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Entre a natureza natural e as paisagens culturais: produção artesanal e modelos de natureza em jogo no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses Mônica Sousa Pereira Orientador: Prof. Dr. Benedito Souza Filho (PPGCSoc/GERUR/UFMA) OBJETO Visão Geral Este trabalho se insere em uma pesquisa mais ampla demandada pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Colônia de Pescadores e outras entidades governamentais e da sociedade civil de Barreirinhas. Vincula-se ao projeto intitulado Ação estatal de conservação da natureza e populações tradicionais no Brasil: conflitos socioambientais no Parque Nacional dos Lençóis Maranhensescoordenado pela Profa. Dra. Maristela de Paula Andrade, líder do Grupo de Estudos Rurais e Urbanos da UFMA. O eixo central da investigação do projeto é a compreensão do modo de vida das famílias que vivem e trabalham no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (DECRETO Nº 86.060, de 02 de junho de 1981). Dentre as atividades econômicas exercidas pelas famílias que historicamente vivem e trabalham em distintas localidades dentro e no entorno do Parque estão a pesca, a agricultura, o extrativismo, a criação de animais, a comercialização da castanha de caju e o artesanato à base de fibra de buriti. Definição do Objeto A venda do artesanato dos subprodutos da palmeira de buriti (Mauritia flexuosa)(CARVALHO, 1986;KELLER, 2011; NORONHA, 2012), para além da prática econômica que a atividade sugere, tem relação com complexos sistemas de conhecimento e classificações locais. Tem a ver também com paisagens socialmente produzidas que caracterizam modos de vida específicos (LÉVI-STRAUSS,1976). A partir da interação entre humanos e não humanos(espécies vegetais) (INGOLD, 2012), nos povoados Bom Jardim e principalmente Achuí, percebe-se que o fino conhecimento derivado dessa relação e das diversas formas de manejo e interação entre grupos familiares e os diversos tipos de vegetação, contribui para a constituição de paisagens culturais (SILVEIRA, 2009). O trabalho analisará de forma mais detida as interações que as famílias desses povoados mantêm com a palmeira de buriti, procurando mostrar que o uso dos recursos se dá a partir de regras socialmente estabelecidas que contribuem para a sustentabilidade ecológica, assegurando a manutenção do ambiente biofísico. Os artefatos produzidos do olho (folhas novas), palha (folhas abertas), braço (pecíolo) madeira (tronco) e do buriti (fruto), obedecem a regras locais que levam em consideração os ciclos da natureza, sua agência e dimensão simbólica. Cabe destacar que as interações entre humanos e não humanos em comunidades tradicionais não podem ser vistas como de oposição e sim de complementaridade, existindo agência tanto de humanos quanto do próprio meio biofísico (LITTLE, 2006, p.94). OBJETIVOS DO TRABALHO Compreender, a partir das interações entre humanos e não humanos o lugar que as diferentes espécies vegetais ocupam na organização social e econômica das famílias; Compreender como os sistemas de conhecimento e as regras de uso dos palmeirais contribuem para a manutenção do meio biofísico e a reprodução dessa espécie historicamente utilizada pelas famílias; Entender o modo como as famílias dos povoados estudados do PARNA Lençóis se relacionam com os recursos disponíveis para a reprodução da prática do artesanato; Compreender as formas de uso e manejo das palmeiras de buriti; Problematizar a categoria nativono que se refere às formas de classificação de espécies vegetais operados pelos agentes do ICMBio e pelas famílias das localidades estudadas. Imagem 1: Palmeiral cultivado nas margens do rio Achuí. Foto: Monica S. Pereira Imagem 2: Palmeiras machos e fêmeas cultivadas nas margens do rio Achuí. Foto: Mônica S. Pereira METODOLOGIA Trabalho de campo etnográfico, com observação direta e participante, anotações sistemáticas em diário de campo, realização de entrevistas e conversas informais, elaboração de croquis, uso de recursos audiovisuais e marcação com GPS de áreas estratégicas à economia das famílias. CONCLUSÕES Ballé (2009, p.9), argumenta que as paisagens são encontros de pessoas e lugarese, neste sentido, os buritizais do Parque não podem ser classificados puramente como natureza natural, pois resultam, também, do trabalho humano mediado pela cultura. O modo de vida desses grupos familiares, classificados pelo Estado Brasileiro como populações tradicionais, contribui para o desenvolvimento sustentável do PARNA. A concepção de natureza que orienta a prática das famílias desses povoados, passada de pais para filhos, contrapõe-se àquela conservacionista de natureza naturaldisseminada pela visão dos agentes do órgão ambiental. Essa polarização tem propiciado choques e tensões entre as famílias dos povoados e os agentes do órgão ambiental do Estado, já que as práticas das famílias contradizem o que o Art. 11 do SNUC estabelece:o Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica(SNUC, p. 7), sugerindo uma concepção de natureza reducionista que separa natureza e cultura. A partir das informações levantadas podemos argumentar que a natureza modela a cultura e a cultura modela a natureza. Nesse sentido, o conhecimento derivado dessa relação íntima com a natureza pode ser entendido como patrimônio imaterial desses grupos (CARNEIRO DA CUNHA, 2005; LIMA FILHO, 2005). Essas formas específicas de saber, materializadas em distintos artefatos, contribuem para a definição de uma marca de origem (LAGES; BRAGA, 2005), já que o artesanato de Barreirinhas é particular, incorporando traços da identidade dos grupos que o praticam.O manejo dos palmeirais de buriti ressignifica o modo como às paisagens são pensadas. Nessa prática, o ambiente é produzido a partir da utilização desses saberes tradicionais. O conhecimento do ambiente natural é produzido socialmente pelas famílias, que os construíram coletivamente. É justamente dessa relação com a natureza, mediada por essas formas de saber que as famílias têm assegurado a sua reprodução material e a manutenção de seus modos de vida. REFERÊNCIAS Bibliográficas BALLÉ, William. “Sobre a Indigeneidade das Paisagens.Revista de Arqueologia, 21, n.2, 2009, p. 09 23. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, rio de Janeiro, n. 32, p. 15-27, 2005. CARVALHO, José Joaquim Castro. O artesanato de Barreirinhas. São Luís, 1986, 103p. INGOLD,Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.37, 2012, p. 25-44. KELLER, Paulo Fernandes. Trabalho artesanal e cooperado: realidades mudanças e desafios. Sociedade e Cultura. Goiânia, V. 14, n.1, jan/jun, 2011, p. 29 40. LAGES, V;BRAGA, C. A origem geográfica como patrimônio implicações para políticas públicas e desenvolvimento de negócios. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, p. 95-107, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, Cap. 1: O pensamento selvagem, p. 19-50. LIMA FILHO, M. F. Da matéria ao sujeito: inquietação patrimonial brasileira. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v.52, n.2, p. 605-632, 2009. LITTLE, Paul Elliot. Ecologia Política como Etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, 12, n.21, 2006, p. 85-103. NORONHA, Raquel Gomes. Sobre a louça e a rede: Processos contemporâneos de construção de valor entre artesãs de Alcântara (MA). Revista Pós Ciências Sociais. V.9 n.17, jan/jun 2012, p. 176-199. SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da.A paisagem como fenômeno complexo, reflexões sobre um tema interdisciplinar. In: Paisagem e cultura: Dinâmica do Patrimônio e da Memória na atualidade. Belém, PA: Editora Universitária UFPA, 2009, p. 71-83. SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Texto da Lei 9985 de 18 de julho de 2000 e vetos da Presidência da República ao PL aprovado pelo Congresso Nacional e Decreto No 4.340, de 22 de agosto de 2002. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2002. Imagem 3: Artefatos e produtos de uso interno e externo produzidos a partir da palmeira de buriti. Foto: Mônica S. Pereira Imagem 4: Representação da palmeira de buriti feito por interlocutoras . Foto: Mônica S. Pereira

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Entre a natureza natural e as paisagens culturais: produção artesanal e modelos de natureza em jogo no

Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses

Mônica Sousa Pereira

Orientador: Prof. Dr. Benedito Souza Filho (PPGCSoc/GERUR/UFMA)

OBJETO

Visão Geral

Este trabalho se insere em uma pesquisa mais ampla demandada pelo

Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Colônia de Pescadores

e outras entidades governamentais e da sociedade civil de Barreirinhas. Vincula-se ao projeto intitulado “Ação estatal de conservação da natureza e

populações tradicionais no Brasil: conflitos socioambientais no Parque

Nacional dos Lençóis Maranhenses”coordenado pela Profa. Dra. Maristela

de Paula Andrade, líder do Grupo de Estudos Rurais e Urbanos da UFMA.

O eixo central da investigação do projeto é a compreensão do modo de vida

das famílias que vivem e trabalham no Parque Nacional dos Lençóis

Maranhenses (DECRETO Nº 86.060, de 02 de junho de 1981). Dentre as

atividades econômicas exercidas pelas famílias que historicamente vivem e

trabalham em distintas localidades dentro e no entorno do Parque estão a pesca, a agricultura, o extrativismo, a criação de animais, a comercialização

da castanha de caju e o artesanato à base de fibra de buriti. Definição do Objeto

A venda do artesanato dos subprodutos da palmeira de buriti (Mauritia

flexuosa)(CARVALHO, 1986;KELLER, 2011; NORONHA, 2012), para além

da prática econômica que a atividade sugere, tem relação com complexos

sistemas de conhecimento e classificações locais. Tem a ver também com

paisagens socialmente produzidas que caracterizam modos de vida específicos (LÉVI-STRAUSS,1976). A partir da interação entre humanos e

não humanos(espécies vegetais) (INGOLD, 2012), nos povoados Bom Jardim e principalmente Achuí, percebe-se que o fino conhecimento

derivado dessa relação e das diversas formas de manejo e interação entre

grupos familiares e os diversos tipos de vegetação, contribui para a

constituição de paisagens culturais (SILVEIRA, 2009). O trabalho analisará

de forma mais detida as interações que as famílias desses povoados

mantêm com a palmeira de buriti, procurando mostrar que o uso dos recursos se dá a partir de regras socialmente estabelecidas que contribuem

para a sustentabilidade ecológica, assegurando a manutenção do ambiente

biofísico. Os artefatos produzidos do olho (folhas novas), palha (folhas

abertas), braço (pecíolo) madeira (tronco) e do buriti (fruto), obedecem a

regras locais que levam em consideração os ciclos da natureza, sua

agência e dimensão simbólica. Cabe destacar que as interações entre

humanos e não humanos em comunidades tradicionais não podem ser vistas como de oposição e sim de complementaridade, existindo agência

tanto de humanos quanto do próprio meio biofísico (LITTLE, 2006, p.94).

OBJETIVOS DO TRABALHO

Compreender, a partir das interações entre humanos e não humanos o

lugar que as diferentes espécies vegetais ocupam na organização social e

econômica das famílias;

Compreender como os sistemas de conhecimento e as regras de uso dos palmeirais contribuem para a manutenção do meio biofísico e a

reprodução dessa espécie historicamente utilizada pelas famílias;

Entender o modo como as famílias dos povoados estudados do PARNA

Lençóis se relacionam com os recursos disponíveis para a reprodução da

prática do artesanato;

Compreender as formas de uso e manejo das palmeiras de buriti; Problematizar a categoria “nativo” no que se refere às formas de

classificação de espécies vegetais operados pelos agentes do ICMBio e

pelas famílias das localidades estudadas.

Imagem 1: Palmeiral cultivado nas margens do rio

Achuí. Foto: Monica S. Pereira

Imagem 2: Palmeiras machos e fêmeas cultivadas

nas margens do rio Achuí. Foto: Mônica S. Pereira

METODOLOGIA

Trabalho de campo etnográfico, com observação direta e participante, anotações sistemáticas em diário de

campo, realização de entrevistas e conversas informais, elaboração de croquis, uso de recursos audiovisuais

e marcação com GPS de áreas estratégicas à economia das famílias.

CONCLUSÕES

Ballé (2009, p.9), argumenta que “as paisagens são encontros de pessoas e lugares” e, neste sentido, os

buritizais do Parque não podem ser classificados puramente como natureza natural, pois resultam, também, do

trabalho humano mediado pela cultura. O modo de vida desses grupos familiares, classificados pelo Estado Brasileiro como populações tradicionais, contribui para o desenvolvimento sustentável do PARNA. A concepção

de natureza que orienta a prática das famílias desses povoados, passada de pais para filhos, contrapõe-se

àquela conservacionista de “natureza natural” disseminada pela visão dos agentes do órgão ambiental.

Essa polarização tem propiciado choques e tensões entre as famílias dos povoados e os agentes do órgão

ambiental do Estado, já que as práticas das famílias contradizem o que o Art. 11 do SNUC estabelece:“o

Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância

ecológica e beleza cênica” (SNUC, p. 7), sugerindo uma concepção de natureza reducionista que separa

natureza e cultura. A partir das informações levantadas podemos argumentar que a natureza modela a cultura

e a cultura modela a natureza. Nesse sentido, o conhecimento derivado dessa relação íntima com a natureza

pode ser entendido como patrimônio imaterial desses grupos (CARNEIRO DA CUNHA, 2005; LIMA FILHO, 2005). Essas formas específicas de saber, materializadas em distintos artefatos, contribuem para a definição

de uma marca de origem (LAGES; BRAGA, 2005), já que o artesanato de Barreirinhas é particular,

incorporando traços da identidade dos grupos que o praticam.O manejo dos palmeirais de buriti ressignifica o

modo como às paisagens são pensadas. Nessa prática, o ambiente é produzido a partir da utilização desses

saberes tradicionais. O conhecimento do ambiente natural é produzido socialmente pelas famílias, que os

construíram coletivamente. É justamente dessa relação com a natureza, mediada por essas formas de saber

que as famílias têm assegurado a sua reprodução material e a manutenção de seus modos de vida.

REFERÊNCIAS Bibliográficas

BALLÉ, William. “Sobre a Indigeneidade das Paisagens”.Revista de Arqueologia,

21, n.2, 2009, p. 09 – 23.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução. Revista do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional, rio de Janeiro, n. 32, p. 15-27, 2005.

CARVALHO, José Joaquim Castro. O artesanato de Barreirinhas. São Luís,

1986, 103p.

INGOLD,Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num

mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.37,

2012, p. 25-44.

KELLER, Paulo Fernandes. Trabalho artesanal e cooperado: realidades mudanças

e desafios. Sociedade e Cultura. Goiânia, V. 14, n.1, jan/jun, 2011, p. 29 – 40.

LAGES, V;BRAGA, C. A origem geográfica como patrimônio – implicações para

políticas públicas e desenvolvimento de negócios. Revista do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, p. 95-107, 2005.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad. Maria Celeste da

Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1976, Cap. 1: O pensamento selvagem, p. 19-50.

LIMA FILHO, M. F. Da matéria ao sujeito: inquietação patrimonial brasileira.

Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v.52, n.2, p. 605-632, 2009.

LITTLE, Paul Elliot. Ecologia Política como Etnografia: um guia teórico e

metodológico. Horizontes Antropológicos, 12, n.21, 2006, p. 85-103.

NORONHA, Raquel Gomes. Sobre a louça e a rede: Processos contemporâneos

de construção de valor entre artesãs de Alcântara (MA). Revista Pós Ciências

Sociais. V.9 n.17, jan/jun 2012, p. 176-199.

SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da.A paisagem como fenômeno complexo,

reflexões sobre um tema interdisciplinar. In: Paisagem e cultura: Dinâmica do

Patrimônio e da Memória na atualidade. Belém, PA: Editora Universitária UFPA,

2009, p. 71-83.

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Texto da Lei 9985 de

18 de julho de 2000 e vetos da Presidência da República ao PL aprovado pelo

Congresso Nacional e Decreto No 4.340, de 22 de agosto de 2002. São Paulo:

Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2002.

Imagem 3: Artefatos e produtos de uso interno e externo

produzidos a partir da palmeira de buriti. Foto: Mônica S.

Pereira

Imagem 4: Representação da

palmeira de buriti feito por

interlocutoras .

Foto: Mônica S. Pereira