiram a
relação poeta-poesia-público, encontrando sua melhor expressão, em Alguma poesia, no
poema “Nota social”:
O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem na terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
117
Bravos...
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.
(ANDRADE, 2013, p. 43)
O poema se inicia com versos curtos, em “flashes”, cujo ritmo parece querer
acompanhar a vertigem da vida moderna. De caráter descritivo e, de certa forma,
narrativo, os versos apresentam a imagem do poeta em relação direta com os artifícios da
modernidade, na medida em que é obrigado a fazer uso dessas inovações: ao desembarcar
na estação, “o poeta toma um auto” (ANDRADE, 2013, p. 43) e, chegando ao hotel, “o
poeta entra no elevador” (ANDRADE, 2013, p. 43).
A obrigação de ter de entrar em contato com esses equipamentos se vincula a uma
nova condição do poeta gerada pelas mudanças comportamentais e estruturais por que
passava a sociedade na época. Nesse sentido, é notório que a modernidade decretou a
dessacralização da arte e, consequentemente, do poeta, transformando-o em “qualquer
homem da terra” (ANDRADE, 2013, p. 43). Outrora preso à torre de marfim, observando
a vida “de cima”, o poeta tem de lidar com um tempo que não comporta mais a
sobreposição da arte à vida, obrigando-o a andar com os seus.
Essa nova visão concedida à poesia e ao próprio poeta acarretou efeitos negativos
para ambos, o que pode ser visto nos versos que culminam, ainda na primeira estrofe, na
imagem do poeta melancólico. A modernidade, portanto, tratou de, numa espécie de
duplo, desvalorizar a arte e o seu compositor e forçá-la a adaptar-se ao sistema utilitarista
próprio do capitalismo. A cidade em festa enquanto o poeta está melancólico é o retrato
do desajuste entre o espaço urbano e o vate, tensionamento iniciado em Alguma poesia,
mas prolongado pela obra drummondiana – vale lembrar da poesia transformada em
provimento renegado na fala mitopoética de “O elefante”, de A rosa do povo.
118
A segunda estrofe põe em evidência a técnica da descontinuidade, fragmentando
a cena poética, na medida em que há a substituição da descrição do movimento do poeta
pela cidade para a menção a uma outra parte do cenário urbano. A mudança de referência
de observação não acarreta, entretanto, igual mudança no que se refere às implicações
modernas até aqui mencionadas. Essa parte do poema, então, evidencia a natureza tão
presa ao utilitarismo capitalista quanto o poeta e a sua arte, afinal é na árvore, feita de
prisioneira, que “anúncios coloridos” (ANDRADE, 2013, p. 43) são pregados. A
consciência da fragilidade do homem e da natureza frente ao poder do capital, presente
nesses versos, só poderia desembocar na reafirmação que encerra o poema: “O poeta está
melancólico” (ANDRADE, 2013, p. 43).
Nem todos os poemas, evidentemente, apresentam a carga reflexiva existente em
“Nota social”. Há outras composições em Alguma poesia que levam a expressão
modernista ao máximo, pois representam a prática dessa dicção em termos estilístico e
temático. É o caso de “Construção”:
Um grito pula no ar como foguete.
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.
E o vento brinca nos bigodes do construtor.
(ANDRADE, 2013, p. 17)
Há no poema um procedimento bastante semelhante ao princípio da colagem
cubista, recurso visto em inúmeros poemas de Oswald de Andrade, como nos que têm
por título “Cidade” e “Hípica”. De forma semelhante, mas em menor intensidade,
Drummond também elabora uma cena fragmentada de uma situação banal do cotidiano
brasileiro, nomeando com uma só palavra, tal qual Oswald, o conjunto de versos.
De caráter extremamente descritivo, o poeta reforça seu gosto pela contemplação
do prosaico em versos simples que simulam a simplicidade da cena retratada. A técnica
da colagem empregada permitiu que, em poucas linhas, tivéssemos uma cena completa,
com diversos elementos, uma vez que a fragmentação da perspectiva nos rende uma visão
ampla do que está sendo observado sem que o poeta necessitasse criar um longo poema.
O notório vanguardismo da composição rendeu elogios de Mário de Andrade, para quem
Drummond enviou o poema seis anos antes do lançamento de Alguma poesia.
“‘Construção’ como forma é perfeito” (ANDRADE, 2002, p. 72) e “distinção com
119
louvor” (ANDRADE, 2002, p. 232) foram as expressões usadas pelo paulista para
demonstrar seu gosto pelo poema.
Igualmente apreciado por Mário, que o chamou de “obra-prima” (ANDRADE,
2002, p. 234), “Cidadezinha qualquer” também encena o prosaico, mas em um ambiente
mais provinciano que o do poema anterior. Isso fica evidente pelo cenário rural montado
pelos versos, corroborado pelo uso de palavras como “bananeiras”, “laranjeiras” e
“pomar”, que se contrapõem ao conjunto lexical utilizado pelo poeta quando da escrita
dos poemas voltados ao urbano. Numa cidadezinha do interior como qualquer outra, aqui
temos a calmaria tão em falta na vertigem do cotidiano de uma cidade grande:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(ANDRADE, 2013, p. 49)
Também de caráter extremamente descritivo como boa parte dos poemas em
Alguma poesia, a letargia típica a uma cidade provinciana que ainda não enfrenta as
implicações do surto industrial e da mecanização da vida é transmitida em “Cidadezinha
qualquer” de duas formas: na escolha da cena retratada e na utilização de técnicas de
construção poética. Assim, a economia vocabular – que gera versos curtos – e a reiteração
da palavra “devagar” ajudam, no plano estilístico, a pintar um quadro rural em que
homens, mulheres, árvores frutíferas e animais convivem no mesmo plano temático, que
é a contemplação do moroso dia a dia de um lugar provinciano.
Apesar de não mencionar Itabira em “Cidadezinha qualquer”, é quase impossível
não associarmos o poema à cidade natal de Drummond, sobretudo porque o cenário
retratado muito se assemelha ao local de origem do poeta, sem falar, obviamente, no
acentuado gosto, que o mineiro demonstrou ter em Alguma poesia, de transformar Itabira
em material poético, que também será inserido em toda a sua obra subsequente. Segundo
a bibliografia comentada realizada por Fernando Py (1980), o poema teria sido escrito em
julho de 1926, ano em que Drummond retorna à Itabira após passar um largo período em
Belo Horizonte.
120
No entanto, em carta já mencionada, enviada a Mário em 3 de junho de 1926,
Drummond, nos cadernos de versos que compartilhou com o escritor paulista, inseriu
também “Cidadezinha qualquer”, já que o autor de Pauliceia o comenta na
correspondência de 1º de agosto desse mesmo ano. Apesar de o mês das missivas não
corresponder ao indicado por Fernando Py (1980), certamente o poema foi escrito em
1926 ou, no máximo, em 192554.
Independente da confusão das datas do poema, cabe apontar que alguns relatos de
Drummond nas cartas sobre seu retorno à Itabira e sua estadia na cidade muito se
assemelham aos elementos de “Cidadezinha qualquer”, como a precariedade de
transporte para chegar, enfim, à sua casa: “andei oito léguas no lombo do burro, debaixo
de chuva e com atoleiros medonhos” (ANDRADE, 2002, p. 198). Em outra ocasião,
Drummond menciona a letargia da cidade, mas não deixa de transparecer seu carinho,
ainda que conflituoso, por Itabira:
A vida aqui é manhosa, disfarçada, a gente custa a perceber que ela
funciona, mas tenho a suspeita de que é profunda, profunda. Será o
corpo que começa a amar a terra?... Meu Deus! Livrai-me do caminho
da perdição! Você foi terrível de observação clínica ao escrever aquelas
palavras: “o corpo vai sentindo amando a terra boa mas traiçoeira...”.
Será o que Deus quiser (ANDRADE, 2002, p. 208).
Nesta carta de 1º de abril de 1926, há ainda um outro comentário importante para
essa relação que estamos estabelecendo entre Itabira e o poema em questão. É sobre um
ritual de sua cidade natal, também apreciado pelo poeta: observar a distribuição da
correspondência dos moradores, prática realizada sob olhares sempre atentos e curiosos
de todos e que Drummond diz ser a sua única forma de distração (ANDRADE, 2002, p.
208). Em “Cidadezinha qualquer”, as janelas que olham representam, metonimicamente,
a tradição contemplativa do interior – isto é, pela expressão popular, “ver a vida passar”
–, da qual não foge o sujeito poético, já que igualmente observa e nos narra a cena.
Por fim, o poema se encerra com um verso que interrompe a descrição que vinha
sendo feita e materializa a participação do eu lírico na cena. Afinal, “Eta vida besta, meu
Deus” (ANDRADE, 2013, p. 49) soa como uma frase solta após um longo suspiro, dita
por aquele que contemplava, até então quieto, a paisagem à sua frente. Embora não
possamos afirmar que a cidadezinha qualquer é de fato Itabira, não há como negar que a
54 Deve-se lembrar que “Cidadezinha qualquer” não estava no primeiro conjunto de versos enviado a Mário
em 1924 logo após o encontro dos paulistas com os mineiros em Belo Horizonte, o que limita a escrita do
poema ao recorte temporal 1925-1926.
121
voz desse poema se confunde, muitas vezes, com aquela do homem que está atrás do
bigode.
Há, notoriamente, muitos outros poemas que serviriam para demonstrar as várias
faces que o Modernismo de Drummond assumiu em seu livro de estreia. “Quadrilha”,
“Balada do amor através das idades” e “Moça e soldado”, por exemplo, desromantizam
o amor e o reduzem à comicidade, criando uma outra via para um tema extremamente
idealizado pela tradição literária ocidental. Por um outro caminho seguem os poemas da
seção “Lanterna mágica”, que, num aspecto documental, de certa forma evidenciam “a
influência do poema cartão-postal (do qual Oswald era o maior praticante brasileiro)”
(GLEDSON, 2003, p. 41).
Podemos dizer, portanto, que Drummond, à sua maneira, perpetua em Alguma
poesia muitos dos ideais propostos pelo grupo paulista de 1922, mas, ao mesmo tempo,
também se insere na mudança de perspectiva que tomou o movimento em 1930, quando
este se tornou mais político e social. A naturalidade com que essa dupla adequação nos
aparece – adequação tanto à “primeira fase” do Modernismo quanto à vertente mais crítica
do movimento – destoa do pessimismo de quem, em 1928, julgava como velhos “seus
versos guardados demais na gaveta” (ANDRADE, 2002, p. 326). Mal sabia Drummond
que seus poemas não perderiam a vitalidade, atributo substancial de todo grande e eterno
poeta.
122
CONCLUSÃO
O percurso dissertativo tomado por esta pesquisa materializou o desejo de
(re)colocar em posição de destaque os caminhos poéticos percorridos por Carlos
Drummond de Andrade na década de 1920, haja vista a importância desse período na
construção de Drummond enquanto escritor, mas, principalmente, enquanto poeta.
Dizemos (re)colocar, pois, ainda que sejam muitos os estudos já feitos a respeito dessa
poesia inicial do itabirano, a recente descoberta pela crítica literária da existência da
reunião de versos datilografados em 1924 – Os 25 poemas da triste alegria – de certa
forma corrobora a necessidade de reavaliação do início da trajetória poética de
Drummond.
Muitos desses poemas já eram conhecidos pelos estudiosos do poeta, mas,
organizados em um frágil volume datilografado, essas composições, outrora dispersas,
“soltas”, ganham uma simbologia maior, porque atingem, em conjunto, o caráter de
objeto – ou, pelas palavras de Antonio Carlos Secchin (2012), de “quase livro”. Conforme
mencionado nesse artigo de Secchin (2012), essa incipiente reunião chegou inclusive,
sem se saber exatamente de que forma, às mãos de outros escritores além de Mário de
Andrade55, como Rodrigo M. F. de Andrade.
Apesar de Drummond desqualificar os versos em algumas das cartas enviadas ao
paulista ao longo de 1926, o compartilhamento do conjunto com outros escritores, a
publicação ou a republicação tardia de alguns desses poemas durante a década de 1920 e
o próprio ato de converter as folhas soltas em um volume datiloscrito nos sugerem que
essa reunião tem uma importância muito maior do que a demonstrada pelo poeta nas
missivas. Os 25 poemas da triste alegria, portanto, ajudam a crítica a (re)pensar o lugar
que ocupou Drummond no Modernismo, na medida em que expõem um poeta que antes
trabalhou arduamente para elaborar uma dicção modernista do que instintivamente nasceu
com ela.
Por isso, esta dissertação, ao longo dos dois primeiros capítulos, buscou recuperar
as bases de influência desse “primeiro” Drummond, examinando a atitude cética,
passadista, melancólica e evasiva tão comum aos poemas do início da década de 1920.
Foi preciso ir além do Penumbrismo para que entendêssemos como a literatura de
decadência finissecular francesa se transformou numa espécie de simbolismo tardio no
55 Vale ressaltar que Mário recebeu, em 1926, o conjunto de versos, mas não o próprio datiloscrito.
123
Brasil, sendo ainda praticada em solo nacional às vésperas do acontecimento vanguardista
que mais marcou o cenário cultural brasileiro, isto é, a Semana de Arte Moderna. Daí a
necessidade de discutirmos o Decadentismo francês, haja vista que uma boa parte da
crítica concebe o Penumbrismo como um veio do movimento fin-de-siècle europeu.
Retomado o Decadentismo, expor as características do estilo de penumbra no
Brasil se mostrou igualmente necessário para que, posteriormente, pudéssemos localizar
Os 25 poemas da triste alegria nessa estética. A partir da análise do embate entre
penumbristas e parnasianos e também do estilo de escrita de importantes figuras dessa
atitude poética, como Álvaro Moreyra, Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho, foi possível
identificar um “primeiro” Drummond ainda muito inseguro em relação à sua poesia,
transferindo aos seus versos, de forma irrestrita, “cacoetes” desses escritores.
A relação pouco crítica que Drummond estabeleceu com o Penumbrismo
brasileiro e com o Decadentismo francês foi reafirmada pelo próprio poeta quando este,
em 1937, insere no datiloscrito comentários a respeito da pobreza e da repetição nesses
poemas. Se os versos reunidos em 1924 demonstram pouca autonomia intelectual do
itabirano nessa época, Alguma poesia, lançada seis anos depois, choca pela diferença de
atitude poética, em um primeiro momento. No entanto, quando investigado o percurso
tomado pelo escritor durante a década em questão, é possível perceber que a obra de 1930
materializa um árduo amadurecimento corroborado por uma série de agentes e fatores
literários e extraliterários.
Essa reelaboração de caráter estético-psicológico, endossada pelo
amadurecimento de uma dicção modernista ao longo da década de 1920, foi a responsável
pela edificação de uma singular poética drummondiana. Em contraposição aos versos
nada autênticos da reunião de 1924, Alguma poesia iniciou um trajeto literário empreitado
pelo poeta ao longo de toda a sua obra, na medida em que foram vistas inúmeras faces,
estilos e temas nos mais de 60 anos de produção.
No que se refere especialmente ao Modernismo, o livro de 1930 marcou a
participação singular de Drummond no movimento. Antes da investigação do tortuoso
vínculo do poeta ao programa modernista, mostrou-se necessária a pesquisa sobre os
antecedentes da Semana de Arte Moderna e os desdobramentos ideológicos e estéticos
do movimento. Recuperamos, então, alguns dos programas idealizados pelos intelectuais
paulistas, como a tentativa de estilização do português brasileiro e a institucionalização
de uma tradição verdadeiramente nacional.
124
De todas as figuras envolvidas no movimento, Mário de Andrade certamente foi
o mais importante no que tange ao amadurecimento da dicção modernista drummondiana.
Essa frutífera relação foi analisada por meio de cartas e de relatos que expõem não só a
amizade estabelecida pelos dois logo após a caravana paulista em Belo Horizonte no ano
de 1924, como também a influência do paulista enquanto estímulo intelectual para
Drummond. Com grande inteligência e franqueza, Mário, por anos, discutiu com o
itabirano, através das missivas, os principais programas do Modernismo, o que gerou
longos e prazerosos embates entre as duas figuras.
De fato, o maior tensionamento entre os dois foi a questão do nacionalismo,
sobretudo porque Drummond não havia estabelecido ligação com a tradição cultural do
Brasil, sendo muito apegado à literatura europeia, em especial a francesa. “Afastado” de
seu país, Drummond foi muito criticado por Mário, que insistentemente reforçou a
necessidade de uma literatura nacional para alimentar essa tradição brasileira que ambos
julgavam rudimentar, precária. Em síntese, o paulista queria que o mineiro entendesse
que a solução para a questão nacional era simplesmente ser o que Drummond rejeitava:
ser brasileiro.
A grande admiração que tinha por Mário, o envolvimento com outros rapazes de
Belo Horizonte dispostos também a melhor conhecer os programas estético-ideológicos
dos paulistas e o espírito inquieto e rebelde de Drummond foram, dentre outros aspectos
e fatores, peças fundamentais à tomada de consciência do mineiro a respeito do papel do
poeta diante de seu meio e de seu tempo. Daí os versos de Alguma poesia serem
extremamente diferentes dos que compõem Os 25 poemas da triste alegria, fato que esta
dissertação buscou evidenciar, principalmente no último capítulo.
Ambas as obras, quando colocadas em análise nesta pesquisa, auxiliaram o
objetivo de nosso estudo, que se concentrou em discutir como Drummond se expressou
por meio de um viés penumbrista e de que forma se vinculou ao programa modernista
num recorte temporal tão curto. A produção de poemas rigorosamente distintos em um
breve período apenas reforçou como a década de 1920 foi, para o poeta, riquíssima em
influência literária e experimentalismo estético.
Quando pensada a obra poética de Drummond em sua totalidade, a importância
dessa década se torna ainda maior, sobretudo porque é em uma boa parte dos poemas
dessa época que surgem tensionamentos e estilos que ajudarão a compor, ao longo de
todos os anos de produção do mineiro, a singularidade de sua poesia. Não é à toa que o
gauchismo, a simbologia da pedra e o olhar contemplativo irônico, embora tenham
125
assumido distintas faces em obras posteriores, jamais deixaram de figurar entre os versos
do itabirano.
Esta pesquisa, portanto, percorreu novamente, dentro dos limites inerentes a uma
dissertação de Mestrado, os primeiros passos poéticos do itabirano, a fim de endossar a
perspectiva da crítica drummondiana mais atual. Assim sendo, reconhece-se a
imprescindibilidade de retomarmos esse trajeto para que possamos compreender melhor
o local da poesia de Drummond não só na década de 1920 e no Modernismo brasileiro,
como também na tradição literária nacional.
Em uma carta destinada a Mário de Andrade em 29 de outubro de 1929, pouco
antes do lançamento de Alguma poesia, Drummond chegou a confessar ao amigo que
achava ser possível não conseguir mais produzir outro livro, já que estava “ficando cada
vez mais poeta por dentro, mas cada vez menos versejador” (ANDRADE, 2002, p. 358),
fazendo menção a uma “poesia interior” (ANDRADE, 2002, p. 358) que o incomodava
por dentro, sem que o mineiro soubesse como colocá-la para fora. Essa fala resume e
conclui o que foi o poeta Drummond não só na década que estudamos, mas durante toda
a sua vida: um escritor em luta com as palavras, mas que, desde o primeiro poema escrito,
jamais ficou distante do compartilhamento da sua poesia. Afinal,
Participação na vida, identificação com os ideais do tempo (...),
curiosidade e interesse pelos outros homens, apetite sempre renovado
em face das coisas, desconfiança da própria e excessiva riqueza interior,
eis aí algumas indicações que permitirão talvez ao poeta deixar de ser
um bicho esquisito para voltar a ser, simplesmente, um homem
(ANDRADE, 2011, p. 182).
126
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Anexo B – Paulo Geraldino dá início a uma série de sátiras aos penumbristas em O
Imparcial, ano X, n. 1.212, p. 4. 18 de março de 1922.
134
Anexo C – MORENO, Paulo. Balcão de retalhos. O Imparcial, ano X, n. 1.288, p. 4.
5 de maio de 1922.
136
Anexo E – Entrevista concedida por Ronald de Carvalho à revista D. Quixote em
11 de outubro de 1922, p. 14.
139
Anexo H – ATAÍDE, Tristão de. Pressentimentos. Jornal do Brasil, ano LXXXV, n.
3, p. 7. 11 de abril de 1975.
141
Anexo J – Capa do Suplemento Literário em homenagem aos 50 anos da Semana
de Arte Moderna, n’O Estado de S. Paulo, em 20 de fevereiro de 1972, p. 273.