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    Entre a caixa preta

    e o cubo branco:

    Adolfo CifuentesDoutor em Artes pela Escola de Belas-Artes daUniversidade Federal de Minas Gerais.

    O vdeo,a imagem-movimento

    no contextodas artes plsticas

    RESUMO

    Este artigo aborda, a partir de alguns eixos provenientes do discurso

    da intermidialidade, um segmento da produo artstica contempornea

    constitudo pela apropriao da imagem-vdeo a partir das artes plsticas,

    em um leque de manifestaes que, j desde a sua denominao composta,

    denotam uma zona de intermidialidade hbrida. Videoinstalao, videoes-

    cultura, videoperformance s podem ser pensados como zona de limitesmiditicos. No entanto, os contatos e encontros entre mdias no so feitos

    s da mistura de tcnicas ou de ferramentas, mas tambm, em grande

    parte, do dilogo das tradies de construo do olhar do espectador nos

    espaos que as diferentes mdias tm desenvolvido para a apresentao

    e fruio das suas imagens. Trata-se ento, neste artigo e na pesquisa da

    qual ele faz parte, dos dilogos implcitos nessas manifestaes entre o

    cubo branco(a galeria, o museu) e a tipologia arquitetnica da caixa preta:

    o modelo do auditrio, caracterstico tanto da sala de cinema quanto da

    sala de teatro e de artes performticas em geral.

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    Mdia e dispositivo

    De fato, "a arte" no o conceito comum que unifica as diferentes artes. Ela

    o dispositivo que as torna visveis. Pintura no s o nome de uma arte. o

    nome de um dispositivo de exposio, de uma forma de visibilidade da arte.

    (RANCIRE, 2004, p. 36)1

    As temticas desenvolvidas neste artigo fazem parte de uma pesquisa mais

    ampla, ainda em andamento, na qual, sob o ttulo de Caixa preta e cubo

    branco: duas tradies do olhar, explora-se um setor da produo artsticacontempornea constitudo pela apropriao da imagem cinemtica2pelos

    artistas plsticos, em manifestaes como a videoinstalao, a videoescul-

    tura ou a videoperformance. Dar incio a este artigo pelas denominaes de

    algumas estratgias de produo tem a vantagem de tornar "reconhecvel"

    uma zona aparentemente delimitada e "clara": os cruzamentos hbridos da

    imagem em movimento com os vrios campos das artes "plsticas" (pintura,

    escultura, arquitetura...). Porm, esse fechamento do campo pelo simples

    assinalar de algumas estratgias de produo no indica ainda com exatido

    a natureza da nossa abordagem.

    O olhar que estamos querendo construir foge dessas denominaes tcni-

    cas, para centrar-se naqueles espaos que do visibilidade arte, aos quais

    o filsofo Jacques Rancire faz meno na citao do cabealho. Designar

    uma arte fazer meno a um certo dispositivo de exposio. Para comear,

    poderamos sublinhar um fato significativo a respeito desses dispositivosde visibilidade: embora os tipos de manifestao alvo de nossa pesquisa

    sejam constitudos em sua base pela imagem em movimento, raramente

    so apresentados na caixa preta3da sala de cinema. Bem ao contrrio, esto

    inseridos de maneira natural nos circuitos de produo e difuso prprios

    do cubo branco(o museu, a galeria). Interessa-nos ento explorar e definir

    aqueles pontos e estratgias de contato, os lugares de trabalho que per-

    mitem essa migrao das telas4de um espao para o outro; porque, se o

    cubo brancoe a caixa pretarepresentam espaos e dispositivos diferenciadosnas suas maneiras de oferecer ao espectador as imagens que propem,

    as manifestaes que estamos abordando constroem pontes onde se faz

    possvel o encontro de mltiplas mdias e subespciesde imagens. O alvo

    especfico da nossa pesquisa est constitudo ento por essa espcie de

    corredores cinzas construdos em meio (e em suspense) entre o cubo

    brancoe a caixa preta, assim como pelas lgicas que lhes subjazem.

    1Traduo livre feita pelo autor deste artigo:De fait, lart nest pas le concept commun quiunifie les diffrents arts. Cest le dispositif que

    les rend visibles. Et peinture nest pas seulementle nom dun art. Cest le nom dun dispositif

    dexposition, dune forme de visibilit de lart.

    2Empregamos aqui a expresso imagemcinemtica para contornar uma diviso, muito

    ambivalente hoje, entre cinema e vdeo:grande parte do que chamamos hoje de cinema hoje digital, incluindo a filmagem, na maioria

    dos casos. Em grande parte da produo feitanos grandes estdios sobrevive s um momentode pelcula anloga: a projeo. As cpias finais,

    destinadas exibio pblica, continuam aser feitas em pelcula anloga de 35 mm

    3No Brasil a expresso caixa preta est fortementeligada cmara fotogrfica e, mais especificamente,

    ao livro de Vilm Flusser Filosofia da caixa preta(So Paulo: Hucitec, 1985). claro que no nesse

    sentido que empregamos aqui a expresso: elaassinala a sala de projeo do cinema e a tipologia

    arquitetnica da sala de auditrio em geral.

    4A expresso emprestada de Philippe Dubois,que fala de uma migrao da tela para almda sala de projeo no catlogo da exposio

    Movimentos improvveis. Centro Cultural do

    Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

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    a partir desse trnsito fenomenolgico que a noo de alicerce miditi-

    co proposta por W. Moser na citao do cabealho adquiriria todo o seu

    sentido: a arte, enquanto experincia sensorial, precisa de uma mdia para

    se materializar, para existir. Ainda mais: a afirmao poderia ser expressa

    de uma maneira mais enftica: a arte existe essencialmente como mdia. A

    natureza prpria de cada uma das diferentes artes seria ento a de trabalhar

    Do alicerce miditico e os seus limites

    A arte persegue seus prprios objetivos, apoiando-se no que chamei aqui

    de um alicerce miditico indispensvel, que , entretanto, frequentemente

    "esquecido" no ato de recepo. (...) O dispositivo das relaes entre as artes,

    com suas estratgias e prticas muito variadas, permite ao artista anular a trans-

    parncia da mdia, tornar a midialidade da arte opaca e, assim, reconhecida. A

    interao concreta entre duas artes, que implica sempre tambm aquela entre

    duas mdias, revela-se, portanto, como um caso privilegiado para se pensar a

    midialidade em um contexto que j intermiditico. (MOSER, 2006)

    A obra de arte feita para ser vista, escutada, lida. Podemos caminhar nela,

    como em uma catedral ou uma instalao, podemos compr-la e lev-la

    para casa como um quadro, podemos l-la ou ento-la em voz alta como

    um poema ou uma cano. A sua natureza sensorial: ela no algo ideal,

    mental ou conceitual.5Ela pertence ao universo dos sentidos. Alis, essa

    seria uma das caractersticas que a definem: ao contrrio da filosofia, ou

    das matemticas, as artes elaboram e do forma a uma mdia, propemespecificamente um material, um objeto sensorial, dirigido sensibilidade.

    claro que essa base material-sensorial constitui s um ponto de ancoragem

    a partir do qual se espera que a obra realize outras operaes (conceituais,

    simblicas, espirituais, transcendentais, etc.) mas necessariamentea partir

    dessa natureza do mundo sensvel, da experincia sensorial oferecida aos

    rgos receptores prprios da nossa espcie, que a obra pode executar

    essas outras funes.

    5 claro que mesmo a arte a que se chama deconceitual prope objetos a partir dos quais possvel estabelecer o carter artsticoda proposta.

    A OBRADEARTEFEITAPARASERVISTA, ESCUTADA, LIDA(...):AOCONTRRIODAFILOSOFIA, OUDASMATEMTICAS, ASARTESELABORAMEDOFORMAAUMAMDIA, PROPEMESPECIFICAMENTEUMMATERIAL, UMOBJETOSENSORIAL, DIRIGIDOSENSIBILIDADE.

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    um material, uma mdia especfica: a linguagem verbal para a literatura, o

    som para a msica, a imagem bidimensional para a pintura, o volume (a

    tridimensionalidade) para a escultura, o espao associado funo como

    campo prprio da arquitetura, a imagem audiovisual em movimento para

    o cinema, etc.

    Esse encontro inevitvel entre arte e mdia teria vrias consequncias. Uma

    delas estaria dada por certa sincronia do desenvolvimento do discurso

    esttico e do discurso miditico. Paralelamente ao nascimento da esttica

    tal como hoje a conhecemos (Baumgarten cunhou o termo em 1755), a

    Alemanha da segunda metade do sculo XVIII foi testemunha tanto da

    publicao da Crtica do juzo, por Kant (1790), como do Laocoonte ou

    dos limites entre a pintura e a poesia, de Gotthold Ephraim Lessing (1766),

    considerada como a obra pioneira do discurso miditico. Essa importante

    publicao foi o resultado de uma contenda intelectual: frente s teorias de

    Winckelmann,6que propunham a existncia de um s ideal para todas as

    artes, Lessing defendeu, no seu clssico Laocoonte...,a natureza das distin-

    tas formas de expresso artstica, segundo os meios tcnicos empregados,e definiu ento os objetos respectivos das artes plsticas e da poesia de

    acordo com suas caractersticas prprias. Escultura e pintura, como artes

    que se expandem no espao, tenderiam sntese, enquanto a poesia,

    que se expande no ritmo prprio do tempo e tambm na narratividade

    do discurso, tenderia anlise.7Colocam-se ali duas grandes categorias,

    segundo a natureza do "material" trabalhado: objetos fsicos, espaciais, ou

    objetos "temporais" inapreensveis fisicamente, cujo material se expandeno tempo. Artes, do espao e do objeto (plsticas), por um lado, e artes do

    tempo (interpretativas, performticas),por outro. Cada mdia teria ento

    uma especificidade prpria, que impe, por sua vez, as suas leis, tipos de

    condicionamento e modos de articulao prprios.

    Aquela anlise central na nossa pesquisa: historicamente, a imagem fixa

    das artes plsticas tem estado ligada a uma ontologia do objeto. A sua ima-

    gem toma corpo na matria, fixa-se e permanece graas ao "congelamento"do tempo que ela realiza, desde o ponto de vista da permanncia da prpria

    pea (escultura, pintura...) como da "apreenso" do instante que ela efetua.

    Essa captura do instante seria paradigmtica na imagem fotogrfica, por

    exemplo, mas a estratgia do congelamento e da imobilizao constituti-

    va da prpria natureza da imagem fixa, e poderia ser rastreada ao longo da

    histria da pintura e da escultura. De outro lado, as artes interpretativas, ou

    performticas, esto ligadas ao acontecimento: desenvolvem-se no tempo

    6As publicaes de Winckelmann (Reflexessobre a imitao dos gregos na escultura e na

    pintura, 1755, Histria da Arte na Antiguidade,1764, e Monumentos antigos inditosexplicados e ilustrados, 1767) constituem elos

    igualmente essenciais para uma compreensodo pensamento esttico contemporneo.

    7A snteseproposta por Lessing tem a ver coma condensao da narrativa em um nico e

    emblemtico instante (o grupo de esculturasgregas conhecido como o Laocoonte foi o

    paradigma (da o nome do livro), mas tambmtoda a pintura histrica da segunda metade do

    sculo XVIII e primeira metade do XIX constituembons exemplos dessa sntese,O juramento dos

    Horciosde David, por exemplo. Talvez sejatambm importante lembrar que, nesses limites

    entre tempo e espao esboados por Lessing paradelimitar os territrios das artes plsticas e da

    poesia, poesiaquer dizer ali no s a escrita, mastambm a palavra viva, entoada, interpretada:o

    aedo, o bardo, o poeta cantor, no s o texto escrito

    a que tendemos s vezes a reduzir o termo.

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    aimagem-movimentonocontextodasartesplsticas

    muito menos das suas msicas, danas, rituais,

    cerimnias e eventos performticos em geral. E

    o que sabemos foi inferido da informao que

    nos do os objetos materiais preservados (ins-

    trumentos musicais por exemplo) ou as artes

    plsticas: desenhos, pinturas, representaes

    das performances, etc. Porm, alm do aparente

    distanciamento entre os dois campos, matria e

    temporalidade sempre dialogaram. A msica e

    a palavra, por exemplo, feitas ambas de ondassonoras, acharam nos sistemas de escrita um alia-

    do para vencer a sua transitoriedade. Os teatros

    grego, elisabetano, espanhol do sculo de ouro,

    por exemplo, so uma tima mostra disto: as suas

    apresentaes aconteceram h vrios sculos,

    mas conhecemos descries e escritos das per-

    formances e, sobretudo, temos acesso aos textos

    das grandes tragdias, comdias e dramas, e tudo

    isso permite sua apresentao at hoje.

    Porm, ainda que fundamental, a anlise feita por

    Lessing destes dois fenmenos (tempo e espao)

    no demarca exatamente a zona real na qual se

    desenvolve nosso percurso. E isso por vrias ra-

    zes. Primeiro porque, no contexto no qual elesublinhou essas diferenas, tratava-se, entre ou-

    tras coisas, de definir, no mbito de uma esttica

    normativa, um certo tipo de modus operandi, alm

    de alguns parmetros de julgamento para atingir

    e medir a perfeio formal e conceitual de uma

    obra: s na medida em que se reconhecessem

    os limites impostos pela natureza do material

    especfico a obra de arte poderia atingir a sua

    elevao e nobreza.

    E, segundo, porque a anlise de Lessing foi feita

    bem antes das inovaes tecnolgicas que, na

    segunda metade do sculo XIX, permitiram a cap-

    tura e a reproduo fsico-mecnica do som (o

    fongrafo), do tempo e do movimento (fotografia

    e pertencem ao mundo evanescente do gesto,

    natureza efmera do evento.

    A Vnus de Willendorf, por exemplo, uma das mais

    conhecidas esculturas neolticas, tem aproxima-

    damente 22.000 anos. Ela um objeto pequeno

    de pedra (11 cm de altura); porm, junto a uma

    srie tambm relativamente reduzida de escul-

    turas de caractersticas similares (representao

    da figura feminina, exaltando nela o seu papelde procriao), tem levado a complexas leituras

    interpretativas das sociedades pr-histricas e da

    sua estrutura social (matriarcado, religies cen-

    tradas na figura da deusa me, etc.). Os objetos

    permanecem, mesmo com a passagem do tempo.

    Os povos e estruturas sociais e religiosas que lhes

    deram origem desapareceram h muitos milnios,

    mas o objeto existe e testemunha do seu tempo.A partir dele podemos fazer interpretaes dos

    homens e culturas que os produziram. Historica-

    mente, as artes plsticas esto (estiveram?) ligadas

    a essa "ontologia" do objeto. Elas so (foram?)

    definidas desde essa caracterstica de produo

    de uma imagem que toma corpo e forma em uma

    matria, que se fixa e permanece graas ao "con-gelamento" do tempo, tanto a partir do ponto de

    vista da durao (permanncia) da prpria pea,

    como na "solidificao" do movimento que ela

    efetua. Essa lgica da imobilizao clara desde

    os primrdios das artes plsticas: nas famosas

    obras-primas da arte pr-histrica na caverna de

    Altamira, Espanha, por exemplo: o desenho de

    vrios animais (incluindo um touro e um cervo)os representam num momento congelado da

    sua veloz carreira.

    Inversamente, as artes interpretativas ou perfor-

    mticas acontecem e se desenvolvem no tempo.

    Conhecemos bem a escultura, a pintura e a arqui-

    tetura dos egpcios e dos gregos, mas sabemos

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    e cinema).8O nascimento e o desenvolvimento do cinema, nas ltimas

    dcadas do sculo XIX, marcaram um importante ponto de inflexo nessa

    diviso taxativa entre artes "do tempo" e "do espao". Mas, ainda mais que

    essas invenes, tudo o que havia por trs delas: a evidncia de uma quebra

    epistemolgica gerada pela apario da temporalidade como categoria

    iniludvel de anlise no pensamento ocidental (a fenomenologia hegeliana,

    a evoluo darwiniana, a anlise econmica marxista, o espao-tempo da

    teoria da relatividade, entre outras)9mudou completamente nossos regi-

    mes de distribuio, classificao e pensamento dessas duas realidades.

    Assim, a matria e o tempo analisados por Lessing foram bem diferentesdaqueles aos quais fazemos referncia agora, tanto nas artes quanto nas

    concepes que temos hoje desses fenmenos na fsica e no pensamento

    contemporneo em geral.

    Alis, a histria das artes plsticas, tudo ao longo do sculo XX reflete clara-

    mente essa procura constante pela temporalidade: ela comeou nas ltimas

    dcadas do sculo XIX com os esforos dos impressionistas por capturar a

    fugacidade do mundo e continuou com a quebra cubista da perspectivafocal renascentista, propondo em seu lugar uma viso mltipla dos objetos

    percebidos de vrios pontos de vista (Braque, Gris, Picasso), e continuou

    tambm com as pesquisas futuristas na representao do movimento

    (Boccioni),10com as esculturas mveis de Calder e com a desestruturao

    do objeto material feita por movimentos como Fluxus, Arte Povera, arte

    conceitual, situacionismo, etc. Mas tambm com a arte de processos (Land

    Art, arte de participao, etc.) e com os mltiplos entrecruzamentos dasartes do objeto com as artes performativas e cnicas em happenings,

    performances, etc.

    A pergunta pela materialidade e a espacialidade, prprias do campo das

    artes plsticas qual fazemos referncia, estaria ento, necessariamente,

    inserida em outros contextos. Um deles, por exemplo, seria o rpido e

    promissor desenvolvimento dos meios digitais e o acelerado impacto das

    novas tecnologias na vida cotidiana. Fala-se muito hoje da maneira como avirtualidade e a experincia imaterial da imagem eletrnica estariam "rou-

    bando" cada vez mais espao materialidade, e substituindo-a (e isso no

    s no campo das artes) a ponto de poder chegar a suprimi-la ou torn-la

    obsoleta. O triunfo definitivo da virtualidade na experincia universal da

    rede. Tudo viraria e-arte todos iramos nos tornar e-artistas nessa utopia

    da comunicabilidade miditica global. Esse cenrio , com certeza, um dos

    mundos possveis, mas est longe de ser o nico. No mesmo momento em

    8Uma aproximao gnese dessas relaesintermiditicas do vdeo, apropriado pelos artistas

    plsticos, poderia comear ento pelos esforosdaqueles pioneiros que, como Muybridge, Mareyou Anschtz, criaram, ao longo da segunda

    metade do sculo XIX, engenhosos mecanismospara capturar imagens sequenciais. J no umaimagem s, um congelamento (o momento de

    sntese, para seguir a linguagem de Lessing), masa procura por reproduzir um contnuo temporal.

    9Ver Foucault (1966), abrangente estudo daapario dessa temporalidade na primeira metade

    do sculo XIX, basicamente em trs reas deconhecimento: linguagem (Bopp), economia

    (Ricardo, Marx) e cincias naturais (Darwin).

    10 claro que se trata aqui de uma relaomuito sucinta dos movimentos, escolas e

    artistas. Mencionamos Umberto Boccioni (1882-1916) porque foi ao mesmo tempo o maior dos

    tericos daquela vontade de capturar a sucessodinmica do movimento. Do mesmo modo,

    estamos conscientes de no ter mencionado,nesta breve sntese das tentativas de materializarplasticamente a temporalidade, uma obrato central como Nu descendo a escada, de

    Duchamp. Apesar de suas evidentes relaes como cubismo e o futurismo, essa pea de difcil

    classificao nas rotulaes prprias dessasvanguardas: ela est mais diretamente relacionada

    cronofotografiade tienne Jules Marey.

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    apretaeocubobranco:Ovdeo,

    aimagem-movimentonocontextodasartesplsticas

    corredores cinza que surgem nos dilogos entre

    as tipologias da caixa preta e do cubo branco.

    No estado atual da pesquisa definimos alguns

    eixos bsicos ao redor dos quais essas manifesta-

    es circulam, quebram, conjugam e reconstroem

    os condicionamentos das duas tradies do olhar

    prprias daqueles espaos paradigmticos do

    cubo branco e da caixa preta nos seus desen-

    volvimentos histricos. Eles sero enumerados

    e explorados de forma bastante sucinta nesta

    ltima seo do texto.

    Materializao

    Se o registro do movimento liberou a imagem

    das artes plsticas da sua imobilidade e conge-lamento, por outro lado deu origem a um tipo

    de imagem na qual as noes de materialidadee

    presena fsica desaparecem: as suas estratgias

    de produo esto, por definio, inseridas no

    estatuto ontolgico dos meios tcnicos; so ima-

    gens essencialmente miditicas e imateriais: a sua

    presena est desprovida de peso e de matria.

    claro que a contraposio e a pergunta sobre a

    relao imagem/realidadefazem parte do estatuto

    da imagem em geral: ela no objeto, mas a sua

    representao. Nesse sentido, a imagem cinema-

    togrfica representaria s um degrau a mais so-

    bre a noo do nexo entre "realidade" e imagem.

    Um desenho ou uma pintura de algumas frutas

    no so considerados mais "reais" do que uma

    fotografia pelo fato de serem produzidas mo

    e artesanalmente. Bem ao contrrio, as imagens

    fotogrficas e cinemticas tm reclamado para si,

    desde a sua apario, um estatuto ontolgico bem

    maior, que se faz evidente nos usos da fotografia e

    do cinema como ferramentas auxiliares de vrias

    que essas direes ganham adeptos, importncia

    e visibilidade, tambm outros desenvolvimentos

    evidenciam uma direo, e uma reao at, na via

    contrria: os dilogos com os espaos prprios

    da instalao contempornea, as apropriaes

    de lugares especficos nas intervenes in situ,

    a contnua experimentao, pela escultura e a

    pintura contemporneas, com todo tipo de ma-

    teriais e materialidades, etc. O prprio uso do

    vdeo no contexto da galeria, como veremos maisadiante, refletiria claramente esses cruzamentos:

    a imagem imaterial do vdeo materializada e

    espacializada, o espao padronizado da caixa

    preta da sala de cinema desconstrudo e rein-

    ventado, etc.

    Dois espaos e os seus

    corredores comunicantes

    Como dito no incio deste artigo, mais do que o

    alicerce miditico em si, o nosso norte est cons-

    titudo pelos dispositivos de visibilidade que cada

    mdia levaria implcita: a msica est unida ao

    concerto, ao festival; o filme sala de cinema(ou pelo menos a certas exigncias espaciais:

    escurido, frontalidade da tela, etc.). A diferen-

    te natureza ontolgica dos materiais impe as

    suas condies: no pode ser a mesma coisa

    apresentar um objeto que tem uma durao e

    apresentar outro que, feito de pedra ou ferro,

    "foge" temporalidade e define a sua natureza

    na permanncia. Analisemos ento os modos

    como essas contraposies bsicas entre tem-

    po e matria, evento e lugar, se articulariam nos

    dois espaos de visibilidade aqui enfocados. Mas

    vamos analis-los, paralela e especificamente, a

    partir daqueles pontos de fuga intermedirios

    que constituem o alvo da nossa pesquisa: aqueles

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    nea de objeto real e objeto virtual, interagindo de

    maneira to inesperada e direta: o smbolo mesmo

    da contemplao contempla infinitamente a sua

    prpria imagem. Curiosamente, referirmo-nos aqui

    "imagem em movimento" ou "audiovisual", como

    se faz normalmente para designar a imagem cine-

    mtica, seria contraditrio em uma obra na qual os

    elementos mais surpreendentes so precisamente

    a quietude e o silncio, sem excluir, porm, uma

    dose de humor e de sentido do absurdo.

    A obra toda de June Paik feita de uma estranha

    restituio da materialidade imagem-vdeo.

    Ela nos lembra o tempo todo que um aparelho

    de televiso , ao mesmo tempo, uma imagem

    miditica e um objeto tridimensional, e explora

    na videoescultura um campo rico de criao no

    qual esse aparelho assumido como algo que vaimuito alm do seu uso tradicional como veculo

    da imagem. Como objeto fsico ele se acumula

    em aglomeraes e pacotes, caticos ou seriados,

    que formam massas, compem figuras, ocupam

    e geram espaos.

    Do mesmo modo, Tony Oursler, outro importante

    videoartista contemporneo, utiliza projees

    de imagem-vdeo de rostos (Figura 2) que falam

    e gesticulam, sobre figuras antropomorfas tri-

    dimensionais e estticas, gerando peas de um

    efeito dramtico, inesperado e inquietante, em

    grande parte devido ao estranho encontro entre

    a imobilidade dos objetos fsicos e o dinamismo

    e a imaterialidade da imagem-movimento.

    Mas tambm muitos outros tipos de materialida-

    de aparecem em outras obras e artistas: a tela re-

    ceptora que permite a condensao da imagem

    projetada, por exemplo, vira frequentemente um

    elemento carregado de uma materialidade que

    no s fsica, mas tambm simblica ou narrati-

    va: gua, fumaa, superfcies movimentadas pelo

    cincias. Gneros como o documentrio cinema-

    togrfico, ou a fotografia jornalstica, tm a sua

    definio na noo mesma da representao da

    "realidade" que eles pressupem. Mas no vamos,

    no contexto deste artigo, abordar as implicaes

    dessas noes de realidade, imagem e represen-

    tao: isso nos levaria bem alm da nossa anlise.

    Queremos somente assinalar, por ora, a frequncia

    de mltiplos procedimentos que, desde a imagem

    vdeo apropriada no contexto das artes plsticas,pem em relevo essa contraposio entre real e

    representado, entre imagem e realidade, entre

    objeto material e objeto mediado.

    Dos muitos exemplos que poderiam nos ajudar

    a ilustrar esse eixo, selecionamos uma das obras

    mais clssicas de quem considerado o pai do uso

    Figura 1: Nam June Paik, TV

    Buddha (1974). Aparelho

    de TV, escultura empedra de Buda, cmara

    de circuito interno.

    do vdeo no contexto das artes plsticas. Trata-se

    da obra TV Buddha(1974) do videoartista coreano

    Nam June Paik (Figura 1). A obra apresenta uma

    imagem de Buda, esculpida em pedra, "assistindo"

    projeo da sua prpria imagem na tela de umaparelho de televiso. Mesmo hoje, mais de 30

    anos depois da sua produo, imersos como esta-

    mos num contexto no qual as cmaras de circuito

    interno se tornaram quase onipresentes, a obra

    continua a nos surpreender, no s pela simplici-

    dade e fora do seu circuito de filmagem e apre-

    sentao, mas tambm por essa presena simult-

  • 7/23/2019 Entre Caixa Preta e Cubo Branco: o Vdeo Nos Espaos Das Artes Plsticas. CIFUENTES, Adolfo.

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    vento, etc. fazem parte dos repertrios usados

    nesse tipo de manifestao.

    Espacializao

    Se, de um lado, o cinema constituiria um ponto

    de encontro entre a imagem espacial das artes

    plsticas e a imagem ligada transitoriedade

    temporal das artes performticas, so tambmvrios os elementos que o afastam da natureza

    material, espacial e fsica das artes plsticas. Por

    um lado, a especialidade do cinema relativa:

    como em um quadro, a imagem projetada na tela

    tem uma altura e um comprimento, mas essas

    dimenses no so parte constitutiva da obra,

    nem definem as suas caractersticas tcnicas ou

    fsicas. No perguntamos na locadora de vdeo

    pela largura de um filme, nenhuma obra cine-

    matogrfica inclui na sua informao tcnica o

    seu peso ou a sua altura, como o caso para uma

    escultura ou uma pintura. Ele possui, sim, algumas

    caractersticas espaciais, mas no sentido do aspect

    ratio, o qual expressa as relaes entre largura e

    comprimento: existem formatos mais alongadosou mais quadrados. No caso do cinema de 35

    mm, por exemplo, ele mais alongado do que o

    formato da TV ou da pelcula de 16 mm. Do mes-

    mo modo, o som constitui um elemento espacial

    muito importante do cinema: o fato de ser mo-

    nofnico ou estreo, ou a qualidade e disposio

    dos equipamentos tcnicos do som numa sala de

    cinema tm, obviamente, uma grande incidncia

    na construo espacial da sua percepo.

    Mas essas caractersticas espaciais presentes j

    no cinema no chegam a tornar-se os rasgos que

    o definem, nem passaram a ser o prprio lugar

    de trabalho. Na videoinstalao, ao contrrio, j

    desde a sua denominao, evidencia-se a sua

    natureza espacial; de fato, at poderamos deno-

    min-la mais exatamente de vdeo espacializado.

    Ela talvez o mais recorrente de todos os usos do

    vdeo no contexto do cubo branco, ao ponto de

    muitas das manifestaes do vdeo apresentadas

    na sala do museu serem chamadas comumente

    pelo nome genrico de videoinstalaes.

    Dos muitos exemplos que poderiam ser apresen-

    tados para ilustrar esta espacializao da imagem

    vdeo, prpria destes tipos de manifestaes, sele-

    cionamos a obra The House, da artista finlandesa

    Eija-Liisa Ahtila (Figura 3). Nela a centralidade do

    olhar dirigido para frente, prprio da Caixa Preta,

    Figura 2: Tony Oursler. Imagem fixada obra Keep Going, 1995. WilliamsCollege Museum of Art, MA, EUA.

    quebrado e disseminado em trs telas que vo

    mostrando pontos de vista diferentes do mes-

    mo evento, narrado simultaneamente em trs

    projees espalhadas no espao arquitetnico

    da galeria.

    A temporalidade como fragmento (a durao)

    Geralmente ao final de um filme aparece a palavra

    FIM. A pea de teatro, o concerto, ligados tambm

    ideia de uma temporalidade na qual a obra acon-

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    te,v.

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    59-74,nov.

    2011.

    Senta-te e caminha (percurso e imobilidade)

    Para entender melhor a diferena dos dois es-

    paos, preciso apenas lembrar a diferena de

    atitudes que temos no momento de ingressar emcada uma das duas tipologias arquitetnicas: a

    primeira reao de quem ingressa na caixa preta

    procurar uma cadeira e sentar, enquanto que o

    cubo branco feito basicamente do percurso que

    de antemo sabemos que vamos realizar. Parece

    paradoxal, mas, na verdade, faz muito sentido: s

    imagens em movimento corresponderia um olhofixo, sentado na sua cadeira; s imagens fixas,

    imveis, um olho que caminha, se movimenta e

    faz um percurso.

    Se o espectador da caixa preta tem de se deslocar

    por acaso (levantar para ir ao banheiro ou sim-

    plesmente para mudar de cadeira), esse ato ser

    percebido por ele e por seus vizinhos como umato fora da srie, que no teria de acontecer mas

    que, se acontece, sentido como interrupo da

    sequncia normal de desenvolvimento do evento

    e at como rudo e elemento perturbador. Da

    mesma maneira, sentar em uma cadeira pode

    ser parte do percurso museogrfico e, de fato,

    quando a coleo e o museu so grandes, eles

    novamente, os atores, danarinos ou msicos so

    aplaudidos. O ritual demarca claramente o final

    da apresentao e o momento de ir embora. O es-

    pectador do cubo branco, pelo contrrio, no tem

    uma hora marcada de ingresso, nem est sujeito a

    uma temporalidade previamente demarcada.Inserida em um universo oposto s narrativas do

    cinema e do vdeo, a apresentao da imagem

    em movimento tem que desenvolver estratgias

    e realizar adequaes que lhe permitam adaptar

    a natureza de um espao que no est ligado a

    essa demarcao do limite temporal no qual a

    obra acontece. E se verdade que muitas vezesa presena do vdeo na sala de exposies re-

    pete o esquema da sala de cinema, construindo

    pequenas caixas pretas nas quais se pode sentar

    e assistir a fitas de vdeo, no sentido temporal e

    narrativo da obra que tem incio e final, tambm

    verdade que muitas dessas obras quebram essa

    temporalidade e essa ideia de uma durao espe-

    cfica. A obra constitui-se muito mais pela expe-rincia visual, sonora e espacial de uma imagem

    que no narra uma histria e que no exige do

    espectador um tempo especfico, nem um estado

    de ateno temporalmente demarcado. De fato

    o loop, fita contnua que acaba e recomea inin-

    terruptamente, talvez a maneira mais comum

    de trabalhar a duraonesse tipo de obra.

    PARECEPARADOXAL, MAS, NAVERDADE, FAZMUITOSENTIDO: SIMAGENSEMMOVIMENTOCORRESPONDERIAUMOLHOFIXO, SENTADONASUACADEIRA; SIMAGENSFIXAS, IMVEIS,

    UMOLHOQUECAMINHA, SEMOVIMENTAEFAZUMPERCURSO.

    tece, empregam vrias estratgias para marcar os

    momentos limites do comeo e do final: fazem-se

    chamadas, abrem-se cortinas, apagam-se luzes,

    desligam-se celulares, etc. Da mesma maneira, ao

    final as cortinas se fecham, as luzes se acendem

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    CIFUENTES,Adolfo.Entreacaixapretaeocubobranco:Ovdeo,aimagem-movimentonocontexto

    dasartesplsticas

    esto acondicionados com cadeiras ao longo do percurso. Mas sentar, aqui,

    tambm um ato excepcional, uma pausa. No se vai ao museu para sentar

    e ficar quieto. As imagens no desfilam na frente do espectador, ele quem

    tem de desfilar em frente s imagens, fazer um percurso para enxerg-las. A

    espacializao da imagem em movimento proposta acima como uma das

    caractersticas das obras que empregam o vdeo no contexto da galeria,

    faz com que o percurso, e muitas vezes at a prpria interao do visitante

    com os dispositivos de produo e projeo da imagem (cmaras de circuito

    interno, projetores, etc.) seja uma parte integral da proposta.

    Invisibilidade e visibilidade (do circuito de apresentao)

    A invisibilidade do circuito de apresentao prprio da caixa preta quase

    um paradigma inviolvel: quando tomamos conscincia da tela (quando

    h rugas ou manchas, por exemplo), isso seria percebido como um fator

    indesejvel de distrao. Da mesma forma, o projetor escondido por trs,

    ao fundo da sala, junto pessoa encarregada pela projeo, devendo todosficarem invisveis e serem esquecidos. O mesmo acontece com o sistema

    eltrico ou com os elementos tcnicos do som e, em geral, com toda a

    armao que constitui os bastidores da sala.

    J o vdeo apresentado no contexto do cubo branco frequentemente ressalta

    e celebra, e exagera at, a presena dessas estruturas; torna-as evidentes ou

    seleciona segmentos especficos para integr-los ao circuito constitutivo da

    obra. O videoartista colombiano Jos Alejandro Restrepo, por exemplo, nasua obra Quiasma(Figura 4), utiliza um sistema de cabos eltricos exagera-

    damente grossos para uns aparelhos de TV to pequenos que fica evidente

    que no se precisa desse tipo de cabo de trabalho pesado que circunda e

    atravessa o espao da sala, comunicando os quatro aparelhos colocados

    diretamente no cho. A multiplicidade das linhas que eles traam cobra uma

    relevncia inusitada. O carter forte e macio dos cabos confere a eles uma

    fora quase escultural. como se a ausncia de matria da imagem cine-

    mtica tivesse de ser restituda por outras materialidades. O artista recorre

    ento a esses elementos que, normalmente escondidos ou esquecidos na

    sala de projeo, so aqui sublinhados e ressaltados.

    Da mesma maneira, nas videoesculturas de Tony Oursler (Figura 2) o circuito

    projetor-tela ressaltado e evidenciado a ponto de o projetor de vdeo

    tornar-se quase uma parte integrante da obra. No temos nela a separao

    entre "projetor" e "imagem projetada a que estamos acostumados na sala

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    de cinema: o circuito projetor/tela/ imagem exibido como uma totalidade.

    Nesse sentido cabe destacar que, na primeira apresentao da pea antes

    mencionada de June Paik, TV Buddha, em 1974, a cmara do circuito interno

    no era visvel. Foi s nas verses posteriores que ela se tornou finalmente

    um elemento presente e constitutivo da obra.Figura 3: Imagem fixa da obra The House(A Casa).

    Eija-Liisa Ahtila. Instalao para trsprojees com som. 14 minutos. 2002.

    Figura 4. Detalhe da obra Quiasmade

    Jos Alejandro Restrepo. 1995. Bogot,Colmbia, Saln Nacional de Artistas.

    Construo do olhar

    O espectador no preexiste obra. Ele criado por e com

    ela. O conceito de leitor in fabula, de Humberto Eco, pode seremprestado e expandido aqui. Porm, ao fazer aluso a essa

    figura do leitor, e a essa obra particular de Eco, no estamos

    querendo discutir as teorias da recepo ou aspectos relacio-

    nados com as noes de autoriaou autor, em contraposio

    s de leitor ou receptor. Pedimos emprestada a figura aqui

    para nos referir a uma atividade especfica em que a ideia do

    receptor est claramente na prpria definio do evento: aexposio museogrfica. De uma maneira ainda mais espec-

    fica, aludimos quele ato crucial da montagem, construo

    desse ato de oferecer para um espectador uma srie de objetos

    e imagens para a sua fruio, informao, etc. A montagem e

    setores importantes da museografia e da curadoria so feitos

    dessa construo do olhar, desse pensar na movimentao do

    visitante no espao da sala e em sua relao, tanto visual como

    fsica e conceitual, com as imagens: a altura, a luz, a maneira dedistribuir espacialmente as peas, o roteiro que est por trs da

    curadoria e da montagem, etc., tudo isso tem relao com essa

    construo do olhar do espectador e at com a sua movimen-

    tao, percurso, etc. Mas no necessrio ser musegrafo ou

    curador para sab-lo: qualquer artista plstico que tenha feito

    pelo menos uma exposio experimenta essa apreenso e essa

    magia da construo do olhar de um espectador em fbula, que(na nossa cabea) vai daqui para l (ou no vai), que se abaixa,

    se inclina ou empina para enxergar melhor... constri para si um

    percurso, uma experincia do olhar, esperando certos tipos de

    uso e deslocamento, tipos de experincia motriz, uma certa experincia

    do olhar, de circular e de construir tipos de sentido.

    Um exemplo paradigmtico dessa construo do olhar nas artes plsticas

    seria a obra Etant donn, de Marcel Duchamp (Museu de Filadlfia, EUA).

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    CIFUENTES,Adolfo.Entreacaixapretaeocubobranco:Ovdeo,aimagem-movimentonocontexto

    dasartesplsticas

    das caractersticas do cinema mantida at hoje: a

    sua natureza como evento coletivo e pblico.

    Mas espectadorvem de espetculo, e Georges M-

    lis mgico vindo da cena e do entretenimento

    e um dos pioneiros da explorao comercial do

    cinema deu outro passo definitivo na construo

    desse espao e dessa experincia prprios do

    cinema. Ao acrescentar as projees de cinema

    como complemento das suas apresentaes de

    magia no antigo teatro de Robert-Houdin, Mlis

    integrava ao cinema a herana daquele modelo

    de auditrio desenvolvido pelas artes cnicas no

    Ocidente desde o mundo grego: um espectador

    sentado na cadeira, imvel, silencioso, dirige seu

    olhar para uma zona central e frontal (o palco),

    onde so apresentados os acontecimentos pro-

    postos para uma coletividade de pessoas.

    Mas, por outro lado, essa padronizao do modelo

    do auditrio como espao de fruio da imagem

    em movimento fez com que a experincia espa-

    cial e fsico-material se tornasse relativamente

    invisvel. Ir ao cinema e assistir TV tornaram-se

    experincias fortemente reguladas: muitas salas

    pertencem a cadeias multinacionais que repetemem nvel global os mesmos padres arquitetni-

    cos, estilos de cadeira, uniformes para os empre-

    gados e sorrisos para o cliente nas lanchonetes

    da entrada. A experincia virou entretenimento

    associado ao fast food, pipoca e ao refrigerante.

    Os filmes tambm esto padronizados: na durao

    mdia universal das narrativas, nas gramticase desenvolvimento dos conflitos, na construo

    dos personagens, nos efeitos especiais digitais. E

    nos espaos da TV essa estandardizao ainda

    maior: nos formatos (programa concurso, telejor-

    nal, telenovela, reality show), nos arqutipos dos

    personagens (o bom e o mau...), nas pautas publi-

    citrias, nas linguagens narrativas e audiovisuais,

    Ela pode ser espreitada s atravs de um ponto

    nico e fixo: o buraco de uma porta que impede o

    acesso do espectador ao quarto onde se encontra

    a armao que d suporte fsico imagem (tridi-

    mensional) que constitui a obra. Mas a obra no

    s essa imagem que enxergamos atravs do

    buraquinho. Ela tambm esse buraquinho em

    si e, sobretudo, o dispositivo global: a imagem e

    a maneira de enxerg-la.

    E precisamente essa construo do olhar o que

    est estandardizado escala global na caixa preta.

    A cadeira, a sala, os filmes, tudo tem sido regula-

    rizado em nome da indstria. Assistir ao cinema

    um ritual do qual, contudo, j no nos damos

    conta. A estandardizao universal, imposta pela

    indstria do entretenimento, faz com que os ml-

    tiplos elementos que constituem a experincia doolhar do espectador se tornem "naturais", quer

    dizer, invisveis. Mas, na verdade, eles so produto

    de vrias decantaes e escolhas culturais, sociais

    e histricas.

    Alm do desenvolvimento dos aparelhos ptico-

    mecnicos, que permitiram a evoluo da imagem

    em movimento, os pioneiros do cinema enfrenta-ram outro problema: a sua apresentao. Em 1894,

    Edison abriu em Nova York a primeira Kinetoscope

    Parlor, tentativa pioneira de criao de um espao

    prprio para a imagem cinemtica, mas no foi

    essa estratgia, de dispositivos de visualizao

    individuais, a que ganhou a batalha pelo desen-

    volvimento futuro de um espao e de estratgiasde apresentao prprias para a imagem em mo-

    vimento. Seria o Cinmatographe, desenvolvido

    pelos irmos Lumire do outro lado do Atlntico,

    o dispositivo que, ao permitir a projeo das ima-

    gens numa tela, daria lugar possibilidade da

    sua fruio coletiva. Essa primeira experincia,

    acontecida na Frana em 1895, inaugurou uma

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    59-74,nov.

    2011.

    O dispositivo como obra ( guisa de concluso)

    No estado atual da pesquisa, a tese de trabalho poderia ser ento resumidado seguinte modo: muitas das obras que empregam o vdeo no contexto

    museogrfico estabelecem com os elementos enumerados (espacializao,

    materializao, percurso, durao, circuito de apresentao, construo do

    olhar) diferentes tipos de negociao, que constituem em grande parte

    a prpria proposta. Porm, esses elementos no tm a ver aqui s com o

    problema da exposio, mas com a prpria natureza da obra. No se trata

    mais aqui de fazer uma obra que logo depois exposta, mas de um tipo

    etc. E ainda mais: a regularizao est tambm no prprio dispositivo que

    temos em nossas casas para a TV: o mvel no qual est instalada, o lugar

    cannico em frente poltrona ou mesa de jantar, a altura na qual ela sesitua; o prprio aparelho, estandardizado em suas dimenses, marcas, tipos

    de tela, etc.

    Assim, enquanto esses padres e modelos estandardizam a experincia

    do olhar no que aqui chamamos de caixa preta, as apropriaes do vdeo

    feitas pelos artistas plsticos no interior do cubo branco exploram outras

    possibilidades para essa experincia. As narraes e gramticas do cinema

    comercial no so as nicas possibilidades da linguagem cinematogrfica; a

    TV como entretenimento de massa no tampouco o nico caminho para

    o vdeo. Ao longo do desenvolvimento e explorao das gramticas da

    imagem em movimento, muitos artistas plsticos, animadores, cineastas e

    videoartistas tm explorado esses outros usos e apropriaes possveis da

    imagem em movimento, alm das narrativas prprias do cinema comercial.

    Assim, enquanto uma grande porcentagem de produes da imagem cine-

    mtica tende a estar condicionada pela natureza do cinema e da TV comoindstrias do entretenimento, e pela tradio mesma das estratgias de exi-

    bio impostas pela caixa preta, essas manifestaes e exploraes do vdeo

    desde as artes plsticas tm desenvolvido de maneira constante a procura

    de outras linguagens e a pergunta sobre as estratgias de apresentao,

    promovendo dilogos com o espao menos regulado, comercialmente, da

    sala do museu e da galeria de arte.

    NOSETRATAMAISAQUIDEFAZERUMAOBRAQUELOGODEPOISEXPOSTA, MASDEUMTIPODEMANIFESTAONAQUALASCONDIESDEEXIBIO, OPRPRIODISPOSITIVODE

    APRESENTAOSOPENSADOSCOMOELEMENTOSCONSTITUTIVOSDELA.

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    CIFUENTES,Adolfo.Entreacaixapretaeocubobranco:Ovdeo,aimagem-movimentonocontexto

    dasartesplsticas

    de manifestao na qual as condies de exibio, o prprio dispositivo de

    apresentao so pensados como elementos constitutivos dela.

    E isso em grande parte devido prpria natureza hbrida do seu estatuto.

    Elas constituem zonas de negociao constante: entre a imagem fixa e

    material das artes plsticas e a imagem transitria, ligada temporalidade,

    prpria tanto das artes performticas como da imagem cinemtica. E se cada

    um desses grandes ramos das artes desenvolveu no seu percurso histrico

    dispositivos bsicos de apresentao (a galeria, o auditrio), a prpria obra

    tem que reconstruir, segundo as necessidades e caractersticas especficas, os

    seus corredores cinzas, aquelas zonas nas quais os dilogos intermiditicos

    e as reconfiguraes do espao-tempo se tornam possveis.

    REFERNCIAS

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    cinema: os 100 dias que construram o cinema, 1995. Numro spcial,hors srie dirige par Thierry Jousse, Patrice Roelle et Serge Toubiana,

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    FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archologie des sciences

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    (Catlogo da exposio de mesmo nome exibida no Centro Cultural do

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