Ensaio sobre Explicação do Pássaros
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Explicação dos Pássaros podia ter sido tantas outras histórias. Histórias
que porventura se encaixariam mais facilmente na nossa compreensão e na
nossa imaginação. Mas, esse não foi o conto que António Lobo Antunes decidiu
desenvolver neste seu quarto romance publicado. O autor decidiu sim construir
um espectáculo de variedades literário que aborda o suicídio de forma lúcida,
corajosa e desenvolvida, sem receio de tabus, sem recorrer a estereótipos que
passam por cima da realidade humana e psicológica desta tragédia, e sem
demonstrar qualquer reserva em iluminar indubitavelmente este tópico tão
frequentemente ocultado da verdade pela vergonha.
Esta, também, podia ter sido uma história que se punha estritamente a
favor ou contra o indivíduo, a favor ou contra a sociedade. Mas não o é! Lobo
Antunes parece decidido, quer no desenvolvimento do enredo, quer no
desenvolvimento do personagens, em evitar a advocacia, quer do todo quer do
indivíduo, e parece determinado a demonstrar, em vários níveis de
relacionamento, e recorrendo a diversas formas de narração, a fragilidade que
existe na simples tentativa de ser, e a hipocrisia geral gerada pela mentalidade
social que serve para o beneficio implícito e acolhedor dos que se incluem e do
falhanço repetitivo e solitário que espera muitos dos que se excluem.
E, finalmente, Explicação dos Pássaros podia ter sido a história em que um
jovem abandona a família, a mulher, e todo seu passado burguês, e se
transforma num revolucionário do proletariado, encontrando na sua nova mulher
e no seio da cultura do Partido Comunista um novo universo que o acolhe e o
faz sentir finalmente útil e completo. Mas, também aqui Lobo Antunes evita
mostrar favoritismo político em prol dum enredo que explora e desmascara a
fantasia do idealismo político, e favorece a exposição da hipocrisia política e
das suas consequentes fendas morais.
Bem, o que é então, concretamente, o teor de Explicação dos Pássaros? O
que Lobo Antunes desenhou, foi uma história que relata os últimos quatro dias
de vida de Rui S., um professor universitário de História, e que contextualiza a
sua decisão de tomar a própria vida ao nos oferecer um relato corrido do estado
psicológico e emocional do protagonista, ao recolher uma colectânea de
lembranças do seu passado, bem como uma apresentação de diversos
testemunhos e pontos de vista de personagens na vida de Rui S.
Com alguma ironia, o romance começa com Rui S. a declarar, quando
ainda em Lisboa: “-Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como
uma baleia morta” (Antunes, 9). Quatro dias depois Rui S. é descoberto numa
praia, em Aveiro, morto na areia, já muito pinicado pelas gaivotas .
É, também, ainda no primeiro capitulo, “Quinta-Feira”, que o autor revela
um dos seus inspirados mecanismos narrativos, o circo de interlocutores, que
oferece ao narrador uma ruptura no espaço e no tempo, e que lhe permite inserir
na narração comentários, testemunhos, críticas, e recordações, duma forma
alucinante e rodopiante de um diverso grupo de personagens da vida do
protagonista, como que um coro da tragédia grega, agora metamorfoseado para
coadjuvar a génese pós-modernista de Lobo Antunes. Determinante no primeiro
e no ultimo capítulo, especialmente no último, onde acompanha a aproximação
ao suicídio de Rui S. como se fosse uma transmissão televisiva, repleta de
anúncios publicitários ridículos, e que aufere ao narrador explorar a indiferença
da família, das ex-mulheres, e dos restantes membros do elenco da vida de Rui
S., e assim o narrador concentra um dos pontos focais do romance: a repartição
de culpas pela miserabilidade, e consequente trágico fim da vida de Rui S. Ou
seja, o autor não se remete somente a apontar o dedo aos falhanços de Rui S.,
ele determina que a falta de coerência da família e da sociedade, a sua
tendência para o julgamento, a sua hipocrisia, e a sua austera expectativa para
o conformismo, foram tão, ou mais, pertinentes para o desfecho do protagonista
como as suas próprias idiossincrasias. Esta abismo entre as duas partes é
visível quando, a caminho da morte, após alguns parágrafos onde irmãs, ex-
mulher, esposa, pai, cunhado, entre outros fazem fila para oferecer as suas
censuras, o protagonista pensa:
Quais asneiras? Pensou ele sentado na areia, no meio das ervas, a espiar a agua, densa, varoposa, imóvel, do Vouga. A separação da Tucha, o aborto da Marília, o não ter ido para a empresa como o velho queria, noa ter sequer aceite, por orgulho? por coerência? (Mas coerência com o quê?), por um mero infantil instinto de revolta, um lugar nominal na direcção? Quais asneiras?, pensou ele intrigado, vasculhando o súbito, angustioso, enorme vazio da memória ate onde o abraço da lembrança conseguia. (Antunes, 237-8).
Ainda no primeiro capítulo se começa a desvendar e a desdobrar o
significado do título do romance, Explicação dos Pássaros:
Um dia, em miúdo, ao fim da tarde, achavam-nos na quinta e um bando de pássaros levantou voo do castanheiro do oco na direcção da mancha da mata, azulada pelo inicio da noite. As asas batiam num ruído de folhas agitadas pelo vento, folhas miúdas , fitinhas, múltiplas, de dicionário, eu estava de mão dada contigo e pedi-te de repente Explica-me os pássaros. Assim, sem mais nada, Explica-me os pássaros, um pedido embaraçoso para um homem de negócios. Mas tu sorriste e disseste-me que os ossos eram feitos de espuma da praia, que se alimentavam das migalhas do vento e que quando morriam flutuavam de costas no ar, de olhos fechados como as velhas na comunhão. Imaginar que cinco ou seis anos depois o que te interessava eram as notas de Geografia e Matemática provocava-me uma espécie esquisita de vertigem, de impressão de absurdo, de impossibilidade, quase cómica” (Antunes, 43-4).
Este, aparentemente, simples momento de infância acaba por se avolumar
numa obsessão e passa a ser o invólucro do abismo metafórico na vida de Rui
S.. Como explica Eunice Cabral no seu ensaio, “In the Name of a Father: In
Search a Lost Name and Place”:
The expression “explanation of birds” labels this moment of childhood happiness of mythic proportions. It also indicates a typical kind of emotional ellipsis, since in fact we know that no one can provide a rational, literal explanation of birds unless the explanation is the equivalent of or takes the place of an expression of love. On this emotional level it can fill in the blank spaces and bridge the gaps that are apparent to reason. Indeed the expression “explanation of birds” implies a coherent subjective or emotional meaning in which a “leap” of the poetic kind takes place. In Portuguese the expression betrays an omission: because its semantic core is grasped by approximation (é apreendido por aproximação ??), its meaning is centrifugal. In order to avoid lapses and ellipses, one would have to add to it, creating an expression like “explanation of certain aspects of birds”. For these reasons “explanation of birds” conforms to a child’s linguistic logic, according to which (despite lapses) parents always understand what the child wants to say, that is, they are able to translate their child’s unique language into the common tongue. (Cabral)
Toda esta dinâmica fica ainda mais clara quando mais tarde nos é
apresentado o episódio com Amílcar Esperança, o vizinho de Rui S. No prédio
em que ele vivia antes de ir viver com a Marília. Ao ver o exagerado número de
pósteres que o vizinho tinha como recordação dos tempos em que era esposo
de Madame Simone, domadora de rolas, e que portanto o figurava no meio de
muitos pássaros, o Rui teve a seguinte reacção algo surpreendente,
uma tarde perguntou-me Porquê tantos pássaros, e eu elucidei-o É a minha finada esposa que amestrava rolas, e o doutor, compreende, caladinho a ouvir, a estudar os bichos, a examinar os bicos, as pupilas, as asas, o arame fininho das patas, as rémiges brancas, cinzentas, azuladas, que por um instante vogaram no sótão numa farândola aflita por cima do cocoruto do anão, do me cocoruto, do cocoruto do doutor que as contemplava, siderado, de bochechas gordas a tremer, naquele sorriso de boneco de barro dele, desses a quem se puxa um cordel e sai, salvo seja, um pila de alto lá com ela da batina, o anão contou-lhe do que os bichos eram capazes com as carrocinhas de lata e os baloiços de corda e o sujeito a ouvir de boca aberta, Talvez que a madame Simone me soubesse explicar os pássaros, disse ele, ando há trinta anos à procura disso, (Antunes, 186)
Ou seja, a inabilidade de responder ou de obter resposta a uma pergunta
que se afigura como símbolo de um mundo infantil em que tudo ainda era como
se quer que seja; feliz, agradável, justo, e acima de tudo, um mundo que existia
antes da ruptura com a família, antes da censura e crítica daqueles de quem
esperava mais solidariedade.
Mais tarde, quando já se encontra no bairro da morte, a reacção do pai em
considerar a pergunta como um tremendo absurdo, sublinha duma forma ainda
mais marcante a ruptura que existe entre eles, e entre o Rui S. E a realidade que
entretanto se foi desenvolvendo sem sua participação activa e consciente.
Finalmente, há que realçar a função dos pássaros nos últimos instantes
da sua vida, tanto a presença das gaivotas na praia antes do suicídio que se
pareciam a um metrónomo a marcar o tempo de espera que antecipava o fim
próximo:
as gaivotas guinchavam cada vez mais perto, ouvia-lhes o bater rapido das asas, sentia-lhe o aroma salgado das penas, e um reflexo do mar cresceu-lhe por momentos no interior das pálpebras,” (Antunes, 245).
E, merece a lembrança, o facto de que quando foi encontrado morto na praia, já
estava, “semidevorado pela incontrolável gula das gaivotas” (Antunes, 78).
Porventura uma forma subtil de exprimir um dos riscos das obsessões: que no
fim nos podem engolir.
Uma última peça de relevo para desvendar este meio enigma que é o titulo
deste romance de Lobo Antunes, foi a transformação, uma vez mais, no
derradeiro capítulo do romance, da colecção de borboletas do pai de Rui S. em
pássaros, e não simplesmente pássaros, mas, “-Estão aqui todos os pássaros
da quinta - esclareceu o pai enquanto as folhas de cartão com aves crucificadas,
de redondas órbitas de gelatina e patas curvas, negras e vermelhas, se
amontoavam ao acaso na alcatifa” (Antunes 223). Portanto, estes eram os
pássaros da quinta, local onde que alberga tantas recordações felizes de uma
infância que se esvanecia, de tal forma que, no últimos momentos antes da
morte, Rui S. percorre a dita quinta mentalmente mas esta aparece abandonada
e em ruínas. Por demais, é através destes pássaros embalsamados que o pai do
Rui S. se oferece a explicar os pássaros ao filho, sugerindo-lhe que o segredo
poderia desvendado se ele lhes cortasse a barriga, é desta forma que o pai o
incita indirecta e imaginariamente a matar-se:
O pai surgiu à sua esquerda a cheirar a desodorizante e a perfume e disse-lhe Já vistes os pássaros?, apontando para a alcatifa de arbustos, de frutos podres, de seixos e de cagalhões secos do chão, e ele notou, a agarrar o cabo da faca, cravados com alfinetes nas folhas de cartolina, de bracos abertos e órbitas redondas e espantadas, a mãe, as irmãs, a Filipa, o Carlos, o obstetra, a Marília, senhor Esperança, o cego, o tio viúvo, (…) o pai ajeitou o cabelo contra a s têmporas e entregou-lhe a faca de papel, Vou-te ajudar a entender os pássaros, disse ele, vou-te ajudar a compreendê-los (…) viu-se a si mesmo numa placa de cartão etiquetada e numerada, a penugem do peito, o bico, as patas, as pupilas, arremelgadas de pavor, as asas desfraldadas dos braços, debrucei-me, curioso, para mim, e agora as gaivotas gritavam estridentes no meu crânio, os eucaliptos oscilavam a primeira revoada de pardais soltou-se em desordem do pomar na direcção da mata, Corta a barria a esse, disse o meu pai apontando-me com o dedo, corta a barriga a esse para eu to explicar” (Antunes 245-6).
Através destes e de outros exemplos fica aparente que a preocupação
mor de de António Lobo Antunes em Explicação do Pássaros é a investigação e
exposição do diverso número de aspectos que contribuem para o desfecho final
de Rui S., o suicídio, e de maior importância, o seu percurso em direcção a esse
desfecho. Bem, tal como não foi a ênfase do autor de advogar, também eu
neste ensaio não intenciono fazer a defesa de Rui S. nem de apontar um dedo
acusatório a qualquer das facetas que constituem o seu universo. Contudo,
pareceu-me útil acentuar os aspectos que me pareciam mais fáceis de omitir:
que apesar das muitas falhas de Rui S. enumeradas ao longo da obra e das
devidas consequências que elas geraram quer para ele quer para os que o
rodeiam (“Asneiras sobre asneiras sobre asneiras- disse o médico de muito
longe.-Centenas de asneiras pagam-se caro” (Antunes, 239) ) também as
fendas desse mesmo universo, quer sejam institucionais quer individuais,
merecem ser iluminadas e analisadas de forma a se retirar uma visão
equilibrada dos acontecimentos.
Afigura-se-me que facilmente se poderia, e como é aparentemente hábito
social nos casos do suicídio, deduzir que Rui S. se encarregou de cavar a sua
própria cova, e como é vulgar nestes casos, de o desprezadamente catalogar de
cobarde. E, em conjunto com a falta de êxitos na sua vida, que se pudesse
chegar a ainda mais conclusões precipitadas.
Contudo, o simples facto de que o narrador nos informa desde muito cedo
na obra do que irá acontecer a Rui S., parece fortemente sugerir que o foco da
obra se materializa não no desfecho mas no percurso. Ademais, convém
também aperceber-mo-nos das imperfeições do quadro social e familiar do
protagonista: do pai autoritário mas ausente, da mãe e das irmãs fúteis e
preconceituosas, das mulheres que casaram ambas come ele por razões que
ficam aquém do amor, e duma sociedade que especialmente naquela era pós-
revolução exigia dos seus contribuintes uma participação política zelada e com
pouco espaço de manobra.
Enfim, é deste modo eximio e sagaz com que Lobo Antunes forja e edifica
todas estas complexidades humanas e sociais, tanto na sua forma de interpretar
o mundo como no seu estilo literário único de depois o exprimir, que fazem de
Explicação do Pássaros um romance com um ponto de vista excepcional e útil
para a expansão da nossa auto compreensão.
Antunes, António Lobo (1981). Explicação dos Pássaros, Lisboa: Publicações Dom Quixote.Cabral, Eunice (?). In the Name of a Father: In Search a Lost Name and Place, http://74.125.155.132/scholar?q=cache:b2Nzdo-JMRIJ:scholar.google.com/+lobo+OR+antunes+%22an+explanation+of+the+birds%22&hl=en&as_sdt=80000