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Em uma procissão de eus: Notas de pesquisa sobre a vida de Ernani Reichmann GILVANI ALVES DE ARAUJO 1 O silêncio é a verdade do ser. Escreveu Ernani Reichmann. Introdução Desde o fim do século XVIII há o deslocamento para uma história única. De uma die Geschicten a uma die Geschichte (LORIGA, 2011, p. 11). 2 A pluralidade da história é abandonada pelo impulso de se escrever cada vez mais e melhor sobre os fenômenos históricos sem comprometê-los com a vida dos homens e mulheres. Hannah Arendt, em um texto sobre o conceito de história, chama a atenção para as limitações que os modernos viram na pluralidade (Cf. ARENDT, 2007, pp. 69-126). Primeiro, a descoberta de que a natureza é mortal. E, segundo, a perda progressiva de confiança na capacidade de nossos sentidos de apreender a verdade. Podemos mesmo pensar que, em resposta a “pluralidade deficiente”, o impulso fundacional de dar bases sólidas às ciências históricas, tornou possível o estatuto de uma história única, baseada totalmente no poder do documento enquanto depositário da verdade. A este impulso fundador foram concebidas uma epistemologia e uma historiografia adequadas: livros em que abundam histórias sem sujeitos. Investida de um racionalismo iluminador, pode conduzir o espírito humano por uma espiral, vertical, ao mais alto conhecimento da verdade. Logo, retirar do anonimato homens e mulheres do passado, cobertos e soterrados pelo próprio oficio do historiador, é devolver a essas vidas sua graphia, sob o peso de não as deixar sucumbir pelo vício da similaridade e da equivalência; ou pela abstração e composição de qualidades ideais; ou, pela generalização de fundo reducionista. Devolver o interesse e o 1 Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS-UFPR); Doutorando; Bolsa de Pesquisa da Capes. 2 “Múltiplas razões os conduziram a abandonar os seres humanos para passar de uma história plural (die Geschicten) a uma história única (die Geschichte)”: “Em seu texto sobre o conceito de história, Reinhart Koselleck coloca em evidência que o termo Geschichte nasce após dois acontecimentos convergentes: por um lado, a constituição de um coletivo singular que religa o conjunto das histórias especiais ( Einzelgeschichten); por outro, uma contaminação mútua do conceito de Geschichte enquanto complexo de eventos e aquele de Historie enquanto conhecimento, relato e ciência histórica”.

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Em uma “procissão de eus”:

Notas de pesquisa sobre a vida de Ernani Reichmann

GILVANI ALVES DE ARAUJO1

O silêncio é a verdade do ser.

Escreveu Ernani Reichmann.

Introdução

Desde o fim do século XVIII há o deslocamento para uma história única. De uma

die Geschicten a uma die Geschichte (LORIGA, 2011, p. 11).2 A pluralidade da história é

abandonada pelo impulso de se escrever cada vez mais e melhor sobre os fenômenos históricos

sem comprometê-los com a vida dos homens e mulheres. Hannah Arendt, em um texto sobre o

conceito de história, chama a atenção para as limitações que os modernos viram na pluralidade

(Cf. ARENDT, 2007, pp. 69-126). Primeiro, a descoberta de que a natureza é mortal. E,

segundo, a perda progressiva de confiança na capacidade de nossos sentidos de apreender a

verdade.

Podemos mesmo pensar que, em resposta a “pluralidade deficiente”, o impulso

fundacional de dar bases sólidas às ciências históricas, tornou possível o estatuto de uma

história única, baseada totalmente no poder do documento – enquanto depositário da verdade.

A este impulso fundador foram concebidas uma epistemologia e uma historiografia adequadas:

livros em que abundam histórias sem sujeitos. Investida de um racionalismo iluminador, pode

conduzir o espírito humano por uma espiral, vertical, ao mais alto conhecimento da verdade.

Logo, retirar do anonimato homens e mulheres do passado, cobertos e soterrados

pelo próprio oficio do historiador, é devolver a essas vidas sua graphia, sob o peso de não as

deixar sucumbir pelo vício da similaridade e da equivalência; ou pela abstração e composição

de qualidades ideais; ou, pela generalização de fundo reducionista. Devolver o interesse e o

1 Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS-UFPR); Doutorando;

Bolsa de Pesquisa da Capes. 2 “Múltiplas razões os conduziram a abandonar os seres humanos para passar de uma história plural (die

Geschicten) a uma história única (die Geschichte)”: “Em seu texto sobre o conceito de história, Reinhart Koselleck

coloca em evidência que o termo Geschichte nasce após dois acontecimentos convergentes: por um lado, a

constituição de um coletivo singular que religa o conjunto das histórias especiais (Einzelgeschichten); por outro,

uma contaminação mútua do conceito de Geschichte enquanto complexo de eventos e aquele de Historie enquanto

conhecimento, relato e ciência histórica”.

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gosto pela diversidade pode ser voltar nossos olhos, não para o alto ou para o horizonte em

busca do télos do processo, mas para o sujeito e a subjetividade, em um olho a olho.

O gosto pela pluralidade tem muitas frentes. A biografia é um gênero presente desde

o mundo grego, passou por altos e baixos e, hoje, representa uma maneira de fazer história. A

biografia é uma maneira encarnada de lidar com os mistérios de uma vida. Os problemas de

interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam com tudo o que constitui nossa

própria vida e a dos que nos cercam.

Trazer para o interior de uma pesquisa o projeto de (re)viver as reflexões e os

sentimentos de um sujeito do passado representa um desafio. Porque estamos acostumados com

a multidão sem rosto ou com as virtudes ideais; com a obediência cega à regra ou com a

sociedade sem conflitos. Em todos os casos, olhar o modo de vida, as escolhas ou as pressões,

nos estimula a assumir o ponto de vista da testemunha de seu tempo.

Na busca por este sentido que a vida particular assume, nos encontramos com o

problema da identidade e da vontade pessoal; o problema da consistência histórica e da

veracidade; o problema teórico-metodológico; o problema do estabelecimento e da

apresentação dos resultados; e, enfim, o problema do enquadramento psicológico. Sabemos que

todos estes problemas não podem ser solucionados ainda, mas o que nos propomos a fazer pode.

O que se verificará a cada seção são algumas notas que a pesquisa acumulou até aqui. Muitos

são os aspectos a ser considerados quando se fala da trajetória de vida de um indivíduo. Acabei

encarando este modo de fazer história porque me apaixonei, sobretudo, pela tarefa de descobrir

o que significa o percurso de uma vida; hoje a vida é o bem, o mistério que mais me fascina.

Neste caso, a vida de

Ernani Reichmann

Ernani Corrêa Reichmann (1920-1984), nasceu em Passo Fundo – local de sua

“Volta às origens” (Cf. REICHMANN, 1967) –, viveu com os pais e os irmãos durante algum

tempo em Erechim. Sua eternidade sempre vai ser a vida que viveu na Serra do Rio Uruguai.

De Passo Fundo a Erechim todas as paisagens são interiores, pulsam no peito e nos escritos de

Ernani. Relata que a sua veia poética nasceu da contemplação do curso do Rio Uruguai.

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Mas seu exterior começa em Porto Alegre, quando (não se sabe por obediência ou

falta de coragem) o pai – Joaquim Reichmann – lhe impõe sua decisão. Ernani, submisso a ela,

não reage, apenas age. Inicia os estudos (que talvez o pai ostentará, mas não pode – conjecturo)

no direito. Mas seu destino, seu alvo, foi outro. Ernani termina em Curitiba (no duplo sentido).

Primeiro em 1941 e depois em 1984.

Em 1941 começa a cursar Direito e Economia na recém federalizada Universidade

do Paraná. E foi à Universidade Federal do Paraná que retorna como professor, até defender

sua titulação em 1956, junto ao departamento de Ciências Econômicas. Todavia, neste ínterim,

Ernani se casou com Annie Tempel e teve duas filhas, cujos nomes evocam sua ancestralidade,

suas raízes (judia alemã). Inspirado pela ópera de Richard Wagner, dá os nomes a Isolda e

Brunilda. Ainda pensando nas experiências que viveu, em um curto retorno a Porto Alegre,

filia-se ao Partido Representação Popular (PRP), onde granjeia alguns postos políticos na

Assembleia Legislativa Estadual do Rio Grande do Sul.

Contudo, em 1954 opta por permanecer apenas no Paraná. Foi neste Estado que

construiu sua imagem exterior. Ao lado de grandes nomes da política estadual, Ernani serviu

aos interesses de Bento Munhoz da Rocha (1951-1955), Moisés Lupion (1956-1961) e Ney

Braga (1961-1965) na condição de secretário de Governo, administrador e economista. Ligado

diretamente a vida política, transitou entre os poderes, mas sem nunca perder sua matriz. Seu

encontro derradeiro e decisivo foi na década de 1950, com o enigmático pensador dinamarquês

Søren Kierkegaard (1813-1855). Fato interessante, pois sua fama como ávido leitor deste

desconhecido dinamarquês, lhe custou a alcunha de secretário kierkegaardiano durante o

Governo de seu amigo tomista, Bento Munhoz.

Foram as linhas que leu de Doença para a morte (1849), que operaram em seu

interior a fuga do ambiente social (seu exterior), para sua interioridade. Kierkegaard escreve

sobre o desespero humano frente às aspirações da carne, externas ao indivíduo e que em nada

o restituem de sua verdadeira condição. Somente o desespero pode revelar a verdade sobre nós,

somente enquanto doença para a morte nos aproxima de nossa verdadeira condição interior:

“eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero:

orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria

transparência, até ao poder que o criou” (KERKEGAARD, 2010, p. 27).

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Ernani fragmenta o espaço em deslocamentos, rompe com o tempo. Dedica-se

durante o dia às funções econômicas, mas encontra-se consigo mesmo à noite para poder

estudar e escrever aquilo que diz respeito a sua experiência pessoal; mergulha em seu eu

(REICHMANN, 1963, p. 377).

É preocupado com seus problemas que Ernani vai até Kierkegaard. Vai em busca

de si, nas linhas do outro, nas palavras e acenos que a existência do outro operou. Para Ernani,

a experiência kierkegaardiana é uma escola para a sua própria experiência. Daí a biografia de

Kierkegaard ser para ele uma parabiografia, isto é, um caminho aberto que se projeta para o

futuro. Por ele é que percorre. Pois é através de Kierkegaard que sua história se escreve:

Se cheguei a Kierkegaard preocupado com meus próprios problemas [...], preciso

pagar a minha dívida para com ele, o que quer dizer que não devo me limitar a repetir

o que os outros disseram de Kierkegaard. Pretendo, se possível, abrir dentro de

Kierkegaard um caminho pessoal, ter um ponto de vista, saber ver e interpretar seu

pensamento, avançar ao máximo no conhecimento de sua vida, em todos os seus

detalhes. Bem que gostaria de constituir-me num marco no caminho da exegese

kierkegaardiana e respeitado, inclusive, na Dinamarca. Talvez pudesse iniciar este

trabalho estudando a concepção kierkegaardiana do homem, que é o tema no qual

penso ter algo a dizer sobre Kierkegaard, já que realizei uma grande experiência

neste sentido, no que concerne a meus próprios problemas (REICHMANN, 1963, p.

403).

Anos mais tarde (1976), ao examinar sua vida, Ernani questiona o desenrolar dos

fatos e confessa:

Curioso, não é, Brunilda? Tantos devem ter lido, como eu mesmo, “O desespero

humano”, de K – por que será que só eu prossegui, toquei para frente e tratei de ir o

mais longe possível? Eu sei: foi porque senti a minha problemática, senti que meu

“caso” era examinado nesse livro e, portanto, esse homem (embora infinitamente

maior) era como eu.

Podemos pressentir a importância que aquele encontro com Kierkegaard

representou em sua vida. Em outra parte da carta ele diz o seguinte:

Mas por que isso teria de acontecer com caboclo agreste, perdido lá na serra do

Uruguai? Nascido em Passo Fundo, passou por Erechim e Curitiba, e foi a

Copenhague por quê? Por que senão por uma fidelidade que se situa mais alta do

que o tempo e o espaço? A fidelidade de um homem a si mesmo, voltado para dentro

e não para fora, pois não se trata de conduzir a história (REICHMANN, 2006, p.

538).

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Assim, aos poucos, nessas circunstâncias de vida, foi-se definindo sua imagem

interna, de explorador de mundos, de explorador de si mesmo (seu interior). Sua imagem

externa foi aos poucos se tornando estática, esquecida, anônima. É assim que minha pesquisa

tem alcançado suas imagens – desde a década de 1980. Um homem que se duplicou, de dia

ligado às funções econômicas, e à noite livre para explorar a eternidade em si. A viagem que

fez em 1959 para a Dinamarca, e durou um ano, foi uma jornada para encontrar não o caminho

da erudição, mas para encontrar o caminho para si. A cura para o desespero, longe das

aparências e das vaidades políticas.

Desde Copenhague, é possível ler em todas as suas obras posteriores sua

autobiografia na solidão de si mesmo, mas nunca só. Ernani multiplica vozes, que o

acompanham em seus mundos. Se das vozes sociais gradativamente Ernani se isola, é nas vozes

da ficção que todos os sentimentos e emoções vem à tona. Na superfície, essas vozes servem-

lhe de matéria e inspiração para sua escrita.

Ernani continua dividido entre o homem do dia e o da noite até sua conciliação em

1981. De 1959 a 1981, o homem do dia sub-existiu até sua aposentadoria. Respeitado e

reconhecido como um eminente economista, conquistou postos e galgou funções, ora no

Estado, ora na UFPR. Foi lembrado e representou seu Rio Grande junto ao recém-criado

CODESUL-BRDE (1962), a pedido do então Governador Leonel Brizola. Por outro, o homem

da noite, em sua solidão e anonimato subjugou a angústia, mas não conseguiu ultrapassar o

ressentimento de viver em um “Estado pouco conhecido da federação”, em uma cidade cinza e

com pessoas cinzas. Seu valor nunca foi reconhecido, mesmo com suas numerosas publicações.

Nem sequer um editor.

Ernani teve que assumir o ofício de editor para que suas criações pudessem

testemunhar a profundidade com que mergulhou em si mesmo; ao virem à lume suas obras

causam estranheza. Não são autobiografias comuns. Existe nelas uma mescla de sentimentos,

emoções e também memórias de si (que a muito deixaram de lado o “eu puro”). Sua narrativa

situa-se em uma terra de ninguém, entre a reflexão filosófica e a criação literária. Nesse

intermezzo, de um lado, assistimos uma epistemologia pessoal surgir; uma ética; uma ontologia

de nomes próprios, homônimos, pseudônimos e heterônimos; uma antropologia de si; sem

mencionar a exegese de Kierkegaard e Nietzsche. Mas tudo como reflexo de um cuidado de si,

um modo de vida.

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Por outro lado, é impressionante como a voz, as lembranças, as histórias de Ernani

mudam de boca em boca. Ele se sente um porto, em que vários navios aportam ou estão de

saída. Um coral de vozes ganha vida em seus escritos. Ernani diz que sua vida sem a ficção não

revelaria a verdade profunda que tem que confessar, são seus amigos e companheiros que a

manifestam. Dialogam. Discutem. Problematizam-na. A literatura e seus gêneros assumem o

meio, compõem o espaço que não é mais concreto. Mostra a contradição na existência e na

distância que há entre seus possíveis.

Em 1981 até sua morte, Ernani vive uma vida integral. Seu cotidiano se reconcilia

com a sua experiência. É chegado o momento de viver uma vida simples, mas com

profundidade. Para viver assim, ele se isola da vida social de maneira radical. Passa a viver em

seu sítio na Colônia Faria, Colombo (Região Metropolitana de Curitiba). Ali se torna seu

refúgio, sempre fora um homem exilado, longe de sua origem. Já que uma volta às origens não

era mais possível, empreenderia seu lugar longe, isolado de Curitiba, mas perto de sua família.

Foi na manhã do dia 10 de junho de 1984. Aos 63 anos. Ernani Reichmann vem a

falecer. Será o fim de uma experiência? Será que assim como a parabiografia de Kierkegaard

lhe serviu de caminho, a sua parabiografia não nos servirá de caminho?

Transcrevo uma das missivas que Ernani remete a sua filha Brunilda, pois em sua

parte inicial acredito que Ernani expressa claramente sua vontade. Missiva que faz parte do

volumoso Projeto de salvação, com quase nove anos de correspondências. Numa tentativa de

salvar o cotidiano e amenizar a saudade, as missivas desde o início se destinavam a uma

publicação que foi realizada em 2006 – 22 anos após a morte do pai. A missiva faz uma espécie

de testamento metodológico para seus futuros biógrafos:

Outubro, 11 (1975).

Brunilda!

Assim como não há uma separação radical entre minha vida e meus escritos, esta não

existe também entre minhas cartas de todo tempo e minha experiência. É chegado o

momento de começar a ordenar a coisa com vistas à minha biografia, embora eu não

acredite que seja possível uma biografia sem referência permanente aos escritos

(REICHMANN, 2006, pp. 485-486).

Uma rápida revisão

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Sua missiva testamentária nos fornece indícios suficientes para tentar realizar sua

biografia, revela elementos importantes para alcançar os vestígios deste eu seccionado: ora pelo

ambiente social e público, ora pela privacidade familiar, ora pelo cotidiano; e um interior que

resiste e insiste em vir à tona, à superfície – vindo da profundidade de si, sob a forma de

confissão.

Ernani Reichmann, seus escritos e suas cartas formam um todo. Não é possível

realizar a empresa biográfica sem manter o diálogo entre as partes. Outros tentaram esta

realização. O primeiro a tentar foi João Manuel Simões. Escritor e poeta português, imigrado

para o Brasil, se estabeleceu em Curitiba, onde contraiu a amizade e admiração por Reichmann.

À sua dedicação a escrita, ainda que de si.

Simões foi o primeiro, ainda em 1983. Escreveu um ensaio chamado: Ernani

Reichmann: introdução (fragmentária) ao universo de um gênio. De estilo descontínuo e

fragmentário, lança mão da escrita por meio de notas de leitura agrupadas e sem uma ordem

estrutural. Afinal, assim quis João Manuel: “não tive a pretensão de oferecer ao leitor uma

radiografia espectral ou uma visão epitelial, ainda que abrangente, dessa província Lítero-

filosófica (ou poético-ficcional?) que é a obra multímoda, proteica, de ER” (SIMÕES, 1983, p.

7). Sua intenção, indicada ao seu leitor, é que aquelas páginas apenas tangenciariam alguns

temas e problemas que encontramos ao ler a obra reichmanniana. Daí sua pretensão não ser

apresentar uma biografia acadêmica com uma metodologia estrutural. Sua tentativa

permanecerá um elogio fragmentário sob a forma de ensaio literário.

É interessante notar que apesar das limitações, o “ensaio biográfico” de Simões

segue ainda que superficialmente a metodologia proposta por Reichmann. Sua metodologia

prática consiste em fazer a exegese da matéria dos escritos, apresenta Ernani sempre que

possível a contrapelo de seus escritos. Criando uma efígie em que face e obra se misturam, de

maneira circunscrita e literária. Um ensaio esteticamente floreado que profetiza “o universo de

um gênio”, não para devolver sua espessura histórica, mas para fundar o mito:

Será um erro crasso ver em ER apenas o pensador de raiz kierkegaardiana ou o mero

conhecedor ou “expert” em Kierkegaard. Ele é mais do que isso: é um novo

Kierkegaard, mais importante do que o dinamarquês, do qual é uma versão corrigida

e aumentada. Dotado de outro instrumental linguístico. De outra cosmovisão. Situado

em outro meio geográfico, histórico e cultural. Com outro temperamento, outra

psique, outras motivações. Outra postura existencial. Outras idiossincrasias. E uma

cultura mais abrangente e mais ampla.

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À maneira de um heterônimo vivo de Søren, o pensador paranaense pode voltar-se

para dentro do seu próprio pensamento, definindo, precisando, renovando e até

ultrapassando os seus parâmetros estruturais (SIMÕES, 1983, p. 19-20).

Outros ensaístas o sucederam, foi o caso do escritor Hélio de Freitas Puglielli e o

cineasta Sylvio Bach. Ambos, também, amigos de Ernani. Tiveram a felicidade de conhecê-lo

e se corresponder por um tempo com ele. Mas enquanto fenômeno da recordação, talvez o

desejo de tirar do anônimo esquecimento o amigo, os levou apenas a cultuar o mito, mais uma

vez tangenciado o sujeito histórico.

Puglielli (1991) publicou pela Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes um

sugestivo ensaio conhecido como Ernani Reichmann no cenário filosófico paranaense. O leitor

de Simões não conhecerá o Ernani histórico, pois seu Ernani era uma hileia amazônica de papel,

ou um oceano, ou um himalaia da cultura brasileira. Todavia, também não irá pela narrativa de

Puglielli. A filosofia de Kierkegaard é uma porta estreita pela qual Ernani conseguiu passar,

mas ainda mais estreita é a porta que nos leva a este universo reichmanniano; nas palavras de

Puglielli:

Não creio que se possa dizer, a não ser metaforicamente (e esse é o sentido da

afirmativa de Simões), que a obra de Reichmann seja uma visão corrida e aumentada

da obra kierkegaardiana. A afinidade é intensa, mas as diferenças são inúmeras,

devidamente apontadas por Simões...

Resumiria esse problema dizendo que Reichmann pode ser considerado o

Kierkegaard do Brasil, na segunda metade do século vinte, mas que Kierkegaard

também pode ser definido como o Reichmann da Dinamarca, no século dezenove

(PUGLIELLI, 1991, p. 10).

Se em Puglielli encontramos apenas uma dívida filosófica a ser resgatada, muito

mais que literária, em Sylvio Bach, a fórmula editada por Puglielli via Simões persiste. Curioso

notar, mas em Simões metaforicamente Reichmann vai além de Kierkegaard como algo novo,

ou melhor, uma versão melhorada daquele dinamarquês. Puglielli mostra-nos um semelhante

ou equivalente histórico. Já para Bach, nenhum e nem o outro. Trata-se de um “Kierkegaard

dos trópicos” – como assinalou em seu texto por ocasião do bicentenário da morte do original.3

Apenas para levantar questões (mas seu texto não será alvo de análise minuciosa, pelo menos

não aqui), há várias falhas fatídicas em seu ensaio. Cumpre sua função de chamar a atenção

para um nome do passado, mas não faz justiça ao sujeito histórico que tenta resgatar.

3 BACK, Sylvio. Kierkegaard dos trópicos. Curitiba: Jornal Gazeta do Povo, 04/05/2013.

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Sylvio foi aluno de Ernani no curso de Economia. E durante a leitura é possível ver

as reverências que faz ao eterno mestre. Nos conta que deve muito a ele, pela amizade cotidiana,

o incentivo que à época um jornalista iniciante, que almejava ser escritor e cineasta precisava.

Enquanto texto jornalístico, esbanja erudição, por outro lado nem cita, nem referencia os textos

que menciona. Trata-se apenas de uma hagiografia, pois enaltece o fato de Reichmann ter sido

o primeiro biógrafo de Kierkegaard, tanto e de tal maneira que poderíamos incluir seu texto no

martirológico (dizer que o mito se tornou santo!).

Assim, me parece que foi Simões o que mais ao encontro de Reichmann chegou.

Nele percebemos uma referência ainda que fragmentária aos escritos numerosos de nosso autor.

O caminho não parece fácil, mas deixar à margem o percurso que nosso biografado elegeu como

o melhor, significa não fazer valer a sua vontade testamentária. No caso de Puglielli e Back, foi

ignorar totalmente. Manifestaram-se não as vozes, apenas os mitos.

Problemas teóricos-metodológicos

Como vimos, há várias maneiras de reforçar ou criar um mito, todas exigem um

grau maior ou menor de imaginação. O trabalho histórico exige um olhar especial sobre a fonte,

mas também a sua crítica. Somente adotando uma postura de historiador pode-se retirar os

sedimentos depositados sobre a imagem histórica do sujeito. Para desfazer o mito ou a maneira

metafórica que se criou, ao depositar sobre Ernani uma aura de genialidade inalcançável, buscar

uma postura diferenciada pode ajudar. Principalmente para realizar afirmações seguras e

comprovadas sobre sua vida, afinal a exatidão não é uma qualidade do historiador, mas sua

obrigação. Fato ao qual não se compromete e nem se responsabiliza o ensaísta.

Longe de um ensaio, a biografia histórica possui características próprias e

distintivas. Como já chamei a atenção, a principal é respeitar as afirmações que se podem fazer

como um desdobramento quase que natural da fonte. Para ficar claro ao leitor onde há

afirmações cuja evidência restitui o sujeito histórico, e em outra parte, quando afirmações

hipotéticas e suposições tomam lugar no discurso. A imaginação também é convocada, todavia

sob a forma da intuição. A intuição é uma forma mais solta que a hipótese, ajuda nos palpites e

na reconstituição do material. Porém, nem por isso podemos fazer um uso indiscriminado dela.

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Vale a máxima de que na exposição de uma biografia histórica o fundamental é não enganar o

leitor quanto ao que afirmamos.

Ensaios como de Simões, Puglielli e Back podem aproximar o leitor, em um

primeiro momento. Difundir preconceitos, espalhar visões deturpadas, reduzir a espessura dos

fatos, inverter a lógica interna da vida, criar figurações distorcidas (positivas, mas também

negativas), forçar interpretações e conclusões, ou até mudar a identidade, entretanto não pode

devolver ao segundo olhar o verossímil. O que nos parece verdadeiro, o que é possível e

provável. Nem todos os ensaístas se comprometem com aquilo que Alain de Botton chama de

“impulso biográfico” (Cf. 2000, p. 247), impulso para conhecer o outro de maneira plena.

Metodologicamente são relevantes as ideias propostas pela historiadora e biógrafa

Vavy Pacheco Borges, pois vão de encontro com o que nos define Botton. Vavy elabora um

caminho pertinente ao exercício do verossímil, pois para ela a biografia é um casamento e de

sua longa intimidade é que nascem os frutos. Um enunciado que se repete e ecoa em seus textos

completa esta visão, ela nos fala de “um mergulho na vida do biografado” (Cf. 2004, p. 296;

2009a, p. 227; 2009b, p. 19; 2011, p. 218; 2012, p. 85).

Esse mergulho favorece o falar franco, apontar e aportar nos desafios vivenciados

pelo sujeito biografado. Em meu caso, possibilita compreender as vicissitudes, as escolhas, e

principalmente os sentimentos. Mais que demonstrar uma racionalidade, ora semelhante

(Simões), ora igual (Puglielli), ora canonizável (Back), que existe um sujeito que fez opções no

caminho da vida, não as de Kierkegaard, porém, as suas. Ernani Reichmann é um sujeito único,

como prefere, uma exceção (REICHMANN, 2006, pp. 57-58),4 mas uma exceção normal –

poderíamos objetar, seguindo os casos em que a metodologia da Microstoria incide (DOSSE,

2009, p. 254).

Neste caso, pensar um sujeito único como uma exceção normal, implica dar atenção

às estratégias individuais, à complexidade dos elementos em jogo e ao caráter imbricado das

representações coletivas. Uma biografia da vida de Ernani Reichmann possibilita perceber uma

subjetividade que tende ao solipcismo quase radical e absoluto, mas que ainda como exceção

tem consciência da convivência pública e não deixa sombra de dúvida que seu exilio é social,

4 “Tenho consciência de que sou uma exceção neste mundo. É como exceção que quero continuar a viver. Detesto

a regra geral, a lei, a ordem, a divisão do tempo, as horas certas para cada coisa, o espaço com seus ocupantes e

proprietários. Mas tenho consciência também que deve ser horrível para os outros terem de viver com uma exceção

ao lado, com alguém que não se submete ao cotidiano, às regras, às leis, aos costumes”.

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pois encontra sua terra natal não no exterior de si, mas no valor que sua interioridade assume.

Ainda precisa do Outro, seja, a família, os amigos, ou de maneira mais confortável seus escritos

(ou mundos) e seu leitor; isso demonstra uma intersubjetividade: a necessidade de

compreensão, acolhida e reconhecimento de sua excepcionalidade.

Dosse nos diz que “os casos de ruptura dos quais traçaram a história não são

concebidos como exaltação da marginalidade, do avesso, do repudiado, mas como uma maneira

de realçar a singularidade como entidade problemática” (DOSSE, 2009, p. 255). Isso quer dizer

que a vida e as escolhas de um sujeito histórico como Reichmann podem nos revelar muito

sobre as trocas simbólicas e a influência que uma vida do passado pode causar sobre o momento

atual de suas escolhas. Basta que problematizemos essa excepcionalidade, aparentemente

singular, que logo nos defrontaremos com uma rede de influências culturais. O sujeito enquanto

um ponto cambiante assume as mais variadas configurações, já nos alertava Ginzburg em seu

O queijo e os vermes, que:

Alguns estudos biográficos mostram que um indivíduo medíocre, destituído de

interesse por si mesmo – e justamente por isso representativo –, pode ser pesquisado

como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado período

histórico... (GINSBURG, 2006, p. 20).

Pesando as dificuldades, principalmente a de ter que pensar a relação entre esse

microcosmo e seu estrato social, é que uma pesquisa de natureza biográfica se faz necessária.

Ernani ocupa uma posição saliente, com uma vida entrecortada pelas funções que ocupa no

tabuleiro social, todas máscaras e eus de superfície. Sua vida privada também é segmentada:

sua vida de casado, sua relação com as filhas, seus familiares, seus amigos, o cotidiano. Tudo

ocupa uma posição intermediária. Somente na interioridade, em sua noite escura, pode se

encontrar em casa consigo mesmo.

Assim, a pesquisa que venho realizando demonstra o valor que a biografia tem,

enquanto olhar histórico, e que funciona como uma lente de aumento sobre a vida. Olhar este

que, para Jacques Le Goff, se revela “[n]a biografia histórica uma das maneiras mais difíceis

de fazer história” (1999, p. 29). Risco que se dispõe a enfrentar aquele que mergulha na alma

de um sujeito excepcional como Ernani.

A pesquisa tem mostrado que considerar apenas Reichmann como um microcosmo

possibilita descobrir uma pluralidade de mundos, assim como de eus. Todos com sua

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identidade. Nenhum sem uma personalidade, ou ainda que fraca, não possa imprimir sua

existência. Fazer uma biografia total – ao modo de Le Goff – não é uma pretensão que

almejamos, não é possível porque: primeiro, existem questões óbvias de limitação espacial e

temporal; segundo, teríamos que romper mais fronteiras, a da literatura e a da filosofia, além da

histórica, para atingir sua terra de ninguém; terceiro, o trabalho demandaria o estabelecimento

oficial de todo o espólio literário de Ernani – fato que exigiria tornar público tudo o que a

família Reichmann não quer ceder.

Por outro lado, de maneira modesta, nos interessa a metáfora colocada pela

historiadora Vavy. Uma biografia que se constrói pelo mergulho em um indivíduo, não para

mostrar o quanto foi excepcional sua vida, nem para investir em uma catalogação de feitos

literários como se possa apreciar e esperar de uma pesquisa sobre um escritor tão profícuo.

Logo, se a pretensão de uma biografia total não está no horizonte, também o de uma biografia

intelectual extrapola o escopo que delimitamos. Reconhecemos que há um Ernani intelectual,

mas seria um reducionismo lançar luz apenas sobre este eu, quando uma pluralidade de eus nos

é revelada pelos vestígios, cartas, escritos, memórias, bem como lembranças (transcritas dos

relatos orais).

A pesquisa tem caminhado no sentido de mostrar as contradições, como as que

podemos reconhecer ao inverter o sentido clássico de escrever uma biografia literária ou

filosófica (enquanto modelos de uma mesma categoria, a biografia intelectual). Estes três

motivos são: [1] conhecer melhor a obra por meio da trajetória de seu autor, [2] harmonizar o

enunciado e o vivido pelo autor, e [3] dispensar a sua leitura, para possibilitar ao não-

especialista conhecer o autor e a sua obra (DOSSE, 2009, p. 363).

Ernani é quem expõe, em uma autoentrevista de 1967, os motivos pelos quais não

publicou em ordem cronológica seus escritos: “como não podia publicar todos os volumes,

escolhi-os ao acaso”. Apesar de haver um trabalho intenso e temático de organização de seus

escritos (basta constatar ao fim de cada volume publicado), Ernani projeta e revê

constantemente os segmentos que assume suas publicações, faz parte de seu auto-exame. Por

isso, continua o depoimento ao constatar “já que não posso dar a conhecer toda a minha

experiência, é indiferente o segmento a ser publicado. O valor de cada segmento, para mim, é

o mesmo” (REICHMANN, 1967, p. 241).

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Como foi demonstrado, anteriormente, pela carta testamentária, conhecer seus

escritos ou suas cartas, já é conhecer sua trajetória. Logo, não há biografia sem constantes

referências aos seus escritos autobiográficos (neste caso, todos são autobiografias). O que afasta

os paralelismos concreto/abstrato, fato/interpretação e vivido/escrito. Logo a conciliação entre

enunciado e vivido, fazia parte da ordem do dia de Ernani, sua reflexão e autorreflexão não é

terceirizada, pois confessa: “segui o preceito bíblico: perdi a vida para ganhar a vida – num

outro plano, é claro” (REICHMANN, 1967, p. 244). Sua escrita é toda autorreferencial,

confessional, pois confessa ser objeto de si mesmo. Por fim, dispensar sua leitura? Em uma

carta à filha Brunilda, reflete sobre isso:

Eu disse [...] que terias de passar por cima de mim para poder escrever. E que a

melhor maneira de passar por cima seria ler tudo o que escrevi (trabalho para um,

dois ou três meses). E que esse trabalho te levaria a firmar de uma vez em teu próprio

caminho (não se trata de descoberta, pois tens o teu caminho, há muito tempo

traçado). Na ocasião eu não disse, mas pensei que o conhecimento total de minha

experiência te levaria a uma clareira e que dessa clareira partiria teu grande ou

decisivo caminho, mas terias de optar. Assim, toda a minha sabedoria até agora

consistiu em não procurar influir de maneira alguma para que pudesses ser a

Brunilda. Se existe algo que tenho certeza absoluta é de que és a Brunilda, mas essa

passagem por cima me parece necessária como a condição prévia a todo futuro ponto

de partida. Fiquei feliz pela coincidência. O fato de estares lendo o que escrevi indica

que também compreendeste essa necessidade. Assim, podes alcançar aos vinte e

poucos anos algo que só alcancei aos cinquenta porque precisava antes fazer a minha

experiência.

[...] Lê tudo o que escrevi como uma necessidade de teu próprio caminho, mas apenas

isso, nada mais que isso... (REICHMANN, 2006, p. 36-37)

Não se pode sintetizar ou resenhá-lo sem incorrer no erro da perda de sentido ou na

distorção de sua experiência. Podemos apenas fazer de sua experiência a nossa, mesmo que

enquanto experiência de leitura.

Qual a intenção, então? Mostrar a opção que se fez no caminho da vida por si

mesmo, ainda que faça uso da literatura e da filosofia, sua biografia é coral (tanto no sentido

marinho como musical). Tomo emprestado este termo, claro dando-lhe outro significado, para

falar da pluralidade de formas ou vozes que convivem sob a marca do nome próprio, Ernani

Reichmann. Sabina Loriga é a responsável pelo conceito. Em seu caso para falar da instituição

militar, escapa das generalizações que tomam os sujeitos individuais apenas de maneira

acessória e linear, para buscar uma metáfora que defendesse o ponto de vista da pluralidade de

indivíduos. Loriga tenta restituir uma realidade coletiva a partir de diferentes versões

individuais (Cf. LORIGA, 1990).

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Em nosso caso, uma biografia coral possibilita lidar com uma pluralidade de formas

e vozes. As formas podem ser as diferenças qualitativas dos gêneros confessionais, a

experimentação de estilos cobre um grande espectro da criação reichmanniana (poemas, prosa,

novelas, entrevista, autoentrevista, diário, cartas, automissiva, conto, crônica, dissertação,

diálogo, monólogo, artigo de jornal, notas breves, fragmentos, tradução, etc.). As vozes são os

homônimos (Ernani, Reichmann, ER, R, L-A, Vô Nani); os pseudônimos (Van der Lubbe, Van

Neutgen e Sorte Peer); os heterônimos (João Paulo, João Silvério, Arlindo, Lúcio Sobaina,

Ledoger, Mário, Ivan Rebal, Mateus, Zazá, Maria, Francisco, José, Diana, Teda); grupos de

heterônimos (Grupo do Sítio, Grupo de Passo Fundo, Grupo do Ponto-ser ou de Erechim); sem

mencionar os inúmeros alter-egos que se multiplicam (Joaquim Reichmann, seu pai, também

conhecido por JR, e mais tarde Vô Quito; Clementino Schiavon Puppi, Desembargador;

Antenor da Silva Puppo, Médico; Bento Munhoz da Rocha Netto, Político; Octavio de Faria,

Escritor; Brunilda Tempel Reichmann, Professora e sua filha). Em síntese, o uso da metáfora

de Loriga dá novos direcionamentos, preserva seu estatuto, mas seu significado é ampliado para

acomodar os deslizamentos de gêneros e subjetividades.

As fontes

Para Ernani “não há uma separação radical entre [sua] vida e [seus] escritos, esta

não existe também entre [suas] cartas de todo tempo e [sua] experiência”. Tudo está imbricado

e implicado na relação. Logo, nossa maior dificuldade é qual recorte realizar. Sua obra é vasta,

na perspectiva de Simões uma verdadeira hiléia amazônica de papel, o que dificulta o trabalho

de seleção e por outro lado deixa-o tão interessante. Em sua maioria são livros com capas

simples e com um título em destaque, nem sempre é indicado autor, editora ou ano de

publicação.

Ademais, retornando às hipóteses de trabalho que enunciamos, vale indicar quais e

como serão utilizados os escritos ou cartas de Ernani. Seguindo o pressuposto de que tudo é um

(Sujeito, Escritos e Cartas), estou convencido de que a melhor forma de adentrar na psique de

meu biografado é pelas cartas. A correspondência de Ernani cobre um longo período e

demonstra não tanto a tensão filosofia-literatura; ao contrário nos mostra seu cotidiano, as

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lembranças, os fluxos de pensamento, o processo criativo e a origem de suas ideias. Além de

estar em interlocução direta com o outro-eu.

Em outras palavras, a escolha de observar/ouvir o coral, seja de formas ou vozes,

por meio de suas “cartas de todo tempo” pode restituir o sujeito histórico. Para longe das

afirmações despropositadas e sem suporte, as cartas – ao contrário dos escritos – podem

favorecer um mergulho na alma do autor, sem a interferência das personagens. Não que

possamos separar a ficção de sua escrita, sabemos a importância que ela representa para Ernani,

entretanto é possível ver uma outra ordem de preocupações em que prevalece a confissão. Esse

falar franco e refletido expõe a estrutura de um ato de verdade, sua expressão pela missiva só é

possível porque há um interlocutor também preocupado com a ordem do dia, bem como com

as suas verdades. Assim, o escritor somente pode estabelecer um contato sólido se o seu dizer

revelar uma forma refletida dessa verdade.

Note que neste esquema a correspondência ganha o primeiro plano na

reconstituição do sujeito, apenas recorreremos aos escritos quando for necessário esclarecer

algum ponto ainda não claro. A imagem de Reichmann, que também é reconstruída pelos

escritos, será sempre cindida ora pela ficção, ora pela filosofia, ora pela polifonia de vozes

heteronímicas. As cartas nos asseguram o ato de verdade refletido da confissão.

Michel Foucault em A escrita de si, texto de 1983, chama a atenção para este ponto.

Sua arqueologia demonstra que a correspondência é um tipo especial de escrita de si, aquilo

que os gregos reconheciam como uma função etopoiéitica. Isso significa que a correspondência

“é operadora da transformação da verdade em êthos” FOUCAULT, 2004, p. 147). Analisando

essa noção em nosso trabalho, é possível perceber um ajuste ou justaposição do caráter ético da

verdade, operada por um sujeito que se distribui em papéis: o papel de operador da verdade (é

o agente ativo, pois é por sua causa que a verdade vem à luz), o papel de espectador (pois

vivencia seus efeitos em sua vida, assim pode testemunhar) e o papel de objeto (porque é a seu

propósito que se descobre a verdade e, ao mesmo tempo, pode tomar-se em análise para

estabelecer novos parâmetros ou reconhecer suas atitudes ligadas ou não a um projeto de vida).

Certamente a introspecção que o voltar-se para si exige pode ser identificada não

apenas nos escritos, mas também na ordem da correspondência. A escolha da missiva prepara

um face a face e consecutivamente, a reciprocidade do olhar e do exame. Foucault com sua

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“anarqueologia” do cuidado de si e da coragem da verdade5, certamente tem muito a contribuir

para a nossa análise das cartas de Ernani, tomadas como fonte primária para a escrita biográfica.

Assim, acredito ser possível definir o recorte.

Ainda assim é necessário refletir sobre a separação que Ernani faz em sua “carta

testamentária”. Ele separa as cartas em dois blocos: o primeiro reúne as correspondências

recebidas até 1945; no segundo as cartas de 1945 até 1970. Literalmente os dois blocos não nos

interessam muito, já que as cartas do primeiro bloco foram reduzidas e alvo de uma seleção. Já

as cartas do segundo bloco em sua maioria foram incorporadas aos escritos, como Ernani nos

adverte das correspondências trocadas por ele e Clementino Schiavon Puppi. Apesar de tudo,

há as cartas trocadas com a filha Brunilda (durante o período que ela passou nos Estados

Unidos), ainda que em formato de publicação póstuma, esse conjunto de missivas explica sua

existência pelo título, trata-se de um Projeto de Salvação (2006).

Este terceiro bloco de cartas cobre os anos de 1971 a 1978. Nele encontraremos

confissões de um homem exilado em si, à distância sua filha e netos. Nasce o homônimo Vô

Nani. As cartas possuem um forte apelo afetivo, causado – talvez – pela saudade? A angústia,

a melancolia e as vezes o próprio desespero tingem as páginas batidas à máquina. Misturam-se

fotos, recordações e esquemas em meio às muitas reflexões. Situam-se inúmeras páginas de

autoexame e exames de situação ou, ainda, de consciência. Pedidos de desculpa pelas ausências,

justificativas por ter optado pela solidão. Exteriorização da raiva: com o clima (o tempo cinza),

com Curitiba, o povo do Paraná, com os pedintes que não o deixam aproveitar seu tempo de

encontro consigo mesmo, os trabalhos domésticos, suas funções econômicas, de ter que

trabalhar para sobreviver, com a declaração de imposto de renda... sem mencionar as muitas

notas sobre o Governo do Paraná e do Brasil, sua total intolerância com o regime militar devido

a sua assumida posição anárquico-espiritualista.

Portanto, a cartas que se conservam como Projeto de salvação são a parcela que

nos interessa para este resgate. Nosso trabalho tem se concentrado em suas páginas, sua

estrutura se deve a ele.

5 Termos que surgem para descrever o núcleo da ética nos últimos escritos de Foucault, principalmente os cursos

proferidos no Collège de France a partir de 1980. Foucault expõe seu ponto de vista nestes termos: “...direi que a

arqueologia ou a (an)arqueologia do saber [...] seria estudar os regimes de verdade, isto é, os tipos de relações que

vinculam as manifestações de verdade, com seus procedimentos, aos sujeitos que são seus operadores, testemunhas

ou, eventualmente, objetos” (Cf. FOUCAULT, 2014, p. 91).

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