Encapsulamentos semânticos em perspectiva discursivo funcional

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0 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS MESTRADO EM LETRAS ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA DISCURSIVO-FUNCIONAL MONCLAR GUIMARÃES LOPES NITERÓI 2010

Transcript of Encapsulamentos semânticos em perspectiva discursivo funcional

0

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA

DISCURSIVO-FUNCIONAL

MONCLAR GUIMARÃES LOPES

NITERÓI

2010

1

MONCLAR GUIMARÃES LOPES

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA

DISCURSIVO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-

graduação em Letras da Universidade Federal

Fluminense, como requisito final para a obtenção

do Grau de Mestre. Área de Concentração:

Estudos da Linguagem. Subárea: Língua

Portuguesa. Linha de Pesquisa: Interfaces –

Discurso/Sintaxe/Fonologia Experimental.

Orientadora: Profa Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes

Co-orientador: Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Niterói

2010

2

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

L864 Lopes, Monclar Guimarães.

Encapsulamentos semânticos em perspectiva discursivo-funcional /

Monclar Guimarães Lopes. – 2010.

219 f. ; il.

Orientador: Vanda Maria Cardozo de Menezes.

Co-orientador: Sebastião Carlos Leite Gonçalves.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,

Instituto de Letras, 2010.

Bibliografia: f. 118-126.

3

MONCLAR GUIMARÃES LOPES

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA

DISCURSIVO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-

graduação em Letras da Universidade Federal

Fluminense, como requisito final para a obtenção

do Grau de Mestre. Área de Concentração:

Estudos da Linguagem.

Aprovada em 21 de junho de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________ Profa. Vanda Maria Cardozo de Menezes – UFF

Orientadora

_______________________________________________________ Prof. Sebastião Carlos Leite Gonçalves – UNESP

Co-orientador

_______________________________________________________ Profa. Maria Maura Cesário – UFRJ

_______________________________________________________

Profa. Mariângela Rios de Oliveira – UFF

_______________________________________________________ Profa. Nilza Barrozo Dias – UFRJ

Niterói

2010

4

Os desejos humanos são infindáveis. São

como a sede de um homem que bebe água

salgada, não se satisfaz e a sua sede apenas

aumenta.

Texto Budista

[...]

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

[...]

Fernando Pessoa

5

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que sempre me incentivaram

em minha educação.

À minha esposa, pelo apoio incondicional e

compreensão de minha ausência.

Às minhas irmãs, pela amizade e por

acreditarem em mim.

Aos mestres que encontrei pelo caminho,

sobretudo à Vanda e ao Sebastião Carlos, sem

os quais esse trabalho não teria saído.

À Nelma da secretaria de Pós-graduação,

pela eterna boa vontade e competência.

6

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – O triângulo de Odgen e Richards ...................................................... 19

Quadro 2 – Percepção e referente ...................................................................... 22

Quadro 3 – Função e configuração dos rótulos propostos por Francis ............... 43

Quadro 4 – O modelo descendente de Representação Gramatical proposto

pela GDF .......................................................................................... 52

Quadro 5 – Categorias do Nível Interpessoal ....................................................... 56

Quadro 6 – Categorias do Nível Representacional .............................................. 73

Quadro 7 – Encapsuladores do Nível Representacional ..................................... 91

7

SUMÁRIO

RESUMO .............................................................................................................. 10

ABSTRACT .......................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12

CAPÍTULO I: A REFERÊNCIA E SEUS POSTULADOS TEÓRICOS ................ 17

1.1. OS ESTUDOS DA REFERÊNCIA ................................................... 17

1.2. A PERSPECTIVA LÓGICO-SEMÂNTICA ...................................... 18

1.3. A PERSPECTIVA SOCIOCOGNITIVA INTERACIONISTA ............ 21

1.3.1. A instabilidade e os processos de estabilização .................. 24

1.3.2. Categorização e recategorização ......................................... 26

1.3.3. A progressão referencial ....................................................... 27

CAPÍTULO II: O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO ........................................ 31

2.1. INTRODUÇÃO .................................................................................... 31

2.2. A POSIÇÃO DOS RÓTULOS NO TEXTO .......................................... 34

2.3. ROTULAÇÃO E NOMINALIZAÇÃO .................................................... 34

2.4. RÓTULOS DE CONTEÚDO ............................................................... 36

2.5. RÓTULOS METALINGUÍSTICOS ...................................................... 37

2.5.1. Nomes ilocucionários ............................................................ 37

2.5.2. Nomes de atividades linguageiras ........................................ 38

2.5.3. Nomes de processos mentais .............................................. 39

2.5.4. Nomes de texto ..................................................................... 39

2.6. CONFIGURAÇÃO DOS RÓTULOS ................................................... 40

CAPÍTULO III: A GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL (GDF) ................... 46

3.1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 46

3.2. PROPRIEDADES BÁSICAS DA GDF................................................. 50

8

3.3. OS QUATRO NÍVEIS DE ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA ................ 52

3.3.1. O Nível Interpessoal (ou pragmático).................................... 54

3.3.1.1. Move ....................................................................... 56

3.3.1.2. Ato Discursivo ......................................................... 60

3.3.1.3. Ilocução ................................................................... 64

3.3.1.4. Participantes ............................................................ 67

3.3.1.5. Conteúdo Comunicado ............................................ 68

3.3.1.6. Subatos .................................................................... 69

3.3.2. O Nível Representacional (ou semântico) ............................. 71

3.3.2.1. As categorias ontológicas básicas ........................... 73

3.3.2.1.1. Conteúdo Proposicional ............................. 73

3.3.2.1.2. Episódio ...................................................... 75

3.3.2.1.3. Estado-de-Coisas ....................................... 76

3.3.2.1.4. Propriedades .............................................. 77

3.3.2.1.5. Indivíduos ................................................... 79

3.3.2.2. As categorias semânticas secundárias .................... 80

3.3.2.2.1. Lugar .......................................................... 80

3.3.2.2.2. Tempo ........................................................ 81

3.3.2.2.3. Modo .......................................................... 82

3.3.2.2.4. Razão ......................................................... 82

3.3.2.2.5. Quantidade ................................................ 83

3.3.2.3. Língua Reflexiva ..................................................... 83

CAPÍTULO IV: PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................... 85

4.1. CARACTERIZAÇÃO DO CORPUS .................................................... 85

4.2. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ...................................................... 86

4.2.1. Estudo dos rótulos metalinguísticos propostos por Francis

e do Nível Representacional da GDF............................................... 86

4.2.2. Levantamento de dados no corpus ....................................... 87

4.2.3. Elaboração de metodologia de análise...................................87

CAPÍTULO V: A ANÁLISE DOS DADOS .......................................................... 89

5.1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 89

5.2. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS BÁSICOS ............................... 91

9

5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional ........................ 92

5.2.2. Encapsuladores de Episódio ................................................ 94

5.2.3. Encapsuladores de Estado-de-coisas .................................. 96

5.2.4. Encapsuladores atribuidores de Propriedades .................... 99

5.3. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS SECUNDÁRIOS .................... 101

5.3.1. Encapsuladores de Modo ..................................................... 102

5.3.2. Encapsuladores de Razão .................................................... 103

5.3.3. Encapsuladores de Quantidade ............................................ 104

5.4. ENCAPSULADORES METALINGUÍSTICOS ..................................... 106

5.5. CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA ..................................................... 107

5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos. 108

5.5.2 O papel do contexto ............................................................... 108

5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos .............................. 110

5.5.4. A análise de encapsulamentos de núcleo gramatical .......... 110

5.5.5. Nem todo encapsulamento advém de categoria instável..... 110

5.5.6. A configuração dos encapsulamentos depende do discurso.112

5.6. Perspectivas futuras ............................................................................ 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 115

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 118

ANEXOS ............................................................................................................. 127

10

RESUMO

Este trabalho propõe a ampliação categorial dos encapsulamentos

semânticos propostos por Francis (1994, 2003) por intermédio das categorias

semânticas do Nível Representacional da Gramática Discursivo-Funcional.

Defendemos que a autora, em seus estudos, não deu tratamento a todas as

categorias semânticas possíveis de uma unidade linguística. Paralelamente,

patrocinamos uma redefinição do próprio conceito de encapsulamento, uma vez que

este pode tanto apresentar dependência contextual quanto ser representado por

elemento gramaticalizado. Os dados coletados para a elaboração da análise foram

extraídos de oitenta e oito textos do gênero Crítica de Cinema e TV, do jornal A

Folha de São Paulo online, no período de agosto de 2008 a janeiro deste ano.

PALAVRAS-CHAVE: Encapsulamento; Referenciação; Gramática Discursivo-

Funcional

11

ABSTRACT

This work proposes the categorial widening of the semantic anaphoric

encapsulations proposed by Francis (1994, 2003) through the semantic categories of

the Representational Level established by the Functional Discourse Grammar. We

believe that Francis, in her studies, did not approach all the possible semantic

categories of a language unit. In addition to this, we support a redefinition of the

concept of encapsulation, since it can be dependent on context or be represented by

grammaticalized terms. Our corpora were extracted from eighty-eight TV and Movie

Reviews from Folha de São Paulo online, in the period of August, 2008 to January,

2010.

KEY WORDS: Encapsulation; Referenciation; Functional Discourse Grammar.

12

INTRODUÇÃO

O mundo não fala, apenas nós falamos. Desde que fomos programados com uma

linguagem, o mundo pode levar-nos a adotar certas crenças. Mas não poderia fornecer

uma linguagem para que nós falássemos. Apenas outros seres humanos podem fazê-lo.

Richard Rorty1

Esta dissertação visa à discussão teórica dos estudos da referência –

incluindo-a em uma perspectiva mais recente de análise lingüística, a discursivo-

funcional2 – e à ampliação categorial dos encapsulamentos semânticos � de

metafunção ideacional e textual � propostos por Francis (1994, 2003), por recurso

às categorias semânticas do Nível Representacional da Gramática Discursivo-

Funcional3. Para tanto, utilizam-se como corpus oitenta e oito textos do gênero

Crítica de Cinema e TV, todos extraídos do jornal Folha de São Paulo, do período de

Agosto de 2008 a Janeiro deste ano.

Defende-se a tese de que os encapsulamentos semânticos extrapolam as

categorias previstas por Francis, que, em vez de quatro – nomes ilocucionários, de

processo mental, de atividades linguageiras e de textos –, compõem oito categorias

1 - Original: The world does not speak. Only we do. The world can, once we have programmed

ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for us to speak. Only other human beings can do that. Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity. Cambrigde: Cambridge University Press, 1989.

2 Uma vez que se trata de uma perspectiva recente, a organização deste trabalho exige uma abordagem mais detalhada e extensa do referencial teórico, uma vez que se trata de uma teoria pouco difundida no Brasil: a Gramática Discursivo-Funcional.

3 A Gramática Discursivo-Funcional representa uma versão atualizada da Gramática Funcional

Padrão de Dik (1997), elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2008).

13

– encapsuladores de Conteúdo Proposicional, de Episódio, de Estado-de-coisas, de

Propriedade, de Modo, de Razão, de Quantidade e Metalinguísticos. Paralelamente,

também se defende a tese de que o encapsulamento vai além do sintagma nominal

ou do cotexto propriamente dito – ao contrário do que defende Conte (2003, p. 177)

–, pois, sob uma dimensão discursivo-funcional, o encapsulamento pode tanto ser

representado por elementos gramaticais quanto pode não encontrar âncora

delimitável no cotexto, conforme será visto na análise dos dados. Por essa razão,

far-se-á uso da concepção de Koch (2003, p. 94), uma vez que sua definição de

encapsulamento – sumarização de uma informação precedente, compartilhada pelos

interlocutores – atende tanto ao cotexto quanto ao contexto.

Além dessas questões, a pesquisa visa a investigar mais dois pontos:

1) O estudo das categorias estáveis dos encapsulamentos

Embora a perspectiva sociocognitiva interacionista reconheça as práticas de

sedimentação das categorias em protótipos e estereótipos, os estudos que conferem

instabilidade ao objeto-de-discurso (referente) têm estado, fortemente, mais

presentes. Dessa forma, esta pesquisa inclui algumas categorias lexicais e

gramaticais que, embora mais estáveis, representam formas encapsuladoras.

2) A configuração dos encapsulamentos é gradiente, e não binária

Os estudos atuais dos encapsulamentos acerca de sua configuração, se

axiológicos ou não-axiológicos, sugerem que sua configuração se dá de forma

binária: ou é avaliativo ou não. No entanto, sustenta-se a idéia de gradiência, uma

vez que se encontram, no corpus, formas encapsuladoras cuja configuração não é

claramente delimitável.

Segundo os autores da GDF, a idéia da análise de um fenômeno textual

através de um modelo gramatical partiu do próprio Dik, que já havia dedicado todo

um capítulo ao estudo da anáfora em The Theory of Functional Grammar Part 2:

Complex and Derived Constructions. Na versão atual, no entanto, Hengeveld e

Mackenzie (2008) apenas apontam a potencialidade do estudo anafórico, mas ainda

não o desenvolvem. É importante ressaltar que essa atualização da teoria

14

gramatical, que implicou, inclusive, uma nova nomeação, representa toda uma

mudança de perspectiva da Gramática Funcional Padrão, distanciando-se, e muito,

de sua versão original. Como, para a Gramática Discursivo-Funcional (doravante

GDF), a unidade mínima de análise não é a oração, mas o Ato Discursivo4, os

paradigmas mudaram. Portanto, o que se fez, aqui, não foi uma confirmação do

trabalho de Dik, mas a interpretação de um tipo de anáfora mediante as

potencialidades das categorias semânticas previstas pela GDF.

Munidos da concepção de que um modelo de análise gramatical deve ser

descendente, isto é, deve partir do componente conceitual, Hengeveld e Mackenzie

(2008) dividem sua teoria em quatro instâncias hierárquicas � o Nível Interpessoal

(ou pragmático), o Nível Representacional (ou semântico), o Nível Morfológico e o

Fonológico � e prevê o estudo da anáfora em todas elas, como se vê a seguir:

1) Anáforas do Nível Interpessoal (pragmático):

A: - Saia daqui!

B: - Não fale comigo assim!

2) Anáforas do Nível Representacional (semântico):

A:- Há muitos semáforos nesta cidade!

B: Eu não notei isso.

3) Anáforas do Nível Morfossintático:

A:- Eu comi ‘lamb chops’ noite passada.

B: - É assim que vocês dizem ‘chuletas de cordeiro’ em inglês?

4) Anáforas do Nível Fonológico:

A: - Eu comi /t∫u’letasdekor’dero/ noite passada?

4 Para definição de Ato Discursivo, consulte o tópico 3.3.1.2, no terceiro capítulo.

15

B: - Isso não deveria ser /∫u’letasdekor’dero/?

De acordo com os autores (op. cit), em (1B), o elemento anafórico assim faz

remissão à estratégia comunicativa escolhida por (1A), razão pela qual pertence ao

nível pragmático; em (2B), isso faz remissão à situação extralinguística descrita por

2A, por isso pertence ao nível semântico. Já as referências (3B) e (4B) são

diferentes por serem de natureza metalinguística, isto é, são mensagens sobre o

código (JACKOBSON 1971 apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 05).

Dessa forma, sob a égide da GDF, pode-se conceber em que extensão a

referência sofre motivações de cunho pragmático, semântico ou gramatical, o que

vem a favorecer um novo estudo tipológico da referenciação. Vale ressaltar que a

Linguística Textual não trabalha com esses níveis linguísticos, que permitem a

análise de anáforas tanto no território do léxico, quanto no da gramática.

Não obstante, pela extensão e natureza da pesquisa suscitada pela hipótese

apresentada, delimitou-se a pesquisa aos encapsulamentos semânticos,

compreendendo-os a partir dos conteúdos que encapsulam, e não a partir dos níveis

em que se manifestam. Dessa forma, analisam-se quais encapsuladores fazem

remissão a um segmento disponível de discurso, isto é, que já foi designado. Por

isso, na pesquisa realizada, há também a investigação de elementos que, embora

se manifestem no Nível Morfossintático, encapsulam uma designação prévia. Tal

recorte epistemológico, o da análise a partir do conteúdo encapsulado, mostrou-se

necessário, uma vez que se partiu dos estudos já propostos por Francis (1993,

2004), cuja análise dos rótulos já partia desse princípio.

No que tange à literatura vigente, vários autores têm-se debruçado sobre o

fenômeno da referenciação5 feito por meio de encapsulamentos. Alguns sob uma

perspectiva sistêmico-funcional (FRANCIS, 1993, 2004), outros sob uma perspectiva

textual (CONTE, 2003), outros sob uma perspectiva discursivo-argumentativa

(MOIRAND, 1975), outros, ainda, sob uma perspectiva sociocognitiva (MONDADA e

DUBOUIS, 2003; APOTHÉLOZ e REICHLER-BÉGUELIN, 2003).

5 Por referenciação, entendemos o complexo processo de construção de objetos-de-discurso (referentes) na interação dos sujeitos envolvidos. Para tal perspectiva, não se deve considerar a referência em si mesma, mas o processo intersubjetivo no qual os sujeitos (sócio-cognitivos) elaboram versões públicas do mundo.

16

Embora tais linhas de estudo da referenciação sejam variadas, esta

dissertação aproxima-se da perspectiva de Francis (1994, 2003), uma vez que a

GDF também tem como base as metafunções linguísticas elaboradas pela

Linguística Sistêmico-Funcional. Contudo, trata-se, na verdade, de uma perspectiva

discursivo-funcional da referência, visto a dimensão discursivo-pragmática em que a

GDF se insere.

Não obstante, tal perspectiva não se afasta de uma concepção sociocognitiva

da linguagem. As duas teorias compreendem a importância da práxis e

compartilham a idéia de que é através dela que se constrói o discurso. Portanto, a

perspectiva sociocognitiva da referência e a discursivo-funcional são linhas

complementares. A diferença tênue entre as duas é que a primeira se preocupa com

o processo em si, isto é, em como se dá a construção dos objetos-de-discurso, e a

segunda, em como tais processos discursivos se manifestam na cadeia linguística.

Quanto à organização do trabalho, esta dissertação é composta de cinco

capítulos, além da introdução e das considerações finais. Iniciou-se através de uma

revisão de literatura, em que se apresentam duas linhas do estudo da referência � a

lógico-semântica e a sociocognitiva interacionista (capítulo I) � e um estudo

pormenorizado do encapsulamento na literatura vigente (capítulo II). A partir daí,

tratamos da fundamentação teórica, na qual apresentamos as propriedades gerais

da GDF e discutimos sua potencialidade para um estudo dos encapsulamentos

(capítulo III). Por fim, tratamos da metodologia de análise (capítulo IV) e da

investigação do corpus levantado (capítulo V).

Acredita-se que a relevância de tal trabalho se encontra na interface de duas

linhas, que, muito embora possuam visão de língua semelhante e sejam

complementares6, percorrem caminhos diferentes na maioria dos estudos. De um

modo geral, o que se pretende, aqui, é fazer algo semelhante a proposta de Neves

(2006): aliar gramática e texto. 6 De acordo com Dik (1978 apud Neves, 1999), para o Funcionalismo, a língua é concebida como

instrumento de interação social entre seres humanos, usado com o objetivo principal de estabelecer relações comunicativas entre os usuários; Segundo Koch (2003), para a Linguística Textual, a língua é como um lugar de interação, no qual os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais e no qual o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos.

17

CAPÍTULO I

A REFERÊNCIA E SEUS POSTULADOS TEÓRICOS

Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre os estudos

da referência. Para tanto, ele se subdivide em quatro partes. Na primeira seção,

introduzem-se as duas correntes que tratam do estudo da referência; na segunda e

terceira seções, explicita-se cada uma das perspectivas apresentadas; na quarta, faz-se

uma breve avaliação do capítulo.

1.1. OS ESTUDOS DA REFERÊNCIA

A relação entre signo e coisa, isto é, entre linguagem e mundo, é uma

investigação antiga nas ciências linguísticas. Desde os estóicos, questões acerca da

natureza e do lugar do acontecimento semântico têm recorrência nos estudos da

linguagem: como e quando eclode a significação? Em que momento da cognição

irrompe o significado? Qual é o mecanismo da semiose, enfim? (cf. BLIKSTEIN,

1985, p. 23).

Tais questionamentos levaram estudiosos a inúmeras pesquisas e a algumas

reformulações teóricas sobre a relação linguagem-mundo e, mais especificamente,

sobre a relação entre signos linguísticos (significante e significado) e o referente (a

coisa extralinguística). Pode-se afirmar que os pesquisadores e os teóricos da área

se dividem basicamente em duas tendências dominantes: uma de tradição lógico-

semântica e outra, mais recente, de perspectiva sociocognitiva interacionista.

18

1.2. A PERSPECTIVA LÓGICO-SEMÂNTICA DA REFERÊNCIA

Até o século XIX, grande parte dos estudos linguísticos apontaram para uma

relação biunívoca entre língua e realidade, com o pressuposto de que a língua servia

como representação do pensamento (cf. KOCH, 2003, p. 13), concepção que nos

levou à ideia de que o sujeito era um ser psicológico, individual, dono de suas

vontades e ações (op. cit.), uma vez que a linguagem era tomada como mera

transcrição da realidade objetiva. Tal ponto de vista, segundo Araújo (2004, p.22)

está presente desde Agostinho (354-430) até Locke – 1632.

Agostinho restringe a linguagem à referência, sem o que o significado é vazio, pois a

linguagem deve transmitir pensamento, e pensamento é sobre algo;[...]. Para a

concepção agostiniana de linguagem, mas também para o senso comum e para o poeta,

conhecer a essência, a realidade “mesma”, é algo mais precioso do que a palavra

(palavras não passam de palavras, sons: “palavras soltas ao vento”, diz-se “words,

nothing but words”...).

Para Locke, as palavras são usadas para falar da realidade das coisas e não do fruto

da imaginação da pessoa. Com uso frequente firma-se, fixa-se a relação entre sons e

idéias a ponto de quando alguém ouve tal som, vir-lhe a idéia como se fosse a própria

coisa que impressiona os sentidos.

A partir do séc. XIX, no entanto, tais pontos de vista começam a ser refutados

pelo estruturalismo de Saussure (1971, p. 79), que afirma que a língua não deve ser

reduzida a uma nomenclatura, numa simples relação entre nome e coisa. Para tal

teórico, o signo linguístico é psíquico, tem relação com um conceito e uma imagem

acústica, ambos de natureza mental. Logo, abandona-se a referência, na defesa de

que uma ciência linguística deveria basear-se em suas relações internas, e não em

componentes extralinguísticos.

Tal insuficiência da relação entre signos e coisas veio sendo insistentemente

assinalada na linguística, até que os estudos semânticos de Odgen e Richards

(1956 apud BLIKSTEIN, 1985, p. 23) lançaram mão da figura do referente, isto é, da

coisa extralinguística, que distinguiam nitidamente de referência, ou significado

19

linguístico. Ficavam assim superadas, aparentemente, as relações dicotômicas entre

significante e significado, na medida em que, para os dois estudiosos (op. cit),

símbolo (signo ou significante), referência ou pensamento (significado) e referente

(coisa ou objeto extralinguístico) passavam a figurar numa relação triádica,

esquematizada no triângulo abaixo:

Quadro 1 – O triângulo de Odgen e Richards (BLIKSTEIN, 1985, p. 24)

Não obstante, muito embora Odgen e Richards tenham lançado mão do que

concebem como referente (a coisa extralinguística) - dando um passo a mais que

Saussure, que só havia estabelecido uma relação dicotômica no estudo do signo

(significante x significado) -, não o incluíram nos estudos linguísticos, afirmando que

não havia nenhuma relação direta e pertinente entre símbolo e referente, somente

entre símbolo e referência, em consonância com os estudos de Saussure.

Como consequência de tal posicionamento, os estudos da significação só se

ativeram ao lado esquerdo do triângulo, vendo o eixo símbolo e referência como um

código social homogêneo. Essa tendência é observada por Benveniste (1991, p.52),

devido ao fenômeno da transparência linguística, o falante considera haver entre o signo

e a realidade uma adequação total: o signo recobre e dirige a realidade, ou melhor, ele é

essa realidade. Objeto e nome se confundem. [...] Já o linguista trabalha com a relação

entre significante e significado, e o “domínio do arbitrário” é relegado para fora da

compreensão do signo linguístico.

Símbolo

(significante)

Referência ou Pensamento

(significado)

Referente

(coisa ou objeto extralinguístico)

20

Em outras palavras, sobre o trecho citado, Benveniste comenta que a

significação não decorre da referência, mas da relação entre conceito e imagem

acústica, como defendia Saussure.

Até então relegada ao âmbito da filosofia da linguagem, a referência era

analisada em parâmetros de verdade. Mais especificamente, filósofos como

Wittgenstein(1994), Frege (1977) e Russel(1978)7, ao verem que o signo não se

limitava ao estabelecimento de uma relação direta com a coisa nomeada, relegaram-

no à forma lógica da proposição em afirmações assertóricas. Para tais estudiosos,

só haveria referência se dada proposição pudesse ser verificada no mundo (hipótese

veritativa), como podemos notar no famoso exemplo de Russel (1978, p. 41):

(01) O atual rei da França é calvo

Segundo Russel, como a França não tem rei, há apenas a representação, e

não uma referência, já que ela não é localizável no mundo. Tal crença segundo a

qual haveria um referente a ser identificado na realidade “mesma” era pressuposto

de todos os estudos lógico-semânticos. Para Coseriu (1969, p.237), trata-se de uma

postura logicista da linguagem.

a mania logicista é um dos lugares-comuns que – com arrogância não justificada pelas

dimensões de suas idéias, e entre confusões de toda índole – proclamam C. K. Odgen e

I. A. Richards... Isto para não falar das idéias, ainda mais extravagantes, de A.

Korzybsky, Science and Meaning, Lancaster Pa., 1933, e de sua escola antiaristotélica

de neo-semanticistas, para quem a maioria dos males do mundo se deveria ao uso

impróprio das palavras.

Em um mesmo sentido, para Araújo (2004), o problema da relação entre

signo e realidade depende da concepção de significado e referência. Se significado

for o conceito aderido a um significante, então a relação acima fica,

propositadamente, fora da linguística. Designa-se, remete-se com o signo a uma

situação intencionada ou experimentada e nesta operação o que se transmite,

evidentemente, é um signo e não um objeto (Ibidem, p. 45). Além disso, para a

7 As datas apontadas acima representam a referência da tradução da obra. As obras originais datam

de 1921, 1892 e 1903, respectivamente.

21

autora, o patamar estrutural, aquele dos signos e suas combinações, depende do

discurso e não da frase gramatical ou de uma proposição. A pragmática vem a ser o

horizonte teórico, quer dizer, é preciso sair dos limites exclusivamente estruturais da

língua (Ibidem, p. 46).

Por conseguinte, percebe-se que, em determinado momento da ciência, a

linguística reivindicou a incorporação do referente8 em suas pesquisas (isto é, não

relegando-o somente à filosofia da linguagem), o que, por consequência, suscitou a

segunda tendência – de perspectiva sociocognitiva interacionista –, como

contraponto à primeira – de tradição lógico semântica.

A esse respeito, Blikstein (1985, p. 45) afirma que

(...) a Linguística acaba por confessar a necessidade de incluir a percepção/cognição no

aparelho teórico da semântica, pois é evidente que a significação linguística é tributária

do referente e que, por sua vez, é constituído pela dimensão perceptivo-cognitiva.

1.3. A PERSPECTIVA SOCIOCOGNITIVA INTERACIONISTA DA REFERÊNCIA

Uma das grandes contribuições da perspectiva sociocognitiva interacionista é

a compreensão de que a percepção é o lugar não-linguístico em que se situa a

apreensão da significação, ou seja, é a percepção/cognição que transforma o “real”

em referente (GREIMAS, 1973 apud BLIKSTEIN, 1985, p. 47).

8 A incorporação do referente a que nos referimos, no entanto, não é algo meramente extralinguístico,

mas,sim, construído pelo intermédio da práxis, como veremos a seguir.

22

Quadro 2 – Percepção e referente (BLIKSTEIN, 1985, p. 49)

Tal mudança paradigmática, reificada não somente por Greimas como

também por vários outros (cf. Coseriu, Benveniste, Chomsky etc.), permitiu-nos

perceber que a língua não recorta a realidade propriamente, mas, sim, apresenta

uma realidade “fabricada” no discurso, pois é a percepção, enquanto sistema de

crenças, ideologias e hábitos, que constrói, fabrica o “real”. Inclusive, segundo

Saussure (1971), não é o objeto que precede o ponto de vista (percepção para

Greimas), mas exatamente o contrário, perspectiva que, sem dúvida, reitera o novo

posicionamento: o da fabricação do real.

Baseado na conhecida obra de cunho verídico de W. Herzog, O Enigma de

Kaspar Hauser, Blikstein (1985) defende que a percepção depende de uma

construção e de uma prática social. No filme em questão, por exemplo, o

protagonista, Kaspar Hauser, fora criado em um sótão sem nenhum contato humano

até os dezoito anos. Após ser inserido no convívio em sociedade, embora já tivesse

adquirido linguagem, Kaspar Hauser decodifica a significação do mundo sempre de

forma “aberrante”, o que exemplifica a função da percepção (enquanto sistema de

crenças, ideologias e hábitos) na interpretação do mundo. Inclusive, de acordo com

o autor (Ibid., p. 55),

a permanência do déficit cognitivo de Kaspar Hauser seria um índice de que os

elementos que modelam a percepção do mundo e as configurações conceituais podem

ser capturados não só na linguagem, mas, sobretudo, na dimensão da práxis. É a tese

Realidade

Referência

Referente

PERCEPÇÃO

Símbolo

23

de que o sistema perceptual, as estruturas mentais e a própria linguagem são tributários

da práxis.

Portanto, a tendência sociocognitiva interacionista, em sentido lato, não só

incluiu o referente na análise linguística, como também a importância da práxis

social para entender o objeto extralinguístico, ao colocar em ação processos de

estereotipação, ou seja, ao possibilitar a “estabilização” do mundo.

Apoiado na mesma idéia, Blikstein (Ibid., p.82), afirma que

a nossa cognição estaria sujeita, portanto, a um processo ininterrupto de estereotipação,

a ponto de considerarmos “real” e “natural” todo um universo de referentes e realidades

fabricadas. Daí a função “fascista” da linguagem, segundo a expressão de R. Barthes. A

língua “amarra” a percepção/cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um

modo ainda não-programado pelos corredores de estereotipação; como Sísifo,

estaríamos condenados a conhecer ou a reconhecer, sempre a mesma realidade:

nossas retinas “fatigadas” estariam condenadas a ver sempre a mesma “pedra-no-meio-

do-caminho” de Carlos Drummond de Andrade.

Num mesmo sentido, Kripke (1991 apud ARAÚJO, 2004, p. 85) afirma que a

referência depende não só do que pensamos, mas de outras pessoas da

comunidade, da história de como o nome adquiriu um referente (...) É seguindo tal

história que se chega à referência.

Essa visão de construção do real torna-se fonte de estudo para um grupo de

autores franco-suíços, entre os quais se podem destacar Apothéloz, Kleiber,

Charolles, Berrendonner, Reichler-Béguelin, Chanêt, Mondada e D. Dubois. Todos

eles concordam que a referenciação (isto é, o processo implicado no ato de referir) é

uma atividade discursiva. Logo, acreditam que ela é pautada na práxis social. Esse

termo, referenciação, nasceu de uma reflexão de Mondada e Dubois (2003), que,

refutando uma visão objetivista do mundo, passam a questionar os processos de

discretização da realidade.

Tal reformulação paradigmática, da relação entre objeto e referência para o

processo de referir, é o que nos faz compreender melhor o que subjaz à práxis.

Desse modo, investiga-se não como a informação é transmitida ou como os estados

do mundo são representados de modo adequado, mas busca-se saber como as

24

atividades humanas, cognitivas e linguísticas estruturam e dão um sentido ao mundo

(MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 20).

Essa mudança de foco, como consequência, implica uma alteração na

concepção de sujeito. Saímos de um sujeito psicológico, ou seja, cognitivo, racional,

individual para um sujeito psicossocial, de caráter ativo na produção do social e da

interação, embora se (re)produza o social na medida em que se encontram

engajados na produção discursiva (KOCH, 2003, p.14).

No intuito de sedimentar os conceitos deste tópico, segue parte do resumo do

artigo de Mondada e Dubois que ratifica a concepção acima (2003, p.17):

A idéia segundo a qual a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou

menos bem às coisas tem atravessado a história do pensamento ocidental. Opomos

uma outra concepção segundo a qual os sujeitos constroem, através de práticas

discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo.

De acordo com esta segunda visão, as categorias e os objetos de discurso9 pelos

quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas

se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos.[...]

1.3.1. A instabilidade e os processos de estabilização

Uma vez que o objeto de discurso tem sempre como aporte a percepção dos

participantes, a transformação do referente em objeto de discurso resultou na

aceitação de certa instabilidade do signo, já que a interpretação e a significação do

mundo estão sempre em um continuum ad infinitum.

Essa constatação nos leva a observar a constante mudança das categorias

utilizadas para descrever o mundo, tanto sincrônica quanto diacronicamente, o que,

por sua vez, leva os autores a defender que haja sempre uma intencionalidade

subjacente ao processo de inclusão de um referente em determinada categoria.

9 Para Apothéloz e Reichler-Béguelin (apud Koch, 2005), os referentes são denominados objetos de

discurso, pois eles são construídos na atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, não como produtos da realidade, mas fundamentalmente culturais.

25

Baseado no mesmo ponto de vista, o da instabilidade do referente, Sacks

(apud MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 23) afirma que

a questão não é mais a de avaliar a adequação de um rótulo “correto”, mas de escrever

em detalhes os procedimentos (linguísticos e sócio-cognitivos) pelos quais os atores

sociais se referem uns aos outros – por exemplo, categorizando qualquer um como

sendo um “homem velho”, em vez de um “banqueiro”, ou de um “judeu”, etc., tendo em

conta o fato de algumas destas categorias poderem ter eventualmente consequências

importantes para a integridade da pessoa.

No entanto, não se pode defender que essa instabilidade seja generalizada,

pois, no intuito de assegurar a coerência comunicativa, os elementos tendem a se

incluir em certos grupos e não em outros. Não se está dizendo que haja fronteiras

para a atividade de referenciar, mas que, ao estarem inseridos nos discursos sócio-

históricos e em procedimentos culturalmente ancorados, os objetos de discurso se

ajustam, em determinado grau, à prototipicidade e à estereotipação. Isso nos faz

crer que as categorias não sejam fixas, mas “evolutivas”, isto é, elas são recursos

que asseguram uma plasticidade linguística e cognitiva e uma garantia de

adequação contextual e adaptativa (MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 25).

Logo, a prototipicidade e a estereotipação são processos com certo grau de

dinamicidade, que visam incluir os referentes em determinadas categorias e não em

outras, no intuito de assegurar a coerência comunicativa. Inclusive, com base nessa

asserção, gostar-se-ia de parafrasear Bakhtin (1992, p. 283) - quando defende a

necessidade dos gêneros do discurso para a atividade comunicativa -, ao trazer-se a

seguinte reflexão para as categorias:Se não existissem as categorias e se não as

dominássemos; se tivéssemos de criá-las pela primeira vez no processo de fala; se

tivéssemos de construir todas elas ad hoc nos nossos enunciados, a comunicação

verbal seria quase impossível 10.

Em um mesmo sentido, Mondada e Dubois (2003, p. 42) postulam que

10

A citação original de Bakhtin (1992, p. 283) é a seguinte: se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos; se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala; se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a construção verbal seria quase impossível.

26

o protótipo torna possível seu compartilhamento entre muitos indivíduos através da

comunicação linguística, e ele se torna, de fato, um objeto socialmente distribuído,

estabilizado no seio de um grupo de sujeitos. Tal protótipo compartilhado evolui para

uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo.

1.3.2. Categorização e recategorização

A categorização é a colocação do referente em determinada categoria

cognitivamente estabelecida (NEVES, 2006, p. 100), enquanto a recategorização é a

reconfiguração de um objeto de discurso citado previamente, isto é, lato senso, a

ação de colocar o objeto de discurso em uma nova categoria.

Dessa forma, já que se tratou não só de um processo, mas também do outro,

é preciso asseverar que se analisou não só a ativação de um referente (sua

categorização), como também sua manutenção e transformação no

discurso(retomada e recategorização). Em suma, o que se investigou foi a

progressão de um objeto de discurso, atentando-se para o processo de atribuir

significado e não para o significado em si. Foi por esse motivo, inclusive, que

Mondada e Dubois (2003) propuseram a mudança de terminologia: de referência

para referenciação; nesta última, imbricada a idéia de processo, uma vez que o

estudo não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação

intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente

elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações

em curso dos enunciadores (MONDADA, 2001 apud KOCH, 2005, p.34).

Portanto, concorda-se com Koch (2005, p.35) que a intencionalidade está

subjacente à referenciação, quando a autora diz que

as formas de referenciação são escolhas do sujeito em interação com outros sujeitos,

em função de um querer-dizer. Os objetos de discurso não se confundem com a

realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação. Ou

seja: a realidade é construída, mantida e alterada pela forma como, sociocognitivamente,

interagimos com ela: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação

com o entorno físico, social e cultural.

27

1.3.3. A progressão referencial

Segundo Koch (2003), a progressão referencial se dá pela manutenção do

referente na memória discursiva. No entanto, nem sempre a inserção de um

referente garante a sua manutenção. Em síntese, a referenciação pode ser

relacionada à concepção de memória discursiva das seguintes formas (2003, p. 83):

1. ativação – pelo qual um referente textual até então não mencionado é introduzido,

passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) na rede conceptual do

modelo de mundo textual: a expressão linguística que o “representa” permanece em foco

na memória de curto termo, de tal forma que o referente fica saliente no modelo.

2. reativação – um nódulo já introduzido é novamente ativado na memória de curto

termo, por meio de uma forma referencial, de modo que o referente textual permanece

saliente (o nódulo continua em foco);

3. de-ativação – ativação de um novo nódulo, deslocando-se a atenção para um

outro referente textual e desativando-se, assim, o referente que estava em foco

anteriormente. Embora fora de foco, este continua a ter um endereço cognitivo (locação)

no modelo textual, podendo a qualquer momento ser novamente ativado. Seu estatuto

no modelo textual é de inferível.

Embora o modelo de ativação, reativação e de-ativação dos referentes na

perspectiva lógico-semântica se dê da mesma forma que na sociocognitiva

interacionista, vale ressaltar que a primeira valorizava a anáfora na

correferencialidade, isto é, quando há retomada de referentes previamente citados

no texto. Portanto, a primeira não se atinha à atividade intersubjetiva dos falantes,

ao processamento cognitivo, mas à localização da cadeia referencial de um tópico

discursivo. Veja o exemplo:

(02) a fórmula é quase idêntica: mulheres independentes e glamourosas (entenda-se

endinheiradas e fúteis) compartilham seus problemas mais íntimos (amorosos e

sexuais), em meio aos prédios, táxis e bares de nova york. mas, agora, elas estão mais

perto dos 40 do que dos 30 anos e têm carreiras mais consolidadas.

Crítica 03 - “Versão "envelhecida" de "Sex" é mais do mesmo”

Folha de São Paulo – 11/01/09

28

Na retomada de mulheres pela anáfora elas, tem-se identidade referencial,

pois se sabe que o referente é o mesmo, há, pois, correferência.

Por um outro lado, os estudos da referenciação (perspectiva sociocognitiva

interacionista) permitiram-nos não somente observar a atividade intersubjetiva

subjacente às anáforas correferenciais como também investigar anáforas de outro

estatuto, que fazem remissão a referentes sem retomá-los, dentre as quais se

podem destacar as anáforas indiretas e os encapsulamentos.

Entende-se por anáfora indireta (AI), a remissão sem retomada de objetos de

discurso, conforme defende Marchuschi (2005, p. 53):

a anáfora indireta (AI) é geralmente constituída por expressões nominais definidas,

indefinidas e pronomes interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um

antecedente (ou subsequente) explícito no texto. Trata-se de uma estratégia endofórica

de “ativação” de referentes novos e não de uma “reativação” de referentes já

conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implícita.

Veja o exemplo:

(03) [...]O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca

disse, por exemplo, que a “Monalisa” de Leonardo seria melhor se representasse uma

santa. Mas quando UM FILME fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até

ganha o Oscar, como “A Luz É Para Todos” (TCM, 18h;livre), em 1948. [...]

Crítica 08 � Programação destaca roteiro de Kazan

Folha de São Paulo, 28/09/08

No exemplo, não há retomada de referentes, mas, sim, a remissão à cinema

através do referente um filme. Nesse caso, há um universo referencial emergente

(MARCHUSCHI, 2005, p. 58), sugerido pelo enquadre mental de um referente no

processamento textual.

É importante ressaltar, no entanto, que essa conceituação de anáfora indireta

(AI) é bastante recente. Segundo Marchuschi (2005, p. 54),

29

originalmente, o termo anáfora, na retórica clássica, indicava a repetição de uma

expressão ou de um sintagma no início de uma frase. Hoje, na acepção técnica, anáfora

anda longe da noção original e o termo é usado para designar expressões que, no texto,

se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais

(retomando-os ou não), contribuindo assim para a continuidade tópica e referencial.

Já por encapsulamento, entende-se a remissão a predicações11 previamente

citadas no texto, transformando-as em objetos de discurso, como pode-se ver no

exemplo a seguir:

(04) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser

reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões

verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.

SUBVERSÃO NO SENTIDO LITERAL, a versão sub, que vem de baixo e

atinge a bunda dos donos das verdades institucionalizadas.

Crítica 45 � DVDs retomam Allen Pastelão

Folha de São Paulo, 11/01/09

No segmento acima, percebe-se que a expressão subversão no sentido

literal faz remissão a toda predicação anterior, categorizando-a como subversão, e

não a retoma, uma vez que a predicação não possui o estatuto de referente.

A mudança de perspectiva no estudo da referência, da lógico-semântica para

a sociocognitiva interacionista, é fruto da virada pragmática na linguística. Através

dela, afastou-se de Saussure no que tange ao problema da referência, que

considerava apenas os aspectos intrínsecos da língua. Afinal, faz-se mais do que

combinar signos, codificá-los e decodificá-los. Os sujeitos não foram programados

para falar pelo fato de terem aprendido regras fixas e sistemáticas, mas, sim,

designados a semiotizar a realidade, interpretarem-na, torná-la acessível e

11

Por predicação, compreendemos o processo básico de constituição do enunciado, a que se refere Neves (2006).

30

significativa através do uso linguístico – que, por sua vez, é motivado psicológica,

discursiva e pragmaticamente.

Logo, apoiar a idéia de uma perspectiva de cunho pragmático é entender que

o problema da referência transpõe a questão da nomeação e da identificação de um

referente no mundo. De fato, o que importa é saber como as palavras podem

significar ou representar os mundos discursivos de que se fala, e não como elas

podem apontar a realidade “mesma”.

31

CAPÍTULO II

O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO

Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre o fenômeno

em análise e subdivide-se em sete partes. Na primeira seção, retoma-se e aprofunda-se

o conceito de encapsulamento. Da segunda à sexta seção, aborda-se a perspectiva de

Francis (1994, 2003) para o estudo dos encapsulamentos, explicitando-se as categorias

elaboradas pela autora. Na sétima seção, apresenta-se uma avaliação das questões

gerais do texto.

2.1. INTRODUÇÃO

Neste capítulo, dar-se-á ênfase ao estudo do encapsulamento anafórico,

considerado como recurso de referenciação, no âmbito dos estudos

sociocognitivistas interacionistas. Também conhecido como sumarização, Conte

(2003, p. 177) o compreende como um recurso coesivo pelo qual um sintagma

nominal funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente do

texto. Construído com um nome geral como núcleo lexical, com uma clara

preferência pela determinação através de demonstrativos, o sintagma nominal

anafórico representa a transformação de parte de uma predicação, uma predicação

inteira ou segmentos de texto em referentes, uma vez que não há retomada de

objetos de discurso precedentes, como se pode verificar no exemplo abaixo:

(05) [...] Eu irei razpar(sic) a cabeça na maquina zero se for campeão!!! fiz ESSA

PROMESSA no jogo contra o Palmeiras e quinta rasparei a cabeça se Deus quiser!!!

Relato de Beto Gitirana

Em http://www.meusport.com/forum/showthread.php?t=64994 – acessado em 04/04/08

32

No sintagma essa promessa, percebe-se a existência de uma expressão

anafórica, até mesmo pela função dêitica do demonstrativo essa. No entanto, em

toda a sequência do primeiro parágrafo, não se encontra um referente lexicalizado

que propicie a retomada por essa promessa, o que nos leva à conclusão de que a

âncora para tal anáfora não se encontra em um lexema, mas em uma predicação ou

segmento de texto (como é o caso em que o exemplo se situa, que faz remissão ao

primeiro período). Logo, essa promessa representa um encapsulamento de toda a

proposição raspar a cabeça na máquina zero se for campeão.

Tal fato, o da não-localização de um rótulo lexical para um referente na cadeia

discursiva, contribui para a argumentação favorável à perspectiva da referenciação,

já que mostra ao ouvinte que ele deverá procurar a base dessa categorização não

na realidade extralinguística, mas no fazer discursivo do texto. Dessa forma,

percebe-se o encapsulamento como um importante recurso de progressão

referencial ao transformar em referentes entidades de segunda e terceira ordens

como estados de coisa, eventos, situações, processos, fatos, proposições e atos de

enunciação (LYONS, 1977). Inclusive, o encapsulamento essa promessa não

apenas encapsula o período que o antecede, como também a atitude do locutor, já

que o ato de fala é promissivo12.

Como a progressão textual não ocorre linearmente, o encapsulamento pode

representar tanto uma sumarização anafórica quanto catafórica, ou seja, pode ter

função retrospectiva, ao fazer remissão a sequências prévias do texto, ou

prospectiva, ao preceder o “dizer”, como os exemplos a seguir, em que essa idéia

faz remissão ao primeiro período e situação antecede a predicação sublinhada:

(06) [...] Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que

exponha suas verdades mais íntimas e profundas. ESSA IDÉIA, esboçada em obras

anteriores de Eduardo Coutinho, como “Santo Forte” e “Edifício Master”, ganha uma

evidência incontornável em seu documentário mais recente, “Jogo de Cena”, que chega

agora ao DVD. [...]

Crítica 41 � “Coutinho deixa o espectador sem chão”

Folha de São Paulo, 07/12/08

12

Para explicação de ato de fala promissivo, ver tópico 3.3.1.3, no terceiro capítulo.

33

(07) [...] A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações,

como um pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um

casal e descobrem que os anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.[...]

Crítica 02 – O discreto charme da burguesia

Folha de São Paulo, 31/08/08

Na análise dos encapsulamentos, autoras como Koch (2005), Neves (2006) e

Conte (2003) apontam para uma clara tendência pela representação do fenômeno

através de sintagma nominal de núcleo substantivo, subtipo nomeado rotulação por

Francis (1994, 2003). Todas elas concordam que a rotulação seja um

encapsulamento de grande valor para a progressão argumentativa do texto, uma vez

que permite a categorização através de nomes axiológicos, que revelam as

intenções persuasivas do falante, tal como se pode observar no exemplo abaixo, em

que o substantivo subversão representa uma avaliação do segmento de texto

destacado:

(08) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser

reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões

verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.

SUBVERSÃO NO SENTIDO LITERAL, a versão sub, que vem de baixo e

atinge a bunda dos donos das verdades institucionalizadas.

Crítica 45 � DVDs retomam Allen Pastelão

Folha de São Paulo, 11/01/09

À guisa de uma classificação do fenômeno, Francis (1994, 2003) propõe uma

divisão para as rotulações de acordo com a posição e a função que elas assumem

nos textos, além de levar em consideração a carga avaliativa que elas podem

conter.

Com base nesse postulado, a autora (1994, 2003) apresenta as categorias

retrospectivos, prospectivos e retrospectivos/prospectivos (em relação à posição);

indicador de conteúdo e indicador de estrutura (em relação à função); axiológicos e

34

não-axiológicos (em relação à carga avaliativa). Além disso, nomeia a função

indicador de estrutura como rótulos metalinguísticos e a desdobra em subconjuntos,

a saber: nomes ilocucionários, nomes de atividades linguageiras, nomes de

processo mental e nomes de texto.

2.2. A POSIÇÃO DOS RÓTULOS NO TEXTO

O rótulo prospectivo tem a função de antecipar ao leitor/ouvinte o que se

seguirá no texto, isto é, conforme Francis (1994, 2003) postula, a função de avançar

perspectivas sobre a continuidade do texto. A inteligibilidade desse tipo de rótulo,

portanto, só ocorrerá se houver uma compatibilidade semântica com tal sintagma.

Já o rótulo retrospectivo será assim considerado desde que não se refira a um

elemento textual específico anteriormente expresso; ou seja, não se trata de uma

repetição ou de uma recategorização (por meio de sinônimo, por exemplo) de um

elemento precedente. Tal nome só será assim considerado se a sua presença se

justificar pela sumarização do dizer, devendo ser reconstruído (ou mesmo

construído) pelo leitor/ouvinte, uma vez que o antecedente não está claramente

delimitado no texto. Segundo Francis (2003, p. 201):

A extensão precisa do discurso a ser seccionada pode não importar: é a mudança do

discurso assinalada pelo rótulo e seu ambiente imediato que é de crucial importância

para o desenvolvimento do discurso. Pode-se mesmo arguir que uma indistinção

referencial deste tipo pode ser usada estrategicamente pelo escritor para efeitos criativos

ou persuasivos, talvez dando escopo para diferentes interpretações, ou ofuscando as

linhas de argumentos artificiosos ou espúrios.

2.3. ROTULAÇÃO E NOMINALIZAÇÃO

Embora a rotulação seja um tipo de encapsulamento, ela ainda pode

apresentar-se de uma forma diferente: ancorada em um sintagma verbal

previamente citado no texto, e não em uma predicação ou porção maior de texto.

Nesse caso, ter-se-á uma nominalização, uma vez que o encapsulador será um

lexema-núcleo resultante de uma transformação verbo-nominal, ou seja, derivado

morfologicamente do verbo da proposição do conteúdo informacional, como vê-se

no exemplo a seguir:

35

(09) [...] No passado, a liberdade tanto podia ser essa, liberal, que conhecemos hoje

(que, parece, a que está em crise financeira), como a que foi sonhada pela humanidade

a partir do desenvolvimento da indústria, SONHO segundo o qual as máquinas nos

libertariam e trabalhariam por nós. [...]

Crítica 22 � Em “Bourne”, Estado suprime liberdade

Folha de São Paulo, 05/10/08

Nesse exemplo, sonho foi transformado em objeto de discurso com base no

referente construído pelo sintagma verbal foi sonhada.

É importante ressaltar que o termo ‘nominalização’ se refere tanto ao

processo quanto à expressão nominalizadora; entretanto, Apothéloz (1995)

estabelece uma distinção entre o fenômeno linguístico e o nome que designa o

fenômeno. Para a autora, o termo nominalização diz respeito à operação discursiva

de natureza anafórica ou catafórica, enquanto as expressões “informação-suporte” e

“substantivo-predicativo” designam o objeto da nominalização. Nessa última, está

implícita a noção de tema-rema que é atribuída ao tópico discursivo.

Zamponi (2002, p. 197) ressalta que o “substantivo-predicativo” é uma noção

semântica e não morfológica e que o predicativo é relevante na medida em que

indica dois aspectos que envolvem as nominalizações: a referencialidade e a

predicação. Para a autora (op. cit.):

(...) “predicativo” pode ser relacionado à “proposição” a que foi dado um estatuto

referencial (...) [bem como] nos induz a considerar a dimensão atributiva da expressão

referencial: o elemento anafórico é simultaneamente um elemento de referência e de

predicação, acumulando a função temática e remática ou, como afirma Schwarz (2000),

operando uma tematização-remática.

A nominalização possui um papel organizador do discurso, uma vez que

estabelece a coesão entre os enunciados de um mesmo parágrafo e entre os

parágrafos de um mesmo texto. Como afirma Freire de Carvalho (2005, p.65),

pode-se afirmar que, no processo de construção de sentido(s), há uma “memorização”

do sentido do cotexto linguístico em que está o verbo, por exemplo, a qual permitirá ao

36

receptor-leitor, por meio de uma “recuperação” de sentido pelo derivado substancial do

verbo dado, estabelecer significações por uma aproximação semântico-formal das duas

proposições.

2.4. RÓTULOS DE CONTEÚDO

Os rótulos de conteúdo se relacionam à metafunção discursiva interpessoal

de Halliday (1985)13.

Essa função volta-se para os interlocutores e trata-se de um importante

recurso da linguagem, que é o de estabelecer e o de manter relações sociais; é por

meio dela que os sujeitos interagem marcando a posição discursiva assumida na

enunciação, como ocorre no exemplo abaixo, em que o encapsulamento essa

revolta, ao encapsular o segmento anterior “vive como se fosse de favor” e o

segmento à frente “essa impossibilidade de existir num mundo que tem a sua cor

como um defeito de fábrica”, marca a posição enunciativa do falante enquanto um

ser consciente da causa do negro.

(10) Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h;

classificação indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito

boa. É ao ser informada da morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial

de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não".

Sirk disserta sobre as qualidades de Lana com poucas palavras: "Ela era nula". Não

é propriamente um elogio à atriz de seu filme de maior sucesso. Mas ele completa

dizendo que não era necessário ser uma boa atriz para fazer esse papel.

Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner -no

filme, mãe e filha-, não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um filme

sobre negros, sobre ser negro num momento anterior à conquista da igualdade de

direitos.

13

Por metafunção interpessoal, entende-se o nível que abrange todos os usos da língua para expressar relações sociais e pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na situação discursiva e no ato de fala.

37

Por isso, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah Jane, já

expressa ESSA REVOLTA, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua cor

como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em

sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]

Crítica 10 � “Racismo é tema de aparente melodrama”

Folha de São Paulo, 14/09/08

2.5. RÓTULOS METALINGUÍSTICOS

Os rótulos metalinguísticos se relacionam às metafunções textual e ideacional

de Halliday (1985): textual, porque diz respeito à criação de textos adequados às

necessidades comunicacionais, isto é, à criação de textos pertinentes aos contextos

de uso e elaborados levando em conta o aspecto organizacional ou, em outras

palavras, ao estabelecimento das relações coesivas na organização textual;

Ideacional, porque diz respeito à interpretação e expressão de nossa experiência

acerca dos processos do mundo exterior e dos processos mentais e abstratos de

todos os tipos.

Ao se dobrar sobre o enunciado, o foco do discurso pode estar no conteúdo,

anterior ou posterior, presente no cotexto (encapsulador de conteúdo); ou pode,

também, reportar-se às ações que se realizam através da linguagem, os atos de

linguagem. Segundo Francis (2003, p. 202), os rótulos metalinguísticos distribuem-

se nos seguintes grupos: “ilocucionários”; de “atividades linguageiras”; de “processo

mental”; de “textos”.

A seguir, descrevem-se tais tipos de rótulos ou nomes em conformidade com

Francis (1994, 2003), por meio de exemplos extraídos de corpora variados:

2.5.1. Nomes ilocucionários

São os que nomeiam uma ação e dizem respeito à força com que aquilo que

se diz é dito. São exemplos de nomes ilocucionários: ordem, promessa, conselho,

acusação, aviso, reivindicação, asserção, resposta, revelação, declaração,

sugestão, advertência, crítica, proposta, afirmação, etc. Tais rótulos são, portanto,

nominalizações de ações verbais.

38

(11) Por isto te ordeno: institui aí na Terra o meu Reino, anuncia ao mundo que ESTA

ORDEM veio de mim. Eu sou o Deus de Abraão [...]

http://www.inricristo.org.br

2.5.2. Nomes de atividades linguageiras

Para Francis (1994, 2003), os rótulos que nomeiam as atividades linguageiras

referem-se aos resultados de atividades mentais que se concretizam na linguagem,

ou seja, dependem dela para existir. São atividades como: descrição, distinção,

referência, julgamento, diagnóstico, narração, explicação, relato, esclarecimento,

comparação, comentário, controvérsia, debate, exemplo, ilustração, definição, etc.

Apesar de semelhantes aos nomes ilocucionários, não possuem uma âncora textual,

um processo, sintagma verbal ou adjetival que esteja sendo categorizado ad hoc no

discurso.

(12) O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência

mesmo de "O Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O

filme nos mostra a trajetória de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que

busca alguém para se ocupar de seu corpo após a morte.

Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas

a quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra

resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter

sagrado etc. Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a

convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem

deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria

homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo

o suicídio).

A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no

filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que

preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não

porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente

o que dele recebemos. Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que

retiramos da imagem é o que lhe damos.

Crítica 27 � ”Essência escapa em ‘O Gosto da Cereja’”

Folha de São Paulo, 16/11/08

39

2.5.3. Nomes de processos mentais

Os rótulos relativos a processos mentais referem-se aos atos que se realizam

com a mente: estados e processos cognitivos e seus resultados. Por exemplo:

análise, suposição, atitude, opinião, conceito, convicção, avaliação, constatação,

atribuição, idéia, noção, etc. Muitas formas desta natureza podem expressar

aspectos do estado cognitivo alcançado a partir do seu processamento, como:

crença e opinião, por exemplo, ao passo que outras podem tanto se referir ao

processo como ao resultado, como ocorre com o núcleo constatação.

(13) A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.

Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente

esmagados pelo sistema. É UMA CONSTATAÇÃO, então, que ultrapassa o físico para

chegar a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que

é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".

Crítica 07 �Verhoeven retrata faroeste amoral

Folha de São Paulo, 03/08/08

2.5.4. Nomes de texto

São formas que operam uma designação metalinguística propriamente dita,

isto é, rotulam extensões do discurso precedente, definindo seus limites precisos.

Referem-se à estrutura textual-formal do discurso. Não há interpretação envolvida,

apenas encapsulam extensões precedentes ou subsequentes. É o caso de frase,

pergunta, sentença, palavra, termo, parágrafo, etc.

(14) Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h;

classificação indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito

boa. É ao ser informada da morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial

de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não". Sirk disserta sobre as qualidades de Lana COM

POUCAS PALAVRAS: "Ela era nula". Não é propriamente um elogio à atriz de seu filme

de maior sucesso. Mas ele completa dizendo que não era necessário ser uma boa atriz

para fazer esse papel.[...]

Crítica 10 � “Racismo é tema de aparente melodrama”

Folha de São Paulo, 14/09/08

40

Embora haja a subdivisão dos rótulos de conteúdo e dos metalinguísticos,

Farnes (1973 apud FRANCIS 2003, p. 202) considera a divisão em “indicadores de

estrutura” e “indicadores de conteúdo” contraproducente, pois vê nesses processos

a confluência, a um só tempo, do cognitivo, do linguístico e do social. Assim, sugere

a designação de rótulos metadiscursivos em vez de metalinguísticos, englobando-se

todas as metafunções discursivas propostas por Halliday (1985).

Dessa forma, o autor defende que os rótulos correspondem à perspectiva

enunciativa dos sujeitos, uma vez que esses tentam controlar, de alguma forma,

enunciativa e pragmaticamente, seu discurso.

2.6. CONFIGURAÇÃO DOS RÓTULOS

De configuração axiológica e não-axiológica, para Francis (1993, 2004, os

rótulos podem determinar o posicionamento enunciativo de um projeto de “dizer”.

Entendem-se, por valor axiológico, os nomes que apontarem uma avaliação do

locutor, enquanto, por não-axiológico, os que representarem, sem avaliação, um

segmento prévio no texto. Tais configurações, axiológico e não-axiológico, são

encontradas nos exemplos a seguir, respectivamente:

(15) Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de

Samira Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um

filme entre garotas (e a infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e

envolve um elemento mínimo. No caso, trata-se de duas gêmeas que vivem presas em

suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).

Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de

seu pai, Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes

de Abbas Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja.

Kiarostami criou uma escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a

escrever roteiros, sempre com temas mínimos, quase inexistentes. No entanto,

raramente algum deles desenvolveu ESSA QUALIDADE DE ESPELHO DA OBRA DE

ABBAS: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o grande

prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema,

com certeza.[...]

Crítica 15 � “Obra se Abbas é única no cinema iraniano”

Folha de São Paulo, 26/10/08

41

Em (15), o rótulo essa qualidade de espelho da obra de Abbas refere-se ao

segmento do texto que trata da imparcialidade do produtor de cinema ao retratar

objetivamente as situações de seus roteiros, sem impregná-las de avaliações ou

pontos de vista. O autor da crítica categorizou tal atitude positivamente através do

sintagma supracitado, por isso, trata-se de um rótulo de configuração axiológica.

(16) Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de

maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro

da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes

sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim

Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO. Por outro lado, é uma reflexão ousada e

dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em tempos de transformação

política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão fartamente dos

poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento

brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no

enforcamento de Tiradentes (interpretado por José Wilker).[...]

Crítica 13 � “Cineasta revisita Inconfidência com ironia”

Folha de São Paulo, 07/09/08

Em (13), o rótulo essa convocação é uma nominalização14 do sintagma

verbal conclamara e, para a perspectiva de Francis (1993, 2004) possui valor não-

axiológico.

Quanto ao valor argumentativo do fenômeno, Conte (2003, p. 177) afirma que

as rotulações são um poderoso meio de manipulação do leitor quando tem como

núcleo de seu sintagma um nome axiológico (avaliativo), uma vez que representam

uma atitude do falante com relação ao conteúdo enunciado.

Não obstante, Zavam (2007) discorda de Conte (2003) sobre a existência, a

priori, de nomes avaliativos. Defende que os nomes adquirem valor axiológico no

contexto em que estão sendo empregados, uma vez que são objetos de discurso,

isto é, são (re)construídos pelos sujeitos no curso de suas interações verbais, e não

entidades preexistentes, independentes da referência que se faça a eles. Sob essa

14

O exemplo em questão trata-se de uma nominalização não-prototípica, uma vez que o fenômeno não é representado por palavra da mesma família, mas sinônima.

42

perspectiva, a realidade que se erige no evento comunicativo não é dada, mas

fabricada e alimentada pelo próprio discurso num contínuo processo de construção e

reconstrução coletiva da própria realidade, que aos sujeitos daquele evento toca

(re)elaborar. Zavam (Ibidem, p. 135) aponta que os posicionamentos adotados por

Conte (2003) e Francis (1994, 2003)

parecem revelar uma visão quase que exclusivamente linguística sobre a referenciação,

embora não seja essa a intenção dos pesquisadores citados. É como se a construção do

referente ou a remissão a ele se resumisse ao emprego de expressões linguísticas, de

expressões que já viriam com seu significado antecipadamente dados.

No que tange à questão argumentativa subjacente às rotulações, de acordo

com Koch (2002), tais formas não têm apenas a função de referir, dando

continuidade ao texto, mas também de contribuir na construção de sentidos na

medida em que assinalam direcionamentos argumentativos, pontos de vista. Grosso

modo, a escolha por um determinado rótulo leva em conta o papel dos

interlocutores, o contexto e o gênero discursivo adequado para a obtenção dos

propósitos comunicativos do falante. Além disso, tais formas possuem uma

dimensão simultaneamente construtiva e intersubjetiva. Por essa razão, essas

expressões referenciais precisam ser vistas sob sua multifuncionalidade, merecendo

destaque especial a estreita relação entre referenciação e argumentação.

Em um mesmo sentido, Francis (1994, 2003) defende que a rotulação não só

sumariza o conteúdo do que foi literalmente dito, mas também o modo, a forma de

dizer. Para tanto, recorre aos argumentos de John Austin (1965 apud KERBRAT-

ORECCHIONI, 2001), para quem todo dizer é um fazer, isto é, todo ato de

linguagem constitui determinado ato de fala.

Em síntese, a categorização das funções dos rótulos para Francis se afigura

do seguinte modo:

43

Quadro 3 – Função e configuração dos rótulos segundo Francis (1994, 2003)

Embora tenha dado um tratamento escalar aos encapsulamentos, Francis

(1994, 2003), em seus estudos, optou pelo tratamento particular da rotulação, cujo

núcleo é sempre substantivo. Todavia, como o processo de encapsulamento é mais

amplo e nem sempre é representado por sintagma de núcleo substantivo, esta

pesquisa resolveu ampliar os estudos da autora em três pontos: 1) na proposta de

classificação de encapsulamentos de núcleos demonstrativos; 2) no estudo mais

Função

Conteúdo Metalinguístico

Ilocucionários Atividades linguageiras

Processo Mental

Nomes de texto

Configuração

Avaliativa Não-avaliativa

Posição

Retrospectivos Retrospectivos/Prospectivos Prospectivos

44

aprofundado dos encapsulamentos metalinguísticos, explorando uma possível

existência de outros subconjuntos; 3) na consideração da importância de alguns

termos de natureza gramatical na análise do fenômeno. Portanto, em decorrência da

ampliação de nosso escopo, tratar-se-ão todos os fenômenos sob o termo

encapsulamento, uma vez que não se focalizará apenas o processo de rotulação.

De início, em relação à classificação dos encapsulamentos de núcleos

demonstrativos, tentou-se observar de que modo esse fenômeno se encaixaria nas

duas categorias já elaboradas por Francis (1994, 2003). Ao nosso ver, caberia, no

mínimo, a elaboração de uma subcategoria, uma vez que as classificações “de

conteúdo” e “metalinguística” já englobam todas as metafunções discursivas da

língua (interpessoal, ideacional e textual).

Não obstante, durante a nossa análise, deparamo-nos com um problema de

natureza epistemológica. Como um encapsulador de núcleo demonstrativo, como no

exemplo a seguir, pertenceria à categoria metalinguísticos? Sob o ponto de vista

da teoria de trabalho, a GDF, isso é um termo de metafunção textual que não se

encaixa na categoria metalinguística pré-determinada por Francis. Tal constatação

nos faz repensar a categoria para a inclusão desse tipo de encapsulamento, nem

que seja apenas em termos de sua nomeação. Ou seja, para encaixar os

encapsulamentos de núcleo demonstrativo nessa categoria, mudar-se-ia o nome

metalinguístico e criar-se-ia uma subcategoria? Essa é uma das questões que esta

pesquisa responde, mais à frente.

(17) [...] Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com

a maioria das séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas

das vielas mais escuras e fétidas da alma humana.

Crítica 06 � Com Glenn Close, série vê lado podre da vida

Folha de São Paulo, 10/08/08

Para tanto, recorreu-se à GDF, cujas classificações do Nível

Representacional (de função ideacional e textual) englobam tanto as questões

metalinguísticas suscitadas por Francis (1994, 2003) quanto outras restritas à

45

designação – dessas últimas, fez-se uso para a ampliação das categorias

semânticas.

Por fim, o estudo aprofundado da GDF levou-nos à consciência de que o

processo de encapsulamento é uma atividade complexa em que tanto fatores de

ordem lexical quanto gramatical estão em jogo, perspectiva até então pouco

considerada. Em seu estado atual de ciência, a referenciação focaliza apenas as

questões de natureza lexical. Portanto, no que tange ao terceiro ponto de nossa

pesquisa, chamou-se a atenção para a análise de alguns elementos de natureza

gramatical. Pode-se conferir tal fato no exemplo abaixo, em que o operador assim,

embora um termo de natureza gramatical, encapsula um segmento anterior.

(18) A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.

Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente

esmagados pelo sistema. É uma constatação, então, que ultrapassa o físico para chegar

a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que é

utilizado por uma megacorporação em "Robocop".[...]

Crítica 07 � Verhoeven retrata faroeste amoral

Folha de São Paulo, 03/08/08

46

CAPÍTULO III

A GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL

Neste capítulo, apresentam-se o referencial teórico que sustenta a análise desta

pesquisa e as justificativas para o trabalho com esse modelo funcionalista de linguagem

para a análise dos encapsulamentos. Para tanto, o capítulo divide-se em quatro partes.

As duas primeiras seções introduzem brevemente o assunto; a terceira explicita as

categorias da GDF que servirão como aporte para nossa pesquisa; a quarta, por sua

vez, traz as justificativas para o estudo dos encapsulamentos sob a égide da GDF.

3.1. INTRODUÇÃO

A Gramática Discursivo-Funcional (GDF) constitui uma nova abordagem

funcionalista para a análise linguística. Elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2006;

2008), tal teoria se diferencia por conceber uma organização Top-down da

gramática, isto é, ela parte da cadeia mais alta da hierarquia linguística, a intenção

do falante, e faz sua análise até o componente de saída, a articulação. Começou a

ser esboçada em 1997 por Kees Hengeveld em um texto intitulado Cohesion in

Functional Grammar, no qual Hengeveld propõe um modelo discursivo com base

nas idéias apresentadas no último capítulo de Dik (1997), dedicado ao discurso e às

propriedades pragmáticas e psicológicas que um modelo de base discursiva deve

apresentar. Depois de algumas versões da GDF, publicadas em diferentes revistas e

livros15, Hengeveld e Mackenzie lançaram, no segundo semestre de 2008, o livro

15

Para ter acesso a tais artigos, consulte o site do professor Hengeveld, em: http://home.hum.uva.nl/oz/hengeveldp/

47

Functional Discourse-Grammar. A typologically-based theory of language structure,

que traz uma versão completa e atualizada da GDF.

Uma vez que se trata de um modelo funcional relativamente novo no meio

científico, a GDF ainda é pouco difundida no Brasil. Os trabalhos acerca dessa linha

têm se concentrado na Unesp de São José do Rio Preto, onde os professores

Hengeveld e Mackenzie já ministraram workshops e orientaram pesquisas. Com

relação às outras regiões, a GDF concentra-se na Europa: Portugal, Espanha,

França, Inglaterra, Dinamarca e, sobretudo, Holanda, país em que está situada a

sede de estudos: a Universiteit van Amsterdam.

Em relação a sua origem, a GDF é uma reformulação do que se vinha

chamando de Gramática Funcional Padrão, cuja última versão assume uma nova

unidade de análise, o Ato Discursivo, como forma de se tornar um modelo de

gramática funcional mais abrangente. Essa nova categoria, que passa a ser a

unidade básica de análise da GDF, suscita preocupações no próprio Dik, que

enxerga as limitações de seu modelo gramatical orientado para a oração como

unidade básica de análise. A partir daí, formula-se uma nova teoria que busca

analisar as expressões linguísticas com base em um contexto discursivo mais

amplo, procurando aliar, de forma produtiva, informações contextuais, gramaticais e

cognitivas. Aproxima-se, assim, a gramática ao discurso e ao processamento

cognitivo. Contudo, é importante ressaltar que, apesar da GDF ser estruturalmente

orientada para o discurso, ela não é uma gramática do discurso, mas, sim, um

modelo de gramática funcionalista que tenta analisar a influência do discurso nas

configurações sintáticas da gramática da língua. Trata-se de uma perspectiva teórica

que se aproxima da concepção de linguagem adotada por Traugott (1982) e

Traugott e König (1991), que consideram o discurso como um componente da

gramática.

Com efeito, segundo Hengeveld (2004), há diversas razões por que a

Gramática Funcional deve expandir-se da sentença para o discurso. Há, em primeiro

lugar, muitos fenômenos linguísticos que podem ser explicados somente em termos

de unidades maiores que a sentença individual. Há, em segundo lugar, muitas

expressões linguísticas menores que a sentença individual, que, todavia, funcionam

como enunciados completos e independentes dentro do discurso, como frases

48

elípticas, exclamações e vocativos. Desse modo, o nome Gramática Discursivo-

Funcional se justifica pela ênfase no Ato Discursivo, o que quer dizer que ela não se

restringe a orações completas, como afirmado acima.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 02), a GDF pode ser definida mais

concisamente como uma teoria que procura entender como as unidades linguísticas

são estruturadas em termos do mundo que elas descrevem e das intenções

comunicativas com que elas são produzidas. Assumindo o Ato Discursivo como

unidade de análise, o discurso passa a ser, na GDF, o “suporte” das unidades

linguísticas de níveis mais baixos. Enquanto a Gramática Funcional de Dik inicia-se

com a seleção de itens lexicais, para, em seguida, expandir gradualmente a

estrutura subjacente da oração, a GDF inicia-se com a formulação da intenção do

falante, finalizando com a realização da expressão linguística.

No que tange à nossa pesquisa, pode parecer equivocada a opção por uma

teoria cujo título recebe o nome gramática. No entanto, assevera-se que os níveis

elaborados pelos professores Hengeveld e Mackenzie (2006; 2008) vão muito além

da mera estrutura gramatical e não fogem a uma perspectiva textual, uma vez que

também compreendem elementos de ordem pragmática e semântica, como eles

mesmos já observaram em Functional Discourse-Grammar. A typologically-based

theory of language structure ao tratarem da possibilidade do estudo da anáfora em

sua teoria.

Para termos a comprovação de tal dado, o da previsão da análise

transfrástica (textual) e não só a da cláusula (morfossintática), seguem os tipos de

conhecimentos sob o escopo da GDF – adotados a partir da elaboração de Dik

(1997, p. 10):

a) Conhecimento prévio: conhecimento que falante e ouvinte possuem

antes de um evento comunicativo, que pode ser linguístico (conhecimento

da língua) ou não-linguístico (conhecimento do mundo e de outros mundos

possíveis);

b) Conhecimento imediato: conhecimento derivado da situação discursiva

em que ocorre o evento, que pode ser situacional (conhecimento derivado

49

do que pode ser percebido e inferido da situação comunicativa) ou textual

(conhecimento oriundo da informação transmitida durante o evento

comunicativo).

Ainda, os conhecimentos linguístico, não-linguístico e textual podem ser

divididos, a saber:

• Conhecimento linguístico:

a) Lexical: conhecimento dos predicados lexicais da língua, suas

propriedades semânticas e morfossintáticas, e suas inter-relações;

b) Gramatical: conhecimento das regras e princípios que definem as

estruturas gramaticais da língua, e das regras e princípios pelos quais essas

estruturas subjacentes podem ser expressas na língua;

c) Pragmático: conhecimento das regras e princípios que administram o uso

correto de expressões linguísticas na interação verbal.

• Conhecimento não-linguístico:

a) Referencial: conhecimento sobre entidades, como pessoas, coisas e

lugares;

b) Episódico: conhecimento sobre estados-de-coisas (ações, processos,

posições, estados), nos quais as entidades estiveram, estão ou estarão envolvidas;

c) Geral: conhecimento sobre regras gerais e princípios que governam o

mundo e outros mundos possíveis.

• Conhecimento textual:

a) Referencial: conhecimento sobre entidades, na forma mencionada do

texto, entidades discursivas ou tópicos;

b) Episódico: conhecimento sobre estados-de-coisas, nos quais as entidades

estão envolvidas, na forma descrita no texto;

c) Geral: conhecimento sobre regras gerais e princípios, na forma

mencionada no texto.

50

É importante ressaltar que a nossa pesquisa terá um caráter ensaísta no

âmbito da GDF, uma vez que os próprios autores não desenvolveram metodologia

com foco no estudo das referências, só propuseram sua potencialidade. O que se

fez aqui foi investigar, na GDF, quais caminhos demonstram abertura para uma

investigação dos encapsulamentos.

3.2. PROPRIEDADES BÁSICAS DA GDF

São propriedades básicas da Gramática Discursivo-Funcional:

(i) Constituir o componente gramatical de um amplo modelo

da interação verbal do usuário de língua natural, que, por

sua vez, é composto por componentes conceituais,

contextuais e de formulação linguística;

(ii) Considerar os Atos Discursivos como unidades básicas de

análise, o que nos leva a considerá-la uma gramática do

discurso, e não da cláusula;

(iii) Dividir a organização linguística em quatro níveis: um

interpessoal (ou pragmático), um representacional (ou

semântico); um morfossintático (ou estrutural) e um

fonológico (ou articulatório);

(iv) Ordenar esses níveis da categoria mais alta à mais baixa

(top-down fashion), começando com a representação das

intenções linguísticas do falante e, em sequência,

analisando os níveis mais baixos na hierarquia.

Dessa forma, grosso modo, o novo modelo proposto por Hengeveld e

Mackenzie (2008) é descrito como um processo top-down (descendente), que parte

da intenção do falante (do componente conceitual) para a expressão das formas

linguísticas. Essa análise sugere, segundo os autores, que o falante primeiro decide

qual vai ser seu propósito comunicativo (sua intenção) para depois selecionar e

codificar essa informação gramaticalmente.

51

Essa mudança é, conforme Hengeveld e Mackenzie (2005), motivada pelo

postulado de que a eficiência de um modelo de gramática é tanto maior quanto mais

se aproximar do processamento cognitivo16. Isso porque, segundo eles, estudos

psicolinguísticos (LEVELT, 1989 apud HENGEVELD E MACKENZIE, 2008)

demonstram claramente que a produção linguística é um processo descendente,

que se inicia com as intenções do falante e termina com a articulação/realização da

expressão linguística real (componente de expressão).

Segundo Levelt (1989 apud MODESTO 2006, p. 07), as etapas da produção

da fala são:

1) O falante decide qual vai ser seu propósito comunicativo

(informações pragmáticas e contextuais);

2) O falante seleciona a informação mais adequada para atingir seu

objetivo;

3) O falante codifica a informação em termos gramaticais e

fonológicos e, por fim,

4) O falante realiza o processo de articulação.

Essas características nos levam ao seguinte esquema:

16

Embora os autores questionem acerca da eficiência do modelo, a GDF não se trata de um modelo de processamento, mas, sim, de descrição gramatical, que procura apenas refletir o processamento.

52

Com

pone

n te

Gra

mat

ical

Com

pone

nte

Co n

text

ual

Componente Conceitual

Componente de Saída

Formulação

Codificação

Quadro 4 - O modelo descendente

3.3. OS QUATRO NÍVEIS DA ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA

De um modo geral, a organização linguística da GDF se dá através de quatro

níveis, a saber: o Interpessoal (ou pragmático), o Representacional (ou semântico),

o Morfossintático e o Fonológico. À nossa pesquisa interessam apenas os dois

primeiros, uma vez que o fenômeno analisado faz remissão ou ao nível pragmático

ou ao semântico. Portanto, não se tratou dos dois últimos níveis da organização

linguística neste trabalho.

Antes de tratar-se especificamente dos dois primeiros níveis, é importante

chamar a atenção para o fato de que, para as teorias funcionalistas, a língua é um

instrumento de comunicação, e não um objeto autônomo. Nesse sentido, suas

53

estruturas são submetidas às pressões provenientes do uso, que exerce grande

influência sobre a estrutura linguística.

Assim, o funcionalismo analisa a estrutura gramatical tendo como base a

situação comunicativa do ato de fala, seus participantes e seu contexto discursivo.

Desse modo, não se pode compreender um fato linguístico sem se levar em conta o

sistema ao qual pertence. A análise de uma língua requer que se considerem as

diversas funções linguísticas e seus modos de realização.

Com base em uma troca intricada entre os participantes no processo de

interação verbal, Neves (2000, p. 19) postula que

a língua (e a gramática) não pode ser descrita como um sistema autônomo, já que a

gramática não pode ser entendida sem parâmetros como cognição e comunicação,

processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação, aquisição e

evolução.

Sendo assim, nesse processo, pesam diversos fatores, dentre eles: a força de

situação de comunicação, o planejamento, as imagens que o falante forma do

interlocutor, entre outros.

Em um mesmo sentido, Halliday (1985) diz que o sistema linguístico está

intrinsecamente ligado ao contexto e provê todos os elementos necessários para

que a língua possa ser utilizada em situações concretas de uso por falantes reais,

mas é também a partir dos fatores externos que o falante deverá proceder para

determinar suas escolhas. Cada indivíduo faz parte de um grupo social e usa a

língua em situações variadas para atingir diferentes objetivos.

Halliday (1985, p. 141) formulou um esquema, em que as funções básicas da

comunicação se dividem em:

a) Ideacional – em que linguagem tem como finalidade a manifestação de conteúdos que

estejam ligados à experiência que o falante possui do mundo concreto, real ou de seu

universo subjetivo, interior. Diz respeito ao conteúdo do que é dito, à interpretação e

expressão de nossa experiência acerca dos processos do mundo exterior e dos

processos mentais e abstratos de todos os tipos.

54

b) Interpessoal – abrange todos os usos da língua para expressar relações sociais e

pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na situação discursiva e

no ato de fala. Permite que o falante participe da situação comunicativa para aprovar,

desaprovar, expressar crença, opinião, dúvida, etc.

c) Textual – em que a linguagem estabelece vínculos com ela mesma e está ligada às

características da situação em que é usada. Nesta função, o indivíduo falante ou escritor

é capaz de criar textos e o ouvinte ou leitor consegue distinguir um texto de um conjunto

aleatório de frases. A função textual é, pois, um instrumento das outras duas, já que

sempre o ato comunicativo necessita da elaboração de discursos. Esta função é que

habilita o falante a criar um texto.

Para Halliday (1985), essas três funções se combinam e se atualizam

simultaneamente nas cláusulas, estruturando assim o contexto conversacional,

equilibrando o ato de fala em representação (ideacional), troca (interpessoal) e

mensagem (textual). Tais conceitos serão fundamentais para o entendimento dos

dois primeiros níveis da GDF, a seguir.

3.3.1. O Nível Interpessoal (ou pragmático)

O Nível Interpessoal (NI), como o nome sugere, equivale ao que Halliday

(1985) nomeou de função interpessoal da língua. Esse é o nível que lida com os

aspectos formais de uma unidade linguística. Esta, por sua vez, reflete seu papel na

interação entre os participantes, cada qual com um propósito comunicativo em

mente. O NI implica a ideia de que cada falante emprega uma estratégia de modo

mais ou menos consciente para atingir seus objetivos comunicativos. Em alguns

casos, esse propósito pode ser bastante explícito (como em uma entrevista de

emprego). Em outros, ele pode ser meramente elaborado para estabelecer e manter

relações sociais.

Nesse nível, três tipos de primitivos operam: esquemas, lexemas e

operadores primários. Os esquemas conteriam os recursos gramaticais que estão

disponíveis em cada língua para se fazerem as distinções que dizem respeito à

interação verbal, tais como ilocuções básicas, funções pragmáticas (Tópico, Foco e

Contraste.), diferenciações sociais (p. ex. pronomes e formas de tratamento

deferenciais e informais, etc.). Os lexemas introduzidos nesse nível incluem nomes

próprios, locuções que modificam o ato ilocutivo (p. ex. em síntese), marcadores

55

discursivos, etc. Os operadores primários são elementos passíveis de instigar

processos nos Níveis Morfossintático e Fonológico (p. ex. operadores de

reportatividade, de identificabilidade ou de genericidade).

Não obstante, o NI não tem como parâmetro o esgotamento de todos os

aspectos discursivos envolvidos nesse processo, mas somente daqueles que são

relevantes para a manifestação linguística. A GDF, apesar de ter como escopo o

discurso, não é uma teoria do discurso, mas, sim, de análise da estrutura linguística.

Os aspectos discursivos tratados pela GDF são aqueles que dão conta das

funções retóricas e pragmáticas da língua. Por função retórica, entende-se a forma

como os componentes discursivos são ordenados para que o falante atinja seus

objetivos comunicativos e também as propriedades formais dos enunciados que

influenciam o destinatário a aceitar os propósitos comunicativos de seu interlocutor.

Por função pragmática, entende-se, aqui, a forma como os interlocutores moldam

suas mensagens com base nas expectativas atuais do estado mental do

destinatário.

O objetivo de tratar tais funções é o de explicitar que as decisões

comunicativas do falante não são tomadas a partir da gramática, mas, sim, de um

componente conceitual. Na verdade, é esse componente que contém as intenções

comunicativas do falante e as estratégias que ele deseja usar para obtê-las.

Se, por exemplo, numa dada situação, o ouvinte B está próximo à janela de

sua sala de estar e escuta do falante A o enunciado “Está frio aqui dentro!”, é muito

provável que A interprete tal enunciado como “Feche a janela” e não apenas como

um comentário. No entanto, se A e B estivessem em um local em que tanto A quanto

B não tivessem liberdade de executar o ato de fechar a janela, o mesmo enunciado,

provavelmente, seria interpretado como um comentário. Tais exemplos mostram que

a análise linguística, em termos de ilocução, não pode ser feita sem se levar em

conta aspectos pragmáticos e retóricos. Diz-se também retóricos, porque a opção

entre “Está frio aqui dentro” e “Feche a janela” não é neutra. Há, por trás de tais

enunciados, princípios de polidez e papéis sociais que precisam ser evidenciados na

análise linguística.

56

Desse modo, o NI contém as descrições de todas as propriedades das

unidades linguísticas que refletem a interação verbal e a influenciam -

hierarquicamente, a seguir: Move > Ato Discursivo > Conteúdo Comunicado. O Ato

Discursivo se subdivide em Ilocução e Participantes – únicos em relação não-

hierárquica. O Conteúdo Comunicado se subdivide, por sua vez, em Subato de

atribuição > Subato de referência. Elas podem ser representadas como na figura

abaixo:

(∏ M1: [ Move

(∏ A1: [ Ato Discursivo

(∏ F1: ILL (F1): ∑ (F1))Ф Ilocução básica

(∏ P1: ... (P1): ∑ (P1))Ф Falante

(∏ P2: ... (P1): ∑ (P2))Ф Ouvinte

(∏ C1: [ Conteúdo Comunicado

(∏ T1 [...] (T1): ∑ (T1))Ф Subato de Atribuição

(∏ R1 [...] (R1): ∑ (R1))Ф Subato de Referência

] (C1): ∑ (C1))Ф Conteúdo Comunicado

] (M1): ∑ (M1))Ф Move

Quadro 5 – Categorias do Nível Interpessoal17

3.3.1.1. O Move

De acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008), o nível mais alto na

hierarquia, o Move (M), descreve o segmento inteiro de discurso que é considerado

relevante no processo de interação. Em termos interpessoais, ele pode ser definido

como a unidade mínima de discurso (Kroon, 1995 apud Hengeveld e Mackenzie,

2008) e é o veículo utilizado na expressão de intenções comunicativas do falante

como, por exemplo, um convite, uma informação, um interrogatório, uma ameaça,

um alerta, etc. Pode ser constituído de um ou mais Atos Discursivos temporalmente

ordenados que, juntos, formam o núcleo (simples ou complexo). Cada Ato

Discursivo (A) se organiza com base num esquema Ilocucionário (ILL), que contém

ao menos dois Participantes (P), o Falante e o Ouvinte (S, A)18 e o Conteúdo

17

O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das unidades do Nível Interpessoal. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.

18 S do inglês speaker (falante) e A de addressee (destinatário).

57

Comunicado (C) com seus argumentos. O Conteúdo Comunicado contém um

número variável de Subatos de Atribuição (A) e de Referência (R), aos quais as

funções pragmáticas são atribuídas.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 51), o Move(M) se define pelo fato

de “requisitar” uma resposta ou ser ele mesmo uma resposta, ou seja, uma reação

ao pedido. É uma categoria mais evidente na conversação, pelo fato de contar com

a informação prosódica como unidade delimitadora das ações do falante (além dos

elementos linguísticos que demarcam tal unidade). Nesse tipo de interação, de

modo muito geral, cada Move corresponderia ao turno de fala. Há Moves de

iniciação e de reação, como em:

(19) A: What is the capital of Latvia? (M1)Iniciação

B: Riga. (M2)Reação Why do you ask?

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 50)

No entanto, essa correspondência não é fixa, pois, em um mesmo turno, pode

haver dois Moves, veja:

(20) A: What is the capital of Latvia? (M1)Iniciação

B: Riga. (M2)Reação Why do you ask? (M3)Iniciação

A: I’m doing my homework. (M4)Reação

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 50)

Os Moves constituídos por apenas um Ato Discursivo são mais fáceis de

identificar, como no exemplo (19). Em contrapartida, a identificação do Move em

outras sequências textuais não se dá com tal facilidade, já que as reorientações

discursivas perlocucionariamente motivadas nem sempre são previsíveis nesses

casos. Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), embora o Move geralmente se

encontre no início de parágrafos em sequências expositivas, argumentativas e

narrativas, isso não é um fator determinante. A despeito dos parágrafos terem como

função a introdução de novos tópicos ou focalização de diferentes aspectos do

58

tópico em curso, não é difícil encontrar textos inteligíveis e adequados à norma

padrão que tragam mais de um Move em parágrafo único. Não é raro, por exemplo,

achar parágrafos que tanto desenvolvem um argumento quanto concluem a tese de

um texto. Veja o exemplo:

(21) [...] No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais

evidente é a censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de

seu filho durante a ditadura militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus

e terras em busca de respostas. Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu

heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela individualidade. A história passa um tanto

ao largo.

Crítica 25 � Rezende faz valer a individualidade

Folha de São Paulo, 23/11/08

No exemplo acima, têm-se dois Moves em parágrafo único, M1 e M2, ambos

constituídos por um Ato Discursivo19 de força ilocucionária DECLARATIVA, sendo

que o último Move representa uma reação ao primeiro, já que apresenta o

movimento perlocucionário de conclusão/fechamento do texto. Os dois Moves estão

destacados abaixo:

(M1: [A1: - No entanto, com “Zuzu Angel”... isolado em seu heroísmo – (A1))] (M1))

((M2: [A1: - Por isso mesmo, o filme... tanto ao largo – (A1))] (M2))

Embora, os dois Moves acima sejam constituídos de apenas um Ato

Discursivo (isto é, de núcleo simples), isso não é uma regra. Há também os de

núcleo complexo (mais de um Ato Discursivo), como o exemplo que segue:

(22) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a

Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12

anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a

cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,

vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar

19

Para uma maior compreensão da categoria Ato Discursivo, consulte o tópico seguinte, 3.3.1.2.

59

errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em

transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,

representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Crítica 01 � A censura parece vitimar só o imaginário

Folha de São Paulo, 31/08/08

O parágrafo acima representa o Move de reação da crítica em destaque,

concluindo-a. Apresenta quatro Atos Discursivos, identificados pela força

ilocucionária que carregam: admonitiva, declarativa, interrogativa e declarativa.

Abaixo, destacam-se ambas categorias:

(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:

DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: INTER (F3)) – Será que

essa... Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ]

(A4)) ] (M1))

A categoria Move (assim como as outras categorias dos Níveis Interpessoal e

Representacional) pode ser marcada com a presença de operadores e

modificadores, que orientam a argumentação de um Move. Por operadores,

compreendem-se os elementos gramaticais que especificam o papel do Move no

discurso em andamento, enquanto por modificadores, os elementos lexicais com a

mesma função. Segue um exemplo de operador que orienta uma concessão e outro

de modificador que marca o início de uma síntese:

(23) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony

estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-

mulher -o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que

nível estamos, se no da vida ou no da representação.

APESAR desses momentos serem intensos, o fato é que, até a cena de

assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua

maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson

Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu

com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama existisse sobretudo para

ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.

[...]

60

Crítica 26 � Filme de Cukor aproxima a vida e o palco

Folha de São Paulo, 23/11/08

(24) Temos sempre os dois lados do avanço tecnologico. Mas me questiono diariamente

que como com tantas descobertas sendo realizadas todos os dias, tantos avanços

teconologicos principalmente no campo da comunicação ( Até ontem a internet era uma

novidade, hoje é essencial, indispensável, nao imagino minha vida sem ), como que

doenças graves não tem sua cura ou remedios ? Porque não usarmos em prol de cura

de doenças todo o avanço do mundo atual ? Sei que isso sai completamente de nosso

tema, mas é realmente as vezes revoltante vermos que milhoes são gastos pro homem

ir a Lua enquanto milhares de pessoas morrem desse maldito cancer, desa aids. Fica o

questionamento, o que é mais importante salvar vidas ou o avanço tecnologico ?

Por Marcelle Ximenes em 07/06/2009 às 11:10 PM

RESUMINDO a história, infelizmente é assim, mais por dinheiro pessoas matam e

por dinheiro pessoas morrem.

Quando há uma guerra ela geralmente acontece por causa que alguém quer ter

o poder, o petróleo ou por dinheiro e a cura das doenças não são divulgadas por causa

do dinheiro, por que os laboratórios dependem dos coquitéis que são vendidos

para obterem seu lucro e eles não querem abrir mão desse lucro.

Por Adilson Silva Santos em 19/06/2009 às 11:50 AM

Fórum de opinião em http://turmae2009.bligoo.com/content/view/531283/RFID-Uma-

introdu-o-ao-tema.html - acessado em 05/01/10

3.3.1.2. O Ato Discursivo

Segundo Kroon (apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 60), os Atos

Discursivos são as menores unidades identificáveis do comportamento

comunicativo. Em contraste com a categoria Move, eles não encaminham,

necessariamente, a comunicação visando à obtenção de um objetivo comunicativo.

Enquanto para a gramática tradicional a unidade básica de análise é a oração, para

a Gramática Discursivo-Funcional, a unidade é o Ato Discursivo, que se conecta à

categoria Move através de relações de equipolência e dependência (nesta última, as

61

relações entre os atos – funções retóricas – são de Motivação, Concessão,

Orientação e Correção)20.

É importante enfatizar que, assim como não há equivalente formal da

categoria Move, também não há correspondência formal entre o Ato Discursivo e

qualquer outra unidade linguística. Em muitos casos, para que o falante atinja sua

intenção comunicativa não é necessário que haja uma estrutura oracional, mas

somente um sintagma nominal ou adverbial, como no exemplo a seguir, em que o

SN expresso em B funciona como Ato Discursivo e Move:

(25) A: Who does John want to shave?

B: Himself.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 61)

Estabelecer o Ato Discursivo como a unidade mínima do comportamento

discursivo de análise permite-nos estudar sob um prisma discursivo-funcional tanto

elementos menores que a oração � como no exemplo acima � quanto elementos

extra-oracionais que eram vistos à margem da gramática (p. ex. os marcadores

discursivos). Contudo, delimitar esses segmentos discursivos não é tarefa simples.

As duas categorias mais altas na hierarquia do Nível Interpessoal, o Move e o Ato

Discursivo, por exemplo, apresentam-se mais fluidas, menos previsíveis, o que as

torna passíveis de discordância durante a análise, já que pertencem ao Componente

Contextual. Inclusive, na atual versão da GDF, os autores (2008, p. 60), embora

definam a categoria Ato Discursivo, não estabelecem, de forma pontual,

mecanismos para sua identificação, já que não há correspondência direta entre o

Ato Discursivo e qualquer outra unidade linguística (Ibidem, p. 60). Todavia,

observam, na categoria, dois elementos importantes para sua delimitação: 1)

segmentos de mesma força ilocucionária tendem a formar um único Ato

Discursivo; 2) Contornos Entonacionais distintos, manifestados entre predicações

(seja em relação de equipolência, seja de dependência) no Nível Fonológico,

20

Uma vez que as funções retóricas dos Atos Discursivos não foram utilizadas na análise de dados de nossa pesquisa, resolvemos não exemplificá-los. Para explicitação, conferir Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 53)

62

marcam Atos Discursivos diferentes, mesmo quando constituídos por mesma força

ilocucionária21.

Para elucidação do primeiro elemento, segue o exemplo abaixo:

(26) Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande

cantora. Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo,

cuja história pessoal e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. [...]

Crítica 46 � “Maysa é a nossa versão de Amy Winehouse”

Folha de São Paulo, 11/01/09

Acima, tem-se um Move (M) de descrição, constituído de apenas um Ato

Discursivo (A), cuja unidade é mantida pela identidade na força ilocucionária (de

valor DECLarativo) entre as predicações. Veja a esquematização do Move:

(M1: [ (A1: [ (F1: DECL (F1)) (C1: [ (T1: intensa,..., (Tn)) (R1: Maysa (R1))] (C1)) (C2: [ (T1:

nossa diva... cotovelo (T1)) (R1: Maysa (R1))] (C2)) (C3: [ (T1: inspiraram (T1)) (R1: história

pessoal e música (R1)) (R2: minissérie da Globo (R2))] (C3)) ] (A1)) ] (M1))

Abaixo, um exemplo de motivação fonológica.

(27) A: What happened yesterday in the Scottish Premier League?

B: Celtic won. And Rangers lost.

Helgeveld e Mackenzie (2008, p. 53)

No exemplo, o Move de iniciação de A provoca o Move de reação de B, cujo

turno de fala consiste de dois Atos Discursivos, marcados pelo contorno

entonacional. É importante ressaltar que o ponto que separa os dois períodos não é

simplesmente descartável sob um ponto de vista discursivo. Dizer Celtic won. And

Rangers lost ou Celtic won and Rangers lost não é a mesma coisa. No primeiro

21

Para a teoria, há momentos em que a relação entre os níveis ocorre de maneira não-hierárquica, em que um nível mais baixo influencia um nível mais alto, processo nomeado alinhamento pelos autores (cf. 2008, p. 316). No entanto, não é isso que ocorre no segundo caso. Não é o Nível Fonológico que influencia o Interpessoal, mas, sim, este que tem repercussões naquele.

63

caso, subentende-se que o falante deseja enfatizar a informação do segundo

predicado, por isso opta por um período mais curto, de entonação mais marcada. Já

no segundo, isso não ocorre, o que nos mostra que certos padrões prosódicos

modificam não só a orientação discursiva, como também a própria unidade

linguística – no caso, é determinante para a localização de um ou mais Atos

Discursivos.

Quanto à configuração, os Atos Discursivos podem ser de três tipos:

1) Expressivos: em que o falante expressa seus sentimentos. (p. ex.

Droga!);

2) Interativos: em que o Ato Discursivo interpela o ouvinte (p. ex.

Parabéns!)

3) Contentor: em que o Ato Discursivo envolve o Conteúdo

Comunicado e uma ilocução – lexical ou abstrata. (p. ex. Eu

prometo que estarei em casa / eu estarei em sua casa amanhã).

Além disso, assim como a categoria Move, o Ato Discursivo pode conter

modificadores e operadores. Os modificadores (de caráter lexical) permitem ao

falante comentar ou enfatizar o próprio Ato Discursivo. Veja:

(28) [...] Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma

investigação longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma

nova capitã, Monica Rawling (Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a

desferir um duro golpe nas gangues da área.

Crítica 06 � Com Glenn Close, série vê lado podre da vida

Folha de São Paulo, 10/08/08

Já os operadores (de caráter gramatical) podem marcar ironia, ênfase ou

mitigação acerca do Ato Discursivo. Veja o exemplo abaixo em que o contorno

entonacional dado ao verbo denuncia ironia:

64

(29) This IS fun, don’t you think?

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 65)

3.3.1.3. A Ilocução

A Ilocução captura as propriedades formais e lexicais de Atos Discursivos em

situações convencionalizadas, que estão a serviço de intenções comunicativas

como: “chamar a atenção”, “asseverar”, “ordenar”, “questionar”, “advertir”, “requerer”,

etc. No entanto, assim como não há correspondência entre as unidades linguísticas

e as duas categorias mais altas do Nível Interpessoal, também não há relação direta

entre uma intenção comunicativa específica e uma ilocução.

Por Ilocução, ou ato ilocucionário, segundo Austin e Searle (1972 apud

KERBRAT-ORECCHIONI, 2001), pode-se compreender todo enunciado linguístico

em que o falante visa a produzir certo efeito e a implicar certa modificação da

situação interlocutiva. Searle (1972 apud KERBRAT-ORECCHIONI, 2001, p. 31) os

classifica em cinco tipos, a saber:

1. Os assertivos: têm o objetivo de “comprometer a responsabilidade do

locutor (em diferentes níveis) sobre a existência de um estado-de-coisas,

sobre a verdade da proposição expressa”. Trata-se, neste caso, de uma

adequação das palavras ao mundo.

2. Os diretivos: o objetivo ilocutório dos diretivos consiste “no fato de eles

constituírem tentativas por parte do locutor de mandar o auditor fazer

alguma coisa”; tentativas que podem ser “muito modestas” (“convidar a”,

“sugerir” etc.) ou, ao contrário, “ardentes” (“ordenar”, “exigir”, “insistir”), de

acordo com o eixo relativo ao grau de intensidade na apresentação do

objetivo.

3. Os promissivos: são atos cujo objetivo é obrigar o locutor (aqui,

igualmente, em graus variados) a adotar uma conduta futura.

4. Os expressivos: (como “agradecer”, “parabenizar”, “se desculpar”,

“deplorar”) possuem, de acordo com sua definição, o objetivo de “expressar

o estado psicológico especificado na condição de sinceridade diante de um

estado de coisas especificado pelo conteúdo proposicional”.

65

5. Os declarativos: quando provocamos mudanças no mundo através de

nossas enunciações. Em sentido estrito, dizem respeito a todos os

performativos.

Em contrapartida, enquanto Searle (1972 apud KERBRAT-ORECCHIONI,

2001) classifica as ilocuções em cinco tipos, Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 71)

as ampliam para doze categorias, cujas descrições seguem:

• Declarativa (DECL): o falante informa o ouvinte do Conteúdo Proposicional

evocado.

• Interrogativa (INTER): o falante requisita ao ouvinte responder ao Conteúdo

Proposicional evocado.

• Imperativa (IMPER): o falante delega ao ouvinte a responsabilidade de fazer

uma ação evocada.

• Proibitiva (PROH): o falante proíbe o ouvinte de fazer uma ação evocada.

• Optativa (OPT): o falante indica ao ouvinte seu desejo que a situação positiva

evocada pelo Conteúdo Comunicado ocorra.

• Imprecativa (IMPR): o falante indica ao ouvinte seu desejo que a situação

negativa evocada pelo Conteúdo Comunicado ocorra.

• Exortativo (HORT): o falante encoraja o ouvinte ou a si mesmo a fazer uma

ação evocada no Conteúdo Comunicado.

• Não-exortativo (DISHORT): o falante desencoraja o ouvinte ou a si mesmo a

fazer uma ação evocada no Conteúdo Comunicado.

• Admonitiva (ADMON): o falante adverte o ouvinte a realizar a situação

evocada pelo Conteúdo Comunicado.

• Comissiva (COMM): o falante promete a si mesmo a realizar uma situação

futura evocada pelo Conteúdo Comunicado.

• Suplicativa (SUPPL): o falante pede permissão ao ouvinte para realizar a

situação evocada pelo Conteúdo Comunicado;

66

• Mirativa (MIR): o falante expressa sua surpresa sobre o Conteúdo

Comunicado evocado.

A seguir, um exemplo que evidencia algumas dessas ilocuções – observe a

nomenclatura destacada em caixa alta na esquematização do Move, que marcam as

ilocuções:

(30) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a

Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12

anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a

cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,

vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar

errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em

transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,

representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Crítica 01 � A censura parece vitimar só o imaginário

Folha de São Paulo, 31/08/08

(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:

DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: MIR (F3)) – Será que essa...

Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ] (A4)) ]

(M1))

Além das funções citadas, Hengelved; Mackenzie (Ibidem, p. 76) apontam

que uma ilocução também pode ser ocupada por interjeições e expressões

correlatas (que servem para dar vazão às reações do falante em relação aos

elementos presentes na situação discursiva) e vocativos (que, quando no início de

um segmento discursivo, servem para chamar a atenção do ouvinte).

Em relação aos modificadores e operadores de tal categoria, os primeiros

representam modalizações de atitude do falante (p. ex. francamente, sinceramente);

os últimos, marcam ênfase e mitigação. Veja um exemplo de cada, respectivamente:

67

(31) Scarlett O'Hara queria ir para algum lugar, mas, francamente, ninguém dá a

mínima.

Fonte: Desciclopédia

Em http://desciclo.pedia.ws/wiki/Ningu%C3%A9m_se_importa – acessado em 05/01/10

(32) Quero isso AGORA!!!

Exemplo construído

3.3.1.4. Os Participantes

Os dois participantes do Nível Interpessoal são Falante (P1) e Ouvinte (P2), os

quais carregam a função Agente e Receptor, respectivamente. Veja o exemplo em

que os dois participantes estão marcados:

(33) I request you to complete this form.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 85)

No entanto, há situações em que eles estão implícitos. Veja o exemplo

abaixo, em que a fala de A se dirige a B, embora ambos não estejam marcados no

texto.

(34) A: What happened yesterday in the Scottish Premier League?

B: Celtic won. And Rangers lost.

Helgeveld e Mackenzie (2008, p. 53)

Além disso, quando o Ato Discursivo tiver configuração expressiva, haverá

apenas a função falante (P1) representada. Exemplo:

68

(35) Ai!

Exemplo Construído

Quanto aos modificadores e operadores da categoria “participantes”, os

primeiros são representados quando há uma especificação restrita do núcleo. O

falante, nesse caso, representará uma faceta de si mesmo ou do ouvinte, ou, ainda,

selecionará um ouvinte específico. Veja o exemplo.

(36) Ei, você aí, de que lado você está?

Música Ei, você aí - Banda Ruth’s

Disponível em: http://www.letras.com.br/bandas-ruths/ei-voce-ai

Já os operadores serão representados por elementos que marquem número

(singular/plural) e status (gênero, etc.) de um dos participantes.

3.3.1.5. O Conteúdo Comunicado

Enquanto a Ilocução indica o uso conversacional convencionalizado de um

Ato Discursivo, o Conteúdo Comunicado contém a totalidade do que o falante deseja

evocar durante a interação. Em termos acionais, ele corresponde ao componente

representacional de Searle (1969) e evidencia as escolhas do falante na evocação

do mundo externo sobre o qual ele deseja falar.

No que tange ao componente representacional, Searle entende que esse

elemento, que pode ser comum a atos de fala diferenciados entre si – com relação

ao componente ilocucionário –, vem a ser uma proposição. Contudo, no sentido

tradicionalmente atribuído ao termo proposição, o componente representacional

designa não um mero fragmento de ato de fala, mas algo que, enunciado em certas

circunstâncias, pode ser considerado o cumprimento de um ato de fala, mais

precisamente, uma asserção. Em outras palavras, uma proposição corresponde a

um enunciado em que já está marcado o componente ilocucionário, especificamente

aquele que caracteriza a intenção de realizar o ato de fala de afirmar um fato

como verdadeiro (asserção). Em resumo, é esse tipo de proposição (de ato

69

discursivo de ilocução declarativa) que corresponde ao Conteúdo Comunicado. Ou

seja, em Atos Discursivos em que esteja marcada atitude proposicional ou termos de

sua fonte ou origem (conhecimento comum partilhado, evidência sensorial,

inferência) não haverá Conteúdo Comunicado. Veja um exemplo:

(37) (A) Maria vem aqui.

(A) Maria, vem aqui!

Exemplo construído

No primeiro caso, o falante enuncia uma asserção, um Ato Discursivo de

ilocução declarativa. Portanto, aí, há Conteúdo Comunicado. No segundo, há uma

ordem, isto é, um Ato Discursivo de ilocução imperativa. Logo, aí, não há Conteúdo

Comunicado.

O Conteúdo Comunicado comporta as funções pragmáticas figura x fundo;

tópico x comentário; contraste x sobreposição22.

Os modificadores de Conteúdo Comunicado são aqueles que enfatizam a

asserção (p. ex. felizmente, realmente, sinceramente.), já os operadores podem

trazer tanto idéia de ênfase quanto de reportatividade23.

3.3.1.6. Os Subatos

É uma crença fundamental da teoria do ato de fala (SEARLE, apud

KERBRAT-ORECCHIONI, 2001) que a referência deve ser analisada como acional,

22

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 96), o contraste sinaliza o desejo do falante de externalizar diferenças particulares entre dois ou mais conteúdos comunicados ou entre um conteúdo comunicado e outra informação contextual disponível. Já a sobreposição sinaliza o desejo do falante de externalizar semelhanças particulares entre os mesmos elementos.

23 Enquanto os operadores de ênfase podem ser representados fonologicamente como visto em algumas categorias prévias, os operadores de reportatividade não parecem estar presentes em todas as línguas. Os autores (2008, p. 104) recorreram à língua indígena peruana Shibipo para exemplificação do fenômeno, em que um sufixo marca a reportatividade: Cai-ronqui reocoocainyantanque (sufixo – equivale a declaradamente) Declaradamente, enquanto ele estava indo (no barco), ele virou.

70

uma vez que o ato de referir deve ser considerado uma ação pragmática e

cooperativa no processo de interação verbal entre falante e ouvinte (DIK 1978 apud

HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 107). A informação pragmática consiste de

toda informação (de longo termo, situacional e imediata) trazida pela comunicação

em seu processo de interação.

A GDF apóia essa visão, mas acrescenta o termo atribuição (ou adscrição) à

cena. Para os autores, da mesma forma que a referência, a escolha do material

lexical, e a quantidade dele oferecida, é determinada pelo falante, que planeja a

melhor forma de influenciar/persuadir seu destinatário.

Dessa forma, os autores consideram tanto referência quanto atribuição

elementos de análise do Nível Interpessoal (NI). Nomeados, respectivamente,

Subato de Referência e Subato de Atribuição, tais categorias compõem o Conteúdo

Comunicado.

O Subato de Atribuição representa a tentativa do falante de evocar uma

propriedade. Nesse caso, o falante não precisa atribuir necessariamente uma

propriedade a um referente. Segundo os autores (Ibidem, p. 109), ao proferir, por

exemplo, “está chovendo”, o falante está evocando somente uma propriedade

meteorológica sem evocar nenhum tipo de referente; chover não está sendo

atribuído a, mas simplesmente descrito. O Subato de Referência, por sua vez,

ocorre quando o falante tenta evocar um referente, proferindo coisas do tipo:

homem, casa, gato, árvore, entre outras.

As duas categorias possuem modificadores e operadores. Em relação ao

Subato de Atribuição, temos modificadores de função atitudinal (p. ex. bem,

maravilhosamente.), enfática (p. ex. realmente, certamente.) e reportativo (p. ex.

segundo, conforme.) e operadores de função aproximativa (p. ex. tipo) e enfática (p.

ex. completamente). Já em se tratando do Subato de Referência24, têm-se

modificadores de função atitudinal (pobre, pequeno, etc.) e operadores de

24

Embora os encapsuladores representem um Subato de Referência, as entidades que já possuem o estatuto de referentes não podem ser encapsulados, ou porque representam entidades concretas e tangíveis ou porque já representam em si um encapsulamento. Por esse motivo, não nos estenderemos neste tópico.

71

identificabilidade (p. ex. O homem x Um homem) e ênfase (p. ex. vi com meus

próprios olhos).

3.3.2. O Nível Representacional (ou semântico)

Enquanto o Nível Interpessoal espelha a função interpessoal da língua

(Halliday, 1985), o Nível Representacional (NR) trabalha com a função ideacional,

com a manifestação de conteúdos que estejam ligados à experiência que o falante

possui do mundo concreto, real ou de seu universo subjetivo, interior.

O NR lida com os aspectos formais de uma unidade linguística ao refletir seu

papel no estabelecimento de uma relação com o mundo real ou imaginário que ela

descreve e, por essa razão, refere-se à designação e não à evocação (que ocorre

no nível interpessoal). Ele cuida apenas da semântica de uma unidade linguística e,

assim como o Nível Interpessoal, lida com três primitivos: esquemas, lexemas e

operadores primários. Os esquemas indicam que recursos gramaticais estão

disponíveis em cada língua para o estabelecimento de distinções semânticas; por

exemplo, as várias categorias de designação (animado/inanimado), as funções

semânticas (Ator, Paciente, Recipiente, Lugar etc), as oposições de número

(singular, dual, plural e outras). É aqui que se inclui a maioria dos lexemas, inclusive

os advérbios que modificam o conteúdo proposicional (p. ex. obviamente). Os

operadores primários desse nível abrangem a evidencialidade, o tempo absoluto e

relativo, a polaridade etc.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), dado que as unidades no Nível

Representacional são caracterizadas pelo fato de que elas designam, as diferenças

entre as unidades desse nível podem ser estabelecidas em termos de quatro

categorias ontológicas básicas25, ou melhor, semânticas, a saber:

a) entidades de primeira ordem: indivíduos. Eles podem ser localizados no

espaço e podem ser avaliados em termos existenciais.

25

Além dessas categorias semânticas, ainda existe uma outra de quarta ordem, que se refere aos atos de fala que, localizados no tempo e no espaço, são avaliados em termos de condições de felicidade. No entanto, como ela se refere ao Conteúdo Comunicado do Nível Interpessoal, essa categoria não está destacada aqui.

72

b) entidades de segunda ordem: estados-de-coisas. Podem ser localizados

no espaço e no tempo e podem ser avaliados em relação a sua realidade.

c) entidades de terceira ordem: conteúdos proposicionais. São construções

mentais, que não podem ser localizadas nem no espaço nem no tempo, mas que

podem ser avaliadas em termos de verdade.

d) entidades de ordem zero26: propriedades. Não podem ser caracterizadas

por parâmetros de espaço e tempo e não têm existência independente. Só podem

ser avaliadas em termos de sua aplicabilidade a outros tipos de entidade ou à

situação a qual descreve. Para exemplificá-las, Hengeveld e Mackenzie (2008)

recorrem aos exemplos: “verde”, uma propriedade de entidades de primeira ordem,

“recente”, de segunda ordem e “inegável”, de terceira ordem.

Não obstante as categorias semânticas orientem a GDF a propor as unidades

do NR, elas não as definem por completo. A relação hierárquica das unidades do NR

são: conteúdo proposicional (p) > episódio (ep) > estado-de-coisas (e) > propriedade

(f). Além dessas quatro, há a unidade indivíduo (x), que não apresenta relação

hierárquica com propriedades (f)

É importante ressaltar que, apesar de não estar prevista na categoria

ontológica básica, a unidade episódio, que é um encadeamento de estado-de-

coisas, faz parte da constituição básica da cadeia hierárquica da GDF.

Tais propriedades semânticas mediante as quais o Nível Representacional

opera estão hierarquicamente organizadas abaixo:

26 É importante ressaltar que as três primeiras categorias foram tomadas de Lyons (1977 apud HENGEVELD E MACKENZIE, 2008) e somente a última foi elaborada por Hengeveld & Mackenzie (2008).

73

(∏ p1: Conteúdo proposicional

(∏ ep1: Episódio

(∏ e1: Estado de coisas

[(∏ f1: [ Propriedade

(∏ f1: � (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade lexical

(∏ x1: � (x1): [σ (x1)Ф])Ф Indivíduo

...

] (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade

(e1)Ф]: [σ (e1)Ф]) Estado de coisas

(ep1): [[σ (ep1)Ф]) Episódio

(p1): [σ (p1)Ф]) Conteúdo proposicional

Quadro 6 – Categorias do Nível Representacional27

Além dessas categorias básicas, Hengeveld e Mackenzie (2008) investigaram

outras, secundárias, que, muitas vezes, representam argumentos nodais do texto,

como nos casos de clivagem. Elas se subdividem em cinco, a saber: lugar, tempo,

modo, razão e quantidade. Seguem os exemplos extraídos dos autores com a

explicitação de tais categorias, respectivamente (2008, p. 135):

(38) O lugar em que encontrei Sheila foi no parque.

(39) O horário em que encontrei Sheila foi às 3h.

(40) O modo como eu abordei o leão foi com grande precaução.

(41) A razão pela qual eu me casei com ela foi porque ela me faria feliz.

(42) O ritmo com o qual examinei os alunos foi de três a cada hora.

Hengeveld e Mackenzie (2008)

3.3.2.1. As categorias ontológicas básicas

3.3.2.1.1. O Conteúdo Proposicional

Conteúdos Proposicionais são constructos mentais que não existem no espaço

e no tempo, mas somente na mente daqueles que os acolhem. Representam a

27

O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das unidades do Nível Representacional. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.

74

camada mais alta do NR e correlacionam-se, de forma não-marcada, com o Ato

Discursivo, no Nível Interpessoal. Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 144),

podem ser factuais, quando são pedaços de conhecimento ou uma crença acerca do

mundo real, ou não-factuais, quando são desejos ou expectativas com relação a um

mundo imaginário. Além disso, são caracterizados pelo fato de serem qualificados

em termos de suas atitudes proposicionais (certeza, dúvida, descrença) ou em

termos de sua fonte ou origem (conhecimento comum partilhado, evidência

sensorial, inferência).

Como são de natureza proposicional, é importante saber diferenciá-los do

Conteúdo Comunicado, pertencente ao Nível Interpessoal. O Conteúdo

Proposicional está sempre ligado ou à atitude proposicional ou à sua fonte de origem

(como afirmado previamente) e pode ser atribuído a outras pessoas além do falante.

Já o Conteúdo Comunicado é sempre atribuído ao falante e está ligado à

enunciação, isto é, não apresenta avaliação do falante acerca daquilo que se

enuncia.

(43) (A) A mãe de Joana virá para o almoço.

(B) Joana crê que sua mãe virá para o almoço.

Exemplo construído

Acima, entre A e B, tem-se, respectivamente, a presença de Conteúdo

Comunicado e Conteúdo Proposicional. Enquanto em A se presencia uma

proposição assertiva, em B, presencia-se uma predicação de dúvida.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 151), por atitude proposicional

entende-se o grau de comprometimento do falante acerca daquilo que diz, ou seja,

ela sempre apresenta um valor modal. Muitas vezes, essa atitude encontra-se

lexicalizada no texto (como no exemplo acima); noutras, ela é inferencial, baseada

em recursos gramaticais, como ocorre na condicional hipotética abaixo:

(44) If he came, I would leave.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 154)

75

Assim como as categorias do NI, as do NR possuem modificadores e

operadores. Os modificadores do Conteúdo Proposicional são marcados por

expressões que modalizam o grau de comprometimento do falante acerca da

proposição (p. ex. provavelmente, certamente, evidendemente) e os operadores são

marcados por funções gramaticais que tenham o mesmo efeito (veja o exemplo

acima, em que o modal If expressa hipótese).

3.3.2.1.2. O Episódio

O Episódio é composto por um ou mais Estados-de-coisas numa sequência

coerente, onde consta unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes.

Correlaciona-se, de forma não-marcada, com a categoria Move do Nível

Interpessoal quando composto por tipo narrativo, em geral constituindo uma série de

eventos apresentados em ordem cronológica, que não envolve nenhuma mudança

de cena. Inclusive, para Hengeveld & Mackenzie (2008, p. 160) Episódio é sinônimo

de “partes coerentes de um discurso narrativo”. Veja um exemplo:

(45) [...] Badii viaja por uma região desértica, com seu carro ai encontrando as pessoas a

quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra

resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter

sagrado, etc. [...]

Crítica 27 � Essência escapa em “O Gosto da Cereja”

Folha de São Paulo, 16/11/08

Acima, todos os Estados-de-coisas se referem ao mesmo indivíduo, Badii, e

marcam desenvolvimento cronológico.

Entretanto, é importante ressaltar que existem textos de tipo narrativo que não

possuem uma sequência narrativa prototípica, como se pode ver no gênero textual

receita, onde as sequências injuntivas presentes nos passos a serem seguidos

possuem unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes. Dessa forma,

nesses gêneros, a categoria Episódio também está presente:

76

(46) [...] Peneire a farinha de trigo, o chocolate em pó e o fermento. Reserve. Bata as

claras em neve, junte as gemas peneiradas. Sem parar de bater, junte aos poucos o

açúcar. Com a batedeira desligada, junte aos poucos a mistura reservada [...]

Bolo trufado de brigadeiro branco e preto

http://tudogostoso.uol.com.br/receita/80060-bolo-trufado-de-brigadeiro-branco-e-

preto.html

Os Modificadores de Episódio são representados por marcadores de tempo

absoluto (p. ex. ontem, hoje, amanhã.) e os operadores, pelo uso continuado das

mesmas desinências verbais de tempo e de modo e de número e pessoa. Inclusive,

são os operadores que garantem a unidade da categoria e sua mudança implica o

início de um novo Episódio.

3.3.2.1.3. Estados-de-coisas (ou eventos)

Estados-de-coisas são entidades que podem ser localizadas no tempo relativo

e podem ser avaliadas em termos de sua realidade. Correlacionam-se, de forma

não-marcada ao Conteúdo Comunicado, no Nível Interpessoal. São caracterizados

por uma ou mais propriedades, que, por sua vez, podem conter descrições de

indivíduos e outras propriedades. De acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008, p.

171), o que permite distinguir Episódio e Estado-de-coisas é o fato de a categoria

Episódio admitir, por exemplo, modificadores de tempo absoluto (como ontem, hoje,

amanhã, etc.), e a categoria Estado-de-coisas admitir modificadores de tempo

relativo (como depois do almoço, em duas horas, etc), não sendo necessário que a

localização no tempo e no espaço ocorra com base em um tempo/lugar absoluto.

Veja o exemplo a seguir, em que o modificador temporal alguns segundos depois

restringe-se apenas ao predicado matriz.

(47) [...] A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da

Guerra Fria é que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a

liberdade; ALGUNS SEGUNDOS DEPOIS descobrimos que a liberdade consiste em

escolher uma operadora de telefone, ou de escolher certa marca de cerveja.[...]

Crítica 22 � Em “Bourne”, Estado suprime liberdade.

Folha de São Paulo, 05/10/08

77

Os modificadores dos estados-de-coisas são as expressões lexicais que

marcam o tempo relativo, o lugar e a frequência de ocorrência; a realidade; o cenário

físico e cognitivo do estado-de-coisas. Veja os exemplos (idem, ibidem).

(48) Sheila works in London (Location)

Sheila went out before dinner (Relative time)

Sheila goes to London Frequently (Frequency)

Sheila is actually a guy. (Reality)

Sheila fell ill because of the heavy rainfall (Cause)

Sheila stayed home so that she could watch television (Purpose)

Já os operadores são os termos gramaticais que marcam o lugar, tempo

relativo, modalidade orientada para o evento, percepção de evento, polaridade e

quantificação. Veja os exemplos transcritos abaixo (HENGEVELD & MACKENZIE,

2008, p. 172, 173, 175, 177, 179 e 180)

(49) Jan is away fishing (Location)

Tomorrow, at three they will have entered (Relative tense)

Together, we will go over there (Event-oriented modality)

Sheila saw Peter had left. (Event perception)

He is not a king (Polarity)

I used to come (quantification)

3.3.2.1.4. As Propriedades

As Propriedades são entidades de ordem zero, que não podem ser

caracterizadas por parâmetros de espaço e tempo e não têm existência

independente. Só podem ser avaliadas em termos de sua aplicabilidade a outros

tipos de entidade ou situação a qual descreve. Correlacionam-se, de forma não-

marcada, com o Subato de Atribuição, no Nível Interpessoal. Subdividem-se em dois

tipos: Propriedades Configuracionais e Propriedades Lexicais (ou apenas

propriedades). As primeiras representam o inventário dos esquemas de predicação

relevantes para uma língua, prevendo questões de valência, função semântica e

78

grau de definitude dos argumentos, etc28. As últimas referem-se a partes do

discurso, podendo modificar entidades de todas as ordens, como se vê abaixo:

(50) A highly intelligent man.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p.215)

Acima, highly é uma propriedade de entidade de ordem zero e intelligent, de

primeira ordem. Abaixo, continuosly marca entidade de segunda e strongly, de

terceira ordem.

(51) He stares continuously.

She strongly believes that.

Hengeveld e Mackenzie (2008, 214)

Os modificadores e operadores das Propriedades funcionam como

Propriedades de Propriedades, isto é, designam entidades de ordem zero (como no

exemplo acima – highly intelligent). Nos exemplos abaixo, tem-se um modificador e

um operador, respectivamente.

(52) [...] Zuzu aparece aqui como personagem ISOLADO em seu heroísmo [...]

Crítica 25 � Rezende faz valer a individualidade

Folha de São Paulo, 23/11/08

(53) [...] mais familiar, o GORDINHO urso Po quer ser um grande mestre do Kung Fu,

embora esse “excesso de gostosura” pareça um empecilho bem, digamos, polpudo. [...]

Crítica 38 � “Wall-E” se destaca entre lançamentos de animação

Folha de São Paulo, 21/12/08

Nos exemplos acima, personagem é uma propriedade de primeira ordem

(designa o indivíduo Zuzu) modificada por outra propriedade (isolado). Por sua vez,

28

Neste trabalho, não trataremos das Propriedades Configuracionais, uma vez que elas não colaboram para a análise de nossos dados.

79

gordo, uma propriedade do indivíduo urso, possui um operador formado por sufixo

diminutivo que lhe atribui intensidade.

3.3.2.1.5. Os Indivíduos

Indivíduos designam entidades de primeira ordem, concretas e tangíveis. Além

disso, existem por si sós e podem ser localizados no espaço. Correlacionam-se, de

forma não-marcada, com o Subato de Referência, no Nível Interpessoal (NI). Eles se

diferem do Subato de Referência por não evocarem referentes, mas, sim,

designarem-nos através de processos de retomada e remissão (anáforas, catáforas,

expressões dêiticas), sejam eles explícitos ou não.

No exemplo a seguir, tem-se o Subato de Referência O robô Wall-E sendo

retomado várias vezes por anáforas lexicais e por elipse. Em cada uma dessas

retomadas, tem-se um Indivíduo marcado.

(54) O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas.

Afinal, elas sobrevivem a tudo. Ø Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há

toneladas de sucata por toda parte. Enquanto isso, Ø junta de caixinhas a parte de robôs

como ele. Wall-E enxerga beleza onde só há lixo.

Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que

Ø se apaixona pela evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado

aparece no seu mundo e o domina completamente.

A nostalgia que permeava toda a sua existência dá lugar à onipresença de

Eva. Tudo em nome do amor, embora fora de sintonia. Afinal, ela tem uma missão:

encontrar registro de vida na Terra para que a humanidade, reclusa no espaço, possa

retornar ao planeta.[...]

Crítica 38 – “Wall-E” se destaca entre lançamentos de animação

Folha de São Paulo, 21/12/08

80

Os modificadores de Indivíduos podem expressar qualificação (p. ex. ele era

rico), quantificação (p. ex. eles eram muitos), localidade (p. ex. o homem na lua) ou

tempo (p. ex. os artistas de hoje). Os operadores refletem os mesmos aspectos. Os

exemplos seguem na mesma ordem: homenzarrão, meninada, portaria,

antevéspera.

3.3.2.2. As categorias secundárias

3.3.2.2.1. Lugar

Ao lado dos Indivíduos, que são entidades concretas e tangíveis, as línguas

também reconhecem a classe Lugar. No Componente Conceitual, deve-se supor

que a conceituação dos indivíduos (como cobertor, rocha ou Martin Luther King)

difere da conceituação de locais (como Norte, Atlanta ou Georgia), muito embora

tais nomes possam representar ora uma categoria ora outra. Para exemplificação,

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 248) pedem que se considere o exemplo “casa”:

para um potencial comprador, a casa pode ser concebida como um Lugar, um local

para viver. Em contrapartida, para um agente imobiliário, a casa será conceituada,

acima de tudo, como um Indivíduo, uma mercadoria a ser vendida. Inclusive, em

inglês, existe um nome para cada caso: home e house, respectivamente.

Para os autores (ibidem), essa distinção se encontra refletida nas funções que

essas palavras ocupam. House, na maior parte das vezes, ocupa um sintagma

nominal e home, um adverbial. Veja o exemplo abaixo, em que, com um mesmo

nome, grifa-se um Lugar e um Indivíduo, respectivamente:

(55) [...] Logo no início da primeira temporada, que estreou em fevereiro NOS EUA, uma

inimiga de Wendy arrisca sua carreira espalhando na mídia suas falahs como mãe. [...]

Crítica 03 – Versão “envelhecida” de “Sex” é mais do mesmo

Folha de São Paulo, 24/08/08

81

(56) [...] Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos

(os EUA colonizaram culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão

que pai de sua filha é que terá de salvar alguns tantos. [...]

Crítica 42 – Rigoroso, “O Hospedeiro” é falso trash

Folha de São Paulo, 04/01/09

A modificação de unidades semânticas com a designação de lugar é possível

em dois pontos. No primeiro, o modificador afeta apenas o núcleo (p. ex. estrada

principal). No segundo, ele afeta toda a unidade semântica (p. ex. perigosamente

perto dos espectadores).

Os operadores da categoria abrangem questões como graus de distância,

visibilidade e características proeminentes do ambiente físico (p. ex. eu vi isso lá).

3.3.2.2.2. Tempo

As línguas especializaram expressões para a designação das categorias de

tempo. Algumas estão ligadas à interpretação contextual do momento da fala (hoje,

próximo ano), outras estabelecem posições relativas na escala de tempo (antes de

sexta), enquanto há aquelas que se referem a um calendário socialmente

estabelecido (Páscoa, Natal).

Independentemente da escala temporal que se utiliza, o tempo é sempre uma

construção espacial imaginária, que pode ser representada por proformas (p. ex. ela

me cumprimentou na hora em que cheguei), dêiticos (p. ex. Termine agora!),

advérbios interrogativos (p. ex. quando ela virá?) ou advérbios que representem

estado-de-coisas de valor temporal (p. ex. Gostei quando me disse aquilo).

Os modificadores de Tempo funcionam assim como os de lugar: ou afetam

apenas o núcleo (p. ex. noite passada) ou afetam toda a unidade semântica (p. ex.

aqueles velhos tempos). Os operadores podem ter função de localização (p. ex. Esta

terça) ou quantificação (p. ex. a todo momento).

82

3.3.2.2.3. Modo

Designa o modo pelo qual um estado-de-coisas é desenvolvido. Em outras

palavras, assim como as línguas nos permitem falar sobre o “onde” e o “quando”,

também nos permitem tratar do “modo”. Por essa razão, a GDF reconhece a variável

Modo para os casos em que as línguas apresentam expressões para sua

designação.

(57) [...] Assim como certos preconceitos se escondem METICULOSAMENTE,

“Imitação” é um grande filme, dos maiores, escondido sob a pele do melodrama por este

cineasta tão independente que, após este filme, quando o vento batia só a seu favor em

Hollywood, fez as malas e voltou para a Alemanha.

Crítica 10 – Racismo é tema de aparente melodrama.

Folha de São Paulo, 14/09/08

Os modificadores de Modo ou afetam apenas o núcleo (p. ex. muito

cuidadosamente) ou toda a unidade semântica (p. ex. abriu com um novo método).

Os operadores de Modo são de localização (p. ex. desse modo) e de quantificação

(p. ex. o público reagiu de várias maneiras diferentes).

3.3.2.2.4. Razão

Funcionam à mesma maneira que a categoria de Modo, mas designando a

Razão de um Estado-de-coisas. Assim sendo, a categoria pode ser considerada um

tipo especial de Conteúdo Proposicional, uma vez que ela representa os

pensamentos que levam um falante a agir de determinada forma.

(58)[...] Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner � no

filme, mãe e filha �, não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um

filme sobre negros, sobre ser negro num momento anterior à conquista da igualdade de

direitos.

POR ISSO, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah

Jane, já expressa essa revolta, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua

cor como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em

sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]

83

Crítica 10 – Racismo é tema de aparente melodrama

Folha de São Paulo, 14/09/08

Uma vez que a Razão possui uma natureza proposicional, concebe-se como

seus modificadores os termos que indicam atitude proposicional (p. ex. Ele saiu

porque, aparentemente, sua mãe está doente). Já os operadores são de natureza

quantitativa (p. ex. Há três razões).

3.3.2.2.5. Quantidade

As línguas permitem uma designação para as quantidades. O termo

Quantidade é projetado para abranger tanto fenômenos contáveis quanto

incontáveis. Inclusive, as palavras “quantidade” e “número” são núcleos típicos da

designação quantitativa.

(59) [...] No entanto, a história parece se esvair, esvaziada, ao longo do filme. Tudo

começa na Cinemateca Francesa e segue para a revolta da Cinemateca (que grande

QUANTIDADE de cinéfilos considera o início de maio de 68).[...]

Crítica 23 – Bertolucci converte história em cinema.

Folha de São Paulo, 30/11/08

A categoria Quantidade pode ser modificada lexicalmente da mesma forma

que as outras categorias semânticas (p. ex. uma generosa dose de molho) e possuir

operadores de localização (p. ex. aquela quantia ali) e de quantificação (três litros de

leite).

3.3.2.3. Língua Reflexiva

Até agora, tratou-se de todas as categorias semânticas que pertencem ao Nível

Representacional (NR). Entretanto, quando se fala sobre algo, não se trata

necessariamente de um evento narrado. Também se pode falar sobre o evento

discursivo em si e seus produtos.

84

Dessa perspectiva, surge a categoria Língua Reflexiva, de função

metalinguística, isto é, que trata da mensagem sobre o código. Hengeveld e

Mackenzie (2008, p 275) destaca-a das outras do Nível Representacional por ser a

única categoria de função textual (Halliday, 1985), e não Ideacional, como as outras

categorias do Nível Representacional. Abaixo, marca-se um exemplo da categoria,

em que o sintagma a explicação apresenta função metalinguística:

(60) O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência

mesmo de "O Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O

filme nos mostra a trajetória de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que

busca alguém para se ocupar de seu corpo após a morte.

Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas

a quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra

resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter

sagrado etc. Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a

convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem

deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria

homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo

o suicídio).

A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no

filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que

preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não

porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente

o que dele recebemos. Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que

retiramos da imagem é o que lhe damos.

Crítica/”Essência escapa em ‘O Gosto da Cereja’”

Folha de São Paulo, 16/11/08

85

CAPÍTULO IV

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo, caracteriza-se o corpus da pesquisa e apresentam-se os

procedimentos de análise por meio da interface GDF e referenciação. Para tanto, o

capítulo está dividido em duas partes. Na primeira seção, faz-se uma explanação sobre

o gênero textual analisado, a fonte de pesquisa dos encapsulamentos levantados; na

segunda, apresentam-se as possibilidades de categorização dos encapsulamentos

mediante os paradigmas da GDF.

4.1. CARACTERIZAÇÃO DO CORPUS

O corpus utilizado neste trabalho constitui-se de oitenta e oito críticas de

cinema e televisão, todas extraídas da Folha de São Paulo online, referentes ao

período de agosto de 2008 a janeiro de 2010. Pode-se dizer que tal gênero foi

escolhido pelo fato de representar textos em que sequências descritivas, narrativas

e argumentativas se mesclam, o que favorece estratégias mais variadas de

remissão. Portanto, a investigação fez uso de tal gênero do discurso apenas para a

análise dos encapsulamentos, e não para sua caracterização.

Quanto aos aspectos gerais do gênero discursivo, a crítica se caracteriza por

pertencer à esfera jornalística e por ter uma função de comentário sobre

determinado tema, geralmente na esfera artística ou cultural, com o propósito de

informar o leitor sob uma perspectiva não só descritiva, mas também avaliativa.

Segundo Horkheimer (2003), a crítica é feita pelo crítico, jornalista ou

profissional especializado na área, que entra em contato com o produto a ser

criticado e redige matérias ou artigos apresentando uma valoração do objeto

analisado. Em geral, o crítico não pode apresentar uma avaliação puramente

86

subjetiva, mas também deve apresentar descrição de aspectos objetivos que dêem

sustentação a seus argumentos.

No que tange especificamente às críticas de cinema e TV, elas são, na

maioria das vezes, pautadas na interação entre o conteúdo e realidade social em

que estamos inseridos e definem-se pelo objetivo de recomendar, ou não, os

programas, séries, desenhos animados ou filmes sobre os quais discursam. Quanto

à extensão, são bem variadas. Há, em nosso corpus, críticas de extensão de dois

parágrafos (meia página) e outras que chegam a duas páginas.

4.2. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

No intuito de propor um tratamento da referenciação sob a perspectiva da

GDF, nossa pesquisa atendeu ao seguinte esquema:

4.2.1. Estudo dos rótulos metalinguísticos propostos por Francis (1994,

2003) e do Nível Representacional da GDF

As nossas hipóteses sobre uma possível interface entre referenciação e GDF

advieram de dois fatos: primeiro, de estarem ancoradas na mesma perspectiva

linguística � a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday (1985); segundo, de

Hengeveld e Mackenzie (2008) confirmarem a possibilidade do estudo da anáfora

nos diferentes níveis da GDF.

Dessa forma, através de um estudo teórico aprofundado tanto dos rótulos

metalinguísticos (Francis, 1994, 2003) quanto das categorias constituintes do Nível

Representacional (Hengeveld e Mackenzie, 2008), percebe-se que as mesmas

metafunções discursivas eram levadas em consideração � a ideacional e a textual �,

o que nos fez pensar em uma provável correspondência.

No entanto, tal expectativa não se confirmou plenamente. Para Francis (1994,

2003), os rótulos podem apresentar tanto metafunção interpessoal (rótulos de

conteúdo) quanto ideacional e textual (rótulos metalinguísticos). Já para a nossa

perspectiva, embora existam encapsuladores que façam remissão a elementos de

Nível Interpessoal e outros, a de Nível Ideacional e Textual, defende-se que não há

encapsulamentos interpessoais. Para a teoria em estudo, a metafunção interpessoal

87

(NI) envolve a evocação de referentes, enquanto a ideacional e a textual (NR), a

designação. Portanto, uma vez que os encapsulamentos representam a remissão a

segmentos já evocados, eles apenas designam ou apontam segmentos prévios do

texto.

4.2.2. Levantamento de dados no corpus

O segundo passo de nossa pesquisa foi levantar todos os encapsulamentos no

corpus. Tal procedimento teve como objetivo nos fazer ver quais desses fenômenos

capturavam o NR e quais categorias semânticas permitiam a manifestação de

encapsulamentos. Ao todo, catalogaram-se 104 encapsulamentos, sendo 13 de

Conteúdos Proposicionais, 36 de Episódios, 20 de Estado-de-coisas, 12 Atribuidores

de Propriedades, 08 de Modo, 06 de Razão, 05 de Quantidade e 14

metalinguísticos. Defende-se que a maior freqüência de Encapsuladores de

Episódios se deve ao fato da remissão ao trecho narrativo nas sequências

argumentativas.

4.2.3. Elaboração de metodologia de análise dos encapsuladores do

Nível Representacional

Para a elaboração de nossa metodologia, baseamo-nos: em quatro das cinco

categorias primárias do Nível Representacional (Conteúdo Proposicional, Episódio,

Estado-de-Coisas e Propriedades), em três das cinco categorias secundárias (modo,

razão e quantidade) e na categoria língua reflexiva (de metafunção textual). Tal

elaboração teve como aporte as propriedades previstas em cada uma dessas

categorias e sua análise foi de cunho qualitativo, tendo como objetivo principal a

descrição interpretativa das ocorrências encontradas.

Os motivos que nos levaram à não-consideração de três dessas onze

categorias (indivíduo, lugar e tempo) foram os seguintes: a) Os indivíduos já

possuem o estatuto de referentes, são entidades concretas e tangíveis, portanto,

não podem ser encapsulados; b) lugar e tempo relativos não são encapsulados

sozinhos, mas, sim, juntos dos Estados-de-coisas expressos no segmento de texto a

que fazem remissão e, por esse motivo, pertencem à categoria Episódio, como se

verá na análise dos dados.

88

Em linhas gerais, constatou-se que existem oito categorias semânticas que

permitem encapsulamento, em vez de quatro (propostas por Francis), a saber:

Encapsuladores semânticos básicos, que se subdividem em:

1) De Conteúdos Proposicionais29;

2) De Episódios;

3) De Estados-de-coisas;

4) De Propriedades.

Encapsuladores semânticos secundários, que se subdividem em:

5) Encapsuladores de Modo;

6) Encapsuladores de Razão;

7) Encapsuladores de Quantidade.

Encapsuladores metalinguísticos

29

Os encapsuladores de Conteúdo Proposicional compreendem os rótulos de processo mental previstos por Francis (1994, 2003) e os de atividades linguageiras e nomes de textos, aos dois rótulos de mesmo nome previstos pela autora. Só não há, sob o prisma da GDF, equivalência quanto aos rótulos ilocucionários, pois as ilocuções pertencem ao Nível Interpessoal para a teoria em análise.

89

CAPÍTULO V

A ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, exemplificam-se os encapsuladores semânticos levantados no

corpus, abordam-se as contribuições da pesquisa para os estudos da referenciação e

sugerem-se perspectivas futuras de análise. Para tanto, este capítulo está dividido em

seis partes. Na primeira seção, faz-se uma breve introdução, onde há considerações

gerais sobre a análise dos dados; na segunda, terceira e quarta seções, trata-se dos

encapsuladores de categorias semânticas primárias, secundárias e de língua reflexiva,

respectivamente; Na quinta,das contribuições da pesquisa; Na sexta, das perspectivas

futuras.

5.1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve como objetivo a ampliação e análise dos rótulos de

metafunção ideacional e textual propostos por Francis (1994, 2003), somando à

essa categoria os encapsuladores de núcleos não-substantivos e submetendo-a às

classes constituintes do Nível Representacional da GDF. O aumento do escopo

levou-nos à análise de uma classe geral de encapsulamentos, e não só a de

processos de rotulação. Concomitantemente, a opção pelo estudo do fenômeno sob

o prisma de uma nova teoria guiou-nos a novas perspectivas e classificações.

Apesar da mudança paradigmática, ratificam-se as análises feitas por Francis

(1994, 2003) acerca da posição dos rótulos (retrospectivos, prospectivos,

retrospectivos/prospectivos), da configuração (avaliativa e não-avaliativa) e da

função (interpessoal de um lado ou ideacional e textual de outro). No entanto, têm-

se duas ressalvas sobre os estudos da autora em relação a nossa pesquisa: 1) A

configuração axiológica e não-axiológica de um rótulo não se dá de maneira

localista, isto é, apenas no interior do fenômeno, e de maneira binária. No nosso

90

gênero em análise, em que, declaradamente, deve-se fazer uma valoração do tópico

discursivo, encontram-se encapsuladores não-axiológicos aos quais, através de

predicações, atribuíam-se propriedades avaliativas e encontram-se encapsuladores

cuja configuração não é claramente definida, como ocorre abaixo, em que o

encapsulador essa convocação, em nossa perspectiva, tem um baixo grau de

avaliação:

(16) Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de

maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro

da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes

sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim

Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO. Por outro lado, é uma reflexão ousada e

dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em tempos de transformação

política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão fartamente dos

poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento

brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no

enforcamento de Tiradentes (interpretado por José Wilker).[...]

Crítica 13 � “Cineasta revisita Inconfidência com ironia”

Folha de São Paulo, 07/09/08

2) Os rótulos/encapsulamentos em si são apenas ideacionais ou textuais

(semânticos), embora existam aqueles que fazem remissão a conteúdos do Nível

Interpessoal. Tal ponto de vista nos leva a repensar a abordagem de Francis (1994,

2003) ao considerar os nomes ilocucionários como rótulos metalinguísticos. Embora

se compreenda a abordagem da autora, uma vez que se decidiu analisar apenas os

encapsulamentos que fazem remissão a conteúdos do NR, teve-se de retirar os

nomes ilocucionários da análise, pois eles pertencem ao Nível Interpessoal da GDF.

Em nossa abordagem, quanto à função, os encapsuladores do NR foram

classificados do seguinte modo:

91

Quadro 7 – encapsuladores do Nível Representacional

5.2. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS BÁSICOS

Consideram-se encapsuladores semânticos básicos aqueles que fazem

remissão a entidades de zero, segunda e terceira ordens30, desde que esses

conteúdos sejam representados por predicações ou segmentos maiores de texto, e

não por sintagmas nominais. Neste último caso, os conteúdos já possuem estatuto

de referentes.

30

Como apontado no tópico 4.2.3. do capítulo IV, os indivíduos – entidades de primeira ordem – não podem ser encapsulados, uma vez que sempre possuem o estatuto de referentes. Paralelamente, excetuam-se da análise os atos ilocucionários – entidades de quarta ordem –, já que pertencem ao Nível Interpessoal, conforme citado na nota 25, página 71, capítulo III.

Encapsuladores semânticos secundários

Encapsuladores semânticos básicos

Estado-de-coisas Conteúdos Proposicionais

Indivíduos

Propriedades

Episódios

Modo

Razão

Encapsuladores metalinguísticos

Quantidade Lugar

Tempo

92

5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional

São aqueles que capturam (ou inferem) seja a própria atitude proposicional

expressa (certeza, dúvida, descrença), seja a sua origem (conhecimento comum

partilhado, evidência sensorial, inferência) em uma predicação ou segmento maior

de texto.

Apresentam correspondência com os rótulos de processo mental propostos

por Francis (1994, 2003) e costumam ter como núcleos nomes que são usados para

projetar pensamentos e ideias ou o seu resultado (FRANCIS, 2003, p. 208), tais

como:

análise, atitude, atribuição, conceito, conhecimento, convicção, crença, descoberta,

doutrina, dúvida, filosofia, fundamento lógico, hipótese, idéia, insight, interpretação,

leitura, modo de pensar, noção, noção falsa, opinião, pensamento, ponto de vista,

posição, princípios, suspeita, teoria.

Seguem, aqui, quatro exemplos em que se marcam dois encapsulamentos de

cada tipo.

Em (62), o encapsulador prospectivo dúvida faz remissão à atitude

proposicional expressa pela predicação teria sido ela, de fato, raptada?, em que o

emprego verbal do futuro do pretérito sugere a própria dúvida. Já em (63), o

encapsulador retrospectivo uma constatação faz remissão à atitude proposicional

do segmento sublinhado e tem o estatuto de inferível, pois não há marcas, no trecho

encapsulado, de que se trata de uma certeza percebida, muito embora o segmento

seja assertivo.

(62) [...] De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um

grupo de aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que

raptou sua mulher (Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é

interessante e tensa. Mas existe, sobretudo, A DÚVIDA: teria sido ela, de fato, raptada?

Entramos num terreno muito frequentado por Brooks: o da liberdade feminina.[...]

Crítica 33 � Faroeste aborda liberdade feminina

Folha de São Paulo, 02/11/08

93

(63) [...]A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.

Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente

esmagados pelo sistema. É UMA CONSTATAÇÃO, então, que ultrapassa o físico para

chegar a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que

é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".[...]

Crítica 07 � Verhoeven retrata faroeste amoral

Folha de São Paulo, 03/08/08

Em (64) e (65), os encapsuladores retrospectivos dessas idéias e essa

atitude inferem os processos cognitivos expressos nos segmentos a que remetem.

(64) [...] Encenações convivem com entrevistas e material de arquivo.

Há um pouco de humor forçado, como se a todo momento fosse necessário recorrer a

coisas "espertas" e a mais infeliz DESSAS IDÉIAS talvez seja um trio de supostos

telespectadores sedentários e imbecilizados. [...]

Crítica 12 � Série lança armadilhas no próprio caminho

Folha de São Paulo, 14/09/08

(65) [...] O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não

recomendado a menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou

"certo é errado". Vale, primeiro, do ponto de vista do enredo, em que um famoso

jornalista de TV (Sean Connery), com ligações importantes no Oriente Médio, se vê a

horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual não tem a menor

influência.

A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que

as jogariam em Israel. Ele tomaria ESSA ATITUDE como represália ao presidente dos

EUA, que deseja tirá-lo do poder.[...]

Crítica 36 � Brooks fez belo exercício de antecipação

Folha de São Paulo, 21/12/08

Francis (2003, p. 205) enfatiza que a seleção de um nome particular como

rótulo para a proposição de alguém não reflete, necessariamente, sua intenção

94

original. O falante poderia remeter-se a um trecho de relato, por exemplo,

categorizando-o como atitude, análise, hipótese, muito embora ele não seja o

enunciador de tal segmento.

5.2.2. Encapsuladores de Episódio

São aqueles que fazem remissão a um Episódio, isto é, a uma sequência

coerente de texto, onde há unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes.

(66) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony

estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-

mulher � o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que

nível estamos, se no da vida ou no da representação.

Embora ESSES MOMENTOS sejam intensos, o fato é que, até a cena de

assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua

maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson

Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu

com a sensibilidade que se conhece. [...]

Crítica 26 � Filme de Cukor aproxima a vida e o palco

Folha de São Paulo, 23/11/08

(67) [...]E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a

do cinema de gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título,

inclusive, é um CGI confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo

bonito na indústria, Bong faz de seu filme algo extremamente político.

Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos

(os EUA colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão

que pai de sua filha e que terá de salvar alguns tantos.

NESSE CLIMA UM TANTO TRESLOUCADO, há espaço também para o terror,

até o desfecho que emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV

brasileira exibia nos anos 70. Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.

Crítica 42 � Rigoroso, "O Hospedeiro" é falso trash

Folha de São Paulo, 04/01/09

95

Acima, os exemplos (66) e (67) encapsulam os episódios expressos pelos

segmentos destacados, transformando-os em tópico discursivo. Tais tipos de

encapsuladores são muito frequentes em nosso corpus, sobretudo nos parágrafos

que marcam a transição narração-argumentação. Acredita-se que tal recurso de

remissão seja favorável ao próprio gênero discursivo em análise, uma vez que um

enredo ou parte de enredo torna-se produto a ser avaliado.

Existem nomes típicos que costumam representar núcleos de encapsuladores

de episódio, tais como: acontecimento, aventura, cena, conto, encenação, enredo,

episódio, história, incidente, momento, narração, narrativa, ocorrido, relato. No

entanto, além dos nomes, encontram-se elementos de núcleos adverbiais que,

embora representados por advérbios de lugar ou de tempo, capturam os estados-de-

coisas, o tempo, o lugar e os participantes expressos no episódico, como se vê a

seguir:

(68) [...] Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da

doméstica paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm

planos de morar juntas perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e

põe Lala numa viagem de descoberta ao país vizinho.

É AQUI que surge o momento fantástico, quando Lala encontra um dos

segredos de sua amada, numa cena subaquática realizada com efeitos especiais. A

diretora admite que, na mistura de gêneros, foi complicado deixar a sala de edição.[...]

Crítica 73 � Argentina narra fantasia de casal gay

Folha de São Paulo, 01/11/09

(69) [...]Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior,

uma nova aposta foi feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball),

os episódios continuaram a exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar

num dos leitos do Princeton Plainsboro Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma

clínico passou a causar um impacto mais significativo nos relacionamentos entre os

personagens.

A série, ENTÃO, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade

entre capítulos e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no

final da quarta temporada, quando House não consegue salvar da morte a namorada do

melhor amigo, o oncologista Wilson (Robert Sean Leonard). [...]

96

Crítica 09 � "House" luta para não virar "one-man-show"

Folha de São Paulo, 28/09/08

Em (68) e (69), aqui e então encapsulam as sequências narrativas

destacadas. No início de nossa pesquisa, tinha-se a hipótese de que esses

elementos representariam encapsuladores de lugar e tempo relativos,

respectivamente. Por relativos, quer-se dizer que a referência corresponde a um

lugar abstrato ou a um tempo psicológico � isto é, construído no discurso �, em cuja

remissão estaria sempre envolvido um ou mais Estados-de-coisas. Contudo,

percebeu-se que o recorte feito por tais categorias remetia a todo o episódio. Foi em

função dessa constatação que se deixou de incluir, no grupo dos encapsulamentos

semânticos secundários, as categorias Tempo e Lugar.

5.2.3. Encapsuladores de Estados-de-Coisas

São aqueles que fazem remissão a um Estado-de-coisas previamente citado

no texto, desde que o mesmo já não possua o estatuto de referente, isto é, não seja

uma nominalização de verbo. Abaixo, destaca-se o encapsulador essa última

circunstância, em que a predicação “ser amada” transforma-se em tópico

discursivo.

(70) [...] Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de

Alzheimer. O roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no

que tem de particular ou de geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de

modo que não devemos estabelecer uma relação obrigatória entre idade e doença). É

culta, casada há muitos anos, ama e é amada.

ESSA ÚLTIMA CIRCUNSTÂNCIA é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma

"love story" para ser engolida pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a

saber: a perda progressiva de memória.[...]

"Longe Dela" cativa pela sensibilidade

Folha de São Paulo, 12/10/08

Uma vez que os Estados-de-coisas estão diretamente relacionados aos

processos, isto é, aos elementos responsáveis por codificar ações, eventos,

97

estabelecer relações, construir o dizer e o existir (HALLIDAY 1985 apud CUNHA e

SOUZA, 2007, p.54), eles serão, muitas vezes, encapsulados por uma

nominalização31, muito embora nem sempre esse processo seja feito por uma

palavra cognata, tal como ocorre nos exemplos a seguir em que essa convocação

representa uma nominalização que remete ao segmento que tem como base a

forma verbal conclamara e desse ardiloso embaralhamento, que tem como base

a forma verbal misturando:

(71) [...] Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de

maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro

da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes

sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim

Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO.[..]

Crítica 13 � Cineasta revisita Inconfidência com ironia

Folha de São Paulo, 07/09/08

(72) [...] O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta

convidava mulheres a falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se

apresentaram, 23 foram selecionadas e filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce

Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus entrevistados como "personagens", em

"Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso, misturando depoimentos de

mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas

por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão, Fernanda

Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.

O efeito DESSE ARDILOSO EMBARALHAMENTO é deixar o espectador sem chão, em

dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,

afinal, viveu o quê. [...]

Crítica 41 � Coutinho deixa o espectador sem chão

Folha de São Paulo, 07/12/08

31

Durante a análise, chegamos a especular que a nominalização seria um encapsulador de Propriedades. No entanto, embora a nominalização tenha como base o verbo de um predicado, remete-se a todo o Estado-de-coisas. Por isso, foi categorizada como um encapsulador desta categoria.

98

Não obstante, em nosso corpus, foram bastante frequentes os casos em que

houve remissão a Estado-de-coisas por encapsulamento por demonstrativo, de

função endofórica. Acredita-se que tal aspecto se deve ao fato de que alguns

Estados-de-coisas representem, na maioria das vezes, o foco comunicativo e, por

serem a informação mais saliente na memória do falante, este recorre ao pronome

demonstrativo32 apenas, transformando o Estado-de-coisas em tópico. Inclusive,

como defende Levinson (1991 apud NEVES 2006, p. 93), o falante preferirá, sempre

que possível, zero a pronome, e pronome a sintagma nominal pleno (grifo meu).

Abaixo, seguem dois exemplos, em que isso encapsula Estados-de-coisas:

(73) [...] Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que

seriam os bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um

episódio da série, que foi de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de

criatividade de um formato -a sitcom, com três câmeras e riso da plateia- inventado nos

anos 50 e que dura até hoje. Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não

será de verdade. É o que a tribo de espectadores vem descobrindo a cada semana. Por

exemplo, nos quatro episódios exibidos até agora, os quatro atores de "Seinfeld" só

aparecem em um -nos outros, são só mencionados, aparecem em pequenas cenas ou

nem ISSO.[...]

Crítica 68 � Elenco de "Seinfeld" está de volta (mas não muito)

Folha de São Paulo, 18/11/09

(74) Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas

jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos

que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes

sociais distintas. Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da

diretora argentina Lucía Puenzo, "XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano

passado e premiado em festivais mundo afora (como em Cannes), sobre os conflitos de

jovem hermafrodita.

32

Uma observação importante: em todo nosso corpus, apenas a categoria Estado-de-coisas foi encapsulada por sintagmas exclusivamente demonstrativos. Nas categorias semânticas secundárias, como veremos a seguir, embora os núcleos das categorias Modo, Razão e Quantidade possam ser pronomes demonstrativos, eles se encontram sempre em uma locução prepositiva ou conjuntiva.

99

"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que ISSO não

era importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam

viver o romance de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz

Puenzo, 32, à Folha, por telefone.[...]

Crítica 73 � Argentina narra fantasia de casal gay

Folha de São Paulo, 01/11/09

5.2.4. Encapsulamentos Atribuidores de Propriedades

Tais encapsuladores mostram-se bem diferentes das categorias até aqui

apresentadas. Na verdade, eles não encapsulam uma propriedade, mas um Estado-

de-coisas ou, até mesmo, todo um Episódio, mas lhe atribui uma propriedade.

A princípio, suspeitava-se da não-existência desses encapsuladores.

Pensáva-se que, na verdade, tratar-se-ia de um encapsulador de Estado-de-coisas

ou de Episódio. Não obstante, alguns exemplos de nosso corpus nos fizeram

constatar que tal categoria não faz remissão direta ao Estado-de-coisas ou ao

Episódio. Muitas vezes, inclusive, a sequência à qual o encapsulamento se remete

não é claramente delimitável, como se pode confirmar no exemplo abaixo, em que o

encapsulador essa queda não aponta um segmento específico do texto.

(75) [...] Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se

apaixonar por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Woody Allen) vai parar

na típica republiqueta latino-americana de San Marcos.

De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.

(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para

acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu

poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de

Allen, que insere filmetes paralelos -que poderiam ser campeões no YouTube-, como o

sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o comercial do

cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens e nos situam

na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se compromete com

nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de

campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.

100

Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura

caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos

frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para

saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de

seu olhar oblíquo. Comediantes têm ESSA QUEDA por inverter o olhar.[...]

Crítica 45 � DVDs retomam Allen pastelão

Folha de São Paulo, 11/01/09

No exemplo acima, a referência essa queda é apenas inferível, podendo

representar a postura anárquica de Allen, que sempre questiona os sistemas e as

crenças. Acredita-se que encapsuladores como esse tenham, sobretudo, uma certa

dependência contextual, e não somente cotextual, como apontam os estudos de

Conte (2003) e Francis (1994, 2003). Aproximam-se do que Gary-Prieur e Noailly

(2003) entitularam demonstrativos insólitos33, uma categoria em que o

destinatário não consegue identificar ou inferir o “referente”. Por esse motivo,

defende-se que tais encapsulamentos só podem ser compreendidos através de uma

análise discursiva mais ampla, e não apenas através de recursos endofóricos.

Abaixo, segue outro exemplo desse tipo de encapsulamento, em que o segmento

encapsulado por essa dureza é inferível.

(76) Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de

Deus e ainda jovem o bastante para odiar isso.Nos seus piores momentos, tem a

verve de um poeta marginal afiado. É um chato com alguma razão que explica sua

má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes. Chega na casa da ex-

namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea Sophie

(Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny

leva o trio a um colapso imediato.

Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo

lembrando "Depois de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original.

Se na noite nova-iorquina de Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de

Leigh Johnny é o motor de tensões constantes.

33

cf. GARY-PRIEUR, Marie-Nöelle; NOAILLY, Michèle. Demonstrativos Insólitos. In: CAVALCANTE, M. N; RODRIGUES, B. B; CIULLA, A (Orgs). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.

101

ESSA DUREZA tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também

percebido em "Kes" (1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema

britânico lançado há pouco pela mesma distribuidora Lume Filmes.[...]

Crítica 65 � Em clima de ressaca, filme de Mike Leigh explora uma Londres

sombria

Folha de São Paulo, 27/09/09

No entanto, o estatuto de tal encapsulador atribuidor de propriedade nem

sempre é de inferível. Como se afirmou anteriormente, embora haja remissão a um

Estado-de-coisas ou a um Episódio, tal processo não ocorre de forma direta, pois se

remete sem encapsular o segmento. Nesse caso, a categoria que se transforma em

tópico é a propriedade, e não a predicação ou segmento de texto. Pode-se observar

tal característica no exemplo abaixo, em que o encapsulador essa naturalidade

para o “diferente” faz remissão a um segmento de texto apenas inferível:

(77)[...] Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de

duas jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão

burlescos que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de

classes sociais distintas.

ESSA NATURALIDADE PARA O "DIFERENTE" já estava no primeiro longa

da diretora argentina. [...]

Argentina narra fantasia de casal gay

Folha de São Paulo, 01/11/09

5.3. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS SECUNDÁRIOS

Há dois grupos de encapsuladores semânticos secundários: 1) aqueles que

encapsulam Modo, Razão ou Quantidade expressa em predicações ou segmentos

de textos34; 2) aqueles cujos núcleos atribuem a idéia de Modo, Razão ou

Quantidade às predicações ou segmentos de texto que encapsulam. Tratar-se-á

desses dois tipos nas seções a seguir.

34

Como afirmado no tópico 5.2.2., as categorias de lugar e tempo não são encapsuladoras.

102

5.3.1. Encapsuladores de Modo

Podem ser de dois tipos: 1) aqueles que fazem remissão a uma circunstância

de modo expressa no texto, encapsulando não apenas o modo, como também o

Estado-de-coisas. O que o difere de um encapsulador de Estado-de-coisas é o fato

de ser representado por um nome ou advérbio que indica a função de modo,

deixando-se, assim, a circunstância em evidência. 2) aqueles que, embora não haja

circunstâncias de modo nos conteúdos a que se remetem, encapsulam um ou mais

Estados-de-Coisas e atribuem-lhe ad hoc tal circunstância. Seguem os exemplos:

(78) [...] Um dos conceitos básicos desta teoria é que nenhum objeto físico deste

universo pode viajar a uma velocidade maior que a velocidade da luz ou seja, nenhum

objeto pode viajar a uma velocidade maior que 300.000 km/s (aproximadamente). Mas,

sem dúvida, o conceito mais importante da Teoria da Relatividade é a famosa afirmação

da "equivalência entre massa e energia", expressa através da equação E=mc2. Essa

fascinante fórmula nos diz que, devido a relatividade, a massa de um corpo aumenta

quanto mais rapidamente este se mover. DESSE MODO, o corpo ganha energia cinética

(a energia de movimento) que é diretamente proporcional a massa do corpo e ao

quadrado de sua velocidade. Como o aumento da massa acarreta um aumento da

energia, fica fácil perceber que a massa está relacionada à energia e, logicamente, a

energia a massa. Ambas são equivalentes! Assim, quanto mais um objeto se aproxima

da velocidade da luz, mais e mais massa (ou seu equivalente em energia) será

necessário para aumentar a velocidade do objeto, crescendo geometricamente de tal

modo que no limite da velocidade da luz tende ao infinito. [...]

VELOCIDADE DE DOBRA

http://inpu.sites.uol.com.br/veldobra.htm - acessado em 15/01/10

(79) Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro,

coldre nas costas e dá um beijo no bebê. ASSIM dá início a mais um dia. Mas não da

atriz carioca de 43 anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que

tem lançamento neste mês em DVD.[...]

Malu Mader ataca como matadora

Folha de São Paulo, 07/06/09

103

Em (78), desse modo encapsula “mover mais rapidamente”, em que há

explícita uma circunstância de modo. Já em (79), não há circunstância de modo

expressa no trecho a que assim se refere. Nesse caso, infere-se que tal

circunstância depende mais do discurso, no momento em que a designação é feita.

5.3.2. Encapsuladores de Razão (ou Causa)35

Ocorrem da mesma forma que os encapsuladores de Modo, isto é, podem

basear-se em âncoras textuais ou não.

(80) [...] O Procurador de Udine, Antonio Biancardi, autorizou nesta quarta-feira o enterro

de Eluana Englaro, 38, a italiana em coma há 17 anos e que a família ajudou a morrer

nesta segunda-feira (9) depois da suspensão da alimentação e hidratação.

Ela morreu de sede após 17 anos. A autorização da Justiça coincide com a opinião

do procurador-geral da Corte de Apelação de Trieste, Beniamino Deidda, que afirmou

nesta quarta-feira que a causa da morte da jovem é compatível com o protocolo

médico.[...]

Site JusBrasil - Justiça autoriza enterro de Eluana; Italiana Morreu de Sede

http://www.jusbrasil.com.br/noticias/775172/justica-autoriza-enterro-de-eluana-italiana-

morreu-de-sede - acessado em 15/01/10

(81) [...] Existe UMA, e apenas uma, RAZÃO para o lançamento de "Uma Vida sem

Regras" no Brasil: Robert Pattinson estar no papel principal.[...]

Crítica 48 – "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção

Folha de São Paulo, 09/04/09

35

Na GDF, a categoria Razão compreende circunstâncias de causa. Por esse motivo, elucidamos tal circunstância na nomeação

104

Em (80), a causa faz remissão à locução adverbial de sede e ao Estado-de-

coisas expresso, isto é, morrer de sede. Já em (81), uma razão encapsula o

segmento destacada como motivo para lançamento de um filme no Brasil.

5.3.3. Encapsuladores de Quantidade

Quantidade é uma categoria que se associa não apenas a sintagmas verbais,

como também a indivíduos, isto é, referentes. Por conseguinte, uma vez que o

encapsulamento exige, pelo menos, uma predicação a que se faça remissão, só

haverá encapsulamentos de quantidade se: 1) houver expressão adverbial no

predicado que possa ser encapsulada por nome que expresse essa idéia (p. ex.

número, quantidade, frequência); 2) houver elementos gramaticais que façam

remissão a um ou mais estados-de-coisas, a cuja função possa ser atribuída idéia

de quantidade.

Em todo nosso corpus, não houve ocorrências do primeiro caso de

encapsulamento – embora se defenda a sua possibilidade –, o que nos levou a

construí-lo.

(82) Você sabe que eu viajo várias vezes ao ano e ainda não se acostumou com tal

frequência?

Exemplo construído.

Acima, tal frequência faz remissão à predicação eu viajo várias vezes ao

ano, elencando a frequência enquanto núcleo encapsulador, daí a sua classificação.

Encontraram-se, no corpus, dois elementos gramaticais cujos núcleos faziam

remissão a predicações anteriores e representavam a idéia de quantidade, o que

nos levou ao segundo caso de encapsulador supracitado.

105

(83) [...]Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e

Taylor, 26. Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme

com impressionante maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o

provocativo texto de Tennessee Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente'

tem de mais memorável: o duelo entre Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico

da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que acompanha o DVD.

O livro traz, AINDA, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo

Tennessee Williams e um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre

outras informações e curiosidades.

Crítica 48 � "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção

Folha de São Paulo, 09/04/09

(84) [...]O mistério, a inquietação, a loucura da guerra e a aventura lisérgica foram

substituídos pela contemplação enfadonha. Músicas adicionais "inéditas" de Carmine

Coppola, pai do diretor, não faziam falta no original. ALÉM DISSO, a temerária

remarcação de luz "plastificou" a fotografia de Vittorio Storaro. No cinema, assim como

na música, muitas vezes os pequenos ruídos da versão "vinil" reproduzem uma obra

mais real. [...]

Crítica 67 � Obra mítica de Coppola é melhor na versão "curta"

Folha de São Paulo, 11/10/09

Em (83) e (84), ainda e além disso encapsulam os respectivos segmentos

prévios de texto e atribuem-lhes a idéia de quantidade (além do que foi citado).

De todas as categorias do NR, essa é a mais fluida, mais difícil de definir e

de menor frequência. A princípio, inclusive, questionou-se a sua existência,

pensando que, se realmente havia encapsuladores de quantidade, também deveria

haver para outras circunstâncias. Não obstante, ao explorarem-se outros advérbios,

percebemos que circunstâncias de tempo e lugar estão previstas em Episódio

(como abordamos no tópico 5.2.2); de modo, meio, instrumento, em Modo; de

causa, em Razão; de intensidade e tempo (equivalente à frequência), em

106

Quantidade; de afirmação, negação e dúvida em Conteúdo Proposicional36.

Portanto, confirmou-se que todas as categorias semânticas de uma unidade

linguística estão presentes, como muito bem afirmaram Hengeveld e Mackenzie

(2008, p. 128).

5.4. ENCAPSULADORES METALINGUÍSTICOS

Ao contrário das outras categorias semânticas, esses pertencem à

metafunção textual da língua e servem para falar do evento comunicativo em si.

Caracterizam, como aponta Jakobson (1971 apud HENGEVELD e MACKENZIE,

2008, p. 275), a mensagem sobre o próprio código.

Uma vez que a função é metalinguística, optou-se por manter a nomeação e

classificação de Francis. Portanto, em vez da classificação Encapsulador de Língua

Reflexiva, utilizar-se-á Encapsulador Metalinguístico.

São representados por duas categorias: 1) nomes que se referem a alguns

tipos de atividade linguageira ou aos seus resultados, como debate, definição,

descrição, explicação, exposição, mensagem, pergunta, etc.; 2) nomes que se

referem à estrutura textual formal do discurso, como citação, excerto, página,

parágrafo, passagem, etc.

(85) [...]Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a

convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem

deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria

homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo

o suicídio).

A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no

filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que

preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não

porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente

o que dele recebemos.

Crítica 27 � Essência escapa em "O Gosto da Cereja"

Folha de São Paulo, 16/11/08

36

Nessa investigação, analisamos também advérbios menos frequentes, como de concessão, conformidade, companhia, finalidade, referência. No entanto, eles representavam ou outras categorias da GDF, ou operadores e modificadores de uma categoria.

107

(86) [...]UMA FRASE entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é

ilegal". A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já

havia feito sucesso no teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o

roteiro do longa, que emplacou cinco indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro,

ator dramático para Frank Langella (que vive Nixon) e trilha.

Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento"

para Nixon levanta OUTRO QUESTIONAMENTO nos EUA: estaria levando o ex-

presidente à segunda instância, com possível redenção por mostrar seu lado mais

humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a tendência autodestrutiva?[...]

Crítica 44 � Filme mostra 'julgamento' de Nixon

Folha de São Paulo, 04/01/09

Nos exemplos acima, explicação, uma frase e outro questionamento

nomeiam atividades linguageiras ao fazer remissão aos trechos destacados. Abaixo,

trecho nomeia uma parte formal do discurso.

(87) [...]"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com

outro garoto. Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o

aniversariante tentava descobrir o que seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde.

Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-fio, num cruzamento, e foi

imediatamente atropelado por um carro." Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", O

TRECHO acima ilustra o estilo seco de observação do cotidiano que caracterizava o

norte-americano Raymond Carver (1939-1988).[...]

Crítica 76 � Filme-mosaico com dramas cotidianos é ponto alto na obra de Robert

Altman

Folha de São Paulo, 15/11/09

5.5. CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA

Considera-se que a interpretação dos encapsulamentos semânticos através

do NR apresenta quatro contribuições substanciais para os estudos da

referenciação:

108

5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos

Conforme explanação do segundo capítulo, a proposta de Francis (1994,

2003) para a categorização dos rótulos semânticos restringia-se a quatro categorias,

a saber: nomes ilocucionários, nomes de processo mental, nomes de atividades

linguísticas e nomes de texto. No entanto, o estudo aprofundado das categorias

semânticas possíveis de uma unidade linguística permitiu-nos uma análise mais

ampla, que, por sua vez, acarretou uma substantiva modificação das categorias

previstas pela autora.

5.5.2. O papel do contexto

Embora os estudos de Francis (1994, 2003) e Conte (1994, 2003) acerca do

encapsulamento representem importantes contribuições para a pesquisa linguística,

no que tange a questões de uso da língua, o seu objeto de pesquisa se restringiu à

classificação dos encapsuladores cotextuais, isto é, daqueles que tivessem uma

clara dependência da superfície textual. Portanto, a despeito das autoras

comungarem dos pressupostos teóricos sociocognitivistas interacionistas, seus

estudos repousam numa análise que se prende a critérios de ordem lexical e

sintática, o que equivale dizer que a preocupação na observação do fenômeno

atende mais a aspectos de estruturação e de organização cotextual, o que

caracteriza uma visão simplificada para os processos de significação.

Tem-se como pressuposto que a linguagem é um trabalho que envolve

atividades humanas, sócio-históricas, que se organizam por meio de textos, os quais

não se caracterizam apenas por uma estrutura linguística, mas também por um

funcionamento sócio-discursivo. Assim, a construção do texto, tanto em termos de

produção quanto de intelecção, assume qualidades que ultrapassam a língua e o

discurso, envolvendo processos sociocognitivos como memória discursiva,

inferências, analogias e ação reflexiva dos sujeitos.

Desse modo, gostar-se-ia, de, neste trabalho, propor uma ampliação do

estudo do fenômeno com base na Gramática Discursivo-Funcional, sugerindo que a

âncora de um encapsulamento não se encontraria apenas em uma predicação ou

109

segmento de texto, como também no contexto discursivo-pragmático, como

percebemos no exemplo a seguir:

(88) Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar

por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica

republiqueta latino-americana de San Marcos. De sequestrado pelos rebeldes acaba se

tornando presidente. (Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso

país para acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm

seu poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos

de Allen, que insere filmetes paralelos � que poderiam ser campeões no YouTube�,

como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o

comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens

e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se

compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que

promessa de campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que

aceitamos acreditar.

NESSA FASE PALEOLÍTICA, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua

figura caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos

frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para

saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de

seu olhar oblíquo. Comediantes têm essa queda por inverter o olhar.[...]

Críticam 45 – “Bananas”

Folha de São Paulo, 11/01/09

No sintagma nessa fase paleolítica, apesar de percebemos a existência de

uma expressão anafórica, até mesmo pela natureza do demonstrativo essa, não há

remissão ao cotexto. Logo, em toda a sequência do primeiro parágrafo, não

encontramos um referente lexicalizado que propicie a remissão através de nessa

fase paleolítica, o que nos leva à conclusão de que a âncora para tal anáfora não

se encontra em uma predicação ou segmento de texto, mas no contexto discursivo-

pragmático. Trata-se de um emprego insólito como apontam Gary-Prieur e Noailly

(2003), em que o contexto discursivo pragmático tem preponderância sobre o

cotexto.

110

5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos

Segundo Zamponi (2002), pode-se considerar a dimensão atributiva de um

rótulo, isto é, além de ele representar o tema de um novo tópico discursivo, ele pode

ter função remática, ao atribuir uma nova propriedade ao segmento encapsulado.

Tal elemento anafórico é simultaneamente um elemento de referência e de

predicação, acumulando a função temática e remática ou, como afirma Schawrz

(2000), operando uma tematização-remática (Ibid., p.197).

Tais apontamentos foram feitos no trabalho de Zamponi (2002) ao considerar

os rótulos de configuração axiológica, em que, claramente, uma propriedade era

atribuída ao segmento encapsulado. Todavia, propõe-se que não somente termos

avaliativos implicam atribuição. Como se pôde observar nas categorias semânticas

secundárias, por exemplo, existem expressões que, ao mesmo tempo em que

encapsulam, atribuem uma propriedade de modo, razão ou quantidade.

5.5.4. Análise de encapsulamentos de núcleo gramatical

As literaturas vigentes consideram que o encapsulamento é sempre realizado

por um sintagma nominal. Inclusive, para Conte (2003, p. 17), o conceito de

encapsulamento é o que segue: um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal

funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente de texto.

No entanto, a nossa pesquisa comprovou que o encapsulamento não se

restringe ao sintagma nominal, uma vez que existem palavras gramaticais que

desempenham tal função. Por esse motivo, adotamos a concepção de Koch (2002,

p. 94), de que a anáfora encapsuladora é a sumarização de uma informação

precedente, compartilhada pelos interlocutores, uma vez que é perfeitamente

aplicável às categorias lexicais e gramaticais.

5.5.5. Nem todo encapsulamento advém de uma categoria instável

Embora a perspectiva sociocognitiva interacionista reconheça as práticas de

sedimentação das categorias em protótipos e estereótipos, os estudos que conferem

instabilidade ao objeto-de-discurso têm estado, fortemente, mais presentes. Crê-se

111

que esse seja um movimento natural dos estudos sobre referência, que, em seu

atual estágio, precisa opor-se a uma corrente que vise apenas à estabilidade.

Não obstante, defende-se que se faz imprescindível um tratamento pontual

das categorias mais sedimentadas do discurso, pois apenas a focalização de um

dos aspectos pode levar-nos a um posicionamento passível de falhas.

Com relação aos encapsulamentos, por exemplo, encontramos, na literatura

vigente, definições que apontam para o fenômeno apenas em seu caráter instável,

em que o falante, através de um nome, faz remissão a um segmento de texto

previamente expresso. No entanto, encontra-se, na categoria episódio, a existência

de nomes encapsuladores que nem sempre apresentam âncoras cotextuais, visto

seu alto grau de estabilidade, como o exemplo a seguir.

(89) As únicas imagens documentais de "Vá e Veja" (1985) só aparecem em seus

minutos finais. Apesar de o efeito ser notável, esse clássico do filme de guerra não

precisaria recorrer a isso para aumentar a catarse anti-nazista que o orienta quase

desde o início. Quase, porque a primeira meia hora do filme trata a Segunda Guerra

Mundial de longe, como o evento que leva crianças e adolescentes a procurar armas e

outros objetos de uso militar escondidos nas areias brancas de uma aldeia na Bielo-

Rússia (ou Belarus), república soviética invadida pelos alemães, em 1943.[...]

Crítica 31 – "Vá e Veja" leva poesia a cenário de guerra

Folha de São Paulo, 09/11/08

O nome início, destacado acima, é um caso exemplar de encapsulador de

episódio. Independente da situação discursiva, início representará sempre um

encapsulador, uma vez que marca unidade ou continuação de tempo, lugar e

participantes de uma sequência coerente de Estados-de-coisas. Inclusive, no

exemplo em questão, início não faz remissão direta a um segmento do texto, muito

embora se descreva uma das situações iniciais do filme.

Em se tratando de nomes encapsuladores, Francis (2003, p. 203) defende a

existência de nomes com essa potencial função. No entanto, a autora os analisa

mediante a remissão que fazem a predicações anteriores, isto é, submetendo-os

sempre ao cotexto. Sob a nossa ótica, a categoria Episódio pode sobrepor-se aos

112

critérios de ordem sintática, uma vez que pertence ao NR, hierarquicamente acima

do Morfossintático.

5.5.6. A configuração dos encapsulamentos não depende da sintaxe,

mas do discurso

A princípio, especulamos que a maior parte dos encapsulamentos presentes

nas sequências argumentativas de nosso corpus apresentaria configuração

avaliativa. No entanto, encontramos, um significante número de encapsuladores

não-avaliativos, que só tinham como objetivo transformar um segmento em tópico

discursivo. Isso nos evidenciou que a opção por um encapsulador avaliativo ou não-

avaliativo em tais sequências não interfere substancialmente no fazer discursivo do

texto. A escolha de um encapsulador não-avaliativo não indica que o falante terá

uma posição mais neutra em seu discurso, uma vez que a “avaliação” é uma

estratégia que não se dá apenas na categorização como também na predicação e

nos processos de retomada e remissão de referentes. Esse ponto nos faz refletir

acerca do posicionamento de Conte (2003, p. 177) ao afirmar que o encapsulamento

anafórico de caráter avaliativo é um poderoso meio de manipulação do leitor.

Embora não se discorde da autora, acredita-se que a ênfase dada ao nome

avaliativo pode levar-nos a subentender que encapsulamentos não-avaliativos não

propiciariam uma progressão avaliativa do objeto-de-discurso. Mais uma vez,

argumenta-se que um posicionamento sintaticista e localista traria uma visão

reducionista do processo de referenciação. A avaliação de determinado

encapsulamento não é dada apenas na categorização, mas no decorrer da atividade

discursiva. Veja o exemplo:

(90) Se Coutinho já encarava seus entrevistados como "personagens", em "Jogo de

Cena" ele dá mais uma volta no parafuso, misturando depoimentos de mulheres

"comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas por

aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão, Fernanda Torres,

Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.

O efeito DESSE ARDILOSO EMBARALHAMENTO é deixar o espectador sem chão,

em dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,

afinal, viveu o quê.

113

Crítica 41 – Coutinho deixa o espectador sem chão

Folha de São Paulo, 07/12/08

Acima, muito embora o núcleo embaralhamento já atribua valor axiológico ao

encapsulamento, percebe-se o alto valor argumentativo de seu adjunto, ardiloso. Se

ele fosse retirado do trecho, isso implicaria uma tênue mudança argumentativa. No

entanto, se apenas se mudasse a ordem, poder-se-ia ainda contar com a atribuição,

muito embora ela já não fizesse parte do sintagma. Veja:

(91) O efeito DESSE EMBARALHAMENTO é ardiloso, deixa o espectador sem chão,

em dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,

afinal, viveu o quê.

Tal observação nos leva a defender que a análise da carga axiológica ou

não-axiológica de um dado objeto-de-discurso deve ser feita não apenas sob

aspectos sintáticos mas também discursivos.

5.6. PERSPECTIVAS FUTURAS

Nas atuais discussões sobre a relação entre linguagem e realidade, o fator

pragmático tem sido imprescindível, especialmente quando se quiser compreender a

capacidade de referir-se a algo, num determinado contexto � como sendo também

uma capacidade de entender-se a respeito de algo com alguém, com um

determinado propósito �, e como isso produz efeitos sobre a práxis. Trata-se da

referenciação, que, abordada sob o ângulo discursivo-pragmático, permite uma

análise mais completa e produtiva da própria linguagem, já que linguagem é ação, é

um modo de vida, como abordava Wittgenstein (1953 apud ARAÚJO, 2004).

A despeito de tal concepção discursivo-pragmática da língua, esta pesquisa

ateve-se ao reconhecimento das categorias semânticas envolvidas nos processos

de encapsulamento, isto é, com o aspecto linguístico. Desse modo, aqui, não se

tratou nem das categorias pragmáticas dos encapsulamentos nem de uma análise

mais argumentativa e retórica do processo de referenciação, mas apenas da

114

taxionomia do NR37. Defende-se que um futuro estudo de tais aspectos seja um bom

caminho a ser percorrido. Pensa-se que tanto entender em que dimensão se

encontra um encapsulamento, se no Nível Interpessoal ou Representacional, quanto

aferir de que forma os operadores e modificadores das categorias previstas pela

GDF colaboram na referenciação pode ser um grande auxílio na compreensão do

processo de argumentação dos textos.

Também se defende que uma futura análise dos encapsulamentos de caráter

mais gramatical possa representar uma boa interseção entre referenciação e

gramaticalização, uma vez que, na categoria episódio – veja exemplos (68) e (69),

páginas 94 e 95 –, percebemos a presença de palavras gramaticais que fazem

remissão a tempo, espaço e texto concomitantemente, o que parece comprovar a

unidirecionalidade e elucidar os aspectos cognitivos que nos levariam a tal princípio

lingüístico. O mesmo poderia ser especulado no que tange aos encapsulamentos

secundários, uma vez que se apontam categorias gramaticais que funcionam como

proformas de sequenciação textual, mas que selecionam segmentos disponíveis do

discurso, tal qual o encapsulamento prototípico.

37

Como abordamos na Introdução desta pesquisa, trata-se de uma abordagem discursivo-funcional, muito embora isso não descarte a dimensão sociocognitiva. Tratam-se de teorias complementares.

115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola ensina os alunos a ler e a escrever orações e períodos e exige que interpretem

e redijam textos. Algumas pessoas poderiam dizer que essa afirmação não é verdadeira,

porque hoje todos os professores dão aulas de redação e de interpretação de textos.

Mas como é uma aula de redação? O professor põe um tema na lousa, pede que os

alunos escrevam sobre ele, corrige os erros localizados no nível da frase. A aula de

interpretação de texto consiste em responder a um questionário com perguntas que não

representam nenhum desafio intelectual ao aluno e que não contribuem para o

entendimento global do texto. Muitas vezes, o professor não se satisfaz com os textos e

os roteiros de interpretação dos livros didáticos, seleciona algum texto e faz uma bela

interpretação em classe. Se o aluno lhe pergunta como enxergar numa produção

discursiva as coisas geniais que ele nela percebeu, costuma apresentar duas respostas:

para analisar um texto, é preciso ter sensibilidade; para descobrir os sentidos do texto, é

necessário lê-lo uma, duas, três, n vezes.

As duas respostas estão eivadas de ingenuidade. Não basta recomendar que o

aluno leia atentamente o texto muitas vezes, é preciso mostrar o que é que se deve

observar nele. A sensibilidade não é um dom inato, mas algo que se cultiva e se

desenvolve.

[...]

A finalidade da apresentação de elementos discursivos é tornar explícitos

mecanismos implícitos de estruturação e de interpretação de textos. Quem escreve ou lê

com eficiência conhece esses procedimentos de maneira mais ou menos “intuitiva”.

Explicitá-los contribui para que um maior número de pessoas possa, de maneira mais

rápida e eficaz, transformar-se em bons leitores.

[...]

José Luiz Fiorin38

38

Cf. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

116

Neste estudo, realizou-se uma análise qualitativa da categorização dos

encapsulamentos semânticos – de metafunção ideacional e textual – a partir do

exame de textos de crítica de cinema e TV, pertencentes à esfera jornalística e

publicados na Folha de São Paulo online. Para tanto, tomou-se como base o Nível

Representacional da Gramática Discursivo-Funcional, uma vez que ela prevê todos

os aspectos semânticos de uma unidade linguística.

A pesquisa ratifica a conceituação de encapsulamento como sumarização de

uma informação precedente, compartilhada pelos interlocutores (KOCH, 2002, p.

94), mas entende que o fenômeno não se restringe ao sintagma nominal e nem

sempre apresenta âncoras cotextuais explícitas, como se pensava anteriormente.

Conforme visto no quinto capítulo, há termos gramaticais que, em determinadas

circunstâncias, funcionam como anáforas encapsuladoras, assim como há

encapsulamento cujo segmento a que se faz remissão não se encontra delimitado

no texto.

Acredita-se que tal mudança paradigmática nos confirme a não-existência de

invólucros pré-destinados a certas funções discursivas, pois, do contrário, significa

impor limites aos processos cognitivos, pôr a função em serviço da forma, é negar a

preponderância da práxis sobre o uso linguístico.

Há toda uma mudança de perspectiva filosófica na passagem do modelo

lógico-semântico para os de cunho pragmático – como a perspectiva sociocognitivo

interacionista e discursivo-funcional de linguagem. Sentido, valor de verdade e

referência a estado-de-coisa cedem lugar a comportamento, usuário, propósito de

fala, situação de emprego. Afinal, como muito bem defendem Mondada e Dubois

(2003), a questão não é localizar os objetos do mundo ou verificar a existência de

entidades abstratas, mas entender como os sujeitos constroem versões públicas do

mundo.

Quanto à função discursiva, confirma-se o consenso de que o

encapsulamento seja importante na condução e progressão de um texto, na medida

em que traça uma orientação argumentativa para o texto, ao hipostatizar,

transformar em tópicos discursivos predicações ou segmentos do discurso, e não

referentes já disponíveis, lexicalizados. Crê-se que o reconhecimento, por parte do

117

ouvinte/leitor, de qual segmento do discurso é encapsulado � se uma atitude

proposicional, se um episódio, se uma propriedade etc. � possa ser uma ferramenta

relevante à análise dos pontos de vista defendidos no texto. Pode-se, por exemplo,

constatar que um discurso de outrem é encapsulado, pelo produtor do texto, como

dúvida, crença, atitude, muito embora o segmento em si não tenha essa conotação.

Cabe lembrar que, com a linguagem, faz-se muito mais do que nomear. Com

um encapsulamento, por exemplo, não apenas se nomeia um segmento discursivo,

pois, por trás deste, há a intenção de identificar algo a alguém, um querer dizer, um

significar que demanda a leitura do contexto, dos propósitos da fala naquela

determinada circunstância. Na verdade, não há objetos discriminados,

individualizados em si, com propriedades essenciais, intrínsecas,

independentemente de uma conceptualização cultural, linguística, semiótica, como

defende a pragmática.

Por fim, de posse dessa concepção da linguagem, refletiu-se, sobretudo,

acerca dos leitores em formação de nossa sociedade e ratificamos a fala de Fiorin:

tornar explícitos mecanismos implícitos de estruturação e de interpretação de textos

contribui para que um maior número de pessoas possa, de maneira mais rápida e

eficaz, transformar-se em bons leitores.

118

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127

ANEXOS

(01) A censura parece vitimar só o imaginário

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Uma pessoa reclama por ter tido de assistir, sem prévio aviso, a um trailer do mais recente

filme de Zé do Caixão. Eram cenas chocantes, diz.

Poucos dias antes podia-se ver, num programa jornalístico matinal, o vídeo da cena em que

um homem, a menos de um metro de distância, pelas costas, dá um tiro na cabeça de um ex-

empregado.

Não me lembro de ninguém reclamando por ter visto essa cena. Não recordo de nenhuma reação

escandalizada da censura do Ministério da Justiça. A censura, assim como a sensibilidade da pessoa

do trailer, parece vitimar apenas o imaginário. Um assassinato "real" pode ser visto, talvez porque

seja real. Um assassinato nas mesmas circunstâncias, num filme, é proibido a menores de 18 anos

porque é chocante.

Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a Cabeça de

Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12 anos). Pois alguém a trará -

está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a cabeça dentro de um saco.

Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah, vai chocar tanto quanto as diabruras,

também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar errado, mas esse tipo de reação visa objetos

específicos. Lembra a das pessoas em transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson

Welles, em 1938, representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Folha de São Paulo, 31/08/08

(02) Buñuel mergulha na fantasia para ironizar donos do poder. Vencedor do Oscar em 1973,

filme traz diretor espanhol em sua melhor forma

JOSÉ GERALDO COUTO

128

COLUNISTA DA FOLHA

"O Discreto Charme da Burguesia", rodado na França em 1972, é Luis Buñuel em sua melhor

forma: na linguagem fluida e livre dos sonhos, um ataque implacável aos donos do poder político,

material e moral.

Em lugar da fúria anárquica dos primeiros filmes, o diretor, já setentão, destila uma ironia

sutil, um humor sereno.

O roteiro sagaz, em parceria com Jean-Claude Carrière, não conta propriamente uma história,

mas esboça uma série de tramas que se desfazem. Sonhos dentro de sonhos, anedotas e lendas

enxertadas, pistas falsas, elipses bruscas. Ver essa obra, Oscar de filme estrangeiro em 73, é pisar o

terreno movediço da fantasia e do desejo.

A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações, como um

pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um casal e descobrem que os

anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.

Dali partem todos, incluindo a dona da casa, para um restaurante nas redondezas, onde,

quando estão prestes a fazer seus pedidos, descobrem que, num canto do salão, desenrola-se o

velório do proprietário. Daí até o final, serão inúmeras as refeições frustradas, pelos motivos mais

diversos: batida policial, manobras militares, ataque terrorista.

A figura-chave do grupo de grã-finos é Rafael Acosta (Fernando Rey), embaixador da

republiqueta sul-americana de Miranda. Traficante de cocaína em conluio com seus amigos

burgueses e com o establishment local, Acosta é o elo entre a Europa supostamente civilizada e o

Terceiro Mundo miserável, corrupto e atrasado. Um não vive sem o outro.

Buñuel é impiedoso com o teatro de máscaras das elites. Numa cena memorável, um homem

(Julien Bertheau) passa de bispo a jardineiro numa simples troca de roupa. O hábito desfaz o monge.

Questionado sobre a presença de um antigo chefe de campo de concentração nazista em seu país,

Acosta diz: "Chamá-lo de carniceiro é um exagero. Estive com ele um par de vezes e constatei que é

um homem simpático e distinto".

São todos simpáticos e distintos nesse grupo de discretos monstros, com a roupa certa, o

vinho adequado e as fórmulas de conveniência na ponta da língua. Buñuel ri deles, de nós e de si

próprio.

O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA

Distribuidora: Lume

Quanto: R$ 44,90, em média

Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 31/08/08

129

(03) Versão "envelhecida" de "Sex" é mais do mesmo

CRISTINA FIBE

DA REPORTAGEM LOCAL

Cortaram a Charlotte; envelheceram e repaginaram Carrie, Samantha e Miranda. Dez anos

depois da estréia da série "Sex and the City" (que acabou em 2004), a escritora Candace Bushnell,

49, volta às telas com "Lipstick Jungle" (na tradução literal, "selva de batom"). A fórmula é quase

idêntica: mulheres independentes e glamourosas (entenda-se endinheiradas e fúteis) compartilham

seus problemas mais íntimos (amorosos e sexuais), em meio aos prédios, táxis e bares de Nova

York. Mas, agora, elas estão mais perto dos 40 do que dos 30 anos e têm carreiras mais

consolidadas.

A favor da série, que estréia amanhã na Fox, há o fato de ter sido bem recebida nos EUA, garantindo

uma segunda temporada -"Cashmere Mafia", também "inspirada" em "Sex" e protagonizada por Lucy

Liu, durou só sete episódios. À história: no lugar de Carrie, agora quem sofre a dor de ser solteira-em-

busca-do-príncipe é a estilista Victory Ford (a talentosa Lindsay Price).

Já nos primeiros episódios, Victory consegue repetir uma série de feitos que a protagonista

escritora de "Sex and the City" demorou seis temporadas para alcançar. Aqui estão os altos e baixos

profissionais, o bloqueio criativo, a paixão pelo milionário com medo de compromisso (um novo Mr.

Big?) e até a viagem dos sonhos a Paris. Mas Victory não narra os episódios, como Carrie fazia, e

perde espaço pela insistência da produção em fazer de Brooke Shields o foco prioritário.

A nova Miranda

A personagem de Shields, Wendy, se parece com a Miranda de "Sex", justamente quem

menos atraía o público. É que sua vida tem menos graça -mãe, workaholic, precisa conciliar as

necessidades da família e o sucesso profissional. Sai a advogada (Miranda), entra uma executiva de

cinema, trazendo para "Lipstick" outro elemento cada vez mais corrente nas séries americanas: os

bastidores de Hollywood.

Logo no início da primeira temporada, que estreou em fevereiro nos EUA, uma inimiga de

Wendy arrisca sua carreira espalhando na mídia suas falhas como mãe. Para salvá-la, entra em cena

a terceira melhor amiga, Nico (Kim Raver). A loira fatal, casada, dará um toque "Samantha" à série. É

ela quem protagoniza as cenas picantes dos primeiros episódios, porém não com a mesma ousadia

da ninfomaníaca de "Sex and the City". E, se há dez anos o jeito "libertário" de Samantha

surpreendia, hoje ele soa um tanto envelhecido.

É essa a principal falha de "Lipstick Jungle". Sem surpreender, a série retoma o que no

século passado foi novidade.

130

LIPSTICK JUNGLE

Quando: estréia amanhã, às 22h

Onde: na Fox

Classificação indicativa: não recomendada para menores de 16 anos

Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 24/08/08

(04) Em "Príncipe", a cidade cresce erroneamente

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

É incrível a solidão de Gustavo em "O Príncipe" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado

para menores de 14 anos). Voltando da Europa, onde viveu por 20 anos, ele não se reconhece em

sua cidade, que mudou inteiramente.

Em São Paulo, ele viverá alguns reencontros, não apenas com a cidade, mas com amigos.

Os lugares, no entanto, são fundamentais. É na praça D. José Gaspar que um amigo (Otávio

Augusto) recita trechos de "A Divina Comédia" em altos brados. Essa já foi "a praça da Biblioteca", da

Galeria Metrópole, do Paribar. Agora é um buraco ocupado por moradores de rua. As mudanças de

São Paulo induzem à solidão. O reencontro com a antiga amada é, como de ofício, a constatação do

desencontro.

E seu bairro, a bucólica Vila Madalena, virou o bairro dos bares, do trânsito e da barulheira noturna.

Esses 20 anos de distância mostram onde o filme se constrói: sobre um hiato, sobre uma brecha na

qual o tempo se perde, como se a cidade ao se construir executasse um percurso errático, um

labirinto em que não existe memória possível, onde as experiências se perdem como se fossem

produto da imaginação.

Para combater esse filme cheio de virtudes, valia, quando estava em cartaz, usar qualquer

argumento. Agora, passado o tempo, talvez ele possa ser visto sem a paixão destrutiva que tanto se

usa para policiar nossos bons filmes.

Folha de São Paulo, 10/08/08

(05) Série retrata apetite por autodestruição

CÁSSIO STARLING CARLOS

131

CRÍTICO DA FOLHA

Um bom título já é meio caminho andado para o sucesso de uma produção. "Californication",

que se traduziria como "californização", resulta da fusão do nome do Estado norte-americano com a

palavra "fornicação". É, pois, sob o signo da devassidão que se retrata a vida de um quarentão nesta

série criada por Tom Kapinos (oriundo da cândida "Dawson's Creek"), cujos 12 episódios que

compõem a primeira temporada acabam de sair em DVD. A produção, exibida nos EUA pelo

Showtime, principal concorrente da HBO no campo dos seriados adultos, marcou a volta de David

Duchovny (o agente Fox Mulder de "Arquivo X") à linha de frente da TV. Duchovny faz Hank Moody,

um escritor de Nova York que parte para Hollywood em busca de melhores oportunidades (leia-se, o

atraente mercado de roteiristas), mas lá só encontra melhores condições para "apodrecer sob o sol

da Califórnia".

Referências

Movido a álcool, cigarros e sexo desenfreado, Hank é uma versão contemporânea do Dante

que parte para a temporada no inferno em busca de sua Beatriz na "Divina Comédia". É também uma

releitura de Jay Gatsby em sua paixão nunca satisfeita por Daisy no romance icônico de F. Scott

Fitzgerald sobre os frenéticos anos do jazz. É impossível também não encontrar nele ecos dos auto-

retratos de Charles Bukowski em seu encanto pela degradação. Mas as referências eruditas não

passam de trampolim de onde Kapinos arranca elementos para pintar o mal-estar de seu

personagem (e o olhar deste sobre nossa época). Muito mais explícita é a trajetória rock'n'roll de

Hank em seu apetite por (auto)destruição.

Delírios

Já na cena de abertura do piloto o escritor delira sobre um altar diante de uma imagem de

Cristo quando uma freira se aproxima dele e lhe oferece candidamente um boquete. Naquele

momento antológico, o que se ouve na trilha são os Stones alertando que "você nem sempre pode ter

aquilo que quer". Ao longo dos 12 episódios serão inúmeras as outras referências (Dylan, Lou Reed,

Radiohead, Sex Pistols, Guns N" Roses, uma aparição de Henry Rollins) ao espírito decadente que

consuma o rock. Dele vêm os sons, a cor e a dor que tornam tão digno de comoção este herói sem

nenhum caráter.

CALIFORNICATION - 1ª TEMPORADA

Distribuidora: Paramount

Direção: Tom Kapinos

Quanto: R$ 49,90, em média

Avaliação: bom

Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos

Folha de São Paulo, 17/08/08

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(06) Com Glenn Close, série vê lado podre da vida

BRUNO PORTO

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos pilares do maior seriado de todos os tempos, "Família Soprano", era a noção de que

o ser humano não tem salvação. À medida que as temporadas avançavam, os personagens iam

sendo tragados por suas personalidades atormentadas.

"The Shield", cuja quarta temporada acaba de ser lançada aqui em DVD (foi exibida nos EUA,

em 2005, e no Brasil, pelo canal AXN, que não transmite mais a série), se vale de uma dinâmica

parecida e, em função disso, foi saudada diversas vezes por jornalistas americanos como a nova

"Soprano". Tendo como pano de fundo uma delegacia responsável por uma das regiões mais

violentas de Los Angeles, a série é centrada em Vic Mackey (Michael Chiklis, de "Quarteto

Fantástico"), um policial que só cumpre a lei quando ela está a seu favor.

No início do seriado, Mackey parecia mais interessado em enriquecer à custa do submundo

do que em acabar com ele. Na segunda e terceira temporadas, porém, ele começou a perceber que

sua ambição poderia destruir não só o seu futuro como o de sua família.

A quarta temporada é um desdobramento dessa pausa para reflexão. Ela começa meses depois do

final da temporada anterior, com o personagem de Chiklis tentando recomeçar sua vida. Dois dos

homens que integravam uma espécie de tropa de elite que ele liderava foram transferidos para outras

delegacias, deixando-o isolado.

Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma investigação

longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma nova capitã, Monica Rawling

(Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a desferir um duro golpe nas gangues da

área.

Mackey compra a briga de Monica e esboça ter reencontrado o gosto pela profissão de policial. O

envolvimento de um amigo com um criminoso, porém, faz com que ele volte a recorrer aos métodos

do passado. Não é só o caráter de Mackey que apresenta sinais de deterioração. Dois outros

personagens importantes da série, o ex-capitão e agora vereador David Aceveda (Benito Martinez) e

o detetive Dutch (Jay Karnes), dão sinais de estarem perto de perder o controle sobre seus demônios

interiores.

A escalação de Glenn Close para o papel de Monica deixou fãs de Chiklis em estado de alerta: eles

temiam que a atriz de "Ligações Perigosas" acabasse tirando os holofotes de cima do ator. Um temor

que acabou não se confirmando: contida, Close brilha, mas Chiklis não fica atrás.

Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com a maioria das

séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas das vielas mais escuras e

fétidas da alma humana.

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THE SHIELD

Distribuidora: Sony

Quanto: R$ 79,90 (4 DVDs)

Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 10/08/08

(07) Verhoeven retrata faroeste amoral

PAULO SANTOS LIMA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven. Consciência

que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente esmagados pelo sistema. É

uma constatação, então, que ultrapassa o físico para chegar a algo além: o próprio mundo. É assim

com o corpo biomecânico do policial que é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".

Não é diferente em "Showgirls" (TC Action, 0h20; não recomendado para menores de 18 anos).

Estamos no universo dos grandes shows de cassino em Las Vegas, cidade que simboliza a riqueza

material: o dinheiro, que inclusive torna confusos o humano e o produto. Sobretudo quando são

corpos de dançarinas como Nomi Malone (Elizabeth Berkeley), que tem plena consciência sobre seu

físico ser um item de consumo, uma peça de carne a se degustar.

Ela chega com tudo, passando a perna nas amigas concorrentes, oferecendo o que tem de

melhor aos poderosos, tudo a fim de vencer na vida como uma grande dançarina. Não só ela; todas

são pistoleiras. É como se estivéssemos num faroeste amoral.

Seria estúpido que Verhoeven utilizasse imagens "puritanas" para criticar esse ideário

utilitarista que "plastifica" até mesmo a mais orgânica das experiências vivas, o sexo. Assim, por que

deixar de ir ao ponto e mostrar os seios, dorsos e púbis à luz da visão? Seria hipócrita, senão

obsceno, escondê-los.

Folha de São Paulo, 03/08/08

(08) Programação destaca obra de Kazan

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

134

O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca disse, por

exemplo, que a "Monalisa" de Leonardo seria melhor se representasse uma santa. Mas, quando um

filme fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até ganha o Oscar, como "A Luz É Para

Todos" (TCM, 18h; livre), em 1948.

Oscar injusto (para filme e direção), por sinal, porque Elia Kazan ainda era um diretor de

recursos bem limitados, que se preparava para maiores vôos.

Um desses vôos é "Vidas Amargas" (TCM, 20h; classificação não informada), de 1955, que

deu a James Dean o prêmio de melhor ator, como o jovem que se sente impotente diante da figura

paterna. O filme foi rodado em cinemascope, de modo que, se não houver duas amplas tarjas negras

acima e abaixo da imagem (numa TV tradicional), o melhor é mudar de canal, nem que seja para ver

o Silvio Santos, pois estaremos diante de qualquer coisa que não "Vidas Amargas".

Para completar o dia dedicado a Kazan, o canal propõe "Sindicato de Ladrões" (22h;

classificação não informada) e "Clamor do Sexo" (23h50; classificação não informada). No primeiro

caso, 1954, Kazan estava em plena maldição do macarthismo, mas deu a volta por cima, inventou um

assunto e ganhou um Oscar bem merecido. No segundo, fez sua obra-prima com a história de um

amor de juventude (escrita por William Inge). Historinha, quase, mas grande filme.

Folha de São Paulo, 28/09/08

(09) "House" luta para não virar "one-man-show"

SYLVIA COLOMBO

DA REPORTAGEM LOCAL

A quinta temporada de "House" acaba de estrear nos Estados Unidos -e chega ao Brasil, pelo

Universal Channel, até o fim do ano-, apontando para uma necessária virada dramatúrgica.

O show começou bem em 2004 com uma original abordagem do mundo médico, por meio da

controversa e bem-humorada figura do dr. House -uma espécie de Jack Bauer ("24 Horas") do mundo

hospitalar, que quebra todos os protocolos da área, exaspera o senso comum, mas sempre traz a

solução correta ao final.

Os pacientes chegam às suas mãos prestes a morrer de doenças misteriosas que ele e seu

time têm de resolver por meio de decisões rápidas e de alto risco. Quando todos apontam para um

diagnóstico que parece ser o certo, mas que não se traduz na cura, House tem uma sacada inusitada

e salva os coitados.

Essa fórmula funcionou bem nas primeiras temporadas. Não só por conta do fantástico

humorista que é o britânico Hugh Laurie, ex-parceiro do célebre Stephen Fry, mas porque sua equipe

funcionava bem nos momentos de tensão em que se discutiam os quebra-cabeças.

Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior, uma nova aposta foi

feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball), os episódios continuaram a

135

exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar num dos leitos do Princeton Plainsboro

Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma clínico passou a causar um impacto mais significativo

nos relacionamentos entre os personagens.

A série, então, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade entre capítulos

e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no final da quarta temporada,

quando House não consegue salvar da morte a namorada do melhor amigo, o oncologista Wilson

(Robert Sean Leonard).

Quando a atual temporada começa, House está fazendo de tudo e até contrata um

investigador particular, para reconquistar a amizade perdida. Porém, apesar de estar sofrendo, o

genial médico não fica mais "humano". Segue tratando mal os enfermos e não se importando com a

ética que deveria reger a relação médico-paciente. O sumiço de Wilson -que funcionava como o

Watson de Sherlock Holmes- fará com que os roteiristas sejam obrigados a dar mais vigor aos

personagens que sobraram em torno do misantropo House -e que a essa altura já não são muitos.

De outro modo, a série corre o risco de reduzir-se a um "one-man-show". Laurie é um grande

ator e humorista, mas precisa de boas tramas e interlocutores combativos para que "House" siga

sendo o excelente espetáculo que conseguiu transportar o suspense hitchcockiano para a mesa de

cirurgias.

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 28/09/08

(10) Racismo é tema de aparente melodrama

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h; classificação

indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito boa. É ao ser informada da

morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não".

Sirk disserta sobre as qualidades de Lana com poucas palavras: "Ela era nula". Não é propriamente

um elogio à atriz de seu filme de maior sucesso. Mas ele completa dizendo que não era necessário

ser uma boa atriz para fazer esse papel.

Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner -no filme, mãe e

filha-, não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um filme sobre negros, sobre ser

negro num momento anterior à conquista da igualdade de direitos.

Por isso, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah Jane, já expressa

essa revolta, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua cor como um defeito de fábrica

(na trama, as duas mulheres criam um negócio em sociedade; as respectivas filhas crescem e

conhecem destinos opostos).

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Assim como certos preconceitos se escondem meticulosamente, "Imitação" é um grande

filme, dos maiores, escondido sob a pele do melodrama por este cineasta tão independente que,

após este filme, quando o vento batia só a seu favor em Hollywood, fez as malas e voltou para a

Alemanha.

Folha de São Paulo, 14/09/08

(11) Tempo dilui humor de "Apertem os Cintos..."

CÁSSIO STARLING CARLOS

CRÍTICO DA FOLHA

Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, antes dos ataques do 11 de Setembro e

dos acidentes com os ônibus espaciais, um trio de roteiristas ousou ver em desastres aéreos uma

fonte de piadas. Com um orçamento ridículo (para os padrões americanos) de US$ 3,5 milhões,

"Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" ultrapassou a mais delirante das estimativas e arrecadou o

equivalente a mais de 20 vezes o quanto custou. O lançamento em DVD do filme de 1980,

acompanhado da inevitável continuação, feita dois anos depois por outro time, é oportunidade para

verificar se o humor daqueles tempos ainda é capaz de fazer alguém rir. O alvo dos irmãos Jerry e

David Zucker, ao lado de Jim Abrahams, eram as produções do tipo "Aeroporto", uma franquia dos

chamados "disaster-movies", típica dos anos 70. Enquanto esses espetáculos-catástrofes eram

superproduções (para os padrões da época), os Zucker e Abrahams conceberam sua paródia em

esquema de filme B, com elenco anônimo, efeitos especiais precários e muita gozação sobre a

seriedade alheia. A idéia central do trio foi pirar sobre a cultura acumulada por qualquer estudante de

cinema ou consumidor compulsivo de filmes e deslocar o sentido de cenas e situações de

reconhecimento imediato, produzindo um curto-circuito de risadas. É o que se vê logo de cara, com a

cauda de avião percorrendo nuvens em referência à barbatana do monstrão de "Tubarão". Depois, a

sucessão de "roubos" não poupa clássicos como "Casablanca", "A Um Passo da Eternidade" e "Os

Embalos de Sábado à Noite". Com o sucesso obtido, dois anos depois o filme foi quase inteiramente

copiado, com apenas um upgrade do veículo principal (do avião para o ônibus espacial), mas com

efeito de piada recontada. Já os Zucker mais Abrahams garantiram o bem-estar na velhice

reproduzindo a bem-sucedida fórmula de paródias em "Top Secret - Superconfidencial", "Top Gang",

"Tá Todo Mundo Louco" ou esgotando sua repetição na série "Corra que a Polícia Vem Aí". Mesmo

tendo sido escolhida pelo American Film Institute, em uma votação feita em 2000, como a décima

comédia mais engraçada de todos os tempos, "Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" não sobreviveu ao

tempo. Sua graça de pastelão acabou diluída no humor ácido dos irmãos Farrelly, de Ben Stiller e

pela trupe de Judd Apatow, atuais reis da comédia.

APERTEM OS CINTOS, O PILOTO SUMIU 1 & 2

Direção: Jim Abrahams, David e Jerry Zucker

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Lançamento: Paramount

Quanto: R$ 29,90

Classificação indicativa: livre

Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 14/09/08

(12) Série lança armadilhas no próprio caminho

INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA

Escrever sobre o que representa a literatura, compor uma canção sobre o processo de

composição e recepção da música: é nesse território metalinguístico que se aventura "No Estranho

Planeta dos Seres Audiovisuais".

O primeiro episódio se defronta com a dificuldade natural de apresentar a série e resumir o

que virá. Feito esse desconto, o tom escolhido lança armadilhas pelo caminho.

Optou-se por uma conversa com o telespectador (por meio de um narrador e uma apresentadora

fictícia, interpretada por Renata Gaspar), combinando imagens de diferentes texturas, capturadas em

vários suportes. Encenações convivem com entrevistas e material de arquivo.

Há um pouco de humor forçado, como se a todo momento fosse necessário recorrer a coisas

"espertas" -e a mais infeliz dessas idéias talvez seja um trio de supostos telespectadores sedentários

e imbecilizados.

Na simplificação característica da TV, algumas impropriedades são cometidas. O plano-

sequência, por exemplo, não é uma invenção do cinema iraniano, e apreciá-lo não é uma

exclusividade do espectador oriental, como se sugere.

Entrevistados sem muito o que falar ("tipo assim", seres audiovisuais?) são ouvidos. Não

seria melhor pedir, no espírito do programa, que entregassem um vídeo com as respostas? (SÉRGIO

RIZZO)

Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 14/09/08

(13) Cineasta revisita Inconfidência com ironia

COLUNISTA DA FOLHA

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Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de maneira ufanista

o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro da Educação, Jarbas

Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes sobre temas históricos. "Os

Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim Pedro de Andrade a essa convocação.

Por outro lado, é uma reflexão ousada e dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em

tempos de transformação política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão

fartamente dos poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento

brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no enforcamento de

Tiradentes (interpretado por José Wilker).

Balé da conspiração

Em contraste com a exuberância tropicalista do longa-metragem anterior do cineasta,

"Macunaíma" (1969), "Os Inconfidentes" é marcado pelo rigor da "mise-en-scène" e por um humor

crispado. Com movimentos longos e lentos, a câmera acompanha o balé dos conspiradores nas idas

e vindas de seus conchavos, configurando uma sutil e complexa coreografia moral. A postura dos

personagens é quase hierática, a dicção é de tribuna. É como se eles falassem conscientemente para

a posteridade. O que dá vida, pulsação e verdade a esses revolucionários de gabinete é, a par da

ambientação nas cidades históricas e montanhas de Minas Gerais, a extraordinária competência de

um punhado de atores: Fernando Torres, morto na última quinta-feira, no papel de Claudio Manuel da

Costa; Luís Linhares (Tomás Antônio Gonzaga), Paulo César Pereio (Alvarenga Peixoto), Nelson

Dantas (Padre Toledo). Nesse ambiente de modesta aristocracia, em que os escravos negros

aparecem quase como parte da mobília das casas, a figura de Tiradentes é um corpo estranho e até

incômodo, uma espécie de porra-louca que parece ser o único a acreditar de fato na insurreição.

Mantida sob rédea curta, a ironia se manifesta em alusões sutis ao momento político em que o filme

foi feito (o papel dos militares, a dependência externa, a situação dos presos políticos), até explodir

no final, em que se exibe um cinejornal chapa-branca sobre as comemorações da Inconfidência. O

anacronismo invade a tela como uma agressão. O DVD tem extras preciosos: o curta-metragem

restaurado "O Aleijadinho" (1978), de Joaquim Pedro, com texto e roteiro de Lucio Costa, e uma

entrevista esclarecedora do crítico Jean-Claude Bernardet. (JOSÉ GERALDO COUTO)

DVD: OS INCONFIDENTES

Distribuidora: Videofilmes

Quanto: R$ 49,90

Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 07/09/08

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(14) Plano único faz inventário da estupidez

JOSÉ GERALDO COUTO

COLUNISTA DA FOLHA

"Ainda Orangotangos", longa de estréia de Gustavo Spolidoro, acompanha personagens

diversos ao longo de um dia na vida de Porto Alegre. O fato notável é que faz isso num longo e único

plano-sequência, ou seja, numa tomada contínua. O tour de force faz lembrar um filme feito há 60

anos por Hitchcock, "Festim Diabólico" -só que, neste, tudo se passava em um apartamento, e a ação

convergia para um crime. Em "Ainda...", ao contrário, a narrativa se esgarça em episódios

independentes, com a câmera abandonando sem cerimônia um personagem para seguir outro.

Resulta daí uma série de situações bizarras e banais. O fato de a câmera avançar sempre em frente

e as portas abertas nunca se fecharem traz uma qualidade vagamente onírica, um mergulho de Alice

no mundo dos horrores. Spolidoro já mostrou ter talento. Agora, precisa ter algo a dizer, pois limitar-

se a exibir um compêndio da estupidez humana ainda é muito pouco.

AINDA ORANGOTANGOS

Produção: Brasil, 2007

Direção: Gustavo Spolidoro

Com: Karina Kazuê, Lindon Shimizu, Artur José Pinto

Quando: em cartaz nos cines Frei Caneca e HSBC Belas Artes

Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 07/09/08

(15) Obra de Abbas é única no cinema iraniano

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Falar de "cinema iraniano" é, a rigor, tão absurdo quanto falar do cinema argentino, do

francês, do japonês, do brasileiro. Se existem certas características comuns, há outras que

diferenciam profundamente os filmes. E mesmo que isso não apareça com clareza num primeiro

momento, aos poucos se mostra com facilidade.

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Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de Samira

Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um filme entre garotas (e a

infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e envolve um elemento mínimo. No caso,

trata-se de duas gêmeas que vivem presas em suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).

Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de seu pai,

Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes de Abbas

Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja. Kiarostami criou uma

escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a escrever roteiros, sempre com temas

mínimos, quase inexistentes. No entanto, raramente algum deles desenvolveu essa qualidade de

espelho da obra de Abbas: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o

grande prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema, com

certeza.

Folha de São Paulo, 26/10/08

(16) Levante romeno tem registro definitivo

AMIR LABAKI

ARTICULISTA DA FOLHA

O ano de 1989 é o 1968 de minha geração. Cobri para esta Folha o braço húngaro da

revolução democrática que rasgou a "cortina de ferro", derrubou o Muro de Berlim e liquidou o império

soviético. Sua página mais violenta aconteceu na Romênia de Nicolau Ceauscescu.

"Videogramas de uma Revolução" é o documentário definitivo sobre o fim do "socialismo" romeno.

Para sua realização aliaram-se dois ensaístas, um com as imagens, o alemão Harun Farocki, outro

dos estudos de comunicação, o romeno Andrei Ujica. Nada que surpreenda, portanto, que o resultado

seja uma das mais complexas radiografias em filme do poder da imagem nas sociedades

contemporâneas.

Na esteira de mais um massacre perpetrado por Ceauscescu, entre 21 e 25 de dezembro, a Romênia

explodiu. Farocki e Ujica articulam registros audiovisuais do levante de Bucareste feitos tanto por

profissionais, da ininterrupta cobertura televisiva, como por amadores, de inúmeros cinegrafistas

independentes. O que assistimos é como foi a revolução ao vivo.

Extras como prefácio

Farocki e Ujica radicalizam a máxima de Mathew Brady, o fotógrafo maior da Guerra Civil dos

EUA (1861-1865): "a câmera é o olho da história". Mais que isso: subvertem de autoritário para

libertário o panóptico global da multiplicação de câmeras. Vão além: editam e ordenam as imagens

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mas também as comentam. "Ônibus 174", de José Padilha, e "Santiago", de João Moreira Salles,

beberam nestas águas.

Ceaucescu se impôs à custa de sangue e à custa de sangue foi deposto. A execução dele e

de sua esposa Elena, no dia de Natal, foi vista por todos na TV, como para provar que o pesadelo de

fato acabara. Aquela cena está para as imagens em movimento como as fotos do cadáver de Che

Guevara para a fotografia. Há algo de belo em que o texto que revelou Ujica, muito antes do filme, se

chamasse "O Ultimato das Imagens".

Como sempre na Coleção Videofilmes, dois extras complementam impecavelmente o

lançamento. São "O Rei do Comunismo Pompa e Esplendor de Nicolau Ceausescu", dirigido por Ben

Lewis para a BBC, e "Um Dia na República Popular da Polônia", de Maciej J. Drygas. Em seus estilos

distintos, respectivamente o filme reportagem e o documentário de arquivo cumprem a mesma

função: como prefácios, apresentam o universo do chamado "socialismo realmente existente" antes

da retumbante queda do tirano.

VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO

Direção: Harun Farocki e Andrei Ujica

Distribuidora: Videofilmes

Quanto: R$ 50 (em média)

Classificação: não informada

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 26/10/08

(17) Majidi filma com fé as provações de Deus

SÉRGIO RIZZO

CRÍTICO DA FOLHA

Primeiro cineasta iraniano indicado ao Oscar de filme estrangeiro com "Filhos do Paraíso"

(1997), Majid Majidi trabalha "em nome de Deus", como informam os créditos de "A Canção dos

Pardais". Em "A Cor do Paraíso" (1999), que Majidi abria com o mesmo letreiro, Deus era

mencionado diversas vezes e um movimento de câmera, combinado a um efeito de iluminação,

sugeria a Sua presença. Aqui, a interferência divina é oblíqua. Prêmio de melhor ator no Festival de

Berlim deste ano, Reza Najie volta a interpretar um disciplinador pai de família (papel que fez em

"Filhos do Paraíso"), devotado também à criação de avestruzes da fazenda onde trabalha.

O desemprego bate à sua porta, no entanto, e ameaça transformá-lo em outra pessoa,

terrivelmente pressionada pela dificuldade em ganhar dinheiro. À semelhança dos motoboys

paulistanos, ele encontra a alternativa de rodar com sua velha motocicleta, agora um táxi, pelas ruas

apinhadas de Teerã.

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Como desgraça pouca é bobagem, uma de suas filhas quebra o aparelho de audição, sem o

qual não consegue estudar, e o filho sonha obsessivamente com uma criação de peixes. As

provações parecem afastar o protagonista do caminho do bem (ou de Deus), mas a fé com que Majidi

filma envolve também seus personagens.

A CANÇÃO DOS PARDAIS

Quando: hoje, às 21h, IG Cine; amanhã, às 19h, na Faap

Classificação: não indicado a menores de 14 anos

Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 26/10/08

(18) Obra de Brillante Mendoza privilegia cinema sensorial

CÁSSIO STARLING CARLOS

CRÍTICO DA FOLHA

Quando exibido em competição em Cannes em maio, "Serbis" foi considerado por parte dos

jornalistas mera provocação, o tipo de filme que teria sido mais correto programar para uma das

paralelas do que no time dos candidatos a maiorais.

O cotidiano de uma família que vive no interior de um decadente cinema que exibe filmes

pornográficos, em meio a uma fauna de homossexuais e travestis que praticam sexo anônimo pelos

corredores, pareceu no mínimo extravagância ou, no máximo, mau gosto.

Ao lado de Lav Diaz, cujo longuíssimo "Melancholia" também foi selecionado com acuidade

para esta 32ª Mostra, a exibição do filme de Brillante Mendoza justifica-se, por um lado, pela vocação

informativa do festival paulistano.

Pois a cinematografia filipina, que teve um farol internacional nos anos 70 e 80 por meio do

nome de Lino Brocka, voltou a ser foco de atenções com a emergência de um grupo de realizadores

autorais.

Sem moralismo

Mendoza não é novato. "Serbis" é o sexto longa de uma carreira produtiva que começou em

2005 com "O Massagista" (exibido na 29ª Mostra, após vencer o Festival de Locarno).

"Serbis" reafirma a inclinação de Mendoza por um cinema sensorial, no qual corpos, sons e espaços

ganham primazia frente à psicologia ou à clareza do relato. Como em "Adeus Dragon Inn" e "O Sabor

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da Melancia", do malaio Tsai Ming-liang, o filme do filipino explora signos como a sexualidade em

lugares públicos e a presença recorrente de fluxos (corpóreos e materiais).

Ao contrário de Tsai, cuja obsessão pela incomunicabilidade se expressa na forma de

bloqueios interpessoais e espaços inundados, "Serbis" prefere dar um sinal positivo ao que mostra:

crianças passeiam de carrinhos e os frequentadores em busca de sexo convivem abertamente com

os moradores do espaço. A encenação convida a despojar o olhar do moralismo e a enxergar ali algo

que simboliza circulação e conexão.

A certa altura, a câmera escapa do confinamento e ganha a rua, revelando num letreiro o

nome do cinema: Família. Sinal de que, na visão de Mendoza, a vida é melhor num bordel do que

numa prisão.

SERBIS

Quando: hoje, às 17h40, na Cinemateca (sala BNDES); quarta, às 13h30, no Cinesesc

Classificação: não indicado a menores de 18 anos

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 26/10/08

(19) Domingo reúne filmes subestimados

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Talvez seja por milagre, talvez não. O certo é que este domingo está cheio de filmes

atraentes. Por exemplo, "Meu Tio da América" (Futura, 22h; não recomendado para menores de 12

anos), um Alain Resnais que há muito saiu do circuito.

Mas há dois filmes brasileiros bem subestimados e interessantes. Um deles, "Brasília 18%"

(Canal Brasil, 18h30; 16 anos), entra na cota habitual de filmes de Nelson Pereira dos Santos

simplesmente incompreendidos. Há ali secura, corrupção, alucinações -coisas típicas de Brasília.

Mais do que isso, no entanto, convém lembrar de "Rio 40 Graus", o primeiro filme do diretor. Ali, havia

uma capital (o Rio) de um país modesto, atrasado, mas tremendamente esperançoso em relação ao

futuro. A Brasília de Nelson não dá espaço à esperança nem ao futuro: é tão fossilizada quanto o

nome, brandido em vão, de nossos vultos literários.

Quanto a "Saneamento Básico, o Filme" (TC Pipoca, 20h; 12 anos), de Jorge Furtado, não

deu certo em grande parte devido ao nome infeliz, que parece o de um árido documentário. Na

verdade, estamos diante de uma comédia em que a burocracia e o cinema se encontram, quando o

povo de uma cidadezinha tenta conseguir verba para tratamento de esgoto, mas não existe o

dinheiro. Existe para a produção de vídeo. Uma mão lava a outra, então. Ou suja, se se preferir.

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Folha de São Paulo, 19/10/08

(20) Joaquim Pedro de Andrade reinventa Oswald

COLUNISTA DA FOLHA

"O Homem do Pau-Brasil" (1981), último filme de Joaquim Pedro de Andrade (1932-88), foi

recebido com certa má vontade à época em que foi lançado. Suas ousadias formais e seu desprezo

pelo "realismo" televisivo iam na contramão da tendência domesticada que então se impunha mesmo

entre os remanescentes do cinema novo, empenhados na busca de um suposto diálogo com o

grande público.

Não por acaso, o filme era dedicado a Glauber Rocha, que morrera naquele mesmo ano e que

também se recusara a sucumbir ao comodismo geral. Mas o que é "O Homem do Pau-Brasil"? Em

poucas palavras, a recriação ficcional de episódios da vida e da obra de Oswald de Andrade. Mais do

que isso, porém, trata-se de uma tentativa de discutir o legado modernista em sua vertente mais

radical e experimental.

No filme, agora lançado em DVD, esse experimentalismo começa na escalação do elenco.

Dois atores, um homem (Flávio Galvão) e uma mulher (Ítala Nandi), representam Oswald, como a

indicar dois aspectos da sua personalidade, o masculino e o feminino, yin e yang.

Antinaturalismo

O tema da antropofagia, do "quem come quem" (nos vários sentidos do verbo), perpassa todo

o filme, repleto, desde o título, de figurações do falo, signo de potência criadora, pelo menos até

desembocar na utopia final oswaldiana do matriarcado. A reconstituição de época é estilizada,

antinaturalista, e o tom da encenação é farsesco.

Boa parte da narrativa é ambientada em um navio que viaja da Europa para o Brasil, trazendo

artistas, cientistas, missionários jesuítas. O trânsito, ou antes, o entrechoque entre a cultura européia

e a energia brasileira é a própria matéria do filme.

Todo o elenco é brilhante, e o destaque fica para Dina Sfat interpretando uma Tarsila do

Amaral que oscila entre a extrema finesse e a mais deliciosa grossura.

Visto hoje, quando nos habituamos a um cineminha rasteiro e medroso, "O Homem do Pau-

Brasil" parece um objeto absurdo. Só os filmes de Julio Bressane, de algum modo, podem dialogar

com ele. Nos fornidos extras do DVD, o destaque é o documentário "Cinema Novo", realizado

também por Joaquim Pedro em 1967, mostrando, no calor da hora, os filmes realizados então por

Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues etc.

Documento inestimável de uma época de efervescência criadora e coragem artística. (JOSÉ

GERALDO COUTO)

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O HOMEM DO PAU-BRASIL

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

Distribuição: VideoFilmes

Quanto: R$ 49,90 (em média)

Classificação indicativa: livre

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 19/10/08

(21) "Longe Dela" cativa pela sensibilidade

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Se Julie Christie tivesse ganho o Oscar por "Longe Dela" (HBO, 1h05; não recomendado para

menores de 12 anos), o que aliás seria bem merecido, a repercussão desse filme de Sarah Polley

seria outra.

Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de Alzheimer. O

roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no que tem de particular ou de

geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de modo que não devemos estabelecer uma

relação obrigatória entre idade e doença). É culta, casada há muitos anos, ama e é amada.

Essa última circunstância é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma "love story" para ser engolida

pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a saber: a perda progressiva de memória.

Sarah Polley trabalha com inteligência: usa o caso de amor para, por um lado, tornar palatável esse

mal horrível (esquecer de si mesmo equivale a morrer em vida, não?). Por outro, coloca Grant

(Gordon Pinsent, também notável), o marido, num estado de perfeita solidão. Cabe a ele amar uma

pessoa incapaz sequer de reconhecê-lo. É a mesma com quem viveu e, ao mesmo tempo, não é.

O terrível num filme desses é que, por melhor que se faça, sempre o mal será visto antes da obra. E

não se admitirá que este é um filme estimável não só por sua grande atriz mas também porque foi

feito com muita sensibilidade.

Folha de São Paulo, 12/10/08

(22) Em "Bourne", Estado suprime liberdade

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

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A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da Guerra Fria é

que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a liberdade; alguns segundos

depois descobrimos que a liberdade consiste em escolher uma operadora de telefone, ou de escolher

certa marca de cerveja.

No passado, a liberdade tanto podia ser essa, liberal, que conhecemos hoje (que, parece, a

que está em crise financeira), como a sonhada pela humanidade a partir do desenvolvimento da

indústria, sonho segundo o qual as máquinas nos libertariam e trabalhariam por nós (é o ponto de

René Clair em "A Nós a Liberdade", 1931).

A trilogia Bourne, que se fecha com "Ultimato Bourne" (TC Premium, 18h10; não

recomendado para menores de 14 anos), recoloca, em parte, essa questão. Afinal, o agente Bourne é

o sujeito que, para começar, renuncia não só à liberdade como à identidade em favor do seu país.

Mas o que é "o seu país"? Eis o que ninguém mais sabe direito. Bourne busca neste episódio

identificar onde está o começo de toda sua desgraça. Claro, são pessoas que tomaram um aparelho

estatal (o de espionagem) e ameaçam privar os outros da liberdade (ou da vida) caso se oponham a

eles. É o momento em que o desejo de poder se mostra maior que tudo. Fritz Lang mostrou como

isso funcionava, na Alemanha de 1932, em "O Testamento do Dr. Mabuse".

Folha de São Paulo, 05/10/08

(23) Bertolucci converte história em cinema

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

A história é um personagem constante nos filmes de Bernardo Bertolucci: "O Conformista"

nos remetia à Itália fascista; "1900" passava em revista certo século 20; "O Último Imperador"

recuperava a história recente da China.

O viés de Bertolucci parece depender da produção: se tem meios à disposição, não evita o

painel grandioso. Mas, se não for o caso, consegue se virar buscando um viés capaz de interessar o

espectador.

Que "Os Sonhadores" (TC Cult, 22h; não indicado a menores de 16 anos), de 2003,

interessa, interessa. Lá estão, unidos, Paris, 1968 e a cinefilia. Para quem gosta de cinema, é difícil

pedir mais. Mas havia, ainda, a revelação de Eva Green, a estonteante.

No entanto, a história parece se esvair, esvaziada, ao longo do filme. Tudo começa na

Cinemateca Francesa e segue para a revolta da Cinemateca (que grande quantidade de cinéfilos

considera o início do Maio de 68).

Dos encontros aí acontecidos surge uma história de apartamento, de amores, de

experiências, de transgressões, envolvendo os três personagens do filme -como bons cinéfilos de 68,

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alheios ao mundo.

Até que, em determinado momento, o mundo, o mundo de Maio de 68, portanto um mundo

cinematográfico, vem ao seu encontro. Tem-se a impressão de que aí se revela o sentido dos filmes

de um esteta como Bertolucci. Nele, a história existe para virar cinema.

Folha de São Paulo, 30/11/08

(24) C.O.N.T.R.O.L.E. volta em dose dupla

SÉRGIO RIZZO

CRÍTICO DA FOLHA

Quando o intrépido agente Maxwell Smart trombou pela primeira vez com as portas

automáticas da sede do C.O.N.T.R.O.L.E., em 1965, a palavra "franquia" ainda não era usada para

personagens e séries de cinema ou televisão. A protagonizada por James Bond, uma das mais bem-

sucedidas da história, ainda estava no quarto longa-metragem e talvez nem mesmo seus produtores

imaginassem que chegasse ao século 21.

A ressurreição de Smart, contudo, encontrou em 2008 cenário bem diferente. Agora,

personagens bem-sucedidos são tratados pelos estúdios como marcas a explorar de todas as formas

possíveis, como demonstra o lançamento em DVD de "Agente 86", nova versão do seriado para o

cinema, acompanhada de outro longa, "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle".

No primeiro, Steve Carell ("O Virgem de 40 Anos") substitui Don Adams (1923-2005) como Smart,

agente de uma central de inteligência (por assim dizer) dos EUA que enfrentava, nos tempos da

guerra fria, seus rivais soviéticos da K.A.O.S. - paródias da CIA e da KGB que incorporavam também

ironias ao estilo britânico de espionagem personificado por Bond. Criado por Mel Brooks e Buck

Henry, Smart passa por um banho de loja de alta tecnologia nessa adaptação moderninha que

também o torna menos tolo do que no original de TV, da mesma forma que sua parceira de

aventuras, a Agente 99 (Anne Hathaway, de "O Diabo Veste Prada", no papel que era de Barbara

Feldon), fica mais independente e durona.

O longa apresenta também uma dupla de personagens secundários, os jovens cientistas Bruce (Masi

Oka) e Lloyd (Nate Torrence), que desenvolvem as traquitanas usadas pelos agentes do

C.O.N.T.R.O.L.E. Em "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle", eles se tornam protagonistas de

aventura em torno de um manto de invisibilidade que vai parar nas mãos do ditador do fictício

Maraguai (entre o Paraguai e o Uruguai...).

Como a ação transcorre em paralelo à de "Agente 86", Smart é mencionado diversas vezes e

a Agente 99 faz uma participação especial, mas prevalece o humor juvenil nessa versão dirigida em

especial a adolescentes. Se bater saudade de Don Adams, já saíram em DVD as duas primeiras

temporadas da série original, com 30 episódios cada, o telefilme "Agente 86, De Novo?" (1989) e a

temporada única da segunda versão para TV (1995).

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AGENTE 86

Distribuidora: Warner (R$ 45)

Avaliação: regular

AGENTE 86: BRUCE E LLOYD - FORA DE CONTROLE

Distribuidora: Warner (só locação)

Classificação: não indicado a menores de 12 anos (ambos os filmes)

Avaliação: ruim

Folha de São Paulo, 30/11/08

(25) Rezende faz valer a individualidade

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Pode-se dizer o que melhor se achar dos filmes de Sérgio Rezende, mas nunca que lhes falta

coerência. Com uma ou duas exceções, são filmes que biografam personagens históricos

("Lamarca") ou ficcionalizam fatos históricos ("Guerra de Canudos") na perspectiva de falar a um

público amplo.

São filmes de estrutura tradicional, como "Zuzu Angel" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado para

menores de 14 anos), e, falemos francamente, não fazem uma idéia muito boa do cinema, que não

aparece ali como produtor de conhecimento, mas, essencialmente, como divulgador de verdades

produzidas fora dali.

A estrutura e a mise-en-scène optam pelo tradicional, às vezes até demais. O mundo que

Rezende propõe, de modo geral, é simples: há os bons, maus, os certos e errados. Tudo para facilitar

o público. A questão é: por que os filmes de outros países não precisam dessas simplificações para

existir e, inclusive, atrair público?

No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais evidente é a

censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de seu filho durante a ditadura

militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus e terras em busca de respostas.

Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela

individualidade. A história passa um tanto ao largo.

Folha de São Paulo, 23/11/08

(26) Filme de Cukor aproxima a vida e o palco

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INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Famoso pela habilidade em dirigir atrizes, em "Fatalidade" é a um ator, Ronald Colman, que

George Cukor dedicou o melhor dos seus esforços. Foi compensador, já que Colman ficou com o

Oscar de melhor ator em 1948, enquanto Cukor ganhava o prêmio por melhor direção.

No mais, Ruth Gordon e Garson Kanin foram indicados para o Oscar de melhor roteiro por este filme

que pode ser visto como uma homenagem à arte do ator. Tony (Colman) é um famoso ator teatral

que sofre intensamente a cada novo papel dramático. Chegar ao personagem, integrá-lo à sua

personalidade, vivê-lo inteiramente durante duas horas é um exercício doloroso. A ponto de, quando

alguém lhe pergunta quem é, responder é um problema. Não é difícil depreender que as coisas

tornam-se ainda mais dramáticas quando ele vai fazer o Otelo de Shakespeare.

Por um lado, mais dramáticas. Por outro, um tanto esquemáticas. Embora Gordon e Kanin

evitem deter-se no ciúme de Otelo, é inevitável que se desenvolva um paralelismo que tende ao

esquemático entre a peça e o filme.

Talvez aí esteja o paradoxo do filme. Como Otelo termina por matar Desdêmona, sabemos

que há mulheres correndo perigo -em cena ou fora dela. E Cukor cria cenas fantásticas a partir desse

pressuposto.

Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony estrangula não

só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-mulher -o público do teatro, e

nós também, ficamos em suspense, sem saber em que nível estamos, se no da vida ou no da

representação.

Embora esses momentos sejam intensos, o fato é que, até a cena de assassinato (sim,

acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua maior vocação é para uma

magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson Kanin escreveu com maestria (às vezes na

companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama

existisse sobretudo para ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.

Depois que o crime acontece, no entanto, o filme adquire gravidade e coloca em oposição Tony, o

ator, e Bill (Edmond O'Brien), o agente de imprensa, ou, se se prefere, o gênio e o medíocre. Ou seja,

é exatamente quando "Fatalidade" mostra sua face de trama policial que o aspecto filme de

bastidores se manifesta plenamente: o palco e a vida se comunicam de maneira mais intensa, e a

teatralidade se mostra pelo aspecto mais rico.

FATALIDADE

Direção: George Cukor

Distribuição: Lume Filmes

Quanto: R$ 37,50 (em média)

Classificação indicativa: não informada

Avaliação: bom

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Folha de São Paulo, 23/11/08

(27) Essência escapa em "O Gosto da Cereja"

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência mesmo de "O

Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O filme nos mostra a trajetória

de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que busca alguém para se ocupar de seu

corpo após a morte.

Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas a quem dá

carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra resistências, é óbvio, mas,

mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter sagrado etc.

Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a convicção de que o

essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem deseja se suicidar. Correu, na

época do lançamento do filme, que esse homem seria homossexual, o que configuraria um duplo

crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo o suicídio).

A explicação está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no filme: Badii

surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que preste um serviço. Não é do

feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não porque fuja delas. É que seu cinema funciona

como um espelho. Ele nos dá exatamente o que dele recebemos.

Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que retiramos da imagem é o que lhe

damos.

Folha de São Paulo, 16/11/08

(28) Sem cortes, Sokúrov encena a história russa

CÁSSIO STARLING CARLOS

CRÍTICO DA FOLHA

O espectador leigo de cinema fica a ver navios quando críticos e teóricos se lançam a elogiar

um filme elencando as virtudes com base no uso de tantos planos-sequências. O termo é técnico e,

portanto, jargão, inadequado, segundo regras, para ser usado em textos jornalísticos. Mas como

explicitar as qualidades de "Arca Russa", filme realizado numa única tomada de 97 minutos, ou seja,

num único plano-sequência, sem explicar do que se trata e para que serve? Sejamos didáticos,

portanto.

Um filme, como um livro, uma novela ou uma história em quadrinhos, é feito de centenas de pontos

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de vista, perspectivas sobre ações, personagens e objetos. A cada um desses recortes de filmagem

se dá o nome de "plano". No processo seguinte, a montagem, o editor se encarrega de colocar ordem

e ritmo nesses pedaços, construindo sequências e, com a sucessão delas, o filme que vemos.

Nessas operações, trata-se portanto de reinventar a realidade, primeiro por meio da encenação nas

filmagens, depois colocando certa ordem que nos dá impressão de realidade.

Contra esta "realidade", alguns cineastas começaram a rodar cenas em planos longos, sem

cortes, num modo, segundo críticos e teóricos importantes, de se aproximar ao máximo da realidade

(supostamente mais "real" do que aquela outra). Sem cortes, acreditava-se, não há manipulação

daquilo que se vê. Ou, mais importante, mantém-se a unidade de espaço e de tempo, proporcionando

ao espectador acompanhar uma ação em sua integridade e, de quebra, em sua verdade.

Ora, o projeto do diretor russo Aleksandr Sokúrov em "Arca Russa" foi levar ao limite as tentativas

anteriores de realizar um filme inteiro sem cortes, tecnicamente impossível antes do advento da

câmera digital. Mas, ao contrário de seguir o culto do fetichismo realista, o plano-sequência que

constitui "Arca Russa" transmite outras significações que não o do culto da veracidade.

A longa tomada foi feita nos extensos salões e corredores do Museu Hermitage, que ocupa

um majestoso palácio imperial em São Petersburgo. Como proeza técnica, a ambição de Sokúrov e

equipe não se esgota no virtuosismo. Trata-se de usar a fluidez (trazida pelo movimento contínuo da

imagem) como meio de encenar a história do país, interpretando-a.

Desse modo, passado e presente se interpenetram na imagem, dando-nos a ver a história

como um processo contínuo que avança "sem cortes". Ao contrário, continua, se reproduz,

reencontra-se por meio de um fluxo no qual nada se perde, tudo se transforma.

ARCA RUSSA

Direção: Aleksandr Sokúrov

Distribuidora: Versátil Home Vídeo

Quanto: R$ 37, em média

Classificação: não indicado a menores de 14 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 16/11/08

(29) Oliver Stone faz seu melhor filme desde "Wall Street"

PEDRO BUTCHER

CRÍTICO DA FOLHA

Como se sabe, "W.", de Oliver Stone, é um filme polêmico. Recria pedaços da vida de

George W. Bush, o ainda presidente dos Estados Unidos, com ironia e sarcasmo. Traz um aspecto

inegavelmente corajoso e que talvez só se justifique dentro deste dado tão forte da cultura americana:

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a defesa da liberdade de expressão. Que outro país produziria a biografia de um presidente da

República, vivo e ainda no poder, mesmo se desmoralizado e enfraquecido?

"W." é, no mínimo, um filme divertido de ver. Personagens que frequentaram os noticiários

nos últimos anos surgem aqui em versão ficcional, um pouco como costumam fazer os programas de

humor -ainda que, neste caso, de forma bem mais discreta.

Boa parte da graça está em identificar os atores caracterizados e observar suas cuidadosas

composições, principalmente aqueles que interpretam figuras marcantes do governo Bush: Thandie

Newton como Condoleezza Rice, Jeffrey Right como Colin Powell, Richard Dreyfuss como Dick

Cheney e Scott Glenn como Donald Rumsfeld.

Para além desse aspecto "passatempo" do filme, "W." é um bom estudo de personagem, um

pouco como Oliver Stone já havia feito em "Nixon" -só que, desta vez, de forma bem menos

excessiva.

Em "W.", Stone foi menos ambicioso do que em "Nixon", talvez na mesma medida da "grandiosidade"

de seu personagem central, muito bem interpretado por Josh Brolin (do vencedor do Oscar "Onde os

Fracos Não Têm Vez").

O roteiro alterna cenas da juventude de Bush e momentos cruciais de sua atuação na

presidência. Por trás da estrutura simples, escondem-se algumas idéias interessantes, relacionadas a

questões familiares. Nesse aspecto, o personagem mais fascinante é Bush pai, magistralmente

defendido por James Cromwell. O roteiro de "W.", curiosamente, traz a assinatura de Stanley Weiser,

parceiro de Stone no enredo de "Wall Street" -não por acaso, o melhor filme de Stone antes deste

"W.".

São duas crônicas políticas precisas, feitas em cima do laço, e, de certa forma, profundamente

relacionadas.

W. Produção: EUA, 2008

Direção: Oliver Stone

Com: Josh Brolin, Ellen Burstyn, James Cromwell e Richard Dreyfuss

Quando: sem previsão de estréia no Brasil

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 16/11/08

(30) Irregular, Makhmalbaf acerta em "Gabbeh"

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Está certo e não está falar do "cinema francês", ou "brasileiro", ou "americano". Está errado

porque cada cinematografia produz filmes muito diferentes entre si. E está certo porque, por mais

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diferentes que sejam, filmes de um país sempre guardarão algo de comum: uma luz, uma paisagem,

um modo de ser das pessoas etc.

Isso lhes confere uma personalidade que transcende, em larga medida, os desígnios de cada

artista. Mas será bem injusto colocar todas as obras num mesmo saco nacional. Por exemplo: os

filmes de Abbas Kiarostami pouco têm em comum com os de Mohsen Makhmalbaf.

Este último, aliás, se pauta por uma irregularidade avassaladora. "Gabbeh" (Futura, 22h, não

recomendado a menores de 12 anos) é um dos seus mais belos trabalhos a terem chegado até nós.

Gabbeh é um tipo de tapete persa, o que é bem conhecido. Menos conhecido é aquilo sobre o que

discorre o filme: a sofisticada estamparia de um gabbeh é a narrativa de uma história.

Assim como a tatuagem pode ser um relato, as figuras do gabbeh são como que o resumo de uma

existência, com seus espantos, belezas, tragédias. Aqui, em linhas gerais, é a história de um amor

que se conta.

Se outras vezes vemos Makhmalbaf oscilar entre o autoritário e o meramente comercial ("A

Caminho de Kandahar"), em "Gabbeh" é possível encontrar momentos de verdadeira poesia.

Folha de São Paulo, 09/11/08

(31) "Vá e Veja" leva poesia a cenário de guerra

SÉRGIO RIZZO

CRÍTICO DA FOLHA

As únicas imagens documentais de "Vá e Veja" (1985) só aparecem em seus minutos finais.

Apesar de o efeito ser notável, esse clássico do filme de guerra não precisaria recorrer a isso para

aumentar a catarse anti-nazista que o orienta quase desde o início.

Quase, porque a primeira meia hora do filme trata a Segunda Guerra Mundial de longe, como o

evento que leva crianças e adolescentes a procurar armas e outros objetos de uso militar escondidos

nas areias brancas de uma aldeia na Bielo-Rússia (ou Belarus), república soviética invadida pelos

alemães, em 1943.

Um deles, Fliora (Aleksei Kravchenko), encontra um rifle e resolve abandonar a mãe e as

irmãs pequenas para se juntar a guerrilheiros. Inexperiente, não será aceito pelo comandante da

milícia, mas experimentará, primeiro acompanhado por uma jovem (Olga Mironova) e depois sozinho,

as agruras do conflito.

Sua jornada não é propriamente a de um herói, como um filme hollywoodiano tenderia a

caracterizá-la. Fliora carrega a dor profunda e a indignação de ser um sobrevivente em cenário de

apocalipse: 628 aldeias bielo-russas foram queimadas com seus habitantes pelos nazistas, informa o

próprio "Vá e Veja" (ou "venha e veja", no título em inglês). Último dos cinco longas dirigidos pelo

russo Elem Klimov (1933-2003), que teve atuação política expressiva (sobretudo como secretário da

associação de cineastas do país) nos tempos de URSS, ele se inspira parcialmente em episódios de

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guerra vividos por ele e sua família em Volgogrado (na época, Stalingrado).

A forte estrutura estatal do cinema soviético, que reunia 39 estúdios espalhados pelas repúblicas,

possibilitou que Klimov trabalhasse aqui em escala de superprodução, sob o guarda-chuva do

Mosfilm, em Moscou, e do Belarusfilm, em Minsk. Não causa surpresa, portanto, que tenha obtido o

prêmio de melhor filme no Festival de Moscou.

A denúncia de atrocidades cometidas contra bielo-russos e a abordagem épica

transformaram também "Vá e Veja" em um grande sucesso de bilheteria na URSS, com cerca de 29

milhões de espectadores ("Titanic", o recordista do mercado brasileiro em toda a história, teve 16,3

milhões).

"Estes são tempos difíceis", diz um personagem. Klimov não procura maquiá-los, mas combina

poesia ao realismo para acompanhar o efeito da guerra sobre os sentidos de Fliora (com destaque

para a audição) e seu processo traumático de amadurecimento.

VÁ E VEJA

Direção: Elem Klimov

Distribuidora: Lume Quanto: R$ 37, em média

Classificação: não indicado a menores de 12 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 09/11/08

(32) Ruim e ideológico, longa consagra estética da TV

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Há um bom princípio, em "Romance": observar a contaminação do teatro pela TV no Brasil

(na trama, jovem atriz aceita trocar o anonimato do teatro pelas novelas).

A questão existe, de fato, e reflete-se no estilo de interpretação quase insuportável, porém frequente

nos nossos palcos, em que à idéia geral de que teatro consiste de gritos e gesticulação excessiva

juntou-se a autocomplacência criada pelo êxito na TV.

Aos poucos, porém, percebemos que Guel Arraes não vê na TV algo daninho. A

ridicularização das novelas mostra-se apenas um pretexto para melhor demonstrar que as relações

ali são mais complexas -e até criativas. Ou seja, o filme discute, ou finge discutir, as relações entre

uma arte "pura", mas que não fala a ninguém, e outra "impura", que fala a muitos, e explora o

território das relações entre representação e verdade. Tudo amarrado pelo paralelo maníaco entre

"vida real" (a ficção do filme) e "Tristão e Isolda" (a peça encenada de início).

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Se no nível das idéias o filme avança para o macete puro e simples, no da encenação

caminha para uma espécie de ressurreição do estilo Vera Cruz, ou de algo tão antiquado quanto. Se

no roteiro boas idéias se alternam com falatório inútil, no setor interpretação os vícios da TV atacam o

elenco em peso (exceção: Wagner Moura).

As voltas, os circunlóquios, a desgastada aproximação de clássico e moderno (saudade de

"Carnaval Atlântida", de J.C. Burle) levam à consagração da estética de TV no teatro (ver cena final) e

à vitória do bom senso sobre a paixão.

Desde os tempos do CPC (Centro Popular de Cultura), não se via nada tão carregado de

ideologia.

ROMANCE

Direção: Guel Arraes

Quando: estréia na próxima sexta-feira

Classificação: não indicado a menores de 12 anos

Avaliação: ruim

Folha de São Paulo, 09/11/08

(33) Faroeste aborda liberdade feminina

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Se não foi a primeira incursão de Claudia Cardinale ao Velho Oeste, "Os Profissionais" (TCM,

20h; classificação indicativa não informada) foi a primeira a fazer barulho. Ela vinha cercada de um

grupo de atores de primeiro time: Burt Lancaster, Robert Ryan, Lee Marvin, Ralph Bellamy, Jack

Palance etc. A direção era de Richard Brooks e a produção, muito maior do que a habitual para o

gênero.

De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um grupo de

aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que raptou sua mulher

(Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é interessante e tensa. Mas existe,

sobretudo, a dúvida: teria sido ela, de fato, raptada? Entramos num terreno muito frequentado por

Brooks: o da liberdade feminina.

O Oeste não deixa de ser um estranho lugar para abordá-la, porque lá as mulheres têm um lugar

secundário, quando têm. Mas o autor de "À Procura de Mr. Goodbar" não deixaria de achar um jeito

de encaixá-la em lugar de relevo: coisas assim são as que se espera de um cineasta liberal por

excelência.

No TCM, no entanto, o dia não é de Claudia, e sim de Burt Lancaster, de quem se festejam os 95

156

anos de nascimento e que comparece em "Baixeza" (16h30; classificação indicativa não informada) e

"Os Assassinos" (22h; classificação indicativa não informada), de Robert Siodmak.

Folha de São Paulo, 02/11/08

(34) Drama ressalta riqueza estética de Bertolucci

SÉRGIO RIZZO

CRÍTICO DA FOLHA

O escritor Alberto Moravia (1907-1990) já era uma personalidade na imprensa, na literatura e

no cinema italianos em 1951, quando publicou "O Conformista". Quase duas décadas depois, o

prestígio consolidado do autor não impediu que o cineasta Bernardo Bertolucci, então com menos de

30 anos, adaptasse o romance com liberdade em relação ao original, sobretudo no desfecho.

Enquanto o livro de Moravia usa um "herói contemporâneo" para expressar um sentimento

antifascista com a ferida ainda aberta, o filme de Bertolucci se beneficia da distância no tempo para

uma reflexão mais conectada com a idéia de ação política no final dos anos 60, que já havia fornecido

matéria-prima para "Partner" (1968). Natural, portanto, que Bertolucci considere "O Conformista"

(1970) seu atestado de maturidade como diretor: além de se apropriar de material alheio para lhe dar

sentido próprio, seu quarto longa para cinema demonstra a riqueza estética que o caracterizaria

desde então, graças também ao início de parcerias duradouras com o fotógrafo Vittorio Storaro e o

desenhista de produção Ferdinando Scarfiotti. Storaro (Oscar por "Apocalypse Now", "Reds" e "O

Último Imperador") já havia trabalhado com Bertolucci em uma produção para a TV, "A Estratégia da

Aranha", lançada no mesmo ano de "O Conformista" e também baseada em leitura muito particular

de obra literária, o conto "Tema do Traidor e do Herói", do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).

A adaptação do romance de Moravia substitui a narrativa linear original por uma estrutura em forma

de flashback, o que acentua o aspecto um tanto onírico da trajetória do protagonista Marcello Clerici

(o ator francês Jean-Louis Trintignant, que já havia feito "Um Homem, uma Mulher" e "Z"). Servidor

público que se considera diferente dos outros devido a um episódio de infância, ele quer apenas levar

uma "vida normal". Na Itália dos anos 30, o casamento com uma jovem de classe média baixa

(Stefania Sandrelli) e a militância como agente fascista lhe parecem essenciais para construir a sua

conformação social. A lua-de-mel em Paris traz sua primeira missão, aproximar-se de seu ex-

professor antifascista, cuja mulher (Dominique Sanda, que faz também duas pontas) o atrai, para

matá-lo. As idas e vindas no tempo exploram sua fragilidade, seus dilemas morais e seu processo de

tomada de consciência, que o uso significativo de cores, sombras e espaços traduz em forma de

cinema.

157

O CONFORMISTA

Direção: Bernardo Bertolucci

Distribuidora: Lume

Quanto: R$ 37, em média

Classificação: não indicado a menores de 14 anos

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 28/12/08

(35) Dramas com luta de classes são destaques

PAULO SANTOS LIMA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em "Metrópolis" (TC Cult, 15h40, não indicado a menores de 12 anos), o filho do maior

industrial da cidade apaixona-se por uma operária, o que o faz conhecer a triste realidade dos

subterrâneos onde mora o proletariado que abastece a elite que vive na superfície.

Fritz Lang, neste que não é dos seus melhores filmes, mas ainda assim é um belo exercício de

espaços e arquiteturas, comenta a Alemanha de 1926. E a questão central do filme é a luta de

classes, o que torna ainda mais ingênuo (e absurdo) o plano mostrando o aperto de mão entre patrão

e empregado.

Sobre o mesmo assunto, George Stevens foi mais agudo em 1955, com seu "Assim Caminha a

Humanidade" (TCM, 18h35, classificação indicativa não informada), em que a conciliação entre

classes é uma impossibilidade, resultando no sacrifício de uma das partes. Jett Rink (James Dean)

trabalha numa fazenda texana sob grande ressentimento e rebeldia. Para piorar, ama a mulher do

chefe que ele odeia. Até ele encontrar petróleo e enriquecer espetacularmente. A fúria

perdura, porém, e o abismo que o separa de seus patrões aumentará colossalmente. O caminho será

o da violência, sobretudo aquela que há na ocupação e sangria de um espaço e de suas coisas e

seres, como foi a do Texas, com seu gado e petróleo sendo explorados pelo homem. Neste belo

filme, Stevens fala dos EUA, evidentemente, mas também do ser humano em geral.

Folha de São Paulo, 28/12/08

(36) Brooks fez belo exercício de antecipação

INÁCIO ARAUJO

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CRÍTICO DA FOLHA

O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não recomendado a

menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou "certo é errado". Vale, primeiro,

do ponto de vista do enredo, em que um famoso jornalista de TV (Sean Connery), com ligações

importantes no Oriente Médio, se vê a horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual

não tem a menor influência.

A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que as

jogariam em Israel. Ele tomaria essa atitude como represália ao presidente dos EUA, que deseja tirá-

lo do poder.

Do ponto de vista da ficção, temos aí um belo exercício de antecipação (o filme é de 1982). Ele não

se detém na semelhança com aspectos da política internacional no século 21.

É o fato do repórter se ver perdido entre tantas visões da realidade, entre tantas versões do

mundo que mais o aproxima de nós.

Mas o aspecto mais interessante deste filme de Richard Brooks é sua distância em relação à

produção média, sua ousadia de saber se perder junto com seu herói, de não fingir que o mundo é

facilmente compreensível, nem divisível de imediato em certo/errado.

Brooks contraria, com sua proverbial honestidade, as regras do sucesso cinematográfico.

Regras cada vez mais explícitas. Paga um preço: o fracasso imediato. Mas faz um filme memorável.

Folha de São Paulo, 21/12/08

(37) Filme registra movimento grevista de 1978 em pleno olho do furacão. Documentário

impressiona pelas imagens de trabalhadores e discursos

JOSÉ GERALDO COUTO

COLUNISTA DA FOLHA

Roberto Gervitz ("Feliz Ano Velho", "Jogo Subterrâneo") e Sérgio Toledo ("Vera") tinham

pouco mais de 20 anos e eram universitários de classe média quando fizeram o documentário

"Braços Cruzados Máquinas Paradas", em 1978. Inicialmente concebido para registrar a eleição para

a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, dominado havia 14 anos pelo "pelego"

Joaquim dos Santos Andrade (o Joaquinzão), o filme foi colhido no olho do furacão do primeiro

grande movimento grevista paulistano desde o golpe militar de 1964. Na esteira das greves

metalúrgicas do ABC, cujo principal líder era um certo Lula, as fábricas de São Paulo começaram a

parar por reajustes salariais, melhores condições de trabalho e liberdade sindical. Os jovens Toledo e

Gervitz, excitados com o movimento, optaram por fazer de seu filme um instrumento, dando voz aos

operários e seus líderes. Visto hoje, 30 anos depois, "Braços Cruzados" ainda impressiona por seu

frescor e vitalidade, mas também por documentar um certo mundo operário que parece não existir

159

mais, o das grandes massas de trabalhadores braçais operando máquinas semi-manuais. Como diz,

nos extras do DVD, um dos líderes do movimento de 78, as fábricas hoje "parecem laboratórios",

onde "se bobear os operários trabalham de terno". Como os cineastas estavam envolvidos de corpo e

alma na luta da oposição para reconquistar o sindicato, grande parte do filme se concentra na

campanha eleitoral, nas eleições fraudadas, anuladas pela Justiça e depois revalidadas pelo governo

militar. Embora haja tensão no processo, é algo que hoje soa distante e datado.

Filme de amor

O que fica de mais precioso são as imagens dos trabalhadores nas fábricas, nos ônibus e

trens, nas moradias precárias. A fala dos não-militantes são quase sempre mais interessantes do que

a dos sindicalistas. Uma operária diz, indignada, na porta de uma fábrica: "Não é à toa que tem cada

vez mais ladrão e gente pedindo esmola. Vale mais roubar ou mendigar do que acordar às três da

madrugada para trabalhar na Philco e ganhar uma porcaria". A câmera de Aloysio Raulino capta com

extrema sensibilidade o balé de rostos e corpos que pela primeira vez se viam como atores da

história, e não apenas como vítimas ou espectadores. Nos extras, além de entrevistas de Gervitz e

Raulino, o destaque são os depoimentos de cinco líderes das greves de 78, três décadas depois. Ao

se rever na tela e contextualizar o movimento, eles dão uma demonstração de lucidez, coerência e

alegria que chega a comover. Um deles diz a certa altura a palavra "amor" para definir o que os une.

Para além da política, Gervitz e Toledo fizeram isso mesmo: um filme de amor.

BRAÇOS CRUZADOS MÁQUINAS PARADAS

Lançamento: VideoFilmes

Quanto: R$ 45, em média

Classificação: livre

Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 21/12/08

(38) "Wall-E" se destaca entre lançamentos de animação

Disney também sai com duas edições comemorativas com extras e restaurações

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES

DA REPORTAGEM LOCAL

160

O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas -afinal, elas

sobrevivem a tudo. Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há toneladas de sucata por

toda parte. Enquanto isso, junta de caixinhas a partes de robôs como ele. Wall-E enxerga beleza

onde só há lixo.

Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que se apaixona pela

evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado aparece no seu mundo e o domina

completamente.

A nostalgia que permeava toda a sua existência dá lugar à onipresença de Eva. Tudo em

nome do amor, embora fora de sintonia. Afinal, ela tem uma missão: encontrar registro de vida na

Terra para que a humanidade, reclusa no espaço, possa retornar ao planeta.

É uma história de amor clássica, de encontros e desencontros, perdas e ganhos, embalada

por uma mensagem ecológica, mas sem panfletarismo nem apontar o dedo para ninguém. Somos

todos errados na poluição do mundo e na nossa vida sedentária -e sabemos disso. Não é preciso um

discurso político para nos convencer.

Com o mínimo de falas, lembra muito a simplicidade dos filmes de Charles Chaplin e acerta

em cheio ao nos estender a mão para exaltar a relação entre os seres -ainda que não humanos. É

ingênuo de um jeito que sentimos saudade, sem, com isso, ser tonto. Vai ser justo se levar um Oscar.

Ou mais.

Pançudos com orgulho

Aproveitando a avidez das crianças por presentes, outros cinco lançamentos chegam ao DVD

(veja quadro ao lado).

Mais familiar, o gordinho urso Po quer ser um mestre do kung fu, embora esse "excesso de

gostosura" pareça um empecilho bem, digamos, polpudo.

Na mesma linha de "Ratatouille", em que um rato queria cozinhar, aqui a mensagem é de

enfrentar os desafios para alcançar seu sonho. Com um belo humor, não há como não torcer pelo

urso, que rouba a cena frente aos outros animais. Mas, tudo bem, eles vão ganhar um filme próprio,

conforme nos contam os extras de "Kung Fu Panda". "Os Cinco Furiosos" sai em breve em DVD.

Também fora de peso, o politicamente incorreto Shrek ganha nova franquia com uma fábula singela,

em que ele tem de aprender o que significa o Natal para cumprir seu papel de paizão dos trigêmeos.

É um subproduto, bem longe do humor que o ogro verde já produziu.

Já a concorrente Disney tem duas edições comemorativas: "A Bela Adormecida" faz 50 anos,

com uma trama bem datada, embora ainda embale muitos sonhos das meninas. Mas fica estranho

realmente em pleno 2008 uma princesa ficar esperando um príncipe chegar para levá-la do marasmo

de sua vida.

"A Espada Era a Lei", de 1963, reconta a história do rei Arthur como um garoto de 12 anos

numa Inglaterra sem rei nem lei. Acompanhado de uma coruja rabugenta, ele vai ser tutoreado pelo

mago Merlin até cumprir sua missão de herói.

161

O filme marcou a ruptura entre Walt Disney e o roteirista Bill Peet. Na época mais preocupado

com a criação dos parques, Walt deixou de lado o cinema e se arrependeu do resultado, abalando a

confiança entre eles. Dois anos depois, afastaria Peet de "Mogli" e nunca mais trabalhariam juntos.

Mas os lançamentos não são só estrangeiros. Mônica lança a terceira versão de seu "Cine Gibi". O

foco são sete planos "infalíveis" de Cebolinha para apanhar o coelhinho Sansão. Na verdade, quem

apanha é ele e o Cascão, porque são sete vezes em que suas maluquices dão bem errado. Perdeu

um pouco de fôlego essa idéia de fazer um mosaico de aventuras, mas as histórias continuam

divertidas.

Folha de São Paulo, 21/12/08

(39) Sofia Coppola revela talento em drama sobre a juventude

Em sua estréia na direção, filha de Francis Ford aborda irmãs nos anos 70

BRUNO YUTAKA SAITO

DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1999, quando estreou na direção com "As Virgens Suicidas", que tem lançamento em

DVD, Sofia Coppola ainda era lembrada apenas como a adolescente nariguda que tivera uma

atuação constrangedora em "O Poderoso Chefão 3" (90).

Foi ao entrar em contato com o livro homônimo de Jeffrey Eugenides que Sofia encontrou a

maneira de se reinventar como artista. Ela tinha à mão uma trama contemporânea, escrita como se

fosse um romance clássico, como explica o making of do DVD.

É fácil, hoje, após a consagração com seus filmes seguintes, os excelentes "Encontros e

Desencontros" (03) e "Maria Antonieta" (06), entender as razões pelas quais o livro de Eugenides

fascinou a diretora. Sofia começava ali a definir seus temas essenciais, perseguidos e seguidos à

risca nessas produções. Mais do que um cinema de "mulherzinha", ou feminista, como um olhar mais

rasteiro poderia sugerir, ela adota visão cúmplice sobre a alienação, carregada de um sentimento de

não-pertencimento, algo que extrapola as definições de sexos.

Com "Virgens...", tais sensações vêm em estado bruto, já que o foco é a adolescência. Uma

das idéias que resumem o filme está na fala de Cecilia, a irmã mais nova, após tentativa de suicídio.

"Você não tem idade para saber o quanto a vida fica difícil", diz o médico, no que ela responde:

"Obviamente, doutor, você nunca foi uma garota de 13 anos".

A questão não é entender as razões do que o título do filme entrega -a repressão dos pais

não explica o ato das cinco irmãs. Prevalece o inexplicável.

A estrutura escolhida por Sofia garante a magia. A história vem narrada por homens que na

época -o longa se passa nos anos 70- eram apenas moleques apaixonados pelo quinteto. Eles

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relembram garotas que permanecerão para sempre em suas memórias, perfeitas, belas e intocadas.

Sofia parece evocar astros que morreram jovens, como James Dean ou Marilyn Monroe, para

vasculhar o voyeurismo e o fetichismo.

Para completar, a trilha do duo francês Air garante o clima onírico, de beleza mórbida,

necessário a esse filme que só melhora com o tempo.

AS VIRGENS SUICIDAS

Direção: Sofia Coppola

Distribuidora: Paramount (à venda exclusivamente nas lojas da rede

2001; site: www.2001video.com.br, por R$ 19,90)

Classificação: não indicado para menores de 16 anos

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 14/12/08

(40) Francesa faz filme sem grandes pretensões

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

Em "Um Lugar na Platéia" (TC Premium, 12h30; não indicado a menores de 12 anos) existe

um pianista cansado do estrelato e dos infinitos compromissos de sua agenda. Existe também um

velho "self-made man" disposto a se desfazer de sua preciosa coleção de arte, um filho professor

universitário que não se entende com o pai, uma atriz que faz sucesso com um novelão de TV, mas

acredita que esse sucesso vai afastá-la de bons papéis.

O que esses personagens têm em comum é que frequentam o café onde trabalha Cécile De

France, ou Jessica, que, por sua simpatia, acaba transitando entre as mais sólidas neuroses

artísticas com alegre desenvoltura. Ninguém dirá que Danièle Thompson realizou um grande filme.

Não se trata disso. Mas se trata de criar uma matinê que se possa ver sem maiores compromissos,

mas que não ofenda nem a inteligência, nem a vista do espectador. É o que se chama de um produto

digno.

Isso tornou-se muito menos frequente do que seria desejável. É como se os produtores, pressionados

pelos altos custos e pelo medo decorrente, só soubessem arriscar no certo, ou seja, não arriscar.

Há um monte de filmes nessa categoria hoje. Não, certamente, os brilhantes "Crepúsculo dos

Deuses" (TC Cult, 22h; não indicado a menores de 12 anos), de Billy Wilder, ou "Dália Negra"

(mesmo canal, 0h05; não indicado a menores de 14 anos), de Brian de Palma.

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Folha de São Paulo, 07/12/08

(41) Coutinho deixa o espectador sem chão

JOSÉ GERALDO COUTO

COLUNISTA DA FOLHA

Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que exponha suas

verdades mais íntimas e profundas. Essa idéia, esboçada em obras anteriores de Eduardo Coutinho,

como "Santo Forte" e "Edifício Master", ganha uma evidência incontornável em seu documentário

mais recente, "Jogo de Cena", que chega agora ao DVD.

O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta convidava mulheres a

falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram selecionadas e

filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus

entrevistados como "personagens", em "Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso,

misturando depoimentos de mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas

histórias narradas por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão,

Fernanda Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.

O efeito desse ardiloso embaralhamento é deixar o espectador sem chão, em dúvida sobre

quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem, afinal, viveu o quê.

Os extras do DVD, ao exibir as entrevistas prévias das selecionadas com a assistente do diretor,

Cristiana Grumbach, revelam que o jogo foi além: há, entre as depoentes, uma que conta a história

de outra, que por sua vez narra uma terceira história, que já não sabemos mais a quem pertence.

De certo modo, revelar esses depoimentos de bastidores é um pouco como desmontar o brinquedo

para descobrir como funciona, e a sensação se reforça com a já tradicional "faixa comentada", em

que Coutinho fala sobre seu filme com o cineasta João Moreira Salles e o crítico Carlos Alberto

Mattos. Mas, por estranho que pareça, essa revelação dos mecanismos ilusionistas do filme, em vez

de diminuir seu impacto emocional, acaba por intensificá-lo. Na organização desses múltiplos

discursos sobre dramas pessoais em que quase sempre sobressai a relação com os filhos ou, mais

raramente, com os pais há todo um questionamento do estatuto da representação, da condição

feminina e da própria noção de verdade.

Mas há também uma carga de vivência humana quase insuportável. "Jogo de Cena" pode ser

visto, se quisermos, como um estudo sobre as lágrimas e seu modo de produção o que dificilmente

impedirá o espectador de verter algumas ao longo da sessão.

Folha de São Paulo, 07/12/08

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(42) Rigoroso, "O Hospedeiro" é falso trash

PAULO SANTOS LIMA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O trash é uma valoração meio complicada ao cinema, arte que transita entre estéticas

irregulares sem necessariamente trair o bom enquadramento, a boa imagem.

Um certo público médio francês, nos anos 50, por exemplo, achava os filmes de Claude Autant-Lara

um primor de requinte. Os críticos da "Cahiers du Cinéma", lúcidos, esclareceram que esse cinema

clássico, todo "chique", era um lixo.

Pois "O Hospedeiro" (TC Action, 22h, não indicado a menores de 12 anos) talvez pareça meio

"filme de moleque" para alguns, ou mesmo trash (sim, o termo hoje é utilizado como coringa na

manga).

E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a do cinema de

gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título, inclusive, é um CGI

confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo bonito na indústria, Bong faz de

seu filme algo extremamente político.

Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos (os EUA

colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão que pai de sua filha e

que terá de salvar alguns tantos.

Nesse clima um tanto tresloucado, há espaço também para o terror, até o desfecho que

emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV brasileira exibia nos anos 70.

Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.

Folha de São Paulo, 04/01/09

(43) Em nome da mãe

"Maysa - Quando Fala o Coração", minissérie sobre a vida turbulenta da cantora de "Meu

Mundo Caiu", dirigida por seu filho, Jayme Monjardim, estrÉia amanhã na Globo

LAURA MATTOS

DA REPORTAGEM LOCAL

Jayme Monjardim, 53, é conhecido, entre outros trabalhos, pela direção inovadora na novela

"Pantanal" e pelo filme "Olga". A partir de amanhã, será o filho da cantora Maysa.

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Diretor da Globo, ele leva ao ar na emissora o grande projeto de sua vida: uma minissérie de nove

capítulos sobre a turbulenta vida de sua mãe (1936-1977), estrela da música brasileira de carreira

internacional, celebrizada pela interpretação de "Meu Mundo Caiu", entre outros grandes sucessos do

samba-canção e da bossa nova.

Fora dos palcos, sua vida foi marcada por atitudes controversas, paixões polêmicas, abuso

de álcool, de moderadores de apetite e tentativas de suicídio. Morreu aos 40, em um acidente de

carro na ponte Rio-Niterói.

Monjardim tinha apenas dois anos quando Maysa se separou de seu pai, o bilionário André

Matarazzo, e foi deixado na casa de avós, sendo criado por uma empregada. Aos seis, quando o pai

morreu, o "jogaram" em um colégio interno na Espanha por quase dez anos.

Uma cena criada pelo autor da minissérie, Manoel Carlos (leia entrevista à pág. E3), tenta resumir o

sofrimento e a sensação de abandono: em uma rara visita ao internato, Maysa se depara com o filho

pequeno doente e diz que não irá beijá-lo para não correr o risco de se resfriar e prejudicar sua voz.

Monjardim, que diz nunca ter feito análise, contou à Folha que se manteve "congelado" ao rever -e

dirigir- cenas tão dramáticas de seu passado.

FILHO X DIRETOR

Consegui separar o filho do diretor, ter um distanciamento suficiente para não sofrer ou me

emocionar. Sem isso, não poderia ter feito esse trabalho.

Já imaginou gravar essa cena [em que Maysa não beija Monjardim no internato] e começar a

chorar? Me dediquei a esse projeto, talvez o mais importante na minha vida, para contar uma linda

história de amor. O projeto é tão elevado, já sofri tanto por ser um menino sozinho, que parece outra

encarnação. Mas, quando assistir na TV, não sou mais diretor, e sim o filho. Aí não me responsabilizo

pelo que vou fazer, porque até agora estou congelado.

CENAS FORTES

A minissérie é um resumo muito sutil do que aconteceu. Aquilo foi um beijo, mas imagina

passar dez anos em um colégio interno sozinho. Os dez anos foram tão violentos que essa cena não

é mais violenta para mim. O que tinha que chorar já foi. [A cena em que Maysa é encontrada em uma

banheira cheia de sangue após cortar os pulsos] Não vi, mas vi muitas outras. Vivi cenas muito

difíceis. Mas isso não é um problema para mim. Não tenho defeitos de fabricação por causa disso.

Todos os filhos de artistas passam por problemas não tão diferentes dos que eu passei. As grandes

estrelas são complicadas, polêmicas, intensas. Algo tem de especial, não são normais. Acabam

fazendo besteiras e vivendo loucuras.

ABANDONO

Nunca fiz análise. Na minha vida inteira me virei sozinho. Imagina ficar sozinho em um

colégio interno, sem sair nem para as férias, durante dez anos.

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Não falava português direito e até hoje não sei escrever em português. Mas foram 30 anos de

análise em dois anos que estou nesse projeto da minissérie. Não tenho por que ficar me lamentando.

Eu sou tão realizado. Tenho três filhos lindos, uma mulher linda, ganho muito bem para fazer o que

gosto.

Por que reclamar do meu passado? Trabalhei anos para acabar com os meus monstrinhos.

ACERTO DE CONTAS?

[Sobre cena em que André Matarazzo cobra de Maysa atenção ao filho: "Um dia ele vai

crescer e há de julgar a boa mãe que você foi ou deixou de ser"] É lógico que já a julguei mal pra

caramba. Tinha raiva, era revoltado, pô, como minha mãe me largou em um colégio? Mas, à medida

em que cresci, fui entendendo que Maysa agia assim por milhões de motivos. Entendia por que ela

bebia, por que a vida dela era difícil. E vivi os dois últimos anos da vida dela muito bem, como

grandes amigos. Consegui admirá-la.

HOMENAGEM

Acho que ela ia achar [a minissérie] uma graça, ficar impressionada de andar no Projac e ver

um carrinho com o nome dela. Ela morreu endividadíssima, tadinha, ferrada. Eu me sinto à vontade.

A minissérie é para cima, não uma lavação de roupa, é uma purificação, uma recuperação de nossa

memória e uma homenagem à música brasileira. O país estava esquecendo um patrimônio nacional.

Folha de São Paulo, 04/01/09

(44) Filme mostra 'julgamento' de Nixon

"Frost/Nixon" recria entrevista em que o ex-presidente americano reconhece ter

"decepcionado o povo americano'

Conversa com apresentador de programas populares de TV rendeu ao republicano volumoso

cachê, que incluiu 10% dos lucros de publicidade

DANIEL BERGAMASCO

DA REPORTAGEM LOCAL

Em "Frost/Nixon", uma das pessoas que ajudam a preparar o apresentador de TV David Frost

para a entrevista com Richard Nixon -a primeira concedida após sua renúncia, três anos antes- diz

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que a sabatina precisa ser contundente a ponto de se tornar "o julgamento" que o presidente dos

EUA nunca tivera pelas acusações do escândalo Watergate.

Como mostra o filme de Ron Howard (o mesmo diretor de"Mente Brilhante"), que estreia no

Brasil em 20/2, a entrevista célebre de 1977 acabou desempenhando esse papel simbólico, levando

um Nixon (1913-1994) exaltado a confirmar a espionagem no comitê do Partido Democrata com

escutas ilegais. Uma frase entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é ilegal".

A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já havia feito sucesso no

teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o roteiro do longa, que emplacou cinco

indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro, ator dramático para Frank Langella (que vive

Nixon) e trilha.

Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento" para Nixon

levanta outro questionamento nos EUA: estaria levando o ex-presidente à segunda instância, com

possível redenção por mostrar seu lado mais humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a

tendência autodestrutiva?

E isso quando um presidente envolvido em crise econômica e guerra impopular está deixando

a Casa Branca?

O roteirista titubeia. "Se me preocupo que o público tenha compaixão por um homem

autodestrutivo, solitário, perdido? Não sei. Pessoas diferentes terão reações diferentes. Mas o filme

não redime ninguém", diz Morgan, que viu indagações semelhantes no longa sobre a rainha Elizabeth

2ª.

"Eu nunca esperava que pessoas saíssem de "A Rainha" tocadas por ela. Ficamos constrangidos,

para ser honesto, com aquele grande entusiasmo sobre a monarquia. Mas não acho que isso

acontecerá da mesma maneira, não haverá congestionamento de pessoas se filiando ao Partido

Republicano. O filme mostra que, com toda sua humanidade, o legado de Nixon ainda é criminoso",

disse, em mesa redonda em Nova York, com a Folha e mais cinco jornais, em novembro.

O efeito George W. Bush, diz ele, tem mais força na revisão dessa imagem. "A atual administração

está fazendo um grande trabalho de reabilitar Richard Nixon, que está sendo substituído como o

presidente mais odiado de todos os tempos. Agora, ele é apenas o número dois no ranking [risos]."

Cachê

Frost (vivido no filme pelo ator por Michael Sheen), notório jet-setter inglês rodeado de

mulheres, grifes e fama como apresentador de programas populares de TV, pagou pela exclusividade

da entrevista. Garantiu a Nixon US$ 600 mil (US$ 3 mi nos valores de hoje, no cálculo do diretor, ou

R$ 6,7 mi), mais 10% dos lucros de publicidade.

Era um cachê generoso para enfrentar um entrevistador que se supunha fraco e fútil, o que

justifica o choque quando Frost consegue extrair de Nixon frases que ele não parecia ter planejado

dizer, como "decepcionei o povo americano".

O filme especula sobre as motivações do ex-presidente para desabafar, mas, para Howard,

não há na obra nenhuma revisão sobre a figura histórica do republicano, que entrou no Salão Oval da

Casa Branca em 1969, foi reeleito e renunciou em 1974.

168

"A simpatia por um personagem não muda sua imagem histórica, algo que passa por um

entendimento mais completo. Nixon era um visionário formidável, mas destruído por suas emoções

conturbadas. Não parecia confortável sob a própria pele", diz Morgan.

Nixon compositor

A família de Nixon demonstrou-se interessada pelo projeto do filme. Os herdeiros

concederam entrevistas na fase de pesquisa e autorizaram o uso de uma canção composta pelo ex-

presidente ao piano.

Apesar de ter entrevistado seis dezenas de pessoas entre a criação da peça e do filme, em

especial membros das equipes de assessores de Nixon e Frost, que rodearam a entrevista, Peter

Morgan se deu a liberdade de inventar algumas cenas.

Na principal delas, na véspera do último dia de gravações, Nixon telefona bêbado para Frost

e o desafia a ser mais mordaz. Não há relatos de que isso tenha acontecido, mas o roteirista se

baseou nos testemunhos de que Nixon, quando em final de mandato, telefonava embriagado para

pessoas e depois se esquecia de que o fizera, sob efeito da mistura com moderadores de humor.

"Era algo que ele faria. Pensei que, mesmo que isso não tenha acontecido, dramaturgicamente seria

responsável."

Folha de São Paulo, 04/01/09

(45) DVDs retomam Allen pastelão

Comédias do início da carreira mostram diretor anárquico, que vai além da figura do baixinho

desajeitado

HUGO POSSOLO

ESPECIAL PARA A FOLHA

Woody Allen, 73, costumava lembrar a famosa parábola de que a vida deveria ser ao

contrário. Iniciaríamos velhos e, ganhando saúde, chegaríamos à juventude para, enfim, nossa morte

ser consumada por um orgasmo. E se o mesmo acontecesse com sua obra cinematográfica? Se

Allen partisse de "Vicky Cristina Barcelona" (2008) e terminasse em "O que Há, Tigresa?" (1966)?

Para quem não gosta de um humor mais grotesco, pode parecer um horror. Mas, para quem sabe

que uma cena de pastelão pode nos dizer muito mais do que supõe nossa vã mediocridade, vale

muito a pena.

169

A comédia "O que Há, Tigresa?", primeiro roteiro e direção de Woody Allen, parte do que

poderia ser uma brincadeira adolescente: dublar um filme com bobagens. Na época, o já ousado

comediante transforma o jogo, em que a palavra vence a imagem, numa potente metáfora sobre a

indústria cinematográfica. Quem se arriscou a criticar Hollywood logo na primeira direção?

Joga água fervendo na visão americana da Guerra Fria. Escolhe um filme de espionagem japonês já

risível em si para subverter a trama.

Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser reconhecido, os

olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões verbais são absurdos

xingamentos nacionalistas.

Subversão no sentido literal, a versão sub, que vem de baixo e atinge a bunda dos donos das

verdades institucionalizadas.

Republiqueta de bananas

Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar por Nancy

(Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica republiqueta latino-americana de

San Marcos.

De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.

(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para acompanhar seus

sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu poder mensurado pelo que pesam

em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de Allen, que insere filmetes paralelos -que

poderiam ser campeões no YouTube-, como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de

estacionamento e o comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as

personagens e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se

compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de

campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.

Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura caricata de

baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos frenéticos apontam o que virá

depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para saber tudo sobre sexo.

Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de seu olhar oblíquo. Comediantes

têm essa queda por inverter o olhar. Para ser expressivo, é necessário dar outra visão, como a do

cego dirigindo um filme. É a necessária coragem da arte. Aos acomodados: que se iludam com "Big

Brothers", "Dança dos Famosos" e outras formas pouco honestas de divertir os outros.

Sempre admirei Woody Allen por nunca ter ido à premiação do Oscar. E também o admirei muito por

ter ido. Não foi para não ceder ao esquema corruptível e vaidoso, mas, depois, foi para fazer um

gesto de afeto com Nova York. Topou ir à cerimônia do Oscar no ano seguinte ao 11 de Setembro.

Poderia até ser ao contrário, ter ido a todas e faltado na última, mas não se é Woody Allen

impunemente.

170

HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões e do Circo

Roda Brasil

Folha de São Paulo, 11/01/09

(46) Maysa é a nossa versão de Amy Winehouse

CARLOS CALADO

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande cantora.

Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo, cuja história pessoal

e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. Dirigida por Jayme Monjardim, filho da

cantora, "Maysa -Quando Fala o Coração" mostrou em seus primeiros capítulos um eficiente elenco,

esmero na produção dos cenários e figurinos, além da bela fotografia de Affonso Beato, num padrão

raro na TV brasileira.

A série revelou também a talentosa atriz gaúcha Larissa Maciel, que personifica a cantora de

maneira bem convincente. Ainda que falte um pouco de intensidade em sua interpretação, justamente

nas cenas em que dubla Maysa cantando, seus grandes e expressivos olhos verdes são capazes de

hipnotizar o espectador.

Talvez a opção de Manoel Carlos, autor da série, por uma narrativa não-cronológica possa

incomodar os espectadores acostumados ao formato mais convencional de grande parte das novelas

e minisséries da emissora. Mas esse recurso permite equilibrar, por meio de flashbacks, as

passagens mais pesadas e melodramáticas da história com outras mais descontraídas, incluindo os

esperados números musicais.

Especialmente saborosa é a cena em que Maysa interpreta o samba-canção "Ouça" (de sua

autoria), um de seus maiores sucessos. Com o rosto em primeiro plano, enquadrado pela tela de um

aparelho de TV, a cantora mandou um irônico recado para o ex-marido, o milionário André

Matarazzo. E que outra cantora teria, como a impulsiva Maysa, a coragem de tirar o sapato e atirá-lo

sobre espectadores desrespeitosos, que insistiam em falar alto durante uma de suas apresentações?

Cafajeste

Já as aparições do jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli (bem interpretado pelo ator Mateus

Solano) garantiram os momentos mais leves e divertidos. "Pela bossa nova, eu namoraria até o Trio

Iraquitã", dispara o autor da clássica "Lobo Bobo", no melhor estilo cafajeste, antes de lançar seu

charme sobre a cantora.

Ironicamente, outra cena exibida na última quarta nos remeteu a um fenômeno cultural bem

característico dos dias de hoje: a indústria que se alimenta da vida pessoal dos artistas e

171

celebridades. Flagrada por um paparazzo ao se despir para um banho de cachoeira com um grupo de

amigos, Maysa viu sua intimidade exposta na capa de um tabloide bem semelhante aos atuais.

Quem sabe, se conhecesse o trágico final de Maysa, a cantora inglesa Amy Winehouse, que

parece ser tão intensa e autodestrutiva quanto a diva brasileira da fossa, tivesse um insight sobre o

que a próxima noite de excessos pode lhe reservar.

MAYSA - QUANDO FALA O CORAÇÃO

Quando: ter. e qui., às 23h05; sex., às 23h50, na Rede Globo

Classificação: não indicada a menores de 12 anos

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 11/01/09

(47) Êxito de "Se Eu Fosse Você 2" questiona cinema brasileiro

A liderança de público (5,479 milhões) e de renda (R$ 46,2 milhões) do longa "Se Eu Fosse

Você 2" nas bilheterias brasileiras neste ano revela mais do que a capacidade do país de produzir um

filme-fenômeno.

O êxito extraordinário do título de Daniel Filho expõe também o que falta à indústria nacional

de cinema. Embora com lançamentos crescentes, o Brasil raramente detém mais do que 10% do total

do público.

"Faz falta o gênero 'comédia picaresca', que respondeu pelo maior sucesso do cinema

brasileiro, 'Dona Flor e Seus Dois Maridos' (1976) [público de cerca de 11 milhões] e para o qual

temos vocação e talento", diz Gustavo Dahl, ex-presidente da Agência Nacional do Cinema, atual

gerente do Centro Técnico do Audiovisual.

A prevalência da comédia no gosto popular chama a atenção também do crítico e professor

da USP Ismail Xavier. "Não temos no cinema uma forte tradição do melodrama, ao contrário de

Hollywood e dos cinemas argentino e mexicano", diz ele.

No cinema brasileiro, afirma Xavier, "o eixo dominante caminhou do teatro de revista para a

chanchada ou para filmes como 'Absolutamente Certo' [1957], de Anselmo Duarte, que já dialogava

com a TV".

Cinema e TV

172

A aproximação de "Se Eu Fosse Você 2", estrelado por Glória Pires e Tony Ramos, com o

universo da TV é citada também por Dahl, que assinala a oposição entre o "cinema comercial" e o

"cinema de autor", refletida na disputa por recursos de produção.

"Daniel Filho fazia TV como se fosse cinema e faz cinema como se fosse TV. Tem intimidade

com a comicidade brasileira. Só que comédia é artesanato; artesanato é disciplina, o oposto do

geralmente entendido como cinema autoral", diz.

Segundo o ex-presidente da Ancine, "3/4 do investimento em produção cinematográfica via

leis de renúncia fiscal é direcionado para o cinema autoral, deixando a indústria de entretenimento

brasileiro por conta da TV". "Se Eu Fosse Você 2" custou R$ 6 milhões, reunidos com o uso das leis

de incentivo à cultura via renúncia fiscal.

"Fato isolado"

Para o diretor José Eduardo Belmonte ("Meu Mundo em Perigo", "Se Nada Mais Der Certo"),

cujos filmes são consagrados em festivais, mas dificilmente alcançam o público, o sucesso de "Se Eu

Fosse Você 2", que "não há como não celebrar", é um "fato isolado" no contexto da produção

nacional.

"Nosso cinema comercial vinha mal das pernas. Antes dele, várias comédias populares com

uma estética menos elaborada fracassaram enormemente."

O cineasta Cacá Diegues, no entanto, vê no êxito de "Se Eu Fosse Você 2" um sinal de vigor

da produção de cinema no Brasil. "Não pode existir um cinema nacional consolidado sem uma

cumplicidade com o público, embora seja necessário garantir sempre a manifestação daqueles que

desejam mudar o gosto do público. E Daniel Filho tem o faro do público, sabe como conquistá-lo",

afirma.

Já Inácio Araujo, crítico da Folha acha "doentio que um filme faça 5 milhões de espectadores

e a maioria dos demais filmes faça 5.000, 10 mil ou coisa parecida". Em 2008, entre 91 longas

nacionais lançados, só 16 ultrapassaram 100 mil espectadores. Para Araujo, esse "é um problema

que se deveria começar a levar a sério". Quanto ao longa de Daniel Filho, diz: "Parece-me um filme

que deve existir, um filme divertido. Será muito ruim que se converta em modelo para alguma coisa".

SILVANA ARANTES

Folha de São Paulo, 15/03/09

(48) "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção

Além de ter imortalizado o texto de Tennessee Williams, um dos mais importantes

dramaturgos americanos, a versão cinematográfica de "Gata em Teto de Zinco Quente" --quarto

173

volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, nas bancas a partir do próximo domingo-- promoveu

o único encontro nas telas de Paul Newman e Elizabeth Taylor.

Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e Taylor, 26.

Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme com impressionante

maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o provocativo texto de Tennessee

Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente' tem de mais memorável: o duelo entre

Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que

acompanha o DVD.

O livro traz, ainda, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo Tennessee Williams e

um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre outras informações e curiosidades.

Paul Newman vinha de uma sólida formação teatral. Foi aluno do Actor's Studio --discípulo, portanto,

do famoso método de Lee Strasberg, assim como Marlon Brando e Montgomery Clift-- e estreou na

Broadway em 1953, aos 28 anos, na primeira montagem de "Picnic", de William Inge. Os olhos azuis

e o jeito de galã logo fizeram com que fosse cortejado por Hollywood, onde estreou um ano depois,

com "O Cálice Sagrado".

Mas detestou tanto o trabalho neste filme que se desculpou publicamente, por meio de um

anúncio pago em uma revista. Logo depois, redimiu-se com papéis elogiados em "Marcado pela

Sarjeta" (1956), de Robert Wise, e "O Mercador de Almas", de Martin Ritt, pelo qual levou o prêmio de

melhor interpretação masculina no Festival de Cannes, em 1958.

Liz Taylor começou direto no cinema, ainda criança. Aos 10 anos, contracenou com a famosa

cachorra Lassie em "A Força do Coração", e, aos 19, fez par com Montgomery Clift em "Um Lugar ao

Sol", de George Stevens. Antes de "Gata em Teto...", fez ainda "Ivanhoé", "Assim Caminha a

Humanidade" e "A Árvore da Vida", pelo qual ganhou sua primeira indicação ao Oscar, de atriz

coadjuvante, em 1957.

Juntos na tela, Newman e Taylor promovem um embate que, como explica o texto de Starling

Carlos, será apresentado de um modo essencialmente físico. Os enquadramentos e angulações do

diretor Richard Brooks realçam essa característica do texto. Brick (Newman), entorpecido pelo álcool

e com uma perna engessada devido a um acidente, tem grande dificuldade para se mover. Maggie

(Taylor), ao contrário, inquieta como uma gata, se movimenta sem parar pelo cenário (boa parte do

filme se passa no quarto do casal).

Cada uma das cenas entre os dois lembra um duelo carregado de tensão sexual, diante da

indiferença de Brick ao desejo de Maggie. A partir da segunda metade do filme, esse embate se

estende aos outros integrantes da família, que explode em crise. E "Gata em Teto...", enfim, traz duas

estrelas de primeira grandeza no esplendor de sua juventude.

Folha de São Paulo, 09/04/09

(49) Globo exibe hoje "Se Eu Fosse Você", inédito na TV aberta

174

A edição desta segunda-feira da "Tela Quente" vai exibir o filme "Se Eu Fosse Você", um dos

grandes sucessos do cinema nacional da chamada retomada, que designa o reaquecimento da

produção desde o fim da Embrafilme, no começo dos anos 90.

O longa, estrelado por Tony Ramos e Glória Pires e dirigido por Daniel Filho, conta a história

de um casal em crise que troca de corpos misteriosamente.

Segundo Inácio Araújo, crítico da Folha, o desenvolvimento da trama "não é nada tão inédito, nada

tão profundo, mas tudo correto. A comédia conjugal é o gênero que melhor funciona para Daniel

Filho".

Apesar da crítica não ter sido muito favorável ao filme --considerando-o uma "comediazinha

arroz com feijão" com o objetivo de "faturar"--, "Se Eu Fosse Você" foi um grande sucesso de

bilheteria, atraindo um público de 3,6 milhões de pessoas.

Essa marca coloca o filme de 2006 na quarta posição da lista dos filmes brasileiros mais

vistos desde 1995, ano que marca a retomada do cinema nacional.

Em reportagem publicada pela Folha Online, Daniel Filho falou que o segredo do filme estava na

escolha do casal. "Eu precisava de atores que pudessem ser comediantes e econômicos, pois a

situação em si já tinha graça. Uma passada de mão a mais poderia estragar a cena".

Sequência de sucesso

A continuação desse sucesso do cinema brasileiro bateu o recorde de público da retomada.

A comédia "Se Eu Fosse Você 2" atraiu mais de 5,3 milhões de espectadores para as salas

de cinema. Antes, o posto era de "2 Filhos de Francisco".

O blockbuster nacional também atingiu a vice-liderança no ranking de arrecadação nas

bilheterias, ultrapassando a marca de R$ 49 milhões. A liderança nesse quesito ainda pertece a

"Titanic" (1997).

Folha de São Paulo, 13/04/09

(50) Coleção Folha traz "Pacto Sinistro", de Alfred Hitchcock

Em "Pacto Sinistro", próximo volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema --disponível nas

bancas no domingo--, Alfred Hitchcock mais do que justifica sua fama de "mestre do suspense". Ele

se faz valer de seu reconhecido domínio da linguagem cinematográfica para eletrizar o espectador e,

de quebra, abordar dois de seus assuntos favoritos: o duplo e a transferência de culpa.

As duas questões já estavam amplamente presentes no romance de Patricia Highsmith que deu

origem ao roteiro. A trama é simples: um homem sinistro aborda um total desconhecido e lhe

apresenta o plano de um crime perfeito.

Guy Haynes, jogador de tênis, tem problemas com a ex-mulher, que lhe recusa o divórcio;

Bruno Anthony, autor da ideia, odeia o pai. Se um se livrar do problema do outro, não devem ser

descobertos, pois serão assassinatos sem motivos aparentes.

175

Já nos planos de abertura, Hitchcock apresenta a questão do duplo de forma direta, como

mostra o texto do crítico Inácio Araujo que integra este volume da coleção: "Vemos pernas se

movendo em direções opostas. Um sapato escuro, um sapato claro. Tudo parece colocá-los em

oposição, exceto o fato de que estamos em uma estação ferroviária e ambos caminham na direção

de um trem".

Durante a viagem, ocorre o diálogo que deslancha a história: "Está armada a trama em vários

aspectos, mas especialmente em um. Bruno é capaz de remeter Guy ao mais fundo de seus

sentimentos. O tenista recusa o pacto, mas sabemos que, no fundo, ele deseja a morte da frívola

esposa. E o simples fato de desejar, ainda que de maneira inconsciente, uma morte, nos torna

potencialmente assassinos. Assim racionava Hitchcock. Assim também raciocinava o charmoso

Bruno".

Bruno, mente doentia, interpreta reações ambíguas de Guy como um sinal para levar sua

ideia macabra adiante. Quando este se recusa a realizar sua parte do plano, Bruno arma para

incriminar Guy. É o medo profundo do típico herói hitchcockiano: ser acusado de um crime que jamais

cometeu.

Protagonistas destacados

Apesar da direção precisa de Hitchcock, com sua decupagem cuidadosa, nada funcionaria

tão bem se não fossem os atores principais. Farley Granger, como Guy, e Robert Walker, como

Bruno, são muito diferentes entre si, mas com um ponto em comum: são sedutores e charmosos à

sua maneira.

É verdade que Hitchcock declarou a François Truffaut que gostaria mesmo de ter William

Holden no papel de Guy, pois queria "um homem mais forte", mas Farley Granger, que já havia

trabalhado com o cineasta em "Festim Diabólico", dá conta do recado e está perfeitamente

convincente.

Robert Walker, o vilão Bruno, teve um fim trágico: morreu no ano seguinte ao lançamento do

filme, vítima de uma reação alérgica provocada por um calmante.

O livro que acompanha o DVD traz fotos do filme e ainda um texto que descreve a produção

de "Pacto Sinistro", desde a compra dos direitos do livro até a data de seu lançamento.

Há também biografias de Alfred Hitchcock, Patricia Highsmith e do elenco principal, além de

comentários dos críticos Roger Ebert, André Bazin, Claude Chabrol e Eric Rohmer.

Folha de São Paulo, 16/04/09

(51) "América" de Sergio Leone evoca São Paulo dos anos 40, diz Ugo Georgetti; leia trecho

176

O cineasta brasileiro Ugo Giorgetti, diretor de "Sábado" (1994) e "Boleiros" (1998), entre

outros, aponta o filme "Era Uma vez na América" (1984), do cineasta italiano Sergio Leone (1929-

1989), como um de seus prediletos. É o último filme de Leone, que morreu há 20 anos e ficou

conhecido por reinventar o faroeste nos anos 60 com o "spaghetti-western".

Para Giorgetti, a história dos garotos judaicos que crescem juntos nas ruas de Nova York

reacende as memórias de quem cresceu em bairros paulistanos como a Mooca, o Brás, a Bela Vista,

o Bom Retiro e Santana. "Quem foi criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de

imigração de São Paulo, é capaz de rever nesse filme suas próprias primeiras experiências e a

atmosfera precisa em que elas se deram", diz o cineasta.

O relato do cineasta brasileiro sobre "Era Uma vez na América" está no livro "Ilha Deserta -

Filmes" (Publifolha). A publicação traz textos de Giorgetti e outros seis apaixonados por cinema. Cada

um dos autores aponta e comenta dez filmes que levariam para uma ilha deserta.

Leia abaixo trecho do livro que traz o relato completo de Giorgetti sobre "Era Uma vez na América" e

saiba mais sobre o livro.

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está

atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela

Nova Ortografia".

*

SERGIO LEONE

Era uma Vez na América

"Todo o material referente à infância contido em The Hoods não cessava de me atrair. A

fascinação era imensa. Não podia deixar de me convencer de que a base do romance de Grey me

inspirava muito."

Sergio Leone, com suas próprias palavras, nos informa o que o motivou a realizar esse filme

complexo: a infância. E é de uma certa infância que o filme trata de maneira soberba. Quem foi

criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de imigração de São Paulo, como a

Mooca, o Brás, a Bela Vista e sobretudo o Bom Retiro e Santana, é capaz de rever nesse filme suas

próprias primeiras experiências e a atmosfera precisa em que elas se deram.

Aquela confusão nas ruas feita pelo movimento de automóveis, bondes, carretas e mesmo

cavalos, aquela gentarada estranha enchendo as calçadas, alguns envergando pesados sobretudos

europeus sob o nosso calor, os ouvidos sendo invadidos por expressões em múltiplas línguas e

múltiplos sotaques, buzinas e pregões, as narinas elas também invadidas pelo cheiro particular vindo

dos porões das casas, do interior dos pequenos negócios e das iguarias que iam de focaccie a

burrecas.

E principalmente os amigos, garotos às vezes com nomes estranhos e quase

impronunciáveis, imediatamente desfigurados e simplificados pela nossa tradicional falta de cerimônia

e esculhambação. Essas corruptelas hilariantes de seus nomes provavelmente acompanham alguns

daqueles garotos até hoje.

177

Henry Miller, num livro cuja atmosfera lembra muito o filme de Leone, escreveu: "Nascer nas

ruas significa vagar por toda a sua vida, ser livre. Significa acidente e incidente, drama e movimento.

Significa, acima de tudo, sonho" (Primavera Negra).

Era uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) é isso: sonho. O sonho das

ruas, através do qual Leone acompanha cinco garotos que crescem e vagam incessantemente por

um dos bairros de imigração como os que eu descrevi acima, só que em Nova York. O fato de que

depois eles se tornam delinquentes perigosos é absolutamente irrelevante.

Esse retrato fiel e poético da imigração só foi conseguido por meio das atuações estupendas

dos atores - quer dizer: dos meninos -, apoiados pela fotografia belíssima de Tonino Delli Colli,

fotógrafo habitual de Leone e Pasolini, e pela maravilhosa trilha sonora de Ennio Morricone,

impecável quando trabalha para grandes cineastas.

"Ilha Deserta - Filmes"

Autores: Ugo Agnaldo Farias, Amir Labaki, Bernardo Carvalho, Inácio Araújo e outros

Editora: Publifolha

Páginas: 224

Quanto: R$ 29,00

Folha de São Paulo, 22/05/09

(52) "Rastros de Ódio" é o próximo volume da Coleção Folha

Praticamente ignorado pela crítica --e pelo Oscar-- na época de seu lançamento, "Rastros de

Ódio" é hoje considerado um dos melhores "westerns" já feitos e a obra-prima do diretor John Ford

(1894-1973).

O filme, que compõe o 11º volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, respeita as

características do gênero, mas, ao mesmo tempo, é capaz de alargar seus limites.

Os "westerns" de John Ford ajudaram a forjar o mito da América: "Uma epopeia localizada no

tempo (século 19, basicamente), consistindo da empreitada de homens brancos tentando aproveitar

economicamente o território ocupado pelos índios", escreve o crítico da Folha Inácio Araujo, no

ensaio que acompanha o DVD neste volume da coleção, disponível a partir de domingo.

"Rastros de Ódio" é uma odisseia de cores fortes, cuja complexidade dá novos rumos ao gênero. O

filme narra a saga de Ethan (John Wayne, em uma de suas melhores atuações no cinema), que

durante sete anos procura sua sobrinha Debbie (Natalie Wood, em um de seus primeiros papéis no

cinema), raptada por índios.

Ethan é movido pelo ressentimento e pelo desejo de vingança. Em uma das cenas mais

fortes do filme, ele atira no rosto de um índio recém-enterrado e justifica sua atitude: sem os olhos,

segundo a própria crença indígena, seu espírito vagará pela eternidade.

178

Sem "Rastros de Ódio", não seria possível imaginar, por exemplo, um filme como "Os

Imperdoáveis", o faroeste crepuscular que Clint Eastwood realizou em 1992, cujo protagonista traz

muitos dos traços do personagem de Ethan.

Folha de São Paulo, 28/05/09

(53) DVD de Coleção Folha exibe clássico de Hawks

Os créditos de "Uma Aventura na Martinica", atração da Coleção Folha Clássicos do Cinema

do domingo que vem, impressionam: Humphrey Bogart e Lauren Bacall à frente do elenco; Howard

Hawks na direção; roteiro de William Faulkner e Jules Furthman a partir de um livro de Ernest

Hemingway (originalmente chamado "To Have and Have Not").

Num primeiro momento, Hemingway riu da proposta e a recusou, mas, quando se viu com

dificuldades financeiras, voltou à ideia. Hawks então convenceu a Warner a comprar os direitos de

adaptação.

O romance de Hemingway se passa em Cuba, onde o autor viveu boa parte de sua vida, e

conta a história de um americano contrabandista de rum que vive entre Havana e Key West.

O primeiro roteiro, assinado por Jules Furthman, era bastante fiel ao livro, mas a possibilidade de

surgirem problemas diplomáticos com Cuba, ainda sob a presidência de Fulgêncio Batista, levou o

estúdio encomendar um novo roteiro a William Faulkner, que transferiu a trama para a colônia

francesa da Martinica, no Caribe.

Essa mudança fez com que o filme fosse constantemente comparado a "Casablanca", que a

própria Warner havia produzido dois anos antes, com grande sucesso. Como em "Casablanca", a

trama se passa em uma colônia francesa sob o regime do governo de Vichy (aliado dos nazistas),

com Bogart à frente de um romance com um pano de fundo histórico.

O personagem de Bogart em "Uma Aventura...", porém, guarda diferenças importantes. Harry

é um expatriado americano que trabalha acompanhando turistas ricos em seu barco. Quer se manter

à margem da situação política até que conhece Marie "Slim" (Lauren Bacall), uma jovem sem dinheiro

para voltar para casa.

Para conseguir ajudá-la, aceita a proposta de integrantes da resistência e aluga seu barco

para levar um de seus líderes.

Autor de quase 50 filmes dos mais diversos gêneros, entre eles os clássicos "Scarface"

(1932) e "Onde Começa o Inferno" (1959), Hawks deixou como marca um estilo direto.

"Nunca emprego artifícios, conto minha histórias da forma mais simples, como qualquer um as veria,

colocando a câmera à altura do olhar de um homem", disse certa vez.

"Uma Aventura na Martinica", segundo o crítico da Folha Inácio Araujo, no texto que faz parte

deste volume, é o triunfo deste princípio.

179

"Ele dizia, e é fácil concordar, que se trata da coisa mais fácil do mundo. É evidente, porém,

que não basta colocar a câmera à altura do homem para chegar a bons filmes. Seu segredo

consistiu, em grande medida, em perguntar-se qual a estatura de um homem. Isto é: o que faz de um

homem um homem?", destaca o crítico.

Folha de São Paulo, 31/05/09

(54) Filme mostra vida de modelos brasileiras

A moda brasileira já possui um bom número de histórias para serem contadas. No entanto,

até agora foram poucos os livros que buscaram abordá-las, e mais raros ainda foram os filmes. O

novo documentário "Top Models - Um Conto de Fadas Brasileiro" é a primeira tentativa de registrar

em imagens uma parte fascinante dessa história: a das garotas que saíram dos grotões do país para

se Dirigido pelo carioca Richard Luiz, o filme traz depoimentos das principais tops brasileiras, como

Gisele Bundchen, Raquel Zimmermann, Isabeli Fontana, Adriana Lima e Carol Ribeiro. Elas falam do

início da carreira, da ascensão ao panteão fashion e dos seus planos para o futuro, após deixarem

essa profissão que dura o mesmo tempo que a juventude.

O lançamento do documentário acontece no próximo dia 15, durante a SPFW (São Paulo

Fashion Week), numa festa para mil convidados no shopping Iguatemi. No final de julho, o filme será

exibido em versão digital em cinco capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Salvador, Porto Alegre e mais

outra, ainda em negociação). Em dezembro, chega ao DVD. Uma cópia em película será feita para

exibição internacional.

Produzido pela Protótipo Filmes e pela Luminosidade, que organiza a SPFW, "Top Models"

custou cerca de R$ 800 mil. Os primeiros depoimentos e imagens foram feitos durante a produção de

um calendário com 25 modelos, em 2005. Na época, não havia a pretensão de transformar o material

num longa-metragem. "Mas vi que poderia ser algo maior do que uma série de entrevistas. Poderia

ter um ponto de ficção misturado com depoimentos reais", afirma o diretor.

Foi feito, então, um roteiro (por Renata Terra) que, em paralelo às declarações das tops consagradas,

contava a história de uma modelo estreante, Luana, e suas agruras para conseguir um lugar ao sol.

Cenas ficcionais foram acrescidas às verdadeiras, tudo conduzido pela voz de uma narradora,

"interpretada" pela atriz Alice Braga.

O filme levou quatro anos para ser concluído. "Gastamos muito tempo para obter a liberação

de imagens de desfiles e publicidades de grandes grifes estrangeiras", justifica Luiz, que atua desde

2001 como diretor de produtos audiovisuais da SPFW.

A agenda agitada das tops também atrasou o longa. Ele precisou correr atrás delas, com sua

equipe de duas pessoas, pelas principais cidades da moda --Paris, Milão, Nova York e Londres.

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Os depoimentos das modelos são a melhor coisa do filme. Elas falam com simplicidade e franqueza

sobre suas carreiras, revelando como seus "contos de fadas" foram construídos com trabalho,

perseverança e, claro, um pouco de sorte.

ALCINO LEITE NETO

VIVIAN WHITEMAN

Folha de São Paulo, 07/06/09

(55) Malu Mader ataca como matadora

Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro, coldre

nas costas e dá um beijo no bebê. Assim dá início a mais um dia. Mas não da atriz carioca de 43

anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que tem lançamento neste mês em

DVD.

Ela é uma agente da Polícia Federal, casada, mãe recente e enfrentando as dificuldades de

um marido músico e --ela vai descobrir um tempo depois-- drogado ao extremo.

Ela acaba deixando a PF ao atirar no próprio parceiro de trabalho numa ótima sequência de ação em

um treme-treme do centro de São Paulo.

Cinco anos depois, não acha emprego, e o marido, ainda mais dependente de heroína, vende

o filho para comprar drogas e morre de overdose.

Uma organização sigilosa --cujo lema é livrar o país de todo tipo de criminosos-- recruta a

moça para enfrentar ladrões de material radioativo, gangue de motoqueiros e serial killer de gays,

sempre com tiros, mortes, perseguições e culpas.

O seriado ficou datado no que diz respeito ao roteiro e às questões morais, que, hoje,

parecem inocentes, mas não deve nada com relação aos efeitos especiais, um marco na época em

que estreou, em 1997.

Malu conta que aceitou fazer a série "sem nem querer saber o que era", por ter gostado do

resultado de "A Vida como Ela É", também dirigida por Daniel Filho. "Adaptar Nelson Rodrigues era

um biscoito fino para as massas. Depois de topar 'A Justiceira', quando vi que teria de pular de

helicóptero, tremi na base. Mas considero legal ter feito por ter inaugurado o seriado de ação no

Brasil."

Daniel Filho foi para os EUA finalizar os episódios e aprender como montar aquela estrutura

no estilo de programas como "A Dama de Ouro". "Foi um papel carbono dos seriados americanos

muito divertido de fazer", conta ele nos extras.

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Malu diz não ter se inspirado em ninguém. "Nunca tinha assistido a Kate Mahonney. Via 'As

Panteras', mas não acho que tenha nada de uma Pantera na Diana. Ela é muito mais sofrida, como

aliás tudo aqui no Brasil."

A série teve de ser encurtada de 32 episódios para 12 em razão da segunda gravidez de

Malu. Ela trabalhou até os cinco meses de gestação --"com Antonio pulando lá dentro". "Era bem

complicado correr com uma barriga daquele tamanho. E a câmera teve de ir fechando mais no rosto,

porque, além da barriga da gravidez, eu passei a comer muito e fui engordando [risos]. Quero mostrar

o seriado para meu filho mais novo para ele ver o estrago que fez."

Atrás das câmeras

O lançamento do antigo seriado acontece simultaneamente a um projeto no outro extremo.

Na semana passada, ela finalizou o material adicional de "Contratempo", que fez com Mini Kerti e foi

sua estreia na direção. O filme conta a história de jovens da periferia em um projeto social de música.

Os extras do DVD, que sai em setembro, trazem alguns personagens cortados do filme, além de

depoimentos sobre conceitos musicais.

Na TV, é de 2003 o último sucesso de Malu. Foi a certinha Maria Clara, de "Celebridade".

Depois, fez em 2007 a Eva de "Eterna Magia", mas a novela das seis não foi bem no Ibope.

A empolgação com a carreira de diretora ("onde tudo é novo") tem reduzido o espaço para novos

papéis: "Eu falava desse projeto para todo mundo. Acho que isso afastou outros convites". Outro

motivo para deixá-la longe da telinha é um novo filme, desta vez de ficção, sobre o qual não dá

muitos detalhes. "Deve demorar um pouco. Escrever é uma empreitada para macho, mas tenho

coragem."

"A Justiceira - DVD"

Distribuidora: Som Livre; R$ 49,90

Classificação: não indicado a menores de 16 anos

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES

Folha de São Paulo, 07/06/09

(56) Segunda temporada de "True Blood" estreia dia 19 na TV paga

Nem todo o sangue derramado na primeira temporada de "True Blood" foi suficiente para

saciar o apetite por violência na pequena Bon Temps, Louisiana. A segunda fase da série, que estreia

na HBO no dia 19, às 22h, tem ainda mais mortes, sexo e, é claro, bastante sangue. Já no primeiro

episódio, há uma nova onda de crimes, com mais um assassinato brutal e humanos sendo

sequestrados e torturados por vampiros.

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Criado por Alan Ball a partir dos livros de Charlaine Harris, o programa mostra vampiros

"saindo do caixão" e tentando se integrar à sociedade após a descoberta de sangue sintético.

A convivência turbulenta entre humanos e mortos-vivos é sintetizada no romance entre a

protagonista Sookie Stackhouse (Anna Paquin), uma garçonete com poderes telepáticos, e o vampiro

galã Bill Compton (Stephen Moyer). Agora, o casal terá de lidar com a chegada de uma nova

vampira, a adolescente Jessica Hamby, que fica sob a responsabilidade de Bill.

Com forte apelo sexual, enredo de mistérios e um discreto subtexto político, é um dos

sucessos da TV americana. Segundo o "New York Times", a estreia da segunda temporada teve 3,4

milhões de espectadores e foi o programa mais visto na HBO desde o final de "Família Soprano".

Nesta segunda temporada, os conflitos entre vampiros e humanos estão mais acirrados. A

discussão sobre os direitos civis dos mortos-vivos --uma metáfora sobre a delicada questão da

tolerância na sociedade americana- ganha destaque. Jason Stackhouse (Ryan Kwanten), o irmão

inconsequente de Sookie, entra para uma seita antivampiros que tem como objetivo impedir as

criaturas de conquistar os mesmos direitos dos cidadãos comuns.

A galeria de seres e acontecimentos sobrenaturais também ganha novos personagens. Como

se não bastassem os vampiros, os transmorfos e os exorcismos vistos na primeira fase --que sai

agora em DVD--, uma nova personagem ganha espaço: a misteriosa Maryann Forrester (Michele

Forbes), espécie de bruxa que chega bancando a boa samaritana.

Ao lado de filmes como o blockbuster adolescente "Crepúsculo" e, mais recentemente, o

sueco "Let the Right One In", "True Blood" é responsável por colocar os vampiros, personagens

centenários da cultura pop, na moda mais uma vez. Gélidos, perigosos e sexies, eles ainda renderão

muitos frutos para Hollywood.

TRUE BLOOD - 1ª TEMPORADA

Distribuidora: Warner; R$ 120

Classificação: 18 anos

LETICIA DE CASTRO

Folha de São Paulo, 11/07/09

(57) Tom impessoal enfraquece drama "real"

Os "fatos reais" podem ser uma armadilha fatal. Eles são a base de "O Contador de

Histórias". E a história, no caso, é de Roberto Carlos Ramos, um menino que a mãe, por falta de

condições e acreditando na propaganda da TV, entrega à Febem mineira para ser criado pelo Estado.

Como a propaganda não coincide com a vida real, Roberto Carlos aos 13 anos já é considerado um

caso irrecuperável. Isso até que entra em cena a pedagoga Margherit (Maria de Medeiros), para

quem não existe alguém irrecuperável nessa idade. A questão proposta é: a substituição de um

método impessoal pela aproximação caso a caso pode salvar um jovem desencaminhado?

Não é, sejamos francos, questão que se apresente, pois, ainda que seja, o filme nos lança

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num beco sem saída. A Febem, onde o menino foi deixado, era uma instituição monstruosa, tanto

que foi fechada e substituída por um sistema de pequenas unidades (portanto, teoricamente, de

atendimento mais próximo das crianças e adolescentes envolvidos). Desse ponto de vista, a questão

inexiste.

Se a ideia de Margherit (isto é, do filme) é demonstrar que as pessoas não são más por

natureza, mas agem em grande medida em vista do ambiente social que frequentam, também aí

estamos chovendo no molhado: as mentalidades liberais acreditam nisso há um século; as

conservadoras jamais acreditarão, haja o que houver.

Em outras palavras, o que sobra de real falta de verdade ao filme de Luiz Villaça. E nisso a

forma não desmente o fundo. A impessoalidade da empreitada já se nota pelo número de roteiristas

(quatro) -compreende-se que a Febem seja vista ora como um inferno, ora como um promissor

purgatório.

Quanto à mise-en-scène, além de uma direção de atores precária (Maria de Medeiros está

bem entre atores mal conduzidos), ela consegue perder o momento mais promissor da trama: quando

o jovem e ameaçador Cabelinho invade a casa de Margherit. Por um instante parece que teremos

uma sequência hitchcockiana. Não. Ela é amorfa como, mais ou menos, todo o conjunto.

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Direção: Luiz Villaça

Produção: Brasil, 2009

Quando: estreia na sexta-feira

Classificação: não informada

Avaliação: ruim

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 02/08/09

(58) Pialat evita melodrama e cria elos entre pintura e cinema em "Van Gogh"

A eterna relação de fascínio entre o cinema e a pintura flutua desde a inspiração até o

vampirismo daquele frente a esta. Quando se trata de biografar artistas então, os filmes parecem

antes de tudo querer projetar ideais raros, quando não inexistentes. Dos "heróis irresistíveis" da arte,

o nome de Vincent van Gogh tornou-se um lugar-comum, com sua mistura de ícone romântico,

reconhecimento tardio e mito rebelde.

O suicídio que encerrou sua trajetória curta e fulgurante pôs fim com chave de ouro a uma

história feita sob medida para o cinema e sua queda pelo melodrama.

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Quando chegou às mãos do diretor francês Maurice Pialat em 1991, o mito já havia recebido revisões

assinadas por grandes como Resnais, Minnelli e Altman, além de um curta feito pelo próprio Pialat

nos anos 60. Conhecido mais por seu temperamento irascível do que pelo rigor e pela forma

antiespetacular de seu trabalho, Pialat aborda o artista enquanto mito pela contramão. Inadequação,

incompreensão e insubordinação às regras não constituem valores em si, demonstra o diretor a partir

de seu modelo, dando a entender que o raciocínio aplica-se sem mudanças a seu trajeto de autor.

Logo, o "Van Gogh" de Pialat será tão idiossincrático quanto o ultraromântico de Minnelli e o

despojado de Altman. No entanto, em vez de se perder em confissões, Pialat recupera explicitamente

em "Van Gogh" sua própria experiência como pintor, prática que exerceu antes de se converter em

cineasta.

Sem ilusionismos

Com o álibi de filme sobre artista, Pialat executa um dos mais profundos trabalhos pictóricos

já feitos no cinema, sem permitir confundir pintura com empetecamento da imagem ou com a

reprodução impressionante, mas sem sentido, da obra de Van Gogh realizada por Kurosawa em

"Sonhos".

O diretor francês nos faz ver que entre cinema e pintura a similitude não se esgota na

superfície da tela, nos acordos de luz e cor que muitas vezes nos levam a perder nosso olhar no

ilusionismo da beleza.

É na concepção de quadro, espaço delimitado por quatro linhas que se abrem ou se fecham

que tanto pintor como cineasta impõem uma visão (no sentido de ponto de vista) ao espectador.

O artista, então, passa a ser aquele que oferece uma experiência sublime, que nos arranca do torpor,

mesmo quando retrata um tema ou uma vivência identificada como banal (exemplar, aqui, no modo

como Van Gogh é um homem sem qualidades). Os outros não passam de captadores de imagens.

VAN GOGH

Lançamento: Versátil

Quanto: R$ 44,90

Classificação: 16 anos

Avaliação: ótimo

CÁSSIO STARLING CARLOS

Folha de São Paulo, 09/08/09

(59) Oliver Stone filma biografia lisérgica de Jim Morrison

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É um trabalho árduo esse de fazer um filme de rock. Se o diretor já começa ganhando, pelo

fato de arrebanhar muitos espectadores que já são fãs da banda ou do gênero retratado, por outro

lado esse mesmos fãs são cricris o suficiente para exigir que cada detalhe da vida do astro seja

reproduzido sem maiores liberdades.

Com "The Doors", de 1991, Oliver Stone conseguiu o raro feito de unir o útil ao agradável.

O filme é informativo, tanto em relação à banda como em relação ao clima dos Estados Unidos e,

mais especificamente, de Los Angeles no fim dos anos 60.

E é radicalmente autoral também, abusando de cenas de viagens lisérgicas, bêbadas ou

simplesmente alucinadas. Stone apresenta sua visão do mito Jim Morrison e consegue agradar até

os fãs do "rei lagarto".

O The Doors lançou seis álbuns de estúdio entre 1967 e 1971 e, a despeito de hits como

"Light My Fire", "People Are Strange", "Hello, I Love You", "Touch Me", "Roadhouse Blues" e "Riders

on the Storm", sua grande força estava no carisma do cantor e poeta Jim Morrison.

O fato de ele ter morrido em julho de 1971, aos 27 anos (em Paris, em circunstâncias pouco

esclarecidas), fez o mito em torno dele aumentar exponencialmente, até que, 20 anos depois, deu

neste filme.

E, quase mais 20 anos depois, chegamos a este DVD duplo com um disco só de bons extras,

que incluem 14 cenas deletadas, documentários e boas entrevistas com os atores e a equipe.

O que mais chama a atenção nas entrevistas é que elas não se limitam a louvar o filme e o diretor.

Oliver Stone, por exemplo, reclama de Meg Ryan (no papel de Pamela Courson) ter escondido o seio

com a mão numa cena de sexo com Val Kilmer (Morrison): "Ela não entendeu nada dos anos 60 e

estragou minha cena".

Em outro momento, o ator Frank Whaley (que interpreta o guitarrista Robby Krieger) tira um

sarro das extravagâncias de Val Kilmer, revelando que o astro não aceitava ser chamado pelo próprio

nome, apenas como "Jim Morrison", durante as filmagens do longa.

THE DOORS

Direção: Oliver Stone

Lançamento: Sony Pictures (R$ 39,90; DVD duplo; classificação: 18 anos)

Avaliação: ótimo

IVAN FINOTTI

Folha de São Paulo, 16/08/09

(60) Longa propõe experiência física da guerra

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Enquanto a Guerra do Vietnã demorou, mas acabou recebendo um tratamento

cinematográfico com peso equivalente ao do trauma provocado por ela na sociedade norte-

americana, o impacto do envolvimento do país na atual Guerra do Iraque vem sendo recuperado pela

ficção audiovisual com intensidade e quase em tempo real.

A vivência dos soldados foi reconstituída com crueza nas séries de TV "Over There" e

"Generation Kill", enquanto o modo de captar e reproduzir suas imagens serviram para o cineasta

Brian De Palma questionar a veracidade do que acreditamos só de ver no magistral "Redacted".

Agora, "Guerra ao Terror", dirigido pela sempre interessante Kathryn Bigelow, sai diretamente em

DVD no Brasil, depois de receber prêmios no Festival de Veneza em 2008 e a boa acolhida geral da

imprensa. norte-americana.

Infelizmente, não passou aqui em salas, pois só mesmo a exibição em tela de cinema deve

ser mais impactante que a visão do filme em TV.

Em vez de drama humanista, libelo pacifista ou manifesto politizado, o que o filme propõe é

uma experiência física da guerra. Para isso, seu fiapo de história resume-se a acompanhar um grupo

especialista em localizar e desativar IEDs, sigla para as bombas improvisadas que rotineiramente

destroçam reuniões de iraquianos e, de vez em quando, despacham soldados americanos mais

rápido para casa.

Enquanto aguardam ansiosos a chegada da folga, quando poderão retornar aos Estados

Unidos e rever suas famílias, os integrantes do grupo Delta vivem sob o risco contínuo de explosões,

ataques de franco-atiradores e formas ainda mais cruéis inventadas pela resistência iraquiana.

Ao se inserir no grupo, o filme nos leva a experimentar um conflito marcado menos por combates

abertos, frontais e espetaculares e mais pela recorrência de subterfúgios característicos de guerrilha.

Câmera aflita

Grudada em três soldados, a câmera aflita de Bigelow reconstitui uma percepção dessa

experiência que o registro jornalístico-documental nunca alcança e que os games, em sua dimensão

de projeção virtual, já ultrapassaram.

Além desse triunfo no âmbito do realismo, a concentração quase somente em cenas de ação

faz de "Guerra ao Terror" um filme cuja ressonância política vai além da obtida pelos documentários

que nos mostraram seus horrores.

De um lado, porque carrega a cada passo militar o peso intervencionista, invasivo e de pouca

receptividade da presença norte-americana.

Mas, sobretudo, porque basta a inserção de uma pausa nesse universo concentrado, quando

o filme mostra a indecisão de um soldado de folga diante de uma prateleira de cereais num mercado,

para sentirmos uma violência cujo impacto não se mede em explosões.

GUERRA AO TERROR

Direção: Kathryn Bigelow

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Lançamento: Imagem Filmes (R$ 35, em média)

Classificação: 14 anos

Avaliação: ótimo

CÁSSIO STARLING CARLOS

Folha de São Paulo, 16/08/09

(61) Thriller de Joseph Losey desafia o espectador ao usar clima de pesadelo

Não dá para acreditar em nada de "A Sombra da Forca". Um pai alcoólatra, o escritor David

Graham (Michael Redgrave), que chega em Londres, vindo do Canadá, 24 horas antes da execução

do filho. A estranha recepção que lhe dão os Stanford (rica família do melhor amigo do rapaz). O

advogado ambíguo, que nunca se sabe se está defendendo ou atacando o seu constituinte. A busca

desesperada do pai por evidências para livrar o filho da pena capital.

Não dá para acreditar em nada, digo, até percebermos que nada aqui aspira à realidade. A

interpretação dos atores é crispada (e por vezes se tem a impressão de que Joseph Losey escolheu

os piores ou menos adequados atores da Inglaterra). As peripécias policiais baseiam-se menos em

provas e achados espetaculares do que no poder de convicção dos diversos envolvidos. Mesmo a luz

de Freddie Francis está mais próxima de um filme de terror do que de um thriller policial.

Se não aspira à realidade, "A Sombra da Forca" propõe-se, então, como um pesadelo e é lá

que vive e faz sentido. E só assim pode ser compreendido, pois Losey dá-se ao luxo de trabalhar

uma intriga que não fecha, não esgota todos os dados que lança mas deixa-os um tanto soltos, como

fiapos de memória que cabe ao espectador, em grande parte, recolher.

Assim, esse estranho filme nos propõe uma espécie de "whodunit" (quem é o culpado?), pois

sabemos que o verdadeiro culpado está entre as pessoas em cena, mas não é bem isso. Propõe uma

espécie de mergulho na psicologia dos personagens. Mas também não é bem isso. Há momentos em

que tudo parece nos escapar, exceto a angústia de David, de quem também as coisas escapam à

medida em que se aproxima o momento da execução.

Nos fazer participar intensamente desse pesadelo em que David Graham joga toda sua vida

não é o menor dos méritos de "A Sombra da Forca". É uma pena: apesar da boa qualidade das

imagens, o DVD chega praticamente sem nenhum extra.

A SOMBRA DA FORCA

Diretor: Joseph Losey

Lançamento: Lume

Quanto: R$ 49,90

Avaliação: bom

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INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 23/08/09

(62) Filmes são Kieslowski em formação

"Cinemaníaco" e "Acaso", lançados agora em DVD, estão entre os primeiros longas de ficção

realizados pelo polonês.

Krzysztof Kieslowski (1941-96) começou fazendo documentários. Esse aprendizado deu-lhe a

segurança necessária para que, ao encarar a ficção, seu cinema estivesse colado ao real e, ao

mesmo tempo, o transcendesse esteticamente.

Dois dos primeiros longas de ficção do diretor polonês chegam ao DVD e atestam o seu

rápido amadurecimento como autor de cinema.

"Cinemaníaco" (1979) oscila entre a sátira política e o melodrama pessoal ao narrar a história

de um funcionário de empresa estatal (Jerzy Stuhr) que compra uma câmera de 8mm para filmar o

nascimento do filho e acaba se tornando, primeiro, o cineasta oficial da firma e, depois, um incômodo

documentarista da vida cotidiana de sua cidade.

Já estão presentes ali algumas marcas do futuro criador do "Decálogo": o foco em

personagens em situações de impasse, o pendor para as paisagens desoladas, o uso criterioso da

câmera na mão.

Mas é em "Acaso", feito em 1981 e interditado pela censura até 1987, que o estilo de

Kieslowski começa de fato a florescer. Trata-se da narrativa complexa de três caminhos alternativos

para a vida de um estudante de medicina, Witek (Boguslaw Linda).

O "nó de tempo", a encruzilhada de destinos possíveis, é a chegada esbaforida do protagonista à

plataforma de uma estação. Numa das alternativas, ele alcança o trem para Varsóvia e se torna um

agente do partido oficial do regime comunista.

Nas outras duas, Witek perde o trem e embarca em vidas diferentes: ativista dissidente ou

médico apolítico.

Não há aqui o esquematismo que se esperaria do mesmo tema nas mãos de um Ettore

Scola. Os tempos alternativos não são compartimentos estanques, e os papéis assumidos por Witek

não estão assim tão distantes um do outro.

Não é só no enredo engenhoso que se forja a densidade desse drama sobre os dilemas da

ética, do amor e da fé (política, religiosa), mas sobretudo no uso das cores (o violeta, o amarelo) na

composição de um espaço dramático profundo e pulsante, cheio de desvãos onde os seres podem se

encontrar ou se perder. O "expressionismo cromático" do "Decálogo" e da "Trilogia das Cores" tem

talvez aqui a sua bela gênese.

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ACASO/ CINEMANÍACO

Diretor: Krzysztof Kieslowski

Lançamento: VideoFilmes

Quanto: R$ 46 (cada um, em média)

Avaliação: ótimo/ bom

JOSÉ GERALDO COUTO

Folha de São Paulo, 06/09/09

(63) Como no livro original, filme "Lobo da Estepe" é para raros

Obra de 1974 virou cult ao levar para o cinema o romance de Herman Hesse

Renegado, esnobado, esquecido, cultuado e, finalmente, lançado em DVD. Basicamente é

esse o caminho tortuoso do filme "O Lobo da Estepe", de 1974, dirigido e escrito pelo americano Fred

Haines. Trata-se de uma adaptação livre (e como poderia ser diferente?) do romance de mesmo

nome do germano-suíço Herman Hesse (1877-1962).

Nobel de literatura em 1946, Hesse havia publicado "O Lobo da Estepe" em 1927. É,

provavelmente, seu principal e mais controverso romance. A história trata de Harry Haller, um homem

com 47 anos que não consegue se adaptar à vida na sociedade. Sente-se aprisionado pelas

convenções morais, assim com seu eu interior, um lobo selvagem, está aprisionado dentro da casca

humana.

Resolve, assim, suicidar-se no dia em que completar 50 anos.

Em suas andanças pela cidade, porém, depara-se com uma casa noturna onírica chamada Teatro

Mágico, que só admite a entrada de "loucos e raros", pois o preço do ingresso é a sua mente. Ali,

Haller conhece Hermine e Pablo, que o conduzirão numa balada de sexo sem amarras e drogas sem

culpa, direto ao inconsciente.

Por suas características rebeldes e transgressoras, o romance foi redescoberto pela

contracultura nos anos 60 (chegou a dar o nome à banda de rock norte-americana Steppenwolf, de

"Born to Be Wild").

O filme

Lançado em 1974, após sete anos de produção tempestuosa, "O Lobo da Estepe" traz o

grande ator sueco Max von Sydow no papel de Harry Haller. Foi a única obra dirigido pelo californiano

Fred Haines.

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O filme, assim como o Teatro Mágico original, é para raros.

Apesar de trazer uma narração em off do protagonista, o que ajuda em muitos momentos, não há

uma linearidade fácil.

O que há é uma explosão de ideias e técnicas: uma parte da história se passa em desenhos;

outro momento usa animação de fotos; imagens se congelam durante a ação; céus verdes e árvores

cor de laranja; efeitos especiais pululam por todo canto. Parte das cenas são gravadas em videoteipe.

Usam-se muitos efeitos especiais de vídeo, como o de cromaqui -no qual o ator contracena num

fundo azul, no qual mais tarde é aplicado outro fundo.

Mas essas cenas se tornam um tanto simplórias quando vistas hoje. Sumiços e aparições de

surpresa, muitas acompanhados por ruídos ridículos fazem lembrar episódios televisivos de "Os

Trapalhões". É preciso, portanto, dar algum desconto ao diretor e à década à qual o filme pertence.

Tudo contribui para dar uma cara lisérgica, surreal, claustrofóbica, estranha, ao mesmo tempo em

que é underground, caseira, de fundo de quintal.

As filmagens

Antes do diretor, "O Lobo da Estepe" foi arquitetado pelo produtor Melvin Fishman no final

dos anos 60. Apaixonado pelo livro e por Carl Jung (de quem Hesse era discípulo), Fishman queria "o

primeiro filme jungiano", mergulhado na psicanálise, nos símbolos e nas imagens de sonhos como

expressão do inconsciente.

O primeiro diretor convidado foi Michelangelo Antonioni, que pensou em Walter Matthau e

Jack Lemmon para o papel principal, antes de declarar a obra infilmável.

A MGM sondou atores como Marlon Brando e James Coburn e escritores como Fred Haines, cujo

roteiro para "Ulisses", de James Joyce, havia sido indicado ao Oscar em 1968.

Querendo escapar das garras dos estúdios, Fishman carregou uma equipe de produção até a

Basiléia, cidade suíça onde "O Lobo da Estepe" havia sido escrito e, curiosamente, onde foi

descoberto o LSD.

Lá, o obcecado produtor passava horas filmando o escritor Fred Haines lendo sua versão do

roteiro embaixo de uma lâmpada de 150 watts. Até Timothy Leary, o guru das drogas, apareceu por

lá e foi testado para o papel de Harry Haller. Após sete anos de tentativas, finalmente, Sydow,

Dominique Sanda e Pierre Clement ("A Bela da Tarde", de 1967) começaram a filmar, com Haines na

cadeira de diretor.

Terminadas as filmagens, um financiador assumiu o controle da obra, o que acarretou em um

ataque cardíaco para Fishman.

Foram feitas 80 cópias com cores erradas (o olho azul de Dominique Sana ficou marrom) e o

filme foi um fracasso. Dois anos depois, ainda lutando para ter controle sobre a obra, Fishman teve

outra parada cardíaca. Morreu sozinho e triste, como o lobo da estepe planejara.

O LOBO DA ESTEPE

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Direção: Fred Haines

Lançamento: Platina Filmes (R$ 20, em média); 18 anos

Avaliação: bom

IVAN FINOTTI

Folha de São Paulo, 13/09/09

(64) "A Vila" é momento alto na carreira de Shyamalan

Passa, é claro, "Psicose" (TC Cult, 22h, 12 anos), programado para hoje para ser o

encerramento e ponto alto da série dedicada a Hitchcock. Não é injusto. Mas é esse pouco amado M.

Night Shyamalan que merece, por hoje, um tanto de atenção, ao menos de quem já conhece

"Psicose" de cor.

O indiano, com efeito, misturava algo oriental a um suspense bem ocidental em "O Sexto

Sentido". Aos poucos, a delicadeza do olhar e do traço foram se impondo em sua obra, da qual "A

Vila" (TNT, 19h40, 12 anos) é um momento alto.

Ali uma comunidade recusa o mundo tal como se apresenta e pretende reconstruí-lo curado

dos males -e do pior de todos: o tempo. Mas o tempo se infiltra nesse paraíso artificial e o corrompe.

Ou, antes, o purifica, porque esse mundo está montado sobre a mentira, no caso, e para falar em

termos de cinema: cenografia e figurinos.

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 20/09/09

(65) Em clima de ressaca, filme de Mike Leigh explora uma Londres sombria

Chama a atenção que "Naked" (1993), de Mike Leigh, finalmente veja a luz do dia no Brasil

meses após o lançamento nos cinemas de "Simplesmente Feliz" (2008). "Naked" sai agora em DVD

sem nunca ter sido distribuído nas salas. É a crônica mais sombria de Leigh, contrastando com o

último, sua obra mais risonha.

Premiado no Festival de Cannes com direção e ator (David Thewlis) dois anos antes da

Palma de Ouro para Leigh por "Segredos e Mentiras" (1996), o tom de "Naked" lembra o de uma

ressaca.

E, como ocorre em ressacas, o mal-estar é forte, mas a sensação de estar vivo também. O

192

filme segue algo de bêbado e nublado, com espasmos de sobriedade tocante, um pouco como a

própria Londres.

O eixo da trama é Johnny (David Thewlis). Ele faz parte de uma galeria peculiar de ingleses,

como o Alex de "Laranja Mecânica" (1971), o skinhead Trevor de "Made in Britain" (1984), ou Francie

Brady, o proto-punk mirim de "Nó na Garganta" (1997). São agentes do caos com sensibilidades

insuspeitas.

Charme pós-punk

Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de Deus e ainda

jovem o bastante para odiar isso.

Nos seus piores momentos, tem a verve de um poeta marginal afiado. É um chato com

alguma razão que explica sua má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes.

Chega na casa da ex-namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea

Sophie (Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny leva o

trio a um colapso imediato.

Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo lembrando "Depois

de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original. Se na noite nova-iorquina de

Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de Leigh Johnny é o motor de tensões

constantes.

Essa dureza tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também percebido em "Kes"

(1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema britânico lançado há pouco pela mesma

distribuidora Lume Filmes.

Como Loach, Mike Leigh destaca o som do falar na Grã-Bretanha com ouvidos abertos. O trio

Johnny, Louise e Sophie, o casal de escoceses na rua e o outro personagem masculino em cena,

Jeremy (Greg Cruttwell), assumem visões de mundo e de classes sociais em sonoridades peculiares

da paisagem britânica.

NAKED

Distribuição: Lume Filmes

Quanto: R$ 39,90, em média

Classificação: 18 anos

Avaliação: ótimo

KLEBER MENDONÇA FILHO

Folha de São Paulo, 27/09/09

(66) Drama de Douglas Sirk chega aos 50 anos com frescor intacto

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Último trabalho do diretor em grande estúdio gira em torno de jogo de aparências

Nada parece verdadeiro em "Imitação da Vida". Sarah Jane é negra, embora seja branca;

Lora é uma atriz, embora só apareça em fotos publicitárias; Steve é um fotógrafo, embora renuncie

com desenvoltura à arte em troca de um bom emprego; o sr. Loomis é um agente, mas mais parece

um cáften, oferecendo suas atrizes a produtores de teatro e cinema.

O que é verdadeiro no filme com que Douglas Sirk encerrou a carreira (em estúdios), então?

Annie, talvez. Annie, a negra que é negra, a empregada dedicada e servil.

Neste filme que chega aos 50 anos em plena juventude, narra-se em princípio a história de duas

mães. A branca Lora e a negra Annie cuidam de suas filhas, Susie e Sarah Jane, como princesinhas.

Na medida do possível. Existe uma brancura ostensiva em Lora. Ela se comporta como se não

houvesse discriminação racial. Impossível saber até que ponto isso é hipocrisia.

Em dado momento, ela pedirá a Sarah Jane que execute tarefas de criada, embora saiba que ela não

é criada. Ela o faz com um tipo de inocência característico dos brancos que, por tratarem os negros

em pé de igualdade, como que lhes exigem uma retribuição.

No mais, ela tenta cobrir a filha de mimos. Quer dar a ela tudo o que não teve. Ora, ocorre

que sua carreira de atriz de repente deslancha. Então, Susie irá para os melhores colégios, mas não

terá mais a companhia da mãe. Para desenvolver sua carreira, ela tem de renunciar ao amor de

Steve.

É bem verdade que Steve, num primeiro momento namorado todo cheio de dedicação, logo

faz a exigência clássica do machismo mais machista: que a mulher abandone a carreira e se deixe

cuidar por ele. Importa o seguinte: quanto mais Lora progride em sua carreira, mais a cor branca se

mostra predominante nas paredes e na decoração de sua casa.

Alienação

Ao lado disso, existe Annie e sua obsessão pela verdade. Obsessão que torna sua presença

insuportável para Sarah Jane. A filha sabe em que mundo vive e da necessidade de escapar disso.

Ainda não existem os direitos civis. A única maneira é se passar por branca, o que é possível para

ela, desde que negue sua origem e seja um travesti do branco a que ela tanto aspira para não ser

desprezada.

Ao contrário da primeira versão do filme (1934), em que a negra se tornava o sustentáculo da

casa graças às suas fantásticas panquecas, aqui Douglas Sirk sabiamente a mantém sempre numa

posição subalterna, compatível com sua natureza servil. Ela deve ser a única pessoa não deslocada

nessa história, o que não significa que não seja, como todos os demais, alienada. Todos pensam que

são algo que não são: Lora, Susie, Steve, Sarah Jane.

A única que sabe quem é, que não passa por deslocamentos, que não vive as mentiras e a

corrosão dos desejos é Annie. Não porque seja consciente. Ela é consciente apenas de sua

inferioridade (e adaptada a ela).

194

Se todos os outros são, de certa forma, alienados, o fato de ser centrada não favorece a

empregada. Apenas significa que interiorizou com sucesso a condição de escrava. O tempo torna

cada vez mais evidente a dimensão desta obra-prima, que sai num DVD sem extras, mas com

formato correto e boas cores.

IMITAÇÃO DA VIDA

Distribuição: Classicline

Quanto: R$ 34,80 (12 anos)

Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 11/10/09

(67) Obra mítica de Coppola é melhor na versão "curta"

Nem sempre o "director's cut", a remontagem feita pelo próprio cineasta de seus filmes,

melhora o produto original. Um dos maiores exemplos é "Apocalypse Now", filme emblemático e

brilhante que fechou a psicodélica década de 70 nos EUA.

Por isso, é uma ótima notícia que seja relançado em sua versão original, de 1979, esse título

que Francis Ford Coppola havia "renovado" como "Apocalypse Now Redux" em 2001, afastando o

espectador de uma obra original e pulsante.

Para lembrar: a novela "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, uma metáfora para o

fracasso da civilização europeia, transformada em barbárie na África primeva, já era um título

perseguido nos EUA desde os anos 30. Seria o primeiro projeto revolucionário de Orson Welles em

Hollywood -até ser cancelado e virar um ícone.

Essa obra mítica, que impunha desafios para a adaptação ao padrão vigente por sua

estrutura narrativa, foi resgatado por outro "enfant terrible" do cinema, Coppola, que tentava nos anos

70 reconstruir a Hollywood dos grandes estúdios -mas em versão "autoral".

Coube a John Milius a tarefa de verter a história do empreendimento colonial em xeque para a

convulsionada Guerra do Vietnã, que corroía os valores da sociedade americana. As filmagens foram

um desastre. De um tufão que destruiu o set nas Filipinas, às idiossincrasias geniais e

megalomaníacas de Coppola, passando por um ataque cardíaco do ator principal (Martin Sheen) no

meio das filmagens e orçamentos estourados de forma espetacular, uma série catastrófica de

eventos marcou definitivamente o filme.

Mas esse sentido de urgência, as imperfeições, o sentido quixotesco e romântico da aventura

também fizeram a beleza da obra, que foi amaldiçoada nos EUA antes de ser apresentada (ainda

195

incompleta) de forma triunfal em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro. É todo esse patrimônio que

foi colocado a perder na versão "remasterizada". Os 49 minutos adicionais incluíram digressões

supérfluas e trouxeram justificativas desnecessárias para personagens que emergiam como figuras

bíblicas e mitológicas em meio à névoa.

O mistério, a inquietação, a loucura da guerra e a aventura lisérgica foram substituídos pela

contemplação enfadonha. Músicas adicionais "inéditas" de Carmine Coppola, pai do diretor, não

faziam falta no original. Além disso, a temerária remarcação de luz "plastificou" a fotografia de Vittorio

Storaro. No cinema, assim como na música, muitas vezes os pequenos ruídos da versão "vinil"

reproduzem uma obra mais real.

APOCALYPSE NOW

Distribuidora: Universal

Quanto: R$ 19,90 (16 anos)

Avaliação: ótimo

MARCOS STRECKER

Folha de São Paulo, 11/10/09

(68) Elenco de "Seinfeld" está de volta (mas não muito)

Nos EUA, série "Curb Your Enthusiasm" inclui trupe do programa extinto em 1998

Nos 4 episódios exibidos, atores apareceram em apenas um; na trama, eles interpretam a si

mesmos e pensam em fazer reunião

Desde o dia 20 de setembro, a tribo formada pelos órfãos de "Seinfeld" nos EUA se reúne

nos domingos à noite para assistir ao que mais perto se vai chegar de uma reunião daquela que é

considerada por críticos a melhor série cômica já exibida pela TV americana.

Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que seriam os

bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um episódio da série, que foi

de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de criatividade de um formato -a sitcom, com

três câmeras e riso da plateia- inventado nos anos 50 e que dura até hoje.

Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não será de verdade. É o que a tribo de

espectadores vem descobrindo a cada semana. Por exemplo, nos quatro episódios exibidos até

agora, os quatro atores de "Seinfeld" só aparecem em um -nos outros, são só mencionados,

aparecem em pequenas cenas ou nem isso.

196

Coautor de "Seinfeld", David é o John Lennon para o Paul McCartney de Jerry Seinfeld.

Desde o fim da série, ele é o que manteve uma carreira mais coerentemente fértil. Seu "Curb", em

que interpreta a si mesmo em situações plausíveis mas exageradas para efeitos cômicos, entrou na

sétima temporada com sucesso.

No plot armado por ele para fazer "a reunião que não é reunião", cria um motivo torpe para

chamar os ex-colegas a atuar com ele: quer dar um papel secundário à ex-mulher, Cheryl (Cheryl

Hines), e assim reconquistá-la. Para sua surpresa, Seinfeld e o elenco aceitam.

Assim, Seinfeld, Julia Louis-Dreyfus, Michael Richards e Jason Alexander interpretam a si mesmos

interpretando a si mesmos enquanto falam com Larry David sobre a volta para mais um episódio -

tudo dentro de "Curb". Confuso? É para ser assim, disse David.

Nos convites individuais, ele mente a cada um que os outros já aceitaram. Seinfeld desconfia

dos verdadeiros motivos do amigo que ele conhece muito bem. Alexander acha bom uma volta para

redimir o péssimo último capítulo da série -uma crítica verdadeira que se faz ao encerramento do

programa.

Richards não presta atenção, atoleimado que está com os cartazes de mulheres nuas do

restaurante a que David o levou, e acaba dizendo sim. E cabe a David vender a volta à NBC. No meio

do caminho, ele briga com o executivo da emissora e corre o risco de ficar sem reunião -e sem

mulher.

É nesse momento em que os fãs estamos pendurados. O episódio em que tudo acontece foi

o terceiro, exibido em 3 de outubro. Desde então, mais um foi ao ar, domingo passado, e nada de

"Seinfeld". Hoje é dia de "Curb" nos EUA. E a série vai caminhando para o final...

SÉRGIO DÁVILA

Folha de São Paulo, 18/11/09

(69) Comédia dramática faz de Cantona um guru

Em "Sonhos de um Sedutor" (1972), baseado em peça de sua autoria, Woody Allen é um

crítico de cinema, especialmente inseguro com mulheres, que recebe conselhos do seu ídolo

Humphrey Bogart, caracterizado em presença sobrenatural, produto de fantasia, como o durão Rick,

de "Casablanca" (1942).

Situação parecida alimenta "À Procura de Eric", que disputou a mostra competitiva do Festival

de Cannes deste ano.

Eric (Steve Evets), carteiro de Manchester, passa a trocar ideias sobre seus diversos

problemas com outro Eric, o ex-jogador francês Cantona (interpretado pelo próprio).

Eleito pela revista inglesa "Four Four Two" como o maior jogador estrangeiro a atuar no país,

Cantona fez história nos anos 90 pelo Manchester United, cuja torcida ainda o venera como um

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semideus. Temperamento belicoso e arrogância nada disfarçada também o transformaram em alvo

do ódio de torcedores rivais.

Foi o que lhe custou uma vaga na seleção francesa que obteve o título mundial em 1998: o

técnico Aimé Jacquet preferiu abrir mão dele (depois de longa suspensão por envolver-se em briga

na arquibancada) e de outro ídolo francês que também atuava na Inglaterra, David Ginola, a correr o

risco de desestabilizar o jovem elenco.

É outro Cantona, mais sereno e sábio pelo efeito do tempo, que aconselha seu fã em "À

Procura de Eric".

Estamos em cenário semelhante ao das outras crônicas sobre a classe trabalhadora britânica

realizadas pelo diretor Ken Loach e pelo roteirista Paul Laverty, como "Meu Nome É Joe" (1998).

O solitário carteiro Eric, no fundo em busca de si mesmo, não superou a separação da primeira

mulher (Stephanie Bishop) e tem problemas com os filhos adolescentes da segunda, que o deixou.

Seu processo depressivo é acompanhado não só por um sobrenatural Cantona mas também por

amigos de trabalho e torcida, que exercerão papel importante nessa comédia dramática em que

predomina o valor da solidariedade.

À PROCURA DE ERIC

Quando: hoje, às 15h50, no CineBombril; e em outros dois dias e horários de exibição

Classificação: livre

Avaliação: bom

SÉRGIO RIZZO

Folha de São Paulo, 25/10/09

(70) Anárquica, série dos anos 50 ajudou a formatar humor na TV

Caixa reúne primeira temporada de "I Love Lucy", produção que liderou audiência

Muitos dos pais de fãs de "Seinfeld", "Friends", "Will & Grace" e "Two and a Half Men" ainda

não haviam nascido quando o modelo de seriado cômico era formatado por um casal que reinou

durante a década de 50 como o mais popular da TV norte-americana.

De 1951 a 1957, Lucille Ball (1911-1989) e Desi Arnaz (1917-1986) produziram e estrelaram 181

episódios de "I Love Lucy", que obteve o primeiro lugar de audiência em quatro de suas seis

temporadas (nas outras duas, ficou em segundo e em terceiro lugares).

Os alicerces desse fenômeno, que se mantém ainda hoje como um dos mais bem-sucedidos na

198

história da TV nos EUA, se espalham pelos 35 episódios da primeira temporada recém-lançada em

DVD em caixa de sete discos que traz ainda o episódio-piloto, perdido durante décadas e só exibido,

como relíquia, em abril de 1990.

Nele, um narrador conduz o espectador até um pequeno apartamento no sétimo andar de um

prédio de Nova York próximo à região dos teatros e das casas noturnas, onde despertam -em camas

separadas- Ricky e Lucy Ricardo. Cantor, ele se prepara para uma importante apresentação; ela quer

acompanhá-lo, contra a vontade dele.

O argumento para um seriado que falasse de modo bem-humorado sobre o cotidiano de um

casal veio do programa de rádio "My Favorite Husband", criado em 1948 e estrelado por Ball, que

interpretava a mulher de um banqueiro. Quando a rede CBS se interessou em adaptá-lo para a TV

com a própria atriz, Arnaz entrou no pacote.

Os dois se conheceram nas filmagens de "Garotas em Penca" (1940) e se casaram em

seguida. Ao fundar, em 1950, a produtora Desilu, tentavam justamente viabilizar trabalhos conjuntos.

A negociação com a CBS possibilitou que assumissem a produção do seriado, os direitos sobre os

personagens e a autonomia criativa.

Levado ao ar em outubro de 1951, o primeiro episódio, "As Garotas Querem Ir a uma Boate",

já estabeleceu parâmetros duradouros, como um apartamento de classe média para os Ricardo, mais

cenográfico do que o ambiente do piloto, e a presença de um casal de vizinhos, Ethel (Vivian Vance)

e Fred Mertz (William Frawley).

No segundo episódio, "Seja Companheira", as variações em torno da situação-base -marido

que parece desinteressado da mulher- incluem brincadeiras com as origens cubanas de Ricky (e do

próprio Arnaz) e uma referência ao Brasil, em homenagem a Carmen Miranda (1909-1955), com Ball

dublando "Mamãe Eu Quero".

Semana após semana, cada nova meia hora foi consolidando características técnicas -como

a gravação com quatro câmeras diante de uma plateia, o primeiro seriado a fazer isso- e

dramatúrgicas, com destaque para os diálogos ágeis.

Duelos verbais, frases de duplo sentido e humor às vezes anárquico, mas sempre para

consumo familiar, lembram que esse gênero televisivo tem como avós Ricky e Lucy Ricardo.

I LOVE LUCY - 1ª TEMPORADA

Distribuição: Paramount

Quanto: R$ 129,90 (em média)

Avaliação: bom

SÉRGIO RIZZO

Folha de São Paulo, 25/10/09

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(71) Mostra ressalta importância que escultor dava à fotografia

Entre destaques está painel com 71 fotos que reproduz montagem de 1900

O escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) já foi tema de duas exposições antológicas na

Pinacoteca do Estado. A primeira, em 1995, reuniu 200 mil pessoas e representou a consagração do

espaço como o museu mais dinâmico da cidade. Já em 2001 foi a vez de "A Porta do Inferno", que

consumiu 20 anos de trabalho de Rodin, levar novas hordas de visitantes ao local.

Assim, em menos de 15 anos, "Rodin: do Ateliê ao Museu", em cartaz no Masp (Museu de Arte de

São Paulo), traz novamente obras do escultor. Redundante? Não. A mostra apresenta um tema

relevante não só em seu processo como também para a própria arte moderna: a importância da

fotografia.

A exposição, organizada em parceria com o Museu Rodin, em Paris, reúne 22 esculturas e

194 imagens que refletem a relação de fato intensa entre o artista e seus fotógrafos. Rodin começou

a registrar suas obras e seu ateliê em 1880, quando esse procedimento tornava-se mais maduro,

após 40 anos de experimentação.

Em seus arquivos, foram encontradas nada menos do que 25 mil fotografias, sendo que

7.000 delas foram encomendas do próprio Rodin. Por tudo isso, pode-se perceber como mesmo os

fotógrafos se interessavam em registrar as esculturas de Rodin, um objeto mais simples de trabalhar,

quando eram necessários alguns minutos para conseguir registrar uma imagem com foco.

Desde 1896, o artista exibia suas esculturas junto de fotografias, o que comprova a importância que

Rodin dava a estas últimas. No Masp, um dos exemplos mais significativos disso é o painel com 71

fotos de Eugène Druet expostas da mesma maneira como o artista e seu fotógrafo o fizeram em

1900, em sua exposição na place d'Alma. Composto por imagens ora repetidas, ora realizadas por

ângulos distintos, esse painel é um testemunho de que Rodin não via a fotografia somente como um

registro mas como algo mais complexo.

Nos tempos modernos, que se firmavam na virada do século 19 para o 20, quando Rodin

realizou tal exposição, a aceleração dos processos de reprodução e circulação era fundamental, e a

fotografia, um de seus meios mais eficazes.

Rodin era tão consciente do papel crescente desse processo e do eventual prejuízo que ele

poderia causar, que tinha contratos de exclusividade com os fotógrafos com quem trabalhava,

controlando seu modo de fazer. No contrato assinado com Ernest Bulloz, um dos presentes na

mostra, ele manteve para si "a direção artística da reprodução de suas obras no que tange à

iluminação e à forma de exposição".

O percurso da mostra, então, apresenta os vários fotógrafos de diversas nacionalidades que

trabalharam com Rodin num sistema de real parceria, como Eugène Druet, seu favorito, Bulloz, que o

sucedeu, e os experimentais ingleses Stephen Haweis e Henry Coles, que gostavam de registrar as

esculturas no momento do pôr do sol.

200

RODIN: DO ATELIÊ AO MUSEU

Quando: de terça a domingo, das 11h às 18h; quintas, das 11h às 20h; até o dia 13/ 12

Onde: Masp (av. Paulista, 1.578, tel. 0/xx/11/3251-5644)

Quanto: R$ 15

Avaliação: ótimo

FABIO CYPRIANO

Folha de São Paulo, 01/11/09

(72) Amos Gitai perde vigor do passado

Em duas novas produções, diretor retoma questões e história israelita com olhar conservador

Os "travellings" laterais continuam elegantes. Mas é possível perguntar se o cinema de Amos

Gitai não terá chegado a um ponto de saturação em que a precisão de alguns anos atrás dá lugar,

cada vez mais, à retórica?

Pois assim parecem as coisas em "A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas",

adaptação teatral do texto histórico de Flavius Josephus sobre a tomada da Galileia pelos romanos

no ano 70 a.C. Relato de enorme beleza sobre o momento crucial em que os judeus perdem sua

autonomia, que o próprio Gitai encenou no Festival de Avignon (França).

Transposta para o cinema, a mise-en-scène teatral parece um tanto grandiloquente e as grandes

estruturas de ferro montadas para a ocasião enfatizam o caráter épico do momento bem menos do

que o esforço da própria direção.

Em "A Guerra dos Filhos..." encontram-se os mesmos ecos do passado sobre o presente que

surgem em "Carmel": a trágica história israelita rebate sobre cada gesto, torna-o uma interrogação

angustiante. Aqui, Gitai procede a uma espécie de colagem em que se encontram desde a invasão

romana (representada de outra maneira que não a da peça) até os dias atuais.

Lá estão os pais de Amos (pioneiros do Estado de Israel), seu filho preparado para a guerra, o próprio

Amos orientando um ator que fará seu papel (de soldado, na guerra de 1973, quando estava num

helicóptero acidentado), fotos de família e de infância, a mãe em filmes familiares etc.

"Carmel" aproxima a história pessoal da coletiva e faz o retrato de um Amos Gitai mais sensibilizado

pela infausta história dos judeus desde a perda da autonomia, no século 1º a.C., do que

habitualmente. Mais angustiado, digamos logo (o que ocorre também na filmagem da peça teatral).

Existe lugar, claro, para os rumos de Israel. Seus pais mesmo vêm de uma experiência de esquerda,

laica, bem contraditória com opções políticas mais recentes.

No entanto, parece se notar menos espaço para diálogo com os árabes, ambição de várias

obras passadas do diretor israelense (mas não de "Um Dia Você Compreenderá", exibido na Mostra

de 2008). É uma conversa mais íntima desta vez: Amos, sua família, seu passado, seu país, seu

povo. A extensão pode ser grande, mas a natureza do diálogo é a mesma.

201

Voltando ao início: não é o assunto, nem a natureza do diálogo, nem mesmo as posições

políticas o que tende a indicar uma inflexão conservadora no trabalho do diretor: são os

procedimentos, os "travellings", em suma, o olhar que parece se tornar um pouco acostumado demais

ao problema que, com razão, escolheu como seu. Se olharmos para seus filmes de uma ou duas

décadas atrás, não encontramos nos de hoje o mesmo vigor. Às vezes, é preciso sair de si mesmo

com força.

A GUERRA DOS FILHOS DA LUZ CONTRA OS FILHOS DAS TREVAS

Quando: hoje, às 17h50, e dia 5, às 20h20, no Unibanco Arteplex

CARMEL

Quando: hoje, às 15h50, no Unibanco Arteplex

Classificação: 14 anos (ambos)

Avaliação: bom (ambos)

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 01/11/09

(73) Argentina narra fantasia de casal gay

"O Menino Peixe", de Lucía Puenzo ("XXY"), conta saga de garotas entre Buenos Aires e vila

do Paraguai

Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas jovens que

se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos que, no final das

contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes sociais distintas.

Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da diretora argentina Lucía Puenzo,

"XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano passado e premiado em festivais mundo afora

(como em Cannes), sobre os conflitos de jovem hermafrodita.

"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que isso não era

importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam viver o romance

de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz Puenzo, 32, à Folha, por telefone.

"Foi como em "XXY", quando a gente não mostra Alex [protagonista] sem roupa, que era o que todo

mundo queria ver. Não gosto de escandalizar."

Puenzo volta a trabalhar com Inés Efron, 25, atriz de "XXY" e estrela em ascensão na Argentina.

202

Após o filme de Puenzo, ela já rodou outros dez, incluindo longas com Lucrecia Martel ("La Mujer sin

Cabeza") e Daniel Burman ("Ninho Vazio").

Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da doméstica

paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm planos de morar juntas

perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e põe Lala numa viagem de

descoberta ao país vizinho.

É aqui que surge o momento fantástico, quando Lala encontra um dos segredos de sua

amada, numa cena subaquática realizada com efeitos especiais. A diretora admite que, na mistura de

gêneros, foi complicado deixar a sala de edição.

"O mais difícil [de fazer o filme] foi achar uma identidade, um ritmo para a história, nesse

encontro de gêneros. O filme navega por tons diferentes, mas acho que isso acabou virando parte de

sua identidade."

A fotografia intercala cores frias da casa sombria de Lala de Buenos Aires com cores quentes

da vila paraguaia de Ypoá, embora nubladas.

Literatura

"O Menino Peixe" é baseado em seu livro de estreia, lançado no Brasil neste ano pela Gryphus.

Puenzo tinha então 23 anos e, desde então, já publicou outros três livros. O quinto, "A Fúria da

Lagosta", sobre os filhos de um argentino que leva um banco à falência e foge de casa, sai no final do

ano. Em comum, todos falam de jovens.

"É uma idade muito poderosa, quando tomamos decisões que vão nos definir para sempre,

não somos mais crianças, nem adultos", diz Puenzo.

Enquanto escreve roteiros para outros diretores e finaliza seu novo livro, Puenzo se prepara

para rodar seu terceiro longa em 2010. Ainda sem título, a obra se passará numa cidade deserta na

Patagônia.

FERNANDA EZABELLA

Folha de São Paulo, 01/11/09

(74) Bellocchio faz um estudo sobre o poder

O sexo e a política sempre foram os vetores do cinema de Marco Bellocchio. "Vencer" é uma

nova e complexa conjugação desse binômio. Em resumo, trata-se da história de Ida Dalser (Giovanna

Mezzogiorno), a primeira mulher de Benito Mussolini (Filippo Timi). Esteio afetivo e material do jovem

militante socialista, ela lhe dá dinheiro para criar um jornal, lhe dá um filho, lhe dá autoconfiança.

203

Mas, ao romper com o socialismo para fundar o fascismo e arrebatar o poder, Mussolini renega Ida,

casa-se com outra e institui uma família "oficial". Proscrita, tratada como louca, a antiga amante

enfrenta os mil braços do regime para ser reconhecida como mãe do filho do Duce.

Bellocchio se serve dessa história real para fazer um estudo do poder em seu duplo aspecto, de

potência criadora e de força de castração.

Essa duplicidade aflora na forma narrativa: na primeira parte do filme, política e erotismo se

fundem em pura energia transformadora. A montagem é vibrante, há uma apologia da máquina e da

velocidade, a linguagem visual é gráfica, sinóptica, recorrendo a letreiros e efeitos visuais que

remetem ao nascente futurismo.

À medida que o fascismo se institucionaliza e Mussolini canaliza seu impulso erótico para a

guerra, no âmbito interno (do país, da família, do indivíduo) passa a imperar a repressão. O filme vira

um melodrama. O Duce deixa de ser um homem de carne e osso e se torna uma imagem nas telas

de cinema, nas fotos de jornal, nos bustos.

VENCER

Quando: hoje, às 22h, no Unibanco Arteplex 2 e quarta-feira (4/11), às 19h10, no HSBC Belas Artes

2

Classificação: 14 anos Avaliação: ótimo

JOSÉ GERALDO COUTO

Folha de São Paulo, 01/11/09

(75) Filme sobre preconceito no Brasil continua atual

Rodado no final dos anos 70 por João Batista de Andrade, longa-metragem traz a melhor

atuação de José Dumont

Uma sessão dupla provocadora juntaria "O Homem que Virou Suco", filmado há quase 30

anos por João Batista de Andrade, ao recente "Estômago" (2006), dirigido por Marcos Jorge.

Os dois têm material rico para uma questão essencial para o cinema, a representação. Unidos pelo

elemento "personagem nordestino", ambos os filmes oferecem leituras distintas sobre as relações de

classe e de cultura no Brasil. Não é difícil sentir algo de retrocesso no jeito de olhar.

Ambos lidam com "paraíbas" num ambiente de Sudeste hostil. No filme de Andrade, há uma

energia política que fortalece o personagem, Heraldo (José Dumont, no seu melhor momento).

Esse poeta popular paraibano é dotado de um afiado senso crítico que testa São Paulo tanto quanto

São Paulo o testa.

204

Sua dignidade vem com uma raiva espontânea que manda às favas hierarquias estabelecidas

de classe e de poder. Em "Estômago", suspeita-se de que o ponto de vista é o de um patrão pouco

razoável para com o seu personagem serviçal.

Obviamente, são filmes de eras distintas. Filmado na São Paulo do final dos anos 70, "O

Homem que Virou Suco" talvez passaria melhor com "São Paulo S/A" (1965), de Luiz Sergio Person,

outro registro da cidade como estado de espírito.

As imagens cruas são cheias de uma revolta peculiar à esquerda da época. Detratores

poderão acusar um envelhecimento do material, mas o valor histórico contextualizado talvez caia

melhor.

Floreios dogmáticos como a representação raivosa de um personagem americano, chefe de

multinacional, podem ser facilmente associados à premiação de "O Homem..." no Festival de Moscou,

em 1980, um dos inúmeros reconhecimentos que o filme teve.

De qualquer forma, hoje, as linhas gerais do choque entre mundo pobre e mundo rico dentro

do Brasil continuam atuais.

João Batista de Andrade prova o quanto estava afiado numa sequência essencial em que o

poeta trabalhador assiste a um "audiovisual" de tom empresarial-fascista, parte dos esforços de

contratação para a construção do metrô de São Paulo.

É um filme dentro do filme que discute não só o preconceito, mas a tentativa de o ambiente

dobrar o indivíduo, além da força mítica de São Paulo em relação ao brasileiro.

O HOMEM QUE VIROU SUCO

Distribuidora: Original

Quanto: R$ 31,90 (16 anos)

Avaliação: ótimo

KLEBER MENDONÇA FILHO

Folha de São Paulo, 08/11/09

(76) Filme-mosaico com dramas cotidianos é ponto alto na obra de Robert Altman

"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com outro garoto.

Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o aniversariante tentava descobrir o que

seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde. Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-

fio, num cruzamento, e foi imediatamente atropelado por um carro."

Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", o trecho acima ilustra o estilo seco de observação do

cotidiano que caracterizava o norte-americano Raymond Carver (1939-1988).

Literatura sobre o fio perigoso das coisas, sempre à espreita dos protagonistas, ela forneceu valiosa

matéria-prima para outro notável cronista dos EUA em "Short Cuts - Cenas da Vida" (1993).

205

"Vejo toda a obra de Carver como se fosse apenas uma história, pois seus contos são todos

ocorrências, todos apenas sobre coisas que acontecem ao personagens e fazem com que sua vida

mude de rumo", explica Robert Altman (1925-2006) na introdução à coletânea, publicada no Brasil

com o mesmo título (mas que, em tradução literal, significa "atalhos").

Cruzamentos

Altman e o roteirista Frank Barhydt trabalharam sobre nove contos e um poema de Carver,

em exemplar trabalho de garimpagem que cruza personagens e situações, faz mudanças importantes

e cria ao menos duas figuras cruciais.

Por meio delas -uma cantora (Annie Ross) e sua filha, uma violoncelista (Lori Singer)-, o filme

ganha música, usada não apenas para pontuar dramaticamente as cenas.

Como em "Magnólia" (1999, de Paul Thomas Anderson), cuja estrutura foi inspirada em "Short Cuts",

as canções funcionam como comentários aos dramas vividos pelos personagens e se integram à

ação de tal forma que o mosaico respeita o andamento da música.

Duas dezenas de trajetórias são costuradas nos subúrbios de Los Angeles, como se o filme

"erguesse os telhados" de casas, na imagem do próprio Altman, para bisbilhotar o que ocorre.

Não era um procedimento original, nem mesmo na filmografia do próprio cineasta, mas acabou

fazendo escola e deu origem a diversas "homenagens" e imitações.

Inserido na obra de Altman em momento de alta no seu prestígio internacional, entre uma

fábula ácida sobre Hollywood ("O Jogador", 1992) e um comentário irônico sobre o mundo da moda

("Prêt-à-Porter", 1994), "Short Cuts" dividiu o Leão de Ouro em Veneza com "A Liberdade É Azul", do

polonês Krzysztof Kieslowski.

Que belo festival.

SHORT CUTS - CENAS DA VIDA Distribuidora: Lume

Quanto: R$ 39,90 (16 anos)

Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO

Folha de São Paulo, 15/11/09

(77) Assassino de série vira pai e encontra mentor

206

Na 4ª temporada de "Dexter", protagonista enfrenta vilão que mata há 30 anos

Agora um homem de família, Dexter precisa de tempo. Tempo para si mesmo, o que significa

tempo para matar. O assassino de serial killers da série "Dexter" enfrenta a complexa agenda da vida

de casado e pai.

Enquanto conversa com sua nova vítima, é interrompido por um telefonema da mulher, pedindo para

que compre remédio para seu bebê.

O sono interrompido todas as noites pelo choro, aliado ao cotidiano do trabalho e às horas

extras de seu segredo criminoso, faz com que ele capote o carro no caminho para casa logo no

episódio de estreia da movimentada quarta temporada, atualmente em exibição nos EUA e que entra

no ar no canal pago FX no ano que vem.

Sangue é o que move Dexter. Ele é um analista de provas para a polícia de Miami, onde sua

irmã é detetive, durante o dia. À noite, vira um justiceiro e esconde seus rastros para que nem ela

descubra quem ele é. Vivido pelo ator Michael C.

Hall, Dexter oficializou o casamento com Rita (Julie Benz) no final do terceiro ano do seriado,

não antes de matar um oponente que arrancava pedaços de pele das vítimas. Nessa nova fase, o

cerco parece se fechar em torno dele, que vai ter de abrir mão de algumas coisas para assumir as

responsabilidades de ser um chefe de família. Só que matar não parece ser uma delas.

"Quem assistiu desde a primeira temporada nunca imaginaria Dexter casado e com filhos",

afirma Hall, em entrevista por telefone de Los Angeles.

"Esse conflito de interesses vai determinar quanto mais ele consegue segurar seu segredo",

diz. "É questão de tempo até que algo balance as coisas." A nova temporada tem Dexter quebrando,

aos poucos, os pontos de seu código de conduta e uma violência mais explícita, com a chegada de

John Lithgow (da comédia "Third Rock from the Sun"). É ele que inaugura as matanças ao incorporar

um assassino que refaz crimes de 30 anos atrás.

Dexter, a princípio, entra na missão de pegar o Assassino da Trindade como seu novo troféu,

mas as coisas se complicam. "Ele vai ter uma conexão com o matador. Vai ser delicioso esse

embate, porque ele nunca se sentiu tão fascinado com alguém. De alguma forma, ele reverencia esse

cara, que conseguiu escapar com um histórico de mortes tão grande."

Além disso, Dexter se conecta com o filho. É para ele que revela o grande segredo: "Papai é

um serial killer". Como a criança não chora, ele tem certeza de que vai ficar bem.

"É desafiador interpretá-lo com emoções. No começo, ele falsificava tudo. Agora, sente algo

realmente. Ainda assim, há um tipo de desconexão que permite que ele continue matando. Tenta ser

mais humano, mas não se desvencilha da herança sociopata", define o ator.

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES

Folha de São Paulo, 22/11/09

207

(78) Protagonistas tentaram evitar relação para não confundir público de série

A vida imita a arte. Ou não.

Michael C. Hall e Jennifer Carpenter são irmãos na série. Na trama, ele foi adotado pelo pai

dela, que criou o código para aplacar a sede de matar de Dexter "com quem merece".

Na vida real, eles se casaram numa cerimônia particular durante o intervalo para começar as

gravações desta temporada.

"A gente tentou não se envolver, até para não confundir o público. E também qual era a

chance de a gente se casar, né? Mas, no final das contas, você acaba escolhendo viver sua vida.

Agora, me sinto mais completa e mais responsável", diz Jennifer Carpenter.

Já para ele, "a confiança é muito importante no set". "Nisso nossa relação ajudou. Não é sempre que

temos cenas juntos, então não é como se estivéssemos lado a lado num cubículo. Trabalhamos

juntos, mas não estamos grudados."

Segundo a atriz, eles também tentam não falar de trabalho em casa. "Só eu posso defender

minha personagem. Após tudo o que ela já passou, como ter um namorado que queria matá-la, ou

outro que foi assassinado a tiros e mais um torturado... Ninguém sabe mais do que eu por que Debra

não vive numa camisa de força. Não ligo para a opinião dos outros."

É ela que dá a definição mais interessante para Dexter. "Ele tem um quê de um herói dos

quadrinhos. Mas, por outro lado, é como uma bebida forte. Você sabe que tem um gosto amargo.

Mas tem dias que você quer algo que morda sua boca."

Lado feminino da vida de casal diante das telas, Julie Benz, que interpreta Rita, defende a

ingenuidade de sua personagem, que, mesmo dividindo a mesma cama, continua sem desconfiar do

"hobby" dele. "Ela está num sonho. Tem um marido, uma linda casa, um bebê. Vai perceber

pequenas mentiras, mas nunca imagina que ele possa ser um serial killer. Não dá para viver com

alguém se você identificar essa escuridão nela", explica.

Gostar de Dexter faz o telespectador entrar num dilema. Você torce para que ele se safe, mas

o que ele faz no tempo livre é assassinar pessoas.

"A chave é que ele só pega pessoas terríveis. Se ele matasse inocentes, não iam gostar dele.

E ele age como uma criança. O jeito que percebe o mundo e como interage com outros não é

calculista. Ele tenta realmente ser normal", diz Hall.

Folha de São Paulo, 22/11/09

(79) Drama de Sidney Lumet questiona TV

"Eu estava na CBS com Ed Murrow em 1951", diz o veterano jornalista Howard Beale a seu

chefe, em referência a um personagem célebre na imprensa dos EUA por enfrentar na TV o então

208

senador Joseph McCarthy -episódio recriado por "Boa Noite e Boa Sorte" (2005), de George Clooney.

Beale quer dizer, com a lembrança, que participou da adolescência do telejornalismo americano e

também de sua entrada na vida adulta. Mas, nos anos 70, isso representava, para muita gente, que

ele era um dinossauro incapaz de se adaptar aos novos tempos em que jornalismo e entretenimento

começavam a se confundir.

Com a progressiva perda de audiência do telejornal que apresenta, Beale é demitido.

No primeiro dia de aviso prévio, abre o programa anunciando, ao vivo para todo o país, que vai

estourar os miolos na frente das câmeras dali a uma semana.

"Rede de Intrigas" (1976) acompanha a tormenta que move sua emissora a partir desse aviso

tresloucado.

Interpretado com exuberância por Peter Finch (1912-1977), que ganhou um Oscar póstumo

pelo papel, Beale é um personagem fictício que trabalha em uma também fictícia rede de TV dos

EUA, mas o drama insólito protagonizado por ele aponta para um jogo de forças muito concreto que

apenas se esboçava nos anos 70 e que, desde então, só vem se aprofundando.

A contundência e o caráter premonitório do filme se devem sobretudo àquele que os créditos

apresentam como seu autor, o lendário roteirista Paddy Chayefsky (1923-1981), que recebeu pelo

trabalho seu terceiro Oscar -os anteriores foram por "Marty" (1955) e "Hospital" (1971).

Veterano profissional de televisão, Chayefsky ambienta nos corredores da UBS -calcada nas "co-

irmãs" CBS, NBC e ABC- uma demolidora peça de acusação da transformação da vida

contemporânea em espetáculo, da banalização do jornalismo e do triunfo do cinismo sobre a

integridade moral, na TV e em outros quadrantes.

Além do pobre Beale, a trama -dirigida por Sidney Lumet ("Um Dia de Cão"), outro veterano

da TV tem como protagonistas o diretor de jornalismo da rede (William Holden) e uma inescrupulosa

executiva em ascensão (Faye Dunaway).

No vigoroso panorama do cinema americano dos anos 70, "Rede..." era apenas mais um

exemplo de como fazer filmes adultos a partir de temas sociais agudos. Em seu diagnóstico da TV,

talvez ainda não tenha sido superado.

REDE DE INTRIGAS

Distribuidora: Fox

Quanto: R$ 29,90 (14 anos)

Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO

Folha de São Paulo, 22/11/09

209

(80) Sofrimento de jovem modelo turbina trama

Personagem bela e má que sofre acidente e fica tetraplégica remete a moralismos

"Eu não aguento mais, preciso sair daqui!" No leito da UTI, uma menina estonteantemente

linda grita por socorro. Ela não consegue se mexer do pescoço para baixo. Depois de um acidente,

ficou tetraplégica. E, no meio da noite, acorda desesperada, clamando por um amigo. Enquanto isso,

em nossas casas, em geral em boas condições de saúde, não conseguimos desgrudar os olhos da

TV.

A cena é tensa, e a atriz Alinne Moraes, que interpreta a modelo Luciana em "Viver a Vida",

de Manoel Carlos, comove. O acidente de Luciana foi, até agora, um dos pontos altos da novela, e

sua internação, idem. Mas por que assistimos fascinados à cena da garota jovem e bonita paralisada

e sofrendo?

Também vimos, com os olhos vidrados, a cena da família da jovem recebendo a notícia

desesperadora de que a menina "com a vida pela frente" havia ficado tetraplégica.

Tudo parece ficar mais pesado em "Viver a Vida" porque a personagem em questão é uma menina de

20 e poucos anos. Linda. Mimada. Será que o espectador se sente vingado porque a riquinha

supermal acostumada teve o que mereceu? Será que o que uma garota bonita e rica merece é sofrer

um acidente de carro? Será que é por isso que ouvimos (e temos algum prazer) hipnotizados a

menina gritando de desespero?

Na internet, já existe até enquete: "Você acha que Luciana mereceu ficar tetraplégica?".

Como se alguém merecesse tragédia desse tipo.

Claro. Espera-se que Luciana se recupere. E também que ela mude, vire uma pessoa melhor,

de bom coração. Só a dor salva? É preciso literalmente quase morrer para mudar? A modelo Luciana

faz pensar em muitos moralismos. A má sofre. Ser bonita e mimada mata.

O acidente da modelo (a profissão do momento, com que toda jovem telespectadora sonha) é o

assunto central da trama por enquanto, espécie de ápice. Antes de a novela estrear, já se comentava

que "uma menina ia ficar tetraplégica". Veríamos com fascinação o sofrimento, a recuperação lenta e

uma família desesperada.

Mas devemos gostar mesmo de ver moças (por que será que em geral são as mulheres

bonitas que agonizam em novelas?) no hospital. Afinal, já acompanhamos uma menina grávida

morrer após ser atropelada, em "Páginas da Vida". E todos os detalhes de outra jovem bonita com

leucemia (quem se esquece da cena em que Carolina Dieckmann raspou a cabeça?) em "Laços de

Família", ambas de Manoel Carlos.

Moça bonita em hospital dá ibope. E, ao desligar a TV, talvez a gente pense: "Não sou tão

bonita nem tão rica. Mas pelo menos não estou morrendo no hospital". Ou, se não sou bonita,

ninguém também pode ser.

NINA LEMOS

Folha de São Paulo, 29/11/09

210

(81) Em edições oficiais, filmes de Truffaut evidenciam pulsação dos sentimentos

"Todo mundo quer amor, seja o físico, seja o sentimental." A fórmula, dita a certa altura pelo

protagonista de "O Homem que Amava as Mulheres", ilustra cada um dos títulos da filmografia de

François Truffaut (1932-1984). Representar sob múltiplos ângulos a validade universal dessa máxima

garantiu a seus filmes manterem intactos a beleza e o frescor.

Três deles, que tiveram recepção pouco acalorada em seus lançamentos, retornam ao

mercado em edições oficiais, ou seja, com o selo da qualidade da Versátil, e não nas versões

mambembes que a Silver Screen comercializa. "A Noiva Estava de Preto" (1968), "A Sereia do

Mississipi" (1969) e "O Homem que Amava as Mulheres" (1977) refletem, a seu modo, temas morais

e preocupações estéticas distintos. Vistos juntos, eles projetam a interpretação sempre irônica, mas

nunca cínica ou desencantada, de Truffaut sobre a pulsação vital dos sentimentos.

O primeiro do lote traz Jeanne Moreau, em seu único reencontro com o diretor após o mítico "Jules e

Jim - Uma Mulher para Dois" (1962). Em "A Noiva Estava de Preto", a atriz encarna Julie, uma viúva

cujo casamento terminou ainda nos degraus da igreja e que, por isso, toma por missão vingar-se dos

responsáveis pelo fim abrupto de sua promessa de felicidade.

"Noir" desde o título, essa farsa reaproxima o diretor do universo criminal que ele já

frequentara no magnífico "Atirem no Pianista" (1960). Mais que exercício de gênero, contudo, trata-

se, como define o próprio Truffaut, "de um filme de amor sem nenhuma cena de amor" e no qual cada

assassinato é encenado como obra de arte, num exercício de admiração ao gênio de Hitchcock.

Amor e morte(s) também servem de motor para "A Sereia do Mississipi", outra deliciosa farsa em que

Truffaut nos diverte invertendo as imagens àquela altura consolidadas de Jean-Paul Belmondo e

Catherine Deneuve, ele num registro antiviril e refém do romantismo, ela, avessa à doçura

sentimental, como predadora.

Do lado de lá da morte, Bertrand, o incansável sedutor de "O Homem que Amava as

Mulheres", entrega suas memórias como uma sucessão de conquistas. Por meio da dedicação de

seu personagem a todas as mulheres do mundo, alguém capaz de morrer de tanto amar, Truffaut

eleva sua crença romântica a uma altura que ele só ultrapassaria adiante no majestoso "A Mulher do

Lado".

A NOIVA ESTAVA DE PRETO, A SEREIA DO MISSISSIPI, O HOMEM QUE AMAVA AS

MULHERES

Distribuidora: Versátil

Quanto: cerca de R$ 100 (caixa) ou R$ 45 (cada um)

Classificação: livre

Avaliação: ótimo

CÁSSIO STARLING CARLOS

Folha de São Paulo, 29/11/09

211

(82) Série sobre os 10 mandamentos é a obra-prima de Kieslowski

Caixa reúne produção que diretor fez para TV polonesa no final dos anos 80

"A inda Vivo", filme biográfico sobre Krzysztof Kieslowski que vem como um dos extras de

"Decálogo", lembra que a série foi concebida num momento particular, em que o comunismo

agonizava, e os colegas do cineasta achavam necessário tocar em questões urgentes, como os

sindicatos, as insatisfações etc.

Foi uma estranha e fértil intuição que, aparentemente, levou Kieslowski a refugiar-se "no

básico": os dez mandamentos. Era um momento de desespero, também, e é um outro cineasta,

Zanussi salvo engano, que lembra o ritmo febril em que Kieslowski trabalhava. Poderia levar anos o

projeto de dez filmes, cada um dedicado a um mandamento. Mas tinha necessidade de fazer tudo

rápido, como se quisesse não ver o mundo exterior à sua volta.

Ora, hoje, os filmes de "Decálogo" soam como um amplo documento da queda do comunismo

na Polônia e em toda a Europa oriental. Foi justamente ao abstrair as lutas políticas que Kieslowski

conseguiu resumir sua trajetória, dos anos de estudante de cinema ao trabalho como documentarista.

Passemos pela avaliação, apressada, dos dez filmes. Como no passado, destacam-se claramente os

que se transformaram em longas e acabaram por consagrar o cineasta internacionalmente, como

"Não Matarás" e "Não Amarás" -no filme, "Não Cometerás Adultério" (a versão desta caixa é a dos

filmes para a TV, com pouco menos de uma hora cada um).

O primeiro, "Amarás a Deus sobre Todas as Coisas", em que a tensão entre acreditar em

Deus ou na ciência se apresenta com vigor, também é muito forte. Em alguns momentos, faz pensar

que, de fato, se tivesse mais tempo de filmagem, alguns episódios poderiam ter rendido mais. A

contrapartida é: teria perdido o momento -e isso seria irreparável.

Os episódios têm um cenário quase fixo: um conjunto habitacional que, na monotonia,

representa o limite do sonho comunista. Da igualdade como ideal, chega-se facilmente ao

igualitarismo como ideologia: os conjuntos habitacionais, em sua repetição insistente, traçam o limite

da vida. Ali há calma, padronização, contenção. Uma espécie de "desenergia" em que as diferenças

são anuladas. Ou não. Porque os filmes vão justamente ao particular.

Sem símbolos, são inspirados pelo espírito documental de Kieslowski, que chega aqui, nessa

Polônia insatisfeita -que não parece fazer parte nem da Europa ocidental nem do bloco comunista-,

aos títulos mais decisivos da carreira como ficcionista (numa série de filmes em que pouca gente

levava fé).

É aqui que se manifesta um encontro quase perfeito entre uma circunstância (a agonia do

comunismo), uma convicção (a crença no cinema como registro capaz de captar uma realidade

fugaz, que vem dos primeiros trabalhos) e a fé cristã. Esta, oculta por circunstâncias políticas várias

(do nazismo ao comunismo), está longe de ser suficientemente explorada. Em dado momento,

quando "Ainda Vivo" trata da passagem de Kieslowski pela escola de cinema de Lodz, refere-se ao

212

ano de 1968, em que, diz ele, a escola acaba porque os professores judeus são expulsos. Eis uma

coisa sobre o que a Polônia ainda deve explicações: o arraigado, triste, indecoroso antissemitismo,

que atravessa séculos e regimes políticos.

A edição de "Decálogo", à parte provar ser a obra-prima de Kieslowski, traz extratos de uma

entrevista coletiva do autor e o curta " O Escritório" (1966): é um começo, mas uma amostra ainda

insuficiente da produção do "jovem Kieslowski", de que se encontram bons fragmentos em "Ainda

Vivo".

DECÁLOGO Distribuidora: Versátil

Quanto: de R$ 44,90 (cada disco) a 149,90 (caixa com quatro discos)

Classificação: 16 anos

Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 06/12/09

(83) "Quinteto da Morte" faz rir com costumes ingleses do pós-guerra

Comédia de 1955, sobre amigos que planejam assalto perfeito, foi refilmada pelos irmãos Coen

em 2004

Criminosos não devem ter compaixão por ninguém, muito menos por velhinhas de aspecto

frágil e ingênuo. A tese é demonstrada, na melhor tradição do humor negro britânico, por "Quinteto da

Morte" (55), cuja trama foi transportada para os EUA pelos irmãos Coen em "Matadores de Velhinha"

(04).

Não se deixe impressionar pela fragilidade da refilmagem -que, para piorar, também é mais

longa. A trama funciona melhor em compactos 87 minutos e em sua paisagem original, combinando

ingredientes do policial -especialmente do "filme de assalto"- com crônica social sobre usos e

costumes ingleses do pós-guerra.

Viúva solitária que cuida dos papagaios deixados pelo marido como se fossem seus filhos, a

sra. Wilberforce (Katie Johnson) mora em um sobrado antigo, em Londres. Todos na região a

conhecem, inclusive os policiais do distrito mais próximo, habituados a suas visitas.

Para complementar a pensão, ela resolve alugar os cômodos superiores. O primeiro

interessado a encanta: um sujeito respeitável que se apresenta como professor (Alec Guinness) e

que diz receber regularmente quatro amigos com os quais forma um quinteto amador de música

erudita. Não parece haver inquilino melhor, com amigos também distintos, ao menos na visão de uma

213

doce senhora inglesa. O negócio do tal quinteto, no entanto, é um plano perfeito de assalto que

envolve a participação da velhinha como cúmplice.

Claro que as coisas não saem conforme o planejamento, gerando situações insólitas e

diálogos mordazes, muito bem costurados pelo roteiro de William Rose ("Deu a Louca no Mundo",

"Adivinhe Quem Vem para Jantar"), que recebeu indicação ao Oscar pelo trabalho.

Dirigido de maneira discreta e eficiente por Alexander Mackendrick, que fez em seguida devastadora

representação da imprensa em "A Embriaguez do Sucesso" (57), "Quinteto da Morte" traz um show

de atores, embora inicialmente pareça um solo de Guinness (o Obi-Wan Kenobi de "Star Wars").

Com o tempo, os demais intérpretes da quadrilha (entre eles, Peter Sellers em início de carreira)

ganham sua oportunidade de se destacar. Mas, no fim, o filme é mesmo da velhinha impagável feita

por Johnson, e não de seus matadores.

QUINTETO DA MORTE

Distribuidora: Universal

Quanto: R$ 30 (classificação: 12 anos)

Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO

Folha de São Paulo, 13/12/09

(84) Vampiro de "Crepúsculo" protagoniza filme inexpressivo

Ator Robert Pattinson vive músico rejeitado pela namorada em comédia dramática

Existe uma, e apenas uma, razão para o lançamento de "Uma Vida sem Regras" no Brasil: a

presença de Robert Pattinson no papel principal. Pouco antes de estrelar o primeiro filme da série

"Crepúsculo" (2008), o ator participou dessa produção inglesa quase amadora -retirada agora do

escaninho do esquecimento para aproveitar o novo fenômeno de popularidade.

As jovens admiradoras de Pattinson terão seu deslumbramento colocado à prova por "Uma

Vida sem Regras". O ator interpreta um sujeito não apenas sem qualquer glamour, como também

sem a mínima graça -que não lembra em nada o vampiro romântico de "Crepúsculo", ou talvez

apenas na palidez.

Art, o personagem de Pattinson, é um "loser", um perdedor clássico. Músico frustrado, ele é

abandonado pela namorada e precisa voltar para a casa dos pais, que o tratam como um estorvo em

suas vidas. As únicas pessoas que o suportam são dois amigos, um que tem medo de lugares

abertos, outro que só pensa em se dar bem com as mulheres.

214

Para dar uma guinada em sua vida, ele gasta suas últimas economias contratando os

serviços do dr. Levi Ellington, autor do livro de autoajuda "Não É Sua Culpa". O psicólogo passa a

acompanhá-lo dia e noite, mas a situação de Art só piora.

"Uma Vida sem Regras" emula as comédias dramáticas do cinema independente americano,

como "Retratos de Família" (2005) e "A Lula e a Baleia" (2005), na esperteza rápida e fácil de sua

trama sobre personagens alienados e famílias disfuncionais. Ao mesmo tempo, o filme tem o humor

duro, árido dos britânicos.

O resultado, cena após cena, é um desencontro -que a direção burocrática de Oliver Irving,

em seu primeiro longa, nunca consegue evitar. Sobre a atuação de Pattinson, não há nada no filme

que sugira que ele iria se tornar um fenômeno pouquíssimo tempo depois, embora ele se saia

razoavelmente cantando. De qualquer forma, seria injusto exigir que ele salvasse um filme tão

inexpressivo, que emprestasse algum charme a um personagem quase catatônico, com apatia que

beira o insuportável. O título "Uma Vida sem Interesse" talvez fosse mais apropriado para o filme -

assim como um lançamento direto para o DVD.

UMA VIDA SEM REGRAS

Direção: Oliver Irving

Produção: Reino Unido, 2008

Com: Robert Pattinson, Rebecca Pidgeon e Jeremy Hardy

Onde: Espaço Unibanco Pompeia 8, Frei Caneca Unibanco Arteplex 8 e circuito

Classificação: livre

Avaliação: ruim

RICARDO CALIL

Folha de São Paulo, 20/12/09

(85) Filme de Manoel de Oliveira sobre padre Antônio Vieira segue tom político

O padre Antônio Vieira foi um grande pensador da língua portuguesa, sabe-se. E um grande

pensador político, poderia acrescentar Manoel de Oliveira ao projetar seu "Palavra e Utopia". É um

filme sobre a palavra, sem dúvida, sobre as línguas, que circulam diversas ao longo do filme, e sobre

Portugal e sua pequenez em face da grandeza que projetava Vieira.

Um filme sobre a justiça, já que Vieira não apenas sabe se manifestar sobre a necessidade

de servir à pátria e aturar suas ingratidões, como, sobretudo, é contra a escravidão dos negros, os

atentados aos índios, as perseguições aos judeus. Por essas e outras, será alvo da Inquisição, de

que o salvam a sabedoria, o charme e Roma.

215

De que Vieira fala Oliveira, em qual Vieira pensa? É menos o homem de talento incomum, de

palavra inspirada, que visa o filme, do que o homem cuja palavra usa para o combate. Estamos,

portanto, diante de Oliveira, cineasta político.

Não será absurdo pensar em um Oliveira/Vieira (um Olivieira?). Assim como o padre orador

do século 17, Oliveira até hoje é mais reconhecido fora de Portugal do que dentro.

Vieira foi um homem de duas terras, Brasil e Portugal. Que eram uma, pois o Brasil pertencia ao

reino. Oliveira de certa forma faz aqui um filme de homenagem ao Brasil, onde havia os índios e os

negros. Onde havia, já, os oligarcas que tinham de ouvir seus sermões de cara amarrada, quando

condenava a prática da escravatura, o hábito de viver sem trabalhar etc.

Tinha um pé em cada borda do mundo: Portugal e Brasil. O oceano era seu domínio. E várias

vezes Oliveira nos mostra esse movimento das águas, de um lado para outro do Atlântico, como se

fosse preciso sair de Portugal para apreender o mundo.

"Palavra e Utopia" é um filme da palavra. Desde o título. Pois é com palavras que se faz

política. Mas assim como existe aqui uma política dos sotaques (um falar português menos

acentuado em Luís Miguel Cintra, um falar brasileiro com certa distância em Lima Duarte -o primeiro,

o Vieira da idade madura, o segundo, o da velhice), existe também uma das imagens. Pois, ninguém

esqueça, Oliveira é um cineasta, e não só isso: é um dos grandes.

A imagem espreita a palavra todo o tempo. Confronta-a a si mesma. A sacraliza. Como a

música de que fala Vieira, purifica. Mas também pode servir de moldura para que melhor se escute a

palavra. E a de Vieira dói. Ela opõe à palavra do poder o poder da palavra em liberdade. À Inquisição,

a independência. Esse é o Vieira que apaixona e inspira Oliveira. Ao qual este grande cineasta

político não homenageia: o que faz é sugerir Vieira como intelectual, homem e caráter exemplar.

PALAVRA E UTOPIA Distribuidora: Versátil

Quanto: R$ 40 (em média)

Classificação: livre

Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 20/12/09

(86) Jack Black e Seth Rogen atuam em comédias opostas

Atores protagonizam filmes de resultados distintos, que chegam ao país no formato DVD, sem

passar por cinema

Com a maioria das salas de cinema do Brasil reservada a blockbusters e produções

nacionais, resta a várias comédias indies pular uma etapa e cair direto no formato DVD. É o que

acontece com "Ano Um" e "O Segurança Fora de Controle".

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São duas fitas de humor escrachado, mas com estética -e resultados- bem diferentes.

Dirigida por Harold Ramis (do inigualável "Feitiço do Tempo"), "Ano Um" é ambientada na pré-história

e traz o espalhafatoso Jack Black ("Escola de Rock", "Nacho Libre") e o indie tímido Michael Cera

("Juno", "Superbad") como dois caçadores mais preocupados em perseguir mulheres e o sono do que

animais.

Desastrados, eles são expulsos da aldeia e partem em viagem pelo mundo. Na jornada,

conhecem Caim e Abel. Caim, é claro, mata Abel e leva a dupla a mais percalços.

"Ano Um" tem um pequeno problema, que costuma ser fatal às comédias: não tem graça. Suas

piadas são insípidas, bobas, e se apoiam quase exclusivamente nas caretas e trejeitos de Jack Black.

E Michael Cera, que ganhou fama com o humor indie de Judd Appatow, aqui se mostra perdido.

No shopping

Outra estrela do diretor Appatow, Seth Rogen está mais do que confortável no papel de um

segurança de shopping em "O Segurança Fora de Controle".

Se Rogen acostumou-se a dar vida a personagens meio estúpidos que adoram maconha,

aqui ele interpreta o histriônico e paranoico Ronnie Barnhard, que faz a ronda em um shopping do

meio-oeste norte-americano.

Ele tenta capturar um maluco que invade o estacionamento do local pelado para se exibir

para as mulheres. Barnhard é, ainda, apaixonado pela loiríssima Brandi (Anna Faris), uma vendedora

de loja que não está nem aí para ele.

Barnhard pretende capturar o maluco para, entre outros objetivos, impor autoridade e ganhar

permissão para andar armado. Mas a polícia local tem outros planos.

A investigação é passada para o detetive Harrison (Ray Liotta), que, além de chefiar o caso,

conquista a loira Brandi.

Seth Rogen consegue equilibrar com competência os lados autoritário e ingênuo de seu

personagem. O diretor Jody Hill, também roteirista do filme, cria situações espetaculares, como a

cena em que uma repórter de TV entrevista o personagem de Rogen e deixa de mencionar que ele é

chefe de segurança do shopping.

"O Segurança Fora de Controle" não está entre as melhores comédias do ano -não está nem

entre as melhores comédias de Seth Rogen-, mas arranca boas risadas graças a um roteiro certinho,

a atuações convincentes e às boas piadas que aparecem aqui e ali.

ANO UM

Direção: Harold Ramis

Com: Jack Black, Michael Cera

Lançamento: Sony

Quanto: R$ 40, em média

Avaliação: ruim

Classificação: 10 anos

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O SEGURANÇA FORA DE CONTROLE

Direção: Jody Hill

Com: Seth Rogen, Ray Liotta

Lançamento: Warner

Quanto: R$ 40, em média

Avaliação: bom

Classificação: não informada

THIAGO NEY

Folha de São Paulo, 27/12/09

(87) "A Falecida" destaca vida do subúrbio carioca

Seria um pouco covarde comparar este "A Falecida" com a média dos DVDs editados no

Brasil. Aliás, com o auxílio da Petrobrás, não faria vergonha frente aos melhores.

Existe, para começar, o filme, devidamente restaurado. E mais dois curtas de Leon Hirszman:

"Partido Alto" e "Nelson Cavaquinho". O primeiro é praticamente um trabalho didático sobre esse tipo

de samba.

Um pouco chato, mas existe a mística da arte popular que essa geração cultivou. Já "Nelson

Cavaquinho" parece carregar toda a paixão do realizador. O grande compositor ganha um retrato em

que o íntimo e o musical se encontram de maneira harmoniosa. O que é biográfico remete à vida das

populações pobres do Rio de Janeiro, às quais devemos alguns dos melhores momentos de nossa

cultura. O restauro restitui a força colossal da fotografia de Mário Carneiro.

A parte de extras compõe-se, no essencial, de depoimentos. A soma deles é exaustiva. Em

grande parte, o objetivo é que Fernanda Montenegro, Paulinho da Viola e Eduardo Coutinho nos

digam quem era Hirszman -mas seus filmes falam muito bem por ele. Existe, por fim, "A Falecida".

A interpretação do cineasta se antepõe à obra do dramaturgo. Não é mau, mas tenho a

impressão de que algumas características interessam muito mais ao cinema novo do que a Nelson

Rodrigues. Nas mãos de Hirszman, a história de Zulmira, mulher que busca na morte uma espécie de

compensação às frustrações da existência, destaca bem a vida do subúrbio carioca. Subúrbio

observado sem complacência, como se fosse o caso de pôr em relevo as cotidianas infelicidades a

que a pobreza sujeita. A fotografia de José Medeiros tende a um cinza que rebate a atmosfera

abafada que respiram os personagens.

A bela direção de atores torna presenças como a de Ivan Cândido, o marido, difíceis de

esquecer. O destaque principal, no entanto, fica mesmo com Fernanda Montenegro.

O disco se faz acompanhar por um pequeno livro com impressões de críticos brasileiros e

estrangeiros sobre o filme. É tanto que o santo desconfia: a Videofilmes, que normalmente trabalha

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muito bem, aqui até se excede um pouco ao produzir essa edição "black tie" deste belo filme do

diretor de "Eles Não Usam Black-tie".

A FALECIDA

Distribuidora: Videofilmes

Quanto: R$ 54,90

Classificação: 12 anos

Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO

Folha de São Paulo, 03/01/10

(88) Marlon Brando é marcante no irregular "Cartada Final"

O que levaria Marlon Brando, o maior ator do cinema, a aceitar papéis esdrúxulos, em filmes

idem? A falta de grana? Ou um autoflagelo diante da ladeira abaixo que foi sua vida pessoal nos seus

últimos anos?

Talvez seja isso, conhecendo o gosto de Brando em levar seu corpo e imagem ao limite, mas

é mais crível que ele soubesse o quanto estava acima de tudo, ou seja, fosse o único astro da história

a contrariar a lógica natural que delega ao tino do diretor o resultado de um filme.

É difícil duvidar, por exemplo, que Elia Kazan não tenha sido o grande responsável pelo primor de

"Viva Zapata!" (TC Cult, 16h05, 12 anos), mesmo com Marlon no papel de Emiliano Zapata.

Por outro lado, Brando aparece intacto, marcante e lindo em sua velhice e tonelagem, no irregular e

esquecível longa "A Cartada Final" (TC Action, 17h25, 14 anos).

PAULO SANTOS LIMA

Folha de São Paulo, 10/01/10