Em torno de Michel Foucault e Luis Buñuel: saber e poder ...
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Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade
Em torno de Michel Foucault e Luis Buñuel: saber e poder
na análise de O Discreto Charme da Burguesia
Priscila Canova Motta
São Carlos - SP
2014
PRISCILA CANOVA MOTTA
Em torno de Michel Foucault e Luis Buñuel: saber e poder
na análise de O Discreto Charme da Burguesia
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade,
do Centro de Educação e Ciências Humanas, da
Universidade Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em
Ciência, Tecnologia e Sociedade.
Orientadora: Profa. Dra. Nádea Regina Gaspar
São Carlos - SP
2014
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
M921tm
Motta, Priscila Canova. Em torno de Michel Foucault e Luis Buñuel : saber e poder na análise de O Discreto Charme da Burguesia / Priscila Canova Motta. -- São Carlos : UFSCar, 2015. 111 f. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2014. 1. Análise do discurso. 2. Foucault, Paul-Michel, 1926-1984. 3. Portolés, Luis Buñuel, 1900-1983. 4. Saber. 5. Enunciado. 6. Verdade. I. Título. CDD: 401.41 (20a)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Centro de Educação e Ciências HumanasPrograma de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade
Folha de AprovaçãoAssinaturas dos membros da comissão examinadora que avaliou e aprovou a defesa de dissertação de Mestra emCiência, Tecnologia e Sociedade da candidata Priscila Canova Motta, realizada em 12/1212014:
ídal de Souza TassoEM
Prof. Dr. Daniel Ri ro Silva Mil!UFSC r
.!!.- ••
/ '
À minha mãe Lair e a meu pai Gilberto,
por despertar meu encantamento sobre as coisas do mundo.
AGRADECIMENTOS
À Dra. Nádea Regina Gaspar, orientadora, professora que não se intimidou com a
minha falta de experiência acadêmica e esteve ao meu lado orientando, aconselhando,
estimulando e acreditando em meu trabalho. Exemplo de educadora que tem inspirado minha
prática diária. Paulo Freire disse que “Ensinar exige segurança, competência profissional e
generosidade”, e assim foi minha caminhada durante esses dois anos de pesquisa, sob a
orientação desta educadora extremamente competente e responsável, mas acima de tudo
generosa e que compartilhou seu conhecimento, transformando este capítulo da minha vida
numa experiência maravilhosa.
À minha família, minha mãe Lair, Júnior, Marcelo, Mariana, Tia Elza e Tio
Roque, que me acalmaram e ampararam sempre com muita paciência em tantos momentos
dessa caminhada, restituindo minhas energias quando estas faltaram.
Sem vocês isto não seria possível.
A meu pai que, apesar de muito dolorosa e saudosamente não estar mais presente,
sempre me inspirou com seu olhar aguçado, mente e coração abertos.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade, por dividir seu conhecimento.
A Paulo Lazaretti, secretário do Programa de Pós-Graduação em Ciências,
Tecnologia e Sociedade, pela disponibilidade e apoio.
Aos professores Dr. Roberto Leiser Baronas e Dr. Daniel Mill, pelas sugestões,
questionamentos e contribuições tão importantes para esta pesquisa, no momento do exame de
qualificação e da defesa.
A todos os colegas do LANADISI - Laboratório de Análise do Discurso da Imagem-
com quem vivenciei experiências maravilhosas.
Aos colegas Pedro e Huri, companheiros nessa jornada.
Ao Sesc - Serviço Social do Comércio - que estimula seus funcionários a estudar
sempre.
A meus gerentes Mauro Jensen, Fabio Rodrigues, e à coordenadora Carla
Carolina, por seu apoio incondicional a esta jornada.
A meus colegas do Curumim, Eduardo Carneiro, Danilo Lopes, Michelle
Stravinsky e Caroline Daniel, que seguraram as pontas e deram respaldo para que eu
terminasse minha dissertação.
Aos pesquisadores e teóricos de análise do discurso, que me deram suporte.
A Vilma, que nos bastidores esteve sempre presente.
A Rosa, que salvou minha vida com suas revisões maravilhosas.
A Belinha, Tina, Karen e Lya, pelo amor incondicional.
Aos amigos de uma vida inteira, Sílvia, Carlos, Kika, Flávia, Andréia, Vanessa e
Ana Beatriz, pelo carinho.
E devo acrescentar que meu sonho, meu sonho pessoal, não é
exatamente construir bombas, pois não gosto de matar pessoas. Mas
gostaria de escrever livros-bombas, quer dizer, livros que sejam úteis
precisamente no momento em que alguém os escreve ou os lê. Em
seguida, eles desapareceriam. Esses livros seriam de tal forma que
desapareceriam pouco depois de lidos ou utilizados. Os livros
deveriam ser espécies de bombas e nada mais. Depois da explosão, se
poderia lembrar às pessoas que esses livros produziram um belíssimo
fogo de artificio. (FOUCAULT, 2012, p.259).
RESUMO
MOTTA, P. C. Em torno de Michel Foucault e Luis Buñuel: saber e poder na análise de O
Discreto Charme da Burguesia. 2014. 110 f. Dissertação (Mestrado em Ciência, Tecnologia e
Sociedade) – Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, São Carlos, 2014.
O objetivo desta pesquisa é analisar o filme O Discreto Charme da Burguesia, de Luis Buñuel
(1972), por meio de alguns conceitos do referencial teórico-metodológico de Michel Foucault:
“saber” e “enunciado discursivo” em suas relações com o “poder” e “verdade”, e buscar
compreender o poder em seu exercício no filme, e não apenas em seus efeitos. Partindo de
alguns princípios sobre “saber” em Foucault, mapeamos um enunciado fílmico que apareceu
em algumas sequências, qual seja: “O barulho que oculta a discreta violência da
burguesia”. Diante disso, pudemos avaliar “poder e verdade”, noções essas que se fizeram
insistentemente presentes na materialidade do filme, solicitando mecanismos de análise.
Realizamos, então, reflexões sobre esses princípios por meio da teoria arqueogenealógica de
Michel Foucault, para depois aplicá-los na análise do filme. A pesquisa apresenta também
aspectos da vida de Luis Buñuel, traça relações entre a ditadura militar deste filme e a
ditadura militar brasileira, além de pontuar a experiência deste diretor com o movimento
surrealista, sua criação católica e o exílio na Espanha em momento de ditadura. Tudo isso
Buñuel revela em sua obra. Estabelecemos, também, antes da análise, um diálogo entre Marx
e Foucault no que se refere à questão do poder em relação à compreensão de “burguesia”.
Palavras-chave: Michel Foucault. Saber e Enunciado. Poder. Verdade. Luis Buñuel. Filme.
Burguesia. O Discreto Charme da Burguesia.
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ABSTRACT
MOTTA, P. C. Around Michel Foucault and Luis Buñuel: knowledge and power in the
analysis of The Discreet Charm of the Bourgeoisie. 2014. 110 f. Dissertação (Master in
Science, Technology and Society) – Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, São
Carlos, 2014.
The objective of this research is to analyze the film The Discreet Charm of the Bourgeoisie by
Luis Buñuel (1972), by means of some concepts of the theoretical and methodological
framework of Michel Foucault: "knowing" and "discursive statement" in its relations with the
"power "and" truth ", and seek to understand the power in your workout in the film, and not
only in its effects. Starting with some basics about "knowing" in Foucault, we mapped one
filmic statement which appeared in some sequences, which is: "The noise that hides the
discrete violence of the bourgeoisie." Therefore, we assess the "power and truth," these
notions that became persistently present in the materiality of the film, prompting analysis
mechanisms. Then conducted reflections on these principles by theory arqueogenealógica
Foucault, then apply them to the analysis of the film. The research also presents aspects of the
life of Luis Buñuel, traces relations between the military dictatorship of this movie and the
Brazilian military dictatorship, and punctuate the experience of the director with the Surrealist
movement his Catholic creation and exile in Spain in time of dictatorship. Buñuel all this
shows in his work. We also established prior to analysis, a dialogue between Marx and
Foucault in relation to the issue of power in relation to understanding the "bourgeoisie."
Keywords: Michel Foucault. Knowledge and Utterance. Power. Truth. Luis Buñuel. Film.
Bourgeoisie. The Discreet Charm of the Bourgeoisie.
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SUMÁRIO
1 O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA E EU:
BREVE
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................11
2 INTRODUÇÃO....................................................................................................................13
3 MICHEL FOUCAULT E O PERCURSO METODOLÓGICO DA
ARQUEOLOGIA DO SABER..............................................................................................17
4 ASPECTOS SOBRE A TEORIA GENEALÓGICA DE FOUCAULT:
PODER E VERDADE............................................................................................................26
5 BUÑUEL, O SURREALISMO E O DISCRETO CHARME
DA BURGUESIA....................................................................................................................38
5.1 Buñuel e o cinema surrealista.............................................................................................38
5.2 O Discreto Charme da Burguesia........................................................................................43
5.3 Ditaduras Militares: em “Miranda” e no Brasil..................................................................47
6 UM DISCURSO SOBRE O SUJEITO “BURGUESIA” EM BUÑUEL:
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E MARX .....................................................................54
6.1 Marx ...................................................................................................................................54
6.2 Foucault e Marxismo..........................................................................................................66
7 O BARULHO QUE OCULTA A DISCRETA VIOLÊNCIA
DA BURGUESIA....................................................................................................................87
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................105
REFERÊNCIAS....................................................................................................................107
11
1 O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA E EU: BREVE APRESENTAÇÃO
O primeiro filme de Luis Buñuel com que tive contato, com o qual, assisti com meu
pai. O filme era O Discreto Charme da Burguesia. Meu pai adorava cinema e sempre nos
levava, a mim e a meus irmãos, a sessões memoráveis. Lembro-me de que fiquei fascinada
com o filme, achei-o muito engraçado e trágico ao mesmo tempo e por dias, fiquei ligando as
peças do que tinha visto. É interessante como a memória funciona nesses casos. Lembro-me
de que algumas sequências do filme me remeteram a fatos da ditadura militar no Brasil e, se
pensarmos bem, a obra de Buñuel se comunicou comigo de uma maneira bem específica. Eu
nasci durante a ditadura militar e conheci esse capítulo de nossa história através dos olhos dos
meus pais e familiares. Senti uma angústia profunda ao imaginar a época da ditadura e
especialmente a questão da tortura que me foi apresentada através daquelas sequências. Hoje,
temos vários filmes impressionantes sobre a ditadura militar, mas para mim O Discreto
Charme da Burguesia ficou marcado.
Outro ponto que me chamou atenção naquele filme foi a estrutura de um sonho dentro
de outro sonho, e o fato de não ser uma história linear. Saíamos do cinema sem saber bem o
que havia acontecido. Aqueles personagens desfilando pela tela em situações absurdas e
abusivas me deixaram em estado de choque.
Os cinemas, naquela época, não tinham o sistema de som como os de hoje. Recordo-
me de que nas sequências em que os barulhos encobrem algumas falas achei que fosse algum
defeito do equipamento de som, tamanho o meu estranhamento por esse recurso utilizado por
Buñuel. Fui compreender o que aquilo poderia significar muitos anos depois, quando revi o
filme e o achei brilhante.
Queria muito assistir a outros filmes do diretor, mas naquela época não tínhamos
acesso fácil a eles. As locadoras de filmes, em sua maioria, não trabalhavam com filmes
europeus, somente americanos, e assim dependíamos de festivais de cinema alternativos. Fui
assistir a outros filmes de Buñuel muito mais tarde, quando então as locadoras de filmes e os
canais a cabo começaram a diversificar a programação. Mas O Discreto Charme da
Burguesia foi a obra que marcou minha vida. Foi o primeiro filme alternativo a que meu pai
me levou para ver em um festival de cinema, e a primeira obra cinematográfica que conheci
desconstruída e com muita crítica social. Apaixonei-me por cinema e entendi, naquele
momento, que a arte é como uma janela que permite que observemos o mundo através de
múltiplos olhares.
12
Minha formação em Sociologia veio ao encontro de um desejo de compreender melhor
o mundo em que vivia, e alguns mecanismos e práticas sociais. Hoje trabalho com Arte-
Educação em um programa social de educação para crianças de 7 a 12 anos. Acredito que a
arte é uma ferramenta que tem potenciais incríveis de despertar nosso olhar para o mundo e
para nós mesmos. As várias linguagens, cinema, teatro, literatura, dança, música, multimeios
oferecem um caminho de comunicação muito potente. Elas dão voz, dizem o que pode ser
dito, registram fatos, denunciam, delineiam e transformam.
Quando resolvi fazer a Especialização em Discurso e Leitura de Imagem, entrei em
contato com outro universo. Neste curso, muito instigante, conheci teorias de análise de
imagem fixa e em movimento. Também fui apresentada à teoria de Michel Foucault e,
novamente, meu mundo virou do avesso. Fiquei impressionada com as possibilidades e
caminhos de pesquisa que este filósofo traçou. Fiz uma análise de outro filme de Buñuel, O
Anjo Exterminador1, com referencial teórico de Foucault, como trabalho final para esse curso.
Após o término da Especialização, senti vontade de continuar os estudos e, imaginar a
possibilidade de realizar uma análise de O Discreto Charme da Burguesia, em especial, foi
muito estimulante. No Mestrado, foi-me dada a possibilidade de realizar uma análise mais
profunda desta obra. Em alguns momentos foi como voltar no tempo e estar ali com meu pai,
no cinema, fascinada e surpresa com cada sequência poderosa que Buñuel nos oferece.
O que realizei nesta pesquisa foi a análise deste filme de Buñuel, que entrou para a
história da minha vida pessoal e despertou em mim a vontade de ver mais, de enxergar além,
de perceber as pequenas nuances do mundo em que vivemos. Espero que esta análise, feita
por meio do viés foucaultiano, desperte a curiosidade de reflexão a respeito dos temas
explorados por Buñuel.
1 GASPAR, N.; PAJEÚ, H. M.; MUSSARELLI, F.; ANDRETTA, P. I. S.; TORRES, R. F.;
PERREIRA, A. B. (Org.). Discurso e Leitura de imagem. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
13
2 INTRODUÇÃO
O objetivo desta pesquisa é analisar O Discreto Charme da Burguesia, de Luis Buñuel
(1972), por meio de alguns conceitos do referencial teórico metodológico de Michel Foucault:
“saber” e “enunciado discursivo” em suas relações com o “poder” e “verdade”.
Analisar audiovisuais demanda compreender diversos processos teórico-
metodológicos que são específicos para a análise fílmica, pois o que se observa é que um
filme possui diversas manifestações de linguagens, as quais são compostas pela escrita, as
imagens, a sonora, como também a das vestimentas, dos espaços arquitetônicos, entre outras.
Analisar audiovisuais demanda compreender diversos processos teórico-metodológicos que
são específicos para a análise fílmica, pois o que se observa é que um filme, no caso, possui
diversas manifestações de linguagens, as quais são compostas por imagens, escrita, sonora,
como também a das vestimentas, dos espaços arquitetônicos, entre outras. Sendo assim, a
análise de um audiovisual requer do analista que ele se aproprie de teorias, tais quais as da
Semiologia fílmica2; da Semiótica
3; da Análise do Discurso de linha francesa, como ficaram
conhecidas no Brasil4.
Neste sentido, adotamos para a análise do filme O Discreto Charme da Burguesia, de
Luis Buñuel (1972), aspectos da teoria arqueogenealógica de Michel Foucault.
2 Para quem tiver interesse nos estudos da semiologia fílmica, dentre outros do autor, ver: METS, C. A
significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. Tradução de: Jean-Claude Bernardet. 3 Para quem tiver interesse nos estudos da semiótica, que trata também de textos sincréticos (escritos
e/ou visuais), sob perspectivas diferenciadas de, por exemplo, Greimás e Peirce, dentre outros, ver:
BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. Ver também: SANTAELLA,
L.; NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. AUMONT, J.
A imagem. 2. ed. Campinas: São Paulo, 1995. 4 Há diversas perspectivas de teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, sobre as quais,
atualmente, os pesquisadores têm-se debruçado para analisar também textos não verbais, como é o
caso das imagens. Dentre elas destacamos a do filósofo francês: PÊCHEUX, M. Semântica e
discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: EDUNICAMP, 1988. Também a do teórico
russo da Filosofia da Linguagem, que foi introduzido na França por Julia Kristeva, uma das
pesquisadoras do Grupo de Michel Pêcheux: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. E, também: BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec,
1986. Para finalizar estas indicações de leitura sobre análise fílmica neste trabalho, ainda sob a
perspectiva da Análise do Discurso francesa, as obras de Michel Foucault. Dado nosso interesse por
esse teórico, foco central como teoria desta pesquisa, deixamos sinalizadas algumas das suas obras nas
referências.
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Essa escolha teórica feita por nós, aplicada ao filme também escolhido por nós, deu-se
por diversos motivos, dentre os quais os que seguem:
a) Queríamos analisar, nesse momento, este filme e não outro, por algumas das razões
expostas no capítulo um;
b) Queríamos conhecer melhor o posicionamento de Michel Foucault, principalmente,
no que diz respeito a sua compreensão sobre a arqueologia do saber. Ou seja, o que
poderíamos destacar em um filme de uma hora e meia? Quais sequências analisar? Quais
cenas? Estas questões referem-se a enunciados fílmicos verbais e não verbais pronunciados
efetivamente nos audiovisuais. Foucault nos ajudou a encontrá-los, destacá-los e analisá-los.
c) Queríamos compreender as relações existentes entre as sequências que seriam
analisadas e suas relações com o poder e a verdade. Isto porque Foucault possui teorias que
relacionam o saber, o poder e a verdade, e que dizem respeito a compreender o poder em seu
exercício e não apenas em seus efeitos.
d) À medida que a pesquisa foi-se definindo, concentrarmo-nos também em aspectos
da vida de Luis Buñuel, e no cinema surrealista. Deste modo, buscamos também traçar essas
relações.
e) A vida de Buñuel levou-nos ainda a desejar delinear e estudar algumas relações
entre Marx, teórico principal do posicionamento deste diretor, e Foucault.
Assim, o que possibilitou a análise deste filme, com esse aporte teórico, é o fato de
opções e recortes teóricos precisarem ser feitos, tendo em conta, no caso, o ponto de vista
maior da Análise do Discurso de linha francesa, sendo Michel Foucault um dos representantes
desta teoria.
Ter olhado para este filme por tal via analítica, e revelar as práticas discursivas entre
as relações de saber e poder ali apresentadas têm grande relevância, pois apontar focos de
poder é uma forma de luta. Para Foucault,
Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder [...]. E se
designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é
porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse
respeito − forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez
o que fez, designar o alvo − é uma primeira inversão de poder, é um primeiro
passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo, os
dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam,
ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, atualmente
monopolizado pela administração e seus compadres reformadores.
(FOUCAULT, 2013b, p. 138, grifo nosso).
Essa “denúncia” e alguns delineamentos dos efeitos de poder é o que Buñuel buscava
em seus filmes. No caso de O Discreto Charme da Burguesia, mesmo sendo uma obra de
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ficção surrealista, há ecos verídicos de contornos de realidades, com fatos históricos de muitas
nações, inclusive do Brasil, como se poderá observar na análise.
No capítulo três, portanto, iniciamos o traçado teórico-metodológico arqueo-
genealógico de Michel Foucault. Adiantamos que o filósofo não realizou pesquisas
especificamente a respeito da imagem em movimento, mas ele deixou sinalizado sobre a
importância dessas serem realizadas em, dentre outros, “A arqueologia do saber” (2008)5 e,
além disso, diversos pesquisadores têm-se debruçado em vincular estudos foucaultianos aos
audiovisuais, com resultados bastante promissores6. Nesse capítulo foram aplicados conceitos
para identificar o enunciado fílmico, ou seja, para se compreender quais saberes ali poderiam
ser explorados na análise. Foi possível, por meio da análise do conceito sobre “enunciado”, o
qual solicita que se observe: “sujeitos”, “materialidade”, “série” e “relações associativas”
apreender diversos enunciados. Dessa forma, elegemos um deles para a análise: “O barulho
que oculta a discreta violência da burguesia”.
No capítulo quatro, ainda no percurso de Foucault, vinculamos aspectos sobre o
“saber”, já estudados anteriormente, com os conceitos de “poder” e “verdade”, pois eles é que
são aplicados ao filme O Discreto Charme da Burguesia.
No capítulo cinco, nosso olhar se concentra em aspectos da vida de Luis Buñuel e do
cinema surrealista, mirando o filme O Discreto Charme da Burguesia e também traçando
relações entre a ditadura militar deste filme, de cunho aparentemente ficcional, e a ditadura
militar brasileira, ocorrida entre 1964 e 1985. Isto porque acreditamos que conhecer a vida de
Buñuel e suas influências são essenciais para observar o que foi expresso em seu discurso
fílmico. Sua experiência com o movimento surrealista, sua criação católica e o exílio de uma
Espanha que viveu uma ditadura rígida são marcas visíveis em sua obra.
No capítulo seis, estabelecemos um diálogo entre Marx e Foucault, no que se refere à
questão do poder em relação à compreensão de ambos sobre “burguesia”. Sendo assim, há a
necessidade, primeiro, de se recorrer a Marx e a outros historiadores marxistas para
observarmos o conceito de formação de burguesia em classe. Depois, buscamos traçar alguns
paralelos entre Foucault e o marxismo para compreender a posição de Foucault a respeito da
burguesia.
5 FOUCAULT, M. Ciência e saber. In: ______. A arqueologia do saber. [S.l.]: Forense Universitária ,
2008. 1 arquivo digital. p. 218. Outras arqueologias. 6 GASPAR, N. R. Foucault na linguagem cinematográfica. 2004. Tese (Doutorado em Linguística e
Língua Portuguesa)– Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004.
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No capítulo sete, procuramos demonstrar a aplicação dos conceitos “saber” e
“enunciado discursivo” em suas relações com o “poder” e “verdade” de Michel Foucault, tal
como exposto no capítulo quatro, por meio da análise fílmica e aplicação desses conceitos em
várias sequências do filme O Discreto Charme da Burguesia, do diretor Buñuel (1972).
Por meio desse discurso fílmico pudemos compreender melhor o universo de Buñuel e
seu posicionamento com relação ao mundo em que viveu. Com este filme perpetua-se e
reitera-se o posicionamento de Buñuel em relação aos governos ditatoriais, seu
posicionamento frente, no caso, à Igreja Católica, bem como ao movimento da burguesia e às
suas práticas. O diretor revela esse discurso em 1972, na França, porque ali e naquele
momento foi possível a emergência desse enunciado.
Iniciemos a exposição mais detalhada desta dissertação, começando por Foucault e
aspectos da teoria arqueológica.
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3 MICHEL FOUCAULT E O PERCURSO METODOLÓGICO DA ARQUEOLOGIA
DO SABER
O mundo globalizado e as novas tecnologias de informação permitem-nos entrar em
contato com as mais variadas teorias. As novas formas de se fazer pesquisa e as novas
correntes teóricas nos influenciam como pesquisadores a realizar pesquisas de maneiras
alternativas. Questionar cânones, descentrar conhecimentos e degustar novas formas de se
fazer análises é parte do exercício de pesquisar.
Ao optar, assim, pelo referencial teórico de Michel Foucault fizemos uma escolha
ousada, pois este filósofo ao longo de toda sua carreira fez o exercício de questionar teorias e
metodologias já estabelecidas e aceitas. Não pelo prazer em denegrir o estabelecido na
Ciência; ao contrário, o que ele buscou foi inserir ditos humanos científicos com os não
científicos. Essas relações, sem dúvida, são propostas mais propícias e amplas para as
análises, pois não se restringem ao universo e separações estanques entre Ciência e o que não
é do campo científico. Traçar relações entre Ciência e não Ciência é o que ele chamou, grosso
modo dizendo, de “saber”. Analisar os saberes é o que ele definiu como modelo
“arqueológico”.
A “Arqueologia do Saber” é, portanto, e grosso modo ainda dizendo, o “método”
proposto por Michel Foucault para relacionar e analisar discursos sobre um dado tema,
vinculando os científicos aos não científicos.
Analisar discursos, sob o ponto de vista do referencial teórico de Foucault, significa
sair de uma zona de conforto e seguir caminhos alternativos que estabelecem recortes
diferentes para as pesquisas, no caso, sociais. O mais estimulante nessa trajetória é que a
teoria de Foucault não nega outros caminhos, apenas aponta possibilidades mais amplas,
porém seguras.
Sob esta ótica, a escolha de se analisar filmes aponta para o terreno dos discursos não
científicos. A linha de pesquisa do Mestrado ao qual nos atrelamos é em Linguagem,
Comunicação e Ciência. Assim, este trabalho vincula-se também à perspectiva dos estudos
das linguagens e, nela, optamos pelos estudos da Análise do Discurso de cunho foucaultiano.
Foucault não buscou compreender frases, palavras, sílabas, etc., ou seja, ele não se prendeu a
estudos vinculados à Semiologia e tampouco à Semiótica, embora de modo algum
desprezasse tais teorias. Ele se centrou em sua proposta - analisar discursos vinculando-os ao
poder. E é isso que almejamos neste trabalho.
18
Foucault foi um filósofo preocupado com a vida dos homens na atualidade e observou
as coisas ditas, ou melhor, o que permite que algo seja manifesto, materializado através dos
discursos, imagens ou sons em determinada época e local. Para Foucault (2008b), isto ocorre
por meio da análise dos discursos, pois é ela que pode revelar acontecimentos. O que foi dito
e materializado em algum lugar por alguém e estudado, posteriormente, pode revelar
acontecimentos do passado. Olhar ao nosso redor é perguntar-nos sobre os acontecimentos,
sobre possibilidades de se analisar os discursos ditos e reapresentados, via análise discursiva.
Estes surgem no local e momento em que foram produzidos, mas, podem reaparecer em
tantos outros locais, e serem ditos por outros sujeitos, em textos diferenciados.
No contexto do que estamos dizendo, o filme que aqui será analisado revela
acontecimentos discursivos, como se verá, pois ele foi produzido em plena época da ditadura
militar.
Foucault (2007), em suas pesquisas, observa como se dá a relação do homem com o
mundo através da linguagem:
A linguagem confere a perpétua ruptura do tempo e continuidade do espaço,
e é na medida em que analisa, articula e recorta a representação, que ela tem
o poder de ligar através do tempo o conhecimento das coisas. Com a
linguagem, a monotonia confusa do espaço se fragmenta, enquanto se
unifica a diversidade das sucessões. (FOUCAULT, 2007, p. 160).
É por meio da linguagem, de como ela é apresentada e analisada, que conseguimos
visualizar as múltiplas facetas humanas e como o homem apreende e perpetua os
acontecimentos do mundo a seu redor. Nesse sentido, a função do analista é de muita
responsabilidade, pois ele precisa se concentrar no que foi dito, o que significa olhar para o
que foi dito, para as manifestações das linguagens, para os discursos.
Foucault (2008b) entende que os discursos são práticas de vida, que se materializam
em textos e quando analisados discursivamente revelam essas práticas, que se tornam
discursivas. Os discursos são compostos por enunciados, e estes podem ser vistos por meio de
associações que os próprios discursos manifestam e movimentam. Ou seja, são práticas
discursivas que estão diretamente ligadas às relações de saber e poder.
Analisar discursos, assim, leva-nos a observar as relações históricas presentes que nos
mostram as práticas que se perpetuam naquele discurso.
Para Foucault (2008b), analisar um objeto de discurso depende de condições:
As condições para que apareça um objeto de discurso, as condições
históricas para que dele se possa "dizer alguma coisa" e para que dele várias
pessoas possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se inscreva
em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa
19
estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento,
de diferença, de transformação - essas condições, como se vê, são numerosas
e importantes. Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em
qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os
olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se
iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade. Mas esta
dificuldade não é apenas negativa; não se deve associá-la a um obstáculo
cujo poder seria, exclusivamente, de cegar, perturbar, impedir a descoberta,
mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas; o
objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se
encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo,
retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob as
condições positivas. (FOUCAULT, 2008b, p. 50).
Analisar o filme O discreto Charme da Burguesia, portanto, significa perceber que
esta obra é uma produção com uma historicidade, carregada de discursos que revelam práticas
sociais. O discurso para Foucault (2008b) delineia uma realidade que é produzida dentro de
relações de poder, compondo diversos saberes. Sobre a prática discursiva o teórico (2008)
afirma:
[...] gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os
próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes
entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da
prática discursiva. Essas regras definem não a existência muda de uma
realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos.
"As palavras e as coisas" é o título - sério – de um problema; é o título -
irônico - do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela,
afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais
tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos
de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar
coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse
"mais" que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT,
2008b, p. 55).
Para Foucault (2008b), nosso olhar deve se ater às práticas, e todas as práticas estão
ligadas às relações de poder e saber que as engendram. O discurso está além das palavras e do
que simplesmente as frases ou imagens em si, isoladas, expressam, mas é algo com
regularidades próprias.
São as regularidades discursivas que precisamos buscar dentro de um campo
discursivo para compreender esse “sistema de formações conceituais”, como ele (2008)
mesmo diz:
Os elementos que nos propomos a analisar são bastante heterogêneos.
Alguns constituem regras de construção formal; outros, hábitos retóricos;
alguns definem a configuração interna de um texto; outros, os modos de
relações e de interferência entre textos diferentes; alguns são característicos
20
de uma época determinada, outros têm uma origem longínqua e um alcance
cronológico muito grande. Mas o que pertence propriamente a uma formação
discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos, embora
discordantes, que lhe são específicos, é a maneira pela qual esses diferentes
elementos estão relacionados uns aos outros: a maneira, por exemplo, pela
qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de
reescrita; a maneira pela qual o campo de memória está ligado às formas de
hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto; a
maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de
desenvolvimento dos enunciados e os modos de crítica, de comentários, de
interpretação de enunciados já formulados etc. É esse feixe de relações que
constitui um sistema de formação conceitual. (FOUCAULT, 2008b, p. 65,
grifo nosso).
Por “sistema de formações conceituais” entende-se hoje que são enunciados
discursivos que, juntos, formam um dado discurso (ou formação discursiva).
Foucault (2008b) se refere ao discurso como uma prática que regimenta alguns
enunciados e explica que a língua e o enunciado não são a mesma coisa, estão interligados,
pois,
Se não houvesse enunciados, a língua não existiria; mas nenhum enunciado é
indispensável à existência da língua (e podemos sempre supor, em lugar de
qualquer enunciado, um outro enunciado que, nem por isso, modificaria a
língua). A língua só existe a título de sistema de construção para enunciados
possíveis; mas, por outro lado, ela só existe a título de descrição (mais ou
menos exaustiva) obtida a partir de um conjunto de enunciados reais. Língua
e enunciado não estão no mesmo nível de existência; e não podemos dizer
que há enunciados como dizemos que há línguas. Mas basta, então, que os
signos de uma língua constituam um enunciado, uma vez que foram
produzidos (articulados, delineados, fabricados, traçados) de um modo ou de
outro, uma vez que apareceram em um momento do tempo e em um ponto
do espaço, uma vez que a voz que os pronunciou ou o gesto que os moldou
lhes deram as dimensões de uma existência material? (FOUCAULT, 2008b,
p. 96).
Observamos enunciados, na prática de análise desta pesquisa, tendo em vista os
saberes discursivos emanados do filme de Luis Buñuel (1972), O Discreto Charme da
Burguesia. Assim, mediante tantas cenas e sequências, quais enunciados escolher para a
análise? Como selecioná-los? Como descrevê-los? Como associar os saberes oriundos das
materialidades fílmicas e relacioná-los com os poderes que também se encontram dispostos,
juntamente, nos enunciados das cenas e sequências selecionadas?
Foucault oferece o caminho quando propõe que o analista se atenha a observar os
enunciados não somente da língua, ou da imagem, ou do som, mas os discursivos.
Como encontramos um enunciado discursivo neste filme, seguindo a proposta
foucaultiana? É o que buscaremos agora delinear.
21
No posfácio de sua obra A Arqueologia do Saber, afirma:
Na verdade trata-se de descrever discursos [...]. Gostaria de mostrar que
essas unidades formam domínios autônomos, embora não independentes;
regrados, embora em contínua transformação; anônimos e sem sujeito, ainda
que integrem tantas obras individuais [...]. Gostaria de revelar, em sua
especificidade, o nível das “coisas ditas”: sua condição de aparecimento, as
formas de seu acúmulo e encadeamento, as regras de sua transformação, as
descontinuidades que as escondem. O domínio das coisas ditas é o que se
chama arquivo; o papel da arqueologia é analisá-lo. (FOUCAULT, 2008b, p.
242).
Para Foucault (2008b), arqueologia remete à palavra escavação. Arqueologia do saber,
portanto, são escavações sobre os saberes dos homens, encontradas nos textos. Para ele, os
saberes se dão a ver nas relações que podem ser estabelecidas entre os discursos de cunho
científico com os não científicos, ou somente um ou outro. Nessas relações, há regularidades
que os unem e em que se apreende o arquivo discursivo sobre determinado tema.
A análise de um arquivo discursivo não é propriamente histórica, no sentido da
disciplina e teorias da História, mas se firma em historicidades. Ou seja, Foucault oferece
possibilidades para se compreender os entornos históricos ocorridos nos pronunciamentos
discursivos, quais as condições físicas, sociais, políticas que giram à volta de acontecimentos
geradores de discursos, para que se entenda como ocorrem as relações entre os
acontecimentos.
Isto só pode ser realizado por analistas atentos aos diversos discursos pronunciados, na
época, por sujeitos que podem ou não ser distintos. Como aponta o teórico:
Se faço isso, é com o objetivo de saber o que somos hoje. Quero concentrar
meu estudo no que nos acontece hoje, no que somos, no que é nossa
sociedade. Penso que há, em nossa sociedade e naquilo que somos, uma
dimensão histórica profunda, e, no interior desse espaço histórico, os
acontecimentos discursivos que se produziram há séculos ou há anos são
muito importantes. Somos inextricavelmente ligados aos acontecimentos
discursivos. Em um certo sentido, não somos nada além do que aquilo que
foi dito, há séculos, meses, semanas. (FOUCAULT, 2012, p. 252).
Foucault (2008b) esclarece que precisamos compreender o que possibilitou que algo
fosse dito e não outra coisa, naquele lugar e tempo. Isto “[...] significa que não se pode falar
de qualquer coisa em qualquer época [...]” (FOUCAULT, 2008b, p. 50), pois há discursos que
são interditados, interrompidos, cerceados, não divulgados, silenciados, derivando disto a
necessidade de “voltas” na análise discursiva, na busca por outros planos de acontecimentos
possíveis. Assim,
A arqueologia ao invés de considerar que o discurso é feito apenas de uma
série de acontecimentos homogêneos [...], distingue, na própria densidade
dos discursos, diversos planos de acontecimentos possíveis: plano dos
22
próprios enunciados em sua emergência singular; plano de aparecimento dos
objetos, dos tipos de enunciação, dos conceitos, das escolhas estratégicas (ou
das transformações que afetam as que já existem); plano da derivação de
novas regras de formação a partir de regras já empregadas [...]; plano em que
se efetua a substituição de uma formação discursiva por outra. Tais
acontecimentos [...], são para a arqueologia os mais importantes: somente
ela, de qualquer forma, pode fazê-los aparecer. (FOUCAULT, 2008b, p.
193).
Como diz Foucault (2008b, p. 93), “[...] tais acontecimentos [...], são para a
arqueologia os mais importantes: somente ela, de qualquer forma, pode fazê-los aparecer
[...]”. Para se descortinar os acontecimentos discursivos, necessário se faz analisar os
discursos seguindo regras arqueológicas apresentadas pelo filósofo.
Assim sendo, Foucault propõe regras, princípios que sustentam a análise de um
arquivo discursivo composto por enunciados que formam determinados discursos. As práticas
discursivas, oriundas da vida e manifestas em enunciados, instauram os mesmos como
acontecimentos, uma vez aceita a análise sob a ótica do teórico, como é exposto:
Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento,
mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de
acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma
amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. O
problema é, ao mesmo tempo, distinguir os acontecimentos, diferenciar as
redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que
fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das
análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas
significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia
das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio
que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua
e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos
domina e nos determina é belicosa e não linguística. Relação de poder, não
relação de sentido. (FOUCAULT, 2013b, p. 41).
A arqueologia do saber tem o propósito de compreender os saberes pronunciados por
sujeitos em torno de formações de determinados discursos, ou seja, formações discursivas e,
ao mesmo tempo, revelar os poderes neles manifestos. Assim:
A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas, isto
é, deve compará-las, opô-las umas às outras na simultaneidade em que se
apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las
no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as
envolvem e lhes servem de elemento geral. (FOUCAULT, 2008b, p. 177).
As formações de dado discurso iniciam-se, na análise, com a busca dos enunciados
que as irão compor. O enunciado é a “célula” do discurso, e nos dizeres de Foucault (2008b,
p. 111): “De início, desde sua raiz, ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e
status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual”.
23
O enunciado faz “parte de uma série ou de um conjunto”, e é este conjunto que
possibilita apontar e sistematizar que ele se encontra em uma formação discursiva. Esta deve
ser sempre analisada como sendo e fazendo parte de um campo discursivo, o que significa
dizer que a formação discursiva está sempre ligada a alguns saberes. Quando descrevemos um
discurso específico, seja científico, religioso, político ou militar, entendemos que cada um se
estrutura em uma prática discursiva específica, mas não fechada. Para o autor,
Descrever um conjunto de enunciados, não como a totalidade fechada e
pletórica de uma significação, mas como figura lacunar e retalhada;
descrever um conjunto de enunciados, não em referência à interioridade de
uma intenção, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a dispersão
de uma exterioridade; descrever um conjunto de enunciados para aí
reencontrar não o momento ou a marca de origem, mas sim as formas
específicas de um acúmulo, não é certamente revelar uma interpretação,
descobrir um fundamento, liberar atos constituintes; não é, tampouco,
decidir sobre uma racionalidade ou percorrer uma teleologia. É estabelecer o
que eu chamaria, de bom grado, uma positividade. Analisar uma formação
discursiva é, pois, tratar um conjunto de performances verbais, no nível dos
enunciados e da forma de positividade que as caracteriza; ou, mais
sucintamente, é definir o tipo de positividade de um discurso. (FOUCAULT,
2008b, p. 141).
Compreendemos que são os analistas que traçam as relações entre os enunciados
discursivos, buscando dar unidade ao discurso e observando as “práticas discursivas”
pronunciadas e materializadas em textos. O discurso é composto por práticas e, segundo
Foucault (2008b, p. 133),
[...] é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições
de exercício da função enunciativa.
Como ele diz:
A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se mantém fora
de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o que escondem, o
que nelas estava dito e o não-dito que involuntariamente recobrem, a
abundância de pensamentos, imagens ou fantasmas que as habitam; mas, ao
contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se terem
manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma
reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido - e
nenhuma outra em seu lugar. (FOUCAULT, 2008b?, p. 124).
Para elucidar que a “análise enunciativa é uma análise histórica”, no caso do filme O
Discreto Charme da Burguesia, do diretor Buñuel (1972), percebemos isto quando o
personagem do embaixador exerce práticas discursivas específicas ao falar de acordo com as
“regras” e os ditames dos governos ditatoriais dos países sul-americanos daquela época, quais
sejam: autoritários e repressivos.
24
Seguindo a proposta de Foucault (2008b), rastreamos o que foi dito sobre a ditadura
militar no discurso fílmico de Buñuel, localizamos os ditos em campos discursivos, buscando
identificar e relacionar aí os enunciados.
Foucault (2008b) oferece um caminho para encontrarmos a função enunciativa em seu
exercício, por meio da análise da “série”, do “sujeito”, da “materialidade” e do “campo
associado”.
Em se tratando de série, observa-se o enunciado que reiteradamente aparece em
regularidades enunciativas, pois para Foucault:
Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em
geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado
fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no
meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra
sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e
ínfima que seja. (FOUCAULT, 2008b, p. 112).
Detectamos a série, no filme, em três sequências. Nelas o que se observa é a repetição
de barulhos que encobre e silencia a fala de alguns sujeitos/ personagens em favor do grupo
burgueses.
A primeira sequência (12’:25’’) é quando conhecemos os negócios ilícitos de alguns
sujeitos/personagens. A segunda (45’: 36’’) acontece no segundo encontro do embaixador
com uma terrorista. A terceira sequência (1h29’: 41’’) ocorre quando o grupo de burgueses
em questão é preso, mas é libertado logo após.
Outra orientação de Foucault (2008b) para encontrarmos o enunciado é observar o
sujeito que enuncia, e este não é necessariamente o mesmo que o autor ou, no caso, o diretor.
O sujeito pode ser um ou vários. No caso desta pesquisa, os sujeitos enunciadores são vários,
como se verá na análise do capítulo sete. Buñuel é o autor/diretor desta obra.
O campo associado é outra regularidade que buscamos para encontrar o enunciado. É
algo que relaciona, regulariza e une os enunciados formando os discursos.
No caso desta análise, temos os campos que se associam em torno de um sujeito
embaixador que aparece nas três sequências, e sempre há barulho quando ele vai tratar de seus
“negócios” desonestos.
Além dos três princípios para detectar o enunciado - série, sujeito e campo associado,
Foucault (2008b) define outro, a materialidade, que pode se apresentar em diversas
manifestações de linguagens, como em imagens fixas e/ou em movimento, na escrita,
oralidade, etc. Ou seja:
[...] a materialidade do enunciado não é definida pelo espaço ocupado ou
pela data da formulação, mas por um status de coisa ou de objeto, jamais
25
definitivo, mas codificável, relativo e sempre suscetível de ser novamente
posto em questão: sabe-se, por exemplo, que, para os historiadores da
literatura, a edição de um livro publicado sob os cuidados do autor não tem a
mesma importância que as edições póstumas, que os enunciados têm aí um
valor singular, que eles não são uma das manifestações de um único e
mesmo conjunto, mas sim o que é e deve ser repetido. [...] O enunciado não
se identifica com um fragmento de matéria, mas sua identidade varia de
acordo com um regime complexo de instituições materiais. Um enunciado
pode ser o mesmo, manuscrito em uma folha de papel ou publicado em um
livro; pode ser o mesmo pronunciado oralmente, impresso em um cartaz,
reproduzido por um gravador [...]. O regime de materialidade a que
obedecem necessariamente os enunciados é, pois, mais da ordem da
instituição do que da localização espaço-temporal. (FOUCAULT, 2008b, p.
115).
A materialidade, no filme, é vista na imagem em movimento, nos sons, no roteiro, na
legenda do filme.
É dessa maneira que Foucault (2008b) define como podemos encontrar o enunciado
em sua prática, isto é, por meio destes quatro princípios: série, sujeito, campo associado e
materialidade.
Desta maneira é que conseguimos destacar em O Discreto Charme da Burguesia um
enunciado comum: “O barulho que oculta a discreta violência da burguesia”.
Na pesquisa deste filme serão apontados os segmentos fílmicos que ressaltam o
enunciado mencionado. Serão traçadas relações entre os elos das práticas discursivas que
Buñuel manifestou nesta obra de ficção e fatos reais ocorridos na década de 1970.
Destacaremos nas sequências escolhidas a relação entre elas e a história de vida de Luis
Buñuel, os fatos relativos à ditadura militar no Brasil, e o discurso da Igreja Católica. Isto é
possível devido à identificação do enunciado discursivo e, para tanto, aplicaremos os
conceitos arqueológicos na descoberta do mesmo. Foi isto que Foucault denominou por saber.
O saber que será analisado por meio da análise discursiva.
Para Foucault (2008b), apreender somente as relações de saber não é o suficiente para
desenrolar um emaranhado de acontecimentos. Faz-se necessário, também, compreender as
relações de poder que se entrelaçam ao saber. É importante perceber todo o emaranhado ao
redor, relacionando os mecanismos de saber e poder, além de estratégias ali envolvidas para
captar a verdade do que está sendo dito, no caso, no discurso fílmico de Buñuel. É o que
faremos a seguir.
26
4 ASPECTOS SOBRE A TEORIA GENEALÓGICA DE FOUCAULT: PODER E
VERDADE
Tendo em vista que esta pesquisa busca realizar uma reflexão sobre o filme O Discreto
Charme da Burguesia, de Luiz Buñuel (1972), e que este filme clama, vamos dizer assim, por
posicionamentos teóricos que deem respaldo sobre a questão do poder, já que é a respeito
disso que também ele trata, e que, por fim, Michel Foucault é um dos teóricos que ofereceu
especial atenção às relações entre “poder” e “verdade”, é que neste capítulo delinearemos
melhor estes conceitos foucaultianos embasados na teoria genealógica para aplicá-los, depois,
na análise do filme em questão.
Foucault (2012, p. 224), no excerto abaixo, demonstra uma de suas preocupações
quanto às questões relacionadas à verdade/poder e saber/poder:
Há efeitos de verdade que uma sociedade como sociedade ocidental, e hoje
se pode dizer sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade.
Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos
mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder
tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas
produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos
atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam.
Ao instituir a proposta de estudo sobre as relações entre saberes e poderes,
fundamentada na arqueologia do saber (2007, 2008) e na genealogia do poder (2001, 2002,
2010, 2012, 2013), o filósofo aponta que nos distanciemos de uma pesquisa uniformemente
epistemológica. Isto porque a epistemologia considera a verdade e o conhecimento como
parte da Ciência, e a arqueologia estabelece o estudo do homem no universo dos saberes.
No que diz respeito ao poder, Foucault sempre buscou apreender o problema do poder
em suas relações com o saber e a verdade, e ele (FOUCAULT, 2012, p. 221) afirma que quis
fazer “[...] toda uma série de análises do poder [...]”. Procurou compreender, dentre outros,
quais mecanismos de poder são determinados para se produzir um discurso científico, e como
são gerados os efeitos de poder dentro desse processo. Um dos propósitos de suas análises foi
o de realizar conexões entre os saberes. Roberto Machado, na Introdução da Microfísica do
Poder (2013b), chama a atenção para:
A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de
Michel Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pesquisas,
assinalando uma reformulação de objetivos teóricos e políticos que, se não
estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente
colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo
projeto de uma genealogia do poder. (MACHADO, 2013, p. 7).
27
Foucault se preocupou essencialmente com as relações entre o saber e o poder e como
isso atinge o homem, o sujeito, especificamente. A análise arqueológica tem como objeto,
principalmente, os saberes humanos que foram (e são) apresentados em um determinado
tempo histórico; saberes esses advindos das práticas discursivas. A análise genealógica busca
apreender as mudanças das formações de discursos que geram saberes constituídos por
relações de poder. Machado (2013, p. 11) explica a diferença entre a análise arqueológica e a
genealógica:
Digamos que a arqueologia ao procurar estabelecer a constituição dos
saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as
instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam.
Podemos então dizer que a análise que em seguida é proposta tem como
ponto de partida a questão do porquê. Seu objetivo não é principalmente
descrever as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes a partir da
configuração de suas positividades; o que pretende é, em última análise,
explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade
externas aos próprios saberes.
Percebemos então que as análises de Foucault, arqueológicas e/ou genealógicas têm
como objeto principal apreender os saberes humanos. Foucault (2008b, p. 204) entende por
saberes
[...] esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma
prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de
não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar [...]. Um saber é aquilo
que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim
especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir
ou não um status científico [...]; um saber é, também, o espaço em que o
sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu
discurso [...]; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização
e de apropriação oferecidas pelo discurso [...]. Há saberes que são
independentes das ciências (que não são nem seu esboço histórico, nem o
avesso vivido); mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda
prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma.
Foucault (2008b) observa os saberes por meio das práticas discursivas, que são os
meios pelos quais os sujeitos enunciam falando, escrevendo, filmando, fotografando, etc.
Essas produções, materializadas no formato de documentos, de textos, filmes são as
materializações de práticas que os “homens” – sujeitos - fizeram para discursivisar sobre dado
tema, em dada época, em dado local, produzindo saberes.
Foucault (2008b, p. 207) explica ainda que, ao contrário das análises puramente
epistemológicas que percorrem o eixo “consciência-conhecimento-ciência”, a arqueologia do
saber, que tem como eixo teórico procedimentos para analisar discursos, perfaz o caminho
“prática discursiva-saber-ciência”. Com isso, o autor legitima as práticas discursivas advindas
28
de outros saberes que ainda são pouco estudados no campo da Ciência, como os dos
presidiários, dos pacientes psiquiátricos, dos homossexuais, e que estão materializados, por
exemplo, como no caso desta pesquisa, em filmes que veiculam narrativas muitas vezes não
consideradas científicas no âmbito da Ciência.
Considerando os saberes como componente intrínseco da proposta discursiva
arqueológica, Foucault (1972, p. 17), na obra “A ordem do discurso”, atrela o saber ao poder
quando argumenta que “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar [...]”. Dessa forma, há discursos que são considerados e viabilizados como
verdadeiros, amparados por práticas e suportes institucionais que os legitimam, e outros que
poderiam ser legitimados como verdadeiros, mas que são coibidos ou, muitas vezes, não são
veiculados, ou mesmo não são considerados no meio social e científico.
Sendo assim, é necessário na análise discursiva levar-se em conta a veiculação dos
saberes em relação aos poderes que ambos engendram, pois é nesta relação que se percebe,
dentre outros, a produção de verdades. Roberto Machado (2013, p. 28) afirma que para
Foucault o “[...] fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há
relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber
constitui novas relações de poder [...]”. Ou seja:
Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação
de saber [...] todo saber assegura o exercício de um poder [...] todo agente do
poder vai ser um agente de constituição de saber, devendo enviar aos que lhe
delegaram um poder um determinado saber correlativo do poder que exerce.
(MACHADO, 2013, p. 28).
Foucault entende que a maneira de se compreender as relações de saber e poder é
analisando os textos, por meio dos discursos, apreendendo as verdades ali contidas.
Por verdade, o teórico explicita:
[...] o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a cada um
pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros. Não há
absolutamente instância suprema. Há regiões onde esses efeitos de verdade
são perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode
chegar a enunciar as verdades é conhecido previamente, regulados; São, em
geral, os domínios científicos. No caso das matemáticas, é absoluto. No caso
das ciências, digamos empíricas, já é muito mais flutuante. E depois, afora as
ciências, têm-se também os efeitos de verdade ligados ao sistema de
informações: quando alguém, um locutor de rádio ou televisão lhe anuncia
alguma coisa, o senhor acredita ou não acredita, mas isso se põe a funcionar
na cabeça de milhares de pessoas como verdade, unicamente porque foi
anunciado daquela maneira, naquele tom, por aquela pessoa, naquela hora.
(FOUCAULT, 2012, p. 227).
29
Observamos no excerto acima que “há regiões onde esses efeitos de verdade são
perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a enunciar as
verdades é conhecido previamente, regulado”, ou seja, os “domínios científicos”. Mas,
também, os efeitos de verdade ocorrem em domínios não científicos, “ligados ao sistema de
informação”.
Ainda no que diz respeito aos domínios científicos, Foucault (2012, p. 235) enfatiza
que a ciência prioriza o que é, ou julga ser, a verdade. Contudo, ainda uma vez, ele vincula a
verdade aos mecanismos de saber contidos nos textos e aos de poder, como segue.
Desde Platão sabe-se que o saber não pode existir totalmente independente
do poder. Isso não significa que o saber está submetido ao poder, pois um
saber de qualidade não pode nascer em tais condições. O desenvolvimento
de um saber científico é impossível de compreender sem considerar as
mudanças nos mecanismos de poder [...] não se pode pensar o progresso do
saber científico sem pensar mecanismos de poder. (FOUCAULT, 2012, p.
263).
As verdades, assim, encontram-se nos enunciados discursivos. Foucault (2013b, p.
279) afirma que “somos submetidos pelo poder à produção de verdade e só podemos exercê-lo
através da produção de verdade”, e, no mesmo segmento, completa:
No fundo, temos que produzir a verdade como temos que produzir riquezas,
ou melhor, temos que produzir a verdade para poder produzir riquezas. Por
outro lado, estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é
lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao
menos em parte, efeitos de poder.
A verdade é gestada e gerada devido a complexas formas de coerções, dependendo de
cada sociedade e dos seus “regimes de verdade”, “sua política geral de verdade”, que
produzem efeitos de poder:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas
e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, 2013b, p. 52).
Se cada sociedade, em suas particularidades, tem “sua política geral de verdade”,
Foucault (2013b, p. 52) elucida que, historicamente, a “economia política” da verdade como
um todo apresenta cinco características específicas e marcantes:
[1] a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições
que o produzem; [2] está submetida a uma constante incitação econômica e
política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto
para o poder político); [3] é objeto, de várias formas, de um imenso consumo
(circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo
30
social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas);
[4] é produzida e transmitida sob controle, não exclusivo, mas dominante, de
alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército,
escritura, meios de comunicação); [5] enfim, é objeto de debate político e de
confronto social ( as lutas “ideológicas”).
Roberto Machado (2013, p. 27) explica que as análises de Foucault concebem o saber
em sua “materialidade prática” qual “[...] peça de um dispositivo político que, como tal, se
articula com a estrutura econômica. Ou, mais especificamente, a questão para ele é a de como
se formaram domínios de saber a partir de práticas disciplinares [...]” de poderes. Dessa
forma,
A disciplina implica num registro contínuo de conhecimento. Ao mesmo
tempo que exerce um poder, produz um saber. O olhar que observa para
controlar não é o mesmo que extrai, anota e transfere as informações para os
pontos mais altos da hierarquia de poder? As características de poder
disciplinar são aspectos inter-relacionados. [...] Mas além de serem inter-
relacionadas, umas servindo de ponto de apoio às outras, essas técnicas se
adaptam às necessidades especificas de diversas instituições que, cada uma à
sua maneira, realizam um objetivo similar, quando consideradas do ponto de
vista político. (MACHADO, 2013, p. 23).
Nessas relações entre saber e poder e efeitos de verdade daí derivados que Foucault
assentou o projeto genealógico. O projeto genealógico de Foucault, de acordo com Roberto
Machado (2013, p. 28), indica que o conhecimento, seja qual for sua natureza, só existe
dentro de um ambiente político e com condições específicas dentro das quais “[...] se formem
tanto sujeito quanto os domínios de saber [...]”.
Saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem
constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui
novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo
tempo, um lugar de formação de saber [...] em contrapartida, todo saber
assegura o exercício de um poder. (MACHADO, 2013, p. 28).
Por meio de suas análises, demonstrada ao longo de toda a sua obra, Foucault vai
expondo e exemplificando a aplicação dos conceitos derivados de sua teoria
arqueogenealógica, resultando com isso delineamentos de mecanismos de poder que
demarcam efeitos produzidos nos discursos. Mais uma vez, observa-se o intento deste
filósofo, quando formula sua teoria:
À qual regra somos obrigados a obedecer, em uma certa época, quando se
quer ter um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a
economia política? A que se deve obedecer, a que coação estamos
submetidos, como, de um discurso a outro, de um modelo a outro, se
produzem efeitos de poder? Então, é toda essa ligação do saber e do poder,
mas tomando como ponto central os mecanismos de poder, [...] – de uma
história dos mecanismos de poder e da maneira como eles se engrenaram
(FOUCAULT, 2012, p. 221).
31
Machado (2013, p. 26) explicita que a preocupação de Foucault foi a de realizar uma
composição “histórica das ciências do homem”. A genealogia teria como escopo anular a
concepção de ciência como
[...] um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas
condições particulares de existência, instalando-se na neutralidade objetiva
do universal, e da ideologia; um conhecimento em que o sujeito tem sua
relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de
existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode
existir a partir de condições políticas que são as condições para que se
formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber. [...] todo saber é
político [...] porque todo saber tem sua gênese em relações de poder.
(MACHADO, 2013, p. 27).
Observamos que Foucault recusava-se a assumir o posicionamento dos que acreditam
em uma dada ciência – neutra, objetiva e também ideológica -, como única e verdadeira, pois
para ele a ciência também é constituída de mecanismos políticos e, assim, gera saberes daí
derivados.
Além dessa preocupação em demonstrar que “todo o saber é político”, Foucault
(2010b, p. 11) expõe a genealogia como um movimento que leva a “dessujeitar os saberes
históricos” de uma hierarquização dos efeitos de poder, das verdades produzidas pelos
discursos científicos e também a libertá-los de uma classificação rígida, o que permite algum
posicionamento contrário ao “discurso teórico unitário, formal e científico”.
Para Foucault (2013b), “problema de política do enunciado científico” refere-se aos
“efeitos de poder que circulam entre os enunciados científicos”. O que significa dizer que a
questão está na maneira como o enunciado científico é analisado no nível do saber e do poder,
ou seja:
Não é, portanto, uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos,
nascimento de novas verdades), nem tampouco uma alteração da forma
teórica (renovação do paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos).
O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se
regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis
cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou
infirmadas por procedimentos científicos (FOUCAULT, 2013b, p. 39, grifo
do autor).
Nosso olhar deve ser para dentro dos textos. Não importa que poderes incidam sob os
enunciados científicos, mas sim “[...] que efeitos de poder; como e por que em certos
momentos ele [o enunciado] se modifica de forma global.” (FOUCAULT, 2013b, p. 39).
Em se tratando de saber e poder, Foucault, em seus estudos, procurou entender, dentre
outros, os modos como o ser humano se torna sujeito, afirmando que o tema geral de suas
pesquisas é o sujeito, o homem, e não exatamente o poder. Por isso, ele afirma não ter
32
desenvolvido um paradigma sobre o poder, mas busca compreender os mecanismos de poder
que perpassam a sociedade:
Gostaria de observar a maneira como diferentes mecanismos de poder
funcionam em nossa sociedade, entre nós, no interior e fora de nós. Gostaria
de saber de que maneira nossos corpos, nossas condutas do dia a dia, nossos
comportamentos sexuais, nosso desejo nossos discursos científicos e teóricos
se ligam a muitos sistemas de poder que são, eles próprios, ligados entre si.
(FOUCAULT, 2012, p. 252).
Foucault refletiu sobre as relações e os múltiplos mecanismos de poder e saber que são
exercidos no meio social. Toda sua obra permeia a questão do poder, contudo ele não se
interessou em definir o que é o poder, mas sim quais seus efeitos e dispositivos. O filósofo
questiona:
O que é poder? Ou melhor –porque a pergunta: “O que é o poder?” Seria
justamente uma questão teórica que coroaria o conjunto, o que eu não quero
– o que está em jogo é determinar quais são, em seus mecanismos, em seus
efeitos, em suas relações, esses diferentes dispositivos de poder que se
exercem, em níveis diferentes da sociedade, em campos e com extensões tão
variadas. (FOUCAULT, 2010b, p. 13).
Em suas pesquisas, como dissemos anteriormente, Foucault (2013b, p. 282) teve o
cuidado de observar o poder e tentar apreendê-lo “em suas extremidades, em suas últimas
ramificações, lá onde ele se torna capilar”, e não buscar consequências regulares e contínuas.
O autor diz que
[...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais,
principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o
organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-
se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material,
eventualmente violentos. (FOUCAULT, 2013b, p. 282).
Em suas pesquisas Foucault (2013b) não acreditava que responder a perguntas, tais
como quais são as intenções, desejos e objetivos de um suposto detentor do poder, levaria a
uma compreensão dos mecanismos de poder. E, sim,
[...] estudar o poder onde sua intenção - se é que há intenção- está
completamente investida em práticas reais e efetivas; estudar o poder em sua
face externa, onde ele se relaciona direta e imediatamente com aquilo que
podemos chamar provisoriamente de seu objeto, seu alvo ou campo de
aplicação, quer dizer, onde ele se implanta e produz efeitos reais. Portanto,
não perguntar por que alguns querem dominar, o que procuram e qual é sua
estratégia global, mas como funcionam as coisas no nível do processo de
sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos,
dirigem os gestos, regem os comportamentos etc. [...] (FOUCAULT, 2013b,
p. 283).
33
Roberto Machado (2013, p. 17) afirma categoricamente que para Foucault “[...] o
poder não existe, existem práticas ou relações de poder [...]”. Machado (2013, p. 12) reitera
que “[...] não existe em Foucault uma teoria geral do poder [...]”. Ou seja, o poder, para
Foucault, não é algo palpável e concreto que podemos medir e apontar características gerais.
Foucault explica que o poder não está em um lugar determinado ou disseminando-se a
partir de um local específico. Concretamente, o teórico aborda que o poder
[...] é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal
coordenado) de relações, então o único problema é munir-se de princípios de
análise que permitam uma analítica das relações de poder. (FOUCAULT,
2013b, p. 369)
O poder para Foucault não é algo que se possui ou se divide. O poder é exercido em
diversas direções, é algo que transita e está sempre interligado. As relações de poder se dão
nas práticas sociais, nas interações, e somente no concreto exercício do poder, na teia social, é
onde os sujeitos tanto sofrem quanto exercem poder.
Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles [...]
Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos.
O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de
ser um efeito, é seu centro de transmissão. (FOUCAULT, 2013b, p. 284).
O poder, para o teórico, não é estático nem palpável, movimenta-se em todas as
direções. Percebemos aqui uma noção múltipla de poder, vários poderes exercidos em todas
as direções da rede social, exercitando distintos métodos e procedimentos, como Foucault
exemplifica:
A polícia, por exemplo, certamente tem seus métodos - nós os conhecemos -,
mas há igualmente todo um método, toda uma série de procedimentos pelos
quais se exercem o poder do pai sobre seus filhos, toda uma série de
procedimentos pelos quais, em uma família, vemos se enlaçarem relações de
poder, dos pais sobre os filhos, mas também dos filhos sobre os pais, do
homem sobre a mulher, e também da mulher sobre o homem, sobre os filhos.
Tudo isso tem seus métodos e sua tecnologia próprios. (FOUCAULT, 2012,
p. 227).
Foucault discorda do posicionamento que se refere às relações de poder controladas
pelo Estado ou pela dominação de distinta classe, como explicitado melhor no capítulo
anterior. Ele apreende que as relações de poder se estendem além, não sendo o Estado capaz
de englobar todas as esferas concretas dessas relações e mais, o Estado só consegue existir da
maneira como o faz, devido a pequenas ou “micro” relações de poder.
Machado (2013, p. 14) mostra que os caminhos de Foucault nos levam a olhar para as
relações que se dão “em nível capilar”. A “microfísica do poder” direciona a nossa percepção
34
para outro nível, é uma “consideração do poder em suas extremidades, a atenção as suas
formas locais”. E o autor conclui:
O importante é que as análises indicaram que os poderes periféricos e
moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado.
Não são necessariamente criados pelo Estado nem, se nasceram fora dele,
foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho
central. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da
rede social, e nesse complexo os micropoderes existem integrados ou não ao
Estado [...] essa relativa independência ou autonomia da periferia com
relação ao centro significa que as transformações em nível capilar,
minúsculo, do poder, não estão necessariamente ligadas às mudanças
ocorridas no âmbito do Estado. Isso pode acontecer ou não e não pode ser
postulado aprioristicamente. (MACHADO, 2013, p. 14).
O propósito de Foucault é perceber que o exercício dos poderes não provém apenas do
Estado nem de seus “aparelhos”. O poder se organiza como uma rede que engloba a todos.
Busco, ao contrário, ver como, na vida cotidiana, nas relações entre sexos,
nas famílias, entre os doentes mentais e as pessoas sensatas, entre os doentes
e os médicos, enfim, em tudo isso, há inflação de poder. Dito de outro modo,
a inflação de poder, em uma sociedade como a nossa, não tem uma origem
única, que seria o Estado e a burocracia de Estado. (FOUCAULT, 2012, p.
228).
Mesmo em estabelecimentos extremamente hierarquizados, como as Forças Armadas,
não existe uma fonte de exercício de poder única, porque tanto os comandantes como os
comandados exercem poderes e se regulam de maneira recíproca e, assim, eles se mantêm.
O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço
militar, se não houvesse, em torno de cada indivíduo, todo um feixe de
relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor -
àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal ideia? A estrutura
de Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de violento, não
chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos os indivíduos, se
ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégia,
todas as pequenas táticas locais e individuais que encerram cada um entre
nós. (FOUCAULT, 2012, p. 226).
Foucault (2013b, p. 336) afirma que essas estratégias de poder são criadas e
desenvolvidas devido a necessidades e situações em épocas específicas, as quais tomam corpo
aos poucos e depois são elaboradas em “conjuntos coerentes”. Ele exemplifica com o caso dos
dispositivos de poder disciplinar desenvolvidos ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Foucault (2013b, p. 126) também aborda a resistência, elucidando que todas as
relações de poder apresentam resistências, já que “trata-se, ao contrário, de demarcar as
posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de contra-ataque
35
de uns e de outros”. Devido a isto, demarcar as posições dos sujeitos e os modos de ação dos
mesmos, é que ele diz que
[...] não há relações de poder sem resistências; que estas são tão mais reais e
eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de
poder; a resistência ao poder não tem que vir de fora para ser real, mas ela
não é pega na armadilha porque ela é a compatriota do poder. Ela existe
tanto mais quanto ela esteja ali onde está o poder; ela é, portanto, como ele,
múltipla e integrável a estratégias globais. (FOUCAULT, 2012, p. 244).
Roberto Machado (2013, p. 18) argumenta que o poder para Foucault “não é um
objeto, uma coisa, mas uma relação”. E essa característica deflagra que o poder está em todas
as relações e as relações de poder apresentam conflitos e embates.
Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que
se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está
sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças.
E como onde há poder, há resistência, não existe propriamente o lugar da
resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por
toda a estrutura social. (FOUCAULT, 2013b, p. 18).
As relações de poder são relações de conflito, de força, consequentemente, “sempre
reversíveis”. Para ele:
De fato, as relações de poder são relações de força, enfrentamentos, portanto,
sempre reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente
triunfantes e cuja dominação seja incontornável. [...] Quero dizer que as
relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a
possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de resistência e
resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com tanto
mais força, tanto mais astúcia, quanto maior for a resistência. [...] em toda
parte se está em luta - há, a cada instante, a revolta da criança que põe seu
dedo no nariz à mesa, para aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se
quiserem- e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à
rebelião; e é toda essa agitação perpétua que gostaria de tentar fazer
aparecer. (FOUCAULT, 2012, p. 227).
Com Foucault, o que se busca é tentar evitar o olhar do vício de pensar que todo poder
é necessariamente repressivo e procurar compreender como as relações de poder se instalam
nas práticas discursivas.
As práticas discursivas, que gestam e geram o poder, podem ser vistas em
materialidades textuais. É nos textos, portanto, em diversas manifestações de linguagens –
sonoras, escritas, audiovisuais, imagens fixas, dentre outras -, que os discursos se revelam ao
analista que queira estudá-los.
Os discursos alojam os saberes humanos que, por sua vez, demonstram relações de
poderes. Não há saber sem poder e vice-versa, sob o ponto de vista de Foucault.
36
Sendo assim, na materialidade concreta dos discursos em que se analisa os elementos
que formam o sistema de poder de específico acontecimento “[...] a análise consiste em
descrever as ligações e relações recíprocas entre todos esses elementos.” (FOUCAULT, 2012,
p. 248). Elementos esses que associam, em uma análise complexa, relações entre os saberes e
os poderes. É nesta composição que os analistas apreendem os discursos.
Para perceber os mecanismos de poder exercidos pelos sujeitos, no caso, no filme de
Luis Buñuel (1972), analisamos os micropoderes visualizados em práticas vividas, que foram
materializadas discursivamente e circularam em formato de audiovisual fílmico.
Dessa forma, é indispensável examinar as microfísicas dos poderes em seu
funcionamento discursivo material. É necessário perceber a microfísica do poder em suas
relações e redes, e deslocar a análise para a multiplicidade de poderes circulantes. A pesquisa
deve apreender, portanto, o nível em que ela acontece.
Roberto Machado esclarece:
O que Foucault chamou de “microfísica do poder” significa tanto um
deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua.
Dois aspectos intimamente ligados, à medida que a consideração do poder
em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos
lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos
de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo - gestos,
atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. (FOUCAULT, 2013b, p. 14).
Posto isto, Foucault demonstra que é preciso apreender como as estratégias de poder
se embutem no funcionamento das microrrelações de poder. Ele alerta para o fato de que “[...]
há também movimentos de retorno, que fazem com que estratégias que coordenam as relações
de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam
concernidos.” (FOUCAULT, 2013b, p. 371).
As relações de poder, como dissemos anteriormente, são visualizadas nos saberes
encontrados nos discursos que estão nos textos.
A produção de verdades, portanto, ocorre a todo o momento. A verdade está no que é
enunciado discursivamente pelos homens, em materialidades diversas e agrega poder.
Sob o ponto de vista da materialidade fílmica, nesta pesquisa, valemo-nos de um filme
de Buñuel, já que ele, em seus filmes, materializou verdades, conhecimentos, ou seja, saberes
que engendram poderes.
A aplicação de alguns conceitos foucaultianos derivados de princípios advindos de
Arqueologia do saber (FOUCAULT, 2008b) ofereceu subsídios para obtermos o enunciado
discursivo, e foi necessária para encontrarmos alguns dos saberes propostos por Buñuel e
fazermos os recortes dos segmentos que serão, em capítulos posteriores, analisados no filme.
37
O enunciado discursivo que se fez presente, portanto, em algumas sequências fílmicas
desta obra, e que foram analisadas via procedimentos foucaultianos, diz respeito ao
“silenciamento”, como se poderá ver adiante.
Os procedimentos teórico-metodológicos foucaultianos dos quais nos valemos neste
capítulo foram: “saber” e “enunciado discursivo” em suas relações com o “poder” e
“verdade”.
Nossa análise se iniciará a partir dos acontecimentos expostos no filme O Discreto
Charme da Burguesia, demonstrando, através do enunciado discursivo sobre o
“silenciamento”, as dinâmicas de produção de sentido, mecanismos e dispositivos das
relações de saber e poder. Em outras palavras, pretendemos mostrar que as práticas
discursivas enunciadas por Luis Buñuel, através dos sujeitos de seu filme, estabelecem-se e
consolidam-se reiteradamente no meio social ainda hoje, embora o filme não seja considerado
científico e tampouco “verdadeiro”. Importante reiterar que muitos de seus filmes, inclusive
este por nós analisado, embora considerados ficcionais, foram censurados em vários países de
regime ditatorial.
Neste movimento da pesquisa e, neste ponto, julgamos essencial conhecer um pouco
sobre a vida de Luis Buñuel, seu exílio de um país assolado por uma ditadura que durou 35
anos, sua relação turbulenta com a Igreja Católica, sua experiência com o movimento
surrealista. Todos esses precedentes em sua caminhada são pontuados em sua obra e
expressos em seu discurso fílmico, como veremos ao analisarmos mais detalhadamente o
filme por nós escolhido.
38
5 BUÑUEL, O SURREALISMO E O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA
Neste capítulo, nosso olhar será para aspectos da vida de Luis Buñuel, do cinema
surrealista e sobre o filme O Discreto Charme da Burguesia. Também traçaremos relações
entre a ditadura militar deste filme, de cunho aparentemente ficcional, e a ditadura militar
brasileira ocorrida entre 1964 e 1985.
Buñuel teve uma carreira coroada por filmes com críticas sociais contundentes. Sua
relação com o movimento surrealista e a teoria marxista o tornaram sensível à percepção das
injustiças e opressões do mundo que o rodeava. Demonstrou isto desde sua primeira obra
(1928) consagrada em parceria com Salvador Dali, Um Cão Andaluz.
A relação do diretor com a Revolução Espanhola, ainda na juventude, a ditadura de
Franco e o exílio de seu país, bem como a forte religiosidade com que foi criado, deixaram
marcas nítidas em sua produção, como é caso de O Discreto Charme da Burguesia. O filme
tem como sujeito principal um embaixador de um país fictício sul- americano que vive sob
regime ditatorial.
O diretor, com este filme, estava fazendo uma denúncia não apenas ao que seu país, a
Espanha, sofria ainda na época com a ditadura do General Franco, mas estava deixando
registrado em seu discurso fílmico indicações do que realmente acontecia na América Latina.
Iniciamos conhecendo um pouco da vida de Luis Buñuel e o surrealismo.
5.1 Buñuel e o cinema surrealista
Luis Buñuel nasceu em Calandra, pequena cidade de cinco mil habitantes, na
província de Teruel, na Espanha. Em seu livro de memórias, quando ele (1982) escreve sobre
sua cidade natal, faz uma crítica ácida sobre a estrutura de classes sociais ali perpetuada,
demonstrando seu posicionamento com relação à sociedade refletida constantemente em suas
obras, como segue.
Em minha cidade, onde nasci a 22 de fevereiro de 1900, pode-se dizer que a
idade média prolongou-se até a primeira guerra mundial. Sociedade isolada,
imóvel, marcando nitidamente as diferenças entre as classes. O respeito, a
subordinação do povo trabalhador com relação aos senhores, aos grandes
proprietários, pareciam imutáveis, fortemente enraizados aos hábitos antigos.
(BUÑUEL,1982, p. 14).
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Podemos perceber aqui, em sua fala, a presença de uma visão crítica sobre a sociedade
em que cresceu e sobre a injustiça social, quando se refere aos “trabalhadores” subordinados,
aos “grandes proprietários” e ao próprio conceito de sociedade estratificada.
O diretor entrou em contato com várias teorias científicas, dentre elas a marxista,
ainda muito jovem quando, em 1917, época da Revolução Comunista Russa, foi estudar em
Madri. Ao se referir a essas influências que tanto ele quanto seus amigos, moradores da
residência de estudantes, sofreram, explica:
Quanto ao mais devo dizer que nossa consciência política, ainda entorpecida,
mal começava a despertar. Com exceção de três ou quatro de nós, foi preciso
esperar os anos de 1927-28, bem pouco antes da proclamação da república
para que tal consciência se manifestasse. Até então só concedíamos – com
raras exceções- uma atenção discreta às primeiras revistas anarquistas e
comunistas. Estas últimas nos davam a conhecer textos de Lenin e Trotsky.
(BUÑUEL, 1982, p. 76).
Sua geração foi extremamente influenciada pela teoria marxista. Em seu livro de
memórias podemos perceber sua concepção do termo burguesia, quando tece comentários
sobre a guerra da Espanha, ocorrida entre 1936 a 1939:
Eu mesmo, alguns dias, sentia medo. Locatário de um apartamento burguês,
perguntava-me às vezes o que aconteceria se, de repente, no meio da noite,
uma brigada que não foi verificada arrombasse minha porta, para levar-me a
“dar um passeio”. (BUÑUEL, 1982, p. 216, grifo nosso).
Uma grande influência na vida de Buñuel foi o movimento surrealista. Toda sua obra é
permeada pela estética surrealista. Desde muito cedo já sentia compatibilidade com os
conceitos surrealistas em suas produções, mesmo antes de conhecer a concepção teórica
propriamente dita:
O surrealismo foi antes de mais nada uma espécie de apelo ouvido aqui e ali,
nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na Iugoslávia pelas pessoas
que já praticavam uma forma de expressão instintiva e irracional mesmo
antes de se conhecerem. Os poemas que eu publicara na Espanha, antes de
ouvir em surrealismo, comprovam esse apelo que conduzia todos nós para
Paris. Da mesma maneira, Dalí e eu, trabalhando no roteiro de Un Chien
Andalou, praticávamos uma espécie de escrita automática, éramos
surrealistas sem rótulo. Havia algo no ar, como sempre acontece. Mas
acrescento também, no que me diz respeito, que meu encontro com o grupo
foi essencial e decidiu o resto da minha vida. (BUÑUEL,1982, p. 145).
O pesquisador Nadeau (2008, p. 13) afirma que o movimento surrealista se estruturou
nos períodos entre as duas grandes guerras mundiais, teve início em Paris, mas atingiu o
mundo. O surrealismo veio no rastro de outras manifestações artísticas, como o cubismo,
dadaísmo e futurismo, que já demonstravam sinais de rupturas e “[...] é, portanto, sob esses
dois aspectos ao mesmo tempo, que devemos considerá-lo”.
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Entre 1918 e 1940, foi o contemporâneo de acontecimentos sociais,
políticos, científicos, filosóficos de primeira importância. Alguns o
marcaram fortemente, a outros deu seu colorido próprio [...]. Na exposição
Internacional do Surrealismo, realizada em Paris (jan. e fev. de 1938),
estavam representados quatorze países. Ultrapassava fronteiras. (NADEAU,
2008, p. 14).
Ainda de acordo com Nadeau (2008, p . 52), “[...] o ano de 1924 registra a fundação
oficial do grupo surrealista [...]”. Segundo o pesquisador, “[...] o movimento se agrega em
torno de Breton [...]”, que publica a carta O Manifesto do Surrealismo e ali ele o define como
[...] automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe
exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o
funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer
controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou
moral. (BRETON, 2001, p. 40).
Buñuel (1982), em seu livro de memórias, menciona sua participação no grupo
surrealista e nos encontros diários que aconteciam no famoso café Cyrano, ou na casa de
André Breton. Ao discorrer sobre os ideais do grupo, fica bem demarcado um posicionamento
extremamente influenciado pela teoria marxista. O vislumbre de uma revolução os encantava.
Afirmava que o grupo lutava “contra uma sociedade que detestavam, utilizando como arma
principal, o escândalo”. Lutavam
[...] contra as desigualdades sociais, a exploração do homem pelo homem, a
influência embrutecedora da religião, o militarismo grosseiro e colonialista,
o escândalo pareceu-lhes durante muito tempo o instrumento revelador todo-
poderoso, capaz de pôr à mostra as molas secretas e odiosas do sistema que
era preciso derrubar. Rapidamente alguns deles se afastaram dessa forma de
ação, para passar para a política propriamente dita, e principalmente para o
único movimento que nos pareceu digno de ser chamado movimento
revolucionário, o movimento comunista. Daí se originaram as discussões,
cisões, querelas intermináveis. No entanto, o verdadeiro objetivo do
surrealismo não era criar um novo movimento literário, ou pictórico, ou até
mesmo filosófico, mas sim fazer explodir a sociedade, mudar a vida. Em sua
maioria - como, aliás, os señoritos que eu frequentava em Madri – esses
revolucionários pertenciam a boas famílias. Burgueses revoltavam-se contra
a burguesia. (BUÑUEL, 1982, p. 147).
Augustin Vidal7 (2007), ao considerar a entrada de Buñuel no grupo surrealista,
ressalta a influência que este teve na vida e obra do cineasta. Ou seja,
7 Catedrático na Universidade de Zaragoza. Professor doutor de literatura espanhola, de cinema e
outros meios audiovisuais. Professor convidado de Princeton e Nantterre (Paris X). Roterista de
televisão e cinema. Escreveu mais de cinquenta livros sobre cinema, arte e literatura. Autor de vários
estudos sobre Buñuel. Fonte: http://www.conoceralautor.com/autores/ver/Mzgx.
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[...] o seu ingresso no grupo comandado por Breton supunha toda uma opção
ética acima de tudo, cujas funções encaminhavam para a subversão dos
valores burgueses para substituí-los por novos mais respeitosos, com o
incontaminado motor do desejo. Por essa razão, aos olhos do cineasta, o
surrealismo foi, acima de tudo, o herdeiro de Marqués de Sade, por sua vez,
conquistador - com a máxima radicalidade por ele conhecida - da moral
judaico-cristã em que havia sido educado. (VIDAL, 2007, p. 14, tradução
nossa).
Buñuel (1982) descreve sua participação no grupo surrealista e deixa claro que o que o
marcou e ficou para a sua vida foi “esse livre acesso às profundezas do ser, reconhecido e
desejado, esse apelo ao irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que vêm de nosso eu
profundo”; e algumas noções defendidas pelo surrealismo como a de que a sociedade deveria
envergonhar-se do trabalho explorado, como segue.
Acrescento que a maioria das instituições surrealistas foram exatas. Tomo
apenas um exemplo, o do trabalho, valor sacrossanto da sociedade burguesa,
palavra intocável. Os surrealistas foram os primeiros a atacá-lo
sistematicamente, a revelar sua mentira, a proclamar que o trabalho
assalariado é uma vergonha. (BUÑUEL,1982, p. 171).
O diretor Buñuel (1982) cita um de seus filmes, Tristana, em que aproveitou um dos
personagens, Don Lope, para fazer um discurso inflamado a um personagem mudo. O diretor
marca seu posicionamento sobre o trabalho, quando diz:
[...] pobres trabalhadores. Enganados e além do mais pisados! O trabalho é a
maldição. Saturno. Abaixo o trabalho que temos que fazer para ganhar a
vida! Esse trabalho não nos honra, como dizem, só serve para encher a pança
dos porcos que nos exploram. (BUÑUEL,1982, p. 171).
Percebemos referências da vida pessoal de Luis Buñuel tanto no discurso que profere
sobre a Igreja Católica, que é extremamente presente na cultura do povo espanhol, quanto na
sua experiência de luta na Guerra Civil. Esses elementos são visíveis em toda a sua obra.
A Espanha sofreu uma Guerra Civil extremamente violenta, de 1936 a 1939,
terminando com a instauração de um governo ditatorial liderado pelo General Francisco
Franco, que perdurou no poder por 36 anos. De um lado da batalha estavam as forças
nacionalistas e fascistas junto ao Exército, à Igreja e aos latifundiários. Do outro, a Frente
Popular (sindicatos, partidos de esquerda e os partidários da democracia), base do Governo
Republicano Espanhol.
A situação do país nos anos que antecederam a Guerra Civil Espanhola foi de muita
instabilidade econômica e agitação popular. Isso porque, quando a república foi proclamada,
na Espanha, em 1931, a expectativa do povo era a de que a Espanha realizasse uma reforma
que separasse o Estado da Igreja, e que aceitassem o pluripartidarismo, além da liberdade de
42
expressão e organização sindical. Mas o cenário foi outro. Ocorreram muitas invasões de
terras, assassinatos políticos, greves e ferozes enfrentamentos que levaram a uma Guerra Civil
extremamente sangrenta.
O historiador Maurice Crouzet (1958, p. 217) descreve o General Franco como um
“[...] militar prudente, tenaz, católico, odiando profundamente a franco-maçonaria e o
comunismo; dispõe, (...) de um poder ilimitado, que utiliza para proceder verdadeiras
chacinas, antes e depois das operações, e a centena de milhares de prisões [...]”. Em 1937,
Franco declara que o país terá um regime totalitário, e Crouzet (1958, p. 217) explica que o
general “[...] apoiava-se nas forças tradicionais da Espanha, como a Igreja.”
Crouzet (1958, p. 218, grifo nosso), ao descrever a ditadura na Espanha, de Franco,
afirma que foi instaurado um regime fascista diferente do resto da Europa, sendo ali
[...] totalitário, mas totalmente diferente do italiano e do alemão, pelo caráter
muito mais subordinado do partido em relação ao exército, pelo seu
clericalismo acentuado, (...) trata-se, pois de um regime que, em conjunto, é
muito mais tradicionalista do que seus irmãos mais velhos.
Durante a Guerra Civil, Luiz Buñuel foi trabalhar em Paris, depois nos Estados Unidos
e finalmente no México, adquirindo ali a cidadania. Durante 24 anos não pode voltar à sua
terra natal. Devido à ditadura vivida pela Espanha, Buñuel ficou exilado de seu país. Durante
seu retorno, o medo da opressão estava “à flor da pele”.
Retornei à Espanha em 1960 pela primeira vez depois de vinte e quatro anos
[...] Em 1960, naturalizado mexicano já há dez anos, pedi um visto ao
consulado espanhol em Paris. Nenhuma dificuldade. Minha irmã Conchita
foi esperar-me em Port-Bou para dar o alarme em caso de incidente ou
detenção. Mas nada aconteceu. Alguns meses depois, dois policiais à paisana
me procuraram e me informaram polidamente sobre meus meios de
subsistência. Esses foram os únicos contatos oficiais com a Espanha
franquista. (BUÑUEL, 1982, p. 327).
Marques (2010), em sua análise de algumas obras de Buñuel, demonstra que estas
estão permeadas por símbolos religiosos, já que o diretor sofreu grande influência da religião
católica. Segundo o autor,
O catolicismo no cinema de Buñuel sempre está relacionado a algo punitivo
e não consolador porque a religião que lhe foi incutida desde a infância, o
catolicismo que conhecera, era extremamente severo. Espanha e Portugal
foram dois países muito oprimidos por um catolicismo exagerado, mas os
efeitos foram mais problematizados na Espanha e Portugal devido à
influência dos árabes. O conflito de pensamentos e costumes transformou a
Espanha num caldeirão em ebulição, originando um povo que acredita e
vivencia valores opostos. (MARQUES, 2010, p. 60).
43
Deste modo, Luis Buñuel sofreu grande influência da teoria marxista em seu
pensamento, e a demonstrou em suas obras com diversos elementos surreais. Percebemos
também uma emergência significativa em seu discurso pela liberdade, seja em sua crítica
ácida à Igreja Católica e ao exército, ou na independência estética de seus filmes. Até o final
da vida, suas obras foram permeadas por toques da teoria surrealista. É possível perceber
todos esses meandres no filme que será aqui analisado: O Discreto Charme da Burguesia.
5.2 O Discreto Charme da Burguesia
Luis Buñuel lança O Discreto Charme da Burguesia no ano de 1972, em Paris, na
França. O filme fez um enorme sucesso e ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Vidal
(2010, p. 289) descreve “El éxito de El Discreto encanto fue enorme y com ella logro Buñuel
um auténtico impacto entre el gran público. Solo em París fue vista por más de médio millíon
de personas.”8.
Buñuel (1982) sinaliza sobre o que queria enunciar com este filme. Percebemos isso
quando fala sobre a escolha do título do filme:
Enquanto trabalhávamos no roteiro, nunca tínhamos pensado na burguesia.
Na última noite foi no Parador de Toledo, no próprio dia da morte de Gaulle
- decidimos arranjar um título. Um dos que me haviam ocorrido, com
referência a la camargnole, dizia A bas Lénine, ou la virge à l´ércurie. Um
outro, simplesmente: Le charme de la bourgeoisie. Carrière observou que
faltava um adjetivo e, entre mil, discret, foi escolhido. Parecia-nos que com
esse título, le charme discret de la bourgeoisie, o filme adquiria outra forma
e quase que até outro fundo. Víamo-lo de outra maneira. (BUÑUEL, 1982,
p. 351).
O primeiro título imaginado por Buñuel para seu filme deixa explícitas suas intenções
ao contar essa história. Com referência a La Camargnole, esta é, na verdade, o título de uma
canção francesa, de 1792, composta logo após a prisão de Luiz XVI, e que era entoada como
um canto de guerra pelos revolucionários durante a Revolução Francesa. O título cogitado A
bas Lênine, ou seja, Abaixo Lenin, refere-se a Vladimir Ilyich Ulyanov, líder da Revolução
Russa, de 1917, e Chefe de Estado do país. Alguém que, segundo palavras de Trotski, em
8 Tradução livre: “O êxito de O Discreto Charme foi enorme e com ele Buñuel se tornou um autêntico
impacto entre o grande público. Só em Paris foi visto por meio milhão de pessoas”.
44
uma das suas conferências, pronunciada em 27 de novembro de 1932, na Dinamarca, e
traduzida para a Revista da Civilização Brasileira (1968, p.145): “desde o princípio, em sua
juventude, colocou-se sob o terreno do Marxismo e voltou seu olhar para o proletariado [...]”.
A ironia do título vai contra um revolucionário marxista, ícone na época, e deixa óbvio que
esse seria um filme de crítica violenta à burguesia.
Fica evidente que Buñuel fazia de sua obra uma sátira contundente ao grupo que
retrata nesse filme, o dos burgueses, formado pelo Embaixador, seu grupo de amigos
burgueses, Igreja e o Exército. O título que escolheu O Discreto Charme da Burguesia,
mostrou-se mais sutil do que os previamente planejados, mas marca visivelmente seu
posicionamento e influências marxistas, além de mostrar uma visão pessimista da burguesia.
No filme, há um personagem principal, Embaixador Rafael Acosta, de um país fictício
chamado Miranda, situado no Sul Americano. Os amigos do Embaixador são o Senhor e a
Senhora Thévenot e sua irmã Florence, o Senhor a Senhora Sénéchal, além do Bispo,
Monsenhor Dufour. O Embaixador é um personagem central uma vez que, no final, o filme
revela que toda a narrativa deriva de um sonho seu.
A trama gira em torno deste grupo que, entre meandres surrealistas, muitos sonhos
dentro de sonhos, tenta realizar uma refeição e não consegue, pois vários eventos os impede.
Buñuel (1982) explica seu roteiro:
Bastava prosseguir, imaginar diversas situações em que, sem agredir demais
a verossimilhança, um grupo de amigos tenta jantar junto sem conseguir
fazê-lo. O trabalho foi demorado. Escrevemos cinco versões diferentes do
roteiro. Era preciso conseguir um equilíbrio exato entre realidade e a
situação, que tinha que ser lógica e quotidiana, e o acúmulo de obstáculos
inesperados que, no entanto, nunca deveriam parecer fantásticos ou
extravagantes. O sonho veio em nosso socorro, e até o sonho dentro do
sonho (BUÑUEL, 1982, p. 350).
O filme tem início com uma situação em que Buñuel descreve como fato verídico
ocorrido com um amigo seu. O grupo de amigos erra o dia marcado para um jantar na casa do
casal Sénéchal, que os esperava somente para o dia seguinte. Todos resolvem então sair para
jantar e ao chegar ao restaurante percebem que um velório ocorre no local. O dono do
restaurante insiste que servirão um ótimo jantar, mas eles decidem ir embora.
A sequência seguinte apresenta os negócios ilícitos do Embaixador, do Sr. Sénéchal e
do Sr. Thévenot. Eles traficam cocaína e se aproveitam da imunidade de Rafael. Também
conhecemos, nesse momento, uma “terrorista” de Miranda que persegue o Embaixador.
Em seguida, Rafael, o Sr. e a Sra. Thévenot e Florence visitam o casal Sénéchal, em
sua casa. Thévenot mostra como fazer um Martini que, segundo Buñuel, é sua receita pessoal.
45
O casal Sénéchal, num súbito momento de paixão, resolve dar uma escapada até o jardim. Os
convidados, estranhando a demora dos anfitriões, fogem com medo de que a polícia possa
aparecer.
O Bispo Dufour aparece na casa dos Sénéchal para pedir emprego como jardineiro, e
logo é contratado.
Aparece a primeira sequência em leit motif9 que se repete mais três vezes. Vemos o
grupo caminhando em uma estrada, num dia ensolarado. Vidal (2010, p. 281) confirma que
Buñuel pensou em mostrar “uma progresíon que los mostrara cada vez más exhasutos, pero
temió que ello se prestrara a um simbolismo fácil (del tipo: “la burguesia marcha hacia su
ocaso” o algo así) y decidio que todo fuera más neutro”10
.
Posteriormente, vemos as senhoras em um café, um Tenente se senta à mesa e começa
a falar de sua infância, que nos é mostrada. Como o estabelecimento não tem nada para servir,
nem chá, nem café, nem leite, elas vão embora.
A Senhora Thévenot sai do café e vai até o apartamento do Embaixador, que
percebemos ser seu amante. A campainha toca e é o Sr. Thévenot. Eles disfarçam, e o casal
vai embora. Rafael vê pela janela a terrorista entrar em seu prédio. Ele a rende, os dois têm
um embate, ele pede que ela se vá, mas ordena que seus homens a sequestrem, o que eles
fazem ao levá-la embora em um carro.
Os amigos se reúnem novamente na casa do casal Sénéchal para jantar. O Bispo
Dufour aparece e, em conversa com Rafael, mostra sua total ignorância sobre Miranda. Surge
então um Coronel com sua tropa, mas que eram esperados apenas para o dia seguinte. A
anfitriã prepara a casa para acomodar todos para a refeição. Assim que se sentam para comer,
um Sargento aparece com a mensagem de que a tropa deve partir. Mas antes conta um sonho
que, de acordo com Vidal (2010, p. 282), era um sonho recorrente de Buñuel, em que o
personagem está andando por uma rua deserta, encontra-se com um primo morto e depois
com sua mãe também morta. Logo a tropa se retira e o Coronel convida a todos para jantar em
sua casa. Chegam de carro com todos do grupo muito bem vestido e entram em local que
parece estar em reforma. O mordomo os acomoda na mesa e, quando são servidos, percebem
que estão no palco de um teatro cheio de pessoas a observá-los.
9 Reiteração do tema.
10 Uma progressão que os mostrava cada vez mais exaustos, mas temia que se prestaria a um
simbolismo fácil (do tipo: a burguesia marcha ao seu acaso, ou algo do assim). E decidiram que tudo
fosse mais neutro.
46
Segundo Vidal, esse era mais um sonho recorrente de Buñuel. Mas percebemos que
esse é um sonho do qual acorda o Sr. Sénéchal. E logo todos estão na casa do Coronel, em
uma recepção. Alguns convidados assediam o Embaixador com perguntas sobre a situação
política e social de Miranda, o que incomoda muito Rafael, que pensa em partir. O Coronel
insiste nas informações sobre homicídios em Miranda, e o Embaixador ofendido mata-o a
tiros. Mas tudo não passava de um sonho do Sr. Thévenot, que acorda assustado.
Temos, novamente, o leit motif do grupo caminhando na estrada pela segunda vez.
O Bispo, a seguir, está vestido de macacão e cuida do jardim da Senhora Sénéchal,
quando alguém o chama para dar uma extrema unção. Chegando ao local, o moribundo
confessa que matou os pais do religioso. Dufour o abençoa e o perdoa como Bispo, mas antes
de ir embora mata-o com um tiro.
Novamente, o grupo se reúne para uma refeição à casa dos Sénéchal. A polícia aparece
e prende todos eles. Na delegacia, dois policiais falam sobre um Brigadeiro sangrento que
aparece e assombra a delegacia todo dia 14 de junho, e vemos esse Brigadeiro torturando um
jovem. Mas tudo não passava de um sonho do Comissário de Polícia, que recebe um
telefonema do Ministro para soltar o Embaixador e seus amigos.
Depois de soltos, encontram-se novamente na casa dos Sénéchal para jantar. Quando
eles finalmente conseguem, juntos, comer algo, são abordados por um grupo armado que
invade a casa e mata todos. No início do filme, o Sr. Sénéchal comenta que um bando de
Marseillais suspeitava deles. Provavelmente, esse é o grupo que os ataca. Mas tudo não
passava de um sonho do Embaixador, que acorda com fome.
O filme termina com a sequência, de novo, do grupo caminhando na estrada, ou seja,
leit motif pela terceira vez.
O personagem principal, Embaixador Rafael Acosta, representa o governo de um país
fictício da América Latina. Na década de 70, muitos países viviam sob o regime ditatorial
militar. Buñuel, através deste personagem, faz denúncias a este sistema de governo, quando
faz referências em seu discurso à situação política econômica e social de Miranda, bem como
a movimentos estudantis, terroristas (como eram entendidos na época), sequestros, tortura e
assassinatos.
Ao término desta sinopse fílmica de O Discreto Charme da Burguesia, do diretor
Buñuel (1972), observamos relações entre a ditadura militar deste filme, de cunho
aparentemente ficcional e a ditadura militar brasileira, que aconteceu de 1964 a 1985. Embora
de modo sincrético, traçaremos alguns paralelos sobre isso a seguir.
47
5.3 Ditaduras Militares: em “Miranda” e no Brasil
Ao assistir ao filme O Discreto Charme da Burguesia, não podemos deixar de reparar em
várias sequências em que aparecem alusões a fatos ocorridos no Brasil durante os anos da
ditadura militar. Situações como a tortura de um jovem com choque elétrico, referências ao
assassinato de estudantes rebeldes, e o rapto de uma “terrorista” que assediava o Embaixador
nos remetem à realidade que o Brasil viveu.
Buñuel deixou registrado neste filme uma denúncia contundente sobre a ditadura militar,
por isso a importância de nos atermos um pouco nesse capítulo da história tão recente de
nosso país.
O golpe militar ocorrido no Brasil, no dia 31 de março de 1964, pôs fim a qualquer sonho
de um país democrático. O país estava a vislumbrar 21 anos de uma sangrenta ditadura
militar. A deposição pelos militares do então Presidente eleito João Goulart teve apoio de
vários políticos civis. Alfred Stepan (1975, p. 159) explica: “[...] entretanto, este tipo de apoio
civil a um movimento militar é altamente intraduzível em apoio a um governo militar [...]”.
Uma vez que ficou claro que a intenção dos militares era a de não eleger um novo presidente,
esses políticos mudaram sua posição de apoio. Muitos outros políticos civis sofreram
cassações e foram acusados de corrupção pelo governo militar, ou seja, “entre 1967 e 1968,
foi instituída uma série de decretos que declaravam ofensa punível, desacreditar publicamente
nos militares.” (STEPAN, 1975, p. 160).
Logo seguiram outras formas de controle do governo militar à vida civil. Em 1968, no dia
13 de dezembro, passou a vigorar o Ato Institucional número 5 (AI5). Com isso, praticamente
toda liberdade de expressão foi tolhida, pois, dentre outros, esse Ato autorizava o Presidente
da República a agir em detrimento da Constituição Federal, a cassar os direitos políticos de
qualquer pessoa por dez anos, a retirar mandatos de Deputados e Vereadores. Também proibia
manifestações de compleição pública, em casos de crimes políticos. Além de que, apresentou
rígida censura aos meios de comunicação. E, mais assustador, anulava o direito a habeas
corpus11
.
Para os Estados Unidos, como assegura Skidmore (1988, p. 208), o AI5 foi “[...] um
gigantesco retrocesso na marcha do país para o regime constitucional [...]”. O jornal norte-
11
Na Constituição Federal do Brasil encontramos: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer, violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder.” (Art. 5°, LXVIII, da Constituição Federal) (BRASIL, 1988).
48
americano The New York Times, de 18 de dezembro de 1968, trouxe estampado em seu
editorial:
[...] os líderes militares comportam-se como crianças mimadas e empurraram
ainda mais para o futuro o dia com que os brasileiros sonham em que a
gigantesca nação assumirá uma posição de liderança respeitada nas
Américas e no mundo. (SKIDMORE,1988, p. 208).
Em contrapartida, os brasileiros se rebelaram, dentre outros modos, saindo às ruas em
protestos, e, nesse momento, o governo percebeu a força de um dos movimentos que
protestavam: os movimentos estudantis. A polícia, a mando dos militares, como diz Martins
Filho (1996), reprimiu-os de forma extremamente violenta, com perseguições, prisões, tortura
e assassinato. No discurso que proferiu no quarto aniversário da “Revolução”12
de 1964,
Costa e Silva faz menção indireta ao movimento estudantil: “eles pedem sangue, mas o país
prosseguirá sem sangue porque não estamos com a idéia de violência.” (MARTINS FILHO,
1996, p. 42). O que aconteceu foi bem diferente, os ataques aos movimentos estudantis foram
extremamente violentos, resultando em perseguições e prisões.
Nas décadas de 60 e 70, os movimentos estudantis eclodiram no mundo todo. Foram
anos propícios para a irrupção e manifestação desses acontecimentos, já que o mundo
experimentava uma enorme revolução cultural. Todas as manifestações estudantis desse
período perpassaram vários países do mundo e, no Brasil, não foi diferente. Em particular o
ano de 1968 foi profundamente marcado por esses movimentos, pois foi um ano de
verdadeiros exercícios democráticos por parte dos estudantes, mas também de muitos
confrontos violentos entre eles e a polícia. Assim,
O movimento estudantil funcionou, assim, como principal porta-voz dos
descontentamentos da sociedade frente ao regime Militar. Por outro lado, o
resumo já feito sobre a linha das organizações de esquerda que atuavam no
Brasil mostrou que, naquele momento, tomava força a argumentação dos que
consideravam esgotadas as possibilidades de conquistar a democracia por
meios pacíficos. E foi visto, também, que a maioria das organizações que se
lançaram à luta armada recrutou seus militantes especialmente no meio
universitário. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 134).
Octavio Ianni (1993), em sua obra O Labirinto Latino Americano, conjectura sobre
como o Estado militarizado pode ser uma regressão no processo democrático, ou seja, um
“golpe de estado”, “a recorrência autoritária à ditadura” que mesmo com um povo que, na
época, resistia,
[...] todos caíam na rede: dirigentes sindicais, jovens que tinham sido
membros de um centro estudantil, jornalistas que não eram devotos à
12
Muitos estudiosos questionam a legitimidade desta denominação, qual seja: “Revolução”. Hoje o
fato é mais conhecido como Golpe de 1964.
49
ditadura, psicólogos, sociólogos por pertencer a profissões suspeitas, jovens
pacifistas, freiras, e sacerdotes [...] gente que havia sido denunciada por
vingança pessoal e por sequestrados submetidos à tortura. (IANNI,1993, p.
76).
Não sabemos ao certo, mesmo nos dias de hoje, a estatística real das pessoas que
sofreram prisões, torturas e desapareceram durante o governo militar no Brasil. Skidmore
(1988) aponta alguns números referentes ao início do golpe:
O número de detidos em consequência do golpe só pode ser estimado, pois
não divulgaram dados oficiais a respeito: provavelmente o total variou entre
10.000 e 50.000. Muitos foram libertados dentro de dias, e, outros, de
semanas. Chegaram talvez a centenas os que sofreram torturas prolongadas
(mais de um ou dois dias) [...]. No entanto, permanecia o fato de que
elementos da polícia e das forças armadas, devidamente autorizados,
recorreram à tortura. (SKIDMORE,1988 p. 58).
Ações consideradas terroristas se tornaram muito frequentes na época, em geral para
chamar a atenção e simpatia da população. Muito comuns, também, eram os assaltos a bancos
e o dinheiro, segundo Skidmore (1988), servia para subsidiar as operações.
Precisando de dinheiro, aprenderam a técnica de roubar banco e no começo
de 1968 já estavam subtraindo verdadeiras fortunas de intuições bancárias
escassamente policiadas. Estes ataques tornaram-se “uma espécie de exame
de admissão para a aprendizagem das técnicas de guerra revolucionária”, nas
palavras de Marighela. (SKIDMORE, 1988, p. 176).
As ações “terroristas” ou de guerrilha urbana, no Brasil, ficaram mais conhecidas
devido ao sequestro do embaixador americano Elbrick, em quatro de setembro de 1969, mas
elas também exerciam outras ações, como explica Beraldo (1981), em sua obra Guerrilhas e
Guerrilheiros:
As guerrilhas urbanas, na época, consistiam, principalmente, em invasões e
tomadas de rádios para divulgação de manifestos, sequestros políticos com
objetivo de libertação de companheiros [...], expropriação de bancos e carros
pagadores para o financiamento dessas e outras atividades. Além disso,
vários aviões foram tomados e levados para fora do país. (BERALDO, 1981,
p. 255).
Na América Latina, em 1970, outros embaixadores foram sequestrados por
guerrilheiros, como aponta Skidmore (1988):
Em março, o embaixador da Alemanha ocidental Von Spreti foi morto por
guerrilheiros guatemaltecos quando o governo se recusou a libertar 24
prisioneiros políticos. Em julho, o assessor de assuntos policiais dos Estados
Unidos Daniel Mitrione foi sequestrado e morto pelos Tupamaros quando o
governo uruguaio se recusou a negociar sua libertação. (SKIDMORE, 1988,
p. 234).
O pesquisador Skidmore (1988) indica ainda que a guerrilha urbana abusou dessa
ação terrorista e também foi responsável pelo sequestro de outros embaixadores, como Nobuo
50
Okuchi, cônsul geral do Japão, em São Paulo; Ehrenfried von Holleben, embaixador da
Alemanha Ocidental; e o embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher.
Alfred Stepan (2011), em sua obra Os Militares, defende que o período de maior
repressão e violência por parte do governo militar perdurou do ano de 1968 a 1972. Também
esse momento foi o de maior recrudescimento da resistência popular:
A partir do final de 1968 e até início de 1972, o Brasil testemunhou, de um
lado, um surto de resistência de guerrilha urbana e em menor escala rural e,
de outro, o fortalecimento significativo da tendência de linha dura entre os
militares brasileiros dentro do exército. Em 13 de dezembro de 1968, os
chefes militares de linha dura deram o mais violento golpe militar da história
brasileira quando baixaram o Ato Institucional número 5, fecharam o
Congresso, censuraram a imprensa e cassaram os direitos políticos de figuras
eminentes, prendendo até alguns, da sociedade civil e política. Esse foi o
período em que se verificou a existência da tortura em larga escala e da
repressão intensa, centralizada e descentralizada, empreendida pelas forças
de segurança. (STEPAN, 2011, p. 31).
Em 1969, há registros de o governo brasileiro utilizar os mais bárbaros métodos de
tortura. Skidmore (1988) acredita que a tortura transformou-se em um “instrumento de
controle social” que intimidava os mais jovens, desestimulando-os a entrar na luta:
[...] o governo brasileiro estava agora, em meados de 1969, usando todos os
meios (tortura de criancinhas na presença de seus pais, e estupro de uma
mulher por uma verdadeira quadrilha diante do seu marido foram
documentados), para obter informações necessárias ao extermínio da ameaça
guerrilheira. As torturas dos suspeitos, às vezes, duravam até dias, meses,
mesmo quando os inquisidores já haviam perdido a esperança de extrair a
mínima informação. A tortura transformara-se em horrível ritual, num ataque
calculado à alma e ao corpo. (SKIDMORE, 1988, p. 181).
Nos últimos anos, várias informações sobre isso têm vindo à tona. Hoje temos várias
obras e relatos sobre esses fatos, mas na época essas vozes eram brutalmente silenciadas. Os
meios de comunicação sofriam com a censura e manifestações de opinião poderiam ser
consideradas atos subversivos.
A propaganda subversiva podia englobar todo tipo de atividade, como indica o texto
da Arquidiocese De São Paulo (1985, p. 159): “[...] aulas, atividades artísticas, publicações,
edição de livros, panfletagens e pichamento de paredes [...]”. Para o governo militar, subverter
significava tentar mudar o que estava estabelecido; as ações eram, portanto, passíveis de
condenação.
51
O livro Tortura Nunca Mais13
é uma dessas obras e faz um relato impressionante sobre
a tortura no Brasil: “O emprego sistemático de tortura foi peça essencial da engrenagem
repressiva posta em movimento pelo regime militar que se implantou em 1964 [...]”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985 p. 203), como segue:
Do abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no Brasil,
passou, com o regime militar, à condição de “método científico”, incluído
em currículos de formação de militares. O ensino deste método de arrancar
confissões e informações não era meramente teórico. Era prático, com
pessoas realmente torturadas, servindo de cobaias neste macabro
aprendizado. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 32).
A tortura foi utilizada no Brasil com bastante regularidade durante esse período. Era
realizada em homens, mulheres e até crianças, filhos de acusados de práticas subversivas. A
tortura, nesses casos,
[...] não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a
fizesse entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que,
ao favorecer o desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença
condenatória. Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura
visava imprimir á vitima a destruição moral pela ruptura dos limites
emocionais que se assentavam sobre relações efetivas de parentesco. Assim,
crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus
filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos.
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 43).
Grande parte das pesquisas sobre tortura nesse período no Brasil revela que esses atos
estão relacionados em grande parte a um órgão: “Destacamento de Operações Internas (DOI)”
(STEPAN, 2011, p. 46).
Foram criados, também, Centros de Operações de Defesa Interna (CODI) comandados
por militares e, conforme Skidmore (1988, p. 256): “num nível abaixo ficava o DOI”, que era
um núcleo local. O CODI de São Paulo funcionava na sede do Destacamento de Operações
Internas (DOI), conhecido como DOI-CODI. Este Destacamento foi criado em 1970 e,
segundo o projeto Tortura Nunca Mais, tinha controle de todos os órgãos de segurança de sua
região “sejam das Forças Armadas, sejam das policias estaduais e federais”. Dessa forma,
Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército,
providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODIs, passaram a
ocupar o primeiro posto na repressão política e também nas denúncias sobre
violações aos Direitos Humanos. Mas tanto os DOPS (Departamento de
Ordem Política e Social) como as delegacias regionais do DPF
(Departamento de Polícia Federal) prosseguiam atuando também em faixa
própria, em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo,
13
Este livro, organizado pela Arquidiocese do Estado de São Paulo, apresenta os resultados de um
projeto de pesquisa chamado “Brasil Nunca Mais”, que durou cinco anos. Nele foram analisados
processos políticos da Justiça Militar, de 1964 a 1979.
52
interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e matando.
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 74).
Existem muitos relatos sobre os “desaparecidos” durante esses 21 anos de ditadura
militar que o Brasil vivenciou. Stepan (2011, p. 46) ressalta que:
[...] nos período de 1968 a 1970, os grupos da guerrilha foram responsáveis
por 49 mortes, e o governo por sessenta. No mesmo período, houve 216
processos legais, formais, contra guerrilheiros e sete guerrilheiros
“desapareceram” depois de terem sido capturados. Em 1974-1975,
entretanto, nos anos em que as guerrilhas tinham sido claramente derrotadas
e a abertura tinha começado, os “desaparecimentos” ultrapassaram o número
de procedimentos legais.
No final do ano de 1970, segundo Skidmore (1988, p. 249), a guerrilha urbana estava
praticamente extinta, e o início de 1972 deu a impressão de uma diminuição nos casos de
tortura. Mas em meados deste mesmo ano, ele (SKIDMORE, 1988, p. 249) afirma que o
presidente Médici informava que “[...] as restrições às liberdades civis continuariam por causa
da ameaça subversiva [...]”. O autor no mesmo excerto relata que a Anistia Internacional, em
setembro de 1972, encontrou “[...] 1076 casos de tortura no Brasil praticados por nada menos
que 472 torturadores [...]”, ou seja:
[...] o governo Médici afirmou que tinha que proteger o público contra os
conspiradores que queriam mergulhar o Brasil no caos. “Guerra é guerra”,
respondiam os oficiais do exército, quando indagados sobre os métodos que
usavam em seus interrogatórios. (SKIDMORE, 1988, p. 249).
Mas em 1974, a guerrilha no Brasil já não mostrava mais sinais de força. Beraldo
(1981, p. 257) afirma que, “[...] quando o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência, em
1974, a guerrilha no Brasil já era coisa do passado [...]”. Mas as prisões políticas e torturas
não cessaram, sendo analisadas até 1979 pelo projeto Tortura Nunca Mais.
A ditadura militar no Brasil foi e ainda é um assunto delicado e dolorido, mas que não
podemos esquecer para não repetir esse caminho. Contudo, nossa exposição sobre esse
acontecimento político brasileiro refere-se ao filme O Discreto Charme da Burguesia, uma
vez que Buñuel (1972) expõe, em estilo surrealista, esses acontecimentos que foram tão reais
e ainda são tão contemporâneos.
O filme é uma obra que apresenta ao espectador um personagem principal obviamente
preocupado com sua posição política e com os fatos que o rodeiam. Rafael, como dito
anteriormente, é um embaixador de um país da América Latina, nos anos 70, que vivia
claramente sob um regime ditatorial violento e com todos os reveses possíveis, incluindo
tortura, guerrilha e movimentos estudantis, como se verá no capítulo da análise discursiva.
53
Ressalta-se que, em meio a esses acontecimentos políticos brutais que estavam
ocorrendo em toda a América Latina, uma teoria oferecia respostas significativas para o
enfrentamento da situação: o marxismo.
Luis Buñuel em sua juventude entrou em contato com a teoria marxista através do
marxismo russo e mais tarde através do grupo surrealista, do qual fez parte, como revelou em
suas memórias. Essa influência pode ser percebida quando o diretor expõe as outras opções
para o título de seu filme. Uma das ideias era “abaixo Lenin”, o que justifica que a teoria
marxista permeou sua obra. A própria expressão “burguesia”, leva-nos diretamente ao
conceito marxista deste termo. Por isso buscamos esse referencial marxista, para compreendê-
lo melhor bem como realizar uma contrapartida com o pensamento de Foucault, que é nosso
referencial teórico, sobre seu entendimento em aspectos de Marx e a burguesia.
54
6. UM DISCURSO SOBRE O SUJEITO “BURGUESIA” EM BUÑUEL: DIÁLOGOS
ENTRE FOUCAULT E MARX
O objetivo deste capítulo é compreender o conceito de burguesia, uma vez que ela
percorre todo o filme. Os sujeitos a serem analisados são os “burgueses”, o enunciado
encontrado por nós se refere a este grupo “O barulho que oculta a discreta violência da
burguesia”, assim como as relações de poder e saber explicitadas por Foucault perpassam a
noção de burguesia.
Recorremos, então, à definição de Karl Marx sobre burguesia, além de outros
historiadores marxistas para expormos aspectos acerca da teoria marxista. Como nosso
referencial teórico é Michel Foucault, neste capítulo também pontuamos o posicionamento do
filósofo sobre a teoria marxista.
6.1 Marx
Karl Marx (1818-1883), formado em direito e doutor em filosofia, demonstrou cedo
em suas obras grande preocupação com o trabalhador, o operário e as classes baixas. Fez
análises sobre o funcionamento do sistema capitalista, da formação e relações de classes e
defendia a necessidade de grandes mudanças em todos os processos do sistema capitalista
vigente. Conforme Gianotti (1978, p. XII): “Marx proclamava, pois, a luta de classes como
motor da história, e o proletariado como o germe que deveria subverter a estrutura da
sociedade moderna.”
Seu encontro com Friedrich Engels ocorreu devido à produção em conjunto de sua
primeira obra: A Ideologia Alemã, escrita entre 1845 e 1846, mas publicada apenas em 1932.
Juntos redigiram O Manifesto Comunista, em 1848 e, segundo Gianotti, (1978, p. XVI): “o
texto abre-se com uma análise da luta de classes e termina convocando os operários do mundo
inteiro à união.”
Para compreendermos aspectos sobre a noção de burguesia, objeto maior deste
capítulo, três importantes obras de Karl Marx foram por nós observadas: O Manifesto do
Partido Comunista (2011) (como dito, publicada com Engels); O 18 Brumário de Luís
Bonaparte (2008); A Luta de Classes na Alemanha (2010). Nestas obras encontramos
sedimentada a concepção de materialismo histórico, ou seja, fica explícita que a formação do
55
proletariado e da burguesia como classe social é observada por ele como um determinismo
histórico especificamente do modo de produção capitalista.
Logo no início de O Manifesto Comunista, Marx afirma: “A história de todas as
sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Engels
define burguesia em relação ao proletariado, em nota à edição inglesa de O Manifesto
Comunista, de 1888, como:
Por burguesia entendemos a classe dos capitalistas modernos, proprietários
dos meios de produção social e empregadores do trabalho assalariado. Por
proletariado, a classe dos operários assalariados modernos que, não
possuindo meios próprios de produção, reduzem-se a vender a força de
trabalho para poderem viver. (MARX, 2011, p. 23).
De acordo com Gianotti (1978, p. XII), Marx pensava que o homem, para encontrar a
plenitude como “ser genérico e comunitário”, precisava quebrar as amarras que a divisão de
classes geraria. Nessa divisão, a burguesia tem o controle, dentre outros, do lucro e dos juros
do capital.
[...] esses são apenas fenômenos meramente superficiais da produção
burguesa, que não podem ser postos em causa se não forem atingidos os
próprios mecanismos de exploração postos em ação pelo capital. A análise
de tais mecanismos só pode ser feita, segundo Marx, levando em
consideração os resultados da Economia Política, passando em revista, de
uma forma crítica, os processos de produção da mercadoria. (GIANOTTI,
1978, p. XVII).
Do seu ponto de vista, o andamento que o Estado Moderno Alemão seguiu levou à
criação de uma classe “desprovida de todos os direitos e de todos os bens, por isso, de tal
modo alienada que sua liberação só pode ser feita por meio da supressão dos laços opressores
da sociedade como um todo”. Dessa forma,
Para Marx o Estado Alemão de sua época representava o passado dos povos
modernos e a luta contra sua opressão assinalaria, pois, o esforço geral de
emancipar a humanidade de todos os laços que a alienam. O homem, ser
genérico e comunitário, não poderia realizar-se cabalmente sem ultrapassar a
fragmentação das classes, das nações, enfim, de todos os particularismos que
criam obstáculos ao desenvolvimento de seu ser. (GIANOTTI, 1978, p. XII).
Uma análise das relações sociais, para Marx, ou seja, olhar as relações entre classes
dentro de um modo de produção, permitiria compreender os fenômenos sociais ao nosso
redor. O sistema capitalista se basearia, então, em uma relação social essencial - a relação de
compra e venda do trabalho da qual derivariam outras várias. Assim, Marx afirma no início de
O Manifesto Comunista:
A condição essencial da existência e da supremacia da classe burguesa é a
acumulação da riqueza nas mãos privadas, a formação e o crescimento do
capital. A condição de existência do capital é o trabalho assalariado [...]. O
56
progresso da indústria, de que a burguesia é o agente passivo e involuntário,
substitui o isolamento dos operários resultante da concorrência, por sua
união revolucionária em associação [...]. Sua queda e a vitória do
proletariado são igualmente inelutáveis. (MARX, 2011, p. 44).
Weffort (2011, p. 232) ressalta que o marxismo detém grande atenção nos elos
presentes entre economia, classes e política. Segundo o autor, Marx (2011), em O Manifesto
Comunista, faz um desenho do crescimento da burguesia, isto é, “ao mesmo tempo destrutiva
e criadora”. E, ainda que Marx reafirme constantemente sobre a eclosão da burguesia e sua
dimensão revolucionária,
[...] descrever uma classe social é, nos marcos da sociedade moderna ou da
transição para a sociedade moderna, descrever a sua capacidade de derrubar
uma ordem e criar outra. Descrever uma classe é confrontá-la com a sua
“tarefa” revolucionária. No caso da burguesia, esta capacidade de expansão
destrutiva e criadora acaba por estabelecer as condições de sua própria
destruição. A burguesia acaba por “produzir os seus próprios coveiros”, ou
seja, o proletariado. (WEFFORT, 2011, p. 233).
A burguesia é uma classe social que, de acordo com Marx (2011), tornou-se dona dos
meios de produção e é obrigada, de uma maneira ou de outra, a interagir com quem produz,
com sua mão de obra, que são os operários. O modo de produção capitalista gera não apenas
bens materiais, mas uma nova composição social entre as classes. A burguesia é uma dessas
classes que direciona e explora todo o espaço social com a finalidade de ter seus interesses
defendidos, conforme explicita Marx.
A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os
instrumentos de produção; portanto, as relações de produção; e assim, o
conjunto das relações sociais [...]. O revolucionamento permanente da
produção, o abalo contínuo de todas as categorias sociais, a insegurança e a
agitação sempiternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes.
(MARX, 2011, p. 28).
O movimento da burguesia, o de revolucionar os modos de produção, levaria a uma
reação de outra classe aí estabelecida, o proletariado, que passaria a reivindicar seus direitos e
a se rebelar gerando outra configuração social, o socialismo. Este seria uma sociedade com
homens livres sem nenhuma dominação operando sobre eles. O processo histórico
inevitavelmente levaria a sociedade capitalista a esse fim:
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial,
em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição;
empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta, luta que a cada
etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda sociedade ou ao
aniquilamento das duas classes em confronto. (MARX, 2011, p. 23).
O Manifesto Comunista foi escrito na forma de um manual revolucionário para os
proletários, no sentido de orientá-los a se organizar como classe e especialmente como partido
57
e mudar, assim, o sistema da estrutura social vigente. Nesta obra, Marx explica como a
burguesia domina o proletariado:
As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se agora
contra ela mesma. Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe darão
a morte; também engendrou os homens que empunharão essas armas: os
operários modernos, os proletários. O desenvolvimento da burguesia, isto é,
do capital, corresponde, na mesma proporção ao desenvolvimento do
proletariado, da classe dos operários modernos que só sobrevivem à medida
que encontram trabalho, e só encontram trabalho à medida que seu trabalho
aumenta o capital. (MARX, 2011, p. 34).
Alguns historiadores marxistas atribuem à formação da classe burguesa como
resultado de um longo processo de mudanças ocorridas durante o declínio do sistema feudal,
na Idade Média. Marx (2011, p. 38) afirmava que “todo o movimento histórico está, desse
modo, concentrado nas mãos da burguesia. Cada vitória alcançada nessas condições é uma
vitória da burguesia.” A história da formação dos sujeitos burgueses, para o autor, está
intrinsecamente ligada à transformação do modo de produção feudal para o capitalista:
A sociedade burguesa moderna, oriunda do esfacelamento da sociedade
feudal, não suprimiu a oposição de classes. Limitou-se a substituir as antigas
classes por novas classes, por novas condições de opressão, por novas
formas de luta. O que distingue nossa época- a época da burguesia- é ter
simplificado a oposição de classes. Cada vez mais, a sociedade inteira
divide-se em dois blocos inimigos, em duas grandes classes que se
enfrentam diretamente: a burguesia e o proletariado. (MARX, 2011, p. 24).
Weffort (2011, p. 233) afirma que em O Manifesto Comunista Marx explicita a
capacidade revolucionária da burguesia como transformadora da sociedade feudal e
definidora de sua existência como classe. Em seus dizeres:
A revolução da burguesia contra o feudalismo continua – quase sem hiatos,
embora evidentemente transfigurada em seu conteúdo - na revolução do
proletariado contra a burguesia, destinada a destruir o sistema. Mas a
burguesia terminava os seus primeiros embates contra a antiga ordem e já
surgia, por exemplo, nos movimentos de 1848, a nova ordem ameaçada, a do
proletariado. (WEFFORT, 2011, p. 234).
Neste momento de nossa pesquisa, pela importância da questão sobre a formação da
burguesia, objeto central deste capítulo, vamos a seguir nos deter em aspectos históricos de
sua formação, e isto alude à Idade Média.
O historiador Hilário Franco Júnior (2001, p. 17) denomina a época do feudalismo de
“Idade Média Central”, o que abrange os séculos XI até XIII. Esse foi o período de maior
abundância de toda a Idade Média. As mudanças ocorridas nessa fase modificaram totalmente
o sistema feudal, como ele explicita a seguir:
58
Assim reorganizada, a sociedade cristã ocidental conheceu uma forte
expansão populacional com uma consequente expansão territorial, da qual as
Cruzadas são a face mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias
e à maior disponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi
revigorada e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência
nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Mas aquelas
transformações atingiram a própria essência do feudalismo — sociedade
fortemente estratificada, fechada, agrária, fragmentada politicamente,
dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em concorrência com
ela, desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava outros
valores, que expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanças
decorrentes das próprias estruturas feudais. (FRANCO, 2001, p. 17).
Franco (2001, p. 17) elucida que iniciava a fase “feudo-burguesa” que, segundo ele, é
“adjetivação dada por José Luis Romero à fase, entre 1150 e 1300, de grandes transformações
globais que iriam aos poucos descaracterizar a sociedade feudal clássica ou feudo-clerical,
com a lenta, mas firme difusão dos valores sociais burgueses”. No mesmo segmento, o autor
completa o que vem a seguir.
Aquela sociedade passava da etapa feudo-clerical para a feudo-burguesa, na
qual o segundo elemento ia lenta, mas firmemente sobrepujando o primeiro:
emergiam as cidades, as universidades, a literatura vernácula, a filosofia
racionalista, a ciência empírica, as monarquias nacionais. Os conservadores,
como Dante Alighieri, lamentavam tais transformações. Inegavelmente
caminhava-se para novos tempos. (FRANCO, 2001, p. 17).
A vida econômica ao longo do sistema feudal não empregava de maneira substancial o
capital. Era uma sociedade de trocas que se autossustentava. O comércio não existia como o
conhecemos. Normalmente não produziam mais do que necessitavam para consumo próprio.
Huberman (1986) desenha um cenário da Idade Média que era, em comparação com o de
hoje, pouco propício ao florescimento do comércio:
Outros obstáculos retardavam a marcha do comércio. O dinheiro era escasso
e as moedas variavam conforme o lugar. Pesos e medidas também eram
variáveis de região para região. O transporte de mercadorias para longas
distâncias, sob tais circunstâncias, obviamente era penoso, perigoso, difícil e
extremamente caro. Por todos esses motivos, era pequeno o comércio nos
mercados feudais locais. (HUBERMAN, 1986, p. 18).
Com o fim das invasões bárbaras e guerras que afligiram a Europa no século X, a
população aumentou consideravelmente e, entre os séculos XI e XIII, momento denominado
pela Alta Idade Média, houve vários indícios que propiciaram o crescimento populacional.
Como afirma Franco:
Enquanto por volta do ano 1000 talvez não existisse na Europa católica
nenhuma cidade com uma população de 10.000 habitantes, no século XIII
havia 55 cidades com um número de habitantes superior àquele: duas na
Inglaterra, seis na Península Ibérica, oito na Alemanha, 18 na França e
Países Baixos, 21 na Itália. Esta última era não apenas a região mais
59
urbanizada do Ocidente como também a que possuía as maiores cidades.
Ainda que as cifras sejam sempre discutíveis, sem haver consenso entre os
especialistas, Milão, Florença, Veneza e Gênova devem ter ultrapassado os
100.000 habitantes. No restante da Europa Ocidental, apenas Paris parece ter
alcançado tal população. (FRANCO, 2001, p. 27).
Franco (2001, p. 29) aponta o século XIII como o período de maior crescimento
populacional da Idade Média: “[...] 10,42% nos séculos VII-VIII, 11,38% nos séculos IX-X,
16,96% no século XI, 34,04% no século XII, 45,31% no século XIII [...]”.
Alguns motivos apontados por ele são: primeiro o fato de as grandes epidemias terem
diminuído consideravelmente; depois a maneira como aconteciam os grandes enfrentamentos
mudou, já que “[...] a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os
cavaleiros. As batalhas propriamente ditas eram raras [...]” (FRANCO, 2001, p.30).
Outros fatores, ainda de acordo com Franco (200, p. 32), facilitaram o movimento do
crescimento populacional, como o aumento da produção de alimentos e outros insumos
gerados por um “aumento na produtividade agrícola (...) de terras virgens”, e também “o
surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas”, como ele explica:
Este é um ponto fundamental. As inovações tecnológicas não apenas
produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma
melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque,
baseada em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas
proteínas e vitaminas. (FRANCO, 2001, p. 34).
O aumento da população gerou uma demanda por alimentos. Com uma produção
agrícola precária, os feudos não conseguiam abastecer seus habitantes. O modelo
autossustentável não era mais suficiente, exigindo mudanças nos meios de produção.
Muitas transformações ocorreram, foi uma época de muitas mudanças. A escravidão
não mais existia na maioria das regiões da Europa. O trabalho assalariado cresceu
vertiginosamente e, como diz Franco (2001, p. 48), tudo isso ocorreu “em especial no século
XII, graças ao barateamento da mão de obra resultante do aumento populacional”. Todas as
inovações trouxeram à produção, conforme Franco (2001, p. 49), “um excedente agrícola” e
com isso grande estímulo ao florescimento do comércio.
E verdade que somente uma parcela muito pequena da população estava
diretamente envolvida com as atividades comerciais, porém esse segmento
social ganhava crescente importância. Menor no caso daqueles que se
dedicavam ao comércio local, já que o tráfico interno europeu oferecia
poucos riscos, mas envolvia pequenos capitais e gerava baixos lucros. A
razão disso estava, em parte, no fato de toda região produzir os mesmos bens
de necessidades básicas e em parte no alto custo de transporte resultante das
inúmeras alfândegas regionais. Os maiores beneficiados foram os que se
envolveram no comércio a longa distância, baseado no transporte marítimo,
60
bem mais barato, e em mercadorias raras no Ocidente cristão. (FRANCO,
2001 p. 49).
As cidades surgiam e cresciam, segundo Franco (2001, p. 52), estimuladas por
populações saídas dos campos, ou seja,
[...] surgiram cidades praticamente do nada: entre 1100 e 1300 apareceram
cerca de 140 novas cidades no Ocidente. Algumas eram de iniciativa
senhorial (para poder taxá-las), outras nasciam de um entreposto comercial
ou de um mercado rural [...]
Com o aumento das cidades e do comércio a economia também se fortaleceu através
do uso cada vez mais contundente da moeda e da atividade bancária, como se observa em
Franco (2001, p. 56):
Não por acaso também, a atividade bancária nasceu na Itália. Era interesse
de seus comerciantes enfrentar a diversidade de moedas, facilitando sua
uniformização e, portanto, os negócios entre pessoas de diferentes regiões.
Assim, alguns mercadores passaram a dedicar-se ao câmbio (cambiare =
trocar), ficando conhecidos por banqueiros, pois as diversas moedas a ser
trocadas ficavam expostas em bancas, como outra mercadoria qualquer.
Apenas num segundo momento, possivelmente no século XII em Gênova, os
banqueiros ampliaram seu leque de atuação, aceitando depósitos
reembolsáveis a qualquer momento, fazendo empréstimos, transferindo
valores de clientes de uma cidade para outra. Para atrair capitais, pagavam
juros sobre os depósitos. Para evitar aos clientes os inconvenientes de
transporte de valores até importantes praças comerciais, desenvolveram
instrumentos de crédito, protótipos da letra de câmbio e da nota promissória.
As cidades, deste modo, foram se modificando com o desenvolvimento do comércio.
Os mercadores procuraram lugares seguros e estruturados para realizar seus negócios, alguma
área plana ou mesmo no cruzamento de duas estradas. A população começou a inflar as novas
cidades atrás de trabalho e prosperidade. Huberman (1986) explica:
Neles, além disso, havia geralmente uma igreja, ou uma zona fortificada
chamada "burgo" que assegurava proteção em caso de ataque [...]. Henri
Pirenne, cujo levantamento de indícios para demonstrar o modo pelo qual as
cidades da Idade Média se desenvolveram é tão fascinante como qualquer
história de detetive. Uma de suas provas de que o mercador e o habitante da
cidade constituíam uma única e mesma pessoa é o fato de que, logo no início
do século XII, a palavra “mercator”, significando mercador, e “burgensis”,
significando aquele que vive na cidade, eram usadas alternadamente.
(HUBERMAN, 1986, p. 26).
Os termos “burguês” e “burguesia” provavelmente surgem nesse momento histórico e
têm sua origem etimológica na palavra burguensis vinda de burgus, que em latim significa
fortaleza, ou no alemão burgs, lugar fortificado, remetendo à estruturação das cidades.
61
Além disso, as cruzadas que ocorreram entre os anos de 1096 a 127014
estimularam, e
muito, o desenvolvimento do comércio. As feiras locais cresceram e incentivaram o mercado,
além de várias transações financeiras e o surgimento de uma nova profissão, a do negociador
de dinheiro, como diz Huberman:
Depois do século XII, a economia de ausência de mercados se modificou
para uma economia de muitos mercados e com o crescimento do comércio, a
economia natural do feudo autossuficiente do início da Idade Média se
transformou em economia de dinheiro, de um mundo de comércio em
expansão. (HUBERMAN, 1986, p. 25).
O historiador Franco (2001, p. 58) aponta para o que alguns teóricos chamaram de
“capitalismo medieval”. Apesar de ele questionar a expressão, aceita que no final da Idade
Média ocorreram processos similares ao do capitalismo, mas ressalta que na Europa
conviviam juntos vários sistemas econômicos, tanto o “sistema doméstico, representado por
pequenos artesãos independentes”, como o “sistema senhorial baseado em mão de obra
dependente”.
Contudo, adotando-se uma definição ampla de capitalismo - por exemplo,
sistema econômico centrado na posse privada de capital (mercadorias,
máquinas, terras, dinheiro, conhecimento técnico) empregado de maneira a
se reproduzir continuamente, ficando os desprovidos dele obrigados a vender
sua força de trabalho - poderíamos talvez aceitar sua existência nos últimos
séculos da Idade Média. (FRANCO, 2001, p. 58).
Franco, ainda, menciona que,
No final da Idade Média, dos fins do século XV até o século XVI, muitas
crises abalaram a Europa. [...]. Mas em médio prazo a própria crise saneou a
economia, graças ao abandono das terras menos produtivas, à diminuição
populacional e ao início da expansão ultramarina europeia. A partir de mais
ou menos 1470 já se constatava uma lenta recuperação, variável conforme os
locais, mais sensível nos setores secundário e terciário do que no primário.
Em suma, o século XIV e a primeira metade do século XV foram uma fase
de crise conjuntural, que provocaria, porém, abalos estruturais. Dela sairia a
economia moderna. (FRANCO, 2001, p. 59).
As populações das cidades começaram a fazer reinvindicações, querendo, acima de
tudo, gerir suas demandas, seus impostos, seus julgamentos, seus direitos e especialmente sua
terra.
O domínio exercido sobre o monopólio das mercadorias era realizado pelas
associações de mercadores que controlavam qualquer concorrência externa e também os
14
Huberman (1986) afirma que foram oito importantes expedições estimuladas pela Igreja Cristã para
a conquista da terra santa: Jerusalém.
62
preços. Essas associações de mercadores eram tão poderosas que influenciavam na escolha
dos funcionários públicos, como salienta Huberman:
Os direitos que mercadores e cidades conquistaram refletem a importância
crescente do comércio como fonte de riqueza. E a posição dos mercadores na
cidade reflete a importância crescente da riqueza em capital em contraste
com a riqueza em terra. Nos primórdios do feudalismo, a terra, sozinha,
constituía a medida da riqueza do homem. Com a expansão do comércio,
surgiu um novo tipo de riqueza - a riqueza em dinheiro. No início da era
feudal, o dinheiro era inativo, fixo, móvel; agora tornara-se ativo, vivo,
fluido. [...] Agora um novo grupo surgia: a classe média, vivendo de uma
forma nova, da compra e da venda. No período feudal, a posse da terra, a
única fonte de riqueza, implicava o poder de governar para o clero e a
nobreza. Agora, a posse do dinheiro, uma nova fonte de riqueza, trouxera
consigo a partilha no governo, para a nascente classe média. (HUBERMAN,
1986, p. 35).
Para Marx (2011), as classes baixas mal se livraram da dominação dos senhores
feudais e já passaram para o controle da alta burguesia. Isso gerou muita insatisfação. Com o
sabor recente de conquistar suas reivindicações, os trabalhadores se revoltaram e, na última
metade do século XIV, toda a Europa sentiu seu impacto. A Europa passava por um forte
período de unificação das nações. As cidades passaram a ser controladas por um rei ou
príncipe. A configuração das classes, para Marx (2011) mudou, mas
[...] os mercados não paravam de crescer e as demandas, de aumentar. Logo
a manufatura revelou-se insuficiente. Então, o vapor e o maquinismo
revolucionaram a produção industrial. A manufatura deu lugar à grande
indústria moderna; a classe média industrial, aos milionários da indústria,
chefes de verdadeiros exércitos industriais: os burgueses modernos [...]
portanto vemos que a burguesia moderna é produto de um longo
processo de desenvolvimento, de uma série de profundas transformações
no modo de produção e nos meios de comunicação. (MARX, 2011, p. 25,
grifo nosso).
O movimento de abertura de novos mercados crescia a passos largos, e o modo feudal
de produção já há muito não supria as demandas. A burguesia industrial crescia
vertiginosamente e ela, que já havia conquistado grande domínio econômico, após a
Revolução Francesa, conquistou também a influência política, como explicitado a seguir por
Marx (2011, p. 26):
Cada uma das etapas do desenvolvimento da burguesia acompanhou-se de
um progresso político correspondente. Ela foi inicialmente um grupo
oprimido sob o jugo dos senhores feudais, organizando a própria defesa e
sua administração na comuna [...] onde quer que tenha chegado ao poder, a
burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Estilhaçou
sem piedade, os variegados laços feudais que subordinavam o homem e seus
superiores naturais, e não deixou subsistir entre os homens outro laço senão
o interesse nu e cru, senão o frio “dinheiro vivo”.
63
Marx (2011) explica que após a Revolução Francesa a burguesia enriquecida e
fortalecida passou a dominar e estabeleceu um governo da burguesia e para ela. Huberman
(1986) apresenta dados sobre o Código Napoleônico e defende esta proposição:
Destinava-se evidentemente a proteger a propriedade - não a feudal, mas a
burguesa. O Código tem cerca de 2.000 artigos, dos quais apenas 7 tratam do
trabalho e cerca de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e as greves são
proibidos, mas as associações de empregadores, permitidas. Numa disputa
judicial sobre salários, o Código determina que o depoimento do patrão, e
não do empregado, é que deve ser levado em conta. O Código foi feito pela
burguesia e para a burguesia: foi feito pelos donos da propriedade para a
proteção da propriedade. (HUBERMAN, 1986, p. 151).
Marx e Engels (2008) também exploram em O 18 Brumário de Luis Bonaparte a
formação e estruturação das classes dentro do modo de produção capitalista, especificamente,
as segmentações que aconteceram com a burguesia no movimento das lutas ideológicas, e
como essa classe se orientou devido aos mais distintos interesses pessoais. Não é a burguesia
como classe que constrói a estrutura que lhe é mais vantajosa, mas é o modo de produção que
permite que a burguesia se estabeleça como classe. No caso da obra O 18 Brumário de Luis
Bonaparte, Engels (2008), no prefácio à terceira edição alemã, reitera os motivos de Marx ter
realizado uma análise tão minuciosa da segunda República Francesa, pois a França foi o
[...] centro do feudalismo na Idade Média e país modelo, desde a
Renascença, da monarquia unitária de Estados baseada nos testamentos, a
França desarticulou o feudalismo na Grande Revolução e instaurou a
dominação pura da burguesia sob forma clássica, como nenhum outro país
europeu. A luta do proletariado, cada vez mais vigoroso, contra a burguesia
dominante, surgiu aqui sob formas agudas desconhecidas em outros países.
(ENGELS, 2008, p. 12).
Marx (2011, p. 24) defendia que o conflito entre as classes delineava a sociedade e que
esta era dividida basicamente em dois grandes grupos em constante confronto: a burguesia e o
proletariado. Este movimento aconteceria em todas as esferas da malha social que seriam na
verdade resultado dessas lutas. Esse antagonismo entre as classes seria definido pela estrutura
econômica ali desenvolvida. Engels (2008), no prefácio para a terceira edição alemã de O 18
Brumário de Luis Bonaparte, revela:
Foi precisamente Marx quem primeiro descobriu a grande lei da marcha da
história, lei segundo a qual todas as lutas históricas que se desenvolvem quer
no domínio político, religioso, filosófico, quer em outro qualquer campo
ideológico são, na realidade, apenas expressão mais ou menos claras de lutas
entre classes sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos
entre essas classes são, por sua vez, condicionados pelo grau de
desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e
de troca, que é determinado pelo precedente. (ENGELS, 2008, p. 12).
64
A posição de Marx (2008) sobre a Revolução Francesa a concebia como uma
revolução social que necessariamente iria acontecer, como um reforço das palavras proféticas
ditas por ele sobre a mudança da dominação de uma classe por outra. Segundo Eric
Hobsbawm, em sua obra Ecos da Marselhesa (1996, p. 23), isso fazia sentido no raciocínio da
teoria marxista, pois uma vez que “[...] a burguesia se situara diante do feudalismo que a
precedera e que ela derrubara, a nova sociedade socialista seria a próxima fase, mais
adiantada, do desenvolvimento da sociedade humana [...]”.
Hobsbawm (1966) faz uma análise interessante sobre o porquê uma geração de
intelectuais considerou a Revolução Francesa como sendo uma revolução burguesa e social, e
ele (HOBSBAWM, 1996, p. 22) afirma que “[...] hoje, não só está fora de moda ver a
Revolução Francesa como uma ‘Revolução burguesa’, como muitos historiadores excelentes
considerariam tal interpretação como corroída e insustentável [...]”. E reforça:
A concepção que foi questionada é a que vê o século XVIII francês como
uma luta de classes entre a burguesia capitalista ascendente e uma classe
dominante estabelecida de aristocratas feudais, que a burguesia em ascensão,
consciente de si mesma como classe, procurava combater para substituí-la na
condição de força dominante na sociedade. Essa concepção via Revolução
Francesa como o triunfo dessa classe e, consequentemente, como o
mecanismo histórico que acabou com a sociedade feudal-aristocrática e
inaugurou a sociedade burguesa capitalista do século XIX, a qual - deduzia-
se - não teria podido surgir senão quebrando aquilo que Marx, quando falava
da revolução proletária que considerava destinada a derrubar o capitalismo,
chamava de “invólucro da velha sociedade”. (HOBSBAWM, 1996, p. 23).
O historiador Hobsbawm (1996, p. 24) defende que não existia uma classe burguesa
“autoconsciente”, na época, suficientemente forte e estruturada para assumir uma dominação
tão maciça sozinha, e muito menos planejava uma “construção sistemática de uma economia
industrial capitalista”. Podemos observar isso no próprio texto O 18 Brumário de Luiz
Bonaparte, de Marx (2008), o qual apresenta a classe burguesa durante toda a Revolução
Francesa como extremante fragmentada e dividida em vários grupos: baixa burguesia, alta
burguesia, burguesia industrial, burguesia parlamentar. Estes grupos movimentavam-se
conforme as ondas dos acontecimentos, muitas vezes se unindo aos grupos dos proletários,
outras vezes à soberania, sempre seguindo seus interesses, mas não totalmente unida. Marx
(2008) afirma:
À monarquia burguesa de Luís Filipe só pode suceder uma república
burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia governou em
nome do rei, toda a burguesia governará agora em nome do povo. As
reivindicações do proletariado de Paris são devaneios utópicos, a que se deve
por um paradeiro. A essa declaração da Assembleia Nacional Constituinte o
proletariado de Paris respondeu com a Insurreição de junho, o acontecimento
65
de maior envergadura na história das guerras civis da Europa. A república
burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a
burguesia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o
lúmpen proletariado organizado em Guarda Móvel, os intelectuais de
prestígio, o clero e a população rural. (MARX, 2008, p. 24).
Para Hobsbawm (1996), não existem duas classes distintas lutando pela dominação de
maneira tão organizada. Esse processo de luta de classes, que levaria à revolução, é uma
teoria que foi reforçada por uma explicação do próprio surgimento da classe burguesa, já que
“[...] com a conquista da autonomia pelos habitantes dos burgos medievais com relação a seus
senhores feudais, [a burguesia constituiu-se] assim no núcleo daquilo que se tornaria a
moderna classe média [...]”. O autor defende que, na realidade, a classe burguesa foi se
estruturando devido a vários processos e movimentos da história, complementando:
Qualquer que fosse a natureza da classe média ou burguesia do século XIX,
ela era formada pela combinação de vários grupos situados entre a nobreza e
o campesinato, e que antes não julgavam que tivessem, necessariamente,
muito em comum entre si, como uma classe única, consciente de si e tratada
pelos outros como tal [...]A história do século XIX é incompreensível para
qualquer um que suponha que apenas empresários eram realmente
“burgueses”. (HOBSBAWM, 1996, p. 32, grifo do autor).
Hobsbawm (1996) destaca ainda alguns momentos do pensamento de Marx durante
sua análise da Revolução Francesa. Ele também aponta para o momento em que o pensamento
de Marx embasou a teoria marxista de Lenin. O historiador (HOBSBAWM, 1996, p. 55)
afirma que o olhar de Marx sobre a primeira fase da Revolução Francesa, no início de 1840,
foi uma análise detalhada “[...] com lentes de aumento, de modo a poder discernir as lições
para o futuro.” Para ele, Marx
[...] concentrou-se no jacobinismo15
como um fenômeno político que
permitiu à revolução saltar, e não andar, e também alcançar em cinco anos o
que, de outro modo, tomaria muitas décadas[...]. Contudo, durante e depois
de 1848 [...] é essa fase do pensamento estratégico de Marx que formaria o
ponto de partida de Lenin ou, mais precisamente, o dos revolucionários
marxistas russos que se encontrariam [...] em uma situação análoga, em que
a burguesia e o proletariado eram ambos evidentemente fracos demais para
cumprir as tarefas históricas a eles atribuídas pela teoria. Lenin, conforme
seus oponentes gostavam de dizer que era um jacobino. (HOBSBAWM,
1996, p. 55).
15
Jacobino foi o partido político radical majoritário durante a Revolução Francesa. Após a execução
do rei Luís XVI, os jacobinos tomam o poder e inicia-se a chamada “fase do terror”. O líder jacobino
Robespierre executou na guilhotina mais de 30 mil franceses no período de um ano.
66
Neste texto, Hobsbawm (1996) mostra como o pensamento de Marx foi transformado
e adaptado pela teoria marxista russa, tendo como base as obras de Marx e também tendo o
olhar atento aos movimentos ocorridos na Revolução Francesa.
Buscamos compreender os conceitos de “classe social”, “luta de classes”, “dominação”, e
como se dá o olhar através dos referenciais teóricos de Karl Marx dentro do processo de
“consolidação da burguesia em classe”. A partir deste momento relacionaremos aspectos
desses conceitos com a teoria de Michel Foucault, que possui um olhar diferente sobre o
marxismo.
6.2 Foucault e o Marxismo
Foucault (2012), filósofo francês que fundou sua teoria entre meados do século XX até
a década de 1980, percebe que um dos grandes motivos das revoltas do século XX foi gerado
pelos excessos de poder perceptíveis nos regimes capitalistas e nos chamados socialistas ou
fascistas. Esses excessos do “[...] aparelho de Estado, da burocracia, e diria igualmente dos
indivíduos uns com os outros [...]” (FOUCAULT, 2012, p. 220), foram motivos tanto de
revolta quanto foi a pobreza iminente do século anterior, como ele esclarece:
Ora, nada nos instrumentos conceituais, teóricos, que tínhamos em mente
nos permitia captar bem o problema do poder, já que o século XIX, que nos
legara esses instrumentos, só percebeu esse problema através dos esquemas
econômicos. (FOUCAULT, 2012, p. 220).
Foucault julgava importante diferenciar Marx da teoria marxista. Ao se referir a Marx,
ele defende que “Marx é um ser indubitável, um personagem que expressou sem erro certas
coisas, quer dizer um ser inegável como acontecimento histórico: por definição, não se pode
suprimir um tal acontecimento [...]” (FOUCAULT, 2010a, p. 191). Mas ele distingue essa
posição de Marx da teoria marxista:
Não acho muito pertinente acabar com o próprio Marx. Marx é um ser
indubitável, um personagem que expressou sem erro certas coisas, quer dizer
um ser inegável como acontecimento histórico: por definição, não se pode
suprimir um tal acontecimento. Tanto como, por exemplo, a batalha naval do
mar do Japão, ao largo de Tsushima, é um acontecimento que realmente
aconteceu, Marx é um fato que não podemos suprimir: transcendê-lo seria
tão desprovido de sentido como negar a batalha do mar do Japão. Ora, a
situação é totalmente diferente no que concerne ao marxismo. É que o
marxismo existe como a causa do empobrecimento, do dessecamento da
imaginação política [...] refletindo bem em cima disso, é preciso guardar no
espírito que o marxismo não é outra coisa senão uma modalidade de poder
em um sentido elementar. Em outros termos, o marxismo é uma soma de
67
relações de poder ou uma soma de mecanismos e de dinâmicas de poder.
(FOUCAULT, 2010a, p. 191).
As teorias de análise dos fenômenos sociais como o marxismo têm um olhar latente
sobre as estruturas econômicas. Foucault pensa que se seguirmos essa linha de raciocínio
entendendo que as dificuldades econômicas geram os problemas de excessos de poder, uma
vez que essas dificuldades fossem extintas, também assim seriam os excessos de poder, mas
[...] o século XIX nos prometera que no dia em que os problemas
econômicos se resolvessem todos os efeitos de poder suplementar estariam
resolvidos. O século XX descobriu o contrário: podem-se resolver todos os
problemas econômicos que se quiser, [contudo], os excessos do poder
permanecem. (FOUCAULT, 2012, p. 220).
Uma vez que Foucault busca compreender os mecanismos que ocorrem nas relações
de poder, ele tem um olhar para a teoria marxista como sendo um instrumento teórico-
conceitual com um viés inibidor. O marxismo para Foucault é uma ferramenta que funciona,
mas simplifica e limita o olhar para processos mais intrincados.
Eric Hobsbawm (2006), em sua obra “Sobre a história”, questiona as influências de
Karl Marx nas pesquisas históricas:
Isso porque a influência marxista entre os historiadores foi identificada com
umas poucas ideias relativamente simples, ainda que vigorosas, que, de um
modo ou de outro, foram associadas a Marx e aos movimentos inspirados
por seu pensamento, mas não são necessariamente marxistas, ou que, na
forma em que foram mais influentes, não são necessariamente
representativas do pensamento maduro de Marx. Chamemos a essa espécie
de influência de “marxista vulgar”, e o problema central das análises é
separar o componente marxista vulgar do componente marxista análise
histórica. (HOBSBAWM, 2006, p. 159).
O historiador aponta, ainda, alguns exemplos do que chama de marxismo vulgar, que
foram interpretações pobres dos textos de Marx, interpretações essas que Foucault também
via como distorcidas e nas quais não acreditava.
“A interpretação econômica da história”, ou seja, a crença de que “o fator
econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais” (para usar a
frase de R. Stammler); e mais especificamente, do qual dependiam
fenômenos até então não considerados com muita relação com questões
econômicas. Nesse sentido a interpretação se superpunha ao modelo de base
“superestrutura” (utilizado mais amplamente para explicar a história das
ideias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das
observações sofisticadas de alguns marxistas iniciais como Labriola, esse
modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de
dominância e dependência entre a “base econômica” e a “superestrutura”, na
maioria das vezes mediada pelo “interesse de classe e a luta de classes”. [...]
“Leis históricas e inevitabilidade histórica”. Acreditava-se acertadamente,
que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da
68
sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande
parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalizações sobre os
movimentos a longo prazo.[...] interpretado como uma regularidade rígida e
imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas,
ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da
sugestão de que não havia alternativas na história. (HOBSBAWM, 2006, p.
159, grifo do autor).
Para Foucault (2010a, p. 191), a sociedade moderna se relaciona com o marxismo de
uma maneira racional, uma vez que essa teoria surgiu como ciência em tempos de uma
sociedade com um “pensamento racional”. Para compreender as relações de poder em que a
ciência é objeto, nesta sociedade, Foucault afirma que não devemos olhar a ciência
meramente como um conjunto de proposições consideradas verdadeiras, mas que o marxismo
está também ligado a uma “série de proposições coercitivas”. Assim:
Quer dizer que o marxismo como ciência - na medida em que se trata de uma
ciência da história da humanidade - é uma dinâmica de efeitos coercitivos, a
propósito de uma certa verdade. Seu discurso é uma ciência profética que
difunde uma força coercitiva sobre uma certa verdade, não somente em
direção ao passado, mas ao futuro da humanidade. Em outros termos, o que é
importante é que a historicidade e o caráter profético funcionam como forças
coercitivas em relação à verdade. (FOUCAULT, 2010a, p. 191).
Foucault (2010a, p. 192) aponta outras características do marxismo. Uma delas é que a
teoria Marxista “não pode existir sem um partido político”, e a outra é “o fato de que o
marxismo não pôde funcionar sem a existência de um Estado que tinha necessidade dele
como filosofia”, ou seja:
Os Estados de antes da Revolução Francesa eram sempre fundados na
religião. Mas aqueles de após a Revolução Francesa fundaram-se no que
chamamos de filosofia. [...] Naturalmente, antes do século XVIII, jamais
houve Estado ateu. O Estado fundava-se necessariamente na religião. Por
consequência, não podia haver Estado filosófico. Depois, mais ou menos a
partir da Revolução Francesa, diferentes sistemas políticos se estabeleceram,
explícita ou implicitamente, à procura de filosofia. Penso que é um
fenômeno realmente importante. É evidente que uma tal filosofia se
desdobra e que suas relações de poder deixam-se arrastar pela dinâmica dos
mecanismos de Estado. (FOUCAULT, 2010a, p. 192).
É importante compreender que o posicionamento de Foucault (2010a, p. 192) com
relação à teoria marxista se baseia em três aspectos: o marxismo como “discurso científico”;
“profecia”; e “filosofia de estado ou ideologia de classe”. Acima de tudo, tais aspectos estão
conectados às relações de poder desenvolvidas neles.
Foucault (2010a, p.192), quando questionado sobre a necessidade de se libertar do
marxismo, responde que o ponto é mais acerca da necessidade de se libertar “da dinâmica das
relações de poderes ligadas a um marxismo que exerce suas funções” do que da teoria em si.
69
Foucault (2010a, p. 193) reforça que Marx é “uma existência histórica”, o que significa dizer
que ele, como homem do seu tempo, está vinculado ao século XIX e aí encontra êxito, como
segue:
Colocando esse fato em evidência, será preciso atenuar as relações de poder
ligadas ao caráter profético de Marx. Ao mesmo tempo, Marx certamente
enunciou um certo tipo de verdade; pergunta-se se suas palavras são
universalmente justas ou não, de que tipo de verdade era detentor, e se, à
força de tornar essa verdade absoluta, ele lançou ou não as bases de uma
historiologia determinista: convém frustrar esse tipo de debate.
Demonstrando que Marx não deve ser considerado como um detentor
decisivo da verdade, parece necessário atenuar ou reduzir efeito que o
marxismo exerce como modalidade de poder. (FOUCAULT, 2010a, p. 193).
Para Foucault (2010a, p. 202), o marxismo, uma vez vinculado às declarações de
Marx, pode ser considerado “o conjunto de modos de manifestação do poder”. A fim de
compreendê-lo devemos esquadrinhar os modos de manifestação do poder:
Sofremos, hoje, esse poder, seja com passividade, com zombaria, com temor
ou com interesse, mas é preciso se libertar disso completamente. É preciso
examinar, sistematicamente, isso, com o real sentimento de estar
completamente livre em relação a Marx. Certamente ser livre, a respeito do
marxismo, não significa remontar à fonte para saber o que Marx
efetivamente disse, alcançar sua palavra em estado puro e considerá-la como
a única lei. Isso não significa também revelar, por exemplo, com o método
althusseriano, como a verdadeira palavra do profeta Marx foi mal
interpretada. O importante não está nesse tipo de questão de forma. Mas,
como lhe disse, reverificar o conjunto das funções dos modos de
manifestação do poder que estão ligados à palavra de Marx me parece
constituir uma tentativa válida. (FOUCAULT, 2010a, p. 203).
Foucault (2010a, p. 203) apreciava as produções históricas de Marx, como O 18
Brumário de Luis Bonaparte; As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850, e afirmou que
não seria possível realizar uma análise exata sobre estas obras, mas que estas “[...]
ultrapassam de longe, é inegável, aquelas de seus contemporâneos por sua perspicácia, sua
eficácia, suas qualidades analíticas, em todo caso, radicalmente, as pesquisas posteriores [...]”.
A questão nestas obras históricas de Marx é que, segundo Foucault (2010a, p. 203), elas
sempre se encerravam com “profecias sobre o futuro próximo”, e a maioria das profecias não
se realizou. Isso ocorre, especificamente, com as quedas da ditadura burguesa e do sistema
capitalista, e também com o desaparecimento do Estado. Nas palavras de Foucault:
Parece-me que o que se produz na obra de Marx é, de alguma maneira, um
jogo entre a formação de uma profecia e a definição de um alvo. Nos fatos, a
queda de Napoleão III constituía menos uma profecia do que um objetivo a
alcançar pela luta do proletariado. Mas os dois discursos - essa consciência
de uma necessidade histórica, a saber, o aspecto profético, e o objetivo da
luta - não puderam levar a termo seu jogo. Isso pode se aplicar às profecias
de longo prazo. Por exemplo, a noção do desaparecimento do Estado é uma
70
profecia errônea. De minha parte, creio que o que se passa concretamente
nos países socialistas pressagiam a realização dessa profecia. Mas, no
momento em que se define o desaparecimento do Estado como um objetivo,
a palavra de Marx toma uma realidade jamais alcançada. Observa-se,
inegavelmente, uma hipertrofia do poder ou um excesso de poder tanto nos
países socialistas como nos capitalistas. E creio que a realidade desses
mecanismos de poder, de uma complexidade gigantesca, justifica, do ponto
de vista estratégico de uma luta de resistência, o desaparecimento do Estado
como objetivo. (FOUCAULT, 2010a, p. 204).
Foucault (2010a, p. 204) aponta o Partido Comunista como uma influência definitiva
na trajetória da teoria marxista ocidental. Quando se refere ao Partido “Leninista”, Foucault
(2010a, p. 205) explica que “[...] não foi Lenin que o imaginou primeiramente, mas lhe demos
esse nome porque foi concebido em volta dele [...]”. Ele ainda afirma no mesmo segmento
que “[...] em primeiro lugar é no partido que o proletariado se identifica como classe [...]”,
pois dentro do partido “[...] as vontades individuais e subjetivas tornam-se uma espécie de
vontade coletiva [...]”, mas esta vem mascarada de vontade individual. Desta forma,
O Partido transforma a multiplicidade de vontades individuais em uma
vontade coletiva. E, por essa transformação, ele constitui uma classe como
sujeito. Em outros termos, ele constitui uma espécie de sujeito individual. É
assim que se tornou possível a ideia do proletário. “O proletariado existe
porque o Partido existe”. É pela existência do Partido e através dessa
existência que o proletariado pode existir. O Partido é, por consequência, a
consciência do proletariado, ao mesmo tempo que, para o proletariado como
único sujeito individual, é sua condição de existência. (FOUCAULT, 2010a,
p. 206, grifo do autor).
Para Foucault (2010a, p. 206), os partidos políticos tiveram muita influência na teoria
marxista, na formação da teoria marxista, especialmente porque se baseavam na teoria de
Marx como “única verdade” e a interpretavam como precisavam, e essa passou a ser sua
racionalidade. Assim “[...] as múltiplas vontades individuais eram, por consequência,
aspiradas pelo Partido, e, por sua vez, a vontade do Partido desaparecia sob a máscara de um
cálculo racional conforme a teoria, representando a verdade [...]”, não sendo possível desta
maneira apreender a diversidade de vontades ali envolvidas. Foucault defende a necessidade
de que as várias vozes existentes sejam ouvidas e que não nos apeguemos a um “único
pensamento normativo”.
Será preciso destruir a ideia de que a filosofia é o único pensamento
normativo. É preciso que as vozes de um número incalculável de sujeitos
falantes ecoem e se faça falar uma inumerável experiência. Não é necessário
que o sujeito falante seja sempre o mesmo. Não é necessário que somente
ecoem as palavras normativas da filosofia. É preciso fazer falar todas as
espécies de experiências, dar ouvidos aos afásicos, aos excluídos, aos
moribundos, pois estamos no exterior, enquanto são eles que efetivamente
enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas. Creio que a tarefa de um
71
praticante da filosofia, vivendo no Ocidente, é a de dar ouvidos a todas essas
vozes. (FOUCAULT, 2010a, p. 207).
Foucault (2010b, p.7) também se refere ao marxismo como sendo uma teoria
“envolvente e global” que traz desfechos analíticos com sentido universalista, e ele afirma que
esse tipo de teoria tem na realidade um “efeito inibidor” sobre o tipo de análise que realiza.
Assim,
[...] seria o que se poderia chamar de efeito inibidor próprio das teoria
totalitárias, quero dizer, em todo caso, das teorias envolventes e globais. Não
que essas teorias envolventes e globais não tenham fornecido e não forneçam
ainda, de uma maneira bastante constante, instrumentos localmente utilizáveis:
o marxismo e a psicanálise estão precisamente aí para prová-lo. Mas elas só
forneceram, acho eu, esses instrumentos localmente utilizáveis com a
condição, justamente, de que a unidade teórica do discurso fique como que
suspensa, em todo caso recortada, cindida, picada, remexida, deslocada,
caricaturada, representada, teatralizada, etc.. (FOUCAULT, 2010b, p. 7).
As teorias globalizantes não abrangem o que Foucault acredita ser necessário para
apreender as relações entre saber e poder, que é o olhar inicial para os acontecimentos no
nível microscópico, tal como ele propõe. Para tanto é necessário seguir uma pesquisa de
maneira ascendente, ou seja, partir do que ocorre no micro para depois apreender o geral.
Machado (2013) aponta que uma das preocupações de Foucault foi a de tentar
compreender o “nível molecular de exercício de poder”, não tendo como ponto de referência o
aparelho de Estado para, a partir daí, seguir observando o periférico. Assim, “do macro para o
micro”. Esse é o olhar “descendente”:
[...] no sentido em que deduziria o poder partindo do Estado e procurando
ver até onde ele se prolonga nos escalões mais baixos da sociedade, penetra
e se reproduz em seus elementos mais atomizados [...] O que Foucault
pretendia era se insurgir contra a ideia de que o Estado seria o órgão central
e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades
modernas seria uma extensão dos efeitos do estado, uma simples difusão de
seu modo de ação, o que destruiria a especificidade dos poderes que a
análise pretendia focalizar. (MACHADO, 2013, p. 16).
Roberto Machado (2013, p. 16) entende que Foucault estabeleceu um “procedimento
inverso”, posicionando-se sobre os objetos de pesquisa observados e tendo como ponto de
partida os “mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intimamente relacionados
com a produção de determinados saberes”. Esse posicionamento foi o de identificar as
peculiaridades das tecnologias e mecanismos das relações de poder, pois
[...] a análise ascendente que Foucault propõe e realiza estuda o poder não
como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, se difunde e
repercute nos outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como
72
tendo existência própria e formas específicas no nível mais elementar.
(FOUCAULT, 2013b, p. 16).
Foucault (2013b, p. 285) ressalta sempre em seus textos que, em essência, não
devemos deduzir que os fenômenos observados inicialmente de cima ou do “centro” até os
elementos mais “infinitesimais” da sociedade vão se reproduzir e explicar todos os
mecanismos e técnicas em todos os níveis observados, como se lê a seguir.
Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio
que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os
procedimentos de poder atuam nos níveis mais baixos, como esses
procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam, mas, sobretudo
como são investidos e anexados por fenômenos mais globais, como poderes
mais gerais ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo dessas
tecnologias de poder que são ao mesmo tempo, relativamente autônomas e
infinitesimais. (FOUCAULT, 2013b, p. 285).
Quando perguntado sobre as teorias que explicitam as relações de poder de cima para
baixo e como ele apreende essas relações que de fato ocorrem, Foucault (2013b, p. 372)
afirma que para que esse movimento ocorra seria necessário também uma “capilaridade de
baixo para cima”. E exemplifica falando do modelo de “relações de poder do tipo feudal”:
Entre os servos, ligados à terra, e o senhor, que extraía deles uma renda,
existia uma relação local, relativamente autônoma, quase um tête-à-tête. Para
que essa relação se mantivesse, era necessário que houvesse, por detrás, uma
certa piramidação do sistema feudal. Mas é certo que o poder dos reis da
França e os aparelhos de estado que eles pouco a pouco constituíram a partir
do século XI tiveram como condição de possibilidade o enraizamento nos
comportamentos, nos corpos, nas relações de poder locais, em que não
caberia de forma alguma ver uma simples projeção do poder central.
(FOUCAULT, 2013b, p. 372).
Foucault (2013b, p. 285) reforça, deste modo, a importância de realizar uma análise
ascendente, uma vez que, em geral, a teoria marxista tem o olhar descendente, o que, neste
caso, pode nos levar a conclusões que não permitem observar o micro. Por exemplo, o que
justificaria internar os loucos numa sociedade de dominação da classe burguesa? A explicação
seria simples: são pessoas que não produzem, portanto não são necessárias. Foucault (2013b),
em suas pesquisas, diz que o mesmo se pode pensar sobre o controle da sexualidade infantil.
Seguindo essa linha de raciocínio, o autor afirma que não seria interessante exercer esse
controle uma vez que a busca mais óbvia seria sempre por aumentar a força de trabalho.
Assim,
Pelo contrário teria sido preciso um adestramento sexual, uma precocidade
sexual, à medida que se tratava de reconstruir uma força de trabalho cujo
estatuto ótimo, como bem sabemos, pelo menos no começo do século XIX,
era o de ser infinita: quanto mais força de trabalho houvesse, mais condições
teria o sistema de produção capitalista de funcionar melhor e em plena
73
capacidade. Creia que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno
geral da dominação da classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar
historicamente, partindo de baixo, a maneira como os mecanismos de
controle puderam funcionar. (FOUCAULT, 2013b, p. 286, grifo nosso).
Quando o filósofo (FOUCAULT, 2010b, p. 14) discorre sobre as várias concepções do
poder político, ele cita o marxismo como tendo algo em comum com outras teorias, o que ele
chamou de “economicismo”:
Não quero de modo algum suprimir diferenças inumeráveis, gigantescas,
mas apesar e através dessas diferenças, parece-me que há um certo ponto em
comum entre a concepção jurídica e, digamos, liberal do poder político [...] e
também na concepção marxista ou, em todo caso, uma certa concepção
corrente que vale como sendo a concepção marxista. Esse ponto comum
seria o que chamo de “economicismo” na teoria do poder. (FOUCAULT,
2010b, p. 13).
Parece-nos, então, que o “economicismo” seriam as teorias que avaliam sob o ponto
de vista mais global, mais descendente e, certamente, visando ao olhar econômico.
Para Foucault (2013b, p. 42), o marxismo avalia o poder em geral pela perspectiva dos
“aparelhos de Estado”, o que não seria suficiente para explicar como as relações de poder
seriam exercidas materialmente, em suas “técnicas e táticas”.
Para dizer as coisas mais simplesmente: o internamento psiquiátrico, a
normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm, sem dúvida,
uma importância muito limitada se se procura somente sua significação
econômica. Em contrapartida, no funcionamento geral das engrenagens do
poder, eles são sem dúvida essenciais. Enquanto se colocava a questão do
poder subordinando-o à instância econômica e ao sistema de interesse que
garantia, se dava pouca importância a estes problemas. (FOUCAULT,
2013b, p. 42, grifo nosso).
Segundo Machado (2013, p. 15), as análises de Foucault indicam que os “poderes
periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não
são necessariamente criados pelo Estado nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente
reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central”. O poder para Foucault acontece
em várias camadas da malha social, sendo praticado em vários locais. O que significa dizer
que mudanças em níveis periféricos não estão necessariamente relacionadas a transformações
no nível do estado:
A razão é que o aparelho de Estado é um instrumento específico de um
sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o
ultrapassa e complementa. [...] É que nem o controle nem a destruição do
aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa - embora, talvez, cada vez
menos – é suficiente para fazer desaparecer ou transformar, em suas
características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma
sociedade. (MACHADO, 2013, p. 15).
74
Outro fator apontado por Foucault (2010b, p.15) é que ao olharmos o poder como algo
estruturado pela produção de mercadoria, como algo que “se exerce”, precisaríamos, para
compreendê-lo, entender o que é esse exercício. O poder não deve ser visto como algo
meramente vinculado à economia, mas algo que “só existe em ato”. Então o poder não é
responsável pela manutenção do movimento das relações econômicas, mas sim é “uma
relação de forças”. Somente acontece em seu exercício factual.
O teórico argumenta qual seria a mecânica desse exercício do poder, e isso é
exatamente o que precisamos analisar de perto, ou seja, como se dá essa “micromecânica de
poder”, visto que os micropoderes podem ou não ser exercidos no âmbito do Estado.
De acordo com Foucault (2013b), para realizar uma investigação do poder que não
seja baseada na economia, precisamos compreender que o poder não é “reprodução nem
manutenção” do modo de produção, mas sim uma relação de forças. O autor acredita que a
teoria marxista não apreende profundamente os mecanismos da relação entre poder e luta,
como se lê:
O que me impressiona, na maioria dos textos, senão de Marx ao menos dos
marxistas, é que sempre se silencia (salvo talvez em Trotsky) o que se
entende por luta, quando se fala de luta de classe. Neste caso, o que luta quer
dizer? Afrontamento dialético? Combate político pelo poder? Batalha
econômica? Guerra? A sociedade civil permeada pela luta de classe seria a
guerra prolongada por outros meios?[...] O que vou dizer não passa de uma
hipótese: todo mundo a todo mundo. Não há dados de forma imediata,
sujeitos que seriam o proletariado e a burguesia. Quem luta contra quem?
Nós lutamos todos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra
outra coisa em nós. (FOUCAULT, 2013b, p. 381).
As relações de produção, para Foucault, não desenham necessariamente o cenário
social. As relações de poder, para o filosofo, não têm origem apenas em determinações
econômicas. A dominação de uma classe sobre outra não teria como objetivo primordial
manter as relações de produção além do controle e apropriação dos modos de produção a
partir do uso da força e do poder soberano do Estado. Entretanto, Foucault não ignora a
viabilidade das relações de poder através de estratégias específicas servindo de vantagem
econômica para certos grupos. Isto não acontece por ser factual, mas sim por ser uma
estratégia e as relações de poder serem permeadas por vários dispositivos. As condutas sociais
são parte de um dispositivo político que se utiliza de estratégias, e “[...] uma dominação de
classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas
relações de poder [...]” (FOUCAULT, 2012, p. 226).
O autor argumenta:
75
[...] a concepção marxista trata de outra coisa, da funcionalidade econômica
do poder. Idade econômica no sentido em que o poder teria essencialmente
como papel manter relações de produção e reproduzir uma dominação de
classe que o desenvolvimento e uma modalidade própria da apropriação das
forças produtivas tornaram possível. [...] em primeiro lugar, o poder está
sempre em posição secundária em relação à economia, ele é sempre
“finalizado” e “funcionalizado” pela economia. Tem essencialmente como
razão de ser e fim servir a economia, está destinado a fazê-la funcionar, a
solidificar, manter e reproduzir as relações que são características desta
economia e essenciais ao seu funcionamento. Em segundo lugar, o poder é
modelado pela mercadoria, por algo que se possui, se adquire, se cede por
contrato ou por força, que se aliena ou se recupera, que circula, que herda
esta ou aquela região. (FOUCAULT, 2013b, p. 273).
Quando perguntado sobre o papel da classe social, Foucault (2013b, p. 375) não nega
que possa existir a dominação de uma classe sobre outra, mas insiste que isso não é “um dado
prévio”, posto
[...] que uma classe se torne dominante, que ela assegure sua dominação e
que esta dominação se reproduza, esses são efeitos de um certo número de
táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes
estratégias que asseguram a dominação. Mas entre a estratégia que fixa,
reproduz, multiplica, acentua as relações de força e a classe dominante,
existe uma relação recíproca de produção. Pode-se, portanto, dizer que a
estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia. Pode-se
mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a classe
burguesa e exercer sua dominação. Mas não creio que se possa dizer que foi
a classe burguesa como um sujeito ao mesmo tempo real e fictício, que
inventou e impôs à força, no nível de sua tecnologia ou de seu projeto
econômico, essa estratégia à classe operária. (FOUCAULT, 2013b, p. 375).
As relações de poder para Foucault não são desenvolvidas para servir a algum sistema
econômico, ou classe dominante, mas
[elas] podem ser utilizadas como estratégias [...] não se deve, portanto,
pensar um fato primeiro e maciço de dominação (uma estrutura binária com,
de um lado, os “dominantes” e, do outro, os “dominados”), mas, antes, uma
produção multiforme de relações de dominação, que são parcialmente
integráveis a estratégias de conjunto. (FOUCAULT, 2012, p. 243).
De acordo com Foucault, conceber o mundo como sendo uma “estrutura binária” de
poder em que uma classe domina a outra, alternadamente em um movimento constante, é ter
um olhar globalizante e inibidor de uma compreensão das estratégias de poder que ali
ocorrem. A burguesia, portanto, não seria um canal unilateral do exercício do poder. O poder,
para Foucault, dá-se em várias direções com suas causas e efeitos. Assim, certamente há
dominação e esta se organiza em estratégias que reajustam, reforçam e transformam as
condutas do poder, como ele esclarece:
[...] as relações de poder “servem”, de fato, porém não porque estão a
serviço de um interesse econômico dado como primitivo, mas porque podem
76
ser utilizados em estratégias (...) A luta de classes pode, portanto, não ser a
“ratio do exercício do poder” e ser, todavia, “garantia de inteligibilidade” de
algumas grandes estratégias. (FOUCAULT, 2012, p. 243, grifo do autor).
Nos estudos de Foucault, a noção de classe relaciona-se com a forma como o
enfrentamento de classes eclode nas redes das relações de poder, pois em suas pesquisas ele
observou isso e não acredita “[...] que seja operante dizer que a psiquiatria é a psiquiatria de
classe, a medicina, a medicina de classe, os médicos e psiquiatras representantes dos
interesses de classe [...]” (FOUCAULT, 2012, p. 222).
De um lado, os loucos não constituem uma classe e as pessoas sensatas uma
outra. Não se pode superpor a série de enfrentamentos que podem se
produzir de uma parte a outra da linha que divide a razão e a desrazão. [...]
Por outro lado, é certo que a institucionalização de certas formas práticas,
como o internamento, a organização de hospitais psiquiátricos, a diferença,
por exemplo, entre o internamento em um hospital e os cuidados que podem
ser dados a um cliente em uma clínica, todas essas diferenças não são sem
dúvida estranhas à existência de classes no sentido marxista do termo.
A luta de classes não interessava realmente a Foucault (2010a, p. 197) do ponto de
vista do “que é uma classe e a quem ela pertence”, mas sim compreender “o que é a luta”. Até
então ninguém havia examinado de perto esta questão:
O que é a luta, quando dizemos luta de classes? Visto que dizemos luta,
trata-se de conflito e de guerra. Mas como essa guerra se desenvolve? Qual é
o seu objetivo? Quais são seus meios? Sobre que qualidades racionais
repousa? O que gostaria de discutir, a partir de Marx, não é o problema da
sociologia das classes, mas o método estratégico relativo à luta. É onde se
ancora meu interesse por Marx, e é a partir disso que gostaria de colocar os
problemas. Ora, à minha volta, as lutas se produzem e se desenvolvem como
movimentos múltiplos [...]. Por exemplo, para refletir sobre os problemas
que essas lutas colocam, o Partido Comunista não trata da própria luta. Tudo
o que pergunta é: “A que classe vocês pertencem? Conduzem essa luta
representando a classe proletária?” Não está absolutamente em questão o
aspecto estratégico, a saber: o que é a luta? Meu interesse é pelo incidente
dos próprios antagonismos: quem entra na luta? Com o que e como? Por que
há essa luta? Sobre o que repousa? (FOUCAULT, 2010a, p. 198).
A luta de classes, certamente, envolve relações de poder.
O poder, segundo Foucault (2013b), não é simplesmente uma ferramenta que pode ser
utilizada por uma classe social sobre outra classe, visando processos de dominação, mas,
[...] de fato, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais
muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo,
titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por
função única reproduzir as relações de produção. As redes de dominação e
os circuitos da exploração se recobrem, se apoiam e interferem uns nos
outros, mas não coincidem. (FOUCAULT, 2013b, p. 255).
77
Foucault (2010b, p. 26), em seu olhar para as relações de poder, esclarece que não
podemos imaginar o poder como “um fenômeno de dominação maciço e homogêneo –
dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre outros, de uma classe sobre as
outras”. Isso seria ter um olhar muito distante do fenômeno dos efeitos do poder. Não
devemos, portanto, entender o poder como algo que um grupo detém e não divide com outros
grupos que estariam subjugados a ele. Para Foucault (2010b, p. 26), o poder está
constantemente em funcionamento:
O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor,
como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui
ou ali, jamais está entre mãos de alguns, jamais é apossado como riqueza ou
um bem. O poder funciona. O pode se exerce em rede, nessa rede, não só os
indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse
poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do
poder, são sempre intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos
indivíduos, não se aplica a eles.
Para Foucault (2010b, p. 27), devemos olhar historicamente, partindo nosso olhar das
relações que ocorrem entre um indivíduo e outro, seguindo, assim, de maneira ascendente,
para buscar compreender os mecanismos de poder, “que tem, pois, sua solidez, de certo modo,
sua tecnologia própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos
transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por
formas de dominação global” e que necessariamente não estão localizados na classe burguesa.
Foucault esclarece, ainda, a este respeito:
[...] no tocante à exclusão da loucura, à repressão, à proibição da
sexualidade; como, no nível efetivo da família, do círculo imediato, das
células, ou nos níveis mais baixos da sociedade, estes fenômenos de
repressão ou de exclusão, tiveram seus instrumentos, sua lógica,
corresponderam a um certo número de necessidades; mostrar quais foram
seus agentes, e procurar esses agentes não, de modo algum, no âmbito da
burguesia em geral, mas de agentes reais, que podem ter sido o círculo
imediato, a família, os pais, os médicos, o escalão mais baixo da polícia, etc.;
e como esses mecanismos de poder em dado momento, numa conjuntura
precisa, e mediante certo número de transformações, começariam a tornar-se
economicamente lucrativos e politicamente úteis. (FOUCAULT, 2010b, p.
28).
Tendo em vista a questão da burguesia, e observando suas análises, com temáticas
sobre a loucura e sobre a sexualidade, Foucault (2010b, p. 28) ressalta:
[...] aquilo de que a burguesia necessitou, aquilo em que finalmente o
sistema encontrou seu interesse, não foi que os loucos fossem excluídos, ou
a masturbação das crianças fosse vigiada e proibida - mais uma vez, o
sistema burguês pode suportar perfeitamente o contrário-; o ponto em que
ele encontrou seu interesse e pelo qual ele se mobilizou não foi no fato de
eles serem excluídos, mas na técnica e no próprio procedimento de exclusão.
78
Foram os mecanismos de exclusão, foi a aparelhagem de vigilância, foi a
medicalização da sexualidade, da loucura, da delinquência, foi tudo isso, isto
é, a micromecânica do poder, que representou, constituído pela burguesia, a
partir de certo momento, um interesse, e foi por isso que a burguesia se
interessou.
Foucault (2010b), como observamos, vai mais além quando afirma que a própria
noção de “interesses da burguesia” não tem sentido em sua proposta teórica, uma vez que o
olhar deve ser para a “micromecânica do poder” que é um olhar para o que foi gerado naquele
momento específico. Assim,
[...] não houve a burguesia que pensou que a loucura deveria ser excluída ou
que a sexualidade infantil deveria ser reprimida mas os mecanismos de
exclusão da loucura, os mecanismos de vigilância da sexualidade infantil, a
partir de um certo momento, e por razões que é preciso estudar, produziram
certo lucro econômico, certa utilidade política e, por essa razão, se viram
naturalmente colonizados e sustentados por mecanismos globais, finalmente,
pelo sistema do estado inteiro. (FOUCAULT, 2010b, p. 29).
O olhar de Foucault (2010b, p. 29), em suas análises, foi o de se deter, acima de tudo,
nas “técnicas de poder”. A partir daí demonstrou como esses mecanismos de poder estão além
da “utilidade política” e do “lucro econômico”.
Em outras palavras: a burguesia não dá a menor importância aos loucos, mas
os procedimentos de exclusão dos loucos produziram, liberaram, a partir do
século XIX e mais uma vez segundo certas transformações, um lucro
político, eventualmente até certa utilidade econômica, que solidificaram o
sistema e o fizeram funcionar no conjunto. A burguesia não se interessa
pelos loucos, mas pelo poder que incide sobre os loucos; a burguesia não se
interessa pela sexualidade da criança, mas pelo sistema de poder que
controla a sexualidade da criança. A burguesia não dá a menor importância
aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que não tem
economicamente muito interesse. Em compensação, do conjunto dos
mecanismos pelos quais o delinquente é controlado, seguido, punido,
reformado, resulta, para a burguesia, um interesse que funciona no interior
do sistema econômico-político geral. (FOUCAULT, 2010b, p. 29).
Foucault (2010b) observa os séculos XVII e XVIII como o momento específico em
que ocorreu “a invenção”, o surgimento e o estabelecimento de uma nova “mecânica de
poder” que funcionou com estratégias e ferramentas bem específicas.
Essa nova mecânica de poder incide primeiro sobre os corpos e sobre o que
eles fazem mais do que sobre a terra e sobre o seu produto. É um mecanismo
de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens
e riquezas. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e
não de forma descontínua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas.
É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de
coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma
nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo
79
fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e a eficácia daquilo que as
sujeita. (FOUCAULT, 2010b, p. 31).
Manoel Barros da Motta, organizador da Coleção sobre Foucault, Ditos e Escritos, na
Introdução à obra “Estratégia, Poder e Saber”, comenta sobre a maneira como o filósofo
descreve o surgimento dessa nova mecânica de poder pela qual a burguesia se interessou, isto
é, o poder disciplinar.
O século XIX encontrou um regime por assim dizer sináptico do poder, do
exercício no corpo social. A mudança de poder oficial foi ligada a esse
processo, mas através de decalagens. Foucault considera que essa mudança
de estrutura fundamental foi o que permitiu que fosse realizada essa
modificação dos pequenos exercícios do poder. Esse poder disciplinar do
que tem de específico possui uma história, não nasceu sozinho nem existiu
sempre. Foucault descreve seus pontos iniciais de nascimento na Idade
Média, no seu curso sobre o poder psiquiátrico [...] Quanto à sua origem,
Foucault diz que ele seguiu uma “trajetória de certa forma diagonal através
da sociedade ocidental.” (MOTTA, 2012, p. XXI).
Foucault (2010b), em sua obra Vigiar e Punir, identificou três fases pelas quais a
nossa sociedade passou, iniciando-se na sociedade de soberania, seguindo para a sociedade
disciplinar e chegando à sociedade de controle. O que Foucault percebeu é que o poder
soberano, característico das grandes monarquias dos países europeus, foi modificado aos
poucos e sobreposto pelo poder disciplinar. O poder soberano, monárquico, que se
estabeleceu e perdurou, foi em grande parte endossado pelo discurso jurídico.
Foucault (2013b, p. 281) mostra isso em suas pesquisas, pois teve como um de seus
projetos “inverter a direção da análise do discurso do direito a partir da Idade Média”. Isso
porque ele defende que a concepção do direito em meados da Idade Média se estruturou a
partir de necessidades do rei bem como em seu favor.
O direito no ocidente é um direito de encomenda régia. [...] Não convém
esquecer que a reativação do direito romano, em meados da Idade Média,
que foi grande fenômeno ao redor e a partir do qual se reconstruiu o edifício
jurídico dissociado depois da queda do Império Romano, foi um dos
instrumentos técnicos constitutivos do poder monárquico, autoritário,
administrativo e, finalmente, absoluto. Formação, pois, do edifício jurídico
ao redor da personagem régia, a pedido mesmo e em proveito do poder
régio. [...] Em outras palavras, creio que a personagem central, em todo
edifício jurídico ocidental, é o rei. É o rei que se trata, é o rei, de seus
direitos, de seu poder, dos eventuais limites de seu poder, é disso que se trata
fundamentalmente no sistema geral, na organização geral, em todo caso, do
sistema jurídico ocidental é o rei. (FOUCAULT, 2010b, p. 23).
Para o filósofo (FOUCAULT, 2010b, p. 23), a função primordial do direito é o de
“legitimar” o poder. E ele afirma, no mesmo segmento, que “o problema da soberania é o
problema central do direito nas sociedades ocidentais”, ou seja, “que o discurso jurídico
80
serviu para disfarçar o fato de haver uma dominação e esconder duas coisas: de um lado, os
direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência.” A teoria do direito,
portanto, foi criada totalmente focada nas questões do rei.
O olhar analítico de Foucault (2010b, p. 25) estava centrado não em saber como o rei
mantém sua soberania, mas sim em como se formam “materialmente” os súditos. O autor
(FOUCAULT, 2010b, p.26) reitera que seu interesse estava em compreender os efeitos de
poder que compõem os súditos, denominados por “corpos periféricos e múltiplos”.
Fazer sobressair o fato da dominação no seu íntimo e em sua brutalidade e a
partir daí mostrar não só como o direito é, de modo geral, o instrumento
dessa dominação - o que é consenso -, mas também como, até que ponto e
sob que forma o direito [...] põe em prática, veicula relações que não são
relações de soberania, e sim de dominação. Por dominação não entendo o
fato de uma dominação global de um sobre outros, ou de um grupo sobre
outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na
sociedade. Portanto não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas
relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas
sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social.
(FOUCAULT, 2013b, p. 281).
Essa nova mecânica de poder que Foucault (2013b, p. 290) afirma ter surgido, nos
séculos XVII e XVIII, tinha sua força nas pessoas e suas ações mais nos “corpos” do que na
propriedade. O que significa dizer que esse novo poder, o disciplinar, tinha mecanismos
diferentes daqueles do poder do soberano. Ao comparar as duas formas de poder exercidos, o
disciplinar e o soberano, Foucault explica:
É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do
que bens e riquezas. É um tipo de poder que se exerce continuamente através
da vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e
obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de
coerções materiais do que a existência física de um soberano [...] se refere à
extração e apropriação pelo poder dos bens e da riqueza e não do trabalho;
permite transcrever em termos jurídicos obrigações descontinuas e
distribuídas no tempo; possibilita fundamentar o poder na existência física
do soberano, sem recorrer a sistemas de vigilância contínuos e permanentes;
permite fundar o poder absoluto no gasto irrestrito, mas não calcular o poder
com um gasto mínimo e uma eficiência máxima. (FOUCAULT, 2013b, p.
291).
O poder disciplinar é, conforme Foucault (2013b, p. 291), um poder “não soberano”,
ignorante às relações de poder soberano, e “foi um instrumento fundamental para a
constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente”.
Porém os fundamentos teóricos da soberania mantiveram-se permeando o direito e inspirando
sua constituição no século XIX, e Foucault fundamenta os motivos disso:
A teoria da soberania persistiu como ideologia e como princípio organizador
dos grandes códigos jurídicos por dois motivos. Por um lado, ela foi, no
81
século XVIII e ainda no século XIX, um instrumento permanente de crítica
contra a monarquia e todos os obstáculos capazes de se opor ao
desenvolvimento da sociedade disciplinar. Por outro lado, a teoria da
soberania e a organização de um código jurídico nela centrado permitiram
sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de direito que ocultava
seus procedimentos e técnicas de dominação e garantia o exercício dos
direitos soberanos de cada um, através da soberania do Estado.
(FOUCAULT, 2013b, p. 292).
Manoel de Barros Motta (2012, p. XXII) expõe que Foucault encadeou o surgimento
desse novo poder, o poder disciplinar “de nível microscópico”, com a queda do poder
soberano. A partir do momento que o novo poder estruturado sobre os corpos se estabelece, a
“mitologia do poder real” converte-se muitas vezes em algo impraticável. Mas Foucault
(2012) deixa claro que existem exceções, como se lê abaixo.
É verdade também que foi a montagem desse novo poder microscópico,
capilar, que impeliu o corpo social a ejetar elementos como a corte, a
personagem do rei. A mitologia do soberano não era mais possível a partir
do momento em que certa forma do poder se exercia no corpo social. O
soberano tornava-se então uma personagem fantástica, ao mesmo tempo
monstruosa e arcaica. Portanto, há correlação entre os dois processos, mas
não correlação absoluta. Na Inglaterra, houve as mesmas modificações do
poder capilar da França. Mas lá, a personagem do rei, por exemplo, foi
deslocada em funções de representação, em vez de ser eliminada. Não se
pode, portanto, dizer que a mudança, no nível do poder capilar, seja
absolutamente ligada às mudanças institucionais no nível das formas
centralizadas do Estado. (FOUCAULT, 2012, p. 159).
O motivo da força das mudanças que as disciplinas promoveram, de acordo com
Foucault (2013b, p. 293), foi devido à maneira como estas se impuseram ao discurso do
direito além do fato de serem “criadoras de aparelhos de saber e de múltiplos domínios de
conhecimento. São extraordinariamente inventivas no nível dos aparelhos que produzem saber
e conhecimento”. As disciplinas mantêm um discurso que não é o jurídico, e a regra advinda
dos desejos do rei não mais vigora. As disciplinas vão divulgar um discurso que vem da
norma, um “código” da “normalização”.
O movimento não é mais o de uma regra criada por um soberano e transformada em
lei, mas sim o surgimento de disciplinas que normatizam, que dizem o que é normal e o que
não é normal. Foucault (2008a, p. 74) mostra como isso acontece. Primeiro ele afirma que “a
disciplina, é claro, analisa, decompõe, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os
gestos, os atos, as operações, ela os decompõe em elementos que são suficientes para percebê-
los, de um lado, e, modificá-los de outro.” Outro ponto importante das disciplinas é que elas
categorizam esses elementos conforme os fins desejados. Foucault (2008a) apresenta alguns
82
exemplos, como a definição de qual gesto é mais eficiente para se carregar um fuzil, ou qual
operário é mais capaz de realizar específico ofício.
A disciplina também estabelece, conforme Foucault (2008a, p. 75), “as sequências ou
as coordenações ótimas: como encadear os gestos uns aos outros [...]”, quer dizer, as normas
que classificam e hierarquizam as pessoas são responsáveis pelas divisões de tarefas dentro
das instituições como escolas, fábricas, exército, entre outras. E por último a disciplina edifica
métodos de “adestramento progressivo e de controle permanente”. A partir disso são
balizados quem é normal ou anormal, quem é capaz e quem não é. Assim:
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um
modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação
de normalização disciplinar consiste em procurar tomar as pessoas, os
gestos, os atos, conformes a esses modelos, sendo normal precisamente
quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz.
Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização
disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. (FOUCAULT, 2008a, p.
75).
Foucault (2013a, p. 133) aponta que a condição do aparecimento das disciplinas surge
com o desabrochar da “arte do corpo humano”, com função de tornar o homem mais dócil e
aproveitável. Instaura-se então um regime de constrangimentos no corpo humano, um
controle planejado sobre seus gestos e atitudes, como se observa em seguida.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder, que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. Uma anatomia política que é também igualmente
uma “mecânica de poder”, está nascendo, ela define como se pode ter
domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que
se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a
rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis” [...] digamos que a coerção
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada
e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 2013a, p. 133, grifo do autor).
Processos disciplinares eram comuns nas instituições religiosas e militares, mas
Foucault (2013a, p. 133) aponta que o que chama de disciplina, ou seja, o “[...] controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõe uma relação de docilidade- utilidade [...]”, foi sedimentada e, entre os séculos XVII e
XVIII, fizeram-se modelos de dominação geral.
A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como
uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas
vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se
recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros,
distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e
esboçam aos poucos a fachada de um método geral. A cada vez, ou quase,
impuseram-se para responder às exigências de conjuntura: aqui uma
83
inovação industrial, lá a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá
a invenção do fuzil ou as vitorias da Prússia. (FOUCAULT, 2013b, p. 134).
De acordo com Foucault (2013b, p. 291), essa nova mecânica de poder foi “[...] uma
das grandes invenções da sociedade burguesa. Ela foi um dos instrumentos fundamentais da
implantação do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente [...]”.
Esse poder que não tem vínculos com o tipo do poder soberano e que a sociedade burguesa
viu nascer é o que o filosofo chama de “poder disciplinar”.
Segundo Machado (2013), quando Foucault despertou seu olhar para as questões do
poder, a partir de sua pesquisa sobre a história das penalidades, percebeu que existia uma
nova tecnologia de controle que se refletia sobre os presos. O filósofo constatou também que
essa tecnologia não se restringia ao espaço das prisões, mas por várias outras entidades e
instituições do corpo social, como se vê a seguir.
Foi esse tipo específico de poder que Foucault chamou de “disciplina” ou
“poder disciplinar”. E é importante notar que a disciplina nem é um aparelho
nem uma instituição, à medida que funciona como uma rede que o atravessa
sem se limitar a suas fronteiras. Mas a diferença não é apenas de extensão, é
de natureza. Ela é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um
instrumento de poder; são métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes
impõe uma relação de docilidade-utilidade, é o diagrama de um poder que
não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus
elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem
necessário ao funcionamento e à manutenção da sociedade industrial
capitalista. (MACHADO, 2013, p. 21).
O que Foucault demonstra é que o poder disciplinador é um mecanismo complexo,
que tem muitas características específicas, e que a classe burguesa se interessou naquele
momento por seus efeitos. Para o teórico:
A moralização da classe operária não foi imposta por Gizot por meio de suas
legislações, nem por Dupin por meio de seus livros. Não foram também os
sindicatos patronais. Entretanto, ela se realizou, porque respondia ao
objetivo urgente de dominar uma mão de obra flutuante e vagabunda.
Portanto, o objetivo existia e a estratégia desenvolveu-se, com uma
coerência cada vez maior, mas sem que se deva supor que um sujeito
detentor da lei, enunciando-se sob a forma de um “você deve, você não
deve”. (FOUCAULT, 2013b, p. 376).
Ao ser questionado sobre os sujeitos que se opõem, Foucault (2013b, p. 381)
responde:
O que vou dizer não passa de uma hipótese: todo mundo a todo mundo. Não
há dados de forma imediata, sujeitos que seriam o proletariado e a burguesia.
Quem luta contra quem? Nós lutamos contra todos. Existe sempre algo em
nós que luta contra todos.
84
Os acontecimentos do século XVIII propiciaram o aparecimento de um novo poder
disciplinar e de suas técnicas, sob o ponto de vista de Foucault, diferente das técnicas do
poder de soberania, e a classe burguesa detectou os efeitos desse poder, se interessou por isso
e deles se beneficiou.
Roberto Machado (FOUCAULT, 2013b, p. 22) enfatiza que o poder disciplinar tem
suas origens no grande aumento da população no século XVIII e na modificação e
incrementação dos instrumentos de produção. A disciplina estimula uma “dominação política
do corpo”, o que demarca a imprescindibilidade do exercício de sua “utilização racional,
intensa, máxima em termos econômicos”. Essa dominação própria do poder disciplinar
transforma o corpo em força de trabalho, quando “trabalhado” por esse processo.
Foucault (2013b), no mesmo texto, aponta três características do poder disciplinar.
Primeiramente, a disciplina estrutura o espaço e pensa na ordenação das pessoas nesse
determinado local. Observamos essa técnica em vários lugares, como hospitais, prisões e
escolas. Para o autor,
Em primeiro lugar a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma
técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um
espaço individualizado, classificatório, combinatório. Isola em um espaço
fechado, esquadrinhado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o
objetivo específico que dele se exige. Mas, como as relações de poder
disciplinar não precisam necessariamente de espaço fechado para se realizar,
essa é sua característica menos importante. (FOUCAULT, 2013b, p. 22).
Depois a disciplina atenta para o tempo. Mais uma vez observamos os efeitos disso em
muitos locais, pois há hora certa para se fazer as refeições, para entrar e sair do trabalho, etc.
Nosso tempo é cada vez mais esquadrinhado e controlado, pois a disciplina
[...] estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir
o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é
basicamente o resultado de uma ação que lhe interessa, mas seu processo,
seu desenvolvimento. E esse controle minucioso das operações do corpo ela
o realiza por meio da elaboração temporal do ato, da correlação de um gesto
específico com o corpo que o produz [...] (FOUCAULT, 2013b, p. 22).
O terceiro ponto principal do poder disciplinar é relativo à vigilância. Para Foucault
(2002), corpos adestrados é o objetivo primordial dessa tecnologia específica do poder - a
disciplina. Por disciplina Foucault (2012, p. 344) entende a “[...] generalização e a conexão de
técnicas diferentes que devem responder a objetivos locais [...]”, como treinamentos
especializados dos militares ou nas escolas. Sobre isso afirma:
De fato, as disciplinas têm seu discurso próprio. Elas mesmas são [...]
criadoras de aparelhos de saber, de saberes e de campos múltiplos de
conhecimento. Elas são extraordinariamente inventivas na ordem desses
aparelhos de formar saber e conhecimento, e são portadores de um discurso,
85
mas de um discurso que não pode ser o discurso do direito. [...] o discurso da
disciplina é alheio ao da lei; é alheio ao da regra como efeito da vontade
soberana. Portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será o da regra;
não o da regra jurídica derivada da soberania, mas da regra natural, isto é, da
norma. Elas definirão um código que será aquele, não da lei, mas da
normalização, e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que
não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas.
(FOUCAULT, 2010b, p. 33).
As consequências das técnicas disciplinares podem ser apreendidas em várias
instituições, bem como “[...] a facilitação de uma vigilância mais efetiva de corpos domados
[...]” (DREYFUS, H.; RABINOW, P, 1995, p. 170). As pessoas são separadas, modeladas e
vigiadas da maneira mais eficiente possível, “[...] a fim de atingir este sonho de total
docilidade (e o aumento correspondente de poder), de todas as dimensões de poder, espaço,
tempo e movimento devem ser codificadas [...]” e exercidas incessantemente, pois,
[...] durante todo o percurso de nossa vida, todos nós somos capturados em
diversos sistemas autoritários; logo no início na escola, depois em nosso
trabalho e até em nosso lazer. [...] O controle contínuo dos indivíduos
conduz a uma ampliação do saber sobre eles, que produz hábitos de vida
refinados e superiores. Se o mundo está a ponto de se tornar uma espécie de
prisão, é para satisfazer as exigências humanas. (FOUCAULT, 2012, p.
300).
A disciplina (DREYFUS, H.; RABINOW, P, 1995, p. 169) não se sobrepõe aos vários
tipos de poder que perpassam nossa sociedade, mas modifica a sua efetividade, pois essa
técnica consegue englobar um maior número de indivíduos.
Para Foucault,
Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o
esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no
seio da qual o indivíduo emerge como alvo do poder [...]. É o hospício que
produz o louco como doente mental, personagem individualizante a partir da
instauração de relações disciplinares de poder. [...] o poder disciplinar não
destrói o indivíduo; ao contrário, o fabrica. (FOUCAULT, 2013b, p. 25).
Foucault (2010b, p. 24) defende que o poder disciplinar é uma tecnologia que cria
individualidades, e o que determina que um corpo, “gestos, discursos, desejos” sejam
classificados como indivíduos é o efeito do poder. Um dos efeitos do poder é constituir o
indivíduo, mas também é resultado da individualidade, já que “o indivíduo é uma produção do
poder saber”. Assim,
[...] o adestramento do corpo, o aprendizado do gesto, a regulação do
comportamento, a normatização do prazer, a interpretação do discurso, com
o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso se
faz com que apareça pela primeira vez na história esta figura singular
individualizada – o homem – como produção do poder. Mas também, e ao
mesmo tempo, como objeto de saber. Das técnicas de individualização,
86
nasce um tipo específico de saber: as ciências do homem. (FOUCAULT,
2013b, p. 26).
Foucault (2013a, p. 133) reitera que sua intenção não se concentra em realizar um
histórico de todas as entidades disciplinares em suas individualidades, mas de buscar padrões
nas técnicas utilizadas que se difundem com mais frequência, ou seja,
Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua
importância: porque definem um certo modo de investimento político e
detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder; e porque não
cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos, cada vez mais vastos
como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas
de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas
profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias
inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto
que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época
contemporânea. (FOUCAULT, 2013a, p. 134, grifo nosso).
Uma preocupação central de Foucault a que ainda não nos detivemos é sua
compreensão sobre o poder, em especial o “micropoder”. A teoria marxista em geral defende
que é real a existência de múltiplos poderes, mas a dinâmica de poder exercida em locais,
como uma fábrica, é dominada por uma classe, no caso a burguesia, e os aparelhos de Estado
podem ser estruturados em favor deste grupo. Este não é o posicionamento de Foucault, pois
para o filósofo uma instituição, como uma fábrica, é permeada pelo poder disciplinar.
Foucault (2013a, p. 133) ao afirmar que a disciplina é “uma anatomia política do detalhe”,
quer dizer que precisamos nos ater aos pequenos detalhes, aos “micropoderes”.
O filósofo defende que os motivos que levaram a burguesia à dominação foram acima
de tudo o surgimento do poder disciplinar. Por isso, compreender o que é o poder e quais seus
efeitos é essencial para apreender o posicionamento dos sujeitos burgueses nesse filme de
Buñuel, que materializa saberes e consequentemente revela relações de poder.
No próximo capítulo, realizaremos a análise do filme O Discreto Charme da
Burguesia.
87
7 O BARULHO QUE OCULTA A DISCRETA VIOLÊNCIA DA BURGUESIA
Neste capítulo buscaremos demonstrar a aplicação dos conceitos “saber” e “enunciado
discursivo” em suas relações com o “poder” e “verdade”, de Michel Foucault, tal como
expomos no capítulo quatro, em algumas sequências do filme O Discreto Charme da
Burguesia, do diretor Buñuel (1972).
Pontualmente, como já explicamos no capítulo três, o caminho para se buscar o
enunciado é por meio das relações entre: a) “série” - em que o enunciado reiteradamente
aparece; b) o “sujeito” - que pode ser um ou vários; c) as “materialidades” - que podem se
apresentar em diversas manifestações de linguagens, como em imagens fixas e/ou em
movimento, na escrita, oralidade, dentre outras; d) o “campo associado” - que relaciona,
regulariza e une os enunciados, formando discursos.
Aplicamos esses conceitos no filme de Buñuel (1972), O discreto Charme da
Burguesia, e chegamos a um determinado enunciado: “O barulho que oculta a discreta
violência da burguesia”.
A aplicação desses conceitos no filme nos fez procurar focar nosso olhar nas
interações das materialidades – imagéticas, sonoras, escritas - que se estabeleceram em três
sequências fílmicas de Buñuel, tendo em vista o olhar sobre o sujeito “burguesia”.
A primeira sequência (12’:25’’) acontece quando o Embaixador e seus sócios no
negócio ilícito se referem ao tráfico de drogas, e o barulho de um carro “abafa” a denúncia do
nome de um outro Embaixador que é traficante.
A segunda sequência (45’: 36’’) destacada se dá no encontro do Embaixador com a
terrorista, em sua casa, quando novamente o barulho se sobrepõe à reivindicação da moça.
A terceira sequência (1h29’: 41’’) ocorre quando o grupo de burgueses em questão é
preso, e percebe-se que há barulho em três cenas: quando o Ministro telefona para o Oficial de
polícia pedindo para soltar o grupo, e sua explicação do motivo é abafada por um barulho de
avião; depois isso se repete novamente; e quando o mesmo Oficial de polícia ordena para que
seu subalterno libere o grupo, e sua fala é coberta pelo som de uma máquina de escrever.
Detectamos aqui o barulho que oculta falas e que acontece em três sequências, em
cinco momentos, tornando-se um enunciado discursivo uma vez que está dentro de uma série
que se repete. Os barulhos aparecem nas três sequências e em cinco momentos e são
evidenciados, enunciativamente. Analisaremos as sequências mais atentamente a seguir.
Na primeira situação em que percebemos o enunciado discursivo, o Embaixador
recebe o Sr. Thévenot e o Sr. Senechal, em sua sala, na Embaixada de Miranda (10’:30’’). O
88
Sr. Thévenot olha pela janela e diz: “Rafael, há uma bela moça aqui em frente à portaria”. O
Embaixador chega perto da janela, olha, e vemos uma moça na calçada vendendo
cachorrinhos de pelúcia. O Embaixador pega uma espingarda e, sob protestos dos amigos,
atira em um dos cachorros. A moça sai correndo. O amigo pergunta:
Sr. Thévenot: - Mas quem é?
Embaixador: - Aquela é de Miranda.
Sr. Thévenot: - Ah! De Miranda?
Embaixador: - Sim, faz parte de um bando de terroristas. Há muito me
perseguem. (O DISCRETO..., 1972).
A moça entra em um carro com outros três rapazes, e eles partem. Os amigos
perguntam:
Sr. Senechal: - Em que sentido?
Embaixador: - Ora essa! Para me sequestrar, para me assassinar, vá saber
com os terroristas.
Sr. Thévenot: - Avisaram a polícia?
Embaixador: - No momento não quero. Entenderá o porquê. Esqueci de dizê-
lo, tive problemas no aeroporto. Queriam revistar minha mala diplomática.
(O DISCRETO..., 1972).
O Embaixador pega um saco de dentro de um cofre e continua falando:
Embaixador: - Tive que telefonar ao Ministro.
Sr. Senechal: - Revistar mala diplomática é inacreditável.
Embaixador: - Um mês atrás prendemos o Embaixador de...um Embaixador
com 40 kilos de cocaína.
Sr. Thévenot: - Um Embaixador? Qual Embaixador?
Embaixador: - A coisa foi mantida em segredo. Aqui estão 15 quilos. (O
DISCRETO..., 1972).
Nessa hora, o Embaixador entrega dois sacos com um pó branco aos amigos. Ele fala
alguma coisa, mas não conseguimos escutar, pois sua voz é encoberta pelo som muito alto de
um carro. Depois disso a conversa continua:
Sr. Senechal: - O Embaixador dos EUA?
Embaixador: - Sim.
Sr. Senechal: - Este é o quarto Embaixador que perdemos.
Embaixador: - Precisamos encontrar outro jeito. (O DISCRETO..., 1972).
Nesta sequência, surge pela primeira vez a personagem da terrorista e seu grupo de
Miranda. O Embaixador não sente nenhum embaraço de ameaçá-la em público, tanto que atira
pela janela com uma arma, na direção da moça, acertando o cachorrinho de pelúcia que ela
manuseava. A relação de força e dominação apresentada nesta sequência sugere que a posição
do Embaixador, por sua imunidade diplomática, permite-o agir impunemente, qual seja,
atirando em alguém em plena luz do dia, da janela da Embaixada. Essa possibilidade só
89
acontece devido ao cargo que ele ocupa. A terrorista apresenta um movimento de resistência
que ameaça a estrutura que o Embaixador representa - um governo ditatorial.
O Embaixador neste caso representa o governo de Miranda, e o que Buñuel nos expõe
é um governo sem limites no trato com a sua população. Tanto é que Rafael responde aos
apelos de seus amigos simplesmente dizendo: “Aquela é de Miranda.”, e justifica: “Faz parte
de um bando de terroristas”. Prática comum de governos ditatoriais é considerarem infratores
seus opositores e nomeá-los terroristas.
Ao afirmar que não tem problema atirar na jovem, pois “ela faz parte de um bando de
terroristas”, o Embaixador justifica sua violência descontrolada. O discurso que nomeia de
terroristas, pessoas que de algum modo resistem à dominação, foi uma prática comum no
Brasil à época da ditadura militar. Esse discurso era utilizado para justificar a prisão e a
agressão direcionada àqueles que se rebelavam.
Segundo Vidal (2010, p. 279), o terrorismo tinha se tornado uma obsessão na última
fase da filmografia de Buñuel, tendo sido tema de seus dois últimos filmes: Esse Obscuro
Objeto de Desejo e O Fantasma da Liberdade. O autor afirma ainda que “iba abordar
monograficamente em su guión no rodado, El canto del Cisne, abandonado em 1980”16
.
Nessa sequência, também conhecemos “a natureza dos negócios” desse grupo burguês.
Eles traficam drogas se aproveitando da posição do Embaixador que tem trânsito livre com
sua bagagem. Vemos que se mostram indignados com o desrespeito à insistência das
autoridades em verificar a bagagem diplomática. Isso para eles é prerrogativa, direito do
Embaixador e não pode ser questionado, afinal é o que lhes permite realizar o negócio ilegal
de drogas. O que acontece aqui é uma inversão de valores, uma vez que para a população em
geral traficar drogas não é uma prerrogativa. Contudo, para esse grupo, é muito fácil por
conhecerem os caminhos que facilitam o tráfico: a mala diplomática, os contatos com o
Ministro.
O sujeito Embaixador Rafael afirma que precisou ligar para o Ministro, personagem
que o livra desse embaraço e que conheceremos mais à frente, em outra sequência, socorrendo
os amigos. O cargo de Embaixador para Rafael é uma porta aberta para cometer os atos que
deseja. O fato de o Ministro endossar suas ações criminosas e as de seus amigos burgueses
confere-lhe segurança.
16
Tradução livre: “Iria abordar monograficamente no seu filme não rodado, O canto do Cisne,
abandonado em 1980”.
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O barulho de um carro passando na rua mascara o provável nome do Embaixador que
foi preso com quarenta quilos de cocaína. Sabemos que foi o Embaixador americano, mas não
quem foi. O barulho aqui protege a identidade do Embaixador envolvido no caso. Escutamos
o barulho encobrindo e protegendo o outro Embaixador, e percebemos aqui o barulho
ocultando, de maneira discreta, uma ação ilegal daquele grupo.
O Embaixador e o seu grupo de amigos, portanto, foram caracterizados nesta análise
por meio das práticas discursivas de Buñuel. Ele coloca seus personagens em uma posição
social de dominação, demonstrando a liberdade com que cometem os mais atrozes atos.
Podemos perceber que Miranda, país do Embaixador Rafael, é uma alusão aos países
da América Latina que vivenciaram governos ditatoriais, quando então o Embaixador
conversa com Monsenhor Dufour, na sequência fílmica (48’:23’’) a seguir:
Monsenhor: - Estou feliz de conhecê-lo. Sabe que temos uma missão
importante em Bogotá.
Embaixador: - Bogotá é na Colômbia, Monsenhor.
Monsenhor: - Sim, é verdade. Na Colômbia. Perdoe-me, não conheço a
República de Miranda. Mas ouvi dizer que é um país magnífico. As
Cordilheiras dos Andes, os pampas.
Embaixador: - Ao contrário, os Pampas são na Argentina, Monsenhor.
Monsenhor: - Certo, os Pampas. Também o deve saber. Tenho visto
recentemente um livro da América Latina. Havia umas fotos estupendas das
suas antigas pirâmides.
Embaixador: - Nossas pirâmides?
Monsenhor: – Sim.
Embaixador: - Não temos pirâmides em Miranda. No México e na
Guatemala, sim.
Monsenhor: - Tem certeza disso?
Embaixador: - Absolutamente. (O DISCRETO..., 1972).
Nesta conversa entre os personagens encontramos referência a seis países da América
Latina: Guatemala, Argentina, Uruguai, Chile, México e Colômbia, todos países que
experimentaram governos ditatoriais, assim como acontecia no Brasil, nessa época.
Em um momento significativo do filme, podemos perceber o quadro exato da situação
política social e econômica do país fictício de Miranda que, como já dissemos, é uma alusão a
países da América Latina. Ocorre quando em (1h08’:47’’) um jantar na casa do Coronel
vários convidados tecem questionamentos sobre a situação de Miranda. A esposa do
Comandante pergunta ao Embaixador:
Esposa do comandante: - É verdade aquilo que dizem que em certas regiões
há uma miséria pavorosa?
Monsenhor: - Acho que o abismo entre os pobres e ricos se alarga a cada dia.
Embaixador: - Não. Alguém os enganou. Estamos em plena expansão
econômica. Os números provam isso. (O DISCRETO..., 1972).
91
O Embaixador continua circulando pela festa, e outro convidado inicia uma conversa:
Convidado: - Perdoe-me, excelência. Ouvi falar em seu país. Interesso-me
muito por problemas administrativos
Embaixador: - E de que quer falar?
Convidado: - Dizem ser frequentes os subornos aos juízes e aos policiais.
Embaixador: - Em outros tempos talvez. Acontece em muitos outros países.
Hoje em Miranda temos a democracia, e a corrupção não existe mais. (O
DISCRETO..., 1972).
O Embaixador se afasta daquele convidado e tenta se retirar da festa, mas a esposa do
Coronel o impede alegando que seu marido deseja lhe falar. O Embaixador conversa com o
Coronel, adiante (1h10’: 33’’):
Coronel: - Seu país tem sido muito comentado ultimamente mostrando,
temo, recordes de homicídios em relação aos habitantes, não é verdade?
Embaixador: - Não, Coronel, o senhor está errado.
Coronel: - Não, parece que se assassina um por um, gratuitamente. Ao
menos 30 mortes ao dia.
Embaixador: - Não, Coronel, creio que o senhor está tentando me ofender.
Coronel: - Não, nem de longe digo aqui que sei. Li recentemente uma
pesquisa muito séria.
Embaixador: - Permita-me por em dúvida suas palavras.
Coronel: - Não, repito-lhe. Sei aquilo que digo. (O DISCRETO..., 1972).
A conversa termina em discussão, e o Embaixador acaba assassinando o Coronel. Mas
tudo não passava de um sonho.
Vidal (2010, p. 285) faz um comentário sobre esse episódio e diz que aquele ocorrido
foi mais uma ironia típica de Buñuel. O Coronel pergunta sobre os homicídios de Miranda, e
o Embaixador, ofendido com as insinuações de violência em seu país, dá-lhe três tiros. O
sujeito Embaixador Rafael, neste caso, responde exatamente como os governos ditatoriais o
fazem, silenciando quem se opõe, de maneira extremamente brutal. Precisamos lembrar que
Buñuel vivenciou uma realidade de extrema violência, durante a Guerra Civil Espanhola, e
tem como referência uma ditadura linha dura, do General Franco em seu país, a Espanha. No
filme, essa sequência que trata da corrupção e suborno de juízes foi censurada na Espanha
franquista.
Os saberes produzidos pelo discurso imagético de Buñuel vêm carregados de outros
dizeres, como a noção de hierarquização social, dominação através da violência, impunidade.
Esse é um discurso legitimado, mas não produz verdades inquestionáveis. Esses discursos
influenciam a produção de subjetividades e identidades do que é pertencer a um grupo, “a
burguesia”.
92
Os comportamentos, gestos, normações e hierarquizações fazem com que este grupo, o
dos burgueses, seja produto da individualização, que é um dos efeitos do poder. Os burgueses,
no filme, comportam-se de maneira específica, com gestos e maneiras que os tornam coesos e
pertencentes a um grupo específico. Podemos observar isto em (17’: 20’’) quando, no filme,
oferecem bebida ao chofer e depois falam da maneira de se apreciar uma bebida. O
empregado não domina esse código que une os burgueses enquanto detentores desse saber. O
Sr. Thévenot diz:
Sr. Thévenot: - Viram? Este é o exemplo de como não beber um Martini
seco.
Sra. Thévenot: - Dê um desconto, é um homem do povo. Não teve educação.
Embaixador: - Nenhum sistema dará ao povo o requinte necessário. Vocês
me conhecem, não sou reacionário. (O DISCRETO..., 1972).
A distinção de quem pertence a qual núcleo é bem objetiva aqui, e é especialmente o
que os diferencia. Das técnicas de individualização nascem tipos de saberes específicos e
mecanismos de poder que endossam certo tipo de dominação.
O que permite uma compreensão mais específica desses discursos não está na verdade
que os sedimenta, mas no entendimento do que acontece através das regularidades e
dispersões que estão na base de sua estruturação. Daí a importância de compreender a
produção discursiva pelo viés das continuidades e descontinuidades históricas. Este filme trata
de um grupo de amigos que, ao longo da obra, tenta realizar uma refeição juntos. Entre os
meandres surrealistas das sequências, que não apresentam uma linearidade óbvia, percebemos
que esse conjunto de pessoas pertencem à burguesia citada no título. Esse grupo realiza,
assim, ao longo do filme, práticas correlatas que os une e se revelam pelo enunciado “O
barulho que oculta a discreta violência da burguesia”.
Podemos perceber também na fala de Luis Buñuel o discurso da Igreja Católica, que é
extremamente presente na cultura do povo espanhol. Esse elemento é visível em toda sua
obra. No filme O Discreto Charme da Burguesia, algumas sequências demonstram um clero
subserviente a outros personagens do grupo. Este é mais um campo associado no discurso
fílmico de Luis Buñuel, no caso, o discurso da Igreja Católica, o que expõe as relações de
poder ali engendradas.
Neste filme, um sujeito que se destaca e que reforça o discurso religioso do diretor é o
Bispo Dufour. Ele aparece pela primeira vez na trama em (24’:56’’), no momento em que vai
até a casa do casal Senechal. Primeiramente, ele é atendido por uma empregada da casa e está
usando as vestimentas de um Bispo. Como o casal não estava em casa, Dufour vai até o
quintal e muda de roupa. O que acontece então é que, na primeira vez que se apresenta ao
93
casal, está vestindo trajes civis simples de trabalhador, com um avental jeans, e segurando
uma ferramenta de jardinagem. Neste instante (24’:56”), o Bispo entra na casa e diz:
Bispo: - Bom dia, Sr. e Sra., sou o Monsenhor Dufour, Bispo da Diocese.
Gostaria de falar com vocês.
Sr. Senechal: - Quem você diz ser?
Empregada: - Sim, estava aqui um momento atrás. Eu o fiz entrar.
Sr. Senechal: - Estão de gozação? O senhor queira se retirar! Fora! Fora! (O
DISCRETO..., 1972).
Sr. Senechal agarra o Bispo pelo braço e o faz sair porta a fora. Depois disso, briga
com a empregada por causa da imprudência dela:
Sr. Senechal: - O que tem na cabeça? Deixa qualquer um entrar?
Empregada: - Me disse que era bispo.
Sra. Senechal: - E acreditou?
Sr. Senechal: - Não confie em estranhos.
Sra Senechal:.- E que isso não se repita. (O DISCRETO..., 1972).
O Bispo volta (26’:14”) a casa, vestindo, agora, seus trajes da Igreja e diz:
Bispo: - Vê? Acreditam em mim agora?
Sr. Senechal: - Eu não compreendo.
Sra. Senechal: - Estamos confusos. (O DISCRETO..., 1972).
O casal fica muito desconcertado, beija a mão do Monsenhor, pede desculpas e o
aceita em casa. O respeito que o casal demonstra ao Bispo é baseado meramente nas vestes
daquele homem que se diz Monsenhor. Quando ele aparece vestido de trabalhador, mesmo
afirmando ser quem é, é expulso de maneira indigna daquela casa. O próprio Sr. Dufour
entende que precisa estar vestido de maneira adequada para ser reconhecido como pertencente
a um grupo.
Buñuel, assim, apresenta essa sequência para reafirmar o comportamento dessa classe
que se reconhece através de gestos, comportamentos e normações, o que a distingue dos
outros grupos e fortalece seu vínculo. É preciso saber como se sentar, vestir-se para certa
ocasião, comer com vários talheres, beber uma bebida diferente, dentre outros. Tudo isso são
saberes que caracterizam o grupo que domina esses conhecimentos, sustenta-os e
individualiza-os. Isso é um dos efeitos do poder.
O Bispo pede para trabalhar como jardineiro do casal, atitude essa que muito
surpreende o Sr. e a Sra. Senechal. O Bispo reitera: “Não se maravilhe, senhora. A Igreja está
muito mudada. Já ouviu falar de padre operário? Com os bispos é igual.” Quando o Sr.
Senechal questiona sua habilidade na função, ele refuta:
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Bispo: - Quando era menino, morava em uma casa grande. Era muito
parecida com esta. Os meus pais, que Deus os tenha em glória, morreram de
morte violenta. Tínhamos um ótimo jardineiro que me ensinou tudo.
Sra. Senechal: - Seus pais morreram de morte violenta?
Bispo: - Sim, envenenados com arsênico.
Sra. Senechal: - Mas por quê?
Bispo: - Nunca descobriram o culpado. (O DISCRETO..., 1972).
Descobrimos mais tarde, no filme, que o jardineiro da família foi quem envenenou os
pais do Bispo, como se verá logo mais.
Outro detalhe importante nesta sequência é o fato de discutirem o salário a ser pago. O
Bispo faz questão da “tarifa sindical”. O casal reluta, pois o antigo jardineiro não era
registrado. O Sr. Dufour diz: “Os outros...mas eu quero estar em ordem, entende?”
Percebemos aqui que o Monsenhor, apesar de estar se sujeitando a trabalhar para o casal, faz
questão de deixar claro que não é como “os outros”. Ele faz isso quando comenta que já
morou em uma casa como aquela, e que já teve um jardineiro - o que nos indica que ele faz
parte desse grupo de pessoas abastadas.
Para Buñuel, o Bispo representa a Igreja Católica, e seu posicionamento ao longo do filme
demonstra isso em várias ocasiões. O Sr. Dafour, por exemplo, junta-se ao grupo de
burgueses e participa de muitos jantares e reuniões.
Outra sequência, em (1h15’), mostra-nos o Bispo cuidando do jardim e conversando
com a Sra. Senechal. Uma charrete para em frente ao portão da casa, uma senhora desce dela
e pergunta:
Senhora: - Bom dia, senhor.
Bispo: - O que deseja, senhora?
Senhora: - Onde posso encontrar um padre por aqui?
Sra. Senechal: - Um padre? Procure na paróquia.
Bispo: - Madame...sou um padre! (O DISCRETO..., 1972).
A Senhora Senechal dá uma risada e coloca a mão na boca, pois se esquecera que seu
jardineiro é bispo.
Logo em seguida vemos uma sequência reveladora, em (1h17’:03’’), que mostra o
Bispo saindo para dar a extrema unção a um moribundo. Chegando ao local, o homem
confessa que matou os pais do religioso. O Bispo o absolve dizendo: “Que Nosso Senhor
Jesus Cristo lhe perdoe. E eu no Seu nome lhe perdoo os pecados. Fique em paz.” Ao se
dirigir à porta vê uma arma, pega-a e atira no moribundo.
Buñuel não perde a oportunidade de desacreditar nos membros da Igreja Católica. A
denúncia foi tão explícita, que esta sequência também foi censurada na Espanha, quando o
filme foi exibido. De acordo com Vidal (2010, p. 286), Buñuel, por isso, jurou não passar
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mais seus filmes na Espanha até que acabasse a censura franquista. Mas fica claro como na
Espanha da época esse tipo de provocação não era bem aceita.
Buñuel, em sua obra, demonstra constantemente os membros da Igreja Católica como
submissos à classe burguesa, mas com os mesmos comportamentos violentos. O diretor tem
um referencial da Igreja Católica da Espanha de sua juventude. Destacamos aqui mais um
campo associado que se revelou, também, na vida do diretor. Sobre a Guerra Civil Espanhola,
Buñuel afirma:
Durante toda minha vida, impressionou-me muito a famosa fotografia onde
se vêem, diante da catedral de Santiago de Compostela, dignitários,
eclesiásticos cobertos com seus ornamentos sacerdotais, fazendo a saudação
fascista, ao lado de alguns oficiais. Deus e a Pátria estão ali, lado a lado. Só
nos traziam a repressão e o sangue. (BUÑUEL, 1982, p. 240).
O Bispo, apesar de fazer parte do grupo e ter uma história de vida “burguesa”, pois afirma
que morava em uma casa grande, mostra-se sempre servil. Buñuel ataca essa postura da Igreja
Católica desde sempre, como sendo uma Igreja subserviente, ao dizer sobre a Espanha
(BUÑUEL, 1982, p. 240): “Deus e a Pátria estão ali, lado a lado. Só nos traziam a repressão e
o sangue”.
Na sequência (51’: 11’’), esta declaração de Buñuel se materializa de uma maneira muito
clara, apontando-nos as relações de poder nas suas bases mais microscópicas, uma vez que
vemos um membro do grupo de burgueses que representa a Igreja Católica sendo servil com a
dona da casa para atender aos membros do exército que acabaram de chegar. Percebemos
isso, quando então a cavalaria do exército chega adiantada, na casa de um dos burgueses,
sendo que estavam sendo esperados somente para o dia seguinte. A dona da casa pede ao
Monsenhor que busque cadeiras para os militares, ao que ele responde cordialmente:
Bispo: - A seu serviço, madame. (O DISCRETO..., 1972).
E mais à frente (52’:21’’), o Monsenhor desce as escadas carregando duas cadeiras, e a
dona da casa fica brava e diz:
Sra. Senechal: - Mas não são estas.
Bispo: - Eu vou buscar as outras.
Sra. Senechal: - Certo. (O DISCRETO..., 1972).
Ela vira as costas e depois, arrependida e com ar complacente, diz:
Sra. Senechal: – Monsenhor... está bem, está bem, deixe. (O DISCRETO...,
1972).
O Bispo assume uma postura não de alguém que está ajudando, mas sim servindo.
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Em outra sequência (1h29’: 41’’), Buñuel demonstra seu forte elo com a Igreja
Católica.
Logo no início, na delegacia de polícia, escutamos o Brigadeiro dizer que estava
lavando suas mãos, como se fosse uma passagem bíblica. Buñuel apresenta constantemente
referências à Igreja Católica em seus filmes. Nos campos associados entre o discurso religioso
e fílmico, vemos o homem que vai soltar os prisioneiros, no caso os burgueses, que são
criminosos, realizando um gesto que remete a uma passagem significativa descrita no livro da
Bíblia. Conta que Jesus foi levado a julgamento perante Pilatos, que disse ao povo (BIBLIA,
Mt 27,24 p. 1755):
Que farei de Jesus que chamam de Cristo? Todos responderam: que seja
crucificado! Tornou a dizer-lhes: Mas que mal ele fez? Eles, porém gritavam
com mais veemência: seja crucificado! Vendo Pilatos que nada conseguia,
mas, ao contrário, a desordem aumentava, pegou água e sabão e lavando as
mãos na presença da multidão, disse: Estou inocente desse sangue. A
responsabilidade é vossa. (BÍBLIA, p. 1755).
No livro da Bíblia, o gesto de lavar as mãos tem essa conotação, a de se isentar da
responsabilidade de algo, e é isso mesmo que o Brigadeiro faz. Ele se inocenta do dever de
cumprir a lei, afinal, ele estava somente seguindo ordens, como Pilatos. Aqui vemos mais
uma vez a transgressão de Buñuel das histórias do livro da Bíblia. Jesus Cristo foi condenado
à morte, e Pilatos se isentou da responsabilidade. No filme, o Brigadeiro liberta os criminosos,
os amigos burgueses e o Embaixador, como se não tivesse outra opção. Este é mais um campo
que associa o discurso da Igreja Católica, que endossa esse comportamento de esquiva
assumido pelo policial para proteger os burgueses, reiterando um mesmo enunciado.
Logo no início do filme, há outro momento em que encontramos o “O barulho que
oculta a discreta violência da burguesia”. Esse acontece quando o Embaixador se depara
com a jovem terrorista de Miranda.
Após o encontro frustrado com a amante, o Embaixador olha pela janela, a vê partir
com o marido e percebe a “terrorista” se aproximando de seu prédio (43’:16’’).
Imediatamente, ele pega a arma que mantém dentro de uma sopeira de louça. Escuta a
campainha tocar e sai pelos fundos do apartamento. Surpreende a terrorista e diz:
Embaixador: - Não se mova e levanta as mãos. (O DISCRETO..., 1972).
A terrorista levanta as mãos e ele pega a bolsa dela. Ele então passa a revistá-la em
busca de armas e apalpa seu corpo, dizendo:
Embaixador: - Decididamente é mais adequada para o amor do que para
jogar a guerra. (O DISCRETO..., 1972).
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Eles entram no apartamento. Vemos um close dos tênis velhos e rasgados da jovem,
enquanto em um movimento nervoso ela coça a perna. O Embaixador neste momento diz:
Embaixador: - Poderia me achar um safado, não é? Seria também um
socialista se acreditasse em Deus. Quantos anos você tem? (O DISCRETO...,
1972).
A terrorista se levanta, pega um abajur da mesa e o joga longe. O Embaixador dá
risada e diz:
Embaixador: - Você e seus amigos não têm nenhuma chance. A violência
não leva a nada. Sempre digo isso. Deve ser uma boa dona de casa. Aqui
está o pão, a alface, a chave dos sonhos (diz isso enquanto vasculha a bolsa
dela). (O DISCRETO..., 1972).
Ao encontrar uma arma na bolsa, diz:
Embaixador: - Caramba! Um homem prevenido vale por dois. Você não
concorda? Quer um pouco de champanhe? (O DISCRETO..., 1972).
Ele serve dois copos de champanhe:
Embaixador: - Tem dois irmãos menores?
Ela pega o copo de champanhe e o joga longe. O Embaixador se senta em frente à
moça, bebe seu champanhe e continua:
Embaixador: - Mas no fundo temos a mesma ideia. Na bomba atômica e na
poluição, por exemplo, você é contrária, também eu (enquanto isso começa a
passar as mãos na perna dela) ...
Embaixador: - Você é pelo amor livre, e eu também... (O DISCRETO...,
1972).
Neste momento, um som alto de alarme começa a tocar e a aumentar gradativamente.
Ela afasta as mãos do Embaixador, levanta-se e começa a falar, enquanto o som da buzina vai
aumentando cada vez mais até encobrir totalmente o que ela está dizendo. Podemos ouvir
apenas as primeiras frases:
Terrorista: - O senhor não tem o direito de me tocar. Mao Tse Tung...
Embaixador: - Ah, não, não, não. Se Mao disse assim, quer dizer que não
entendeu Freud. Refletindo bem, a solução para os problemas da fome e
miséria é a solução militar. Perceberá isso em Miranda quando deverá abrir
as suas belas coxas a um batalhão da infantaria. (O DISCRETO..., 1972).
Neste momento, ela pega a arma.
Embaixador: - Não concorda? (O DISCRETO..., 1972).
Ela tenta atirar, mas a arma não funciona, está sem balas. Ele estava de costas,
arrumando o abajur que ela jogou e, quando se vira, está com uma arma nas mãos apontando
para ela.
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Embaixador: - E agora? A sua está certamente carregada, porque veio para
me matar... (O DISCRETO..., 1972).
Ele tira a arma da mão dela, enquanto se aproxima.
Embaixador: - Poderia me livrar facilmente de você. Legítima defesa. Mas
mostrarei que sei ser muito generoso. A porta está aberta. Vá embora.
Embaixador: - Tenho um jantar esta noite, preciso me arrumar. Vá embora.
(O DISCRETO..., 1972).
Ela sai correndo do apartamento e bate a porta. O Embaixador larga a arma e corre
para a janela. Ele tira um lenço branco do bolso e faz um sinal para dois homens que estavam
na rua, lá embaixo. Os dois homens sequestram a moça assim que ela sai do apartamento e a
arrastam para um carro que parte. Depois vemos o Embaixador olhando tudo da sacada de seu
apartamento.
Neste embate entre a terrorista e o e Embaixador, Buñuel explicita através das imagens
e do texto, como o ocultamento por meio do barulho funciona enquanto estratégia para rebater
a resistência que a moça declara, inclusive fisicamente. Os governos ditatoriais, em sua
maioria, não escutam as reivindicações de grupos opositores, perseguindo-os e reprimindo-os,
como é o caso desse grupo terrorista que persegue o Embaixador, durante o filme.
O Embaixador ameaça a integridade física da jovem com seu comportamento
agressivo, mas sutil. Ele tem uma fala mansa, olhares sedutores, mas deixa claro a todo o
momento que tem total controle sobre a situação e, especialmente, sobre a vida dela.
Assim que a encontra na porta de seu apartamento, ele aponta a arma e a revista,
dizendo: “É mais adequada para o amor do que para jogar a guerra”, e a apalpa de maneira
inapropriada. Quando entra em seu apartamento, ela se senta na cadeira e ele em cima da
mesa, ficando em uma posição superior, acima dela, demonstrando que está no comando.
Ao revistar a bolsa da jovem, o Embaixador faz insinuações sobre sua vida simples,
sua posição de mulher, que cozinha e cuida de uma casa, o que contradiz com a real condição
dela de rebelde que está ali disposta a matá-lo.
Ele oferece champanhe a ela como se estivessem em um encontro romântico,
transvertendo totalmente o que ali se passa. Depois passa a mão nas pernas da jovem, cheio de
luxúria e, nesse momento, ela se rebela, levanta-se e diz: “O senhor não tem o direito de me
tocar, Mao...”, iniciando um discurso que não conseguimos escutar, pois um barulho alto de
sirene rouba a sua fala. Primeiro ela resiste, mas sua fala fica totalmente abafada pelo barulho.
Nesta sequência, podemos perceber posicionamentos políticos dentro de um embate, táticas
de poder e de resistência da jovem ao atirar o abajur longe e quebrar o copo, especialmente a
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reação que teve ao ser tocada, bem como ao tentar matar o Embaixador. Rafael, por sua vez,
rebate e devolve a violência.
O Embaixador com suas palavras: “Refletindo bem, a solução para os problemas da
fome e miséria é a solução militar”, oferece a alternativa que significa opressão. O
personagem está fazendo aqui alusão direta à linha dura das ditaduras. E por fim quando
sentencia: “Perceberá isso em Miranda, quando deverá abrir as suas belas coxas a um batalhão
da infantaria.” - a referência à tortura é clara. Muitas mulheres presas sob o regime ditatorial
militar no Brasil sofreram violências e torturas sexuais.
Silenciar vozes e encobrir reivindicações é um mecanismo de poder bastante utilizado
por governos ditatoriais, através de censuras, prisões e assassinatos.
A estratégia de silenciar pessoas resistentes ao sistema vigente foi muito utilizada por
governos ditatoriais militares em vários países da América Latina, inclusive pelo Brasil nas
décadas de 60, 70.
Acreditamos que Buñuel reitera em seus filmes a questão do terrorismo não como o
entendemos hoje em dia, mas como foi percebido naquela época: qualquer resistência a
governos, seja pela palavra, através de textos, panfletos ou manifestações, e por atos
violentos, como sequestros e assassinatos. O medo do Embaixador não era infundado. No
Brasil, foram registrados alguns casos de sequestro de embaixadores por grupos resistentes.
É bastante explícita, também, a maneira como Buñuel manifesta sua postura neste
filme com relação à situação dos países que viviam ditaduras militares, na América Latina.
Isso é possível através dos subterfúgios que utiliza, como os barulhos que silenciam vozes ou
mesmo através da fala de alguns de seus personagens. O diretor dá voz a todos os que
sofreram, rebelaram-se contra governos ditatoriais e suas formas de repressão, e foram
silenciados, uma vez que ele denuncia o que acontecia.
Buñuel provavelmente teve acesso a registros e relatos sobre os acontecimentos
referentes a esses fatos e optou por mostrá-los através da linguagem cinematográfica.
O tema da tortura aparece de maneira reiterada nessa obra de Buñuel. E este é mais um
campo que se associa no discurso fílmico do diretor. Percebemos que a questão da tortura
aparece reiteradamente em algumas sequências, e está diretamente ligada a governos
ditatoriais que utilizavam esta prática com muita frequência.
Vimos a primeira alusão à tortura no excerto (43’: 16’’), durante o encontro do
Embaixador com a terrorista. Um segundo momento visível acontece em (01h07’: 48’’),
quando o Embaixador comenta sobre os movimentos estudantis, fazendo alusão ao
100
assassinato de estudantes. E, por último, na sequência (01h24’: 36’’), em que os policiais
torturam um jovem rapaz com choque elétrico.
Em resposta à revolta e subversão de algumas pessoas, os governos ditatoriais
respondiam de maneira violenta. A resistência faz parte das relações de poder, e Foucault
(2012) afirma que a luta existe sempre. Quando se refere às relações de poder, aponta para o
que chama de “possibilidade de resistência” como algo que faz parte do movimento das
relações de poder:
Quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a
cada instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há
possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que
domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto
maior for a resistência. De modo que é mais a luta perpétua e multiforme que
procuro fazer aparecer do que a dominação morna e estável de um aparelho
uniformizante. Em toda parte se está em luta [...] e, a cada instante, se vai da
rebelião à dominação, da dominação à rebelião. (FOUCAULT, 2012, p.
227).
A luta e os movimentos estudantis da época em que o filme foi realizado eram muito
fortes no mundo todo. A França dos anos 70 respirava a liberdade que os movimentos
estudantis e greves gerais de 1968 sopravam. MARTINS (1996, p. 101) admite que “[...] os
estudantes não se contentaram com as mudanças na política, mas procuraram também ampliar
o espaço de liberdade na família, na vida sexual, na escola e em esferas insuspeitadas da vida
social [...]”. A resistência naqueles dias não era somente em relação à política, mas também
aos costumes, ou seja, às práticas sociais que se transformam, na análise, em discursivas.
Percebemos na sequência (01h07’: 48’’) o Embaixador Rafael Acosta como um porta-
voz dos acontecimentos daquela época. Isso fica visível quando ele se refere aos movimentos
estudantis em seu país e faz uma série de enunciações sobre os estudantes, afirmando sua
posição contrária às reinvindicações deles. Sua fala deixa claro o posicionamento do governo
sobre os jovens e o movimento estudantil, e como responde a eles. Podemos ver isso na
sequência fílmica, em uma conversa entre o Embaixador e alguns de seus convidados:
Sr. Sénéchal: - Notícias de Miranda? Como está a situação lá?
Embaixador: - Bastante calma.
Sr. Sénéchal: - E as guerrilhas?
Embaixador: - Ainda restam algumas, fazem parte de nosso folclore.
Sra. Sénéchal: - Alguns probleminhas com os estudantes?
Embaixador: - Os estudantes são jovens. Precisam se divertir.
Sra. Thévenot: - Qual o comportamento do seu governo em relação a isso?
Embaixador: - Não somos contra os estudantes. Ao contrário. Mas o que
se pode fazer quando se tem um quarto invadido por moscas? Pega-se
um mata moscas e pá, pá... (faz um gesto de matar moscas).
Sra. Thévenot: - Mais moscas. (O DISCRETO..., 1972).
101
A relação com os acontecimentos da França, país onde Buñuel vivia e filmou O
Discreto Charme da Burguesia, não pode ser ignorado. Em 1968, os movimentos estudantis
explodiram na França e no mundo, inclusive no Brasil. Na França, alcançando seus objetivos
em geral, mas no Brasil a ditadura esmagou violentamente as tentativas e apelos por
liberdade.
A sequência sobre tortura mais explícita, no filme, acontece quando em uma conversa,
um policial conta o caso do Brigadeiro sangrento e como ele agia em relação a outro policial:
Policial 1: - Como estava lhe dizendo, naquela época havia por desgraça um
Brigadeiro tão severo...olha a foto, é ele. Anulava todos os nossos esforços
para sermos queridos. Apesar de tudo, era um homem bom. (O
DISCRETO..., 1972).
Vemos, então, na sequência, o tal Brigadeiro interrogando um jovem na delegacia:
Brigadeiro: – Então, sempre silencioso? Responda sim ou não. (O
DISCRETO..., 1972).
Ele se aproxima do jovem e lhe dá um tapa no rosto.
Brigadeiro: - Então, não? Não quer falar? (O DISCRETO..., 1972).
O jovem continua mudo, ele arranca uma corrente do pescoço do rapaz.
Brigadeiro: - Escute, te dou uma última oportunidade. Decide-se a falar ou
não? (O DISCRETO..., 1972).
O Brigadeiro aponta para os outros dois policiais que ali estavam e ordena:
“Comecem!”
Enquanto conversam sobre a esposa e os filhos, um deles abre a calça do rapaz
enquanto outro segura uma corda, e o Brigadeiro intervém:
Brigadeiro: - Não, isso não! Não foi você, foi? É simpático, tem ideias
saudáveis, mas sabe quem foi. Então fale. E amanhã poderá sair com sua
garota.
Jovem: - Não tenho nenhuma garota.
Brigadeiro: - Está brincando com minha cara? Pior para você, vamos forçá-
lo a tocar piano. (O DISCRETO..., 1972).
Vemos um piano cheio de fios de corrente elétrica conectados, e os policiais colocam
o jovem dentro do piano. O rapaz grita que não, e um dos policiais diz que não vão matá-lo. O
Brigadeiro liga a corrente elétrica, e escutamos os gritos do rapaz. O Brigadeiro desliga a
corrente elétrica e pergunta: “Então? Vai falar? Nada de dizer?”. E ele liga a corrente elétrica,
e novamente escutamos o jovem gritar.
102
O terceiro momento em que detectamos “O barulho que oculta a discreta violência
da burguesia” foi após a prisão do Embaixador e do seu grupo de amigos (1h 28’:24’’). O
Brigadeiro (policial) entra na sala, e o Comissário está dormindo sentado na poltrona:
Brigadeiro: - Sente-se mal, Comissário?
Comissário: - É o senhor?
Brigadeiro: - Estava lavando minhas mãos, você chamou?
Comissário: - Não, sonhei que você soltava os prisioneiros.
Brigadeiro: - Eu? (O DISCRETO..., 1972).
Os dois riem.
Comissário: - Sim, o senhor, e parecia um boi degolado. Os sonhos às vezes
são tão verdadeiros. (O DISCRETO..., 1972).
O telefone toca (1h28’:51’’), e o Brigadeiro atende.
Brigadeiro: - Alô, sim? Bem, espere. O Ministro do Interior quer lhe falar.
(O DISCRETO..., 1972).
O Comissário atende o telefone.
Comissário: - Alô?
Comissário: - Sim, sou eu. Sim, senhorita, eu aguardo. (O DISCRETO...,
1972).
O Ministro entra em sua sala suntuosa e pega o telefone.
Ministro: - Comissário Delecluze? O senhor prendeu o Embaixador de
Miranda e seus amigos. Bem, deve soltá-los. Imediatamente.
Comissário: - Senhor Ministro, já há o processo verbal, é impossível.
Ministro: - Deixe o processo se perder e obedeça. Pronto e basta.
Comissário: - Senhor Ministro, poderia conhecer as razões que...
Ministro: - Escute, as nossas relações diplomáticas com a América.... (O
DISCRETO..., 1972).
Neste momento, o som alto de um avião cobre as palavras do Ministro, durante a
explicação. E o Comissário retruca:
Comissário: - Perdão, não ouvi.
Ministro: - Como não ouviu? Falei com clareza.... (O DISCRETO..., 1972).
O Ministro novamente explica, mas o som alto de outro avião cobre suas palavras.
Comissário: - Sim, está bem, entendi, senhor Ministro. (O DISCRETO...,
1972).
O Comissário desliga o telefone e abre a porta chamando o Brigadeiro que entra logo
após, na sala, e diz:
Brigadeiro: - Sim, senhor Comissário?
Comissário: - Solte os prisioneiros. (O DISCRETO..., 1972).
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O Brigadeiro retruca, mas não escutamos o que eles conversam porque, novamente, o
som alto da máquina de escrever do escriturário abafa as palavras.
Brigadeiro: - Imediatamente, senhor Comissário. (O DISCRETO..., 1972).
Segundo Vidal (2010, p. 286), Buñuel utilizou o sujeito que ocupa a função de
Ministro do Interior outras vezes, em outros filmes: A Idade do Ouro e O Fantasma da
Liberdade. De acordo com Vidal, quando o Comissário passa a informação para o policial a
seguinte frase é dita: “O exército e a burocracia parecem suficientes razões de Estado”.
Contudo, assistindo ao filme, com o barulho alto da máquina de escrever, difícil dizer o que
foi dito, e acreditamos que essa era a intenção de Buñuel, ou seja, que o espectador não
escutasse nada por causa de um total abafamento da fala. Este sujeito, o Ministro, aparece
aqui pela segunda vez em resgate dos burgueses. A primeira vez ocorre quando o Embaixador
conta aos amigos que foi parado no aeroporto e pediram para revistar sua bagagem em
(11h54’).
Percebemos, nesta terceira sequência fílmica, a reiteração do barulho de avião
cobrindo as desculpas do Ministro e do Comissário. Ao relembrar essa sequência, Vidal
(2010, p. 288) insinua: “Especialmente trata de questionar muito sutilmente a precariedade de
uma ordem baseada por convenções extremamente frágeis”. São tão frágeis pela facilidade
com que são manipuladas no emaranhado das relações de saber e poder.
O Comissário comenta, rindo, que sonhou que o Brigadeiro iria soltar os prisioneiros e
o mesmo não aceita tal afirmação até receber as ordens. E a afirmação de que “os sonhos às
vezes são tão verdadeiros” reafirma que o gesto de lavar as mãos, do Brigadeiro, era uma
previsão do que estava por vir.
O ocultamento, como se viu, também é recorrente no filme, como uma estratégia de
proteger os interesses do grupo de burgueses. O barulho que encobre as explicações para atos
ilegais garante e mantém a segurança do grupo e sua dominação, quando, no caso, não revela
detalhes de sua ação ilícita de vender cocaína, ou revela o nome do outro Embaixador
criminoso. Isso também ocorre mesmo nos momentos em que ações ilícitas são justificadas,
como foi o caso da soltura da prisão do grupo de burgueses, ou então quando oculta a voz da
moça para depois levá-la à tortura, em cativeiro.
Buñuel (1972), no filme, recorre à trama surreal, com situações que poderiam ser
consideradas absurdas para afirmar seu posicionamento em relação ao Embaixador, ao grupo
de burgueses, à Igreja Católica e ao exército. Percebe-se, em seu discurso midiático, uma
manipulação nos sentidos do discurso uma vez que, ao utilizar o recurso de barulhos cobrindo
104
vozes, ele faz uma exposição muito objetiva de coisas que acontecem “por baixo dos panos”,
ou seja, não vistas nem escutadas. O barulho, portanto, tem uma função bem clara na trama.
A reiteração do enunciado “O barulho que oculta a discreta violência da
burguesia” pode ser percebida em várias sequências fílmicas. Buñuel empregou um recurso
simples, mas brilhante, para evidenciar os mecanismos de poder que permeiam as relações
nesse filme. Para abafar vozes, explicações, julgamentos e reivindicações, ele utilizou sons do
dia a dia, como os sons de carro, avião, máquina de escrever e de sirene de uma fábrica. Neste
caso o que vemos é como o grupo de amigos burgueses consegue, através de estratégias
específicas, efetivamente controlar situações a seu favor.
No próximo capítulo traçaremos breves considerações finais sobre esta pesquisa.
105
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta pesquisa foi analisar o filme O Discreto Charme da Burguesia, de
Luis Buñuel (1972), por meio de alguns conceitos arqueogenealógico, de Michel Foucault.
Em Foucault, detivemo-nos nos conceitos “saber” e “enunciado discursivo” em suas
relações com o “poder” e “verdade”. Além disso, à medida que a pesquisa foi-se definindo,
concentramo-nos também em aspectos da vida de Luis Buñuel, do cinema surrealista, e em
aspectos da ditadura militar sul-americana e do Brasil. A vida de Buñuel levou-nos também a
desejar estudar algumas relações entre Marx, teórico principal do posicionamento deste
diretor, e Foucault, e isso também foi delineado neste trabalho.
A teoria de Análise de Discurso de Michel Foucault permitiu-nos apreender as
relações de poder e saber no discurso fílmico de Luis Buñuel, e desvendar as menores
nuances desses mecanismos exercidos pelos sujeitos ali apresentados: sujeitos burgueses.
Um filme, assim como outras obras de arte, tem o potencial de nos sensibilizar das
mais variadas maneiras. A obra que escolhemos para analisar nesta pesquisa, particularmente
pelas provocações, faz-nos questionar a respeito do mundo em que vivemos, seus mecanismos
e efeitos do poder.
Analisar este filme e revelar as práticas das relações de saber e poder ali perpetuados
pelo discurso imagético de Buñuel, por meio de suas imagens, sons e personagens, é
extremamente importante. Com isto passamos a perceber como as relações de poder se dão
numa esfera de micropoderes que passam quase despercebidas, mas que Buñuel mostra, em
seu filme, através de uma lente de aumento surrealista.
Escolhemos algumas sequências que se associam dentro do mesmo campo discursivo
a partir de três excertos específicos que demonstram barulhos e silenciamentos, ocultando
situações e comportamentos e reiterando o enunciado desta investigação.
Observamos o posicionamento do grupo dos burgueses, ao longo do filme,
demarcando como os seus saberes o instrumentalizam de modo a dominar as situações a seu
favor. Através de gestos, palavras e saberes sedimenta-se o poder que permeia todo o
movimento desse grupo. O poder para Foucault não é algo necessariamente negativo, mas
pode desencadear a dominação de um grupo sobre outro. O que vimos aqui não foi uma
dominação completa de um grupo sobre outro, mas um movimento sutil em que os
procedimentos de poder são constantemente “reajustados, reforçados e transformados”, como
diz Foucault (2006, p. 249), oferecendo espaços para a criação de uma diversidade de relações
de dominação.
106
As situações nas quais o grupo dos burgueses está envolvido e que são o foco central
deste filme de Buñuel demonstraram enunciativamente a formação de um discurso de como
este grupo coordena saberes, já que desenvolve constantemente fortes estratégias em que se
percebe “[...] uma produção multiforme de relações de dominação [...]” (FOUCAULT, 2006,
p. 249).
Percebe-se no discurso midiático de Buñuel uma manipulação nos sentidos dos
discursos de governos ditatoriais, da Igreja Católica e do grupo de burgueses. Ou seja, o grupo
em destaque sempre fica ileso, independente dos atos ilícitos que comete. O Embaixador, que
personifica os governos ditatoriais, apesar de ser criticado em alguns momentos por seus
pares, não sofre nenhum tipo de sansão. O Monsenhor, que representa a Igreja Católica,
comete atos extremos, como matar um ser humano, mas mesmo assim ele se sujeita às
vontades dos outros burgueses que o acobertam.
O conceito de Foucault sobre a formação da burguesia aponta os caminhos escolhidos
por esse grupo no discurso imagético de Buñuel. Os burgueses caminham aproveitando-se dos
dispositivos de controle que vão surgindo. Com isso, dominam as situações da melhor
maneira que encontram, utilizando seus saberes que lhes conferem posições e facilitam assim
certas ações, o que não significa que necessariamente se organizam e planejam dominar e
controlar. E da mesma maneira outros grupos, como é o caso dos terroristas e estudantes, e
mesmo dos policiais, demonstram resistência a esse movimento dos burgueses.
Em 1972, Buñuel produziu verdades através desse discurso imagético e surreal,
demonstrando como as estratégias de ocultamento - falas escondidas sob algum barulho, e as
relações de saber, transbordam o poder que é exercido muitas vezes através de coerções.
O saber e o poder manifestos em formações discursivas e visualizados por meio da
pesquisa arqueogeneólogica de Foucault possibilitou-nos observar discursos que apontam
para o real da sociedade em vivemos.
Desta maneira o enunciado que encontramos nesta pesquisa nos apresenta condutas
que estão saturadas com nossa atualidade histórica, e demonstra através de identificações
ainda muito atuais, como os burgueses se relacionam e se aproximam do modo que elaboram
saberes. As normas e condutas especificamente criadas por e para este grupo, nesse processo,
produz efeitos de poder e de dominação para todo o corpo social.
Essa é a luta que a sociedade vai travando enquanto caminhamos. Vamos criando mais
e mais dispositivos disciplinares, de vigilância e de controle. Tornando-nos sujeitos através
das nossas práticas, produzindo saberes dessas articulações diárias, materializamos nossos
discursos em manifestações históricas, e assim descontinuamente seguimos.
107
REFERÊNCIAS
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