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13 Introdução Fernando Eichenberg ENQUANTO OS PASSOS AVANÇAVAM PELA ESCADA, rumo à sala de Jean-Luc Godard, o pensamento retrocedia no tempo. Recordava a noite em que, acomodado no sofá de casa diante da tevê, em Paris, assistira a uma entrevista do ci- neasta em um dos telejornais da tevê francesa, durante uma das edições do Festival de Cinema de Cannes. No estúdio improvisado no belo litoral da Côté d’Azur, o âncora intro- duziu o célebre entrevistado, um dos mitos fundadores da Nouvelle Vague, incensando-o como um dos derradeiros defensores de um cinema puro e verdadeiro e cada vez mais distante de um festival de purpurina e starlets, de festas dos grandes estúdios de Hollywood e do desfile de top models no tapete vermelho do Palais des Festivals. Sob o olhar indiferente do polêmico diretor, o apresentador, seguro de si, finalmente lançou a pergunta que, se a memória não me trai, saiu algo como: “O que o senhor considera mais exótico aqui no Festival de Cannes?”. “O que acho mais exótico?”, repetiu um Godard falsamente pensativo, para logo responder laconicamente: “A sua gravata”. O jorna- lista, que certamente havia preparado com todo zelo sua intervenção na espera de uma resposta ácida e inventiva, teve o que queria, mas não exatamente como poderia ima- ginar. Desarmado, de pronto baixou o queixo, olhou para sua gravata e, numa tentativa de se recompor, exibiu um sorriso que não foi nem amarelo, mas incolor. Ainda na escada, quase diante da porta da sala que me fora indicada, lembrei das dezenas de entrevistas que lera de Jean-Luc Godard. Em muitas delas, o entrevistador manifestava seu receio em face da imprevisibilidade do personagem, capaz de responder à mesma pergunta com um suspiro enfarado ou um longo discurso entusiasmado. Eu não estava de gravata, mas nada impedia que o cineasta

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IntroduçãoFernando Eichenberg

enquanto os Passos avançavam Pela esCada, rumo à sala de Jean-Luc Godard, o pensamento retrocedia no tempo. Recordava a noite em que, acomodado no sofá de casa diante da tevê, em Paris, assistira a uma entrevista do ci-neasta em um dos telejornais da tevê francesa, durante uma das edições do Festival de Cinema de Cannes. No estúdio improvisado no belo litoral da Côté d’Azur, o âncora intro-duziu o célebre entrevistado, um dos mitos fundadores da Nouvelle Vague, incensando-o como um dos derradeiros defensores de um cinema puro e verdadeiro e cada vez mais distante de um festival de purpurina e starlets, de festas dos grandes estúdios de Hollywood e do desfile de top models no tapete vermelho do Palais des Festivals. Sob o olhar indiferente do polêmico diretor, o apresentador, seguro de si, finalmente lançou a pergunta que, se a memória não me trai, saiu algo como: “O que o senhor considera mais exótico aqui no Festival de Cannes?”. “O que acho mais exótico?”, repetiu um Godard falsamente pensativo, para logo responder laconicamente: “A sua gravata”. O jorna-lista, que certamente havia preparado com todo zelo sua intervenção na espera de uma resposta ácida e inventiva, teve o que queria, mas não exatamente como poderia ima-ginar. Desarmado, de pronto baixou o queixo, olhou para sua gravata e, numa tentativa de se recompor, exibiu um sorriso que não foi nem amarelo, mas incolor.

Ainda na escada, quase diante da porta da sala que me fora indicada, lembrei das dezenas de entrevis tas que lera de Jean-Luc Godard. Em muitas delas, o en trevistador manifestava seu receio em face da imprevisibilidade do personagem, capaz de responder à mesma pergunta com um suspiro enfarado ou um longo discurso entusiasmado. Eu não estava de gravata, mas nada impedia que o cineasta

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desgostasse do meu surrado casaco de veludo marrom. De qualquer maneira, nossa conversa tomou outros rumos e o en-contro acabou privado de comentários sobre o guarda-roupa.

* * *Por vezes, ao final de uma entrevista, me vi pensando

o que teria ocorrido se tivesse feito a última pergunta como primeira; se não tivesse apressado uma nova interrogação no silêncio que era apenas pausa e não o fim de uma res-posta; se tivesse feito a indagação em tom incisivo e não cúmplice; se não tivesse sorrido em determinado momento; se não tivesse me esquecido desta ou daquela questão; se o encontro tivesse ocorrido à tarde e não pela manhã; se tivesse sido marcado para terça-feira e não quinta.

“Avaliam-me pelas entrevistas, pela televisão e não pelo que escrevi, que, no fim das contas, é mais refletido, mais essencial para mim. O que se diz depende mais ou menos das circunstâncias, do momento, do humor, mas eu sinto-me responsável, sobretudo, pelo que escrevo e não pelo que digo ou me fazem dizer”, afirmou acertadamente, em uma entrevista, o escritor argentino Jorge Luis Borges. São infinitas as condicionais e mais ou menos variáveis os resultados possíveis de uma entrevista, o que só faz afirmar a especificidade de cada encontro. Como aprecia dizer o diretor inglês Peter Brook, uma entrevista é um processo vivo que se estabelece entre entrevistador e entrevistado, e que, por mais preparado que seja, é sempre imprevisível.

Nas suas reflexões sobre o ato de viajar, o escritor e pensador italiano Claudio Magris lembra que, na partida, colocamos na mala objetos que previmos indispensáveis, esquecendo sempre algo de essencial. No retorno, ao abrir a bagagem, não encontramos mais muitas das coisas que nos pareciam importantes, e vemos aparecer objetos que nem mesmo nos lembrávamos de ter incluído em meio aos pertences. Magris diz que se passa o mesmo com a escrita: algo que durante a viagem parecia fundamental se esvanece, não está mais no papel, ao passo que toma forma

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e se impõe como essencial algo que na vida – na viagem da vida – quase não era notado. Eu diria que a analogia, de certo modo, pode também ser aplicada a uma entrevista ou, para usar a fórmula brookiana, ao “processo vivo da entrevista”. Pelo menos em alguns casos. Muitas vezes, retorna-se da viagem com a mala praticamente vazia.

Este livro contém encontros realizados na Europa com personagens diversos, sobre temas variados e em diferentes períodos e situações nestes nove anos como jor-nalista baseado em Paris. A maioria deles gerou entrevistas publicadas na imprensa escrita; outros foram exibidos na televisão. Para a presente edição, foram excluídos trechos demasiado datados e perecíveis, e incluídos outros que, por razões editoriais e/ou de espaço, foram abortados das versões publicadas ou exibidas originalmente.

Instigadas cada uma por um propósito específico, as entrevistas nem sempre se limitaram a um só tema ou as-pecto do entrevistado, mas nem de longe ambicionam fazer um retrato definitivo do personagem. São “momentos”, “circunstâncias”, “humores” captados nos imprevisíveis processos de um encontro, em que há sempre um espaço em branco para entrelinhas, uma pausa repleta de não ditos, uma resposta inalcançável. Como, aliás, bem escreveu Car-los Drummond de Andrade no poema “O padre, a moça”:

E que vale uma entrevistase o que não alcança a vistanem a razão apreendeé a verdadeira notícia?

Paris, março de 2006

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Jean-Luc Godard

no Cinema de hoje, há mais autoestradas do que trilhas, diz Jean-Luc Godard. O enfant terrible da Nouvelle Vague so-brevive à sua maneira às encruzilhadas, sem esconder uma certa nostalgia de tempos em que o cinema lhe parecia se embrenhar por caminhos menos percorridos e mais aventu-rosos. Na década de 1960, Godard integrou a avant-garde que projetou a transgressão estética do cinema francês, ao lado de nomes como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer ou Claude Chabrol. É ele o autor de Acossado (1959), realizado a partir de um roteiro de Truffaut, filme que revelou Jean-Paul Belmondo e se tornou manifesto da Nouvelle Vague. Os jovens cineastas refutavam o cinéma de papa, de linguagem tradicional e previsível, e pregavam a subversão da forma, a renovação dos temas, a segmentação e desconstrução narrativa, a autonomia da imagem e uma revolução no uso dos diálogos, da luz, do som e da dire-ção de atores. Godard experimentou com maior ou menor intensidade suas bricolagens e a liberdade reivindicada e adquirida numa sequência de filmes ensaísticos que se estende até A chinesa (1967). Seu grupo constituía-se da primeira geração de cineastas cinéfilos, formados pelas descobertas e insolências da revista Cahiers du Cinéma, sob a inspiração do crítico André Bazin e da cinemateca de Henri Langlois.

Na efervescente redação da revista, onde ele mesmo às vezes se encarregava da expedição de pacotes para os assinantes, Godard dizia encontrar a esperança de um de-butante em meio ao espírito de paixão pela arte do cinema e o engajamento crítico. Hoje, ele ainda compra o Cahiers, mas sem mais nenhuma esperança. “Leio por deontolo-gia”, diz. A função da crítica de cinema acabou, decreta. Quanto à Nouvelle Vague, mesmo que a impertinên cia e

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a inventividade do movimento, fermentado num período de otimismo pré-crise de 1968, tenha alcançado influên-cia nos cinco continentes – do Cinema Novo brasileiro a Nagisa Oshima, no Japão –, ele minimiza sua importância. “Acreditamos que era algo maior, mas não passava de uma vaga, um momento da história, como foi, na pintura, o surrealismo ou a Escola de Paris. Não há mais a ontologia do tempo de Bazin; pensávamos que éramos os primeiros, mas, na verdade, éramos os últimos”, declarou certa vez.

Godard não tardou a se distanciar de seus compa-nheiros para se tornar artesão solitário na sua própria demiurgia, sua forma de fazer cinema para refletir sobre o próprio cinema. Como ele mesmo definiu, sobre O desprezo (1963): “O tema do filme são pessoas que se ob-servam e se julgam, e depois são, por sua vez, observadas e julgadas pelo cinema, o qual é representado por Fritz Lang, que interpreta a si mesmo”. No fundo, sustentam alguns críticos, a obra de Godard apenas prolongou a de Rossellini dos anos 1950, mas em outra época e outra sociedade. Certa vez, indagado sobre críticas do Cahiers ao culto estético do autor, o cineasta respondeu: “Quando qualquer um se pretende autor, digo a mim mesmo que prefiro me referir à obra e recusar o título de autor. Para mim, a Nouvelle Vague eram obras, e não autores. Truffaut foi o único a atacar cineastas; nós atacávamos as obras. Havia outra coisa atrás da politique des auteurs, a palavra política, que era para nós o mais importante”. Hoje, ao seu estilo, ele diz que “cinema de autor” não passa de um clichê incensado por jornalistas.

Godard é o autor do slogan, pronunciado pelo per-sonagem de O pequeno soldado (1960): “A fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 vezes por segundo”. É o colecionador de citações e aforismos, ex-maoista, curioso da literatura e da pintura. É o “homem-orquestra”, programador de fusões e curtos-circuitos sonoros e estuda-das colagens musicais nos seus filmes. Além de um novo

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espectador de cinema, ele queria criar um novo ouvinte. “O cinema perdeu o sentido da escuta”, denunciou. Há quem diga que, por certos filmes como Uma mulher é uma mulher (1961), O demônio das onze horas (1965), Carmen de Godard (1982) ou Puissance de la parole (1988), vídeo realizado para a empresa France Télécom, ele deveria ser comparado a músicos e não a cineastas. Com vozes misturadas, sintetizadas ou amplificadas, canções de Bob Dylan ou Leonard Cohen, manipulações pessoais de Ravel ou Mozart, sons de escova de dentes elétrica e conversas telefônicas ele constrói suas próprias partituras e uma singular linguagem de trilha sonora de cinema. É ele também o experimentador de vídeo como um laboratório para o cinema. Mas apenas como utensílio, e com ressalvas: “Dostoiévski e Pascal poderiam usar uma câmera digital, porque eram extremamente rigorosos, mas os diretores de hoje, não”. Olhar uma imagem se tornou uma operação mecânica e vazia, alertava o autor da trilogia Paixão (1981), Je vous salue Marie (1983), Nouvelle Vague (1990). É igualmente o responsável pelo audacioso projeto Histoire(s) du cinéma (1966), documentário sobre a arte do século XX. “Um trabalho de etnologia, uma ecografia”, segundo suas palavras: pensar a história do século pelo cinema e a essência do cinema pela sua história, em quatro cassetes de vídeo.

Um crítico francês, a cada vez que, durante suas conferências, a audiência classificava o cinema de Godard de incompreensível e complicado, defendia o cineas ta com a réplica: “Mais o organismo é complexo, mais ele é livre”. Confrontado à mesma observação, o próprio cineasta costuma citar com ironia explícita as palavras de Alan Greenspan, o patrão do Federal Reserve, o Banco Central norte-americano: “Se você me compreendeu, é porque devo ter me expressado mal”. Maltratado com frequência pela crítica, abandonado pelo público, Go-dard também não faz a unanimidade entre seus colegas.

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Numa entrevista à revista Positif, o mestre Ingmar Berg-man não revelou nenhuma simpatia pelos seus filmes: “Nunca consegui compreendê-los. Acho-os afetados, intelectuais, impregnados de si mesmos e, de um ponto de vista cinematográfico, sem interesse e, francamente, maçantes. Interminável, enfadonho, Godard é de um tédio desesperador. Sempre pensei que ele fazia seus filmes para a crítica”. Já Bernardo Bertolucci, mesmo que confesse posterior incompatibilidade e distanciamento, sublinhou a marcante influência do cinema de Godard na sua for-mação: “Na época, poderia morrer ou mesmo matar por um plano de Godard. Numa noite, me precipitei de carro para Milão para assistir e me deslumbrar diante da beleza de O desprezo. O que ele fez nesse período, a mim e aos amigos de minha geração como Glauber Rocha, Gianni Amico, Jim McBride e tantos outros, nos marcou pro-fundamente. A ponto de nos tornar quase extremamente sectários”. Gênio incompreendido, autor enfarado, eterno vanguardista ou cineasta ultrapassado?

Uma entrevista de Jean-Luc Godard é similar a um de seus filmes: fornece indícios de um pensamento em movimento. No roteiro improvisado, a imagem completa o quadro. Sentado em diagonal na cadeira postada diante da extensa mesa de sua sala no segundo andar da produtora Alain Sarde, em Paris, os cabelos revoltos, a barba esfarpa-da, ele perscruta o interlocutor com o olhar ampliado pelos espessos óculos, como uma câmera, antes de responder às perguntas com sua voz rouca e inconstante. Para ele, o cinema se nutre cada vez mais do romanesco e da humani-dade. Não por acaso, gosta de lembrar o filme que fundou o cinematógrafo, Nascimento de uma nação (1915), de David W. Griffith, que integraria essas dimensões. Pouco tempo após Maio 68, revelou ter compreendido que “não se pode contar uma história sem fazer História”. Godard lamenta que o cinema tenha perdido seu “olhar documentário” em

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detrimento de uma ficção empobrecida. Para ele, vanguarda não existe. E o cinema que existe não é visto.

Ao final da entrevista, referindo-se a meus numerosos e perseverantes telefonemas ao longo de mais de um ano para sua residência em Rolle, um vilarejo suíço de 4 mil habitantes à beira do Lac Léman, devido aos repetidos adiamentos de nosso encontro, encerrou: “Você insistiu e conseguiu o que queria”. A conclusão lhe serve como um bumerangue. Godard insiste, persiste e acaba conseguindo o que quer: continuar a realizar seus “pequenos filmes”, seu ato particular de resistência. É sua forma de perpetuar uma militância perdida. Ele acha que ainda tem o que dizer e o que mostrar com sua própria ideia de cinema, suas poucas certezas, descobertas, experimentalismos, e ficará satisfeito se sua criação da vez puder atrair escassos espectadores. “Desde a Nouvelle Vague, não conheci mais ninguém com quem falar de filmes ou de cinema”, queixou-se, reconhe-cendo seu sentimento de solitude no meio cinematográfico e um saudosismo dos ebulitivos tempos do Cahiers.

Godard não se importa de ser considerado como o “mais célebre dos esquecidos”, desde que a celebridade herdada de outras épocas o ajude a obter os recursos míni-mos para um novo filme. Mas sua preocupação vai além: “O mais difícil não é conseguir o dinheiro, mas realizar o filme que se deve fazer, moralmente, à sua maneira”. Na lógica godardiana, tudo está dito. Mas, como em seus filmes, haverá sempre espaços a preencher. Na sua tela, o cinema “é um pouco como uma criança a quem não se deu a possibilidade de se tornar o que deveria ser”. Seus detratores dirão que se trata de uma perfeita definição para o próprio personagem. Seus admiradores continuarão a louvá-lo como profeta do cinema de reflexão e da margi-nalidade. Antinômico, percorrendo suas intrincadas trilhas, Godard tenta ser livre, apesar e graças à sua complexidade.

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Em 1965, no Cahiers du Cinéma, o senhor escreveu: “Eu espero o fim do cinema com otimismo”. Hoje, o senhor diz que chegamos ao fim de uma certa época do cinema, e mesmo da arte em geral, uma época que já durava uma dezena de séculos. É o fim do cinema?

Do cinema que se conhecia, gostando-se dele ou não. Esse cinema se tornou, hoje, quase um objeto de museu. Está nas cinematecas. Assistimos ao começo de uma época e agora é, sobretudo, seu fim. Penso que o século XX é o fim de uma época que começou no século XIX. Mas o novo cinema eu não conheço. Vou ainda ao cinema de vez em quando, mas é cada vez mais difícil. Depois dos filmes de Glauber Rocha, não assisti a mais nenhum filme brasi-leiro. Há filmes dos Estados Unidos quase por todo lado. Podemos ver muitos maus filmes norte-americanos, mas não podemos ver um mau filme brasileiro. E no Brasil é a mesma coisa. Hoje a realidade é a informática, a publicida-de. Há filmes que são feitos, mas que não são mais vistos. Ainda se encontram alguns produtores independentes, mas é um sistema no qual não se acredita mais. Não há os meios para que se acredite.

O senhor denuncia a renúncia do cinema como um instru-mento de pensamento: “Ele foi feito para pensar e fizeram dele um espetáculo”.

O cinema quase nunca teve essa função de pensa-mento. De reflexão e de marginalidade, sim. Mas nunca foi um verdadeiro instrumento de pensamento, senão ele teria influenciado a televisão num outro sentido. Ainda hoje, quando há artigos de fundo ou um problema, um mistério a descobrir, um mistério financeiro ou criminal, algo assim, é ainda o jornal que o faz, é a escrita. A televisão conta coisas sobre isso, faz um espetáculo, não é nunca ela que descobre. O Watergate não foi descoberto por jornalistas de televisão.

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Como o senhor definiria o cinema hoje?Hoje as pessoas estão perdidas no cinema. Mas elas

preferem dizer que não estão perdidas, e agem como se não estivessem. Para mim, o cinema cobre muito mais do que se diz hoje. O que as pessoas chamam de cinema, atualmente, é um DVD, uma sessão no Champs-Elysées. Prefiro não empregar esta palavra. Não uso palavra nenhuma.

O senhor se mostra um tanto pessimista.Não. Talvez seja um pessimista alegre ou um otimista

triste.

O cinema mundial, para o senhor, se traduz cada vez mais em pequenas ilhas. O senhor, com frequência, lamenta que o cinema “não é mais o mesmo”.

São pequenas ilhas, mais ou menos independen-tes, mas elas não estão mais sob a dominação de outras áreas. Quando, em outros tempos, dizíamos ilhotas, nos referíamos ao primeiro cristão. A Nouvelle Vague foi o último cristão. Mas as coisas mudam. Pode-se sempre fazer pequenos filmes. Eu faço pequenos filmes, com mais ou menos dinheiro. É o que se chama de pequenos filmes um pouco marginais. Antes, a margem era mais admitida, e hoje ela é muito estreita. Esses filmes só são vistos nos festivais de cinema. Os festivais exibem 150 filmes, alguns são interessantes, mas depois eles nunca mais são vistos. Exceto aqueles poucos que têm um su-cesso comercial. Em Paris, ainda se podem ver alguns, mas não em outros lugares.

O senhor define a Nouvelle Vague como um movimento de obras e não de autores. Como o senhor vê a relação entre obra e autor hoje?

Penso que hoje, com o copyright e todo o resto, os autores existem em demasia em detrimento das obras. É primeiro o autor. Para nós, o autor, num momento, não

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existia. Um diretor de cinema era o roteirista, era um artesão pago pelo estúdio e o produtor. Nós dissemos que não, que era como os escritores, mais importante que o editor. Hoje todo mundo é autor. Renault diz “sou autor de automóveis”. Muito bem. Eu não sou mais autor. Eu realizo obras, é tudo. “Cinema de autor” é um clichê. Nós não dizemos “uma pintura de autor”, “um romance de autor”, “música de autor”. Não dizemos que Beethoven é um autor de música, não tem sentido, isso é jornalismo.

Como o senhor vê a influência da Nouvelle Vague hoje? O senhor acredita que o movimento determinou algo em relação à temática e à forma do cinema posterior?

Acho que nunca houve influência da Nouvelle Vague nos movimentos artísticos. Houve um desdobramento, algo assim, mas influência... O que quer dizer influência? Não sei. Seria preciso estudar, falar um pouco disso tudo. Foi o que tentei fazer de uma certa maneira, de forma bastante modesta, com Histoire(s) du cinéma, em quatro horas. Se tivesse sido feito normalmente, com uma produção normal, com ajuda do Estado, duraria no mínimo duzentas horas, para que se pudesse ir mais a fundo, como uma pesquisa arqueológica e histórica. Da maneira como foi feito, é como uma pequena pesquisa arqueológica numa pequena área, e há ainda todo o continente a explorar. E isso não interessa às outras pessoas, nem aos literatos ou aos cineastas. É um trabalho que nunca será feito. Restarão objetos de museu, alguns DVDs.

Mas podemos ainda realizar filmes. No fundo, sem-pre pudemos. Lumière pôde, Griffith também, Jean Vigo, Eric von Stroheim... Sempre foi possível. Carl Dreyer fez sete ou oito filmes, um filme a cada dez anos [fez catorze filmes]. Sempre podemos fazer um filme, mas é algo cada vez mais isolado. Penso que é um fenômeno semelhante nas demais artes. A ideia ocidental de arte mudou. E talvez seja normal, pois era muito ocidental. A América do Sul

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não teve a sua chance. Será que terá? Não sei. Talvez a Ásia venha a ter sua chance, mas de uma outra forma. A tecnologia e mais um bilhão de chineses é algo enorme, não sei no que isso poderá dar.

Cineastas como Bernardo Bertolucci ou Quentin Taran-tino, para citar apenas dois, ressaltam a influência que seus filmes provocaram na forma de eles verem e fazerem cinema.

Bernardo, por exemplo, não é nem mesmo um cos-mopolita. Se meus filmes provocaram alguma influência neles, então influenciaram mal – eles pegaram tudo o que havia de ruim.

Influência ou não, vocês quiseram mostrar que havia uma outra maneira de se fazer cinema?

Sim. Ou que havia sempre uma possibilidade de fazer cinema. Não há somente Hollywood, há outros lugares. Há sua casa, seu jardim. Se não somos prisioneiros da tecnologia, pode-se fazer algo. Os grandes escritores não são prisioneiros do papel e do lápis. Quando não houver mais papel e lápis, eles se tornarão prisioneiros do pequeno computador. Mas, por enquanto, os funcionários e sei lá mais quem são prisioneiros do laptop. Tenho a impressão de que, no nível do pensamento, não se pode escrever um livro de filosofia dessa forma. Numa máquina de escrever, talvez. Mas a máquina de escrever, se não me engano, se-gundo Nietzsche falou, foi inventada para os cegos. Para que eles pudessem teclar sem ver, mas sabendo onde estava o “a”, o “b”... A máquina de escrever não tem nada a ver com o computador.

Espero poder ainda viver bastante sem nunca ser obrigado a me servir de um laptop, de um PC. Comprei uma dezena de máquinas de escrever para utilizá-las nos próximos anos. Mas talvez depois não haverá mais rolo de fita de máquina para comprar. Meus rolos estarão podres

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no futuro. Porém acredito que o papel e o lápis não desa-parecerão tão rápido, pois com esses existe uma relação da cabeça, do corpo, dos olhos, da mão. O cinema, por sua vez, não poderá sobreviver. Um pouco, sim. Mas não será exibido, visto. Os poucos bons filmes franceses recentes tiveram 5 mil, 10 mil espectadores. Mas eles existiram, e existem. Um cineasta como Luc Moullet, que tem dez anos a menos do que eu, existe há trinta anos, e fez quinze filmes, mais do que Dreyer.

O senhor diz que antes era bom em cinema e péssimo na vida, e que esse seria o caso também da Nouvelle Vague. Por quê?

Não conhecíamos muito bem a vida. Éramos um pouco fanáticos por alguma coisa, como acontece com frequência nos dias de hoje. As pessoas fazem suas coisas, e tudo passa. Isso que é importante. É como os políticos. Mesmo Freud, que fez suas descobertas, e depois seus filhos sofreram as consequências. Descobrimos outras coisas quando não temos mais muito a viver. Podemos ter a juventude da velhice. Creio em épocas assim, nas quais recomeçamos. Há o eterno retorno, e depois continuamos. Podemos ter os vinte anos de nossos setenta anos.

O que é vanguarda, hoje, no cinema? Quem a representa?A palavra vanguarda vem das lutas políticas, do

comunismo, de tudo isso. Na juventude, somos modernos, depois descobrimos os clássicos, os antigos, e passamos a compreendê-los melhor. Nós os compreendemos quando eram jovens, quando se tornaram velhos. Nós mesmos fomos jovens e nos tornamos velhos, e compreendemos tudo melhor. Frequentemente, os clássicos são mais modernos.

Na época do Cahiers, vocês ficaram envergonhados por não terem descoberto o moderno em Ingmar Bergman,

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Michelangelo Antonioni ou Hiroshima mon amour, de Alain Resnais.

Me lembro muito bem de Hiroshima... As pessoas do Cahiers du Cinéma, que pensavam que eram os novos mo-dernos, viram alguém que de repente lhes pareceu ainda mais moderno. Tivemos vergonha, e tentamos fazer uma discussão, uma mesa-redonda, para retomar um pouco de poder e dizer “bom, é isso aí que...”. Mas fora isso, não. Na literatura, fui educado no respeito aos clássicos, mesmo se não os lia. Eram pessoas que estavam acima, eram deuses ou semideuses. No cinema, nunca tive essa impressão. Um filme menor faz parte do cinema assim como um grande filme. Na literatura, um romance menor, não; assim como na pintura. Mas, no cinema, sim. Não havia inveja. E hoje também não há. Se hoje vejo um ótimo filme e, ao mesmo tempo, não acho bom o que fiz, fico feliz por esse ótimo filme.

Para o senhor, David W. Griffith está acima de todos, habita o topo da “casa do cinema”.

Sim, mas é ainda a mesma casa. Na literatura, se há Goethe ou Tolstói que habitam na casa, eu não poderia nem mesmo morar na mesma cidade. Mas no cinema é diferente, todos estão na mesma casa. É porque o cinema é algo mesmo épico, pelo menos é o sentimento que sempre tive. E há o fato também de que fomos nós que falamos bem dessas pessoas que não eram conhecidas. Como se de repente falássemos bem de nossos avós ou tios-avós que as pessoas não conheciam, ignoravam. Éramos forçosamente da mesma família. Não havia inveja ou o fato de considerar alguém como rei.

Alfred Hitchcock é, para o senhor, o único poeta maldito a ter alcançado sucesso, “o único a ter conseguido obter o controle do universo”. Segundo o senhor, nos filmes dele encontramos todos os fundamentos da arte.