Ensaio camarao alta

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24 GOSTO FLORIANÓPOLIS 2010 25 FLORIANÓPOLIS 2010 GOSTO Ensaio Ilustração: Tarik Assis Tudo ao mesmo tempo agora O sucesso da sequência de camarão, o prato que contraria o Aurélio, mas enche a barriga Ilustração: Tarik Assis C omo para a maioria das pessoas quantidade satisfaz muito mais que qualidade, não é de se espantar que o prato faça tanto sucesso. Amada pelos turistas, a sequência de camarão figura em nove entre dez banners dos restaurantes da orla da Lagoa da Conceição. O preço varia da casa dos 30 reais até os três dígitos, dependendo da época do ano e da cara do freguês. A manezinha conquistou súditos pelo Brasil afora, atraídos, quase sempre, pelas generosas porções oferecidas. É difícil contabilizar quantos estabelecimentos, entre restaurantes, bares, botecos, lanchonetes e quiosques têm na sequência o principal atrativo. A tradicional costuma servir duas pessoas, com casquinha de siri de entrada, seguida por camarão ao alho e óleo, camarão à milanesa, camarão ao bafo e, como se não bastasse, peixe grelhado ao molho de – adivinhe se puder – camarão. Isso sem falar nos tradicionais acompanhamentos, como arroz, pirão e batata frita. Tudo iria bem, se a lógica da nossa sequência não contrariasse o Aurélio. Para ele, se.quên.ci:a é: 1. Ato ou efeito de seguir. 2. Continuação. Por aqui, a ideia é bem diferente. Os camarões ao bafo, à milanesa ou alho e óleo marcam encontro na mesa no mesmo horário. Tudo ao mesmo tempo e agora, sem o mínimo vestígio de continuação. A sequência do Aurélio caminha próxima do que se convencionou chamar de rodízio. Na carona da semelhança, alguns restaurantes (pra quem o Aurélio pouco importa e a sequência é o que bem entendem) optaram por rebatizar o prato. “Rodízio” passou de semelhante a sinônimo, em uma tentativa de se aproximar do léxico de alguns turistas, como os paulistas, por exemplo, para quem “sequência” soa estranho. Há controvérsias. Como a base de comparação, nesse caso, são os rodízios de pizzas, massas ou carnes, imagina-se que a ideia seja: pague um valor fixo por uma quantia não-limitada, servida por garçons indo e vindo. Fazer “rodar” a maior quantidade de sabores possíveis sobre a mesa do cliente é o objetivo que dá sentido ao termo. Ao contrário, no tal rodízio de camarão, a quantidade é ditada pelo restaurante. Entre os donos dos estabelecimentos e os fãs do prato, comer bem e comer muito é uma equivalência que beira a unanimidade. A quantidade e o preço, em uma matemática rasa de custo/benefício, justificam todo o resto do serviço. A começar pelo atendimento. Como se sabe, Florianópolis é criticada pela má prestação de serviços, traduzida no desleixo dos garçons, no desrespeito aos clientes e no despreparo dos donos de restaurante. Na contramão do oba-oba da temporada, são poucos os sérios restaurantes que se dedicam a conquistar o cliente, a vê-lo mais uma vez à mesa, pedindo o prato favorito. Mas por R$ 39,90 e muitos camarões, quem liga? Poucos se importam com a casquinha, que de siri tem só o nome. Com o camarão boiando no óleo, mirrado que só, com a milanesa molenga de tão gordurosa. Com a apresentação lamentável da comida, com a solitária folhinha de alface adornando o prato, sem nunca encontrar um estômago como destino. Com a demora entre o pedido e o prato na mesa. Com a comida fria, que é servida atropelada, toda de uma vez, sem um ritmo que respeite o tempo do paladar. Seja no Ribeirão da Ilha, em Santo Antônio de Lisboa, na Lagoa da Conceição, na Barra da Lagoa ou na Armação, a sequência é sucesso absoluto. Ultrapassou a ponte, cruzou estados e hoje já pode ser encontrada em alguns restaurantes do Rio, de São Paulo e onde mais sua fama tenha alcançado. Por aqui cumpre o papel de legítimo “chama turista”. A ideia não é condenar o pobre crustáceo, que é muito gostoso. Quem dera o mesmo esforço empregado para empanar tantos camarões fosse usado para escolher ingredientes de boa qualidade. Em menor quantidade, melhor qualidade e sem o amontoado de todos os camarões ao mesmo tempo à mesa, o prato poderia ser chamado de se.quên.ci:a.

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24 G o s t o F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 25 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G o s t o

Ensaio

Ilustração: Tarik Assis

Tudo ao mesmo tempo agoraO sucesso da sequência de camarão, o prato que contraria o Aurélio, mas enche a barriga

Ilustração: Tarik Assis

Como para a maioria das

pessoas quantidade satisfaz

muito mais que qualidade,

não é de se espantar que

o prato faça tanto

sucesso. Amada

pelos turistas, a

sequência de

camarão figura

em nove entre

dez banners dos

restaurantes da

orla da Lagoa da

Conceição. O preço

varia da casa dos 30

reais até os três dígitos,

dependendo da época do

ano e da cara do freguês. A

manezinha conquistou súditos

pelo Brasil afora, atraídos, quase

sempre, pelas generosas porções

oferecidas.

É difícil contabilizar quantos

estabelecimentos, entre restaurantes,

bares, botecos, lanchonetes e

quiosques têm na sequência o principal

atrativo. A tradicional costuma servir

duas pessoas, com casquinha de siri de

entrada, seguida por camarão ao alho

e óleo, camarão à milanesa, camarão

ao bafo e, como se não bastasse, peixe

grelhado ao molho de – adivinhe se

puder – camarão. Isso sem falar nos

tradicionais acompanhamentos, como

arroz, pirão e batata frita.

Tudo iria bem, se a lógica da

nossa sequência não contrariasse o

Aurélio. Para ele, se.quên.ci:a é: 1. Ato

ou efeito de seguir. 2. Continuação.

Por aqui, a ideia é bem diferente. Os

camarões ao bafo, à milanesa ou alho

e óleo marcam encontro na mesa no

mesmo horário. Tudo ao mesmo tempo

e agora, sem o mínimo vestígio de

continuação.

A sequência do Aurélio caminha

próxima do que se convencionou

chamar de rodízio. Na carona da

semelhança, alguns restaurantes

(pra quem o Aurélio pouco importa

e a sequência é o que bem entendem)

optaram por rebatizar o prato.

“Rodízio” passou de semelhante

a sinônimo, em uma tentativa de

se aproximar do léxico de alguns

turistas, como os paulistas, por

exemplo, para quem “sequência” soa

estranho.

Há controvérsias. Como a base

de comparação, nesse caso, são os

rodízios de pizzas, massas ou carnes,

imagina-se que a ideia seja: pague

um valor fixo por uma quantia

não-limitada, servida por garçons

indo e vindo. Fazer “rodar” a maior

quantidade de sabores possíveis sobre

a mesa do cliente é o objetivo que dá

sentido ao termo. Ao contrário, no

tal rodízio de camarão, a quantidade

é ditada pelo restaurante. Entre os

donos dos estabelecimentos e os fãs

do prato, comer bem e comer muito

é uma equivalência que beira a

unanimidade.

A quantidade e o preço, em uma

matemática rasa de custo/benefício,

justificam todo o resto do serviço. A

começar pelo atendimento. Como se

sabe, Florianópolis é criticada pela má

prestação de serviços, traduzida no

desleixo dos garçons, no desrespeito

aos clientes e no despreparo dos donos

de restaurante. Na contramão do

oba-oba da temporada, são poucos os

sérios restaurantes que se dedicam a

conquistar o cliente, a vê-lo mais uma

vez à mesa, pedindo o prato favorito.

Mas por R$ 39,90 e muitos camarões,

quem liga?

Poucos se importam com a

casquinha, que de siri tem só o nome.

Com o camarão boiando no óleo,

mirrado que só, com a milanesa

molenga de tão gordurosa. Com a

apresentação lamentável da comida,

com a solitária folhinha de alface

adornando o prato, sem nunca

encontrar um estômago como destino.

Com a demora entre o pedido e o prato

na mesa. Com a comida fria, que é

servida atropelada, toda de uma vez,

sem um ritmo que respeite o tempo do

paladar.

Seja no Ribeirão da Ilha, em

Santo Antônio de Lisboa, na Lagoa

da Conceição, na Barra da Lagoa ou

na Armação, a sequência é sucesso

absoluto. Ultrapassou a ponte, cruzou

estados e hoje já pode ser encontrada

em alguns restaurantes do Rio, de São

Paulo e onde mais sua fama tenha

alcançado. Por aqui cumpre o papel

de legítimo “chama turista”. A ideia

não é condenar o pobre crustáceo,

que é muito gostoso. Quem dera

o mesmo esforço empregado para

empanar tantos camarões fosse usado

para escolher ingredientes de boa

qualidade. Em menor quantidade,

melhor qualidade e sem o amontoado

de todos os camarões ao mesmo tempo

à mesa, o prato poderia ser chamado

de se.quên.ci:a.