EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: APROXIMAÇÕES ENTRE PETER...

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FERNANDO FREITAS DOS SANTOS FLORIANÓPOLOIS, 2016 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC DEPARTAMENTO DE ARTE – CEART MESTRADO EM TEATRO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: APROXIMAÇÕES ENTRE PETER BROOK E UMA PRÁTICA TEATRAL NA ESCOLA

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FERNANDO FREITAS DOS SANTOS

FLORIANÓPOLOIS, 2016

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC DEPARTAMENTO DE ARTE – CEART MESTRADO EM TEATRO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: APROXIMAÇÕES ENTRE PETER BROOK E UMA PRÁTICA TEATRAL NA ESCOLA

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

S237e

Santos, Fernando Freitas dos

Em busca do peixe dourado: aproximações entre Peter Brook e uma prática teatral na escola / Fernando Freitas dos Santos. - 2016.

215 p. il.; 21 cm

Orientadora: Márcia Pompeo Nogueira Bibliografia: p. 209-215 Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro

de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2016.

1. Teatro - Estudo e ensino. 2. Teatro na educação. 3. Ensino. 4. Peter Brook. I. Nogueira, Márcia Pompeo. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. III. Título.

CDD: 792.07 – 20.ed.

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FERNANDO FREITAS DOS SANTOS

EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: APROXIMAÇÕES ENTRE

PETER BROOK E UMA PRÁTICA TEATRAL NA ESCOLA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teatro. Banca Examinadora

Orientadora:

_______________________________________

Profa. Dra. Marcia Pompeo Nogueira Universidade do Estado de Santa Catarina

Membros:

_______________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

Universidade de São Paulo (USP)

_______________________________________ Prof. Dr. Flávio Augusto Desgranges de Carvalho

Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis/SC, 24 de maio de 2016

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Aos meus pais, Dercilia Freitas e Aldenir dos Santos, por primarem pela minha educação, por serem meu alicerce e por me fazerem seguir adiante. Eu nada seria sem vocês.

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AGRADECIMENTOS

A toda minha família, em especial aos meus irmãos, Lucas Vinicius e Alex Junior, minha avó, Dirce Espirandeli, meus tios, Paulo Sérgio e Paulo Henrique, minhas tias, Cida, Cássia e Vanda, meu primo Mateus Henrique e minhas primas Thais Fernanda, Gabriela Freitas e Valéria Espirandeli. Obrigado por acreditarem em mim.

Ao Matheus Vinícius por todo apoio, compreensão e momentos compartilhados durante essa árdua caminhada.

À professora Dra. Marcia Pompeo Nogueira que acreditou na minha proposta de pesquisa e me orientou de maneira atenta e generosa.

Aos professores Dr. Flávio Desgranges e Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo por terem aceitado o convite de participar da banca examinadora e pelas valiosas contribuições.

Ao professor Dr. José Ronaldo Faleiro pelos relevantes apontamentos no exame de qualificação.

Ao Natanael Machado pelo suporte durante a pesquisa de campo, as professoras Juliana Gil e Lígia Carrijo e toda equipe da escola que, diretamente ou indiretamente, colaboraram para a fase prática deste estudo.

Aos companheiros de mestrado por compartilharem reflexões e inquietações, principalmente à Tefa Polidoro e ao Jura Mendes pela amizade, pelas risadas e pelos momentos de afago.

À secretaria do PPGT da UDESC, especialmente à Mila Leite, pelo trabalho atencioso e, sobretudo, humano.

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Aos professores do PPGT, em especial Biange Cabral e Tereza Franzoni pelos ensinamentos e provocações.

Aos amigos que pude fazer na ilha de Florianópolis/SC, Stèphanie Pinheiro, Cecília Lauritzen, Gabriel Campos, Taaly Segati, Carla Liz, Dayana Roberta e Ana Socorro.

À minha turma de Artes Cênicas da Universidade Federal da Grande Dourados e da Universidad de Guanajuato, principalmente a Jenifer Lopes, Anderson Andrade, Joyce Regina Matoso, Laíse Rosato, Samara Felicio e Mayara Alice.

À FAPESC pela bolsa de estudo que proporcionou maior dedicação a esta pesquisa.

A todos que torceram pelas minhas conquistas e sustentaram as minhas quedas.

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O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.

Manoel de Barros

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RESUMO O presente trabalho visa olhar para o ensino de teatro na escola a partir da figura do peixe dourado. Esse peixe tão singular, revelado por Peter Brook, está associado à qualidade do momento que é capturado em um evento teatral. O encenador inglês expõe que a configuração de um espetáculo se assemelha ao processo de elaboração de uma rede de pesca, visto que o entrelaçamento dos fios e as amarras dos nós determinam a espécie de peixe que será fisgada. Por essa razão, na presente pesquisa são escolhidos quatro aspectos pedagógicos considerados como os mais relevantes nos processos teatrais dirigidos por Peter Brook, na tentativa de compreender como uma rede de pesca pode atuar de maneira profícua para atrair o peixe dourado em um contexto educacional. Desse modo, a dissertação se divide em duas partes: na primeira é realizada um estudo da metáfora do peixe dourado e dos aspectos pedagógicos selecionados; “intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo. Na segunda é feita uma descrição e análise de como os aspectos elegidos foram articulados a uma prática teatral realizada de março a agosto de 2015 com alunos de faixas etárias que variam dos sete aos doze anos em uma escola de Florianópolis, Santa Catarina. Palavras-chave: Ensino de Teatro. Escola. Peter Brook. Peixe Dourado.

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ABSTRACT

This study aims to look at the theater in school education from the goldfish figure. This fish so unique, revealed by Peter Brook, is associated with the quality of the time that is captured in a theatrical event. The English director states that the configuration of a spectacle resembles the development of a fishing net process, since the entanglement of wires and the bonds of us determine the species of fish to be hooked. For this reason, in this study, they are chosen four pedagogical aspects considered most relevant in theatrical processes directed by Peter Brook, in an attempt to understand how a fishing net can act in a fruitful way to attract the goldfish in an educational context. Thus, the thesis is divided into two parts: the first is carried out one study of metaphor goldfish and selected pedagogical aspects: "amorphous intuition," dialogue "empty space" and game. In the second, a description and analysis is made of how the chosen aspects were articulated a theatrical practice carried out from March to August 2015 with students ages ranging from seven to twelve years old in a school of Florianópolis, Santa Catarina.

Keywords: Teaching of Theatre. School. Peter Brook. Golden fish.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Fase da elaboração de desenhos .... 114

Figura 2 - Momento da apresentação e ............ 117

Figura 3 - Desenho da trilha de Ratones .......... 118

Figura 4 - Desenhos sobre Ratones ................. 120

Figura 5 - Atividade “Labirinto da Escuta” ........ 132

Figura 6 - Jogo “A caixa mágica” ...................... 137

Figura 7 - “Caixa Mágica” em duplas. ............... 145

Figura 8 - Caminho Imaginário ......................... 152

Figura 9 - Caminho imaginário de Ratones ...... 153

Figura 10 - Jogo “O que fazer?” ....................... 156

Figura 11 - Jogo ressignificar o objeto .............. 158

Figura 12 - Experimento “Trilha Assombrada”. . 165

Figura 13 - Experimento “Caminhos do meu .... 168

Figura 14 - Apresentação de “Caminhos do meu

lugar”. ............................................ 168

Figura 15 - Elaboração das máquinas .............. 177

Figura 16 - Travessia da “ponte móvel”. ........... 179

Figura 17 - O “ovo de baleia voadora” sendo ... 181

Figura 18 - Momento da apresentação do ........ 182

Figura 19 - Fotos reveladas pelos alunos. ........ 184

Figura 20 - O peixe dourado, 1925. .................. 197

Figura 21 - O peixe dourado de Ratones. ........ 200

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.........................................................19 2 O PEIXE DOURADO DE PETER BROOK: APROXIMAÇÕES ENTRE A PESCA E O TEATRO...................................................................27 2.1 A BUSCA PELO PEIXE DOURADO NA ÁFRICA .............................................................. ....39 2.2 PETER BROOK NO IRÃ: A PRESENÇA DE UM PEIXE VENENOSO ................................................ 49 2.3 ESCOLHA DE ALGUNS FIOS DA REDE DE PESCA DE PETER BROOK ................................................ 52 2.3.1 “Intuição Amorfa”: turvos caminhos para um

processo teatral ..................................................... 52 2.3.2 A presença do diálogo como possibilidade de

tensão .................................................................. 61 2.3.3 Espaço vazio: ausências que suscitam

reticências ............................................................. 68 2.3.4 O jogo como campo instável e aberto ao

imprevisível ......................................................... 78 2.3.5 O entrecruzamento dos fios .............................. 85 2.4 ENTRELAÇAMENTOS ENTRE DADOS

BIOGRÁFICOS DE PETER BROOK E SUA PRÁTICA TEATRAL ............................................. 86

3 EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: COMPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DE UMA REDE DE PESCA EM ÁGUAS EDUCACIONAIS ............ 97

3.1 PETER BROOK E O CONTEXTO EDUCACIONAL: LIMITES E POSSIBILIDADES .............................. 97

3.2 O CONTEXTO DA COMUNIDADE E DA ESCOLA ............................................................... 98

3.2.1 Ponto de Partida ............................................... 104 3.2.2 Um convite para observar o lugar em que habito ................................................................ 109

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3.2.3 Das fotografias ao desenho ........................... 114 3.2.4 Do desenho ao jogo ........................................ 121 3.2.5 Escutar e aceitar ............................................. 130 3.2.6 A continuidade do trabalho ............................ 150 3.2.7 Experimentos Cênicos ................................... 159 3.2.8 Fotografias do “vazio” .................................... 171 3.3 VESTÍGIOS DA PRESENÇA DO PEIXE DOURADO ........................................................ 187 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................... 201 REFERÊNCIAS.................................................. 209

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1 INTRODUÇÃO

Natural de Naviraí, interior do Mato Grosso do Sul,

me mudei na adolescência para Dourados, município do mesmo estado. O nome da cidade advém do rio Dourados, que é conhecido dessa maneira pela facilidade de pesca do peixe dourado. Talvez de forma inconsciente ou, então, por ironia do destino, o foco dessa pesquisa está centrado na análise de aspectos que visam atrair o peixe dourado. Mas, atenção! Este não é um trabalho de aquicultura e tampouco dedica-se ao estudo da fisiologia de peixes. Destaco que não me dedico a este campo de estudo em seu sentido literal. Pretendo nesta pesquisa lançar o olhar para o contexto educacional cujo enfoque reside na metáfora do peixe dourado descrita por Peter Brook.

A primeira vez que li A porta aberta (2011) o tecer das palavras de Peter Brook, especialmente no capítulo sobre o peixe dourado, atuou em mim como uma potente rede de pesca que fisgou minha atenção e interesse pelo tema. Afetado pela concepção de entrelaçamento da pesca com o teatro passei a visualizá-la como uma instigante área de investigação.

Em 2009, ano em que comecei a acercar-me dos escritos de Peter Brook, cursava licenciatura em Artes Cênicas/Teatro na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e, como bolsista de um projeto de extensão, atuava como professor de teatro do ensino fundamental em período extraclasse numa escola de Dourados. Desde essa época a aproximação entre Peter Brook e o contexto escolar era uma tônica pulsante em mim e diante disso resolvi debruçar-me sobre esse tema. O ingresso no Programa de Mestrado em Teatro da UDESC possibilitou-me dedicação e aprofundamento nesta pesquisa.

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Como tecer uma rede de pesca no contexto educacional que seja convidativa ao peixe dourado? Essa pergunta conduziu meu olhar para os referenciais bibliográficos de Peter Brook, e em busca de respostas realizo este estudo.

Importante destacar que a presença de Peter Brook na escola não é algo incomum, pois em diversos processos teatrais em que atuava como diretor ele realizava ensaios em pátios e galpões de escolas cujo desafio consistia em despertar o interesse das crianças pelo trabalho ainda em processo. Brook preferia apresentar a peça ainda em fase de elaboração para as crianças porque muitas delas não sabiam da importância de seu nome dentro do cenário teatral, assim era mais fácil elas expressarem de maneira sincera suas opiniões sobre o trabalho apresentado.

Essa é uma das posturas de Peter Brook que faz com que ele seja citado como um encenador-pedagogo. De acordo com Marco Aurélio Bulhões Martins (2004), o início do século XX é marcado por uma grande revolução no teatro, pois nesse período surge uma proposta de preparação do ator de modo diverso à que havia até o final do século XIX. O texto sobre a cena deixa de ocupar o lugar de destaque. É justamente nessa época que emerge a ideia de encenador-pedagogo. Segundo Martins (2004, p. 40), “Meyerhold foi um dos primeiros a escrever sobre a competência de um encenador de teatro, logo após assistir aos ensaios de Stanislaviski, referindo-se ao diretor como um metteur-em-scéne-professeur (encenador-pedagogo).”

Josette Féral (2003) explica que, na França, no início do século XX, Jacques Copeau, Charles Dullin e Louis Jouvet foram os primeiros a sinalizar que o ator necessitava de uma preparação sistemática e contínua, visto que esse tipo de formação não existia nas

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instituições de ensino de teatro daquele período. A partir disso, conforme a autora pontua, foram criados “(...) os teatros-escola, os teatros-laboratório cujos herdeiros diretos são, hoje, Grotowski, Barba e, indubitavelmente, Mnouchkine e Brook” (FÉRAL, 2003, p.51).

Instala-se uma nova proposta de teatro em que o caráter textocentrista vai aos poucos perdendo sua força e as discussões acerca do processo de formação do ator são colocadas no centro da cena. Neste aspecto, conforme as palavras de Josette Féral (2003, p. 55):

De Meyerhold a Brook, passando por Appia, Craig, Reinhardt, Copeau, Dullin, Decroux, Lecoq, Vitez, todos os mestres se esforçaram por conceber exercícios apropriados para permitir que o ator tivesse uma formação do corpo e do espírito. Se tivéssemos de compará-los, não seria difícil constatar que o gênero de exercícios preconizados por uns e por outros muda totalmente de uma abordagem a outra. Essas diferenças se justificam pelos procedimentos pessoais dos próprios artistas e pelo gênero de representação teatral por eles privilegiado, assim como pela finalidade visada - sendo cada exercício concebido para um fim específico.

A concepção de formação de ator como proposta pedagógica passou a ser melhor articulada e embasada, principalmente no início do século XX a partir do trabalho de grandes nomes do teatro, tais como os abaixo citados por Jacó Guinsburg e Rachel Araújo Fuser (2002, p. 213):

Influenciados por Artaud, pelo Teatro Oriental (sobretudo o chinês, japonês e indiano) no âmbito das manifestações

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tradicionais (Nô, Kabuki, Ópera de Pequim, Katakali etc) e no das formas recentes (Butô, por exemplo), sem esquecer os mestres do Teatro Moderno, sob este impacto diretores-pedagogos, como Grotovski, E. Barba, Peter Brook e outros, principalmente a partir dos anos 60 do século XX, tendem a pensar no ator como um ser que pelo seu modo de ser é único, inimitável, com um caminho pessoal, com respeito à expressividade, aos modos de adestramento e aprendizado. Nesse sentido, tanto os membros do Teatro Odin, de E. Barba, na Dinamarca, como os da trupe multiétnica, de Peter Brook, na França, por exemplo, são instados a realizar viagens, experimentos, estabelecer contatos com outras culturas por conta e escolhas próprias, assim como praticar treinamentos personalizados.

Em Conversas sobre a formação do ator (2010), Jacques Lassale e Jean-Loupe Rivière discutem sobre a responsabilidade e o papel de coordenadores, encenadores e diretores frente a um processo de formação de atores. A preocupação dos teóricos é que os profissionais possam, no decorrer dos anos, tornarem-se não apenas reprodutores de papéis, mas sim protagonistas de sua própria arte. A partir do questionamento de Rivière acerca da necessidade de se pensar uma pedagogia do ator, Lassale responde que, em face da multiplicação desenfreada de conteúdos e métodos de atuação, a urgência para se pensar a pedagogia do ator é extremamente relevante. Ele destaca que não se refere a uma pedagogia técnica e instrumental, “(...) mas sim de uma pedagogia da curiosidade, da abertura aos saberes e às tradições, que se destine

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igualmente, de forma plena, aos temas e às pessoas”. (LASSALE; RIVIERE, 2010, p. 24).

Partindo da atuação de Peter Brook como encenador-pedagogo escolhi quatro aspectos pedagógicos que considero bastante significativos em seu trabalho para analisá-los como potentes fios de uma rede de pesca capaz de atrair o peixe dourado. São eles: “intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo. Para tal, além dos materiais bibliográficos de Peter Brook como A Porta Aberta (2011), Ponto de Mudança (1994), Fios do Tempo (2000) e O Teatro e seu Espaço (1970); recorro também a Jean Pierre Ryngaert (2009), Matteo Bonfitto (2009), Oshi Oida (2007), John Dewey (2010), Flávio Desgranges (2012), Jorge Larrosa Bondía (2002), Walter Benjamin (1984), Henri Bergson (1964), Manfred Wekwerth (1986), Patrice Pavis (2010), Wolfgang Iser (2002a), Jacó Guinsburg e Rachel Araújo Fuser (2002) e Denis Guénoun (2004).

A análise dos quatro vetores de trabalho de Peter Brook por mim selecionados me mobilizaram a desenvolver uma pesquisa de campo de março a agosto de 2015, com aproximadamente cinquenta estudantes com faixas etárias que variam dos sete aos dozes anos, em uma escola localizada em Florianópolis, Santa Catarina. Meu objetivo como condutor das aulas de teatro consistiu em tecer uma rede de estratégias metodológicas capaz de convidar o peixe dourado a transitar por águas educacionais.

Isto posto, estruturo essa dissertação em dois capítulos. No primeiro faço um estudo sobre o peixe dourado de Peter Brook: o que é o peixe dourado no teatro? Quais as características, a natureza e os traços desse peixe tão singular? Em que medida a “intuição amorfa”, o diálogo, o “espaço vazio” e o jogo contribuem para que o peixe dourado dê o ar de sua graça? Além

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disso, apresento alguns dados biográficos de Peter Brook para, a partir deles, estabelecer um entrelaçamento com a prática teatral do diretor inglês.

No segundo capítulo, descrevo o desenvolvimento do processo da pesquisa de campo. No início exponho um panorama do contexto escolar e da comunidade em que a prática foi realizada. Na sequência, explicito como propostas metodológicas de autores como Viola Spolin (2010, 2001b), Augusto Boal (1991, 2012) e Marcia Pompeo Nogueira (2015) me ajudaram a conduzir o processo na escola inspirado nos aspectos pedagógicos de Peter Brook. Além deles, me utilizo também de Paulo Freire (2011), Vigotski (2009, 2010), Ingrid Dormien Koudela (2009), Maria Lúcia Pupo (2005, 2008), Flávio Desgranges (2011), Keith Johnstone (1990), Antony Frost e Ralph Yarrow (1990), Henry Giroux (1999), Donald Winnicott (1975), Carmela Soares (2010) e Beatriz Ângela Vieira Cabral (2006).

Ademais, na tentativa de identificar possíveis rastros deixados pelo peixe dourado durante a pesquisa de campo, assim como analisar os momentos em que ele se afastou, realizei entrevistas com os estudantes que participaram do processo e recebi pareceres dos professores que puderam acompanhar algumas aulas.

Importa-me destacar que observo-me nesta dissertação como um tecelão. Fui mobilizado a tecer uma rede de estratégias metodológicas dentro de um contexto educacional que foi inspirada na prática de Peter Brook. Agora teço as palavras, na tentativa de estruturá-las da melhor maneira possível, a fim de compor uma articulação dissertativa-argumentativa que exponha um entrelaçamento contextual dos quatro aspectos que considerei mais oportunos do trabalho de Peter Brook com a pesquisa de campo que realizei na escola.

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Tenho consciência de que o tema deste trabalho é profundo e complexo, por isso meu intento não é esgotar seu assunto. Espero que este estudo traga a consciência da existência de peixes dourados e incentive tecelões-professores/pesquisadores/artistas a tecerem suas redes de pesca para lançá-las em águas educacionais. Portanto, sem mais delongas, torço para que esta pesquisa possibilite uma instigante pescaria.

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2 O PEIXE DOURADO DE PETER BROOK: APROXIMAÇÕES ENTRE A PESCA E O TEATRO

Peter Brook, em A Porta Aberta (2011), tece um

paralelo entre a pesca e o teatro. O diretor inglês afirma que na pesca a captura de um peixe dourado é um momento de graça. Para obter tal êxito o pescador necessita de cautela e esmero na construção da rede de pesca para que as interligações dos fios e amarras dos nós configurem o vazio correspondente às características do peixe almejado. A diferença entre a pesca e o teatro, para ele, reside na sorte. Tal argumento é pautado na seguinte justificativa: enquanto na pesca a captura de um peixe dourado depende da sorte, visto que até mesmo numa rede bem feita um peixe ruim pode ser fisgado, no teatro aqueles que apertam os nós e entrelaçam os fios são os responsáveis pela qualidade do momento que é capturado em suas redes. O tipo de peixe fisgado no teatro é determinado pelos nós e entrelaçamentos dos fios da rede construída.

De acordo com Peter Brook, para que o peixe dourado seja seduzido num evento teatral é preciso que as cadeias de momentos se evidenciem como potência de acontecimento. Para ele, “(...) o aspecto da realidade que o ator está evocando deve despertar uma reação na mesma área em cada espectador, fazendo com que, por um momento, o público viva uma impressão coletiva” (BROOK, 2011, p. 70). Construir uma rede de pesca no teatro, cuja finalidade seja o peixe dourado, requer ligação de fios mediante nós de caráter provocativo capaz de mobilizar o espectador a criar um processo singular que, instaurado num espaço potencial, possa promover momentos de impressão coletiva.

Segundo Peter Brook, o fascínio é uma isca importante para que o peixe dourado seja atraído a uma

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rede de pesca. A presença do fascínio possibilita uma relação significativa entre ator e público e pode ser verificada através do seguinte aspecto: “naquela fração de milésimo de segundo em que o ator e a plateia se inter-relacionam como num abraço físico, o que importa é densidade, a espessura, a pluralidade de níveis, a riqueza – ou seja, a qualidade do momento” (BROOK, 2011, p. 70).

Um momento de qualidade, para Peter Brook, provém de uma base que unifica todos os presentes de forma densa e profunda. Essa busca de Brook por momentos fascinantes no teatro, capazes de atrair o peixe dourado, parece-me uma busca para que experiências sejam suscitadas. O sentido da palavra experiência que me refiro é explicada por Jorge Larrosa Bondía (2002) como algo que afeta o indivíduo: “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitos coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (2002, p. 21). O peixe dourado associado a esta acepção de experiência não pode ser confundido com um peixe comestível, este apenas alimenta uma plateia que, ao terminar de degustá-lo, retorna a sua casa incapaz de recordar o seu sabor no dia seguinte. O peixe dourado, ao contrário, deixa marcas, afeta e é capaz de provocar experiências.

Bondía (2002) destaca que o sujeito da experiência é aquele desarmado de convicções e acessível às vicissitudes do aqui-agora. Esse sujeito é determinado pelo seu caráter acolhedor, disponível e passivo. A passividade, neste caso, não significa apatia e indiferença, pelo contrário, remete a um estado de escuta, atenção e espera. O sujeito prioriza o momento presente e se expõe. Esta exposição revela a fragilidade do indivíduo e o desafia para se permitir a novas

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oportunidades do aqui-agora. Se expor implica desnudar-se frente ao inesperado.

Compreendo esse desnudar-se do espectador frente ao evento teatral como um ato de leitura que nega uma lógica racional imediata da proposta artística por meio de significados pré-estabelecidos. Segundo Flávio Desgranges (2012), o espectador que recorre a significados precipitados e prematuros para rapidamente efetivar uma interpretação e conclusão do espetáculo, possivelmente, bloqueará uma experiência:

O ato de leitura, desse modo, se inviabiliza como experiência, pois abandona o risco iminente e prefere ancorar-se em significados recorrentes, estabelecidos pelas produções simbólicas em voga. O que reduz a leitura à mera opinião de um sujeito bem informado, que associa a proposta artística ao primeiro parecer pretensamente crítico ou supostamente criativo que lhe sirva no momento de perigo. Como ato estratégico que lhe possibilite alívio ante a ameaça do desconhecido, do que precisa ser inventado, do que não está ainda pronto, do que lhe faz um convite e lhe solicita disponibilidade para a experiência poética (DESGRANGES, 2012, p. 18).

Flávio Desgranges ainda acrescenta que a indisponibilidade do espectador para a experiência “(...) parece dar-se, por vezes, pelo excesso de informação, ou melhor dizendo, pela instrumentalização da recepção, estabelecida ao tomar-se o modo informativo ou comunicativo como padrão estético de leitura” (2012, p. 19).

Nessa mesma direção, Jorge Larrosa Bondía (2002) enfatiza que informação e experiência não devem

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ser compreendidas como palavras sinônimas. A obsessão dos indivíduos em buscar profusas informações faz com que nada lhe toque e afete. Há apenas uma reação inconsciente aos estímulos dos acontecimentos que impede uma significativa conexão com os fatos. A memória é bombardeada de eventos que, de forma repentina, são alterados por outros momentos igualmente convidativos sem que seja possível deixar qualquer tipo de indícios. Esse sujeito, marcado de estímulos, faz com que muitas coisas lhe atinjam, porém nada lhe acontece.

John Dewey (2009), em consonância a Bondía, destaca que uma experiência estética requer momento de sujeição, de incorporar algo diferente do que já era sabido anteriormente. Essa sujeição significa desarmar-se de convicções para estar acessível às contingências do momento presente. Segundo o autor, a cobiça por informações configura um modo de vida acelerado que impede o indivíduo de ter uma experiência singular. Dewey assinala que “o gosto pelo fazer, a ânsia de ação, deixa muitas pessoas, sobretudo no meio humano apressado e impaciente em que vivemos, com experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais” (DEWEY, 2009, p. 123).

Em busca de não perder tempo, sujeitos presos ao passado e/ou ansiosos com o futuro, visam desempenhar inúmeras atividades no menor prazo possível. É uma corrida contra o tempo. Mas, ao contrário de um maratonista, não há um ponto de partida e tampouco de chegada. São momentos plasmados no presente em que não há antecipação e nem prospecção. A progressão do tempo ocorre a partir de uma linha afadigada e carente de recordação. Há reações inconscientes e o tempo se esvai, desvanece. É o tempo em que o sujeito está, mas o qual não se permite ser.

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Podemos notar, com base nos apontamentos de Desgranges (2012), Bondía (2002) e Dewey (2009), que a hiperdosagem de informação pode inviabilizar uma experiência, pois não abre espaço para a reflexão e a produção de sentidos. O sujeito que se pauta no excesso de informação como modo operativo de leitura, possivelmente, construirá uma armadura para que o peixe dourado não lhe atravesse e deixe marcas em sua geografia.

Interessa-me ainda destacar que, segundo Dewey (2009), é necessário que o artista, no ato de sua produção, se relacione organicamente com o ato estético de sua percepção. A título de exemplo, no ato de pintar um quadro o pintor utiliza dos movimentos das mãos: sua destreza manual a cada pincelada opera diretamente na ação. Todavia, para uma experiência estética é imprescindível que os órgãos de seu corpo estejam inteiramente conectados naquele ato de produção. Para Dewey (2009), isso significa que a percepção do artista precisa estar ativada no desenvolvimento da ação criativa. Ao criar, o criador precisa se deixar afetar por sua criatura. A relação entre o “fazer” e “estar sujeito a algo” auxilia na compreensão da arte como experiência. O ato de produzir pode estar estreitamente associado à uma percepção totalizante em que estimula nossas faculdades de sentir e atua como injeção de vitalidade.

A partir desta análise de Dewey (2009), pressuponho que para o peixe dourado afetar e deixar marcas no espectador é preciso, primeiramente, que o faça na gênese do processo criativo. Ou seja, o peixe dourado só atravessará o público se os tecelões da rede de pesca, que intentam seduzi-lo, permitirem também ser atravessados por ele.

Além disso, para que o peixe dourado seja atraído é preciso levar em conta as águas em que ele habita. Tal

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peixe é tão fugaz que pode escapar rapidamente da rede de pesca. Então, na tentativa de analisar o habitat do peixe dourado no teatro, Peter Brook destaca que as águas de um evento teatral são movidas por correntes que oscilam entre curvas crescentes e decrescentes. Para alcançar um momento que apresente potência de acontecimento, o ponto de partida pode ser um estado simples e natural que poderá provocar um momento de profunda significação para distanciar-se dele novamente. O diretor inglês ressalta que “(...) um momento sem brilho pode levar a outro momento resplandecente, e deste por sua vez, a um terceiro momento de absoluta limpidez, antes de cair de novo num momento de simplicidade cotidiana” (BROOK, 2011, p. 71).

De acordo com Peter Brook (2011), o curso das águas de evento teatral inicia-se nos instantes em que o espetáculo é aguardado pelo público. Para o encenador inglês, a rede de pesca no teatro atrairá o peixe dourado se as palavras, sons e ações iniciais do espetáculo despertarem uma ressonância que gradativamente se acentue no íntimo do espectador. Segundo ele, por meio da energia expressiva dos atores e de suas palavras, o teatro pode acionar no espectador uma válvula emocional que conduz descargas para o intelecto.

Creio que a ligação entre emoção e intelecto destacada por Brook possa conduzir a percepção do espectador para outros espaços, oportunizando associações de suas vivências de modo a fazer daquele momento um ato intransferível e pessoal. Para tal, é preciso que o indivíduo se assenhore de sua percepção e não aguarde, como bem pontua Desgranges (2012, p. 19), “(...) que alguém de direito, devidamente autorizado, possa lhe dizer o que pensar do fato, ou explicar ‘qual a mensagem que o artista quis passar’, ou mesmo como deve proceder em tal evento”. O que ocorre neste caso é

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que, o espectador, na iminência de efetivar uma interpretação própria da obra, não se sente autorizado a elaborar um sentido próprio do espetáculo e depende de alguém como, por exemplo, um crítico de arte para fazer isso por ele.

Contudo, conforme destaca Dewey (2009), cabe ao crítico de arte ampliar a percepção do espectador em vez de atuar de maneira arbitrária bloqueando e/ou limitando sua experiência. Para o autor, o crítico que interpreta e explica um trabalho artístico ao público age de maneira doutrinária, moralista e aniquiladora da perceptividade.

Com base em Dewey, creio que o crítico que atua como detentor da verdade absoluta e que se presume empoderado para sentenciar como interpretar um objeto artístico age como o adulto filisteu descrito por Walter Benjamin no ensaio Experiência (1984). As ações do filisteu são focalizadas pelo filósofo alemão como bloqueadoras de uma possível experiência. A razão de tal argumento incide no fato do filisteu aprisionar os jovens com seus evangelhos que ditam um modo de vida. Para Benjamin (1984), a atitude do filisteu é depreciativa da juventude, dado que se pauta em valores padronizados que impulsionam a escravidão da existência humana: “[...] A experiência transformou-se no evangelho do filisteu porque ele jamais levanta os olhos para as coisas grandes e plenas de sentido; a experiência se torna para ele a mensagem da vulgaridade da vida” (BENJAMIN, 1984, p. 24). O modo colérico e intransigente do adulto filisteu impede experiências, pois restringe os jovens a seguirem obrigatoriamente os padrões normativos de seus evangelhos.

Isto posto, a função do crítico não é a de bloquear uma experiência, mas de estimular a capacidade de percepção do sujeito frente ao objeto artístico. Para isso, o espectador necessita se apropriar de suas

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subjetividades e fazer do ato de recepção um ato individual e intransmissível. Suponho que isso contribui para o peixe dourado aparecer e afetar o espectador.

Carece-me destacar que, de acordo com Peter Brook (2011), durante o tecer de uma rede, se os fios e as configurações de seus espaços forem fracos e superficiais o peixe dourado se esquivará e dará lugar a um peixe venenoso, sedento por momentos triviais e enfadonhos. Há teatros que apenas desejam ofertar peixes banais e insignificantes, porém, aqueles que ambicionam o peixe dourado precisam atentar-se às características de suas redes. Para tanto, Peter Brook apresenta-nos algumas pistas para que uma rede de pesca atraia esse peixe tão singular:

De onde vem o peixe dourado? Ninguém sabe. Deve ser de algum lugar do inconsciente coletivo mítico, daquele vasto oceano cujos limites nunca foram descobertos, cujas profundezas nunca foram suficientemente exploradas. E onde estamos nós, as pessoas comuns da plateia? Estamos no mesmo lugar em que estávamos ao entrar no teatro, em nós mesmos, em nossas vidas corriqueiras. Tecer a rede é construir uma ponte entre nós, como somos habitualmente em condições normais, trazendo conosco nosso mundinho de todo dia, e um mundo invisível que só pode se revelar quando a insuficiência da percepção ordinária é substituída por outro tipo de consciência cuja finalidade é infinitamente mais aguda (BROOK, 2011, p. 72).

Parece-me que esse apontamento de Peter Brook indica que para evocar o peixe dourado é preciso que a percepção ordinária seja substituída por um estado agudo

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de consciência. O estímulo dessa percepção aguda dependerá das interligações dos fios da rede de pesca construída. Diante disso, o diretor inglês lança a seguinte questão: o mais importante são os buracos ou os nós?

Brook considera essa pergunta como um koan1 e aconselha que essa sentença paradoxal esteja sempre presente para aqueles que fazem teatro. Para ele, os buracos e os nós da rede complementam-se e dependem uns dos outros. É justamente essa interdependência que seduzirá o peixe dourado.

Peter Brook destaca ainda que o peixe dourado geralmente é seduzido por fios abstratos e invisíveis. Segundo ele, práticas anímicas conseguem dialogar com o invisível e proporcionar paz de espírito. No entanto, adverte que o teatro que vilipendia o religioso e utiliza uma prática espiritual para apropriar-se do invisível constrói uma rede perigosa que apenas atrai peixes venenosos. Ele considera o teatro como um aliado externo do mundo espiritual e nesse caso “(...) existe para oferecer relances, inevitavelmente fugazes, de um mundo invisível que interpenetra o mundo cotidiano e é normalmente ignorado pelos nossos sentidos” (BROOK, 2011, p. 74).

O mundo visível é, para Brook, mutável e fluido. Nesse aspecto ele destaca o homem como uma das formas de maior complexidade, cuja matéria, paradigmas e atitudes estão em constante movimento. Dada tal característica, atesta que são poucos os artistas capazes de estabelecer um verdadeiro elo entre o visível e o invisível. Para o encenador inglês, o mundo visível está em constante movimento. Sua característica fluida possui formas findáveis. Por este motivo afirma que as formas

1 Na prática zen-budista koan é uma questão ou sentença de cunho paradoxal. Seu objetivo consiste em diluir uma lógica racional e ocasionar uma interrupção do fluxo de pensamento.

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teatrais não são imutáveis e passam por um processo de nascimento e morte.

Peter Brook (2011), sinaliza que as formas tradicionais do teatro oriental merecem respeito, pois são capazes de conduzir o indivíduo a um plano de transcendência. Os rituais e mitos, neste caso, são como portas que não se destinam a serem apenas observadas, mas sim experimentadas. É preciso, então, que o sujeito se permita abrir essas portas para experimentar o que elas têm a oferecer-lhe. Entretanto, o diretor inglês alerta que seus rituais não podem ser utilizados no teatro de modo insidioso pois, dessa maneira, perderão seus valores e serão apenas enfeites inanes e ignóbeis.

Para pensar a noção de forma no teatro, Peter Brook recorre ao vocábulo indiano sphota: “Uma ondulação que aparece de repente na superfície de águas tranquilas, uma nuvem que emerge no céu claro. A forma é o virtual que se torna manifesto, o espírito que se faz carne, o som primordial, o big bang” (BROOK, 2011, p. 75). O significado de sphota está em sua sonoridade. O período de seu nascimento e morte advém da primeira à última pronúncia de suas sílabas. O sphota é, ponderado pelo diretor inglês, como uma planta que nasce, floresce, perde seu viço e cede lugar a outra planta. É com base no significado desse vocábulo indiano que Peter Brook pensa a ideia de forma no teatro. Para ele, a forma de um espetáculo tem um tempo de vida limitado:

Quando começamos a ensaiar uma peça, é inevitável que de início ela não tenha forma; são apenas ideias ou palavras no papel. O espetáculo consiste em dar forma a uma forma. O que chamamos de “trabalho” é a busca da forma adequada. Se a peça fizer sucesso, o resultado pode eventualmente durar alguns anos, não muito mais. Quando

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fizemos nossa própria versão de Carmen, demos à obra uma forma completamente nova que durou quatro ou cinco anos até sentirmos que havia atingido seu limite. A forma já não possuía a mesma energia: simplesmente, seu tempo havia se esgotado (BROOK, 2011, p. 43).

Para Brook, artistas de toda parte do mundo questionam a essência de suas formas teatrais assim como o possível lugar em que podem encontrá-las. Tal questão é considerada confusa pelo diretor inglês, que pondera que muitos artistas têm a convicção de que países do Ocidente, como Inglaterra, França e Estados Unidos, geralmente considerados potências culturais, detêm uma forma eficaz que está pronta para exportação. Mas, de acordo com suas palavras, “o local, o contexto social e político, o pensamento e a cultura têm que influir na criação de uma ponte entre o tema e o público na determinação do que afeta as pessoas” (BROOK, 2011, p. 43). Isto significa que, muitas vezes, o contexto de alguns processos não é levado em consideração e, ao tentar importar uma forma arraigada de valores e princípios específicos, faz com que suas eficazes ressonâncias se percam. Neste caso, os fios entrelaçados de suas redes são superficiais e incapazes de seduzir o peixe dourado.

Matteo Bonfitto, em A Cinética do Invisível (2009), examina como a noção de forma permeou as experimentações e reflexões de Peter Brook. Para Bonfitto (2009), no início da carreira do diretor inglês a ideia de forma era percebida pela plasticidade dos movimentos dos atores: “Ele (Peter Brook) via as formas como o resultado produzido por um jogo entre contornos, linhas e ritmos; como estruturas visuais dinâmicas, que envolvem os movimentos executados pelos atores”

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(BONFITTO, 2009, p. 67). Todavia, no final dos anos 1960, a noção de forma para Brook estava concatenada à noção de organismo, ou seja, não era permanente e passava por um ciclo de começo, meio e fim.

Já no início dos anos 1970, a ideia de “forma flutuante” é a que melhor caracteriza, para Bonfitto (2009), o trabalho de Peter Brook:

Cabe aqui esclarecer um ponto para evitar interpretações que podem ser geradas pela escolha terminológica adotada. De fato, o termo forma flutuante pode sugerir um processo em que a mesma forma permanece flutuando. Aqui, não é essa imagem que se deseja associar ao tipo de forma em questão. Uma metáfora espacial é explorada aqui a fim de enfatizar uma qualidade específica, que é a de emergir e se diluir a partir do que é produzido a cada momento na relação entre o ator e o público. Portanto, a forma não é o resultado de um processo construído na sala de ensaio; ela se materializa através da interação entre ator e público. Essa forma emergirá nesse caso das flutuações produzidas por tal interação (BONFITTO, 2009, p. 72)

A ideia de “forma flutuante”, para Bonfitto (2009), consiste em uma estrutura adaptável e flexível às circunstâncias do momento presente. Nesse caso, elas surgem e se dissolvem a partir do encontro com o outro, e sua característica é a de ser um canal para uma efetiva e verdadeira comunicação entre ator e público. Para tal, é preciso que o ator esteja conectado com a plateia e seja capaz de vê-la, ouvi-la e senti-la. Esse encontro somente

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se efetiva se nesse canal haver “espaços vazios” para as exigências do aqui-agora.

A noção de “forma flutuante” no trabalho de Peter Brook pode, então, ser melhor compreendida a partir de exemplos concretos como as suas viagens na década de 1970 para a África e para o Irã.

2.1 A BUSCA PELO PEIXE DOURADO NA ÁFRICA

Na década de 70, acompanhado de um grupo de

trinta pessoas (atores e equipe técnica), Peter Brook partiu da França com destino à África para realizar trabalhos experimentais como parte de uma pesquisa fomentada pelo Centro Internacional de Pesquisa Teatral de Paris. Experimentar aspectos passíveis de uma relação capaz de proporcionar cumplicidade entre ator e espectador e explorar possibilidades de um espaço propício ao jogo configuravam alguns dos objetivos de Peter Brook durante os três meses de jornada na África.

A expedição de Peter Brook teve o seguinte roteiro:

Saímos da Argélia e atravessamos o Saara em direção ao Níger setentrional, até Agades, onde permanecemos uma semana. De lá descemos para o sul do Niger, até Zinder, e atravessamos a fronteira para Kano, na Nigéria. Daí descemos para o interior da Nigéria até Jos, que fica no planalto do Benin, o centro da Nigéria. De lá prosseguimos através da Nigéria até Ifé, onde fica a universidade, perto de Lagos, e para Cotonu, no Daomé, onde chegamos ao mar, quando o grupo todo saltou dos Land Rovers e saiu em desabalada carreira para entrar no mar, de roupa e tudo, por pura histeria ao ver a água depois de tanto tempo!

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De Cotonu subimos através do Daomé novamente para o Níger, até a capital Niamey, e depois atravessamos um pedaço de Mali e de Gao, e então atravessamos o Saara por um caminho diferente, de volta à Argélia (BROOK, 1994, p. 157).

Na trajetória pela África eram realizadas apresentações improvisacionais sobre um tapete, elemento este que tinha por finalidade demarcar o campo das apresentações. De modo gradual, o uso do tapete consolidou-se nas produções de Peter Brook como uma estética do espaço vazio.

Peter Brook (1994) destaca que a primeira etapa de trabalho incidiu no desafio de descobrir condições favoráveis que despertassem o interesse do público em assistir as apresentações. A primeira delas foi na Argélia, numa cidade chamada In-Salah. O grupo foi informado de que não havia qualquer precedente de atores mambembes nos vilarejos africanos que percorreram. À vista disso passaram a analisar possíveis maneiras de estabelecer, por meio da linguagem teatral, um contato significativo com os aldeões.

Brook conta que a jornada o motivava devido sua característica ignota e desafiadora. Segundo seu próprio relato: “havia uma coisa incrivelmente tocante – porque era o desconhecido total, não sabíamos o que podia ser comunicado e o que não podia” (BROOK, 1994, p. 158).

Peter Brook expõe que, por vezes, o ardente sol e forte calor prejudicava os atores a estabelecerem uma relação profícua com a plateia, visto que muitas vezes as improvisações faziam sentido apenas para os atores e não provocavam os espectadores. Uma alternativa para essa situação seria realizar as apresentações durante a noite. Contudo, o grupo tinha receio que a luz elétrica, ausente nos vilarejos, se tornasse o principal atrativo no

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evento. A preocupação era que o público se deslumbrasse com equipamentos de iluminação e as ações improvisacionais dos atores ficassem em segundo plano. A hipótese de deslumbramento do público com a energia elétrica até poderia gerar entusiasmo para com o evento, mas a “rede de pesca”, neste caso, seduziria um peixe superficial, pois o envolvimento do público não seria instaurado na relação com os atores, mas pelo fascínio por um objeto exterior.

Ainda assim, Peter Brook decidiu instalar equipamentos de iluminação para uma apresentação que teria início num final de tarde em um vilarejo que ele não menciona o nome. Ao anoitecer, ainda durante a apresentação, acenderam as luzes e, para surpresa do diretor inglês, após um curto período de admiração a atenção do público retornou para as ações dos atores de forma mais acentuada, devido ao foco de luminosidade em meio à obumbração. A partir deste episódio o grupo notou que o fato de levar eletricidade a uma vila que desconhecia luz elétrica não alterou a provocação potencial que as apresentações se propunham. No que tange a este aspecto, Brook (1994, p. 16) concluiu: “Achávamos que algo precioso iria se perder, mas constatamos que era puro sentimentalismo, não a verdade.”

Em relação à quantidade de espectadores, Peter Brook constata que lidar com um grande número de pessoas durante as apresentações foi a maior dificuldade durante toda a jornada africana: “as pessoas se empurravam do fundo da multidão para tentar enxergar melhor. Foi algo que nunca conseguimos realmente dominar” (BROOK, 1994, p. 161). Para o diretor inglês, quando havia muitas pessoas o evento ficava agitado e os atores não conseguiam encontrar uma maneira de suavizar tal situação. Ainda acresce que a dificuldade se

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acentuava por tratar-se de um trabalho em que inexistia o uso de palavras e, por este motivo, a linguagem corporal atuava como elemento matricial da comunicação.

Um dado importante para percebemos a noção de “forma flutuante” é que, segundo Brook, as apresentações se configuravam em condições absolutamente imprevisíveis. Os atores preparavam temas e momentos, não necessariamente para utilizá-los, mas para exercitar a disponibilidade ao acaso. Tendo por objetivo provocar um estado de alerta, os atores atuavam numa zona de risco cuja aceitabilidade ao imprevisto operava como fator fulcral. Ele destaca: “Alguma coisa sempre gerava a si mesma, influenciada de fato, a cada segundo, pela presença das pessoas, pelo lugar, pela hora do dia, pela luz – tudo isso se refletia nas melhores performances” (BROOK, 1994, p. 162).

De acordo com o diretor inglês, temas que haviam sido trabalhados pelo grupo em outras circunstâncias se evidenciaram em algumas apresentações dos vilarejos de modo diferente e em outra ordem. Contudo, ao tentar repetir tal feito, o grupo por vezes se deteve a formas prescritas que, por esse aspecto, foram consideradas insatisfatórias por Brook. Devido à fadiga, ao desânimo ou à falta de ideias, os atores tencionavam uma forma estabelecida, negavam-se à casualidade e, ao invés de criar um elo, construíam uma barreira para o público. Ao atuar de tal modo, teciam uma rede superficial, em decorrência disso capturavam um peixe trivial.

Por esse motivo, penso que uma rede de pesca fundamentada na noção de “forma flutuante”, para atrair um peixe dourado, deve estar atrelada a um estado de atenção firmado no momento presente e receptível às circunstâncias do acaso:

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E quando o espetáculo funcionava bem, o que acontecia era algo que só podia acontecer através daquela forma. Em outras palavras: se trinta estrangeiros chegarem de imprevisto numa aldeia, ficarem perambulando e olhando para os habitantes, ou se cria uma situação artificial ou a situação não tem como se desenvolver. Mas através do espetáculo, em uma hora, o relacionamento podia ser imensamente intensificado e desenvolvido porque algo havia acontecido (BROOK, 1994, p. 166)

Associo esse estado de prontidão e alerta, indispensáveis para Peter Brook durante a jornada africana, aos apontamentos de John Dewey, que recorre à “vida animal inferior à escala humana” para assimilar as fontes da experiência estética (2010, p.82). Os movimentos da raposa e do cão são apontados como traços particulares da experiência. Esses animais se encontram integralmente presentes na totalidade de suas ações. O olhar vigilante, a escuta alerta, o olfato aguçado, assim como todos os sentidos, se instauram no momento presente.

Para Dewey a potência da experiência se fundamenta na intensificação da vitalidade. Em outras palavras, não se basta em afeições e sensações particulares, mas estende-se a uma partilha operante e alerta com o mundo. Dewey destaca que o excesso de saudosismo do passado e a aflição com expectativas futuras impossibilita uma experiência: “somente quando o passado deixa de perturbar e as expectativas do futuro não são aflitivas é que o ser se une inteiramente com seu meio e, com isso, fica plenamente vivo” (DEWEY, 2010, p. 82). Para o autor a arte tem o potencial de intensificar os momentos em que o passado fortalece o presente e

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em que o futuro ativa uma acentuação do que existe no tempo atual.

Neste sentido, Dewey reconhece que a vivacidade dos animais selvagens é evidenciada pelo caráter observador do mundo que os circunda. Esses animais são repletos de energia e ao observar o que se movimenta não ficam inertes, se mobilizam. As ações que armazenam do passado e esperam do futuro operam como indicações no presente. O ato de observar funciona como preparo e predição do futuro. Seus sentidos estão em constante estado de alerta, seja ao avistar a presa ou distanciar-se de modo furtivo de seu predador. Suas percepções configuram-se em ações para o aqui-agora, marcadas por uma partilha ativa e vívida com o mundo.

Esse estado de prontidão tinha nos processos teatrais na África o potencial de estabelecer uma significativa relação com o público. O diretor inglês destaca que essa relação, por vezes, era evidenciada pelos espectadores por meio de oferendas. Brook relata que certa vez, após um espetáculo na Nigéria, ofereceram-lhes moedas que haviam sido arrecadadas pelo público. Tal episódio repetiu-se outras vezes mas, ao invés de moedas, presentearam-lhes com um bode e frangos. Essas práticas demonstraram a Brook que algumas apresentações foram capazes de intensificar um relacionamento entre atores e aldeões. Estes, quando afetados por algum espetáculo, considerava-o uma espécie de oferenda. Durante esses espetáculos os indícios da conquista de um peixe dourado revelavam-se por uma imensa quietude de notória concentração e envolvimento da plateia.

No decurso da jornada, Peter Brook detectou que o povo africano possuía uma excelente expressão corporal. Á vista disso declara seu deslumbramento com a capacidade rítmica e enérgica dos movimentos africanos.

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Estes, por sua vez, ficavam interessados pelos ritmos atípicos e movimentos incomuns dos atores. Por tais motivos fitavam as expressões corporais do grupo estrangeiro e demonstravam admiração por desacreditar que tais movimentos pudessem operar no âmbito natural de seus corpos. Sobre esses aspectos Brook pondera: “É uma experiência extremamente rica em todos os sentidos. Você tem que dar e receber. Você não demonstra, você não ensina e você não imita” (BROOK, 1994, p. 167). Para o diretor inglês as vivências teatrais na África proporcionaram momentos de trocas mútuas, cujo intuito não recaía na imitação direta, mas na análise de possibilidades que ainda não haviam sido concebidas:

É isso que fazíamos continuamente em nosso contato com suas cerimonias, danças, cantos e rituais. E às vezes acontecia o inverso, de modo muito curioso. Emitíamos, por exemplo, sons que havíamos inventado em exercícios, não porque proviessem de nossa tradição, mas porque, ao tentar descobrir como a voz humana pode vibrar de modo que equivalha a determinada experiência emocional, chega-se a certos sons. Descobrimos então que os sons produzidos pelo nosso grupo e os sons emitidos pelos africanos em alguns de seus cantos eram os mesmos. (BROOK, 1994, p.168).

Peter Brook relata que, certa vez, em Agades, passou uma tarde inteira cantando com seus atores e alguns africanos. As canções alternavam-se entre os grupos quando, subitamente, perceberam que haviam atingido um canto em uníssono. Estabeleceu-se uma relação direta em que ambos entendiam suas respectivas linguagens sonoras. O diretor inglês considerou tal

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episódio fantástico, visto que, a partir de canções distintas chegaram inopinadamente a uma esfera comum. Por se permitirem puderam partilhar e se afetar por aquele dado momento.

Outro fato semelhante é relatado por Brook enquanto acampava com os atores numa floresta cuja cidade não é mencionada em O ponto de mudança (1994), e juntos improvisavam canções a fim de investigar possibilidades sonoras. Na dita ocasião o grupo foi surpreendido por crianças que, por meio de acenos, os convidaram a participar de uma cerimônia que estava acontecendo no vilarejo. Quando chegaram ao local perceberam que se tratava de um rito fúnebre. O diretor inglês relata que foram bem recepcionados e acomodados na copa de uma árvore para que pudessem observar o evento. Em meio à escuridão escutavam cantos e avistavam as dançantes sombras dos participantes. Em um dado momento os aldeões dirigiram-se ao grupo de Brook e disseram que as crianças haviam mencionado que o canto deles era semelhante aos dos ritos do vilarejo, então os convidaram a integrar a cerimônia. O grupo aceitou a proposta e improvisou uma canção para os aldeões, o que gerou, segundo Peter Brook, um momento tocante, precioso e adequado.

O diretor inglês acresce que as condições da cerimônia propiciaram uma relação significativa entre os aldeões e os atores. O lugar, a relação das pessoas e as circunstâncias em que se encontravam permitiram a partilha de uma mesma intensidade de energia. Brook destaca que “era uma canção extraordinária e, como tudo no teatro, algo que desaparece assim que é feito. Em teatro não se criam coisas para um museu ou loja, mas para o momento” (BROOK, 1994, p.170).

O caráter ritualístico instaurado na cerimônia fúnebre relatada pelo diretor inglês carregava forte

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potência de engajamento entre os envolvidos. No entanto, conforme salienta Jan Cohen-Cruz (2008), as performances ritualísticas de uma comunidade ratificam os dogmas e princípios axiomáticos daquele determinado grupo. Segundo ela, “o paradigma do ritual contempla o potencial intensamente engajado da performance baseada na comunidade para todos os envolvidos” (COHEN-CRUZ, 2008, p. 99). A efetiva participação de Peter Brook, atores e equipe técnica no rito fúnebre me soa com certa estranheza e incredulidade dado que questiono-me se eles, na função de convidados revestidos de costumes e cultura europeia, de fato estavam completamente integrados e engajados de modo a compartilhar da mesma crença e valores do grupo africano. Neste sentido creio que possivelmente as circunstâncias do evento propiciaram diferentes graus de afeição e possibilitaram que os envolvidos, dentre eles Peter Brook e sua equipe, fossem afetados em escalas de envolvimento distintas pelos momentos daquele evento.

O contato de Peter Brook com outras culturas impulsionou alguns processos criativos dentre seus trabalhos artísticos. Alguns desses trabalhos são questionados por críticos. O indiano Ruston Bharucha, por exemplo, pondera sobre Os Ik2: “(...) o uso sofisticado do balbuciado não verbal para sugerir a primitivização de ‘nativos’ africanos, certamente entrará na história do teatro intercultural como um exemplo paradigmático da

2 Montagem teatral realizada a partir dos estudos antropológicos de

Colin Turnbull em O Povo na Montanha. Trata-se de uma tribo africana que vivia numa montanha desolada pela fome e pela miséria. No processo de montagem, com base em fotografias, os atores realizavam improvisações e buscavam reproduzir as posturas dos nativos.

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primordialização do Outro como um objeto antropológico”3 (BHARUCHA, 2003, p. 2000, tradução minha).

A crítica de Bharucha sobre este trabalho de Peter Brook recai na apropriação de uma cultura para benefício próprio em que, por meio de clichês e estereótipos, dramatiza os costumes de uma tribo africana a fim de produzir um exótico espetáculo teatral que reproduz aspectos de uma relação colonialista.

Os espetáculos no tapete realizados durante os três meses da jornada africana também podem ser alvos de críticas de utilização de uma cultura de forma unilateral e colonialista. No entanto, pelo que pude compreender desta jornada de Peter Brook, creio que o trabalho feito para a comunidade e em alguns casos com a comunidade, como a participação na cerimônia fúnebre e a criação de cantos e tons melódicos, visou estabelecer um campo de jogo que propiciasse uma significativa relação e envolvimento com os presentes. Aliás, por tais motivos, Brook considera que os momentos compartilhados foram os legados de sua expedição na África. Creio que a disponibilidade dos atores às situações de riscos, a consciência de partilha do aqui-agora e a constante busca de cumplicidade com os aldeões exemplificam a noção de peixe dourado de Peter Brook.

3 No original: [...] in its chic use of nonverbal babble to suggest the

primivativization of African 'natives' will surely go down in intercultural theatre history as a paradgmatic example of primordializing the Other as an anthropological object.

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2.2 PETER BROOK NO IRÃ: A PRESENÇA DE UM PEIXE VENENOSO

Peter Brook, em visita ao Irã em 1970, relata sua experiência como espectador de um Ta’azieh4. O diretor inglês (2011) conta que percorreu um longo trajeto de avião, tomou um taxi durante horas e caminhou por uma extensa trilha lamacenta para assistir a uma peça desse gênero teatral chamada Hossein. Quando chegou no vilarejo as pessoas formavam um grande círculo para que a peça fosse apresentada. O espetáculo teve início ao som de um tambor. Um dos aldeões, que fazia parte do elenco, dirigiu-se ao centro do círculo utilizando botas de borrachas e um pano verde. A seu personagem era atribuído o significado de herói, visto que a cor verde era sagrada para os aldeões daquele vilarejo por simbolizar terreno fértil. Ao entoar uma longa frase melódica deixava evidente que a força vinha de seus antepassados. Neste momento, de forma áspera e forte outro aldeão, também ator da peça, coberto por um pano vermelho, dirigiu-se ao centro do círculo. O vermelho representava sua vilania e, por este motivo, não detinha o direito do canto melódico.

Na trama o herói percorreria um longo trajeto e atravessaria o terreno de seu inimigo que durante a apresentação, aos gritos, demonstrava suas intenções maléficas e preparava uma armadilha para matar o imã. Peter Brook destaca que os aldeões já conheciam o desfecho da história e estavam cientes de que, durante a viagem, o herói seria morto. Contudo, ao observar a reação das pessoas do vilarejo, teve a impressão que naquele dia seu destino seria modificado. As feições esperançosas dos aldeões insinuavam que a morte do imã seria evitada. 4 Gênero teatral tradicional do Irã. A temática deste estilo de teatro

incide no martírio dos doze primeiros imãs seguidores do profeta.

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Durante a apresentação, os amigos do imã, também representados por aldeões, clamavam para que sua viagem fosse adiada. Os dois filhos do herói, por meio de um canto em uníssono, tentavam convencer o pai a permanecer com eles. No entanto o mártir, consciente do porvir, despediu-se de seus filhos e partiu para sua viagem sem volta. Os dois garotos aflitos lançavam-se aos pés do pai repetidas vezes na tentativa de afastá-lo da morte. Essa triste despedida ocorreu inúmeras vezes. Brook percebeu o envolvimento e a emoção da plateia em meio a choros abafados e manifestos:

A carga de energia era tão forte que não poderíamos romper o circuito, e assim nos vimos na posição de observadores no âmago de um evento de uma cultura estrangeira, sem provocar nenhum transtorno ou distorção. O círculo funcionava de acordo com algumas leis básicas, e um fenômeno autêntico ocorria diante de nossos olhos: a “representação”. Um fato do passado longínquo estava em processo de “re-presentação”, de se tornar novamente presente; o passado estava acontecendo aqui e neste momento, a decisão do herói era para este momento, sua angústia era por este momento e as lágrimas da plateia eram por este momento. (BROOK, 2011, p.35).

Para o diretor inglês o tempo havia sido suspenso, e o público, cúmplice da ação dramática, compartilhava o momento presente. Ele conta que “a aldeia participava diretamente, completamente, aqui e agora, da morte real de uma personagem que havia morrido há milhares de anos” (BROOK, 2011, p.35). Pelo envolvimento do público, Brook teve a impressão de que a história, já

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conhecida, fosse inédita. Ainda acresce que o segredo para tal feito diz respeito à capacidade de estabelecer uma relação autêntica e profunda com os espectadores. Ao invés de superficialismo e exibicionismo, havia uma particular ressonância que, alicerçada nos legados culturais, pulsava nos aldeões. Era nítido o poder de afetação que a peça provocou.

Entretanto, Peter Brook relata que, um ano depois, o Ta’azieh foi apresentado no Festival Internacional das Artes em Shiraz. Os aldeões ensaiaram com um diretor teatral e um maestro profissional. Também foram vestidos por importantes figurinistas. Colocados num palco frontal, com uma boa aparelhagem técnica, caprichada cenografia e botas de couro. Peter Brook considera que foi apresentado um gracioso exibicionismo folclórico para a rainha e mais de quinhentos convidados internacionais. O diretor inglês salienta que os espectadores desse festival foram enganados, pois ao invés de assistirem a um Ta’azieh apreciaram “(...) uma coisa muito vulgar, meio tola, desprovida de qualquer interesse real, e que não lhes acrescentou nada” (BROOK, 2011. p.37). Brook considera que estava ausente, no espetáculo aburguesado, a naturalidade e o espírito de cumplicidade que teve a oportunidade de presenciar quando assistiu à peça no vilarejo.

Este relato de Peter Brook no Irã demonstra a presença de um peixe repleto de veneno em suas entranhas. O diretor inglês afirma que no teatro, quando são usurpados “(...) rituais e símbolos, tentando explorá-los em benefício próprio, é possível que eles percam as virtudes e se tornem apenas enfeites reluzentes e vazios” (BROOK, 2011, p.74). Desse modo, a construção da rede do Ta’azieh durante o festival de Shiraz é um claro exemplo de entrelaçamento de fios e amarras arbitrárias que são capazes de atrair somente peixes venenosos.

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2.3 ESCOLHA DE ALGUNS FIOS DA REDE DE PESCA DE PETER BROOK

Para entender o significado do peixe dourado, tendo por base o material bibliográfico de Peter Brook, identifiquei algumas pistas que se referem a aspectos pedagógicos ligados à sua prática teatral. São eles: “intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo

A partir de agora, discorrerei sobre cada um deles considerando-os como fios de uma rede de pesca capaz de motivar a presença do peixe dourado. 2.3.1 “Intuição Amorfa”: turvos caminhos para um processo teatral

Em O Ponto de Mudança (1994), Peter Brook declara que a base inicial de seus trabalhos se estabelece por uma “intuição amorfa”, isto é, algo que não está fechado e acabado. Esta “intuição amorfa” refere-se a um planejamento em que o ator é estimulado a criar e não atuar como mero reprodutor das ideias do diretor. O relato de Peter Brook em um de seus processos, Marat/Sade, nos auxilia a compreender como a “intuição amorfa” está presente em seu trabalho:

Em algumas peças, como Marat/Sade, por exemplo, durante três quartos do período de ensaios encorajei os atores e a mim mesmo – é um caminho de mão-dupla – a buscar o excesso, só porque o tema era muito dinâmico. Havia um excesso de ideias tão abusivamente barroco que quem nos visse nesse período pensaria que a peça estava sendo sufocada e destruída por uma exorbitância do que se chama de invenção diretorial. Encorajei outras pessoas a produzirem de tudo, fosse bom

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ou ruim. [...] O objetivo era reunir grande quantidade de material a partir do qual se pudesse, gradualmente, encontrar uma forma. (BROOK, 1994, p. 20)

Para o encenador inglês (1994), por meio de estímulos e provocações o diretor pode criar um ambiente inquietante e desafiador. Os atores são instigados a serem autores de suas próprias partituras. Submissão e subserviência não fazem parte deste tipo de percurso. Os envolvidos são estimulados a produzir seus próprios rastros ao invés de seguir eventuais pegadas presentes no caminho.

Segundo Peter Brook, movido pela “intuição amorfa” “o diretor vai provocando continuamente o ator, estimulando-o, fazendo perguntas e criando uma atmosfera na qual o ator possa se aprofundar, experimentar e investigar” (BROOK, 1994, p. 20). O diretor, então, precisa estar atento para que seus passos na penumbra sejam iluminados por seus impulsos intuitivos.

No processo de análise sobre a “intuição amorfa” fui tomado pela inquietude ao me deparar com a seguinte citação de Peter Brook: “(...) nas primeiras fases de ensaio tudo está em aberto e não imponho absolutamente nada” (BROOK, 1994, p. 21). Passei a pensar no significado das expressões “tudo estar em aberto” e “não impor absolutamente nada”. Seria uma total anulação do diretor? Ao invés de atuar como provocador e mediador de um processo teatral, o diretor teria de ser apenas observador? Guiar-se pelas expressões “estar tudo em aberto” e “não impor absolutamente nada” impossibilita possíveis apontamentos e sugestões do diretor nos primeiros estágios de ensaio? Acredito que a citação supracitada possa levar o leitor a várias interpretações,

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podendo algumas delas direcioná-lo a caminhos que não vão ao encontro da análise feita até aqui.

Quando relato que a citação em questão me deixou inquieto, confesso que me vi frente a uma encruzilhada. De um lado, convergente à linha de raciocínio que venho traçando, via a ideia da “intuição amorfa” como um aspecto potente para o direcionamento de um processo teatral, cuja figura do diretor, contrária a um posicionamento inflexível e impositivo, cultiva um campo fértil para que os atores semeiem e sejam produtores e criadores de suas ações. Neste caso, o diretor como mediador estimula o ator a dar forma a algo disforme. Do outro lado, cria uma espécie de banalização de uma postura flexível do diretor cujos moldes se ancoram no laissez-faire (deixar fazer). Símbolo do liberalismo econômico, no entanto passível de ser incorporado e contextualizado num processo teatral, a ideia do laissez-faire para pensar a noção de “intuição amorfa” de Peter Brook não me parece a mais apropriada. Creio que as expressões “estar tudo em aberto” e “não impor absolutamente nada”, utilizadas por Peter Brook para formulação conceitual sobre a “intuição amorfa”, ao invés de negarem a intervenção e a responsabilidade do diretor frente a um processo de criação visam ratificar, talvez em excesso, que os caminhos do processo teatral não são estabelecidos e decididos somente pela figura do diretor.

Inclino-me a pensar que “estar tudo em aberto” indica ausência de um planejamento enrijecido e cristalizado. Do mesmo modo, creio que a expressão “não impor absolutamente nada” assinala que em vez de uma postura impositiva e déspota, Peter Brook prefere sugerir, provocar e desafiar os atores a serem criadores de suas partituras. Assim, movidos por uma “intuição amorfa”, enveredam-se por caminhos desconhecidos,

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experimentam inúmeras possibilidades e criam vazios para serem preenchidos.

Para Peter Brook é importante que a fase inicial de um processo teatral guiada por uma “intuição amorfa” seja permissiva e esteja aberta a experimentações, sem censura e cerceamentos, mas circunscrita num campo de possibilidades. Esse caminho turvo aos poucos se ilumina, e o que antes era disforme e amorfo tende a se configurar numa forma orgânica. Segundo o diretor inglês, “(...) se o resultado parece orgânico e uniforme, não é porque uma concepção uniforme foi definida e sobreposta à peça desde o início – muito pelo contrário” (BROOK, 1994, p. 21). O turvo caminho inicial, por meio de provocações e estímulos, é alumbrado por todos os envolvidos no processo. O que era amorfo e indizível, após um longo caminho, tende a se configurar tangível e orgânico.

Nesse sentido, Henri Bergson (1964) pondera que a intuição é um importante elemento para o ato criativo. Para ele, ao invés de um raciocínio cujas definições são dadas incialmente, a intuição opera dentro de um fluxo dinâmico calcado no aqui-agora. Segundo o filósofo francês, a intuição pertence ao universo do sensível e é guiada pela convergência das unidades de tempo: para atuar no presente é necessário uma apropriação do passado e uma projeção ao futuro.

Em Evolução Criadora (1964), Henri Bergson estabelece uma análise entre a inteligência e a intuição. Ele diz:

(...) a inteligência e o instinto acham-se voltados em dois sentidos opostos, aquela para a matéria inerte, este para a vida. [...] A inteligência permanece o núcleo luminoso em torno do qual o instinto, mesmo alargado e depurado como intuição,

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constitui apenas uma vaga nebulosidade. Mas, na ausência do conhecimento propriamente dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos apreender aquilo para que os dados da inteligência são aqui insuficientes, e deixar-nos entrever o meio de os completar (BERGSON, 1964, p.187).

O filósofo francês, inserido em um contexto de final do século XIX cuja tendência cientificista e positivista imperava, direciona o seu olhar não para o prisma utilitarista da razão, mas para o da vida interior. O élan vital - “impulso vital” - é um importante conceito criado por Henri Bergson que diz respeito a uma corrente do mundo interior que pode ser percebida pela intuição, inalcançável aos procedimentos intelectuais rígidos e ao excesso de armazenamento de dados que tanto seduzem os positivistas. Bergson (1964), portanto, aponta que a intuição é capaz de fazer-nos apreender aquilo que a inteligência não é. Por isso, destaca que muitos artistas estão sempre em contato com seus élans vitais fazendo com que a intuição seja a força motriz de seus trabalhos artísticos.

Peter Brook (1994), em relação à ideia de “intuição amorfa” destaca que, no início do processo, uma peça teatral não tem uma estrutura sequencial fixa e estabelecida. Segundo ele, na produção de diversos espetáculos que dirigiu, os processos criativos ocorreram de distintas maneiras. A preparação por vezes se iniciou a partir de um esboço do cenário. Para Peter Brook, esse esboço se configura como “(...) busca de uma linguagem para tornar aquela intuição mais concreta” (BROOK, 1994, p. 19). Essa forma que começa a emergir é considerada como ponto de partida. Uma partida que não tem sua trajetória determinada. Uma partida cuja forma

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não é enrijecida, mas aberta a ser experimentada, questionada e problematizada por todos os envolvidos.

No processo criativo do espetáculo A tempestade de Shakespeare, Peter Brook salienta que enquanto a tradução do texto era feita para o francês, iniciava os planejamentos de ensaios e, com a cenógrafa, ele estudava os aspectos visuais. Contudo, declara que as deliberações do diretor anteriores aos ensaios são torpes em relação às decisões tomadas no decorrer do processo.

Sem embargo, o autor considera que o planejamento realizado pelo diretor antes de iniciar os ensaios é necessário, porém não pode ser encarado como algo finalizado, imposto aos atores, cuja pretensão é de levá-lo ao palco tal como foi delineado. Para Peter Brook, rígidas decisões tomadas pelo diretor nas primeiras fases de ensaio podem impedir um denso e profundo processo criativo. Até mesmo porque se assim for, criação só há por parte do diretor que, aliado à imposição e autoritarismo, injunge sua vontade aos envolvidos no processo. Por tal motivo, Brook defende que o trabalho do diretor antes dos ensaios deve ser sutil para não limitar e prejudicar a montagem teatral. Nessa ordem, o encenador inglês afirma:

Por melhor que seja, o trabalho do diretor e do cenógrafo/figurinista antes dos ensaios é limitado e subjetivo; pior ainda, impõe formas rígidas, tanto à ação cênica como à experiência dos atores, e muitas vezes pode destruir ou castrar um desenvolvimento natural. Por isso, o melhor método de trabalho envolve um equilíbrio muito sútil – que não tem regras preestabelecidas e depende de cada caso – entre o que deve ser preparado de antemão e o que pode ficar aberto com segurança (BROOK, 2011, p. 90).

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Em A tempestade, o ponto de partida de Brook foi esboçar o cenário da peça. Motivado a utilizar o mínimo de recursos cenográficos possíveis e instaurar na peça um campo aberto ao jogo, Brook iniciou seu trabalho a partir da imagem de um jardim zen, como o de Kyoto. No entanto, em conversa com a cenógrafa, dias depois, consideraram que o seixo do jardim zen prejudicaria o deslocamento dos atores e provocaria barulhos que possivelmente acarretariam incômodo e desatenção do público. Então, desafiados a criar um espaço de jogo, no primeiro dia de ensaio foram preparadas inúmeras possibilidades para que os atores pudessem experimentá-las. Tapetes, terras de variadas cores, pranchas, cubos de madeira e caixas de embalagens foram algumas das alternativas que configuraram as tentativas de um espaço viável ao jogo dos atores. Conforme relato de Brook, “cada cena foi improvisada de inúmeras maneiras e os atores foram estimulados a usar com ampla liberdade tudo que o espaço e a profusão de objetos sugerissem à sua imaginação” (BROOK, 2011, p. 93). O diretor inglês acrescenta que, se tivesse um visitante nesse período, seguramente encararia o processo como confuso e arbitrário, cujas decisões eram modificadas constantemente, mas para ele essa fase é importante por produzir uma série de materiais que paulatinamente podem ser desenvolvidos para as configurações finais do espetáculo.

Era um processo de invenção, experimentação e discussão. Os atores improvisavam com os objetos e Peter Brook, por meio de um olhar atento, intervia, sugeria e problematizava. Convém ressaltar que as sugestões de Brook também eram passiveis de crítica à medida que eram colocadas em prática.

O trabalho do grupo, dia após dia, consistia em alcançar um espaço apropriado ao jogo, de modo a evitar

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elementos cenográficos que ilustrassem a realidade. Após algumas semanas de experimentações o grupo finalmente conseguiu encontrar a forma desse espaço: um retângulo preenchido com areia cuja demarcação era feita por bambus. Dentro desse espaço havia apenas uma rocha.

Alimentado pela integração das ideias de todos os envolvidos no processo de A tempestade, Peter Brook deixou que sua “intuição amorfa”, aos poucos, ganhasse forma e se tornasse tangível. O diretor inglês relata que, dentre diversas críticas, uma delas apontou que o espaço em que acontecia o espetáculo era um jardim zen:

Quando alguém escreveu “É um jardim zen”, lembrei-me de meu primeiro ponto de partida. Como sempre, temos que ir à floresta e depois voltar para acharmos crescendo junto à nossa porta a planta que queríamos. Não é raro encontrar, muito depois de terminar a encenação de uma peça, uma anotação ou um pequeno esboço que haviam sido descartados e completamente esquecidos, provando que em algum lugar do subconsciente estava a resposta que levamos meses de investigação para descobrir (BROOK, 2011, p. 101).

Para que o ponto de partida de Peter Brook chegasse a tal resultado – um retângulo preenchido com areias, demarcado por bambus e com uma rocha dentro – foi preciso um intenso processo de investigação e experimentação. A visão pessoal e estética de Peter Brook foi enriquecida por todos os envolvidos que, inseridos num processo provocador e permissivo, deram

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forma a um espaço que no princípio era disforme e amorfo.

Por esses motivos, Peter Brook considera importante que o diretor, cenógrafo e demais envolvidos no processo não cristalizem suas concepções antes dos ensaios a fim de evitar que formas previamente concebidas atuem como algemas e aprisionem os atores num espaço opressivo e coercitivo.

Nesse caso, a “intuição amorfa” refere-se a um processo intuitivo que ainda não está arrematado. Em virtude disso, Peter Brook afirma que é de suma importância que o cenógrafo acompanhe o processo ao lado do diretor e atores ao invés de apresentar um desenho fechado e acabado:

Tenho verificado com frequência que o cenário é a geometria do espetáculo definitivo, de modo que um cenário torna muitas cenas impossíveis de serem representadas chegando mesmo a destruir muitas possibilidades dos atores. O melhor cenógrafo avança passo a passo com o diretor, voltando atrás, mudando, reformando à medida que gradualmente se delineia uma concepção do conjunto. O diretor que desenha seus próprios cenários naturalmente nunca acredita que o resultado dos desenhos possa ser um fim em si. Sabe que está simplesmente no início de um longo ciclo de maturação, porque o seu próprio trabalho como diretor ainda não começou. Entretanto, muitos cenógrafos tendem a achar que com a entrega dos projetos de cenários e figurinos a parte mais importante de seu trabalho criativo está substancialmente completa (BROOK, 1970, p. 106).

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O esboço de um cenário, como busca de tangibilidade de uma “intuição amorfa”, precisa ser considerado como indicador de um caminho que carece de investigação, exploração e experimentação. Conforme salienta Brook, “o que é necessário, no entanto, é um desenho incompleto; um desenho que tenha clareza sem rigidez; que pudesse ser chamado de aberto no sentido que se opõe ao fechado” (BROOK, 1970, p. 106). Um desenho cujo traçado não é definitivo. Delineamentos que não apresentam contornos estabelecidos. Linhas que não têm uma forma fixa e operam como impulso inicial para configuração de uma forma.

Destarte, considero a ideia de “intuição amorfa” como possibilidade de um enveredar-se por travessias desconhecidas. Um velejar por mares não desbravados. Uma nascente cujo fim de seu curso não está definido. Percursos guiados por uma sensitiva intuição. A escuta atenta atua como bússola desses trajetos. Um caminho turvo que se aclara a cada passo. Um processo de decantação que aos poucos evidencia as diferentes densidades dos componentes da mistura. Uma “intuição amorfa” que, permeada por tentativas e aberta a inúmeras possibilidades, no decorrer do processo torna-se tangível e adquire forma. 2.3.2 A presença do diálogo como possibilidade de tensão

Peter Brook destaca que, se o aspecto da “intuição amorfa” é encarado como impulso inicial cujo fim do trajeto não está estabelecido, o processo teatral necessita estar permeado por uma relação dialógica entre ator, diretor e demais envolvidos para que juntos alcancem uma forma orgânica.

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Devido a sua formação em cinema, Peter Brook (1994) analisa as diferenças entre o papel do diretor numa produção cinematográfica, e num processo teatral. Para ele, uma peça de teatro pode ser trabalhada por um diretor tendo por base as mesmas concepções de direção presentes numa produção cinematográfica. Neste caso, aponta que se faz necessário submeter atores e equipe técnica (cenógrafo, iluminador, figurinista, músicos, entre outros) às vontades do diretor para que sua concepção adquira a forma inicialmente desejada. Todavia, este tipo de procedimento no teatro é considerado repreensível por Brook.

Em sua primeira direção de uma peça teatral, Peter Brook relata que não sabia como iniciar o trabalho, mas no primeiro dia de ensaio percebeu que os atores sinalizavam que deveria ser iniciado a partir da leitura do texto. Brook, então, pediu ao ator responsável pelo papel de um soldado, que tirasse e colocasse novamente seus sapatos enquanto lia o texto. O ator surpreso com o pedido de Brook fez exatamente o que foi requerido. Mas, enquanto o texto era lido de maneira desajeitada pela tentativa de tirar e colocar os sapatos, Brook fez uma nova solicitação: o cadarço do sapato precisa ser arrebentado. O ator ficou ainda mais surpreso por ter de fazer essas ações logo na primeira passagem de texto e começou a questionar tais decisões. Peter Brook, por sua vez, considerou intransigente o posicionamento do ator. Além disso, com o receio dos demais tomarem a mesma conduta, foi autoritário e rígido.

O encenador inglês relata que logo no primeiro contato como diretor de uma peça de teatro pôde perceber as diferenças do papel do diretor de um processo teatral em relação as produções cinematográficas que estava habituado a dirigir. Brook declara que “(...) imaginava que os atores, como num filme, eram contratados para fazer

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imediatamente o que o diretor queria. Quando passou minha primeira reação de orgulho ferido, comecei a ver que o teatro era um negócio muito diferente” (BROOK, 1994, p. 28). Para ele, apesar de o cinema necessitar de trabalho coletivo, atores e equipe técnica seguem minuciosamente o que já foi concebido pelo diretor. No entanto, notou que esse modo de direção impositiva é inviável em processos teatrais.

Nessa direção, o encenador Manfred Wekwerth (1986) destaca que certa vez também encarou o processo teatral como trabalho de uma só pessoa, no caso, do diretor que impõe suas ordens para os demais obedecê-las. Segundo ele, no ensaio de Os Fuzis da Senhora Carrar, de Brecht, havia um ator principiante que trabalhava como torneiro mecânico e que interpretaria o papel do operário Pedro. Wekwerth (1986) relata que expôs o modo que ele deveria agir, principalmente no momento de exigir os fuzis de sua irmã. Ao ver tal cena, o ator passou a rir do diretor dizendo-lhe acreditar que o personagem estava mais motivado nos fuzis do que propriamente na briga com a irmã. A partir disso, o encenador alemão conta:

Eu capitulei diante dessas considerações “simplistas” e, melindrado, limitei-me a achar juntamente com ele as marcações e movimentos mais sensatos, bem como as pausas mais significativas. Entretanto, ele foi ficando à vontade no papel, exigia tenazmente determinados apetrechos (por exemplo, cigarrilha em vez de cigarro) e contagiava os demais atores com sua ingenuidade provocadora. Com o tempo, admirei-me com a abundância de gestos que ele oferecia para o papel: eram observações sérias. Ele representava amiúde de modo demasiadamente lento;

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indiquei-lhe seu ritmo. Com frequência não se encorajava a fazer pausas longas. Tentei animá-lo. Era acanhado, e me contive a duras penas para não forçá-lo (na verdade, mais porque estava ferido na minha honra de encenador!) (WEKWERTH, 1986, p.30-1, grifo meu).

Nota-se, portanto, nos episódios descritos por Peter Brook (1994) e por Manfred Wekwerth (1986), a figura do diretor pautada em uma noção autoritária e impositiva. Tal característica pode ser melhor compreendida a partir de um breve panorama histórico sobre a atuação do diretor.

Patrice Pavis, em A Encenação Contemporânea (2010), afirma que o estabelecimento da figura do diretor teatral se deu a partir de dois nomes importantes: Émile Zola e André Antoine. Segundo Pavis (2010), no final do século XIX, ambos os encenadores passaram a questionar o modelo do teatro realizado na França, considerando-o defasado devido ao uso de textos fracos e débeis que eram levados ao palco por atores declamativos.

Os encenadores supracitados aspiravam por um teatro naturalista que, segundo o próprio Zola (1982, p. 92), consiste no “(...) retorno à natureza e ao homem, à observação direta, à anatomia exata”. Ele acrescenta que não buscava personagens abstratas nas obras e tampouco invenções enganosas, mas sim “(...) personagens reais, a história verdadeira de cada um, o relativo a vida cotidiana” (ZOLA, 1982, p. 92).

De acordo com Pavis (2010, p. 11), para André Antoine, a função do diretor era “dar à obra sua primeira e determinante interpretação”. Ao diretor cabia o papel de interpretar o texto do dramaturgo. Nota-se, portanto, o

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trabalho do diretor pautado numa característica textocentrista.

Já no início do século XX, Pavis (2010) destaca que Adolphe Appia e Edward Gordon Graig buscaram fazer com que o papel do diretor fosse o de portador de sentidos. De mero executor de texto, sua função passa a ser a de um artista criador e autor pautado em sua individualidade e entendimento do texto. O diretor, então, passa a atuar como o centro dos processos teatrais, cabendo ao ator respeitar suas decisões.

Porém, nos anos 1940, Bertold Brecht fez com que o diretor operasse como “escritor cênico”. Pavis (2010) assinala que, para Brecht, o papel do diretor era o de fazer uso de sua obra como ferramenta crítica para transformar a realidade social. A encenação não poderia ficar ensimesmada nos desejos individuais do diretor, mas em seu posicionamento crítico em relação a determinados temas sociopolíticos. O diretor, assim, deveria identificar as contradições do mundo em que vive para escolher um enfoque crítico na tentativa de transformá-lo. Segundo Pavis (2010), embora houvesse uma negação da concepção fundamentada no individualismo do diretor, ainda havia nele uma centralidade excessiva que poderia acarretar no silenciamento das demais vozes no processo criativo.

Já na segunda metade do século XX, Pavis (2010) destaca que a função do diretor como autoridade de sentidos em um processo teatral se dilui a partir de trabalhos de diretores como Jersy Grotowski no Teatro Laboratório, Eugenio Barba no Odin Teatret e Ariane Mnouchkine no Théatre du Soleil.

Observa-se que o papel autoritário do diretor é questionado e reavaliado. É importante ressaltar que não há o desaparecimento de sua figura, porém é possível

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notar uma nova posição do ator que ganha voz e tem maior valorização no processo criativo.

Entendo que é nesse sentido que Peter Brook (1994) destaca que a potencialidade do teatro se manifesta no deslocamento da singularidade do diretor para um campo aberto e receptivo a variados pontos de vista. Sobre esse aspecto ele assevera:

Quando um grupo de pessoas se encontra pela primeira vez, percebemos imediatamente as barreiras criadas por seus diversos pontos de vista. Se aceitarmos essa diversidade como um dado positivo, faremos com que visões contraditórias fiquem mais aguçadas, afiando-se umas contra as outras (BROOK, 1994, p. 35).

O encenador inglês defende o pressuposto de que uma relação dialógica num processo teatral suscita tensão e consequentemente faz emergir um campo de discussão que possivelmente enriquecerá o processo. Peter Brook é enfático ao afirmar que “o elemento básico de qualquer peça é o diálogo, que supõe tensão e presume que duas pessoas não estejam de acordo” (BROOK, 1994, p. 35). Por tal motivo, a presença do diálogo carrega a potencialidade de promoção de distintas possibilidades a serem experimentadas e exploradas no decorrer do processo criativo.

Para Peter Brook, o diretor de um processo teatral precisa estimular e provocar cada ator a expor sua visão e posicionamento durante o processo criativo. O diretor não deve atuar como detentor de verdades, soluções e ideias magníficas. O profissional que atua desse modo enfraquece o conjunto. O diretor como mediador e

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provocador descortina suas fraquezas e se disponibiliza a aprender com todos os envolvidos.

O diretor de teatro pautado no diálogo, ao invés de soluções impostas, propõe alternativas a serem discutidas, questionadas e experimentadas. Contrário à apresentação de respostas e verdades estabelecidas, formula perguntas com o intuito de provocar e estimular um campo de discussão aberto à pluralidade de perspectivas. Nessa ordem, Brook destaca que alguns atores poderão ceder “(...) facilmente à tentação de impor suas próprias fantasias, suas teorias ou obsessões pessoais, e o diretor deve saber o que incentivar e o que evitar” (BROOK, 1994, p. 35).

Creio que, na citação acima, Brook evidencia a responsabilidade do diretor frente a um processo criativo: responsabilidade de incentivar a multiplicidade de pontos de vista e de evitar que determinados posicionamentos se sobreponham aos demais de maneira impositiva e ríspida. Responsabilidade de fazer com que teorias apresentadas sejam discutidas em vez de aceitas como verdades absolutas sem antes serem questionadas e problematizadas. Responsabilidade de incentivar a pluralidade e evitar uma singularidade impositiva e aniquiladora de alteridades. Responsabilidade de se disponibilizar a aprender o que pode ser incentivado e o que precisa ser evitado.

Para tal, o processo precisa estar permeado por constantes experimentações e, conforme aclara Brook, por tais características não pode ser considerado caótico: “É por isso que um processo que muda a todo instante não é um processo de confusão, mas de crescimento” (BROOK, 2011, p.102). Por outro lado, o diretor inglês alerta que é imprescindível que o caos promova a ordem e, por este motivo, o diretor necessita de clareza para que

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o processo não se converta numa experimentação infrene que impossibilite uma finalização.

Isto posto, em conformidade com a posição de Peter Brook, considero que um processo teatral calcado na singularidade do diretor se limita a uma configuração que faz dos atores reprodutores de suas ideias, marionetes de seus movimentos e fantoches de suas mãos. O processo fica enfraquecido pela verticalidade de seu posicionamento. Criação e invenção são limadas e esfaceladas por uma conduta iliberal. Ao invés de um campo dialógico, enriquecido por discussões e pluralidade de ideias, há um rijo terreno que impossibilita o plantio de novas sementes e desenvolvimento de novos frutos.

2.3.3 “Espaço vazio”: ausências que suscitam reticências

Peter Brook inicia a articulação conceitual do “espaço vazio” na década de 1960. A noção de vazio é de suma importância para as formulações e práticas teatrais do diretor inglês. A fim de investigar um espaço de esvaziamento material da cena e psíquico do ator, o vazio opera de modo desafiador e demanda criatividade, sensibilidade e receptibilidade. O ato de esvaziar-se é ponderado por Brook de modo oposto ao engendramento de uma configuração fechada e findada.

A noção de vazio demanda um estado de prontidão e disponibilidade a novas descobertas. Para tal, Peter Brook destaca a relevância de intenso treinamento físico para que o ator possa desenvolver alta qualidade técnica nos movimentos e apurada destreza corporal. Afinado pelos exercícios o corpo poderá ausentar-se de tensões e posturas usuais. Imbuído de tais características e aliado a uma qualidade de atenção, o ator conseguirá harmonizar

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a relação entre pensamento, sentimento e corpo a fim de experienciar possibilidades ilimitadas de vazio.

Para Peter Brook a experimentação do vazio gera configurações receptivas ao novo que são repletas de possibilidades. O “espaço vazio” permite a descoberta de novas formas dado que, segundo o diretor inglês, “nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la” (BROOK, 2011, p. 04).

Sem embargo nenhum espaço geográfico ou físico é totalmente vazio de significado, entretanto, o “espaço vazio” a que Peter Brook se refere diz respeito a um campo pleno de possibilidades de significação: um espaço aberto para receber outro nível de significado na imaginação daquele que observa. O vazio neste espaço opera como gerador de perceptividade. Em entrevista ao teórico alemão C. Bernd Sucher o diretor inglês destaca o “espaço vazio” na qualidade de potencialidade de criação, aberto a formas que se configuram pelas conjunções do momento presente e receptivo a novos significados:

Quando falo de espaço, não me estou a referir ao espaço no sentido geográfico ou físico. Para mim, este conceito tem um significado muito mais lato. Espaço é tudo o que ainda não tem forma e tudo o que ainda não tem forma constitui uma potencialidade; isto é, a potencialidade do nascimento, da criação, depende de um espaço que ainda não foi preenchido, não foi determinado. O espaço vazio significa a virtualidade, o que era antes do big bang com todos os seus significados (BROOK apud SUCHER, 1999, p. 325).

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O vazio opera de modo provocativo para que o espaço seja preenchido pela aceitação do jogo imaginário e, por isso, um de seus aspectos refere-se à cumplicidade entre ator e espectador, além de ausência de cenário. Peter Brook destaca que “no espaço vazio podemos aceitar que uma garrafa seja o foguete que nos levará ao encontro de uma pessoa real em Vênus. Depois, numa fração de segundo, tudo pode mudar no tempo e no espaço” (BROOK, 2011, p. 23). Para que o jogo não seja interrompido é imprescindível que nenhum elemento cenográfico interfira de modo a ilustrar a realidade. Este espaço objetiva provocar o ator a criar mecanismos que mobilizem sua imaginação assim como a do espectador, a preencher vazios. A imaginação, por sua vez, é considerada por Peter Brook como um músculo que necessita de exercícios e quanto menor o número de elementos oferecidos melhor será seu desempenho.

O espaço vazio, como campo de inúmeras possibilidades, permite que o ator ressignifique objetos na cena, atuando de modo provocativo no imaginário do espectador. Brook exemplifica que por meio do jogo uma atriz pode convencer o público de que uma simples garrafa de plástico seja um lindo bebê:

Uma grande atriz pode fazer-nos acreditar que uma horrenda garrafa de plástico, que ela carrega nos braços de um jeito especial, é uma linda criança. É preciso ser uma atriz de alto nível para realizar esta alquimia, na qual uma parte do cérebro vê a garrafa e a outra parte, sem contradição, sem tensão, mas com alegria, vê o bebê, a mãe segurando o filho e a natureza sagrada de sua relação. Esta alquimia só é possível se o objeto for tão neutro e comum que possa refletir a imagem que o ator lhe atribui.

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Poderíamos chama-lo de “objeto vazio” (BROOK, 2011, p.39).

Peter Brook acresce que mediante movimentos claros, precisos e intencionais, aliado ao uso de um simples acessório, como um gorro branco de esquiador, é possível que o ator remeta a um Papa. Não é necessário um vestuário original de pontífice, posto que, dependendo das palavras e gestos do ator, a figura do patriarca católico e a atmosfera do Vaticano poderão se materializar na imaginação do espectador. Para o diretor inglês a imaginação no teatro pode preencher os espaços ao passo que no cinema é exigido um certo realismo diário em razão da tela representar o todo e requerer uma lógica e coerência das imagens cinematográficas. Segundo Brook, seria improvável no cinema um sujeito com roupas cotidianas e gorro branco de esquiador remeter a um Papa. Já no teatro isso é possível mediante um espaço aberto que, por meio de uma convenção estabelecida entre ator e público, permite que a imaginação cultive o vazio.

Para pensar a respeito da convenção entre plateia e atores recorro ao estudo de Wolfgang Iser (2002a) sobre o jogo do texto literário. Segundo ele, a relação entre leitor e texto é mobilizada por espaços vazios que só são preenchidos a partir do contato com o receptor. Para Iser (2002a, p. 107), “o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo”. O jogo do texto, para o autor, tem duas vantagens: primeira, “não se ocupa do que poderia significar”; e segunda, “não tem de retratar nada fora de si próprio” (ISER, 2002a, p. 107). O autor menciona que a obra só se completa no ato da leitura e a imaginação torna-se elemento de suma importância, pois permite que o indivíduo se assenhore de

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suas subjetividades e, a partir dela, interprete e atribua sentido ao texto.

Wolfgang Iser (2002a) assinala que o texto não tem um significado fechado e que o leitor precisa apropriar-se dele como coautor. O sentido atribuído ao texto se dá por meio do jogo em que o leitor é mobilizado a exercer sua capacidade criadora. A imaginação, nesse caso, se encarrega de ser o substrato criativo da recepção e fazer com que o ato de leitura promova um encontro consigo mesmo.

Nesse sentido, Jacó Guinsburg e Rachel Araújo Fuser (2002) expõem que se a imagem no teatro é fruto da imaginação, o sentido atribuído à imagem captada pelo olhar provém do imaginário daquele que a vê. De acordo com suas palavras:

Se a matéria prima do teatro são imagens produzidas pela imaginação, cumpre, então, admitir que as demais funções desencadeadas e atinentes são também um jogo do vir a ser a ele subordinado, que na qualidade de imagens, nos instantes que são configuradas, emergem na esfera do imaginário como uma consciência. (FUSER; GUINSBURG, 2002, p.292).

O objeto artístico, portanto, é permeado pela imaginação tanto no ato da produção, quanto no momento da recepção. Ou seja, a obra se revela ao público por meio da materialização do substrato imaginativo que o artista nela imprimiu. O espectador, por sua vez, precisa se apropriar do objeto artístico e a ele atribuir os significados que emergem da esteira do imaginário com base em sua subjetividade.

Diante disso, Denis Guénoun (2004, p. 150) afirma que “não há em nosso tempo, em nosso mundo,

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espectadores de teatro que não sejam jogadores em potencial”. Além do mais, afirma que cabe ao ator preencher os vazios do texto utilizando-se de sua imaginação. Esta opera como agente decisivo nas ações dos atores que precisam atuar (re)criando mundos não somente para atingir o real, mas também para experimentar as coisas que podem vir a se tornar realidade. Para ele “(...) o imaginário está em toda a parte: em todas as alavancas de comando, em todas as engrenagens, ele sustenta todos os rebites e correias desta máquina. Ele é, decididamente, o mestre do jogo” (GUÉNOUN, 2004, p. 92).

Denis Guénoun (2004) acrescenta ainda que é de extrema relevância desenvolver, ativar e enriquecer a imaginação do ator deixando-a sempre a postos para trabalhar. Nesse aspecto, creio que a noção de “espaço vazio” de Peter Brook é um profícuo caminho para estimular e exercitar o “músculo da imaginação”. No entanto, o diretor inglês alerta que possivelmente o ator sentirá medo do vazio. Brook explica que tal sentimento provém da preocupação de preencher os espaços de maneira qualitativa a fim de desenvolver movimentos adequados, meticulosos e intencionais. O medo do vazio, nesse caso, gera por vezes precipitação que compromete o foco do ator. Este, às vezes de modo conturbado, para esquivar-se da sensação de desnudamento, ocupa o espaço com ações desnecessárias e palavras prolixas, por isso, a sensação de vazio exige coragem e sabedoria para que a intensidade da presença não seja exaurida com ações superficiais e negligentes. O diretor inglês ressalta que a maioria das expressões excessivas e dispensáveis no teatro “(...) provêm do pavor de não estarmos realmente presentes se não avisarmos o tempo todo, de qualquer jeito, que de fato existimos” (BROOK, 2011, p. 18). Por este motivo, Brook assinala que o ator

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deve compreender que é possível estar integralmente presente, mesmo imóvel.

Nessa ordem, Matteo Bonfitto (2009) destaca que o pressuposto de vazio, fundamentado por Peter Brook no que diz respeito à atuação é relacionado a um estado de “não-ação”. “Ele [Peter Brook] considera o vazio não como uma dimensão desprovida de tudo, não como ausência, mas como um estado que gera possibilidades ilimitadas” (BONFITTO, 2009, p. 180). Este estado de “não-ação” desafia o ator a uma situação de imobilidade provida de intensa concentração. Além disso, refuta prévias composições mentais e busca gerar um vazio imune ao pavor. Por tais motivos Bonfitto associa a formulação de vazio de Peter Brook com certos aspectos doutrinários budistas. O budismo é assinalado pelo pesquisador na qualidade de filosofia e religião não-teísta que, dentre outros objetivos, busca atingir um vazio por meio da meditação. Os preceitos budistas intentam um estado de “não-mente” com o intuito de transcender a psique. Esses momentos visam provocar uma imobilidade silenciosa decorrente de profunda concentração e por esta razão não devem ser confundidos com inexistência de atividade (BONFITTO, 2009).

Essa noção de vazio do ator é relatada por Peter Brook quando assistiu a uma cerimônia na aldeia de Bengala chamada Chauu. O diretor inglês descreve que os nativos da aldeia interpretavam cenas de guerras e deslocavam-se à frente em curtos saltos. Brook relata que com os olhos sempre avante detinham uma força incrível. Intrigado com tamanha concentração, questionou o mestre da cerimonia e obteve a resposta de que os participantes foram instruídos a manter constantemente os olhos abertos e, para evitar pensamentos esparsos, concentravam-se unicamente em seus movimentos. Isto posto, Brook percebeu que o vazio acentua o estado da

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presença do ator. Segundo ele, “(...) no teatro é possível experimentar a realidade absoluta da extraordinária presença do vazio, em contraste com a confusão estéril de uma cabeça entulhada de pensamentos” (BROOK, 2011, p. 19). O diretor inglês ao assistir à cerimônia africana percebeu que o excesso de racionalização prejudica o ator de modo a impedi-lo que desfrute do momento presente com força e intensidade.

Em relação ao vazio, em O Ator Invisível (2007), Yoshi Oida5 relata seu processo de esvaziamento para a cena de suicídio de sua personagem Drona, em Mahabharata, epopeia hindu escrita em sânscrito, dirigida por Peter Brook. Yoshi Oida conta que o imbatível mestre guerreiro Drona, ludibriado por seus inimigos, acreditou que seu filho havia sido assassinado. Por este motivo perdeu a vontade de lutar e desalentado pelo fato, suicida-se. Nesta cena Drona se despe das vestimentas e como uma espécie de purificação esparze um grande vaso de água avermelhada sobre a cabeça. O líquido vermelho escorre por seu corpo até ser absorvido totalmente pela terra. Neste momento, ao som da batida firme de um tambor, Oida pontua que não se perguntava sobre qualquer estado psicológico ou o que seria interessante demonstrar para público, apenas procurava manter o foco para se concentrar em relacionar seus movimentos à batida do tambor. Para Yoshi Oida a tristeza já era algo presente na cena e, por isso, não buscava interpretá-la

5 Ator, escritor e diretor teatral. Nasceu em 1933 em Kobe,

Japão. Iniciou sua formação de ator desde criança e integrou o Centro Internacional de Pesquisa Teatral (CIRT) desde sua fundação em 1970, a convite de Peter Brook, para participar da montagem de A Tempestade, de Shakespeare. Em suas produções bibliográficas destaca-se: Um Ator Errante (1999) e O Ator Invisível (2007).

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mas interligar o som do tambor com as ações de seu corpo:

Quando a cena se iniciava, Toshi Tsuchitori (um músico japonês que fazia parte da produção) começava uma batida firme no tambor. Eu usava isso como foco e simplesmente me concentrava em relacionar meus movimentos à batida do tambor. Para mim, não havia mais nada. Apenas minha ligação entre o som e as ações do meu corpo. [...] Era um momento frio, nada alegre, portanto tinha de manter minha atenção na qualidade triste da cena. Não interpretei a tristeza. Ela era simplesmente reconhecida como algo presente. [...] Pensando bem, eu percebia que aquele momento funcionava, porque eu tinha me concentrado de maneira muito firme numa única coisa. Como consequência, havia muito espaço dentro de mim; espaço que permitia entrar a imaginação do público. Não havia em meu interior material psicológico demais. Eu simplesmente respeitava a situação e então me concentrava na música. Como retorno, essa concentração criou um tipo de vazio interior. Dentro desse vazio, o público pôde projetar sua própria imaginação. Pode contar todo o tipo de histórias a partir do que eu estava sentindo. (OIDA, 2007, p. 91).

O relato de Yoshi Oida demonstra a noção de esvaziamento psíquico do ator. A concentração para um vazio interior visou direcionar o olhar do público para o desalento doloroso de um pai que acaba de perder seu filho. O estado de “não ação” de um pai desolado pela morte de um filho operou de modo provocativo nos

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meandros dos processos internos do espectador. Ao colocá-lo em jogo pôde mobilizar sua perceptividade para produzir subjetividades. A potência dos instantes de “não ação” antes do suicídio do guerreiro Drona teve o potencial provocativo de gerar inúmeras sensações no espectador de modo a provocá-lo a criar imaginariamente suas próprias narrativas e /ou conduzi-lo a situações já vividas.

No que tange à interpretação do ator, a busca por um vazio intenta uma qualidade de presença que evita palavras prolixas e movimentos desnecessários. Imbuído por um estado de alerta com o exterior – lugar, pessoas e situação que o circunda – aliado a uma profunda concentração interior, o ator pode criar um “espaço vazio” que potencializa sua presença. Atuar nesse vazio permite que o ator se afete pelos acontecimentos e reaja a eles de modo intencional e preciso. A atenção do ator fixa-se nas ações de seu corpo de modo a evitar prévias composições físicas e pensamentos desconexos. O vazio aqui analisado se exaure de precipitação e intenção exagerada de mostrar-se presente. A busca por um vazio potencializa-se por meio do foco da ação, coerência física e inteireza do movimento.

Destarte, a noção de espaço vazio examinada neste estudo relaciona-se com a ideia de ausência. Esta não é o antônimo de presença, mas, na qualidade de campo fértil, é geradora de possibilidades. Desafeiçoado à convicção necessária de uma exclamação, o vazio aproxima-se da interrogação na condição de espaço aberto à conjunção da cena. O não dito e a “não ação” são como hiatos associados à ideia de abertura e fenda. Esse hiato pertence ao jogo das reticências, visto que opera num espaço omisso e, por tal característica, aberto a ser preenchido pelo imaginário. Por isso o ator precisa cultivar esse campo vazio, semear possibilidades e utilizar

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fertilizantes que ressoam, provocam e incitam subjetividades. 2.3.4 O jogo como campo instável e aberto ao imprevisível

Os escritos de Peter Brook apontam que o jogo no teatro possibilita a improvisação, cujos pressupostos se ancoram na imprevisibilidade, experimentação e abandono de configurações cristalizadas. Para o diretor inglês, por mais que a arte de representar implique em processos de muito trabalho, se experimentada como uma brincadeira possibilita que o prazer e o entusiasmo façam parte do processo. Peter Brook busca, ao longo de seus processos criativos, instaurar um espaço de jogo a fim de estimular constantes experimentações alicerçadas num campo convidativo, álacre e provocador.

Em crítica ao título do livro A construção do personagem de Constantin Stanislavski, Peter Brook assinala que “um personagem não é uma coisa estática e não pode ser construído como uma parede” (BROOK, 1970, p.121). Para ele, ao invés de ser construída, a personagem deve nascer e renascer a cada apresentação. A ideia de construção alude a uma personagem que sempre terá os mesmos feitios e, por tal motivo, aos poucos se desgastará. A instauração de um campo de jogo possibilita que a criatividade do ator seja explorada de modo a encorajá-lo a abandonar resultados precedentes e formas acabadas.

Em razão do exposto acima, a fuga de uma zona de conforto atua como ponto fulcral nos processos de Peter Brook. Estagnar-se numa área confortável possivelmente impedirá o ator de arriscar-se e explorar novos caminhos. A saída de uma zona de conforto implica em criar um espaço de experimentação em que cada ator

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será estimulado a lidar com o imprevisível para possibilitar o conhecimento de novas geografias.

O jogo, como possibilidade de criar um campo de instabilidade, viabiliza potencializar um estado de atenção para enveredar-se pelo desconhecido. No entanto, isso apenas se tornará possível caso o ator permita-se experimentar o inexplorado ao invés de trilhar por caminhos já percorridos.

Peter Brook (2011) considera medíocres artistas que não se arriscam. O ator confinado ao jugo do medo se limita à mesmice e ao usual. Segundo o diretor inglês, “todos os elementos que dão segurança precisam ser observados e questionados” (BROOK, 2011, p. 22). Tais elementos precisam ser questionados para que o ator não crie um escudo de convicções a fim de reiterar velhos discursos e evitar que suas ideias sejam debatidas e até mesmo refutadas. O que confere segurança ao ator carece ser observado com o propósito de averiguar se respostas são criadas antes mesmo da pergunta ser feita. Ademais, questionar os elementos que dão segurança ao ator é preciso para que suas ações, no instante do jogo, não se automatizem pelo temor à vulnerabilidade.

Para Peter Brook (2011), um ator criativo se disponibiliza ao jogo e não precisa seguir um manual que determina o modo de execução de cada ação. O ator que se apoia em tais artifícios incidirá numa conduta genérica e embotadora da capacidade de se lançar ao ato de jogar.

Em contraposição ao ator criativo, Brook destaca o “ator mecânico”. Segundo ele, esse tipo de profissional “fará sempre a mesma coisa, e portanto a relação que estabelece com os colegas em cena não pode ser sutil nem sensível. [...] Esconde-se em sua concha ‘mecânica’ porque ela lhe dá segurança” (BROOK, 2011, p. 21). A observação de Peter Brook sobre o “ator mecânico” me remete à ideia de um ator blindado que, em consonância

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à análise do diretor inglês, se isola numa redoma impenetrável ao desafio. Sua escuta é blindada por ações previamente definidas. Seu olhar é blindado por imagens idealizadas de antemão. Sua fala é blindada por palavras antecipadamente concebidas. Um blindar-se a novas percepções por meio de um revestimento letal a um estado de jogo. Um blindar-se que recusa a partilha do momento presente e nega a condição de inter-relação. Um blindar-se contra a reticência por promover vazios, e a exclamação por instaurar um campo provocador.

Um “ator mecânico” possivelmente alimentará a sensação de estar em jogo, no entanto, por sua característica de blindar-se e manter-se protegido por sua “concha mecânica”, criará uma barreira que o impedirá de jogar. Essa barreira é definida por Jean-Pierre Ryngaert (2009) como “savoir-faire limitado”:

Uma formação parcial, restrita a alguns elementos de técnica teatral, pode ser um obstáculo ao jogo. O participante reutiliza ingenuamente o que sabe fazer, provando que “fez teatro” ou simplesmente, e com toda a boa-fé, porque está persuadido de que é preciso fazer desse modo. Tal jogador, há pouco tempo iniciado na pantomima, refaz obstinadamente um número de manipulação de uma porta imaginária ou de um teclado de telefone. Um outro, treinado no teatro de bulevar, dá grande passadas vociferando. Outro ainda substitui todo envolvimento emocional por efeitos de voz que servem para simular. Nenhum deles joga, mas estão convencidos do contrário. (RYNGAERT, 2009, p. 51).

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O “savoir-faire limitado”, conforme aponta Ryngaert (2009), atua como técnica que garante uma excessiva segurança ao ator e, por esse motivo, o impede de jogar. Cristalizar uma técnica de modo a sempre utilizá-la, seja ingenuamente ou não, incidirá numa válvula de escape para momentos desafiadores que provavelmente acarretará num simulacro de jogo. Além do mais, o autor francês destaca que não se trata de combater técnicas de formação teatral, mas de alertar para que elas não atuem como obstáculos ao ato de jogar.

Convém ressaltar que Peter Brook não desconsidera a necessidade de preparo do ator para jogar. Segundo Brook (2001), o ator, ao atuar num campo de jogo, precisa desenvolver o sentido da escuta e disponibilizar-se ao imprevisível. Logo, essa preparação não pode atuar como embotadora da percepção, de modo a cristalizar ações que impedem desdobramentos inesperados, sendo estes característicos da tessitura vívida do jogo. O diretor inglês assinala que a ausência de preparo possivelmente tornará o evento caótico e insípido. Ainda alerta que preparar não significa conceber previamente estruturas fixas e inflexíveis.

Comportamentos enrijecidos e ações preconcebidas, para Ryngaert (2009), atuam na contramão do sentido de jogo. Segundo ele, “o jogo é um recurso contra condutas rotineiras, ideias preconcebidas, respostas prontas paras situações novas ou medos antigos” (RYNGAERT, 2009, p. 60). O autor acresce que a capacidade de jogo do ator pode ser abalizada “por sua aptidão de levar em conta o movimento em curso” (RYNGAERT, 2009, p. 54). Para tal, o ator precisa disponibilizar-se a circunstâncias adventícias e operar por meio de uma escuta alerta e receptiva. Ao atuar pautado em tais princípios, reações criativas possivelmente embrenharão o campo de jogo.

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Ryngaert (2009), a título de exemplo, descreve um acontecimento permeado por uma reação criativa de um grupo de teatro dirigido por Peter Brook. O autor francês destaca que os atores ao perceberem a saída de um espectador, por considerar que o espetáculo havia sido finalizado, decidiram integrá-lo à apresentação. Foram ao seu encontro, levaram uma cadeira e acomodaram-no para que pudesse assistir ao espetáculo até o fim. Para Ryngaert (2009) poderia ter sido constrangedor o fato de o espectador ter se levantado antes do término da apresentação; porém, tal episódio foi transformado num fantástico momento de jogo. O pesquisador francês salienta que este tipo de reação criativa é característica de um grupo habituado a lidar com o imprevisível e a dispor-se a ele. Ao invés de ignorar um fato inesperado, o grupo integra-o à apresentação como elemento gerador de jogo.

Peter Brook (1970) destaca que em seus trabalhos estimula os atores a reagirem criativamente a situações inesperadas. O diretor inglês relata um exercício que fez parte de uma apresentação aberta ao público: abrir uma porta imaginária e se deparar com algo surpreendente. A reação poderia ser esboçada por meio de um gesto, som, pequenos ou grandes movimentos. Segundo Brook, passos para trás a fim de evidenciar a sensação de horror ou boca aberta para demonstrar a impressão de espanto foram algumas das propostas apresentadas. Tais reações, consideradas atitudes estereotipadas por Peter Brook, serviram para demonstrar o modo que muitos atores reagem quando desafiados, visto que, ao invés de se enveredarem por novas descobertas, apoiam-se em rasas imitações e, em decorrência disso, caem num terreno ordinário.

A queda num território trivial motiva um estado de comodidade e dificulta a exploração de novos caminhos.

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Peter Brook é enfático ao afirmar seu intuito ao dirigir processos permeados por exercícios improvisacionais: “O objetivo da improvisação quando se prepara um ator durante os ensaios e o objetivo dos exercícios é sempre o mesmo - fugir do Teatro Morto” (BROOK, 1970, p. 119). Observo que essa fuga de um “Teatro Morto” opera como busca por novas possibilidades. O vocábulo morto como adjetivo atribuído ao teatro, para Peter Brook (1970), conduz à reincidência e à monotonia. Uma cômoda conjuntura poderá obstruir um campo de confronto e fará com que a mesmice atue como protagonista e seja a diretriz das ações dos atores. No entanto, destaca que caminhar por terrenos desafiadores potencializará o descobrimento de novas conquistas.

Peter Brook (2011) relata que em alguns trabalhos, após determinado período de ensaio, quando o texto já está memorizado e a trama da história compreendida pelos atores, abandonam o que já está esboçado, como marcações, objetos cênicos e figurinos, para improvisarem uma nova versão da peça numa escola. Os atores, rodeados por crianças, são desafiados a explorar esse novo espaço. Segundo o diretor inglês, essa experiência oportuniza um progresso ao trabalho:

Em geral, as crianças nunca ouviram falar da peça que lhes vamos apresentar; portanto, nossa tarefa consiste em encontrar meios mais imediatos de captar sua imaginação e não deixar que ela escape, fazendo com que a história flua com vivacidade e frescor a cada momento. A experiência é sempre muito reveladora, e esse par de horas faz com que nosso trabalho dê um salto de várias semanas (BROOK, 2011, p. 98).

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Convém ressaltar que na década de 70, acompanhado com seu grupo internacional de atores, Peter Brook foi à África para apresentar os “espetáculos no tapete” ou The Carpet Show. Tal proposta consistia num espetáculo improvisacional cujo processo era exposto. Havia um tapete que atuava como espaço permissivo ao jogo. Os atores improvisavam neste espaço a partir de determinado estímulo como um objeto, sensação ou tema. Na primeira apresentação, realizada na Argélia, numa cidade chamada In-Salah, o estímulo foi um par de botinas empoeiradas. Os atores - um de cada vez - se direcionavam ao centro do tapete e passavam a jogar com as botinas. Ao calçá-las, seus corpos se transformavam em diferentes figuras. Peter Brook não descreve quais foram essas figuras geradas pelo jogo das botinas, mas afirma que “(...) eles [os atores] jogavam com as transformações que as botinas causam em pessoas diferentes, calçando-as de modos diversos – algo que qualquer um pode reconhecer e sentir imediatamente” (BROOK, 1994, p. 159). Os atores puderam explorar as várias alternativas de um objeto real (o par de botinas) instaurado num campo de jogo (um tapete). O contato com as botinas permitia diferentes modos de relação e, consequentemente, reverberações em seus corpos.

Os apontamentos de Peter Brook sobre o jogo me fez lembrar de um trecho do poema de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa): “O essencial é saber ver. Saber ver sem estar a pensar. Saber ver quando se vê. E nem pensar quando se vê. Nem ver quando se pensa” (PESSOA, 1974, p. 217).

Alberto Caeiro me remeteu à análise aqui realizada sobre o jogo na perspectiva brookiana, pois revela que para jogar é de extrema importância estimular o olhar. E quando utilizo a palavra “olhar” não me refiro apenas ao sentido da visão, mas à integração entre corpo e mente a

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fim de possibilitar uma percepção aguçada. Penso que somente dessa maneira é possível fazer com que a imprevisibilidade do jogo alimente a energia criativa do ator e faça com que ele seja capaz de fazer com que qualquer estímulo seja gerador de jogo. O “ator criativo”, portanto, segundo Peter Brook (2011, p.97), consegue estar “em dois mundos ao mesmo tempo”, isto é, ter “um ouvido voltado para o seu interior e o outro para fora”.

Para Peter Brook, sem embargo, o jogo opera como campo de instabilidade e o ator que conjura nesse espaço edifica um simulacro de jogo. Por este motivo, permitir-se ao imprevisível impedirá uma blindagem da escuta, fala e ações, então, ao navegar num consciente estado de deriva, o ator se afastará da costa que lhe dá segurança, fruirá novos horizontes e velejará por mares inexplorados. Durante essa viagem, soluções preparadas de antemão e conclusões precipitadas são dispensáveis. Por outro lado, disponibilidade, generosidade e escuta atenta são itens aconselháveis. A disponibilidade impedirá que um inflexível roteiro deixe a jornada enfadonha. A generosidade em aceitar propostas, aliada a uma escuta atenta, abrirá passagens a novas travessias. Assim, essa viagem, permeada por desafios e riscos, permitirá o conhecimento de novos trajetos. 2.3.5 O entrecruzamento dos fios

A imagem que tenho dos aspectos pedagógicos de Peter Brook analisados neste trabalho (“intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo) é de interdependência. Visualizo-os dessa forma, pois se a “intuição amorfa” atua na contramão de planejamentos enrijecidos e opera como impulso inicial a ser experimentado e problematizado, o diálogo precisa estar presente no processo. A “intuição amorfa” atingirá sua tangibilidade por meio de uma

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relação dialógica que desloca a singularidade impositiva do diretor para um campo aberto e receptivo à pluralidade de pontos de vista. Uma relação dialógica contribui para instauração de um “espaço vazio” que, entendido como campo pleno de possibilidades e receptivo a diferentes níveis de significados na imaginação, opera como gerador de perceptividade. Esse vazio possibilita um campo de jogo ancorado na imprevisibilidade, experimentação e abandono de configurações cristalizadas.

Creio que, provavelmente, os quatro aspectos pedagógicos analisados neste estudo não tenham sido inventados por Peter Brook, no entanto, considero que a junção dos mesmos, abordados aqui como fios que se entrelaçam e formam uma rede, atua de modo profícuo para a conquista do peixe dourado. 2.4 ENTRELAÇAMENTOS ENTRE DADOS BIOGRÁFICOS DE PETER BROOK E SUA PRÁTICA TEATRAL

Em busca de uma melhor compreensão da prática

teatral de Peter Brook, considero relevante inteirar-me de alguns de seus dados biográficos. Creio que visualizar os caminhos percorridos por Brook me possibilita assimilar o modo que seus fios biográficos entrelaçam-se com as escolhas que nortearam e provavelmente ainda permeiam seu trabalho com o teatro. À vista disso, o livro Fios do Tempo (2000), uma narrativa de vida contada pelo próprio Peter Brook, é o material que me parece mais apropriado e, neste momento, possível para acercar-me de sua biografia.

O diretor inglês (2000) afirma que poderia denominar sua narrativa de “falsas memórias”, pois para ele o cérebro humano é incapaz de armazenar histórias e lembranças de modo incólume. Ainda acrescenta que,

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apesar da preocupação de relatar veridicamente os passos que integraram os caminhos por ele trilhados, não se sente compelido a descortinar tudo que viveu. Para Brook, em sua história de vida há fatos e sentimentos que só a ele pertencem e, por tal motivo, considera desnecessário expô-los.

Percebo que o ditado popular “minha vida é um livro aberto” é dispensado por Peter Brook. Considero ética sua postura ao demonstrar esse posicionamento na primeira página de seu livro. Ademais, tampouco encaro como um problema o ato de não relatar sentimentos e fatos que julga somente a ele pertinentes. Diante de tais circunstâncias, ainda assim, considero as narrativas de Brook o material mais adequado para enveredar-me por seus caminhos biográficos na tentativa de compreender como eles estão concatenados à sua prática teatral.

Em relação a termos estruturais, os dados biográficos de Peter Brook poderiam estar situados no início deste trabalho. No entanto, considero importante primeiramente compreender os aspectos pedagógicos que mais me chamaram a atenção no trabalho do diretor inglês para, a partir de então, relacioná-los à sua trajetória de vida. Desse modo, apresentarei alguns relatos biográficos de Peter Brook que me remetem aos aspectos da “intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo.

Meu ponto de partida é a infância de Peter Brook. Ele relata que, quando criança, tinha como ídolo um projetor de filmes. Havia em sua casa um equipamento de projeção, mas era impedido de manuseá-lo porque apenas seu pai e irmão eram considerados aptos a compreender a complexidade de seu uso. Após um longo tempo lhe foi concedida a oportunidade que tanto aguardava: autorização para manipular o projetor de filmes. Peter Brook conta que ficava maravilhado com as imagens cinzentas e arranhadas que projetava. Tal

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maravilhamento fez com que Brook esboçasse o desejo de seguir carreira como diretor de cinema. Por mais que seu pai almejasse que o filho fosse advogado, Peter Brook iniciou seus estudos em cinema em 1942, na Oxford University.

Segundo Brook, sua aproximação com o teatro aconteceu sem nenhuma atração especial. Aos dezenove anos, em Oxford, dirigiu o filme amador A Sentimental Journey. Após a rodagem e apresentação do filme, em busca de emprego, acercou-se de um notório produtor italiano e revelou seu interesse em dirigir filmes, mas por estar em fase inicial de carreira foi convidado a trabalhar como assistente e ouviu a promessa de que após sete anos poderia ser o diretor de seu próprio filme. Para Brook seria um longo tempo de espera e, portanto, considerou mais oportuno investir na carreira de diretor teatral. Foi num teatro em Kensington, um distrito no oeste de Londres, que lhe abriram as portas para que dirigisse a peça A Máquina Infernal, de Jean Cocteau. A partir de então Brook passou a se aproximar do teatro e a dedicar-se a produções teatrais.

Os textos de William Shakespeare permearam a trajetória teatral de Peter Brook. Entre montagens e remontagens dirigiu diversos textos do renomado dramaturgo inglês, tais como: Trabalhos de amor perdidos em 1946, Romeu e Julieta em 1947, Medida por Medida em 1950, Hamlet em 1955, Titus Andronicus em 1955, Rei Lear em 1962, A tempestade em 1968 e 1990, Sonho de Uma Noite de Verão em 1970, e Timão de Atenas em 1974.

O primeiro contato de Brook com Shakespeare não aconteceu por meio de livros, mas conforme seu próprio relato, ocorreu em sua infância por meio do rádio. Ele conta que ficava entusiasmado “(...) ouvindo um novo mundo, aberto no momento em que o ruído finalmente

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cessava e as vozes da BBC podiam ser ouvidas, gritando entusiasticamente ‘Ave, César! César ave!’” (BROOK, 2000, p. 28).

Peter Brook admira Shakespeare por considerá-lo um dramaturgo hábil em atribuir o mesmo poder de persuasão a diversos personagens. Ademais, destaca que no final do século XVI o teatro elisabetano permitia que Shakespeare explorasse a imaginação do público com constantes e ágeis sucessões de cenas com longos intervalos de horas, dias e meses. A estrutura do teatro elisabetano, para Brook, conferia a Shakespeare mobilidade, flexibilidade e variadas opções de exploração do imaginário do espectador.

A criação de vazios para que a imaginação possa ser explorada é uma das premissas do trabalho teatral de Peter Brook. O espaço vazio, como uma das bases norteadoras da prática do diretor inglês, opera como campo provocador de subjetividades. Isto posto, ao me deparar com alguns relatos de Peter Brook sobre sua infância percebo o quanto sua imaginação era aguçada e me inclino a pensar que tal característica possivelmente influiu em sua prática teatral.

Peter Brook conta que, ainda criança, deitado em sua cama com febre, passava a imaginar várias situações para que o dia não ficasse tão enfadonho. Ao ouvir barulhos interpretava-os como ruídos de um submarino pilotado por um jovem capitão que, ao aparecer pelo chão, o convidaria à aventurar-se em explorações subterrâneas. Antes de permitir-se à aventura, precisava preparar um longo e bom discurso heroico e, assim, o tempo passava enquanto cada fala era minuciosamente pensada para o momento da despedida.

A imaginação de Brook não era explorada somente para afastar o tédio quando estava doente. Segundo ele, a placa com os dizeres “Entrada Proibida” nas estações e

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plataformas do metrô constantemente intrigava-o. Para Brook, essas entradas dariam acesso a labirintos obscuros e o levariam a um mundo desconhecido:

Eu ansiava por girar a maçaneta das proibidas portas de ferro, apenas para examinar o seu interior. Nunca criei coragem para fazê-lo, mas sempre tive a suspeita de que logo atrás da porta haveria um outro mundo, acessível, rico em mistérios, cheio de maravilhas – que rendesse acesso a um outro e a mais um outro, até que se chegasse a um mundo totalmente invisível (BROOK, 2000, p. 19).

O aviso “Entrada Proibida” alimentava a imaginação de Peter Brook. Além disso, gerava vazios que o estimulava a criar um lugar recôndito e fabuloso. Portas fechadas e impedidas de serem abertas no plano real criavam vazios a serem preenchidos no plano imaginário. Dessa forma, a imaginação de Brook abria as portas que estavam proibidas e possibilitava que um mundo desconhecido fosse explorado.

Por considerar a imaginação um músculo que precisa constantemente exercitar-se, Peter Brook (2011) destaca que em suas produções busca criar vazios para provocar a imaginação dos espectadores. Creio que esses vazios são como entradas proibidas que incitam tanto atores no processo de montagem, quanto espectadores durante a fruição, a abrirem portas imaginárias e se aventurarem por lugares inexplorados.

Peter Brook relata que no início dos anos 60, na função de diretor da Royal Shakespeare Company juntamente a Charles Marowitz, editor da revista de teatro Encore, planejavam exercícios para os atores. Ele ressalta que “com eles [os exercícios] veio uma renúncia

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absoluta ao privilégio do diretor de decidir com antecedência quais os resultados que ele procura” (BROOK, 2000, p. 187). Penso que o problema não estava em almejar resultados, mas decidi-los previamente de modo a impô-los mediante uma conduta opressora e embotadora da criatividade. Se os resultados são decididos previamente, renunciar a eles indica prezar por uma relação dialógica aberta à pluralidade de perspectivas.

Em relação à presença do diálogo num processo criativo, Peter Brook (2000) relata que em visita ao Berliner Ensemble, companhia teatral alemã fundada por Bertolt Brecht e sua mulher Helene Weigel, pôde assistir a um ensaio de uma adaptação de Coriolano de Shakespeare, sob a direção de Helene Weigel. Junto a ela havia mais dois diretores, dois dramaturgos e outro homem cuja função Brook não conseguiu identificar. Todos tinham igual importância e autoridade para conjuntamente opinarem no ensaio. Quando um dos atores entrou em cena e começou a dizer seu texto, foi interrompido por um grito exaltado de um dos dramaturgos que passou a demonstrar como as palavras deveriam ser ditas. O ator obedeceu as ordens do dramaturgo e passou a entonar as palavras conforme lhe foram ordenadas. No entanto foi novamente interrompido, desta vez um dos dois diretores pediu para que um braço fosse levantado e o dedo indicador apontado de maneira que combinasse a uma inflexão crescente. Peter Brook, em tom irônico, destaca que ao presenciar tais posturas autoritárias inclinou-se a acreditar que o desejo de Gordon Graig por um teatro totalmente representado por marionetes havia finalmente se concretizado. Ao final do ensaio, Brook perguntou a Helene Weigel se o intuito era fazer com que os atores reproduzissem o que lhes era pedido. Sua resposta foi

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que esse modo de trabalho consiste em estimular o ator a pensar nas proposições inqueridas por ela e seus assistentes a fim de incentivá-los a apresentar suas próprias propostas no próximo ensaio. A resposta não pareceu convincente a Peter Brook e tal experiência fez com que refletisse sobre a liberdade do ator e, consequentemente, sobre a postura do diretor numa prática teatral.

Acredito que o relato de tal episódio na narrativa biográfica de Peter Brook demonstra sua preocupação em valorizar a autonomia do ator e em instaurar um campo dialógico nos processos criativos. Brook destaca que ao longo de seu trabalho como diretor, ao invés de manter-se em um púlpito ordenando o modo que cada ator deve agir e reagir às mais diferentes ações, sentiu a necessidade de arriscar-se e participar de alguns exercícios com os atores:

Em minha infância sempre me diziam: “Nunca peça a ninguém que faça o que você não pode fazer por si mesmo”, mas como diretor eu sabia que isso não era verdade, pois eu não era capaz de representar, nem cantar, ou sequer dançar, e tinha muito medo de tentar. Não obstante, a minha própria compreensão como diretor foi transformada ao participar dos exercícios com os outros, não importando o quão mal eu me saía. Para um diretor, deixar a sua tribuna e arriscar-se era ao mesmo tempo uma necessidade e uma bênção (BROOK, 2000, p. 244).

Para Brook (2000), o diretor que abandona sua tribuna e viabiliza o diálogo em processos criativos potencializa o deslocamento de um campo singular e ensimesmado para um espaço receptivo à pluralidade. O

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diálogo como impulsionador de tensão oportuniza a emersão de distintas perspectivas a serem exploradas e experimentadas no decorrer do processo. Convém ressaltar que autonomia e liberdade não podem ser entendidas como escusa de responsabilidade. Por outro lado, responsabilidade não é sinônimo de imposição e autoritarismo. Assim, Peter Brook em sua prática teatral não obriga os atores a se embrenharem somente por seu mundo imaginário, mas viabiliza que os mundos criados pelas entradas proibidas dos atores também sejam observados, discutidos e apreciados.

Considero que visualizar esses mundos criados pelos atores exige do diretor disponibilidade para escutar diferentes pontos de vista e habilidade de harmonizá-los. Uma escuta atenta potencializa uma ampliação da visão do diretor e provoca-o a rever determinadas posições para, geralmente, flexibilizá-las. Flexibilidade, neste caso, não consiste em ceder no sentido de se submeter. Subordinar-se aos desejos de outrem de modo subserviente equivale a uma conduta submissa. O cerne da questão consiste em ser flexível para analisar o que aderir a fim de atingir um bem comum e resultados satisfatórios.

Nessa ordem, Peter Brook (2000) relata a primeira vez que precisou abrir mão de algo. Aos cinco anos de idade ele passou por uma intervenção cirúrgica, e a caminho da sala de cirurgia a enfermeira perguntou se Brook gostava de laranjas. Sem pestanejar, a resposta foi não. Desalentada pelo fracasso de sua artimanha corriqueira, a enfermeira disse que mesmo não gostando de laranja era preciso cheirá-la. Neste momento uma máscara com um cheiro forte e amargo foi colocada nas narinas de Brook. Ainda que resistindo, foi vencido por um mergulho arrebatador. Para ele, tal fato o ensinou como é difícil abrir mão de algo. Embora não tenha cedido

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e tampouco flexibilizado sua decisão, compreendeu que o fato de ter “cheirado a laranja” mesmo não gostando de seu sabor e odor foi preciso para que a intervenção cirúrgica fosse realizada, pois, caso contrário, possivelmente teria agravos em sua saúde. Essa foi a primeira experiência de Peter Brook capaz de fazê-lo perceber a importância de saber ceder.

Anos depois, ao ter que passar por uma rota de obstáculos numa espécie de treinamento militar, pôde ratificar o quão difícil é abrir mão de algo e abandonar elementos que lhe dão segurança. Em desafios como passar por obstáculos, saltar barreiras e escalar andaimes, Brook narra que geralmente era o remanescente e retardatário do grupo. Ele conta que passava pelos obstáculos com muita dificuldade e em algumas pequenas escaladas escorregava até pender-se com uma mão para lançar-se cuidadosamente ao chão. Em meio a tantos desafios, um deles consistia em atravessar um rio por um tronco. Ao colocar os pés no tronco, Brook agarrou um galho de árvore que lhe permitisse um andar estável. Dois passos a mais e passou a segurar apenas uma folha do galho. Para prosseguir precisava soltar a folha. Seus dedos recusavam soltá-la. A folha lhe conferia segurança, mas para chegar ao outro lado da margem precisava deixá-la. Enquanto seus pés davam pequenos passos, seus braços estendiam-se ao limite. Brook relata que se inclinou como a Torre de Pisa. Nesta posição abandonar a folha era inevitável. O monumento italiano desabou, ele caiu no rio.

Presumo que se Brook tivesse abandonado a folha e se arriscado na travessia do tronco, possivelmente teria chegado à margem. Esse relato de Peter Brook me remete à sua abordagem de jogo como campo de instabilidade. Visualizo a imagem de um ator blindado por seu “savoir-faire limitado” que se agarra numa “concha

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mecânica” e, em decorrência disso, cai num rio. Esse ator, recluso numa zona de conforto e respaldado por elementos que aparentemente lhe conferem segurança, blinda-se ao risco e, por tal motivo, não se permite conhecer o outro lado da margem.

Por fim, destaco que pude concatenar apenas três aspectos pedagógicos analisados neste trabalho – diálogo, “espaço vazio” e jogo – com alguns dos fios biográficos de Peter Brook. Não localizei em sua narrativa de vida algum fato que se relacionasse e/ou me remetesse ao princípio da “intuição amorfa”. Talvez por desatenção deixei-o passar, ou esse fio biográfico fazia parte de alguns dos fatos e sentimentos que Brook não se sentiu à vontade para descortinar. Ainda assim, creio que em sua rede biográfica exista algum fio que se relacione com a “intuição amorfa”. Não sei se um dia o identificarei, só sei que neste momento ele ainda me parece obscuro. Dado que pretendo seguir caminhando, quiçá como numa trajetória amorfa, esse turvo fio biográfico seja alumbrado.

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3 EM BUSCA DO PEIXE DOURADO: COMPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DE UMA REDE DE PESCA EM ÁGUAS EDUCACIONAIS

3.1 PETER BROOK E O CONTEXTO EDUCACIONAL: LIMITES E POSSIBILIDADES

Perceber os limites e as possibilidades em aproximar Peter Brook e o contexto educacional é algo que considero relevante. Evidentemente, é inviável a transposição literal do trabalho do diretor inglês para a escola. Meu foco de pesquisa não consiste em reproduzir a prática de Brook. Interesso-me por aspectos pedagógicos como o diálogo, “intuição amorfa”, “espaço vazio” e jogo (presentes em processos conduzidos por Peter Brook), pois me movem, como professor e pesquisador, a pensar o trabalho com a linguagem teatral no contexto escolar.

Importa-me destacar que uma das preocupações de Peter Brook em seu ofício de diretor destina-se ao aprimoramento de habilidades técnicas do ator. Isso fica evidente pelas constantes abordagens, por ele traçadas, sobre a necessidade de intenso treinamento físico a fim de que o ator desenvolva alta qualidade técnica em seus movimentos. Ele pontua que “um corpo destreinado é como um instrumento musical desafinado, em cuja caixa de ressonância há uma barulheira confusa e dissonante de ruídos inúteis (...)” (BROOK, 2011, p. 18). Por isso, considera que o corpo do ator como instrumento de trabalho do fazer teatral necessita de constantes treinamentos físicos para atingir uma apurada destreza e capacidade técnica.

Nota-se, então, um nítido contraste entre o objetivo do trabalho que Peter Brook desenvolve em relação à finalidade do teatro em contextos educacionais, dado que

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nestes o trabalho não se destina a ter como foco o treinamento e a formação de atores. Contudo, creio ser possível estabelecer aproximações entre esses dois universos que, embora tenham objetivos distintos, dialogam com uma mesma linguagem: o teatro. Além disso, os dispositivos pedagógicos de trabalho de Peter Brook, analisados no capítulo anterior, me inspiraram a olhar para o teatro na escola a partir da figura do peixe dourado. Mas, afinal, o que é o peixe dourado em águas educacionais? Essa pergunta me impulsionou a desenvolver uma prática teatral, de março a agosto de 2015, em uma escola pública situada em Ratones, distrito do município de Florianópolis, Santa Catarina. 3.2 O CONTEXTO DA COMUNIDADE E DA ESCOLA

A comunidade de Ratones fica localizada no norte

da ilha de Florianópolis e está afastada da área metropolitana. Assim como outras regiões litorâneas de Santa Catarina, Ratones possui forte influência açoriana, pois, conforme destaca Cristiane Cardoso e Maria Dolores Buss (2001, p. 871), “trata-se de uma comunidade que até meados da década de 1980, era constituída basicamente por descendentes açorianos”.

Esta comunidade, que por volta de cinquenta anos atrás era mantida basicamente por produções agrícolas, sofreu uma queda drástica desta atividade. Marcia Pompeo Nogueira, Débora Matos e Natanael Machado6

6 Os dados sobre o contexto de Ratones, baseados nos

apontamentos de Marcia Pompeo Nogueira, Natanael Machado e Débora Matos, integram um artigo publicado em um livro que descreve e analisa um trabalho teatral que ocorreu em Ratones a partir de um projeto de extensão coordenado pela professora Marcia Pompeo Nogueira.

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(2015) traçam dados importantes sobre o contexto de Ratones:

Até uns cinquenta anos atrás, era uma comunidade rural, autossuficiente, com uma clara identidade cultural. Recentemente, entretanto, muitos venderam suas terras, inicialmente, como dizem alguns moradores, para comprar uma geladeira. Como resultado, algumas pessoas se mudaram para outras áreas da comunidade, mais distantes e menos desenvolvidas; outras construíram casas para seus filhos, muito próximas umas das outras, diminuindo seu espaço vital. Outras ainda foram para outras comunidades. Muitos dos que mudaram, arrependeram-se, mas já não conseguem voltar a morar em Ratones por causa da especulação imobiliária, que fez os preços das terras subirem para além do seu poder de compra (MACHADO, MATOS, NOGUEIRA, 2015, p. 94)

Os pesquisadores acima citados ainda acrescentam que a comunidade de Ratones passou a ser habitada por pessoas de diversos níveis socioeconômicos. Moradores com excelentes condições financeiras construíram grandes casas cercadas por altíssimos muros. Alguns deles ficam apenas os finais de semana na comunidade e têm o interesse de desenvolver o turismo rural na região. Esses moradores passaram a interferir diretamente nas decisões comunitárias, pois ocuparam importantes cargos institucionais de Ratones.

Essas mudanças atingem principalmente os moradores mais antigos, dado que muitos deles se sentem inferiorizados porque não detêm o mesmo grau de

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escolaridade dos novos proprietários. A consequência disso é que, muitas vezes, os antigos moradores têm suas vozes abafadas e, progressivamente, suas participações em causas importantes para a comunidade vêm sendo reduzidas (MACHADO, MATOS, NOGUEIRA, 2015).

A escola de Ratones atende séries iniciais e finais do ensino regular fundamental e também desenvolve atividades extracurriculares como aulas de música, esporte e teatro via Programa Mais Educação. Regulamentado pela Portaria Interministerial 17/2007 e pelo Decreto Presidencial 7083/2010, o Mais Educação visa ampliar a jornada escolar e a organização curricular orientada pela concepção de uma educação integral. O Programa é coordenado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação em parceria com as Secretarias Estaduais e/ou Municipais de Educação. Suas atividades situam-se em grandes áreas do conhecimento. São elas: “apoio pedagógico, educação ambiental, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, promoção da saúde, comunicação e uso de mídias, investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica” (BRASIL, 2011, p. 8).

Atuei como professor de teatro do Programa Mais Educação na escola de Ratones. As aulas aconteciam uma vez por semana com duração de uma hora e quarenta e cinco minutos. Os alunos aprovados com restrição participavam obrigatoriamente das aulas. Também haviam aqueles que frequentavam as aulas por vontade própria, ou, então por escolha dos pais que precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar os filhos.

Com quatro turmas, cada uma composta entre oito e quinze alunos em faixas etárias que variam dos sete aos doze anos de idade, iniciei minha pesquisa de experimentação prática inspirada no trabalho de Peter

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Brook. Quero destacar que durante os quase cinco meses que convivi com os alunos, pude aos poucos identificar as características de cada turma. No período da manhã trabalhava com duas turmas de alunos com faixa etária de 6 a 9 anos. Irei nomeá-las de turma A e B. Atendia a turma A das 8h às 9h45min. Essa turma era composta por cerca de quinze alunos. A quantidade de meninas e meninos era equilibrada. Geralmente chegavam para a aula indispostos e com sono. Porém, após alguns exercícios para driblar a sonolência, mostravam-se bastante proativos.

Na turma B as aulas aconteciam das 10h às 11h45min. Essa turma tinha cerca de oito alunos e a média entre meninos e meninas também era basicamente a mesma. Apesar de ser a turma com o menor número de alunos, foi a que tive mais dificuldade de trabalhar. Os estudantes eram agitados e eufóricos. Havia um garoto, com cerca de oito anos de idade, que não gostava de ser contrariado e partia para agressão quando seus colegas não faziam o que ele desejava. Além disso, quando não queria fazer os exercícios propostos, fazia de tudo para ser o centro das atenções: falava alto, se jogava no chão, fazia gestos obscenos e cantava músicas com palavrões e forte conotação sexual. Sua postura me deixava assustado. Por algumas vezes não sabia como lidar com ele e levava-o para a coordenação. Em alguns momentos percebia que a turma era contagiada pelas atitudes dele. Por exemplo, quando ele gritava, todos gritavam.

Ao notar o espírito de liderança do garoto, aos poucos fui me aproximando e aprendendo a me relacionar com ele. Quando começava a aula pedia para que me ajudasse a organizar a sala, pois as mesas eram pesadas e precisava de alguém forte para colocá-las num lugar que não atrapalhasse o desenvolvimento das atividades. Ele rapidamente, demonstrando o quão forte era, colocava as

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mesas nos cantos da sala e me auxiliava a organizar o espaço para que a aula fosse iniciada.

Atribuí a ele a função de auxiliar de classe. Pedia que me ajudasse no desenrolar das atividades. Consciente da responsabilidade de sua função de auxiliar, na maioria das vezes, ele participava com seriedade das aulas. Contudo, essa estratégia nem sempre funcionava. Os alunos dessa turma, de modo geral, eram barulhentos e inquietos e, por isso, era desafiador lecionar para a turma B.

No período vespertino atendia mais duas turmas de alunos entre 10 e 12 anos de idade. Denominarei essas turmas de C e D. Trabalhava com a turma C das 13h15min às 15h da tarde. Essa turma era composta por cerca de doze estudantes, em sua maioria, meninas. Elas não gostavam de se misturar com os garotos. Os assuntos eram completamente diferentes. As meninas eram bastante vaidosas e geralmente combinavam encontros entre elas nos finais de semana. Algumas garotas tinham a sexualidade bastante aflorada. Percebia, na maioria delas, atitudes e conversas mais maduras em relação aos meninos. Estes se preocupavam em colecionar cartas de desenho animado e gostavam de brincadeiras como pega-pega. Os garotos, por vezes, convidavam as meninas para brincar com eles, mas a adesão delas para a brincadeira era praticamente zero. Os meninos dificilmente eram resistentes às atividades teatrais. Já algumas garotas, principalmente nas primeiras semanas de aulas, não queriam fazer alguns exercícios com a justificativa que poderiam suar e, com isso, borrariam as maquiagens. Minha maior dificuldade nestas turmas era preparar atividades que despertassem o interesse das garotas para que a preocupação em borrar a maquiagem ou amassar a roupa que vestiam ficasse em segundo plano.

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Na turma D as aulas aconteciam das 15h15min às 17h. Havia aproximadamente nove alunos que frequentavam assiduamente as aulas. O número de meninas era um pouco maior em relação à quantidade de meninos. Os estudantes, em sua maioria, estavam geralmente dispostos e abertos para as aulas de teatro. Porém, havia alguns alunos que se consideravam os populares da escola. Eles dificilmente interagiam com os demais colegas de classe. Por isso, buscava integrar todos os alunos da turma para realizarem tarefas coletivas e isso não era uma tarefa simples.

Pude notar que em cada turma havia alunos muito diferentes, e era justamente essas diferenças que constituía a singularidade de cada grupo. Na medida em que o tempo passava, aos poucos, aprendia a lidar com eles. Creio que o convívio semanal com os estudantes, ao longo de quase cinco meses, foi importante para compreender as necessidades e particularidades das quatro turmas. Entretanto, suponho ainda que se o trabalho tivesse se estendido por mais tempo, provavelmente conheceria melhor as características de cada grupo e minhas propostas pedagógicas nas aulas de teatro poderiam dialogar mais diretamente com a realidade e os anseios dos alunos.

Enfim, destaco que, em termos estruturais, optei por apresentar um breve panorama da comunidade de Ratones, da escola em que a pesquisa de campo foi realizada e das turmas atendidas nas aulas de teatro do Programa Mais Educação no primeiro semestre de 2015, pois considero relevante situar primeiramente o lugar em que o trabalho foi desenvolvido para, a partir de agora, descrever e analisar a prática realizada.

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3.2.1 Ponto de Partida

27 de março de 2015: primeira aula de teatro. Para este encontro com os alunos preparei alguns jogos de apresentação. Além disso, por estar pela primeira vez em Ratones e saber que a partir daquele dia frequentá-lo-ia por muitos meses, pedi para que os estudantes me contassem as características daquele bairro. Para minha surpresa, em todas as turmas, foram majoritariamente apontados pontos negativos, como ruas esburacadas, poucas opções de lazer, perigo com o grande número de cobras jararacas e presença de muitos mosquitos e pernilongos. Alguns alunos relataram que abandonariam a comunidade na primeira oportunidade que surgisse, afinal, Ratones pouco tinha a lhes oferecer.

Intrigado com o alto índice de rejeição apresentado pelos alunos em relação ao bairro em que vivem, pedi para que também me contassem seus aspectos positivos. Poucos alunos, e destaco que em uma turma nenhum deles, assinalaram pontos positivos sobre Ratones. Em meio a várias feições de indiferença apenas alguns que, de forma entusiasmada, relataram gostar de viver ali. Esses alunos elencaram os seguintes pontos positivos: tranquilidade, segurança, maior contato com a natureza e festas que ocorrem no bairro (principalmente a do dia das crianças, que têm várias opções de divertimento e reúne muitos moradores). O ponto que mais gerou debate incidiu na relação de proximidade das várias famílias que ali habitam. Eles destacaram que, de um lado, possibilita integração dos moradores. Por outro, favorece boatos e especulações da vida dos que ali vivem. Uma aluna de doze anos, por exemplo, relatou que não podia caminhar pelas ruas de Ratones de mãos dadas com seu recém namorado, pois se os vizinhos a vissem em tal cena, contariam para seus pais. Já outros, ao destacarem a

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aproximação entre os vizinhos como aspecto positivo, relataram que em casos de urgência sempre estão dispostos a auxiliar quem deles precisar. A discussão acerca de Ratones ocorreu de forma fervorosa. No entanto, inquieto pelos apontamentos de características predominantemente negativas, senti necessidade de prosseguir com este tema e problematizá-lo nas aulas seguintes.

Acercar-me do contexto dos alunos e buscar compreender seus olhares a respeito do lugar a que pertencem e compõe suas histórias, parecia-me um terreno instigante que, com eles, gostaria de trilhar. Não sabia exatamente como seria a continuidade do trabalho. O caminho que seria percorrido era, ainda, desconhecido. Como guia desse trajeto segui, com ressalvas, o conselho de Peter Brook: “num certo sentido o diretor é sempre um impostor, um guia noturno que não conhece o território, e não tem alternativa: tem que guiar, aprendendo o caminho à medida que avança” (BROOK, 1970, p. 35). Como professor de teatro tinha consciência da minha responsabilidade: eu era o guia do processo. Estava disposto a aprender o caminho conforme avançássemos. Porém, não me interessava ser um impostor no sentido de fingir saber como se daria a conclusão do processo.

A abordagem de Peter Brook sobre o papel do diretor que aprende o trajeto à medida que caminha me remeteu a um pressuposto levantado por Paulo Freire (2011) em relação a ação pedagógica do professor, que considero de suma importância: no ensinar se aprende e no aprender se ensina.

Para Freire (2011), o processo de aprendizagem é uma via de mão dupla, ou seja, abarca professores e alunos. Ele destaca que, como educador, era um “aventureiro responsável”. A ação pedagógica, considerada como uma aventura, implica na negação de

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determinismos e de receitas prontas. Segundo ele, durante a atividade docente, é importante que o professor se encontre motivado a “saber mais” e esteja consciente de seu “inacabamento”. Somente dessa maneira é possível instaurar uma educação emancipatória cuja relação entre professor-aluno se estabeleça por meio de um ato ético em que a autonomia e os saberes dos estudantes são respeitados e o desejo pelo aprender é aguçado.

É importante, também, que o educador não se esqueça de sua responsabilidade, pois, para Freire (2011), às vezes o professor não imagina a dimensão que sua ação pedagógica pode tomar na vida de um aluno. Freire retorna à sua adolescência para nos contar uma história que, segundo ele, dificilmente será apagada de sua memória. Ele relata que, quando jovem, era extremamente inseguro. Não confiava em si e sentia-se inferiorizado em relação aos seus colegas de classe. Contudo, um gesto de seu professor o fez repensar sua postura:

O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os com o seu ajuizamento. Em certo momento me chama e olhando ou re-olhando o meu texto, sem dizer uma palavra, balança a cabeça numa demonstração de respeito e de consideração. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim, mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar (FREIRE, 2011, p. 43-4).

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O gesto do professor ao reconhecer o bom trabalho de Freire, ainda jovem, sinalizando o quão capaz ele era, repercutiu de forma significativa em sua vida. Isso fica evidente quando comenta sua sensação ao recordar essa história: “a melhor prova da importância daquele gesto é que dele falo agora como se tivesse sido testemunhado hoje. E faz, na verdade, muito tempo” (FREIRE, 2011, p. 44).

Nota-se, a partir do exemplo de Paulo Freire, que uma atitude do professor, aparentemente simples e sem importância, pode tomar grandes proporções na formação do aluno. E é por isso que ficava preocupado com minha postura pedagógica. Era preciso estar consciente da responsabilidade dos meus atos e reconhecer meus limites: quando iniciei a prática em Ratones, estava com quase vinte e cinco anos de idade e tinha apenas uma ligeira experiência de trabalho com a linguagem teatral em contextos escolares.

Apesar de minha pouca experiência como professor de teatro, iniciada em 2009 a partir de projetos universitários7, o ambiente educacional é um espaço que

7 No segundo semestre de 2009 atuei como professor de teatro no

município de Dourados/MS, via projeto universitário de extensão intitulado Teatro Porã, atendendo semanalmente uma turma de alunos do ensino fundamental no contraturno das aulas. O respectivo projeto era coordenado pela professora Dra. Gicelma da Fonseca Chacarosqui;

De 2010 a 2011 atuei como professor de teatro da Escola Municipal de Dourados/MS, Franklin Luiz Azambuja, via Programa Mais Educação;

De 2010 a 2012 fui bolsista CAPES, via PIBID/UFGD, desenvolvendo atividades com a linguagem teatral na Escola Estadual Vilmar Viera Matos, em Dourados/MS, no turno regular das aulas de uma turma de alunos do ensino médio. Em 2010 o programa foi coordenado pela professora Dra. Lucinéia Contiero e de 2011 a 2012 pelas professoras Dra. Cristiane Helena Parré e Ma. Carla Cristina Ávila.

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me inquieta. Dado o meu interesse por esse lugar, o reconhecimento dos meus limites e a consciência da minha responsabilidade, me senti motivado a experimentar aspectos centrais de processos dirigidos por Peter Brook de modo a servir-me deles como pontos de referência na condução das aulas de teatro na escola. Minha hipótese era que, partindo de aspectos como o diálogo, “intuição amorfa”, “espaço vazio” e jogo, poderia construir uma rede de pesca capaz de atrair um peixe dourado.

Esse peixe tão singular no ambiente escolar era por mim entendido como o engajamento e o interesse dos alunos pelas atividades teatrais. Se o entusiasmo e o prazer dos estudantes fossem despertados, teríamos um momento fascinante e o peixe dourado daria o ar de sua graça. E para que isso acontecesse, com base numa indicação de Peter Brook (2011), precisaria evitar o tédio. Segundo o diretor inglês, o tédio no teatro é um demônio astucioso que pode aparecer a qualquer momento e é capaz de afastar ou impedir a presença do peixe dourado.

Presumo que, assim como no teatro, o tédio também pode ser o demônio de uma ação pedagógica, pois uma aula enfadonha possivelmente seduzirá apenas peixes banais. Mas como minha intenção era o peixe dourado, era preciso suscitar o entusiasmo e a motivação dos alunos. Para alcançar esse objetivo estava interessado em compreender a realidade dos estudantes para propor atividades teatrais que dialogassem diretamente com o contexto deles. Por isso o olhar dos alunos para a comunidade em que vivem, manifestado no

No primeiro semestre de 2013 desenvolvi atividades teatrais em

Guanajuato/México, via projeto universitário Cuenta-Cuentos, com crianças da secundária (conhecido no Brasil como ensino fundamental I) em parceria com o Museu Diego Rivera.

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primeiro encontro que tive com eles, pareceu-me um tema potente e que poderia ser convidativo ao peixe dourado.

3.2.2 Um convite para observar o lugar em que habito

A imagem de desprezo que os alunos

manifestaram sobre o bairro em que muitos deles nasceram e que compõe suas identidades foi algo que me impressionou. Compreendia todos os pontos negativos por eles levantados, porém era difícil entender o motivo de também não falarem sobre os aspectos positivos.

Percebi uma certa resistência para evidenciar o que o Ratones tinha de bom. Quando questionava-os sobre as coisas boas do bairro, as respostas, em sua maioria, eram sempre rápidas e diretas: “Aqui não é um bom lugar para viver.” “É sempre muito pacato.” “Não há nada em Ratones que se possa aproveitar”. Esse foi um dado que já havia sido diagnosticado por Marcia Pompeo Nogueira, Natanael Machado e Débora Matos: “Em termos culturais, as crianças ainda reclamam que ‘nada acontece em Ratones’. Elas ainda sentem falta de melhores oportunidades educacionais e culturais” (2015, p. 94).

A partir disso comecei a pensar em um planejamento de aula que pudesse provocá-los a também olhar para as características positivas de Ratones. Durante o planejamento busquei alternativas que a princípio pudessem distanciar os alunos da realidade de Ratones para levá-los a um outro lugar. Talvez esse distanciamento pudesse provocar outro modo de olhar para o local em que vivem. Passei a pensar em diferentes procedimentos que pudessem potencializar a visão dos estudantes para além de um posicionamento maniqueísta de somente bom ou mau. Objetivava instaurar um campo provocador que diluísse a lógica de que Ratones tem

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apenas pontos negativos, então elaborei um plano de aula com fotografias de diferentes lugares para que uma discussão fosse feita sobre cada um deles. O tema da aula consistia na seguinte pergunta: Onde eu vivo?

Convém ressaltar que Augusto Boal, em Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas (1991), menciona um trabalho com fotografias realizado em um contexto peruano. Maquinas fotográficas eram entregues para pessoas que estavam sendo alfabetizadas em castellano e o grupo de alfabetizadores, liderado por Estela Liñares, ensinava-os a manusear a câmera. A partir disso, perguntas eram feitas em castellano e as pessoas que, em processo de alfabetização, teriam que responder por meio de fotografias.

Augusto Boal (1991) relata que a pergunta “Onde é que você vive?” gerou várias “fotos-respostas”. Uma delas, apresentada por um homem cuja idade não é revelada, refere-se a imagem de uma criança de poucos meses com sangue no rosto. Quando a foto foi apresentada como resposta à pergunta, o grupo de alfabetizadores pensou que o homem não havia compreendido a questão. No entanto, ele explicou que o lugar em que ele vive é infestado de ratos. Os cachorros protegem as crianças e impedem que os roedores se aproximem delas. Porém, devido a uma epidemia de sarna, a prefeitura retirou os cachorros do local. Logo, o homem, para falar sobre o lugar em que vive, tirou uma foto de um criança que teve parte do nariz comido pelos ratos.

Segundo Boal (1991, p. 142), “a utilização de fotografias pode ajudar a descobrir símbolos válidos para toda uma comunidade ou grupo social”. Quando elaborei a aula com base em fotografias, desconhecia o trabalho no Peru mencionado por Boal. Contudo, objetivava que, ao fruir imagens de outros lugares, os alunos

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percebessem que em todos eles há tanto aspectos positivos quanto negativos. A utilização das fotografias poderia estimulá-los a descobrir outros símbolos do local em que habitam.

03 de abril de 2015: segundo dia de aula de teatro. Para começar expliquei aos alunos que o encontro seria de apreciação de imagens fotográficas de diversos locais: grandes metrópoles, casas flutuantes, bairros com muita neve, dentre outros. Eles precisariam observar atentamente cada fotografia para em seguida discutirmos sobre elas.

A apreciação das fotografias tinha o potencial de despertar a imaginação, pois provocava-nos a imaginar como seria viver nos lugares apresentados. Geralmente, quando terminávamos a discussão de uma imagem, perguntava a eles: “Para qual lugar vamos agora? Tentem adivinhar!” E eram vários os palpites: “Vamos para um deserto”, disse um aluno. Dado que não tinha uma fotografia de deserto, tentei aproveitar sua sugestão pedindo para que descrevesse as principais características do lugar sugerido. Em seguida, imaginávamos como era viver nesse lugar e quais eram seus aspectos positivos e negativos.

Em outros casos, tinha fotografias que se aproximavam do lugar indicado. Um aluno, por exemplo, propôs que fossemos para o polo norte. Como havia levado uma fotografia de um vilarejo localizado numa região repleta de neve, disse a ele: “Ok! Vamos agora para uma comunidade que fica localizada no polo norte”. Após a apreciação da imagem iniciamos a discussão.

De modo geral, os estudantes ficaram interessados pela aula e as quatro turmas participaram ativamente. Para que eu possa comentar de forma mais precisa como foi o desenvolvimento da atividade, me aterei na descrição

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de como a apreciação e discussão das imagens fotográficas repercutiram na turma A.

Na foto de uma grande metrópole as seguintes características positivas foram destacadas: internet com alta velocidade de conexão, presença de vários centros comerciais e facilidade de encontrar vídeo games de última geração com preços acessíveis. Por outro lado os alunos realçaram que, devido ao ritmo acelerado e o intenso fluxo de carros, seria muito difícil brincar na rua. Eles disseram que as crianças que moram nesses lugares não podem sair de casa e, por isso, muitas delas são tristes.

Logo em seguida, mostrei a imagem de casas flutuantes. O ponto positivo que teve maior relevância referiu-se à aventura de viver sobre as águas. Para eles, morar numa casa flutuante possibilita pescar os mais saborosos peixes e as crianças desde pequenas aprendem a nadar. Porém, falta de espaço para empinar pipa e jogar futebol foi o lado negativo elencado.

A respeito das casas situadas em regiões de neve, a possibilidade de patinar em lagos congelados e confeccionar bonecos de neve despertaram o interesse da maioria dos alunos. Entretanto, assinalaram a impossibilidade de caminhar descalços pelo chão, pois ficariam resfriados. Também acentuaram que em períodos de nevascas teriam que permanecer dentro de casa e a vida tornar-se-ia tediosa.

À medida em que os alunos discorriam sobre os lugares apresentados, pude perceber que vários pontos negativos elencados referiam-se a aspectos positivos presentes em Ratones, mas que não foram, em nosso primeiro dia de aula, por eles mencionados. Por isso, após a apreciação das fotografias perguntei-lhes se Ratones oferecia um amplo espaço que possibilitasse brincar em suas ruas, principalmente para jogar futebol e empinar

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pipa. Ainda questionei se era possível caminhar descalço por seus caminhos. Sem pestanejar ecoou pela sala um espontâneo e imediato “sim”. Logo indaguei se estes não poderiam ser considerados pontos positivos de Ratones. O silêncio tomou conta do espaço por alguns segundos. Sobrancelhas levantaram-se e tímidas afirmações com a cabeça foram as respostas da minha pergunta. Ninguém negou os pontos positivos que haviam sido, a nós, revelados. Somente um aluno destacou que os aspectos positivos não tinham relevância em relação aos negativos. Perguntei para ele se podemos desconsiderar a existência de pontos positivos mesmo que as características negativas tenham maior relevância. Ele apenas me olhou e não respondeu minha pergunta. Tampouco insisti, afinal, não estava ali para desafiá-lo. Minha intenção era provocar tanto a ele quanto aos demais a observarem o lugar em que vivem.

Confesso que quando elaborei a aula a partir de imagens fotográficas de diferentes lugares, minha intenção era fazer com que os estudantes percebessem que em todos eles é possível encontrar pontos positivos e negativos. Com base nisso, pediria a eles que tentassem encontrar os traços positivos de Ratones. No entanto, percebi em todas as turmas que a maioria dos aspectos negativos, destacados por eles dos diversos lugares apresentados, acabavam sendo pontos positivos que haviam na comunidade em que viviam.

Deste modo, o momento de apreciação das fotografias, aliado a questionamentos, possibilitou que os alunos pensassem sobre possíveis aspectos positivos de Ratones. Ressalto que em nenhum instante desconsiderei os características negativas do bairro por eles mencionadas, apenas busquei estimulá-los a também observarem seus traços positivos.

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3.2.3 Das fotografias ao desenho Durante minha avaliação da última aula constatei que nem todos os alunos participaram ativamente do debate sobre as fotos. Além disso, houve alguns que não opinaram acerca dos pontos positivos de Ratones descobertos por meio das imagens fotográficas. Por esse motivo, comecei a pensar em estratégias para que todos pudessem evidenciar seu posicionamento a respeito do tema discutido em sala.

Elaborei um plano de aula em que os alunos, individualmente, desenhariam Ratones para posteriormente, em grupos, apresentarem os aspectos positivos e negativos presentes em seus desenhos.

10 de abril de 2015: terceira aula de teatro. Papel e lápis de colorir foram os objetos que, nesta etapa do trabalho, possibilitaram que os alunos percorressem os caminhos do bairro em que moram.

Figura 1 - Fase da elaboração de desenhos sobre Ratones8

8 Os pais ou responsáveis dos alunos autorizaram o uso das imagens

publicadas nesta pesquisa. Destaca-se ainda que a fonte de todas

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A atividade do desenho tinha o objetivo de estimular cada estudante a exprimir sua visão de Ratones. Para Vigotski (2009), o desenho é o meio em que a criança manifesta sua percepção de mundo. O ato de desenhar possibilita que a compreensão da realidade da criança seja expressa através de uma atividade criadora. Segundo o autor, há dois tipos de atividades comuns ao homem: a “reprodutora ou reconstituidora” e a “combinatória ou criadora”. A primeira refere-se a um modo de reprodução e repetição de algo já existente. Essa atividade se estabelece através de modelos que por si só inviabilizam a abertura para a criação. A atividade reprodutora, segundo ele, “(...) nada cria de novo e a sua base é a repetição mais ou menos precisa daquilo que já existe” (VIGOTSKI, 2009, p. 12). Já a atividade “combinatória ou criadora” diz respeito à ação humana que combina e reelabora impressões vivenciadas e signos assimilados para representar algo novo. O sentido de novo e de criação, para Vigostski (2009), implica numa atividade em que se cria uma nova configuração a partir da combinação e reorganização de dados armazenados na memória. A base da criação refere-se à capacidade do sujeito em reordenar e combinar elementos já conhecidos:

Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertence ao gênero de comportamento criador ou combinatório. O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma

as imagens fazem parte do acervo pessoal registrado durante o processo da pesquisa de campo.

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criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento. Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele seria um ser voltado somente para o passado, adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse aquele. É exatamente a atividade criadora que faz do homem um ser que se volta para o futuro, erigindo-o e modificando seu presente (VIGOTSKI, 2009, p. 14).

De acordo com Vigotski (2009), a criação não é uma simples recordação vivenciada, mas uma combinação criativa de impressões experienciadas pelo sujeito. Pensar o desenho como possibilidade de uma atividade criadora era algo que parecia-me importante para aquela aula.

Com os desenhos já finalizados, dividi a sala em grupos, geralmente com quatro pessoas, para que houvesse uma apresentação e discussão da atividade realizada.

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Figura 2 - Momento da apresentação e discussão dos desenhos

Pude acompanhar a apresentação de pelo menos um integrante de cada grupo. Lembro-me da apresentação de um dos alunos da imagem acima. Ele desenhou uma trilha de Ratones. Em seu relato destacou que a grande área verde presente no bairro proporciona aos moradores uma condição de vida saudável. Para ele, a qualidade do ar de Ratones é melhor que a de outros bairros localizados no centro da cidade. Ademais, assinalou que há uma trilha que oferece uma ótima opção de divertimento e lazer.

O ponto negativo por ele evidenciado, atribuiu-se ao grande número de cobras jararacas no bairro. Durante sua apresentação disse que tem medo das cobras porque são venenosas e alertou que, se por ventura um dia for picado por uma, já sabe que é preciso ir imediatamente

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ao posto de saúde para tomar “remédio que combate veneno de cobra”.

Em seu desenho havia uma cobra verde no meio da trilha. Ele destacou que diferentemente das outras cobras, ela é verde porque protege o ambiente em que vive. Segundo ele, a cobra protetora não oferece perigo, porém, se alguém cortar uma árvore ou jogar lixo pelo chão, ela convoca as cobras jararacas para picar a pessoa causadora de danos. Ele, então, concluiu que até o presente momento, nenhuma cobra picou ele e sua família porque nunca depredaram a trilha de Ratones.

Figura 3 - Desenho da trilha de Ratones

Interessa-me pensar sobre o desenho e a história

narrada pelo aluno. Talvez essa história já existisse e ele, conhecendo-a, buscou representá-la no desenho. Elementos por ele já conhecidos (ponto, linha, cores,

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formato da trilha, estrutura anatômica de cobras) foram combinados e expressos no ato de desenhar. A combinação de vários elementos já assimilados configurou uma atividade criadora (a composição do desenho).

Outra hipótese é que a história tenha sido criada pelo aluno. Percebe-se uma evidente situação (a cobra verde que protege a trilha não oferece perigo desde que respeitem seu habitat). Os vários componentes desta situação (cobra, trilha, respeito à natureza, simbologia da cor verde), provavelmente foram assimilados por ele através de vivências anteriores. Contudo, a combinação desses componentes constituiu a base criadora da atividade do aluno.

Segundo Vigotski (2009), o desenho da criança não é somente um meio de expressar e representar a vida, mas também é produto de uma atividade intencional que envolve dimensões cognitivas e emocionais combinadas à realidade com a qual convive. À vista disso, suponho que a situação criada pelo aluno (a cobra verde convoca as jararacas para picar apenas aqueles que causam danos a trilha) tenha sido uma alternativa para tranquilizá-lo quanto à presença das cobras em Ratones, e também para encorajá-lo a frequentar a trilha, considerada por ele uma ótima opção de lazer.

De modo geral, a grande área verde de Ratones esteve presente na maioria dos desenhos. Uma comunidade com muitas árvores, morros, rios e animais foi representada pelos alunos.

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Figura 4 - Desenhos sobre Ratones

A partir da atividade com os desenhos, chegamos

ao seguinte quadro: de um lado há uma comunidade tranquila, segura e com uma beleza natural estampada em suas vegetações, morros, trilhas e cachoeiras. De outro, há uma Ratones pacata, com poucas opções de lazer e que merece melhor assistência do poder municipal9.

A compreensão dessa problemática significou para mim um grande passo, afinal, os estudantes perceberam que a comunidade em que vivem, apesar de seus aspectos negativos, possui uma riqueza particular simbolizada por seus belos componentes naturais. Além

9 No dia 03 de março de 2015, os moradores de Ratones bloquearam a rodovia SC-401 como forma de protesto ao descaso e promessas não cumpridas do poder municipal de Florianópolis. Ver notícia: http://www.tudosobrefloripa.com.br/index.php/desc_noticias/rodovia_sc_401_e_bloqueada_por_moradores_de_ratones_e_vargem_pequena

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disso, também foi reconhecido o amplo espaço que a comunidade proporciona, uma vez que é possível brincar tranquilamente em suas ruas e, em alusão a música Minha Alma (composta por Marcelo Yuca e reconhecida nacionalmente pela interpretação da banda O Rappa), não é preciso viver atrás de grades de condomínio que, ao invés de proteção, revelam uma prisão de pessoas vitimadas pelo medo e pela falta de segurança.

3.2.4 Do desenho ao jogo

Após a apresentação e discussão dos desenhos iniciamos uma atividade com jogos de improvisação. Estava interessado em trabalhar o jogo baseado na noção de “espaço vazio” de Peter Brook: “o vazio no teatro permite que a imaginação preencha lacunas. Paradoxalmente, quanto menos se oferece à imaginação, mas feliz ela fica” (BROOK, 2011, p.23). A imaginação, para o diretor inglês, é como um músculo que por meio de jogos gosta de se exercitar.

Motivado pela concepção de vazio de Peter Brook visava propor uma atividade teatral que ativasse e exercitasse a imaginação dos alunos. Para tal, não pretendia uma transposição dos desenhos para a cena. Interessava-me pelas situações presentes nos desenhos para que pudessem ser experimentadas como ação dramática. Para que esse plano fosse colocado em prática recorri aos estudos de Viola Spolin (2010, 2001b).

Na década de 1940, Spolin elaborou nos Estados Unidos um sistema de improvisação teatral que visa o aprendizado de uma atuação espontânea. A autora norte-americana foi influenciada pelo trabalho de Neva Boyd, que fundou em 1920 a Recreational Training School em Hull House, Chicago, e nela desenvolveu importante pesquisa sobre jogos e atividades culturais com um grupo

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de imigrantes. Spolin esteve matriculada nessa instituição e, indicada pela própria Neva Body, coordenou durante três anos o Work Progress Administration´s Recreational Project (WPA). Body é citada pela própria Spolin, no prefácio de Improvisação para o Teatro (2010), como uma das inspiradoras de seu trabalho com os Jogos Teatrais.

Nos anos 1970 Ingrid Dormien Koudela pesquisa o sistema de Jogos Teatrais de Spolin e traduz os livros da autora norte-americana, tais como: Improvisação para o teatro (1982), Jogos Teatrais: o fichário de Viola Spolin (2001a) e O jogo teatral no livro do diretor (2001b).

Em busca da espontaneidade no ato de jogar, a sistematização dos jogos de Spolin é caracterizada pela presença de regras específicas. Os participantes jogam a partir da seguinte estrutura dramática: Onde? (lugar em que ocorre a ação), Quem? (personagens que desenvolvem a ação) e O Que? (ação que os personagens realizam em determinado lugar). Mediante essa estrutura dramática, Maria Lúcia Pupo (2005) explica que outros três dispositivos (foco, instrução e avaliação) integram os Jogos Teatrais de Viola Spolin:

O foco atribuído pelo coordenador é sem dúvida o mais importante; ele designa um aspecto específico – objeto, pessoa ou ação na área de jogo – sobre o qual o jogador fixa sua atenção. Graças a ele, a experiência teatral pode ser, por assim dizer, recortada em segmentos apreensíveis. O segundo é a instrução, ou seja, a retomada do foco pelo coordenador, cada vez que isso se faz necessário. Em terceiro lugar, aparece a avaliação, efetuada pela plateia composta por uma parcela do próprio grupo, em alternância com a parcela de jogadores. Recusando apreciações vagas e de cunho subjetivo, Spolin propõe um procedimento marcado

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pela preocupação com a objetividade da comunicação entre quem faz e quem assiste (PUPO, 2005, p. 219).

A estrutura dramática (Quem? Onde? O que?)

aliada aos dispositivos foco, instrução e avaliação objetiva que, no ato de jogar, a situação imaginária se torne física. A ideia de corporificação10, fundamentada pela autora norte-americana, visa que os jogadores tornem reais lugares, objetos, personagens e ações. Para ela, é importante que o participante se manifeste durante o jogo mediante uma dimensão física em vez de puramente verbal (SPOLIN, 2010). Dada a relevância da proposta metodológica de Viola Spolin e também por ela ter sido uma das bases de estudo da minha formação acadêmica, considerei pertinente recorrer ao seu sistema de improvisação teatral para que os desenhos realizados pelos alunos saíssem do papel e ganhassem vida em cena. Para isso, pedi a eles que escolhessem um lugar, dentre os inúmeros caminhos de Ratones que haviam desenhado, para corporificá-lo em cena. O foco da atividade centrava-se no desafio de tornar real um local da comunidade. Logo, o foco concentrava-se no Onde. Para atingi-lo, orientei os alunos a definirem o Quem e O que, no caso, eles precisariam definir seus papéis e a ação que realizariam no ambiente escolhido com intuito de presentificá-lo na cena (KOUDELA, 2009).

Um grupo de estudantes da turma D optou como lugar de suas ações um caminho ao lado de um canal de

10 Ingrid Koudela explica que “o temo utilizado por Spolin é

‘physicalization’ e havia sido traduzido em Improvisação para o Teatro por ‘fisicalização” (2009, p. 51). Porém, na sétima edição do livro Jogos Teatrais publicado em 2009, a pesquisadora brasileira, após uma revisão de tradução, considerou pertinente substituir o termo fisicalização por corporificação.

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esgoto que alguns deles passavam para ir à escola. No espaço do jogo, nitidamente demarcado por tecidos, os estudantes sentaram-se no chão e um deles começou a “guiar uma carroça”. Os demais, atrás do condutor, se sacolejavam em razão do balanço da carroça imaginária. Após alguns segundos começaram a descrever o ambiente em que estavam: “Nossa! o cheiro desse esgoto é horrível”, “Que fedor! precisamos sair daqui”. As ações, em vez de expressadas corporalmente, foram verbalizadas.

O Onde da atividade não foi atingido porque o “fazer de conta” impediu o “tornar real”. A diferenciação desses termos é elucida por Ingrid Koudela:

Na avaliação dos jogos com objeto imaginário é estabelecida uma diferença entre “mostrar” e “contar”, ou então “tornar real” e “fazer de conta”. No jogo teatral “O que estou comendo?”, por exemplo, o grupo decide qual será a comida. Se o alimento foi “mostrado”, a plateia passa a vê-lo, ou seja, o alimento se torna sensivelmente presente. O fato é que mostrar, através do gesto, torna real o imaginário, na medida em que este passa a ser partilhado por todos os que estão envolvidos na relação palco/plateia. O gesto contato coloca a plateia como tal e ela passa a assistir a um relato. Embora a palavra não seja usada nesse jogos iniciais, a plateia diferencia entre gesto narrativo (mímica) e ação no palco. O gesto “contado” é inventivo – sempre se refere a uma ação passada, enquanto o gesto “mostrado” é orgânico, invoca uma presença (KOUDELA, 2009, p. 53).

A plateia soube que o lugar da ação era uma rua ao lado de um canal de esgoto porque os

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alunos/jogadores verbalizaram onde estavam. Talvez isso não tivesse acontecido se desde o início a turma fosse por mim orientada a expressar fisicamente as ações em vez de dizê-las. Para que isso não prosseguisse pedi aos jogadores que continuassem as ações, mas sem falas. Eles ficaram confusos. Disseram que seria difícil e que não conseguiriam. Encorajei-os a continuar na atividade. Eles, então, prosseguiram o jogo: colocaram as mãos sobre o nariz como uma maneira de demonstrar que estavam num lugar que não cheirava bem. Passei a indagá-los: “Qual a sensação que esse local provoca em vocês?” Alguns expressaram náuseas. Outro aluno, com as mãos no rosto e balançando vagorosamente a cabeça em sinal de negação, demonstrava sua indignação com a situação calamitosa em que o local se encontrava.

Num determinado momento o aluno que estava como guia da carroça imaginária levanta-se e passa a exprimir que há algo de errado. Ele, atribuindo bastante força a sua ação, demonstra puxar uma corda. Em seguida tenta ser brando e começa a fazer carinho num animal. Nota-se, então, que o cavalo que puxava a carroça havia empacado. Os jogadores incomodados com o mau cheiro buscavam alternativas para fazer com que o cavalo saísse dali: puxavam as rédeas com força, chicoteavam o animal e também lhe faziam carícias. Havia uma situação incômoda: o cavalo empacou num lugar cujo cheiro era desagradável. Como tirá-lo daquele local?

Um participante, esforçando-se muito para empurrar o cavalo, demonstra que o animal começa a dar pequenos passos. Contudo, sua proposta não foi aceita por outro jogador que, em grande parte, tomava o jogo para si. Um deles percebendo que tanto as suas propostas quanto as de seus colegas não eram aceitas por um dos jogadores, deixa o cavalo empacado e, caminhando, abandona o ambiente que tanto cheira mal

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(ele sai do espaço de jogo). Essa alternativa foi aderida por outros dois participantes que também tiveram algumas de suas proposições inviabilizadas. Resta apenas um jogador em cena. Ele sobe novamente na carroça e milagrosamente o cavalo desempaca retirando-o daquele lugar malcheiroso.

Ao término da cena sentamos em roda para fazermos a avaliação. Spolin (2010) sugere que a avaliação seja realizada após cada grupo de jogadores finalizar um problema de atuação. Segundo ela, a avaliação “é o momento para estabelecer um vocabulário objetivo e comunicação direta, tornada possível através de atitudes de não julgamento, auxílio grupal na solução do problema e esclarecimento do foco” (SPOLIN, 2010, p. 24). Como o ponto de concentração da atividade estava centrado no Onde, passamos a examinar se os alunos/jogadores haviam conseguido solucionar o problema de atuação que referia-se a mostrar em qual lugar de Ratones eles estavam. Para isso discutimos a diferença entre a primeira parte da cena, que foi verbalizada, e a segunda, expressada corporalmente. Os alunos que assistiram à improvisação disseram que a cena ficou mais instigante quando os jogadores pararam de narrar onde estavam e passaram a mostrar por meio de ações. Eles relataram que se não tivessem assistido a primeira parte da cena (em que os jogadores verbalizaram onde estavam) saberiam, com base nas ações de náuseas e ânsia de vômito, expressadas na segunda parte, que o local escolhido era um caminho ao lado do esgoto. Percebemos, então, que era possível mostrar um lugar sem precisar dizê-lo.

Creio, ainda, que os jogadores desta cena, após terem expressado o local em que estavam (Onde?) - sendo este o foco que havia sido estabelecido - direcionaram o ponto de concentração para suas ações

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(O que?). Como deixei que a improvisação se estendesse, uma situação dramática foi criada por um aluno: como tirar um cavalo que empacou num lugar com esgoto?

O problema disso é que ele não permitiu que seus colegas intervissem na situação dramática por ele elaborada. Por isso, durante a avaliação, expliquei a eles sobre a importância de aceitar as propostas de cena para não fazer do jogo um monólogo. Um dos jogadores falou que sabia como fazer o cavalo desempacar. Segundo ele, bastava segurar um alimento na frente do animal e dar pequenos passos para que o cavalo, motivado pela comida, desempacasse e saísse do local ao lado do esgoto. Porém, quando tentou fazer isso foi barrado pelo participante propositor da situação. Este, para se defender, disse que a carroça estava muito pesada e que o animal queria carregar apenas o seu dono, no caso ele. Um clima tenso começou a se instaurar. Fui pego de surpresa e não soube administrar muito bem a situação. Busquei acalmar os ânimos e novamente ratifiquei o quão importante era ouvir e aceitar as sugestões de todos os envolvidos no jogo. Entretanto, talvez essa não tenha sido a melhor solução. Poderia ter aproveitado a fala do aluno e pedido aos jogadores para voltarem à cena para sugerirem alternativas para o cavalo desempacar (alternativa essa que precisaria ser aceita). Provavelmente, se assim tivesse feito, os jogadores experimentariam os dois lados da moeda: tanto proporiam, quanto aceitariam propostas. Creio que, dessa maneira, os jogadores experimentariam as diversas opções que a situação dramática possibilitava, a plateia observaria essa experimentação e, possivelmente, o pressuposto de aceitação no jogo seria melhor compreendido.

O caso de não aceitar propostas dos companheiros de cena também ocorreu em outras improvisações. Na

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turma A, por exemplo, uma das jogadoras ficava a todo momento cochichando no ouvido dos participantes dizendo como eles deveriam agir. O lugar de Ratones escolhido pelo grupo foi uma academia a céu aberto. A garota, geralmente por meio de sussurros, chamava a atenção dos colegas para indicar o modo que os aparelhos deveriam ser utilizados. Quando alguém não fazia do jeito que ela queria, a cena era interrompida por ela para dizer que as ações não estavam sendo realizadas da maneira que havia ordenado. Na avaliação conversei com eles sobre a importância de aceitar as propostas dos demais jogadores. Mas, novamente, percebi que essa discussão precisaria de um melhor aprofundamento.

De maneira geral foram vários os Ondes mostrados em cena, tais como: escola, cachoeira, trilha, praça, cemitério, mercado, morro e campo de futebol. O trabalho a partir dos Jogos Teatrais de Viola Spolin possibilitou que o “músculo da imaginação” dos alunos fosse exercitado de modo a fazer com que diversos lugares de Ratones se tornassem visíveis num espaço de jogo. Nesse sentido, conforme salienta Flávio Desgranges (2011), uma prática teatral com base em jogos de improvisação permite:

Desenvolver a possibilidade de elaborar maneiras particulares de compreender o mundo, os acontecimentos cotidianos, tanto no que concerne à vida pessoal, quanto no que se refere às questões sociais, coletivas. Parece simples, mas é um fato: a vontade de transformar as coisas só pode efetivar-se se, inicialmente, tivermos possibilidades de inventar maneiras diferentes de compreender estas coisas e, em seguida, se soubermos fazer com que a imaginação se apresente enquanto ação. E é justamente isto o que se pode trabalhar nas práticas teatrais, tanto a expansão do

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músculo da imaginação, exercitando maneiras de inventar algo particular, quanto a possibilidade de concretizar uma vontade, de fazer com que uma ideia seja apresentada enquanto ação dramática (DESGRANGES, 2011, p. 89).

As ações dramáticas elaboradas a partir do sistema de Spolin contribuíram para colocar em atividade a imaginação dos alunos instigando-os a corporificar alguns ambientes da comunidade em que vivem e, assim, expressar seus olhares e sensações acerca desses lugares. Além disso, recorri a Spolin, pois, conforme ela destaca, “a energia liberada para resolver o problema, sendo restringida pelas regras do jogo e estabelecida pela decisão grupal, cria uma explosão” (2010, p. 5). Essa explosão é considerada pela autora como ações espontâneas. Para ela, explodir implica em rearranjar, desbloquear e destruir. Isso significa que a concentração direcionada para a solução de um problema pode fazer com que o jogador rearranje fatos vivenciados, destrua comportamentos mecânicos e desbloqueie barreiras que impeçam um envolvimento de forma orgânica. A organicidade das ações, segundo Spolin, é atingida quando “todas as partes do indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo” (SPOLIN, 2010, p. 5). O momento da explosão, capaz de atingir o todo orgânico, é o momento em que o jogador age no aqui-agora sem pautar-se em referências estáticas e técnicas cristalizadas, pois podem obstruir uma ação espontânea.

A explosão a que Viola Spolin se refere me remete à busca de Peter Brook por centelhas de vida no teatro. Para o diretor inglês (2011), o momento presente é a grande essência de um evento teatral e a centelha de vida

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surge no palco quando o ator está completamente presente no aqui-agora. A verdadeira presença no ato de jogar surge quando nada é construído de antemão para ser utilizado tal como foi arquitetado e quando elementos que conferem excesso de segurança aos atores são demolidos. A faísca de vida aparece quando não há “conchas mecânicas” para se esconder ou, então, quando não há uma blindagem da escuta, do olhar e das ações. Por este motivo, penso que a ideia de centelhas de vida, sinalizada por Peter Brook, provoca o que Spolin chama de explosão. Assim, o gesto espontâneo ocasionado por uma explosão revela centelhas de vida caracterizadas pela criação coletiva em que os participantes agem organicamente em prol da resolução de um problema.

Em suma, destaco que o trabalho baseado no sistema de Viola Spolin contribuiu para que os estudantes exercitassem o que Peter Brook (2011) chama de “músculo da imaginação”. Além disso, revelou a dificuldade dos alunos de aceitação para o jogo, pois, por vezes, soluções prematuras e decisões precoces impediram a espontaneidade, a explosão, a “centelha de vida” nas improvisações. Diante disso, senti necessidade de propor atividades que auxiliassem a compreensão do quão importante é demolir a barreira que, construída por ações pré-concebidas e engessadas, bloqueia um estado de jogo.

3.2.5 Escutar e aceitar Monopolizar o andamento da cena e recusar as propostas do outro são atitudes que caminham na contramão do sentido da aceitação e da escuta do jogo. A escuta, segundo Ryngaert (2009), é um aspecto de suma importância para o ato de jogar. Ele pontua que “a verdadeira escuta exige estar totalmente receptivo ao

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outro, mesmo quando não se olha para ele” (RYNGAERT, 2009, p. 56). O autor francês acrescenta ainda que a escuta é uma qualidade primordial ao jogo, pois, conforme suas palavras, “(...) o jogador que escuta a fala do parceiro apropria-se dela e a conduz como desejar, na direção que parecer mais propícia” (RYNGAERT, 2009, p. 58).

Escutar o outro, escutar aqueles que assistem e escutar a si possibilita uma travessia pelo jogo de forma espontânea e até mesmo, como menciona o próprio Ryngaert (2009), ingênua. A ingenuidade consiste em não se deixar levar por ações precipitadas de modo a adiantar-se ao comportamento do outro. Não se antecipar implica em permitir ser surpreendido pelo jogo: surpreender-se com as ações do outro, surpreender-se com a reação da plateia, surpreender-se com as casualidades do ambiente. Porém, o medo do desconhecido e o receio de não saber o que fazer e como reagir às circunstâncias que não foram preconcebidas, por vezes, desenvolvem uma vontade de controle e posse do jogo. Adiantar-se ao outro é uma maneira de criar um escudo para proteger-se da eventualidade. Antecipar-se é uma forma de manter-se no controle, de comandar a situação e de tomar o jogo para si. E foi exatamente esse aspecto que chamou bastante minha atenção em várias cenas apresentadas durante a primeira aula de jogos de improvisação com os alunos. O comportamento de negar uma interação com o outro e de recusar propostas durante o jogo revelou atitudes que, conforme destaca Ryngaert (2009, p. 58), consistiram em “(...) monopolizar o jogo e a atenção mantendo a ascendência sobre todos os parceiros a ponto de impedi-los de reagir de modo autônomo”. Esse tipo de atitude impede a espontaneidade e bloqueia uma explosão. Como desejava a presença do peixe dourado e acreditava que ele apareceria caso essa explosão acontecesse, precisei trabalhar as noções de escuta e aceitação para o

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jogo. O trabalho com essas noções, provavelmente, contribui para um jogo capaz de estimular ações espontâneas e de produzir “centelhas de vida”.

Intitulei de “Labirinto da escuta” a primeira atividade que desenvolvi com os alunos em relação à importância de ouvir e de interagir verdadeiramente com os companheiros de jogo. A atividade consistia em construir um labirinto de fitas, caixas, cadeiras e diversos objetos para que fosse percorrido de olhos vendados. O objetivo do jogo era passar pelos obstáculos, guiado pelas instruções verbais de outro participante (o guia), na tentativa de não esbarrar e/ou tropeçar nos objetos.

Figura 5 - Atividade “Labirinto da Escuta”

Quando expliquei as regras do jogo, percebi que

em todas as turmas, os alunos ficaram bastante entusiasmados. A cada rodada os objetos eram dispostos pelo espaço de maneira diferente e um novo labirinto era construído coletivamente. Em alguns momentos os alunos faziam ruídos para dificultar a escuta do guia. Cada esbarro e tropeço era uma verdadeira diversão aos que

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assistiam. Todos eles quiseram experimentar percorrer o labirinto e também guiar aqueles que estavam vendados.

No final da atividade, sentamos em roda para fazermos a avaliação. De maneira geral, os estudantes disseram que era muito difícil percorrer o labirinto sem trombar em pelo menos um objeto. Comentamos sobre a confiança que o jogador vendado precisava depositar no participante que o guiava, afinal, como não era possível ver os obstáculos, as instruções verbais eram sempre acatadas. Os alunos também destacaram o quão difícil era percorrer o labirinto quando barulhos dificultavam ouvir as indicações do guia.

O jogo “Labirinto da escuta” foi realizado primeiramente com a turma A. No momento da avaliação, deixei que eles comentassem suas impressões sobre a atividade e em seguida contextualizei o motivo e as relações que percebia entre tal atividade e o teatro. Falei sobre a importância de ouvir, de confiar e também de aceitar as propostas dos companheiros de jogo. Confiar no outro, escutá-lo verdadeiramente e reagir às suas propostas é tão importante quanto confiar, escutar e aceitar as instruções do guia em circunstâncias como a da atividade realizada, em que era preciso percorrer um labirinto de olhos vendados. Metaforicamente, disse a eles que para jogar era preciso haver uma alternância entre a função do guia e a do participante vendado, ou seja, em alguns momentos propondo direcionamentos e em outros aceitando e reagindo às propostas dos parceiros de jogo. Essa mesma contextualização ocorreu com a turma B e C.

Quando chegou a vez da turma D resolvi fazer diferente. Em vez de primeiro apresentar meu ponto de vista entre a atividade do labirinto e o teatro, optei por, antes disso, perguntar aos alunos se eles percebiam alguma relação entre ambos. Alguns segundos de silêncio

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e logo uma aluna disse que para fazer teatro é preciso do outro assim como o participante vendado precisa do guia para percorrer o labirinto. Outro estudante falou que vê no teatro vários obstáculos, destacando a timidez como o principal deles, mas quando há confiança entre todos do grupo é possível que cada um supere suas dificuldades. Fiquei bastante surpreso com as relações que foram feitas por eles. Naquele momento percebi que se tivesse tomado essa atitude desde a primeira turma, provavelmente, as avaliações teriam sido mais potentes, com apontamentos e reflexões ainda mais profundos.

Para o encontro seguinte preparei uma aula que nomeei de “Caixa Mágica”. Num espaço de jogo coloquei uma caixa vazia e disse aos estudantes que no interior dela havia um objeto imaginário. Era preciso ir até o espaço do jogo e retirar da caixa o objeto que eles imaginassem. Salientei que era preciso deixar claro aos que assistiam, por meio de ações físicas, qual era o objeto que continha na caixa. Para ajudá-los a melhor compreender o jogo, fiz as seguintes perguntas: Como eu seguro esse objeto? Qual é o seu peso? Que sensação ele provoca em mim?

O jogo da “Caixa mágica” tinha por objetivo exercitar, primeiramente, a escuta de si. Segundo Keith Johnstone (1990), a escuta é a base da improvisação. Para ele, uma das grandes dificuldades de diversos jogadores diz respeito a ouvir a si. Na tentativa de sempre fazer algo novo e original o jogador nega seus impulsos iniciais e não permite se escutar. Com medo de fracassar ao não fazer algo inédito a imaginação é bloqueada e atos espontâneos são suprimidos. Isso, para Johnstone (1990), é uma cruel forma de agressão, uma espécie de autoflagelação. Segundo ele, o julgamento e o medo do fracasso é alimentado em diversos ambientes educacionais. Ele destaca que, quando criança,

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considerava o mundo incrível e fantástico. Mas, à medida em que crescia, o mundo perdia sua cor e seu brilho. Keith Johnstone (1990) afirma que detestava a escola, pois ela tolhia a espontaneidade, a criatividade e, ainda, aprisionava as asas da imaginação impedindo-as de alçar grandes voos. Por isso, no final década de 1950, quando atuou como professor na Royal Court Theatre em Londres, decidiu inverter tudo o que no colégio lhe haviam dito com intuito de estimular a criatividade e conseguir maior espontaneidade dos alunos. Sobre essa questão ele é bastante contundente: “Quando comecei a ensinar, me parecia natural inverter tudo o que meus professores haviam feito. [...] Em uma educação tradicional tudo está desenhado para suprimir a espontaneidade, mas eu queria desenvolvê-la”11 (JOHNSTONE, 1990, p. 3, tradução minha).

De acordo com Mariana Lima Muniz (2015), Keith Johnstone iniciou sua pesquisa sobre improvisação concomitantemente ao seu trabalho como pedagogo em várias escolas públicas na Inglaterra nos anos 1950. Ela assinala que:

Johnstone sempre esteve vinculado à educação, pois acreditava que uma educação ruim destrói a imaginação, a criatividade e a espontaneidade, formando adultos bloqueados criativamente e artistas que se contentam em plagiar os padrões estabelecidos e se sentem incapazes de criar. Seus exercícios estão direcionados ao desbloqueio das capacidades criativas por meio do treinamento da espontaneidade e

11 No original: Cuando empecé a enseñar, me resultaba muy natural

invertir todo lo que mis professores habían hecho. [...] En una educación normal, todo está diseñado para suprimir la espontaneidad, pero yo quería desarrollarla.

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da imaginação. Sua aplicação à impro-espetáculo foi desenvolvida posteriormente pelo próprio Johnstone em diversas ocasiões, como consequência do processo de sua pesquisa. Entretanto, suas técnicas de improvisação não tinham, como finalidade primeira, a criação de um espetáculo, e sim a abertura da criatividade da criança no artista (MUNIZ, 2015, p. 162).

Segundo Johnstone (1990), para conseguir agir espontaneamente em uma improvisação é preciso aceitar os impulsos iniciais latentes no interior de si. É imprescindível se ouvir e, para ele, ao contrário do que a escola tradicional prega, o pensamento excessivo prejudica a espontaneidade. Nessa mesma ordem, Peter Brook (2011) afirma que a racionalização excessiva é um dos elementos perturbadores do ator. Movido pelo medo e com o intuito de manter o controle da situação é comum jogadores arquitetarem de antemão palavras e ações. Tudo é pensado minuciosamente antes mesmo da improvisação começar. Quando isso ocorre, para Brook (2011), uma profusão de ideias descompassadas e confusas gera o engessamento da criatividade.

À vista disso, presumi que o jogo da “Caixa mágica” poderia contribuir para os alunos ouvirem a si mesmos. Antes de improvisarem com o outro considerei importante, primeiramente, um jogo consigo, uma escuta de si. O que pode haver dentro da caixa? Para responder a essa pergunta pedi para que eles não pensassem muito e que tirassem da caixa a primeira coisa que lhe viessem à cabeça.

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Figura 6 - Jogo “A caixa mágica”

Foram inúmeros os objetos que saíram de dentro

da caixa: sorvete, rocha, anel, flor, fantasma, tênis, bola de futebol, guitarra, celular, dentre outros. A finalidade do jogo era ouvir e aceitar o primeiro impulso que surgisse. Sem muito pensar, tampouco confabular, bastava atender a ideia inicial que pulsava dentro de cada um. Para isso, chamava um aluno de cada vez para se posicionar próximo ao espaço de jogo e contava até três segundos para que, em seguida, ele pudesse ir até a caixa com o propósito de retirar um objeto de dentro dela. Percebi que para alguns essa não foi uma tarefa fácil, pois no meio do caminho ficavam paralisados e diziam não saber o que fazer. Eu, então, perguntava se não havia surgido alguma ideia de um objeto e eles diziam que sim, mas que estavam em dúvida se de fato fariam o que haviam pensado. Quando isso ocorria era comum o seguinte pedido: “Posso ser o próximo?”. Eles diziam precisar de um tempo maior para pensar em algum objeto. Pedia, portanto, para que voltassem ao espaço do jogo, respirassem e, no final da contagem dos três segundos,

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fossem novamente na direção da caixa e retirassem dela o primeiro objeto que imaginassem. Nada de julgamentos, de elucubrações e de pensamentos excessivos. Era um exercício para ouvir os primeiros impulsos e aceitá-los.

Na medida em que o tempo passava o jogo começava a fluir melhor. Na primeira rodada percebi, principalmente na turma B, que eles estavam tensos e preocupados em retirar da caixa um objeto formidável. Era nítido o desconforto que sentiam quando estavam no espaço de jogo. Quando todos jogaram pela primeira vez, exceto um aluno que disse não querer de forma alguma participar da atividade, pedi para que ficassem à vontade para jogar quantas vezes quisessem. Bastava surgir alguma ideia e, sem medos e julgamentos, se dirigir ao espaço de jogo para mostrar o objeto. Inicialmente foi uma aluna, alguns segundos depois outro e logo em seguida, com praticamente zero intervalo de tempo entre um jogador e outro, foram vários os alunos, inclusive o que a princípio não quis participar, todos jogaram com a “caixa mágica”. A maioria jogou mais que duas vezes. Percebi naquela ocasião a empolgação dos alunos para jogar. Ao observar o andamento da atividade, minha sensação como mediador era como se na cabeça dos alunos acendesse uma lâmpada a cada nova ideia que surgia. E eles, movidos pela empolgação e sem ajuizamentos, se permitiam experienciar o que a imaginação lhes havia sugerido. Naquele momento notei a espontaneidade das ações de alguns alunos. Era como se o medo e o julgamento já não mais apagassem a “centelha de vida” que emergia e que provocava a tão desejada explosão.

A atividade da “caixa mágica” tinha ainda um segundo passo: jogar em duplas. A premissa de escutar a si e de aceitar os impulsos interiores continuava como uma das regras básicas do jogo, no entanto, com um nível de dificuldade maior, pois, além de ouvir a si, também era

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imprescindível ouvir ao outro. O objetivo do exercício consistia na retirada de um objeto da caixa por um aluno. Em seguida, outro participante teria que jogar com o primeiro jogador e com o objeto imaginário por ele proposto.

O jogo, agora em duplas, buscava ainda estimular a disponibilidade e a aceitação tanto de seus próprios impulsos quanto os de seus companheiros de cena. Essa não seria uma fácil tarefa, pois, conforme destaca Peter Brook (2011), quando se está em cena um dos maiores desafios consiste em voltar-se para o seu mundo interior do mesmo modo a estar completamente envolvido com o do outro. Acerca disso, o encenador inglês lança a seguinte questão: “Como pode conseguir uma interiorização 100% verdadeira sem deixar que ela corte, por um momento sequer, a relação com a pessoa que está diante de si?” (BROOK, 2011, p. 27). Para ele é de suma importância exercitar a escuta de si e do outro de maneira a haver um equilíbrio entre ambas. Sobre essa capacidade de escuta, Brook (2011) afirma:

É algo extremamente difícil, que desperta uma tentação quase irresistível de trapacear. É comum vermos atores, às vezes grandes atores – e sobretudo cantores de ópera –, conscientes de sua reputação, totalmente absortos em si mesmos, e apenas fingindo contracenar com seus parceiros. Não podemos desqualificar este mergulho interior como simples vaidade ou narcisismo. Pelo contrário, pode ser consequência de uma profunda preocupação artística, que infelizmente não chega ao ponto de incluir totalmente a outra pessoa. Um Lear pode fingir que está contracenando com sua Cordélia, numa imitação perfeita de quem

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olha e escuta, mas na verdade está apenas tentando ser um profissional correto, o que é muito diferente de ser parte de uma dupla envolvida na criação conjunta de um mundo. Limitando-se a ser apenas o disciplinado colega de cena, que se desliga quando não é sua vez, ele não poderá cumprir a principal obrigação do ator, que consiste em manter o equilíbrio entre o comportamento externo e seus impulsos mais íntimos (BROOK, 2011, p. 27).

Para Brook (2011) é imprescindível haver uma verdadeira harmonia entre o mundo interior e o exterior. Para isso, o ator não pode blindar-se de modo a criar uma barreira que impeça tanto uma escuta de si quanto do outro. Esse tipo de barreira me remete à noção de bloqueio assinalada por Antony Frost e Ralph Yarrow (1990). Eles afirmam que um dos pecados capitais da improvisação consiste na recusa da possibilidade de encontro, ou seja, quando o ator bloqueia a escuta da sua voz interior e/ou da voz do outro. O bloqueio, segundo Frost e Yarrow, “(...) ocorre quando um ator tacitamente se recusa a aceitar o que um outro ator está oferecendo (ou, na verdade, quando ele se recusa a aceitar os impulsos e ideias de sua própria psique)”12 (1990, p. 110, tradução minha).

Frost e Yarrow (1990) salientam a importância do jogador se encontrar num estado de “disponibilité” (disponibilidade). A utilização dessa palavra é baseada nos estudos de Jacques Lecoq e como a palavra disponibilidade não tem tradução clara para a língua inglesa, os autores preferem mantê-la em francês. Frost e

12 No original: (...) occurs when an actor tacitly refuses to accept what

another actor is offering (or, indeed, when he refuses to accept the impulses and ideas of his own psyche).

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Yarrow explicam que “nesse estado [disponibilité], o ator habita totalmente o mundo exterior e o mundo interior de seu corpo”13 (1990, p.153, tradução minha). Segundo eles, o ator precisa atuar numa espécie de “neutralidade armada”, ou seja, precisa estar neutro no sentido de se encontrar disponível a qualquer possibilidade de jogo. Neutralidade implica em não haver nada preconcebido ou idealizado de antemão. Indica que o ator precisa estar preparado para jogar com o imprevisível e estar aberto ao inesperado. A neutralidade se refere, então, ao caráter de aceitação que o jogador precisa desenvolver para jogar com as propostas que lhe ocorrerem. Ele precisa aceitar o encontro, aceitar o outro. O improvisador armado é aquele que está alerta e que escuta verdadeiramente a si, a seus parceiros de jogo, a plateia e os possíveis incidentes que venham a acontecer. O jogador armado tem sua percepção integralmente presente para o aqui-agora, escuta suas pulsões interiores e aproveita qualquer acontecimento para gerar jogo (FROST; YARROW, 1990).

Interessa-me salientar que o meu objetivo com o jogo da “caixa mágica” era que os estudantes escutassem a si e ao outro e que pudessem jogar como um brincar espontâneo. Queria trazer a mesma vivacidade, alegria e espontaneidade, tão presentes nas brincadeiras entre eles no momento do intervalo, para dentro da sala de aula. Não queria que atitudes estereotipadas e mecânicas dominassem suas ações porque estavam fazendo um exercício de teatro, desejava que eles se divertissem com as várias possibilidades que a “caixa mágica” oferecia e que também pudessem brincar e jogar com os diversos objetos imaginários propostos por seus colegas. Meu interesse era ajudá-los a quebrar a barreira que, 13 No original: In this state the actor is fully inhabiting the world outside

and the world within his body.

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construída pela preocupação de criar algo inédito, pelo julgamento agressor dos impulsos interiores e pela necessidade de manter-se no controle com medo do inesperado, impedia uma escuta do todo.

Portanto, volto à pergunta de Peter Brook (2011): Como equilibrar a escuta de si e do outro? A imagem que me remete como a resposta a essa pergunta refere-se à brincadeira de polícia e ladrão entre dois alunos da turma A que certa vez, no momento do recreio, pude acompanhar. Era nítido o mergulho deles no universo ficcional e suas ações aconteciam na medida em que a brincadeira se desenrolava. Eles agiam com naturalidade e espontaneidade. Percebia que a direção dos acontecimentos era assumida ora pelo policial, outrora pelo ladrão. Quando o ladrão estava em fuga obrigava o policial a segui-lo. Imersos num mundo imaginário eles percorriam trilhas lamacentas, nadavam em rios bravios, atravessavam pontes perigosas e subiam ao topo de árvores grandiosas. Contudo, quando o ladrão era pego, a condução do jogo ficava a cargo do policial. Ele sabia qual caminho era mais seguro para chegar até a prisão, e quando lá chegavam, o ladrão precisava atender todas as regras que lhe eram impostas. Ele trabalhava na confecção de brinquedos para ajudar nas despesas da cadeia. A arma do policial, construída pelos dedos polegar e indicador, ajudava a manter o controle, mas o ladrão com sua perspicácia encontrava sempre uma maneira para fugir da cadeia e, quando isso ocorria, uma nova aventura era experienciada.

À vista disso, penso que a noção de escuta de si e do outro, provavelmente, já havia sido por eles experimentada em brincadeiras como a de polícia e ladrão. O problema é que, quando entravam na sala de aula e iniciavam-se os exercícios de teatro, a impressão que tinha era que ações programadas e mecânicas

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passavam a ter o domínio da situação. Talvez porque, conforme destaca Keith Johnstone (1990), o ambiente escolar suprime a espontaneidade. Além dele, Henry Giroux (1999) afirma que um dos graves problemas do sistema educacional deve-se a uma lógica que visa doutrinar o sujeito em vez de estimular sua criticidade e sua autonomia. Para ele, a instituição escolar silencia as vozes dos alunos na medida em que regras, procedimentos e conteúdos pedagógicos são adotados sem correspondência alguma com o contexto dos educandos. Paulo Freire (2011) nomeia esse problema de “educação bancária”. Esse modelo de educação, para Freire (2011), é arbitrário e agressivo, pois encara o aluno como recipiente para o depósito de informações e, tal como um objeto manipulável, é suscetível de ser moldado conforme a vontade do professor. Para superar a “educação bancária”, Freire (2011) destaca que é de suma importância respeitar o aluno e tratá-lo como sujeito de seu próprio destino. Ele afirma ainda que um dos saberes necessários a uma prática educativa implica em saber a escutar. De acordo com suas palavras:

No processo da fala e da escuta, a disciplina do silêncio a ser assumida com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é um sine qua non da comunicação dialógica. O primeiro sinal de que o sujeito que fala sabe escutar é a demonstração de sua capacidade de controlar não só a necessidade de dizer a sua palavra, que é um direito, mas também o gosto pessoal, profundamente respeitável, de expressá-la. Quem tem o que dizer tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É preciso, porém, que quem tem o que dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer.

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Mais ainda, que o que tem a dizer não é necessariamente, por mais importante que seja, a verdade alvissareira por todos esperada. É preciso que quem tem o que dizer saiba, sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o que quem escuta tem igualmente a dizer, termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter dito sem nada ou quase nada ter escutado (FREIRE, 2011, p.114).

O educador brasileiro assinala que uma educação democrática e solidária valoriza as vozes dos educandos. Ele considera autoritária e descabida a atitude de professores que se julgam detentores do saber que está pronto para ser transferido. Por isso, com vista a valorizar a autonomia e a espontaneidade dos estudantes, meu interesse como professor de teatro era resgatar para a sala de aula o modo alegre e espontâneo que pude perceber nos garotos quando brincavam de polícia e ladrão no momento do intervalo. Desejava que a sala de aula não bloqueasse a escuta e tampouco tolhesse atos espontâneos. Queria que a capacidade de escutar fosse algo alcançável a todos em sala aula, e quando me refiro a todos, incluo também a mim. Precisava aprender a escutar a mim, as minhas intuições e meus impulsos. Além disso, e não menos importante, necessitava também aprender a escutar os alunos.

Voltemos, então, ao jogo da “caixa mágica” em duplas. O desafio dessa etapa da atividade consistia em jogar com um objeto imaginário exercitando a escuta de si e do outro. Quando os alunos estivessem confortáveis e assim que surgisse algum impulso interior, poderiam ir até a caixa para retirar um objeto imaginário de dentro dela. No momento em que o objeto proposto fosse identificado,

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um outro participante poderia jogar com ele e com o jogador que o propôs.

Figura 7 - “Caixa Mágica” em duplas.

Em todas as turmas percebi que as propostas de objetos imaginários ficavam a cargo das mesmas pessoas. Geralmente os alunos mais proativos eram sempre os primeiros a se dirigirem ao espaço de jogo. Já os mais tímidos, aqueles que tinham mais dificuldade de escutar e aceitar suas pulsões internas, eram atropelados pela disposição descomedida de alguns e geralmente só entravam no jogo depois que o objeto já havia sido proposto.

Para Ryngaert (2009), a inibição é considerada como um dos grandes obstáculos ao jogo. Ela é explicada pelo autor francês como “(...) uma hipertrofia do ‘interno’ e uma impossibilidade de abertura para o exterior. O jogador gostaria de ter a possibilidade de não se mostrar, de não falar, de não “ser” (RYNGAERT, 2009, p. 45). Por outro lado, a extroversão é também, segundo esse mesmo autor, prejudicial ao desenvolvimento da capacidade de jogo. Diferentemente da inibição, a extroversão refere-se a vontade de se mostrar excessivamente e é revelada por meio de “(...) uma grande agitação, por uma expressão transbordante que

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nunca leva em conta a existência de parceiros” (RYNGAERT, 2009, p.48).

No caso especifico do jogo em duplas com a caixa, creio que a extroversão não tenha sido a vilã da atividade. Penso isso porque não havia uma tentativa de chamar a atenção a qualquer preço ou de desconsiderar a presença do outro no momento do jogo. Acredito que o problema estava antes da improvisação ter o seu início, pois uma espécie de agitação, descontrole e euforia por parte de alguns em querer propor a todo momento um objeto acabava por inibir ainda mais aqueles que já tinham dificuldade de se colocar. A inibição de alguns alunos era fortalecida pela euforia desmedida de outros. Portanto, pedi a todos para que, ao menos uma única vez, experimentassem tanto propor quanto aceitar um objeto proposto pelo outro. A minha instrução foi direcionada tanto para aqueles que não conseguiam conter a excitação de dar o pontapé inicial ao jogo, quanto para os que, aprisionados pela timidez, ou talvez por uma autocensura, preferiam aceitar o objeto já proposto pelo outro ou até mesmo não jogar.

A minha orientação funcionou em parte. Por um lado, os inibidos passaram a iniciar a improvisação retirando da caixa um objeto para jogar com outra pessoa. Por outro, os eufóricos ficavam na plateia se “contorcendo” para a improvisação em desenvolvimento terminar o quanto antes, para eles poderem jogar com o objeto que almejavam propor.

No final da aula conversei com eles e expliquei que a euforia e a excitação, conforme alguns haviam manifestado, eram fatores que impediam a escuta. Disse que observar atentamente os companheiros que jogavam era também um forma de exercitar a escuta, afinal, o jogo do outro poderia despertar em mim (observador) inúmeras pulsões e ideias suscetíveis a serem experimentadas.

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Antes de finalizar a descrição e a análise do jogo da “caixa mágica”, me interessa ainda comentar uma improvisação que ocorreu na turma C: um aluno se dirigiu ao espaço de jogo e retirou da caixa mágica um objeto. Suas ações físicas indicavam que era um tambor. Alguns segundos depois, conforme a regra do jogo, outro participante foi com ele jogar, mas em vez de um tambor ele passou a jogar com uma bateria. Nesse momento a maioria dos estudantes que assistiam a improvisação me olhou e um deles sussurrou para mim: “Professor, não é esse o objeto. Vamos dizer para ele?”. Como resposta fiz um sinal para que eles mantivessem a calma e continuassem a observar o desdobramento do jogo. Eu imaginava que o primeiro jogador fosse demonstrar novamente que o objeto não se tratava de uma bateria, e sim de um tambor, para que imediatamente o segundo participante aceitasse sua proposta e, assim, continuassem com a improvisação. Contudo, fui surpreendido pela seguinte situação: o primeiro jogador, ao ver a empolgação do segundo ao tocar a bateria, em vez de negar sua proposta, comprou a ideia e propôs um duelo para descobrir qual dos dois era o melhor baterista. As ações de ambos, na tentativa de vencer o duelo, cresciam a cada nova batalha de solo e envolviam a todos que assistiam. A impressão que tive foi que a maneira arrebatadora que eles tocavam me permitia ouvir cada som que a bateria emitia. Mais surpreendente ainda foi a reação da plateia que passou a se dividir em dois grupos, cada qual com sua torcida para aquele que julgavam como o melhor baterista. Quando um solo chegava ao fim, as respectivas torcidas iam à loucura. Já eu, boquiaberto e estático com o envolvimento de todos, custava a acreditar que aquilo estava acontecendo diante dos meus olhos. Era fantástico vê-los jogando com tanta força e intensidade.

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Quando a improvisação terminou estavam todos ainda bastante animados. Para que pudéssemos conversar mais tranquilamente sobre ela, propus um breve intervalo para acalmar o estado enérgico em que a maioria estava. Esse tempo foi também importante para que eu pudesse me recompor. Após os cinco minutos de intervalo, iniciamos a conversa sobre a improvisação. Eles disseram que se divertiram bastante pois sentiram que estavam num grandioso show de rock. Uma aluna destacou que o segundo jogador não entendeu que o objeto proposto era um tambor, e para ela isso foi ótimo, pois o jogo com a bateria foi mais interessante. O segundo jogador disse não haver percebido que seu companheiro havia retirado da caixa um tambor. A resposta de seu parceiro de cena foi que de fato ele retirou da caixa uma bateria, porém não deu muita importância para ela na primeira parte do jogo preferindo não usar as baquetas e tocar com as mãos apenas um de seus “tambores”. Segundo ele, somente depois que seu colega entrou no jogo e começou a tocá-la utilizando todas as suas partes foi que surgiu a ideia do duelo.

Penso que a resposta do primeiro jogador foi uma forma de autoproteção. Como os alunos declararam que a proposta da bateria foi mais interessante que a de um tambor, creio que ele preferiu dizer que desde o princípio havia retirado da caixa uma bateria. Contudo, expliquei que a qualidade do jogo não estava no objeto em si, ou seja, o jogo não foi divertido unicamente pela bateria, mas pelo modo em que os participantes jogaram com ela, entre eles e com a plateia. Aliás, a bateria era imaginária e só se tornou presente devido às ações dos jogadores. Tais ações conseguiram transformar um “espaço vazio” em um fantástico palco de música que, preenchido pela performance dos “bateristas”, foi capaz de afetar a plateia,

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convidá-la a jogar e fazê-la vibrar a cada solo apresentado.

Essa improvisação me remete, neste momento de escrita e reflexão, ao poema O menino que carregava água na peneira de Manoel de Barros (2010, p. 469-70):

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira. Com o tempo descobriu que no escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.

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Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

Assim como o menino descrito pelo poeta Manoel de Barros, o meu objetivo era provocar os alunos a “modificarem a tarde”, “fazer pedra dar flor” e se afeiçoarem a “despropósitos”. Para tal, precisava estimulá-los a “criar peixes no bolso” e a “catar espinhos na água”. Quando vi os alunos improvisando num espaço de jogo e transformando-o num contagiante show de bateria percebi que em suas “peneiras havia água”. Como o menino que ao aprender a usar as palavras notou que era possível ser noviça, monge ou mendigo, creio que, na improvisação com a bateria, a grandiosidade oferecida pelo vazio foi explorada mediante uma escuta atenta de si e do outro. Nada foi combinado de antemão. A força e o envolvimento dos jogadores afetaram a plateia que se dividiu em torcidas para também fazerem parte da improvisação. As ações nasciam espontaneamente e eram guiadas por uma escuta sincera e verdadeira. Como professor, assim como a mãe do menino, observava os alunos encherem o vazio com suas “peraltagens”. 3.2.6 A continuidade do trabalho

Após uma série de exercícios que visaram estimular a escuta e a aceitação para o jogo, voltamos ao tema sobre o lugar em que os alunos vivem. A ideia dessa etapa do trabalho consistia em retomar as discussões realizadas pela atividade do desenho e das cenas improvisadas sobre o bairro de Ratones.

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Nomeio de “caminho imaginário” o primeiro exercício dessa fase do trabalho. O objetivo do jogo era percorrer um longo tecido estendido no chão “como se” fosse um caminho desafiador. Exemplo: chão com brasas, areia movediça, ponte móvel.

Deixei os alunos à vontade para escolherem o caminho que seria por eles percorrido. O tecido delimitava o espaço de jogo e ali as ideias da imaginação podiam ganhar vida e serem experimentadas. O jogar, conforme enuncia Donald Winnicott (1975), funciona como uma atividade de experimentação do real e, por esse motivo, se encontra em um “espaço intermediário” chamado pelo autor de “espaço potencial”. Nesse espaço há uma comunhão entre o objetivo e o subjetivo, entre a fantasia e a realidade. O “espaço potencial” é entendido como um terreno fértil para a imaginação e considerado pelo autor como provocador de reflexões e formas de perceber a si e ao mundo.

O jogo do “caminho imaginário” buscou justamente instaurar esse “espaço potencial” para que os alunos construíssem na área do jogo uma nova espacialidade e percorressem os caminhos sugeridos por suas pulsões interiores. Conforme a imagem abaixo, é possível perceber que foram vários os caminhos que eles percorreram, tais como: selva com animais ferozes, campo repleto de explosivos, corda bamba, mares bravios e parque de diversões.

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Figura 8 - Caminho Imaginário

A segunda parte da atividade consistia em tornar presente, dentro da área de jogo, um lugar de Ratones. Para tal, era preciso que os estudantes atravessassem o tecido “como se” estivessem caminhando por algum local do bairro em que moram. Perguntei a eles: De que maneira caminho por esse lugar e que sensação ele provoca em mim? Cada estudante precisaria entrar no espaço de jogo observando o que já havíamos trabalhado sobre a importância de ouvir os impulsos internos. No decorrer do jogo foram revelados alguns lugares de Ratones, como trilha, cemitério, ruas esburacadas, academia a céu aberto e ambientes amplos para brincar. Um garoto da turma D, conforme a imagem

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abaixo, percorreu o espaço de jogo demonstrando estar numa ampla área em que as pessoas costumam empinar pipa: Figura 9 - Caminho imaginário de Ratones

Os alunos tanto poderiam reproduzir uma atividade já realizada no lugar por eles escolhido, quanto criar uma nova maneira de com ele se relacionar. Assim, o que pensavam e sentiam sobre a comunidade em que vivem poderia ser manifestado. O espaço do jogo era preenchido de modo a fazer com que as imagens internas se projetassem externamente por meio de ações. A imaginação, nesse caso, era convidada a fazer uma

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espécie de ginástica, visto que o jogo ocorria em um “espaço vazio”.

A professora e pesquisadora Carmela Soares, em Pedagogia do jogo teatral: uma poética do efêmero (2010), recorre à noção de “espaço vazio” de Peter Brook para pensar a questão do jogo no ambiente escolar como possibilidade de aprendizagem estética. Segundo ela:

A noção do “espaço vazio”, extremamente apropriada para o ensino do teatro na escola, traz para o aluno a consciência de uma nova materialidade, que ao ser manuseada, ou seja, ao ser jogada, possibilita ao aluno a experiência de uma forma expressiva diferente dos códigos e convenções com que estão habituados a se relacionar, principalmente os transmitidos pelos veículos de comunicação de massa. Não existe ali um cenário construído, realista. A realidade cênica exigirá novas soluções. Será necessário esculpir o espaço, trabalhar nele artesanalmente, encontrar a sua substância. O “espaço vazio” fortalece o exercício da imaginação e requer um novo sistema de signos expressivos, exigindo do aluno uma atitude ativa, orgânica e sensível, em oposição a uma atitude puramente racional diante do conhecimento. O “espaço vazio” carrega em sua própria natureza a dimensão do lúdico, permitindo a descoberta e a invenção da teatralidade na sala de aula (SOARES, 2010, p. 162).

O jogo do “caminho imaginário”, baseado na concepção de “espaço vazio”, exigiu que os alunos fossem artesões de suas próprias cenas e utilizassem o corpo como ferramenta para materializar os lugares por

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eles escolhidos. A partir disso foi possível trazer para a área de jogo uma outra espacialidade e temporalidade. Devido às “peraltagens” advindas da imaginação, o vazio foi preenchido por “despropósitos” e, portanto, os estudantes puderam criar, perceber a si mesmos e também expressar a forma que leem o lugar em que habitam.

Após realizarem individualmente a atividade do “caminho imaginário”, os alunos passaram a interagir em cena com uma ou mais pessoas a partir do jogo “O que fazer?”. A intenção era que eles mostrassem ações que poderiam ser desempenhadas em algum ambiente de Ratones. Para tal, era preciso que um participante se dirigisse ao espaço do jogo e propusesse uma ação para que outro jogador pudesse com ele jogar, aceitando sua proposta. A ideia era continuar exercitando a noção da escuta e da aceitação a partir de atividades teatrais que dialogassem diretamente com o contexto deles. Nota-se, ainda, que o foco do jogo centrava-se no “O que?” (estrutura dramática presente na sistematização dos Jogos Teatrais de Viola Spolin, anteriormente comentado).

Um dos lugares apresentados no exercício do “caminho imaginário” era por mim escolhido e a seguinte pergunta era feita aos alunos: O que fazer nesse local? As imagens abaixo referem-se às ações que os estudantes da turma A desempenharam a partir da provocação do que é possível fazer no cemitério, no rio, no campo e na academia a céu aberto:

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Figura 10 - Jogo “O que fazer?”

Os alunos então preenchiam o “espaço vazio” com suas ações, podendo tanto fazer atividades costumeiras e usuais do lugar selecionado, quanto subvertê-lo, realizando ações não habituais a fim de criar um novo modo de relação com o local em questão. A título de exemplo, a partir da provocação do que fazer no cemitério, duas garotas criaram uma cena de perseguição em que um zumbi se levantava da tumba para capturar uma visitante que deixava flores no túmulo de um ente querido. Nesse sentido, como bem pontua Carmela Soares (2010, p.51), o jogo possibilita “(...) uma relação de totalidade e integração com o mundo, que coloca a consciência num estado de percepção mais amplo da realidade, constituindo o sujeito parte da realidade percebida e, ao mesmo tempo, diferenciada e singular da mesma”. Sendo assim, o jogador localizado no “espaço potencial” pode experimentar-se e observar-se numa relação com o mundo de forma operante e ativa.

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Além disso, quero destacar que embora ainda houvesse alguns estudantes com dificuldade de jogar com o outro e de ouvir a si mesmo, pude perceber a partir dos jogos “caminho imaginário” e “O que fazer?” um avanço em relação à capacidade de escuta e de aceitação para o jogo. Notei que em todas as turmas houve uma compreensão de que, para jogar, é importante levar em consideração o que Ryngaert (2009) chama de “movimento do jogo em curso”, ou seja, é preciso se disponibilizar para o momento presente e não se antecipar com ações preconcebidas para as situações que ocorrerão no instante seguinte. É perceber os impulsos internos, estar receptivo ao outro e ouvi-lo verdadeiramente.

Ainda no que tange à questão do “espaço vazio”, foi realizada em todas as turmas uma atividade em que os estudantes foram convidados a ressignificarem um objeto dentro da área de jogo. O exercício visava estimular a imaginação para que o jogador, por meio de ações, atribuísse um novo significado ao objeto que estava em jogo.

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Figura 11 - Jogo ressignificar o objeto

Nesse exercício a imaginação é provocada a projetar múltiplas significações e ir além do sentido real do objeto. A relação ocorre a partir do significado que no objeto é empregado. Quando isso acontece, conforme destaca Vigotski (2010, 114), “(...) é alcançada uma condição em que a criança começa a agir independentemente daquilo que vê”. Ou seja, o sujeito passa a agir numa esfera cognitiva com base em suas motivações internas e não pelo uso costumeiro do objeto. O autor bielo-russo complementa que:

Quando um cabo de vassoura torna-se o pivô da separação do significado “cavalo” do cavalo real, a criança faz com que um objeto influencie outro semanticamente. Ela não pode separar o significado de um objeto ou uma palavra do objeto, exceto usando alguma outra coisa como pivô. A transferência de significados é facilitada pelo fato de a criança reconhecer numa palavra a propriedade de um objeto; ela vê

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não a palavra, mas o objeto que ela designa. Para uma criança, a palavra “cavalo” aplicada ao cabo de vassoura significa “eis um cavalo”, porque mentalmente ela vê o objeto por trás da palavra (VIGOTSKI, 2010, p. 117).

Desse modo, um objeto como um guarda-chuva, assim como nos mostra a imagem acima durante o jogo realizado pela turma B, pôde ser “transformado” em uma flauta e também numa batuta para reger uma orquestra. As ações estabelecidas com o objeto deu a ele um novo significado, e foi possível trazer para o “espaço vazio” do jogo uma nova dimensão espacial como, por exemplo, a de um concerto. O guarda-chuva, nesse caso, como bem nos ensina o poeta Manoel de Barros por meio de suas peraltices com as palavras, foi “desinventado”: "Desinventar objetos. O pente por exemplo. Dar ao pente função de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha" (BARROS, 2010, p. 300).

“Desinventar”, portanto, o uso ordinário do guarda-chuva para olhá-lo e utilizá-lo de maneira extraordinária como um lápis ou um bastão de beisebol. “Desinventar” para dar asas à imaginação e experimentar a vida como poesia.

3.2.7 Experimentos Cênicos

As atividades teatrais realizadas em sala de aula contribuíram para a criação de diversas imagens: algumas bem esculpidas, outras com pouco acabamento, mas todas elas carregadas de expressividade e encanto. A teatralidade presente em muitas dessas imagens, assim como pontua Carmela Soares (2010, p. 76), “(...) tem um aspecto tênue e impreciso, algo que se insinua e logo em

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seguida desaparece, se desalinha por entre a multiplicação de gestos, ruídos e todos os tipos de interferência”. Por isso, para que essas imagens ganhassem melhor definição e nitidez, iniciei com os alunos um processo de elaboração de experimentos cênicos com base nos exercícios que já havíamos trabalhado.

Como mote para o experimento perguntei aos estudantes o que eles gostariam de mostrar sobre o bairro em que moram. Voltamos, então, ao jogo do “caminho imaginário”. O tecido foi estendido no chão e eles novamente puderam percorrer os diversos caminhos de Ratones.

Aos poucos fui percebendo o modo em que cada turma jogava. Na turma C, por exemplo, pude notar que os estudantes gostavam de percorrer o tecido de modo a experimentar vários caminhos de Ratones. Já na turma D, uma trilha que há atrás do cemitério de Ratones era frequentemente escolhida pelos alunos para ser materializada na área do jogo. Eles sempre a percorriam com muito medo e ali aconteciam diversas peripécias: fantasmas surgiam da terra para assombrá-los, lobos os perseguiam e barulhos aterrorizantes os atormentavam.

Ao perceber o interesse da turma D pela trilha assombrada, visto que por várias vezes os alunos a trouxeram para a área de jogo, decidimos utilizá-la como tema central para a criação do experimento da turma. Além das situações que já haviam sido apresentadas do que poderia ocorrer na trilha, passamos a improvisar várias outras. O medo e o pavor eram elementos que não faltavam em nenhuma delas. Geralmente o desfecho terminava de maneira trágica: a pessoa ao ouvir barulhos fantasmagóricos tinha um ataque cardíaco e morria, assombrações empurravam do alto os que a trilha percorriam levando-os a óbito devido à forte queda, ou

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então lobos ferozes e famintos matavam os que se aventuravam pela trilha durante a noite.

Ao longo de três aulas trabalhamos em improvisações tendo como tema a trilha assombrada. No entanto, sentia que as ações eram, na maioria das vezes, estereotipadas e com desfechos bastante previsíveis. Passamos, então, a experimentar diferentes maneiras de expressar o sentimento de medo na tentativa de superar o clichê de gestos como a tremura excessiva, roer as unhas, posicionar as mãos debaixo do queixo e tencionar os ombros. Para isso fizemos alguns exercícios, como caminhar naturalmente pelo tecido expressando o medo somente pelo olhar e também atravessar o caminho imaginário fingindo não estar com medo. O objetivo dessas atividades eram suavizar ações estereotipadas de pavor.

Em nossa quarta aula, dedicada à criação do experimento, pude perceber que os alunos já não estavam mais com o mesmo entusiasmo dos primeiros dias. Muitos estavam dispersos e desanimados com o encaminhamento do experimento. Na verdade, confesso que eu também estava desmotivado e inseguro, pois não sabia exatamente como prosseguir na condução do processo criativo. No final da aula todos estavam cansados e entediados com o trabalho. Nesse dia voltei para casa decepcionado e frustrado. Acho que fui bastante exigente com os alunos, pois o rigor técnico que cobrava deles acabava impedindo que se divertissem em cena. A repetição excessiva das cenas não os deixava experimentar novas situações e creio que isso gerava o tédio. Foi quando, na aula seguinte, decidi iniciar o trabalho com uma atividade chamada “Vampiro de Estrasburgo” descrita por Augusto Boal em Jogos para atores e não atores (2012, p. 180):

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O título é angustiante, o exercício também. Todos caminham pela sala sem se esbarrar, os olhos fechados e as mãos cobrindo os cotovelos, como proteção. O coringa toca o pescoço de alguém que passa a ser o primeiro vampiro de Estrasburgo: seus braços se esticarão para frente, ele dará um grito de horror e procurará um pescoço para vampirizar. O grito por ele dado permitirá aos outros saberem onde está o vampiro e tentar escapar. O primeiro vampiro encontrará outro pescoço e repetirá o gesto do coringa: um suave toque no pescoço, com as duas mãos. O segundo vampiro dará igualmente um grito de horror, esticando os braços e então serão dois vampiros, depois três, e quatro, etc. Pode acontecer de um vampiro vampirizar um outro vampiro, nesse caso, o segundo se re-humanizará e dará um grito de prazer; isto indica que alguém se re-humanizou ali perto, mas também que há um vampiro ao seu lado. Devem ser então evitadas as regiões mais infestadas de vampiros.

Tal como explicado acima, expus aos alunos as regras do jogo. Entretanto, em vez de “Vampiro de Estrasburgo”, decidi nomeá-lo de “Zumbi da trilha de Ratones”. Os encaminhamentos do jogo continuavam os mesmos, porém alterei o nome com a intenção de melhor dialogar e aproximar os estudantes com o trabalho que estávamos desenvolvendo. O objetivo da atividade era que eles observassem a reação de seus corpos quando sentiam medo. Isso provavelmente os ajudaria a não utilizar gestos estereotipados para expressar o sentimento de medo quando fossem percorrer a trilha assombrada.

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Percebi que os alunos se divertiram bastante e ficaram mais animados com a atividade. Expliquei a eles o motivo de trabalharmos o jogo “Zumbi da trilha de Ratones” e como ele poderia contribuir para o desenvolvimento do nosso processo criativo. Em seguida, o tecido foi novamente estendido no chão para continuarmos a experimentar ações e situações que poderiam estar presentes durante o percurso na trilha assombrada. Várias situações começaram a surgir até que uma delas, pela sua imprevisibilidade, despertou a atenção de todos que assistiam: dois amigos decidem caminhar pela trilha para fazer um piquenique. No meio do passeio eles ouvem barulhos macabros. Imediatamente eles correm e deixam pelo caminho uma cesta cheia de guloseimas. Em seguida, um garoto andando pela trilha encontra a cesta e decide comer os quitutes, porém, o barulho amedrontador volta a ecoar. O garoto, em vez de correr, prefere prestar bastante atenção para identificar de onde vem o barulho, e logo percebe que é detrás de um arbusto. Com cuidado ele vai até o arbusto e vê que se trata do choro de um filhote de cachorro inofensivo que está perdido e com muita fome.

Decidimos, então, escolher essa situação para o nosso experimento. Era preciso ampliar e lapidar essa cena. Para tal, passamos a improvisar inúmeras ações que poderiam acontecer antes do cachorro ser encontrado. Na primeira improvisação um aluno fazia o barulho do filhote que assustava as pessoas que caminhavam pela trilha. No entanto, expliquei a eles que o barulho não necessariamente precisaria ser emitido e, por isso, pedi para que expressassem corporalmente como era caminhar tranquilamente e de repente escutar um ruído assombroso. Fiz a eles as seguintes perguntas: como o corpo reage a essa circunstância? O que fazemos quando ficamos atônitos?

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No decorrer das aulas fomos elaborando a dramaturgia do experimento. Decidimos que várias pessoas passariam pela trilha levando alguma coisa para fazer uma atividade, tais como: cesta com comidas para fazer um piquenique, equipamentos de escoteiros para armar uma barraca e acampar, lenha para fazer uma pequena fogueira e assar milho. No entanto, tudo ficaria pelo caminho porque o barulho do cachorrinho assustaria as pessoas. No final, duas amigas, durante o percurso pela trilha, perceberiam que o ruído não era de fantasmas, mas sim de um filhote indefeso com fome. Elas, então, cuidariam do cachorro tranquilizando-o e dando a ele a comida que ali as pessoas haviam deixado. Por fim, acampariam no topo trilha.

Sugeri aos alunos para que o tecido, antes de ser estendido no chão, atuando como o caminho da trilha de Ratones, ganhasse diversos significados do mesmo modo que havíamos trabalhado com outros objetos em sala de aula, como no caso do guarda-chuva. O tecido, portanto, foi por eles “transformado” em cobra, travesseiro, manto sagrado e num rio. Esse foi o início do experimento elaborado e nomeado pela turma D de “trilha assombrada” e que, conforme nos mostra a imagem abaixo, foi apresentado para a comunidade escolar:

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Figura 12 - Experimento “Trilha Assombrada”.

Já na turma C o processo criativo do experimento não se restringiu apenas a um lugar de Ratones, mas aos diversos caminhos que há na comunidade. Passamos, então, a experimentar diferentes possibilidades de nos relacionar com os locais trazidos para a área de jogo. Em uma improvisação em que imaginamos o tecido como um caminho repleto de jararacas, foram experienciadas diferentes maneiras de olhar e de se relacionar com esse lugar, tais como: desespero devido à fobia de cobras, um

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caminhar tranquilo e convicto que as jararacas apenas oferecem perigo caso sejam ameaçadas, e até mesmo um caminhar em que as cobras eram hipnotizadas ao som de uma flauta.

A cada aula trazíamos para o espaço de jogo vários caminhos de Ratones, e neles experimentávamos diferentes formas de agir. A partir disso, ruas com buracos, riachos e grandes áreas campais foram alguns dos diversos lugares que, aos poucos, foram compondo e tornando-se presentes no experimento cênico da turma C. Para o início do experimento sugeri aos estudantes que realizassem o jogo do espelho14 que, utilizando as palavras de Augusto Boal (2012, p. 193), funciona da seguinte maneira:

Duas filas de participantes, cada um olhando fixamente para a pessoa que está em sua frente, olho no olho. As pessoas da fila A são designadas como sujeito, e as da fila B como imagens. O exercício começa e cada sujeito inicia uma série de movimentos e de expressões fisionômicas, em câmara lenta, que devem ser reproduzidas nos mínimos detalhes pela imagem que tem em frente. O sujeito não deve considerar-se inimigo da imagem: não se trata de uma competição, de fazer movimentos bruscos, impossíveis de serem seguidos, trata-se, pelo contrário, de buscar a perfeita sincronização de movimentos e a maior exatidão na reprodução dos gestos do sujeito por parte da imagem. A exatidão e a sincronização devem ser de tal ordem que um observador

14 Viola Spolin, em Improvisação para o Teatro (2010, p. 55), propõe

também esse exercício como “Espelho n. 1” e estabelece como ponto de concentração a exata reflexão dos movimentos do iniciador.

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exterior não seja capaz de distinguir quem origina os movimentos e quem os produz. É importante que os movimentos sejam lentos (para que possam ser reproduzidos, e mesmo previstos pela imagem) e também contínuos. É igualmente importante que se preste atenção aos mínimos detalhes, seja de todo o corpo, seja da fisionomia.

Já havíamos feito esse jogo quando trabalhamos a importância de aceitar as propostas dos colegas a fim de não monopolizar e ditar o andamento da improvisação. Decidimos, então, que esse jogo comporia a dramaturgia do experimento. Para tal, os alunos precisariam imaginar um lugar de Ratones e manifestar o que sentiam em relação a ele. Essa sensação teria de ser expressada corporalmente pelo jogador “sujeito” e seguida pelo jogador “imagem”.

Além do jogo do espelho, assim como na turma D, pedi aos alunos para que o tecido, antes de ser utilizado no chão para delimitar a área de jogo e ali trazer os caminhos de Ratones, ganhasse novos significados. Dentre as inúmeras ressignificações uma delas consistiu em fazer do tecido um bebê gigante. Percebi que essa improvisação poderia dar continuidade à dramaturgia do experimento, pois a mãe poderia colocar o bebê gigante para dormir, deixando assim o tecido estendido no chão. Com isso, o espaço para percorrer os locais de Ratones (parte final do experimento) já ficaria preparado.

Após cinco semanas de ensaios conseguimos dar forma ao experimento que intitulamos de “Caminhos do meu lugar”. Como nos mostra as imagens a seguir, ele também foi apresentado para a comunidade escolar:

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Figura 13 - Experimento “Caminhos do meu lugar”

Figura 14 - Apresentação de “Caminhos do meu lugar”.

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Para não me sobrecarregar de tarefas, optei em trabalhar na elaboração dos experimentos, no primeiro semestre de 2015, com as turmas C e D, para no segundo semestre iniciar um processo criativo com as turmas A e B. No entanto, os experimentos com essas turmas não foram concretizados porque no final de agosto de 2015, sob a justificativa de não repasse da verba por parte do Governo Federal para manter o projeto, as aulas do Mais Educação na escola em que estava sendo desenvolvida a pesquisa de campo foram suspensas.

Gostaria, ainda, de salientar que quando iniciei o trabalho em Ratones não tinha o propósito de montar espetáculos para serem apresentados. É sabido que, muitas vezes, o ensino de teatro se restringe meramente a montagens de peças para serem apresentadas em datas comemorativas e/ou finais de períodos escolares. Em muitos casos o trabalho é arbitrário e aniquilador da criatividade, pois exige que o aluno decore gestos e falas. Essa, definitivamente, não era a forma que desejava trabalhar. Buscava um fazer teatral que estimulasse a imaginação e que suscitasse o prazer dos estudantes. Por esse motivo, um dos aspectos que me moveu a pensar o ensino de teatro na escola e a desenvolver a pesquisa de campo em Ratones refere-se à noção de “espaço vazio” de Peter Brook. Creio que a riqueza do “espaço vazio” está em sua essência lúdica de provocar a imaginação. Isso faz com que o seu “gene” permita o nascimento de várias formas, a projeção de diferentes imagens, o surgimento de variados símbolos e a instauração de um outro espaço-tempo. O vazio que fascina ao ser preenchido pela poesia do jogo. O vazio que encanta à medida que o aluno se apropria da linguagem teatral e identifica que o espaço de jogo está aberto a receber as imagens da imaginação.

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Por fim, interessa-me destacar que optei pelo termo “experimento cênico”, visto que sua elaboração baseou-se em jogos cujo mote centrava-se nos diversos caminhos da comunidade em que os estudantes moram. Creio que a vivência com os jogos no processo de criação dos experimentos oportunizou a elaboração de formas simbólicas que, carregadas de significados, possibilitaram aos alunos experimentar diferentes maneiras de se relacionar com o lugar que compõe suas identidades. Nesse aspecto, como bem pontua Carmela Soares (2010, p. 41), uma vivência teatral a partir de jogos “(...) transporta o olhar do aluno para uma nova dimensão, diferente da habitual, o que lhe permite romper com uma visão pré-determinada e estabelecida da realidade”. A autora ainda acrescenta que o jogo propicia um descolamento do olhar e a partir disso “(...) o aluno passa a ver o mundo e a si próprio com outros olhos, ampliando o seu campo de experimentação criativa da realidade” (SOARES, 2010, p. 41). Os experimentos, portanto, consistiram na busca de ampliar o campo de visão dos estudantes para olhar a comunidade de Ratones “com outros olhos”. Olhá-la de modo a perceber tanto suas mazelas, quanto suas belezas. Olhá-la dentro de um espaço de jogo para ali (re)inventar distintos modos de com ela interagir. Olhá-la de modo a experimentá-la promovendo uma fricção entre as tênues linhas da ficção e da realidade. Olhá-la dentro de um “espaço vazio” conferindo-lhe forma e volume. Olhá-la para “desinventá-la”. Olhá-la como uma maneira de experimentação de si, do lugar onde vivem e do mundo.

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3.2.8 Fotografias do “vazio”

Até a apresentação dos experimentos, as atividades com os alunos foram sempre desenvolvidas dentro da sala de aula. Em nossos encontros sempre delimitava a área do jogo com a intenção de ampliar a percepção dos estudantes e intensificar seus olhares. Meu objetivo era que eles compreendessem que não se tratava de uma área banal, mas sim de um espaço que potencializa a imaginação para ser explorado de maneira lúdica. Além disso, utilizando as palavras de Carmela Soares (2010, p. 161), ao enquadrar a área de jogo “o espaço deixa de ser percebido como um lugar comum, indiferente, e passa a ser observado segundo suas qualidades estéticas, transformando-se agora em signo produtor de uma possível teatralidade”. Para que essa teatralidade fosse intensa e acentuada, preferi iniciar os trabalhos dentro de um pequeno campo de enquadramento, pois tinha receio, ao delimitar uma grande área de jogo, que os alunos ficassem assustados, tímidos e temerosos.

Meu intuito era que, paulatinamente, os estudantes conquistassem o espaço de jogo para a ele dar a arquitetura que a imaginação sugerisse. Diante disso, não obrigava ninguém a jogar e isso acarretava para mim o desafio de suscitar o entusiasmo dos alunos para entrar no jogo. Como esclarece Peter Brook (2011, p. 4), é desafiador jogar em um “espaço vazio”, pois na qualidade de “puro e virgem” está pronto para receber um “fenômeno novo” e uma “experiência original”. Penso que, no tocante ao ensino de teatro na escola, o sentido de “fenômeno novo” e “experiência original” não diz respeito a preencher o espaço do jogo com algo inédito, raro e jamais visto.

A pressão em busca do novo e do original, conforme já destacado a partir dos apontamentos de Keith

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Johnstone (1990), gera muita racionalização, impede a escuta dos impulsos interiores e, com isso, suprime a espontaneidade. Por esse motivo, objetivava que os alunos não se autoflagelassem com a expectativa de ineditismo, afinal, baseado em Vigotski (2009), não é possível fazer algo puramente inédito. O sentido de “novo” e “original”, para o autor bielo-russo, só é possível a partir de uma atividade “combinatória”, ou seja, elementos já conhecidos são combinados e reorganizados. Portanto, desejava que os alunos ocupassem o “espaço vazio” a partir da reelaboração de algo vivenciado e dos signos assimilados, para aí, então, representar algo novo. A “experiência original” e o “fenômeno novo” que julgo coerente para o ensino do teatro na escola implica num processo “combinatório” que não bloqueia a imaginação, não nega os impulsos interiores e faz da racionalização excessiva uma grande inimiga. O sentido de “novo” e “original”, nesse caso, refere-se ao surgimento da “centelha de vida” que motivada pela espontaneidade é capaz de “desinventar” as coisas com “despropósitos”, gerando, assim, uma grande “explosão”.

Voltando à questão desafiadora que é jogar em um “espaço vazio”, supus que a delimitação de um pequeno campo de jogo não intimidaria tanto os alunos. Além disso, via a sala de aula como o único lugar favorável para ocorrência das aulas, pois dentro dela era mais difícil haver interferências externas e, assim, eu conseguiria manter o controle para mediar as atividades de modo mais eficaz. É exatamente isso. Eu não me enganei quando escrevi “manter o controle”, pois mesmo que de forma inconsciente, era isso o que eu queria. Ás vezes até tinha vontade de sair da sala de aula para fazer do pátio da escola um espaço de jogo. Contudo, o receio das coisas fugirem do meu alcance, o medo do imprevisível e a visão empobrecida e ingênua de que o “espaço vazio” somente

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poderia ser uma área de jogo sem qualquer coisa dentro dela (como por exemplo árvores, cadeiras sucateadas, dentre outros objetos) me faziam permanecer na sala de aula para desenvolver as atividades.

O mais curioso é que hoje (26 de fevereiro de 2016), refletindo sobre a minha prática, ao notar o meu medo pelo imprevisível, percebo que o que eu mais desejava ensinar para os alunos era o que eu mais precisava, quiçá ainda precise, aprender. Como bem assinala Carmela Soares (2010, p.110), era importante que eu agisse como um “professor-jogador” e, para tal, era imprescindível perceber que na relação pedagógica “(...) o que vale é o presente, as circunstâncias que se manifestam e a possibilidade de transformar os estímulos que surgem no decorrer da aula em situação de jogo”. Entretanto, do alto do meu púlpito, não me colocava como “professor-jogador”, pois tinha dificuldade de me abrir para o acaso e também tinha medo de não saber lidar com os acontecimentos inesperados. Mal sabia que, provavelmente estava perdendo inúmeras situações de jogo. Por isso, hoje vejo que eu era um dos que mais precisava desenvolver a capacidade de jogo. Percebo também que podia ter me arriscado mais e ter saído da minha “concha mecânica”.

Faço esses apontamentos porque certo dia, na penúltima semana da pesquisa de campo, resolvi me arriscar. Decidi experienciar junto com os alunos outra configuração de “vazio”. Elaborei uma aula inspirada numa atividade teatral que foi coordenada pela professora Dra. Marcia Pompeo Nogueira a partir da proposta estética e educacional do grupo de teatro Ventoforte. Vou, agora, explicar brevemente os encaminhamentos dessa atividade que está descrita, e foi onde eu tive acesso, em um dos capítulos do livro Ventoforte no teatro em

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comunidades (2015) cuja autoria é de Marcia Pompeo Nogueira.

A atividade ocorreu na escola pública do Canto da Lagoa, bairro de Florianópolis/SC, com um grupo aproximadamente de quinze estudantes com idades entre 8 e 12 anos. Para discutir as transformações que vinham ocorrendo na comunidade, a prática realizada consistiu em explorar os “caminhos de ontem e os caminhos de hoje do Canto da Lagoa”. Máquinas fotográficas de papelão foram construídas para “fotografar” uma estrada que, localizada em frente à escola, cruzava um morro íngreme. A estrada foi escolhida pelos alunos como o lugar que melhor representava o “caminho de hoje” da comunidade. Ela apresentava as seguintes características:

De longe se identificava esta estrada como uma ferida marrom nos morros verdes da Lagoa. Os terrenos em torno desta estrada estavam sendo loteados. A polêmica em torno desta estrada estava mobilizando setores desta comunidade: interesses especuladores estavam sendo denunciados por ecologistas da comunidade. A estrada, que era absolutamente irregular, foi aberta por máquinas que, derrubando árvores centenárias, invadiam uma área de preservação. (NOGUEIRA, GOMES, 2015, p. 42-3).

Segundo o relato de Marcia Pompeo Nogueira e Andrea Gomes (2015, p. 43), “depois de construir as ‘máquinas fotográficas’ de papelão, todas muito enfeitadas, saímos com o grupo todo da escola para fotografar a estrada irregular. Tudo era fotografado”. Para

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as pesquisadoras, o trabalho a partir das “fotografias” das máquinas feitas artesanalmente pelas crianças permitiria uma observação intensificada de alguns detalhes que passam despercebidos no cotidiano e, ainda, possibilitaria um olhar para o presente e o passado da comunidade.

Após o percurso pela estrada do Canto da Lagoa o grupo voltou para escola e lá as fotos foram reveladas, ou seja, foram materializadas em desenhos. A sequência dessa atividade consistiu em entrevistas com um ambientalista para discutir acerca da estrada irregular que havia sido fotografada e dias depois em um novo passeio pelo Canto da Lagoa, mas dessa vez para identificar e “fotografar” aspectos do passado da comunidade, caracterizado pelo grupo como “caminhos de ontem”. As fotos foram “reveladas” e, diferentemente da primeira vez, algumas delas foram ampliadas em um papel e coloridas com tinta. A atividade resultou na elaboração de improvisações teatrais que, a partir das fotos, focalizaram “o Canto de ontem e o Canto de hoje” (NOGUEIRA, GOMES, 2015).

Pois então, essa foi a atividade que quando li me inspirou a pensar o “espaço vazio” sob uma outra dimensão e me encorajou para, junto com os alunos, prová-la. Para tanto, elaborei uma aula que intitulei de “fotografias do vazio”. Nela os estudantes teriam que construir suas máquinas fotográficas e posteriormente seriam divididos em trios. Cada trio escolheria algum lugar da escola para nele trazer uma nova dimensão espacial. Faríamos, portanto, um passeio pelos diversos locais da escola, e os trios, como guias, teriam que conduzir o grupo que, com suas máquinas fotográficas, registraria o que lhe despertasse a atenção e parecesse conveniente. A regra era que ao menos uma foto fosse tirada para que no final do passeio pudéssemos revelá-la por meio de uma folha A4, lápis de colorir e giz de cera. Esses materiais seriam

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aliados a um elemento primordial: a imaginação em exercício.

Quando cheguei na sala de aula expliquei aos alunos como seria a atividade daquele dia. Disse a eles que faríamos um passeio por vários lugares, mas antes era preciso fazer máquinas fotográficas. Prontamente e com bastante empolgação, em todas as turmas, eles começaram a fazê-las.

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Figura 15 - Elaboração das máquinas fotográficas

Quando as máquinas ficaram prontas dei um tempo para que os guias escolhessem um local da escola e decidissem a configuração e a forma que ele ganharia. Deixei claro, desde o início, que em cada passeio eu e todo o restante do grupo seríamos visitantes. Portanto, era de responsabilidade dos guias a organização das pessoas e a explicação das regras de funcionamento do

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lugar em visitação. Antes de sair da sala de aula já deixei estabelecida a ordem dos guias e, assim, a cada término da exploração de um local, os novos guias teriam que assumir o comando da expedição.

Desde a saída da sala já fiquei bastante impressionado com o envolvimento e a animação dos alunos de todas as turmas com a atividade. Os visitantes, atentos e curiosos para saber o lugar que conheceriam, ficavam à espreita com suas máquinas para que nenhuma imagem fosse perdida. Já os guias, conscientes de suas responsabilidades, explicavam cuidadosamente as indicações do lugar que seria por todos conhecido.

Na turma B, por exemplo, o engajamento dos estudantes foi algo surpreendente. A turma era sempre muito barulhenta e agitada, mas desde o momento em que a expedição foi iniciada, a concentração e o comprometimento dos alunos pela atividade foi admirável. Os primeiros guias, dentre eles o garoto que relatei no início desse capítulo ter dificuldade de lidar, nos levaram para a quadra de areia. Antes de nela entrar, eles explicaram que se tratava de um zoológico e que era preciso falar baixo para não assustar os animais. O grupo de visitantes, em fila, ouvia atentamente as explicações dos guias. O que mais me impressionava era vê-los ressignificando os objetos que lá estavam em animais do zoológico: postes se transformaram em girafas, o chinelo de um dos guias se converteu em um filhote de tucano e a rede de vôlei na jaula dos leões.

Na sequência, os novos guias decidiram nos levar para o campo de futebol da escola que na verdade se tratava de um terreno cheio de armadilhas. Ali pudemos vivenciar uma grande aventura: atravessamos ponte móvel sobre um abismo, escalamos montanhas, mergulhamos nas profundezas do mar e percorremos um pântano cheio de crocodilos.

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Figura 16 - Travessia da “ponte móvel”.

Eu, no papel de visitante, jogava junto com os alunos e buscava seguir minuciosamente as recomendações dos guias. Pude perceber em certos momentos que os estudantes me olhavam incrédulos, pois pensavam que eu me recusaria a acompanhá-los em determinados obstáculos. Quando passei embaixo de “arames farpados”, e para isso rastejei pelo chão, eles se divertiram muito e falaram uns para os outros: “Olha o professor! Ele também está fazendo”.

Notei que minha presença no jogo estimulava ainda mais os estudantes. Nesse aspecto, conforme afirma Flávio Desgranges (2011, p. 98), quando o professor, vez ou outra, participa do jogo “uma relação diferente se estabelece, pois desmistifica a figura do coordenador no grupo, aproximando-o dos demais integrantes, que se sentem mais à vontade para jogar” (DESGRANGES, 2011, p.98).

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Compreendo o espanto dos alunos ao me verem participando do jogo, pois até o presente momento eu somente os observava. Assim como Peter Brook (2000) aponta a importância do diretor deixar sua tribuna para arriscar-se nos exercícios junto com os atores, percebi naquele instante o valor de uma postura, por parte do professor, que parece ser irrelevante, mas que na verdade é de extrema significância. É significante para que a relação professor-aluno seja intensificada. É significante para estimular a turma a jogar. É significante porque implica em um ato ético, afinal, se desejo que os alunos se lancem no campo do jogo, por que eu, professor, me distancio e me nego a ele?

É importante salientar que a entrada do professor no jogo não é para mostrar ao aluno o que e como fazer, ao contrário disso, como mencionado acima, é para fortalecer a relação com todos da turma, estimulá-los a participar da atividade e desmistificar a imagem do professor que sempre ensina do alto de seu púlpito.

Já na turma D, a partir do enquadramento dos arredores da escola como área de jogo, conhecemos um museu repleto de coisas exóticas. Graças à ação de “desinventar” um poste de luz, vimos um dinossauro empalhado. Além dele, como nos mostra a imagem abaixo, havia também um ovo de baleia voadora.

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Figura 17 - O “ovo de baleia voadora” sendo apresentado pelo guia.

Ainda durante o passeio com essa turma, o olhar extraordinário para uma árvore nos ajudou a conhecer a estrutura de um foguete. Foram vários os detalhes apresentados pelos guias. Já nós, os visitantes, fazíamos

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inúmeras perguntas sobre a base espacial, o método de construção do foguete e o planeta que ele estava destinado a aterrissar. Figura 18 - Momento da apresentação do “foguete”

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No decorrer do passeio, lá estava eu com a câmera de papel que havia construído em uma das mãos para que com a outra pudesse fazer uso do celular para fotografar toda a movimentação dos alunos. Porém, em um determinado momento, um deles me alertou que somente a câmera que havia feito com eles na sala de aula era capaz de fotografar o que estávamos imaginando. Perplexo e encantado com o posicionamento do aluno ao questionar minha postura, guardei imediatamente o celular.

Naquele instante ele me fez notar que ao fazer uso da câmera do celular eu até conseguiria anexar nessa pesquisa imagens como a dos garotos em cima da árvore, do estudante com um pedaço de concreto na mão e da menina caminhando pela linha do campo de futebol. No entanto, a câmera do celular jamais conseguira captar a imagem dos astronautas dentro do foguete, do guia com o ovo da baleia voadora nas mãos e da travessia da garota pela ponte móvel. Aprendi, portanto, que embora o celular tenha inúmeras funções de captura de imagem, ele ainda não é capaz de registrar “despropósitos”.

Além desse aprendizado, passei também a compreender que a noção de “espaço vazio” não diz respeito somente a uma área de jogo sem absolutamente nada em seu interior. Aprendi que é possível olhar para o campo de futebol, para quadra de areia e para os arredores da escola como um “espaço vazio”. Nele, diferentes cores, volumes e dimensões podem vir à tona. Contudo, isso só acontece quando o “músculo da imaginação” é colocado em exercício.

Ainda interessa-me sinalar outro aprendizado que, movido pela atividade “fotografias do vazio”, pude ter com a turma A. Durante o nosso passeio conhecemos lugares como: lago congelado para patinar, prisão de

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extraterrestes, loja de brinquedos e circo com criaturas estranhas.

Quando estávamos no circo, conforme nos mostra abaixo algumas imagens reveladas pelos alunos, nos foram apresentados macacos falantes, aranhas venenosas e até mesmo um monstrengo de dois braços e duas pernas.

Figura 19 - Fotos reveladas pelos alunos.

Fiquei maravilhado pela força da imaginação dos alunos e também pelo engajamento deles no jogo. Até que, repentinamente, um dos guias, bastante animado,

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grita: “É hora do lanche!”. Seu aviso foi prontamente escutado por todos que saíram correndo, exceto eu, que fiquei ali por alguns segundos, decepcionado ao perceber que os estudantes estavam mais preocupados com a hora do intervalo do que com a atividade em si. Entretanto, após minha inércia de breves segundos, olhei para o relógio e vi que ainda faltavam cerca de 25 minutos para a hora do lanche. Naquele momento fiquei bastante irritado e fui ao encontro deles para ordenar que fossem imediatamente para a sala de aula. Enquanto caminhava já pensava no sermão para adverti-los.

Contudo, no caminho para a sala de aula, vi que os alunos, ao invés de terem ido para o local onde é servido o lanche, encontravam-se no pátio da escola. Organizados pelos guias do circo, estavam todos segurando folhas de árvores. O guia ao me ver, pediu para que eu fosse ao final da fila e, com duas folhas de árvore em mãos, perguntou: “Você prefere sanduíche de presunto ou de frango?”.

Não consigo expressar com palavras o que senti naquele momento. Encostado na parede, ao final da fila, uma forte lembrança me veio à revelia. Visualizei a imagem de uma professora que tive nos anos iniciais da escola. Tinha medo dela que era sempre muito áspera e ríspida. Certa vez, com dificuldade de resolver uma operação matemática que jamais me esqueço (10+6=?), ela me disse aos gritos: “Você vai permanecer aqui dentro da sala de aula até o final do ano se não conseguir resolver essa continha que até mesmo meu neto é capaz de solucionar”. Via meus amigos, após terem encontrado o resultado da conta, saírem da sala para brincar. Já eu, anestesiado pelo pavor de ficar o resto da minha vida com aquela “bruxa” dentro da sala de aula, era incapaz de pensar e de resolver qualquer tipo de problema.

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A professora fazia com que não tivesse a menor vontade de ir para a escola. Por várias vezes, ao perceber que a hora de ir para o colégio se aproximava, começava a chorar. Minha mãe sempre me perguntava o motivo, mas eu não conseguia responde-la, apenas chorava. Para tentar não ir à escola, me delongava no banho, demorava para me arrumar e caminhava bem devagar. Era pavoroso saber que passaria toda a tarde com aquela mulher.

Portanto, quando todas essas imagens explodiram em minha mente, olhei para os alunos que, entusiasmados, comiam seus sanduíches, e disse a mim mesmo que não poderia ter as mesmas atitudes que essa minha professora. Passado, presente e futuro coexistiram naquele momento. A figura daquela mulher insensível me fez perceber que talvez estivesse reproduzindo o seu comportamento e, naquele instante, lançou meu olhar para o futuro projetando a imagem de um professor que eu não desejava ser. Pude, então, sentir a presença do peixe dourado e perceber as marcas que ele é capaz de deixar. Compreendi o sentido da palavra “experiência” que, como bem destaca Bondía (2002), é algo que nos toca e nos afeta.

No final da aula cada aluno escolheu uma imagem para artesanalmente ser revelada. No encontro seguinte fizemos uma exposição das fotos e em nossa avaliação, baseados nas improvisações da referida atividade, discutimos sobre dois elementos da linguagem teatral: o espaço cênico e o personagem.

Ao analisar os encaminhamentos da atividade “fotografias do vazio” verifico aproximações com o Drama. Esse método de ensino, conforme explica a professora Dra. Beatriz Ângela Vieira Cabral (2006, p.11) “é uma atividade criativa em grupo, na qual os participantes se comportam como se estivessem em outra situação ou lugar, sendo eles próprios ou outras pessoas”. Ainda que

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a aula não tenha sido elaborada como um processo de Drama é possível nela identificar características semelhantes a esse método de ensino, tais como a de assumir papéis (ora como guia, outrora como visitante) e a de mergulhar em um universo ficcional.

Em suma, importa-me destacar que a partir dessa aula pude perceber nos alunos um jogar espontâneo e uma escuta apurada. Constatei, também, que a minha escuta precisava ser desenvolvida, afinal, conforme relatei acima, somente eu não fui capaz de escutar, durante o jogo com turma A, o aviso do guia sobre o momento do lanche. Esse foi mais um aprendizado que eles me possibilitaram durante o tempo que passamos juntos. 3.3 VESTÍGIOS DA PRESENÇA DO PEIXE DOURADO

Para melhor avaliar os momentos do trabalho

desenvolvido em Ratones, além do meu olhar sobre eles, pedi ao coordenador do Mais Educação da escola, Natanael Machado, e à professora do apoio pedagógico, Juliana Gil Ramos, para escreverem suas percepções sobre as aulas de teatro. Como o convívio deles com os alunos era quase que diário e também por eles terem acompanhado algumas das atividades teatrais realizadas, ter um parecer de suas percepções sobre as aulas é para mim muito importante, pois me ajuda a pensar sobre possíveis rastros deixados pelo peixe dourado.

Além do parecer do coordenador Natanael Machado e da professora Juliana Ramos, retornei à escola em novembro de 2015 para rever os alunos e entrevistá-los. Dar voz a eles e ouvir suas impressões sobre as aulas era bastante relevante e poderia trazer mais dados para analisar o trabalho desenvolvido. No entanto, fiquei bastante temeroso e inseguro de realizar a

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entrevista com eles. Meu medo era que seus depoimentos, em vez de baseados em sinceros comentários sobre as aulas, fossem movidos pelo que eles deduzissem que eu gostaria de ouvir. Optei, assim, por uma conversa mais descontraída na intenção de que aos poucos eles pudessem revelar suas percepções sobre nossas aulas de teatro.

Na escola, debaixo de uma árvore que oferecia uma agradável sombra, a conversa com os alunos ocorreu em duas rodadas de aproximadamente 40 minutos. Em cada uma delas havia cerca de oito estudantes: na primeira das turmas A e B e na segunda das turmas C e D. Em ambas as rodadas iniciei a conversa pedindo para eles me colocarem a par das coisas que aconteceram em Ratones no período em que fiquei fora e também perguntei se eles tinham alguma novidade que gostariam de compartilhar. De modo geral, eles falaram de alguns programas em família que fizeram, contaram sobre alguns fatos que ocorreram na escola e relataram sentir falta das aulas, não apenas as de teatro, mas de todas do Mais Educação.

Dentre os inúmeros relatos instigados por essa primeira pergunta, um deles me chamou a atenção. Um aluno da turma B comentou que seu pai havia lhe presenteado com um cavalo. Em seu celular nos mostrou fotos e também um vídeo que havia gravado do animal. O estudante, então, contou de forma bastante empolgada que nos finais de semana podia passear com o cavalo pelas ruas de Ratones.

Naquele momento lembrei que nas primeiras aulas de teatro o aluno havia apresentado uma visão bastante negativa em relação à comunidade. Ele dizia que não gostava de ali viver por conta da calmaria e do marasmo. Em razão disso, fiquei bastante surpreso quando ele, de maneira feliz, disse poder andar a cavalo pelas ruas de

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Ratones nos finais de semana. Aproveitei o ensejo e, propositalmente, perguntei se ele já havia passeado com seu cavalo por outros bairros e lugares de Florianópolis/SC. Ele prontamente respondeu que se saísse de Ratones possivelmente seu cavalo seria atropelado por um carro. Questionei os demais se estavam de acordo com ele e obtive somente respostas afirmativas. Os alunos disseram que Ratones não oferecia risco porque era uma comunidade bastante tranquila e que, embora muitos deles ainda não tivessem cavalo, podiam andar tranquilamente de bicicleta. Uma estudante até comentou que certa vez soube que um ciclista foi morto atropelado enquanto pedalava por um lugar de Florianópolis/SC, mas, segundo seu relato, se ele estivesse em Ratones isso dificilmente teria acontecido: “Uma vez um homem de bicicleta até morreu aqui em Florianópolis porque um carro passou por cima dele. E não foi aqui em Ratones porque aqui todo mundo anda de bicicleta e não tem perigo” (relato de uma aluna durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015).

Fiquei bastante feliz ao vê-los falando daquela maneira sobre o local onde vivem. Obviamente, ali não era uma comunidade perfeita, mas era importante o reconhecimento também de suas belezas. Dado que trabalhamos diversos jogos em que Ratones atuou como tema gerador, penso que muitas das aulas de teatro contribuíram para ampliação da percepção dos alunos, a fim de olharem para a comunidade em que moram de um modo que não fosse maniqueísta e binário.

Estava ainda interessado em ter dos estudantes um retorno sobre o que eles acharam das aulas. Fiquei bastante preocupado em como chegar nesse assunto. Meu receio era fazer perguntas que, ao invés de motivá-los a expressar uma sincera avaliação, suscitasse apenas comentários genéricos e superficiais como “gostei” ou “foi

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legal”. Logo, a alternativa que encontrei para tentar estimulá-los a tecer uma visão das aulas referiu-se à seguinte pergunta: Na hipótese das aulas de teatro retornarem, qual ou quais atividades vocês gostariam ou não de fazer novamente? Por que?

Para a maioria dos estudantes a atividade “fotografias do vazio” foi a mais interessante. A justificativa de tal escolha é explicada por um aluno da turma C:

A gente deu muita risada. Foi engraçado quando o João15 fez uma goiaba virar cocô de cachorro (risos). As meninas ficaram com nojo, mas tiraram foto. Depois o João pegou a goiaba de novo e colocou no chão porque era uma bomba de carniça (risos). Ninguém foi doido de chegar perto dela e ficar fedido (relato de um aluno durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015).

É possível observar com base no relato do estudante que a atividade ocorreu dentro de um clima alegre e prazeroso. Creio que esse seja um dado importante para pensar na figura do peixe dourado, posto que ele tem aversão ao tédio e à monotonia. Destaca-se também o olhar sensível do aluno que reconhece no jogo a possibilidade de ver a goiaba de forma extraordinária e “desinventada”. No caso específico, a goiaba se converteu em cocô de cachorro e em bomba de carniça. Além disso, nota-se que a proposta da goiaba ressignificada em bomba de carniça foi aceita pelos demais, afinal, conforme suas próprias palavras, “ninguém foi doido de chegar perto dela e ficar fedido”.

15 João é um nome fictício assim como os demais nomes presentes

nos relatos dos alunos e nos pareceres dos professores.

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Ainda em relação à aula “fotografias do vazio” um estudante da turma B disse:

Eu gostei porque todo mundo foi junto patinar na neve, aí pegamos a grama e tacamos nos outros porque era nossas bolas de neve. Eu acertei uma bem na testa do José e ele jogou um monte na minha cabeça (risos). Eu vi que todo mundo estava fazendo guerra de neve, até o professor estava no meio. A gente só parou porque a Joana (a guia) falou que estava na hora de esquiar (relato de um aluno durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015, grifo meu).

O relato do aluno traz à luz dois aspectos de análise bastante interessantes. O primeiro deles já foi discutido anteriormente, mas vale a pena retomar: é importante que o professor, hora ou outra, entre no jogo, pois estimula o aluno a jogar e, além disso, rompe com a ideia de que o lugar do educador é no alto de um púlpito.

O segundo aspecto incide na questão da configuração entre jogador e plateia. Quando o estudante relata que “todo mundo foi junto patinar na neve” e na sequência menciona que foi capaz de ver todos fazendo guerra de neve, nota-se que é possível, durante o jogo, perceber-se ao mesmo tempo jogador e observador. Isso ocorre porque a disposição entre quem faz e quem assiste pode ser bastante tênue e não necessariamente fixa.

Suponho que tal situação, embora não tenha sido destacada com base nessa análise, também tenha sido experienciada por alguns estudantes da turma C quando, em uma das improvisações de dois participantes com uma bateria imaginária retirada da “caixa mágica”, os

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observadores assumiram também a posição de jogadores.

Admito que só me atentei a essa questão no momento da transcrição da entrevista e depois de haver lido o texto O pós-dramático e a pedagogia teatral (2008) da professora Maria Lucia Pupo. Nele são apresentados exemplos concretos de situações de aprendizagem da linguagem teatral que se situam além do drama e são relacionados a alguns aspectos da cena do teatro contemporâneo, dentre eles, a diluição da distância entre ator e espectador. Nesse sentido, convém salientar que, embora não tenha direcionado propositalmente nenhuma das aulas com base nesse aspecto e, consequentemente, não tenha conversado sobre ele com os alunos, é relevante que o professor, conscientemente, assim o faça.

Além da atividade “fotografias do vazio”, a apresentação e o processo do experimento “Casa Assombrada” foram destacados por uma discente da turma C como algo que, caso as aulas de teatro retornassem, ela gostaria de repetir. Segundo suas palavras: “A gente teve que imaginar e inventar tudinho. Eu pensei que para fazer teatro eu teria um monte de falas e ficaria em casa ensaiando para não esquecer na hora da apresentação. Mas o nosso foi diferente, foi um outro jeito de fazer teatro” (relato de uma aluna durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015).

Esse “outro jeito de fazer teatro” que a aluna menciona ter experienciado diz respeito a um processo não textocentrista, e obviamente não foi por mim inventado. Inspirei-me majoritariamente em Peter Brook e esse “outro jeito de fazer teatro” é por mim percebido como exercício da imaginação, pois a provoca a preencher vazios. Afinal, como o próprio Brook (2011) afirma, quanto mais a imaginação se exercita, mais feliz ela fica. Penso também que esse “outro jeito de fazer

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teatro” refere-se a um estar em cena como forma de experimentação de si e do mundo. É justamente nessa direção que incidiu minha percepção quando li o parecer do Natanael Machado, coordenador do Mais Educação da escola em que a pesquisa de campo foi realizada. Sobre as sobre as atividades teatrais realizadas com os alunos, ele diz:

Eram notórios nos momentos de improvisações, os grupos reunidos elaborando sentidos e significados sobre o mundo, apropriando-se de modos de ser, pensar, sentir, e com isso se formando e se transformando nos processos de criação que envolvia a imaginação. Acredito que através das aulas de teatro as crianças puderam relacionar-se com o mundo inventando, experimentando e elaborando enredos e construindo suas próprias histórias (Parecer de Natanael Machado entregue a mim em novembro de 2015).

Nesse sentido, o contato com a linguagem teatral pode possibilitar uma tomada de consciência capaz de estabelecer elos entre o eu interno e a geografia que me cerca, suscitando, assim, um olhar para o modo em que me observo e me coloco diante do mundo. Isso fica perceptível quando uma aluna, durante a entrevista, faz a seguinte observação: “No jogo do labirinto vi que meus colegas podiam me escutar. Fui perdendo a vergonha e mudando um pouco meu jeito. Agora eu até consigo olhar nos olhos das pessoas” (relato de uma aluna durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015).

Em relação a essa estudante, a professora Juliana Gil Ramos, do apoio pedagógico, destaca em seu parecer:

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Uma percepção muito forte que eu tive sobre as aulas de teatro é que no começo a aluna Maria sempre sentava sozinha, ela nunca sentava em grupo e nem com ninguém. Ela quase não apresentava as atividades e quando era para ler, ela não gostava. Ela apresentava uma timidez muito grande e eu até fui conversar com você e perguntar como ela era no teatro. E para o meu espanto você disse que a Maria era a primeira a fazer as coisas, a encenar e participar. E eu vi isso naquela dinâmica da caixa em que eles tinham que tirar alguma coisa de dentro dela. Aquilo me deixou muito surpresa. Como pode um aluno mudar da minha aula para a sua em um espaço de 20 minutos que é o do recreio? Percebi que com as suas aulas a Maria teve um crescimento muito grande em relação à autoestima, iniciativa, colaboração, participação. Foi notório o desenvolvimento dela principalmente para ela se sentir confiante. Todos amavam a sua aula, inclusive fizeram o cartaz para você. Você colocava a aula de teatro de um modo muito gostoso e muito prazeroso e eles se identificavam. (Parecer de Juliana Gil Ramos entregue a mim em novembro de 2015).

O dado que a professora traz sobre a Maria em relação a sua postura mais confiante e proativa é para mim muito significante. É relevante também os dizeres da própria Maria quando menciona que a partir de uma atividade teatral começou a reavaliar sua maneira de se colocar diante do mundo e que agora até consegue olhar nos olhos das pessoas.

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Certa vez, Maria me contou que teve um pesadelo e nele ela não podia mais participar das aulas de teatro. Dias depois, quando ficamos sabendo que as aulas não mais continuariam, os alunos durante o apoio pedagógico pediram à professora Juliana para que pudessem escrever um cartaz de despedida para mim. Quando cheguei em casa, dentre as inúmeras mensagens que muito me emocionaram, lá estava a de Maria. Ali ela dizia que seu pesadelo havia se tornado realidade. Fiquei bastante sensibilizado com sua frase e hoje, relendo-a, tenho vontade de dizer a Maria que na verdade seu pesadelo indica o início de um sonho, pois, embora nossos encontros não mais prossigam, creio que talvez ela tenha percebido que sua voz pode ser escutada não só por seus colegas, mas também pelo mundo que a cerca.

Não quero ser ingênuo e pensar, como afirma Grotowski (2015), que o teatro é a salvação do mundo, mas creio, como ele bem ressalta, que a arte, e consequentemente o teatro, possibilita “(...) falar a propósito das modificações do mundo. Através da criação pode-se falar como mudar a vida, as estruturas, a civilização, como tornar o mundo melhor” (GROTOWSKI, 2015, p. 219). O teatro, portanto, apesar de não modificar o mundo, pode promover uma reflexão sobre ele e pode, ainda, dar voz a Marias, Josés, Joanas...

Embora seja muito gratificante relevar algumas pistas que indicam rastros da presença do peixe dourado, é interessante também evidenciar outras que revelam o quão distante ele esteve.

Durante a entrevista um estudante da turma D menciona uma aula que ele não gostaria que se repetisse: “Eu não quero ficar na sala outra vez copiando um monte de coisa”. Pedi para ele comentar mais sobre o episódio em questão. Ele logo complementou:

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Foi um dia que o professor ficou bravo com a gente porque estava todo mundo falando alto e fazendo bagunça. Aí você falou bem alto para todo mundo ficar quieto, pediu para gente abrir o caderno e começou a passar um monte de coisa para gente copiar. Eu sei que a gente fez bagunça, mas foi muito chato ter que copiar aquele textão do quadro (relato de um aluno durante a entrevista realizada no dia 18/11/2015).

O relato do aluno me fez rememorar o dia em que a turma D estava bastante inquieta e barulhenta. Como forma de punição exigi que todos copiassem do quadro, e em silêncio, um texto sobre elementos da linguagem teatral. Não quero aqui crucificar o uso do quadro, giz, caderno e lápis até mesmo porque, dependendo da forma de uso, podem ser provocativos e libertadores. Contudo, o modo em que eu os utilizei foi bastante opressor e, analisado à luz do pensamento de Foucault (1987), atuou como ato punitivo para coagir e docilizar os corpos. O conteúdo abordado foi lembrado pelo aluno apenas como “textão” e é justamente aí que reside a consequência de fazer o lápis e o caderno como algemas para aprisionar os corpos dos alunos. Observa-se que, nestes casos, a coerção não deixa que a temática “discutida” seja apropriada e assimilada.

Já dizia Paulo Freire (1987) que quando uma educação não é libertadora, o sonho do oprimido é um dia tornar-se opressor. Nessa direção, o relato do aluno me fez lembrar das várias vezes que também fui “algemado” na escola e, ainda, me fez perceber que, de oprimido, passei a ter as mesmas atitudes daqueles que um dia foram os meus opressores. Estes me educaram a reproduzir, memorizar e jamais questionar. Não quero

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justificar os meus atos culpando muitos daqueles de quem fui cria. Busco, apenas, reconhecer os que ainda habitam em mim para que, como em um processo de expurgação, possa liberá-los.

Os depoimentos dos estudantes e os pareceres dos professores foram muito importantes para observar os possíveis rastros do peixe dourado e os indícios de quando ele se afastou das aulas. Com base nesses dados, interessa-me ainda estabelecer um diálogo entre a minha busca pelo peixe dourado durante a prática em Ratones e o quadro “O peixe dourado” de Paul Klee. Figura 20 - O peixe dourado, 1925.

Fonte: PARTSCH, 1993, p.59

Em “O peixe dourado”, conforme a descrição de

Susanna Partsch (1993, p.60), é possível verificar:

(...) um contrataste vivo com esta aquarela fria baseada nos princípios da percepção. Na água de um azul carregado (fundo do

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quadro), no centro do quadro, encontra-se o peixe dourado mosqueado, com barbatanas vermelhas curtas, cauda vermelha e um olho vermelho. Ele está rodeado de plantas aquáticas azuis e de ondas feitas pelos pequenos peixes vermelhos, que fogem do grande peixe luminoso. O azul das plantas e o vermelho dos peixes transformam-se, em alguns lugares, em lilás, a cor complementar.

Para pintar “O peixe dourado”, Paul Klee se baseou numa técnica surrealista chamada grattage. A palavra de origem francesa pode ser traduzida como “raspagem”. Essa técnica consiste em cobrir cores com uma camada de tinta preta que, uma vez seca, é raspada com uma espátula, riscadores ou objetos pontiagudos a fim de dar origem a uma forma.

Segundo Tania Rivera (2005), a grattage é uma derivação da frottage, e ambas as técnicas foram inventadas pelo pintor alemão Max Ernst:

Em 1925, Ernst inventa a frottage, técnica que consiste em esfregar um lápis ou material semelhante sobre uma superfície com alguma textura, deixando surgirem arbitrariamente, no desenho assim formado, traços que serão reconhecidos como imagens a serem em seguida retrabalhadas. Recordando a lição de Leonardo da Vinci, segundo a qual se observássemos com atenção as manchas na parede encontraríamos nelas “mais de uma maravilha”, Ernst olha fixamente uma superfície de madeira e é tomado por uma lembrança de infância que o leva a pôr, ao acaso, folhas de papel sobre as tábuas e, em seguida, esfregá-las com giz. Ele prossegue suas experiências com muitos

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outros tipos de material, vendo surgirem perante seus olhos “cabeças de homens, de animais, uma batalha que terminava num beijo, más posições, um tapete de flores de geada, os pampas, golpes de pingalim e lava a escorrer”. Esses primeiros trabalhos de frottage serão reunidos sob o título História natural. A técnica será transposta à pintura a óleo pelo processo de grattage, que consiste na raspagem de parte da tinta utilizada, deixando à mostra camadas anteriormente pintadas (RIVERA, 2005, p. 13).

A partir da observação do quadro de Paul Klee e da técnica nele empregada, faço as seguintes associações:

a) Podemos encontrar em um “espaço vazio” “mais de uma maravilha”. Ele pode ser um palco para um contagiante show de bateria, um zoológico, um museu, um foguete espacial, um terreno repleto de armadilhas e o que mais a imaginação sugerir. Assim como folhas de papel sobre uma superfície de madeira pode fazer surgir perante nossos olhos “cabeça de homens, de animais, uma batalha que termina num beijo...”, um objeto ordinário em um “espaço vazio” pode se transformar em algo extraordinário: guarda-chuva se converte em flauta, goiaba em bomba de carniça, chinelo em filhote de tucano, coisas cotidianas em “despropósitos”.

b) A busca pelo peixe dourado durante uma prática teatral dentro de um contexto educacional exige do professor um olhar atento para que consiga, junto com os alunos, revelar as cores encobertas por uma camada de tinta preta. O prazer, a curiosidade, o diálogo e a escuta podem ser

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importantes ferramentas que, utilizadas como espátulas, ajudarão no surgimento de diversificadas formas, dentre elas, aquela que surge em momentos de graça e que pode ser chamada de peixe dourado.

Por fim, quero destacar que durante um dos meus

últimos encontros de orientação, enquanto falava sobre “O peixe dourado” de Paul Klee, a professora Marcia Pompeo me desafiou a olhar para o caminho trilhado dessa pesquisa e, a partir dele, elaborar uma forma gráfica do que eu considero um peixe dourado. Desafio aceito: Figura 21 - O peixe dourado de Ratones.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Soube certa vez, quando li A porta aberta (2011), da existência de um peixe cuja figura é inconfundível. Por onde quer que ele vá, deixa rastros profundos e provoca arrebatamento. Talvez ele pudesse ser chamado de fascínio, de alegria, de prazer ou até mesmo de maravilhamento, mas por hora, ele, por Peter Brook foi batizado de peixe dourado.

Fiquei tão encantado por ele que decidi ir à sua busca. Peter Brook (2011), seu descobridor, recomendou que ele fosse encontrado em um espetáculo teatral. Contudo, optei por procurá-lo na escola. Essa minha decisão fez com que logo surgissem algumas inquietações: Será que o peixe dourado transita por águas educacionais? Como tecer uma rede de pesca capaz de capturá-lo?

Em busca de respostas considerei que o próprio Peter Brook era o que melhor poderia me ajudar. Decidi, então, debruçar-me em alguns de seus escritos, tais como: A Porta Aberta (2011), Ponto de Mudança (1994), Fios do Tempo (2000) e O Teatro e seu Espaço (1970).

Com base neles escolhi quatro aspectos pedagógicos que me mobilizaram a desenvolver uma prática teatral na escola. São eles: “intuição amorfa”, diálogo, “espaço vazio” e jogo. Olhei para tais aspectos como fios de uma rede de pesca capaz de capturar o peixe dourado. Utilizo propositalmente a palavra “capturar”, pois era exatamente isso o que eu almejava: queria a todo custo apanhar o peixe dourado. No entanto, percebi que minha gana em tê-lo poderia fazer com que o retirasse da água, e sua morte, nesse caso, seria algo inevitável. Compreendi, portanto, que a conquista do peixe dourado não está em sua captura, mas em sua presença. Ela é motivada por uma rede de pesca que, em

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vez de aprisioná-lo, deixa-o livre para seguir o seu caminho.

Por isso, busquei fazer com que o diálogo fosse um dos fios da rede de pesca que no decorrer de cinco meses teci em Ratones. Segundo Peter Brook (1994), a presença de uma relação dialógica em um processo teatral desloca a singularidade do diretor para um campo que valoriza a pluralidade e estimula a criatividade dos atores. Para ele, o diretor que age de forma impositiva e que considera suas obsessões pessoais a diretriz de um processo teatral, faz dos atores marionetes de suas vontades.

Nesse sentido, em relação à pesquisa de campo que desenvolvi com crianças e pré-adolescentes, seria abusivo de minha parte ter uma conduta autoritária e fazer com que os alunos fossem submissos a mim. Até mesmo porque uma relação não opressora, ou então, como bem pontua Paulo Freire (2011), libertária e que valoriza a autonomia dos estudantes, é algo que considero fundamental para suscitar a presença do peixe dourado.

Segundo o educador brasileiro, uma das coisas mais desprezíveis numa relação pedagógica implica na postura ensimesmada do professor que, carregada de prepotência, aprisiona os alunos em suas verdades absolutas. Para ele, “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 2011, p. 58).

Estava consciente do quão importante era o diálogo na minha relação com os estudantes. Porém, em alguns momentos acabei agindo de modo autoritário e reproduzi as ações de professores que um dia me oprimiram. Isso fica claro, por exemplo, em um dos momentos do jogo “fotografias do vazio” em que me percebi agindo como uma de minhas professoras dos anos iniciais que era bastante opressora. Por outro lado,

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ainda nessa mesma atividade, creio que minha tomada de iniciativa em jogar com os alunos contribuiu para desconstruir a figura de superioridade do professor que detém o saber absoluto e determina como as coisas precisam ser feitas.

O estabelecimento de uma relação dialógica era por mim uma busca constante. A cada encontro procurava tecer uma rede de pesca com vistas ao peixe dourado, tendo o diálogo como um de seus fios. Contudo, tiveram algumas vezes, como a acima citada e também no caso em que durante a entrevista um aluno relatou que em uma das aulas foi por mim obrigado a “copiar um textão do quadro”, em que troquei o diálogo pelo autoritarismo e em vez de convidar o peixe dourado fiz com que ele se afastasse.

Outro aspecto do trabalho de Peter Brook que me mobilizou a desenvolver a prática na escola refere-se ao “espaço vazio”. Como um forte impulsor do “músculo da imaginação”, este foi um importante aspecto que contribuiu no enquadramento de espaços de jogo para neles serem projetados diferentes imagens advindas do imaginário. Foi por meio da noção de “espaço vazio” que a sala de aula pôde ser transformada em um contagiante show de rock e um tecido verde estendido sobre o chão pôde ser visto como diversos caminhos do local em que os alunos vivem. Isso implica em dizer que a ideia de “espaço vazio” possibilita que um lugar usual seja observado de maneira extraordinária, pois, ao carregar consigo um substrato lúdico, desperta a sensibilidade do olhar e aguça a percepção. Por isso, conforme destaca Carmela Soares (2010), é preciso encorajar os alunos a explorarem esse espaço como campo de experimentação a fim de “(...) tomar posse dele, torná-lo expressivo, descobrindo-se a si próprios como centro deste espaço

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singular através do qual a vida ganha significação” (SOARES, 2010, p. 131).

Ademais, em similitude à concepção de “espaço vazio”, é possível observar um objeto de modo a atribuir a ele imagens que vão além de sua realidade imediata. Olhá-lo de forma não habitual significa “desinventá-lo”. Sua beleza reside em transformar guarda-chuva em lápis ou até mesmo em uma batuta de maestro para reger uma orquestra. Percebo que essa perspectiva converge com a seguinte frase de Bertold Brecht: “há muitos objetos num só objeto” (BRECHT apud KOUDELA, 1991, p. 80). Ou seja, é preciso exercitar a imaginação para ver além do aparente e olhar para o corriqueiro de modo a extrapolar a esfera do que já está manifesto.

A noção de “espaço vazio” viabiliza um campo de jogo que se baseia no que Peter Brook (2011) chama de momento presente. Isso significa que, instaurado no instante único do aqui-agora, o ator precisa estar aberto e com a escuta aguçada para as circunstâncias que cada momento exige. O encenador inglês considera medíocres os atores que se fecham em suas “conchas mecânicas, pois ao atuarem de tal maneira nutrem a falsa impressão de que estão em jogo.

Na esteira de pensamento de Peter Brook (2011), busquei trabalhar com o jogo estimulando os alunos a se disponibilizarem ao momento presente. Para tal, procurei incentivá-los a observarem e a experimentarem a característica do aqui-agora do jogo, de modo a não se preocuparem com o instante que se foi ou que surgiria no minuto seguinte. Na atividade da “caixa mágica”, por exemplo, orientei os estudantes a escutarem suas pulsões interiores e, sem antecipações, aceitarem e reagirem as propostas dos colegas de cena.

Por essa razão, utilizo novamente as palavras de Carmela Soares (2010, p. 70), pois em conformidade com

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seu apontamento sobre o ensino de teatro na escola, é preciso fazer com que o estudante perceba que “(...) o presente se impõe como força motriz das ações, e o olhar na sua dinâmica lúdica captura as formas que se configuram e se desalinham no instante efêmero do jogo teatral na sala de aula”. A autora acrescenta ainda que é fundamental exercitar a capacidade de jogo do estudante impulsionando-o “(...) a se colocar no presente, disponível, imerso na situação imediata e ao mesmo tempo aberto e flexível a qualquer modificação sugerida no decorrer do jogo” (SOARES, 2010, p. 70).

A título de exemplo, na atividade O que fazer? procurei encorajar os alunos a solucionarem um problema cujo foco de atuação esteve centrado em um dos elementos da estrutura dramática proposta por Viola Spolin (2010) que diz respeito ao desenvolvimento da ação (O que). Logo, os estudantes em duplas foram estimulados a perceberem seus impulsos internos, estarem receptivos ao momento presente e a ouvirem o outro verdadeiramente. Em algumas das improvisações foi possível perceber aquilo que Spolin (2010) chama de “explosão”, ou seja, focados no problema de atuação os jogadores conseguiram atingir uma organicidade das ações. O instante da explosão refere-se ao momento em que se joga levando em consideração o aqui-agora de modo a não preconceber ou se antecipar ao andamento do jogo, pois ao atuar dessa maneira o jogador não age espontaneamente.

Aliás, suponho que as ações espontâneas são capazes de provocar o que Peter Brook (2011) nomeia de “centelhas de vida”. É a vivacidade dessas ações que faz com que o peixe dourado apareça. À vista disso, creio que ele foi atraído durante uma das cenas do jogo O que fazer? em que duas meninas da turma A, tendo como estímulo o cemitério de Ratones, improvisaram uma

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perseguição de um zumbi a uma garota que visitava o túmulo de seu familiar. As jogadoras se permitiram ao momento presente e conseguiram, como bem destaca Viola Spolin (2010, p. 5), “(...) penetrar no ambiente, explorar, aventurar e enfrentar sem medo todos os perigos”. Elas, por meio de um “espaço potencial”, puderam experimentar um novo modo de relação com um dos lugares de sua comunidade de maneira operante e ativa. Também foram capazes de fazer do campo do jogo um lugar de poesia em que “despropósitos” são sempre bem-vindos.

A “intuição amorfa” foi um outro aspecto no trabalho de Peter Brook que me motivou a desenvolver uma prática teatral na escola. Fiquei encantando pela concepção do encenador inglês de que o diretor, movido por uma “intuição amorfa”, em vez de criar uma rígida carapaça, manter fielmente seus planejamentos e rejeitar contra-argumentos, se deixe levar pelo indizível e faça de sua intuição uma das forças motrizes de seu trabalho artístico.

Entretanto, pela segunda vez (destaca-se que a primeira delas refere-se ao tópico em que faço um entrelaçamento dos dados biográficos de Peter Brook com sua prática teatral) não consigo visualizar e relacionar o aspecto da “intuição amorfa” com a pesquisa de campo desenvolvida. Embora visualize algumas aproximações, elas me parecem turvas e ainda não consigo expressá-las. Talvez, a “intuição amorfa” não tenha feito parte dos fios da rede de pesca tecida em Ratones ou, então, eu ainda necessite deixar a prática decantar por mais tempo para, quem sabe um dia, ser capaz de perceber e verificar em que medida a intuição pode ser importante na atuação pedagógica de um professor.

Por fim, importa-me salientar que a presença do peixe dourado em águas educacionais pode ser tanto

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demorada, quanto fugaz. No entanto, é preciso estar consciente que, em ambos os casos, ele só aparece se o momento for intenso e significativo. Por isso, presumo que os vestígios deixados pelo peixe dourado podem ser percebidos quando o aluno joga com a linguagem teatral movido pelo prazer, pela curiosidade e pela alegria. Quando as regras do jogo são entendidas, respeitadas e, inclusive, recriadas. Quando é voluntário o lançar-se na área do jogo e nela é trazida outra dimensão de tempo-espaço. Quando a relação professor-aluno é instaurada pelo diálogo. Quando a imaginação preenche os vazios, cria diversas imagens e estabelece inúmeras (re)significações.

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