EM BUSCA DE MEU ASSASSINO a funcionária sobre o sumiço da boneca, mas ao dirigir-lhe o olhar...

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BIA MACHADO

CERTA ESTRANHEZA - Contos de terror e mistério -

Primeira Edição

Campo Grande/MS - 2011 - PerSe

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Copyright © 2011 Bia Machado Foto da capa: Utilizada sob licença de Dreamstime.com Revisão: Bia Machado ISBN: Todos os direitos dessa edição reservados à autora. Todas as situações e personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com a realidade será uma simples coincidência.

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Para minha família: Alexandre, Beatriz, Maísa, Nádia e Pietra (in memorian), ontem, hoje e sempre.

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ÍNDICE ü Certa Estranheza..........05 ü Sagrado..........................12 ü Sobre livros e mortes..........17 ü Passeio de barco..........................27 ü Laços eternos.................31 ü Palíndromos........................37 ü Lá, no fim do mundo, depois do pôr-do-sol...50 ü Jack Barbazul.......................57 ü Pequenas dúvidas sobre Lurdinha (uma versão não muito confiável)..................70 ü Lenga-la-lenga..........................79 ü Os diamantes de Tia Eufrásia são eternos......87 ü Para sempre!...............103 ü Senhora Quintana vai morrer................106 - Trecho do romance “Cinquenta e três dias no túmulo”... 111 - Algumas palavras......................115

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CERTA ESTRANHEZA1

NEM SE DEU CONTA de que já tinha escurecido. Desde que chegara, tinha ficado apenas a olhar o nome gravado na lápide branca e contemplar a fotografia, já um tanto desbotada pelo tempo, ainda que protegida por um vidro. As margaridas que sempre trazia ainda estavam em sua mão, frescas como se tivessem sido colhidas naquele momento. Depositou o buquê próximo ao nome de Abigail. Sua querida Abigail. Seu pequeno anjo, que se fora tão cedo, aos... oito anos? Nunca se lembrava com exatidão. Só sabia que fazia tempo, muito tempo. Mas sim, tinha sido aos oito anos que a doce menina partira, levando consigo toda a alegria de seus pais. — O cemitério já vai fechar, senhor... Ele se virou na direção da voz e encontrou uma moça a fitá-lo. Onde já a tinha visto? Talvez por ali mesmo. Ele vinha todos os meses, na mesma data. Todo dia 20.

1 Este foi escrito especialmente para este livro. Creio que não é difícil imaginar, antes do final, o porquê do homem estar preso no mesmo dia. O que desejei trabalhar no texto foram os detalhes, a atmosfera, a angústia da personagem diante daquela situação. Eu preferiria ter dado um outro final ao conto. Mas este não é um livro de finais muito felizes... ;)

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— Descuidei-me da hora, com licença. — respondeu, já começando a caminhar de volta pelo extenso corredor. Súbito, parou de andar e se voltou. A moça ainda estava lá. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Outras vezes a mesma moça se aproximara e dissera aquilo, era a impressão. Ontem mesmo aquilo tinha acontecido! “Que estranho!”, pensou consigo mesmo, olhando em seu relógio. A data mostrava que era dia 20. “Dia vinte foi ontem, tenho certeza!” O relógio devia estar quebrado. “Por que voltei aqui hoje?” Correu para a saída. Já era noite e encontrou o portão fechado. Não havia um funcionário no cemitério para abrir o portão? Andou em várias direções, chamando: — Ei! Alguém pode abrir o portão? Estou preso aqui! Pensou na moça que tinha ficado para trás. Ela também teria ficado presa, assim como ele. Ou será que trabalhava ali? Se ele se lembrava dela, talvez fosse mesmo uma funcionária do cemitério. A casa onde funcionava o escritório do local estava fechada e as luzes apagadas. Não devia haver ninguém ali dentro. Retornou pelo caminho, tentando encontrar a moça. Estava frio, mas vestia um casaco que esquentava bem. Ainda segurava na mão a pasta de trabalho, pois sempre passava ali quando saía da repartição, não antes de comprar as margaridas na floricultura. Às vezes, passava em uma loja de brinquedos e comprava uma boneca para colocar sobre o túmulo também e... A boneca! Percebeu que não tinha visto boneca nenhuma! Quem teria tido coragem de pegar o presente de

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Abigail, que ele tinha comprado e trazido no dia anterior? Apressou-se mais ainda para chegar ao túmulo, onde apenas o buquê de margaridas repousava, as pétalas. Não havia ninguém ali, além dele. E onde estava a boneca? Sentiu raiva ao imaginar alguém levando o presente que escolhera com tanto carinho. Perdera a conta de quantas bonecas trouxera para a filha, naqueles quatorze anos. Enquanto sua mulher estivera viva, as bonecas tinham sido trazidas por ela, um presente de mãe para filha. Depois, após a morte de Laura, ele tinha continuado a trazer. Imaginava a filha a brincar com elas, imaginava Abigail a lhe sorrir, feliz por saber que ele não tinha se esquecido dela. — O senhor voltou... Era a mesma moça, a olhar para ele, enigmática. — Perdão, é que fiquei preso aqui. Você é funcionária do cemitério? — Eu moro aqui. Ela devia ser a esposa do coveiro, se morava ali. — Pode me ajudar? Preciso voltar para casa, precisam abrir o portão. — Sinto muito, mas não posso fazer isso. — Como, não pode? Você disse que mora aqui, não tem a chave? — Não. E o portão não pode ser aberto após o pôr-do-sol. Vai ter que esperar, senhor. Impacientou-se. Como, passar a noite ali, ao relento, entre os túmulos? Olhou para a lápide da filha e ia comentar com a funcionária sobre o sumiço da boneca, mas ao dirigir-lhe o olhar novamente, viu que ela não estava mais ali.

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— Moça? Ei, moça! Andou pelos túmulos, a procurá-la, mas nem sinal. Cansado, voltou para a entrada do cemitério e dormiu, recostado à parede do escritório.

Ë Perdeu a noção do tempo ao ficar contemplando a fotografia na lápide. Abigail estava tão linda, tal qual um anjo! E agora já escurecia. Foi quando depositou o buquê de margaridas sobre o túmulo que certa estranheza lhe acometeu. “Eu estive aqui ontem! E antes de ontem também!” Ele tinha certeza daquilo, mas ao conferir no relógio, viu que a data era 20, não 22. “Tenho certeza de que hoje é dia 22!” — O cemitério já vai fechar, senhor... De novo, a mesma moça dos outros dias. Mas o que estava acontecendo ali? Não era possível que ele dormiria novamente naquele lugar! E por quê? Por que estava voltando todos os dias? Seria um pedido de Laura? “Não é possível, Laura está morta também... Ontem eu vim aqui... E a boneca não estava...”

Assim como também não estava naquele dia. — Por acaso viu uma boneca em cima desse túmulo?

Eu sempre deixo uma boneca, todos os meses, no dia 20... — Eu sei. — Sabe? Então é por isso que tenho essa impressão de

já conhecê-la. Você trabalha aqui, não é isso?

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— Não, mas eu moro aqui. — Então se mora aqui e não trabalha, é a esposa do

coveiro? Ou do zelador? — Não consegue me reconhecer mesmo? Não

consegue reconhecer a sua própria filha, meu pai? — perguntou a moça, sorrindo.

O homem riu, de forma nervosa. — É alguma brincadeira? Como pode brincar com

uma coisa dessas? — Jamais brincaria com o senhor, papai. — Eu só tenho uma filha. E o corpo dela está ali,

dentro daquele túmulo. Ou o que restou dele... Já faz quatorze anos que a minha Abigail faleceu. Que brincadeira estúpida é essa?

O nervosismo cresceu no homem, por ter percebido que ela lhe sorria, com verdadeira compaixão, como se ele estivesse dizendo alguma mentira, ou como se ele fosse digno de pena por dizer tudo aquilo.

— Sou eu, papai. Abigail. Tenho esperado pelo senhor todos esses anos.

— Não pode ser! A minha Abigail era uma menina, tinha só oito anos.

— Hoje eu tenho 22, papai. Sou eu, acredite. Abigail. Ele olhou fixamente para ela, tentando encontrar

alguma semelhança com a filha morta. Precisou admitir, agora ele percebia que as duas tinham todas as semelhanças possíveis. Até mesmo uma cicatriz no pulso, por conta de um dia em que a menina tentara passar por uma cerca de arame farpado, não tinha ainda nem sete anos. E o mesmo

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cabelo, negro, a franja lhe encobrindo as sobrancelhas. E a fita de cetim rosa, fazendo um laço no alto da cabeça.

— Foi a Tia Vera quem me presenteou com essa fita que trago no cabelo, lembra-se? — perguntou a moça, adivinhando o que ia pela mente dele.

— Não, não! Não é possível, desculpe! Eu não posso acreditar que isso está acontecendo...

— O senhor precisa acreditar, agora que está me vendo...

Ele balançou a cabeça, negando-se a acreditar. Ela queria dizer que ele agora também estava morto? Aquilo era impossível!

— Não, eu vou sair daqui! Eu não vou dormir essa noite, ficarei esperando pelo nascer do sol e sairei assim que o portão for aberto. Sim, é isso que vai acontecer!

Ele não esperou que ela dissesse mais alguma coisa. Saiu correndo, em direção ao portão. A moça ficou a olhá-lo, até perdê-lo de vista. Quando ele sumiu por completo, pegou uma boneca que estava atrás do túmulo e sentou-se, segurando-a como se fosse um bebê.

— Paciência, Nani... Amanhã ele volta.

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SAGRADO2

RAMIRO RESPIRAVA COM muita dificuldade. O ar parecia a qualquer momento querer sair totalmente de seus pulmões, quando ele expiraria pela última vez. Isso já não lhe importava mais, era apenas o derradeiro incômodo daqueles dias. Só conseguia pensar: “Chegou a minha hora”. E por esse único motivo estava feliz. Finalmente ele deixaria de ouvir aqueles sons em sua cabeça, sons que o atordoavam dia e noite... Eram sons como se alguém falasse lá dentro, uma língua estranha, que ele não conseguiria jamais compreender... Sons que o atormentavam, como uma maldição, um castigo divino.

Nos últimos anos, ele convivera apenas com as almas penadas dos que se foram, sem escolha, após sofrerem horrores em Sagrado. A pequena cidade, não muito maior que uma vila, nunca mais fora a mesma depois que seres estranhos chegaram ali, há dezoito anos. De cabeças disformes, corpos de um tom esverdeado escuro, vieram em uma nave e levaram todas as crianças, todas... Ramiro

2 “Sagrado”, inicialmente, tinha menos de 2000 caracteres, ou quase um post do Orkut. Eu o escrevi para um desafio de escrita de minicontos em 2009 e foi o primeiro que produzi nesse formato. Escrever um conto curto, mini, pode ser ainda mais difícil que escrever um conto grande. Conforme imaginava a situação, o conto foi crescendo ao longo do tempo. Talvez essa seja a versão final. Talvez.

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chorava todas as noites por Luiza, que agora deveria ser pequenina somente para ele, em suas lembranças...

Os seres estranhos fizeram surgir um campo magnético em volta de Sagrado e para sempre o local sumiu do mapa. Colocaram uma espécie de torre no centro da cidade, como se ali estivessem os olhos deles, que a tudo observavam, a todos vigiavam. Os moradores seriam, a partir daquele momento, simplesmente cobaias daquele povo, pelo visto interessado em estudar as sensações e os sentimentos humanos, de acordo com o que Gilberto lhe dissera uma vez: “Eles estão nos observando, Ramiro. Parecem anotar tudo o que fazemos, nossos hábitos, nossa indignação. Não sei como posso afirmar isso, mas sinto que é assim.”

Curiosamente, conseguiam controlar os instintos suicidas, como se não quisessem que nenhuma cobaia fosse desperdiçada. Sim, eles se sentiam como cobaias. Eram como ratos de laboratório, sobrevivendo em uma gaiola, apenas vendo os dias passarem.

Quando as criaturas andavam pelas ruas desertas da cidade, os poucos habitantes ficavam trancados dentro de suas casas. Entravam na torre e dali tudo controlavam. A construção servia também para observarem as plantas e os animais que ainda restavam. Faziam barulhos horripilantes e exalavam um cheiro nauseante.

O homem agonizante sentou em um dos bancos que sobraram de uma praça que, em um dia qualquer do passado fora frequentada por pessoas felizes, pacatas, gente que tinha Sagrado como um verdadeiro paraíso de tranquilidade. As mesmas pessoas que, no decorrer

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daqueles anos, foram definhando de tristeza, solidão, incredulidade, loucura... Até se tornarem apenas espectros. Se eram fantasmas reais ou somente sua imaginação, Ramiro não conseguiria nunca dizer... As imagens das pessoas que um dia conhecera surgiam à sua frente, conversavam com ele, faziam perguntas, lembravam-lhe de acontecimentos já esquecidos. Mas elas estavam mortas, ele sabia disso. Ele mesmo havia enterrado muitas daquelas pessoas. No dia seguinte ao enterro, porém, não havia corpo nenhum na cova aberta.

“Levem-me com vocês! Não aguento mais...”, murmurou, sem forças, quando alguns desses fantasmas pareceram chegar mais perto, como se quase pudesse tocá-los...

Uma pergunta ecoava em sua mente, enquanto o ar entrava em sua garganta, rasgando-lhe a carne: “Por que eu o último? Que fiz para merecer isso?” Certamente estava expiando todos os seus pecados. Não deviam ser poucos. Enquanto se fazia essa pergunta, os ruídos atordoantes continuavam, agora mais alto... Era como se ele estivesse sendo engolido por isso e tentou gritar, mas em vão, não tinha mais forças...

Resignou-se quando a respiração cessou. Sentiu-se aliviado, até... Esperara muito tempo pela sensação de liberdade daquela hora. Um leve torpor tomou conta de seu corpo e a falta de ar fez com que começasse a se contorcer, debatendo-se em desespero. As vozes e os ruídos já não importavam mais...

“Luiza...”

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Era a única palavra que lhe surgia à mente, como se aquele nome servisse como um poderoso anestésico para qualquer dor que pudesse estar sentindo naquele momento. Em segundos, pensou que seu corpo talvez ficaria ali, decompondo-se, por dias a fio. Logo, todos os movimentos e pensamentos cessaram.

O corpo de Ramiro ficou ali por semanas. Não havia nenhum animal que o atacasse, apenas os decompositores faziam o seu trabalho. Quando os seres estranhos resolveram sair da torre, depararam-se com os restos mortais do homem, no meio da praça, próximos ao banco. Soltando grunhidos, comunicavam-se telepaticamente. Diziam entre si que aquele tinha sido o último. Enfim, a missão tinha sido finalizada.

Além disso, pensavam também que aqueles seres tinham sensações muito primitivas: “facilmente manipuláveis, impróprios para o consumo”, seriam essas as palavras mais exatas, se fossem traduzidas.

Desligaram o campo magnético. Removeram a torre e deixaram o que restara de Ramiro ali, pois não viam nele mais nenhuma utilidade, da mesma forma que as crianças levadas tempos atrás: só sabiam gritar, enquanto um líquido escorria de seus olhos. A única solução possível tinha sido a desintegração, já que não serviam para mais nada.

Tinham perdido tempo demais naquele planeta. Certamente existiriam outros lugares, onde achariam um organismo que representasse o alimento perfeito...

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SOBRE LIVROS E MORTES3

É PRECISO QUE TODOS saibam, por mim, de minha agonia e amargura infinitas. Eu, Edmond Blake, escrevo estas linhas. Embora não creia em Deus, agradeço a alguma força superior qualquer que tenha dado a mim a ventura de ainda conseguir escrever em papéis avulsos, usando tinta e pena. É bem verdade, sinto certa repulsa, mas é algo controlável. Basta que eu repita a mim mesmo que essa folha de papel não é nada mais que isso e estou apenas escrevendo uma carta, uma simples carta, que conseguirei terminar o que comecei. Se Heloise estivesse viva, eu ditaria a ela, preferiria que fosse dessa forma. Já estava acostumado com sua doce presença, transcrevendo minhas estórias, enquanto eu dizia palavra por palavra, imerso em imagens fantasiosas. Acostumara-me também com seus questionamentos tão inteligentes, acerca de uma ou outra personagem, um acontecimento ou outro narrado por mim. Ela me fazia ver coisas que nem sequer percebera durante o ditado. Eu devia 3 Esse conto foi escrito para um concurso virtual em uma comunidade de contos de terror no Orkut. O tema era “fobia” e, como sempre, procurei algo fora do comum para explorar. Gostei do resultado, mesmo assim, fiz algumas pequenas modificações no texto para esse livro, nada que modificasse a estrutura da história.

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ter imaginado que ela... Ah, mas agora ela está morta! Sim, eu a matei! Eu, com minha fobia assassina, minha doença estranha, meu pavor secreto! Por que a contratei como minha assistente? Agora ela repousa, docemente, um sono que será eterno. E eu sou o culpado.

Poderia eu mesmo ter escrito os rascunhos de minhas obras, mas minhas mãos suavam e tremiam, só de imaginar que o que estava escrevendo se tornaria um livro. Além disso, narrar minhas estórias a Heloise fazia com que eu me empenhasse em apenas criar, criar o que meus leitores chamavam de “maravilhoso”, “sublime”. Pois bem, eles devem as maravilhas de meus textos a Heloise, que agora jaz aqui, ao meu lado, deitada sobre o tapete, apenas um corpo sem vida. Ela, porém, não foi minha primeira vítima, embora tenha sido a morte mais dolorosa para mim, por ser o único grande amor de minha triste vida. Por que ela tentou me curar? Por quê? Não lhe bastou admirar-me, como ela mesma dizia?

Não, minha querida também quis, a seu modo, tentar fazer com que eu me curasse. Enfureci-me quando abri a caixa que ela deixara em cima da mesa e vi dentro todas as minhas publicações, no formato desses objetos que me causam terrível asco, que me fazem perder a cabeça, trazendo-me pensamentos e sensações horripilantes. Livros! Por que ela queria que eu tocasse neles, que deixasse de perder o medo? Estou crente, agora, que o que ela sentia por mim era pena, para Heloise eu devia também ser uma triste figura, sofredor de uma estranha anomalia.

Tudo isso começou há muito tempo...

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Na distante Londres eu nasci, ironicamente filho de um livreiro e de uma pianista que morreu ao me dar à luz. Aos seis anos, quando meu pai me presenteou com o primeiro livro de minha desafortunada vida, começaram a descobrir minha estranha fobia. Eu praticamente tivera um ataque epilético ao ver o objeto! Naquele instante estranharam o ocorrido, mas quem poderia imaginar que a culpa era de um simples livro?

Depois, a visita à livraria de meu pai. Entrei em choque, em meio às estantes. Cheguei, até mesmo, a desmaiar de tanto pavor. Ao relatar ao Dr. Bradstone toda a repulsa sentida naquele momento, todas as imagens horrendas que me vieram à mente, o velho médico diagnosticara uma rara aversão àqueles objetos tão engenhosos. Haveria tratamento para aquilo? Ninguém tinha a resposta.

Com esses acontecimentos, meu pai distanciou-se de mim. Se me culpava pela morte de minha mãe, também me achava fraco, doente, um filho indigno do nome dele. Jamais eu teria condições de herdar o comércio dele, que estava há várias gerações na família. Quando chegava em casa, depois de um dia de trabalho, precisava lavar-se para que eu viesse à sua presença, pois a simples imagem de meu pai folheando, limpando, vendendo os livros me causava asco, embrulhava-me o estômago. Aos poucos, ele não mais fazia questão disso. Eu passava dias sem vê-lo, quase não conversávamos mais.

Em casa, eles ficavam confinados no salão que servia de biblioteca. Eu não ousava subir a esse andar. Sabia qual

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era a porta, claro, mas cada degrau que eu subisse me afligia, com a ideia de que logo mais acima estariam milhares de livros, horrendos, perigosos, me aguardando para me levarem à morte.

Realizava meus estudos com preceptores, oralmente, ou com textos escritos em folhas de papel, o que ainda me era possível suportar. Escrevia tudo em folhas soltas, todos os exercícios e textos que eles me solicitavam. Agradeço-lhes por terem me contado tantas belas estórias, tantos pensamentos que eu encontraria naquelas amaldiçoadas publicações: Shakespeare, Melville, Dickens, Defoe, More, Hobbes... Foi neste último que pensei, justificando-me em meu primeiro assassinato: “O homem é o lobo do homem”, ou seja, quem destrói o homem é seu próprio semelhante, nada mais que isso. Estava explicada a vontade que tive de matar meu pai, após um ataque dele, tentando me curar de minha fobia, pouco antes de eu completar meus dezenove anos...

Não pensem que não senti remorsos. Mas era meu pai ou eu. Em sua última vã tentativa de me livrar de minha doença, deixara bem claro: “Nenhuma criatura horrenda herdará meus livros. Se não se curar, eu mesmo darei fim à sua vida!” Bem, não sei se foi exatamente isso o que ele disse, mas foi algo nesse sentido. Foi o bastante para guardar todo o dinheiro que eu pudesse, antes de chamá-lo aos meus aposentos, dizendo-me curado do meu tenebroso mal. Foi ali que tirei sua vida, com as próprias mãos. Senti, enquanto apertava a garganta cada vez mais forte, a surpresa e o terror misturados em seu olhar, ao dar-se conta da coragem

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do próprio filho em fazer aquilo. Perguntei-lhe: “Pensa que seu filho é um fraco, não é? Pois veja como não sou! Tenho coragem de tirar a vida de meu próprio pai, assim como um dia alguém tirará a minha também! Só que não... Ah, não morrerei por culpa de um livro, isso eu prometo!” Deixei seu corpo sobre minha cama e saí, fechando a porta do quarto à chave. Demoraria para que alguém resolvesse entrar ali e, certamente, seria o último lugar em que alguém o procuraria. Era o tempo que eu precisava para fugir para bem longe.

Depois daquela noite, meu destino por algum tempo foi Paris. Adotei um novo nome, francês, mas fiquei ali por apenas duas semanas. Após isso, embarquei para Nova York e, logo que cheguei ao meu destino adotei meu nome atual. Vivi por um tempo com o que me restara do dinheiro roubado. Evidente que a quantia não duraria para sempre. Bastou menos de um mês para que eu conseguisse pagar apenas um quarto imundo, ter duas mudas de roupa e um par de sapatos, alimentando-me apenas três ou quatro vezes por semana.

Que sabia eu fazer? Nada! A educação que recebera não tinha sido suficiente para que eu tivesse um ofício. Com sinceridade, afirmo que também não conseguia encontrar algo que me interessasse, a ponto de ganhar a vida com tal ocupação. Passei a mendigar comida.

Foi quando vi que não teria mais como pagar na semana seguinte o quarto onde vivia que algo inimaginável aconteceu. Passei em frente a um jornal onde havia uma placa, com os dizeres: “Pagamos bem por estórias que

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venham a ser publicadas.” A princípio, continuei meu caminho sem pensar muito. Depois de quase um quarteirão, porém, lembrei-me de meus preceptores, dos textos que conheci com eles e de como eu conseguia desenvolver estórias a partir do que me ditavam, causando admiração. Retornei e entrei no estabelecimento, encontrando um homem que me orientou sobre o tipo de texto que procuravam, não sem deixar de me perguntar: “É o senhor quem pretende escrever?” Quando afirmei que sim, ele riu, se desculpando: “O senhor não tem uma aparência de quem poderia escrever textos literários, olhe só o estado em que se apresenta!” Desafiei, cheio de raiva, porém procurando não demonstrar o que sentia: “Pois traga-me papéis e tinta e hoje, no final da tarde, terá a sua estória.” O já idoso senhor franziu a testa: “Por que eu daria papel e tinta para um homem que nunca vi na vida? Certamente dobrará a esquina e os venderá para comprar um copo de conhaque.” Propus a ele então que me deixasse escrever ali mesmo o texto, na sala onde estávamos, tinha me certificado de que não havia nenhum livro maldito ali que pudesse me atrapalhar. Ele concordou, certamente por crer que eu não conseguiria terminar a tarefa, que era apenas uma tentativa desesperada minha.

Ao final da tarde, porém, eu lhe entregara algumas folhas de papel manuscritas com um conto. O homem, que se chamava Teodore Perkins, admirou-se e leu meu texto com curiosidade, ao final exclamando: “Está perfeito! Será publicado depois de amanhã.” Pagou-me pelos meus escritos e sugeriu que eu voltasse no dia seguinte para escrever mais um, talvez porque ele ainda não cria totalmente em meu

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potencial. Provavelmente pensara que tinha tido sorte naquele dia.

Ao fim de dez dias, eu tinha escrito dez textos, sem falhar uma única vez. Fui contratado como escritor do jornal e recebi de Teodore papel, pena e tinta suficientes para continuar escrevendo, dessa vez em meu quarto. Tinha então dinheiro suficiente para me alimentar de forma decente e alugar um quarto melhor. Em um mês comprara mais duas mudas de roupas e um par de sapatos simples, mas confortáveis.

Enquanto escrevia os textos para o jornal, escrevia em paralelo uma estória bem mais longa, com mais personagens. Com isso, em pouco mais de dois meses eu escrevera um romance inteiro, que mostrei a Teodore. O editor entusiasmou-se com o que leu, disse-me que se eu publicasse aquele manuscrito poderia ganhar um bom dinheiro: “O senhor não ficará rico, Sr. Blake, mas o dinheiro não é de se jogar fora. Sua estória é realmente muito boa! Seu romance é ótimo, aliás.”

E foi o que aconteceu. Desde então, publiquei mais de uma dezena de livros e vivo confortavelmente em uma pequena casa de campo, há algumas poucas horas de Nova York. O espaço da biblioteca transformei em um salão de música, talvez por causa da falta que sinto de minha mãe, que tanto amava a música... É irônico pensar que ela tenha sido a primeira pessoa a quem matei? Desde o meu nascimento tenho recebido punições. Confesso também aqui a morte de Teodore Perkins. Ele não entendeu quando lhe expliquei de minha fobia. Insistia para que eu visitasse uma

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senhora da alta sociedade, interessada em financiar meus próximos trabalhos. Para isso, porém, ela exigia que eu pegasse um dos meus próprios livros nas mãos e lesse para ela e seus convidados, em uma reunião. Como sabia que eu era avesso a me apresentar em público, contou-me o que eu teria que fazer apenas quando chegamos à casa da tal senhora.

A imagem de mim mesmo, sendo obrigado a tocar naqueles objetos, aos quais eu mesmo tinha dado vida, deixou-me como louco. Sim, tive um ataque de insanidade, gritando e delirando. Tiveram de levar-me de volta para casa e, ainda convalescente em meu leito, ouvi as inacabáveis reprimendas de Perkins sobre meu estranho comportamento. Precisei explicar-lhe minha doença, o que de nada adiantou. O velho riu, exclamando: “Ora, ora, ora! Um escritor que tem fobia de livros! Essa é boa! Aposto como foi tudo uma farsa! Confessa! Diga o nome do verdadeiro autor, aquele que escreve para que você assine a obra como sua, pois ninguém pode ser escritor bom o bastante, sem nunca ter lido um livro...” Disse aquilo e foi saindo de meu quarto. Sem pensar, dominado pela fúria, corri atrás dele a tempo de empurrá-lo da escada e voltar para minha cama, como se de lá não tivesse saído. Logo o criado veio me avisar do ocorrido: “Oh, Sr. Blake, uma tragédia com o Sr. Perkins... Ele caiu da escada e quebrou o pescoço! Que horror!”

Horror. O verdadeiro horror é o que sinto, toda vez que penso no que fiz. Contudo, somente com a morte de Heloise é que minha alma tornou-se realmente pesada. Não posso mais carregar nada, estou cansado de sentir tudo:

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ódio, vergonha, repulsa, desespero, amor... O último é o que mais me machuca, pois o tive por tão pouco tempo, que não consegui me acostumar a ele e a sensação é de que, mesmo com Heloise morta, nunca deixarei de senti-lo. E isso é mais angustiante que pensar em centenas de livros me observando.

Por isso, tomei a decisão de dar um fim aos meus dias. A caixa que Heloise trouxe está ali, atirada a um canto. Eles estão lá dentro, os livros que tanto me causam pavor. Ia queimá-los, mas agora tenho a certeza de que será com eles que alcançarei meu objetivo. Eu os tocarei, lerei o que está escrito em suas páginas, sentindo meu coração acelerar, até que, em estado de choque, ele pare de pulsar. Arranharei minha pele em desespero, tentando tirar de mim o odor deixado por suas páginas asquerosas. Não me importa quantos dias levarei em minha agonia. Quero uma morte lenta, ao lado de Heloise. Não beberei, não comerei, até que minha vista escureça por completo. Tenho certeza de que, somente me rendendo ao que mais me causa pavor, conseguirei a expiação de todos os atos vis que pratiquei.

Nesta última linha peço perdão, pela minha fraqueza e pelos meus crimes.

New Chelsea, 31 de março de 1894.

Phillip Matthew Trevors

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PASSEIO DE BARCO4 A FUNDURA DO RIO É TANTA que ninguém ia achar o corpo dele. Ia ficar lá embaixo, ia ser comido pelos peixes, pelas piranhas... Ou será que o boto salvava? Se é filho dele, salvava...

— Pai, não quis trazer a mãe por quê? — Tua mãe tem medo desse barquinho aqui. Sabe

disso. — E é. Eu também tenho, pai. Pai, pai. Chega dessa palavra, Justino. Não sou seu pai. O

famigerado do boto que é. Tua mãe foi capaz de aprontar isso comigo, agora eu tenho certeza. Vê se esses olhos verdes que tu tem iam ser meus. E essa pele clarinha aí. Eu tava cego. Mas agora não tô mais.

— Senhor não tá levando nada pra vender hoje, a gente vai fazer o que na cidade?

— Vou te levar pra conhecer um lugar. — Que lugar? — Espera que tu vai ver.

4 Esse conto foi publicado na internet também, mas demorou meses até que eu fizesse isso, pelo simples motivo de que ele me parecia uma história estranha. Para este livro, fiz alguns poucos acréscimos, com relação a detalhar um pouco mais o ambiente e as sensações da personagem que está narrando.

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Esse garoto é bonito, meu Deus. Esse olho parece que brilha. O rosto até parece feito da mesma coisa daquelas estátuas de anjo da igreja. Filho de boto pode ser anjo? Criança é tudo anjo... Acho que a alma dele vai ser levada pelos anjinhos antes de virar comida de peixe. Ele merece mesmo ir pro céu, não ficar do lado do pai verdadeiro, aquele malandro, e da mãe, que a essa hora já deve ter sido devorada pelo menos a metade. Ela sim, mereceu. Tenho culpa não. Era o que eu devia ter feito assim que vi a carinha do Justino nesse mundo. Que filho meu ele não podia ser, não podia mesmo. Eu que fui besta, pensando que era. Deixei o menino pensar que eu era o pai. Mas não vou ter coragem de contar pra ele não. O tinhoso do boto que conte. E é agora. Tem que ser aqui.

— Ué, pai, parou? Justino. Fui eu que dei o nome. Nome do meu finado pai.

Disse que esse menino ia ser tão bom quanto ele foi. Mas agora... — Que foi, pai? Viu alguma coisa? Sucuri? Ah, moleque, que tristeza que tô sentindo aqui no peito. Já

matei tanta gente, tanto bicho nessa vida... Agora vou fraquejar? — O que vai fazer com o facão, pai? — Quieto, Justino, faz favor. — Tá... Fui feliz de ser o pai desse menino. Vai ser um homem bom,

Deus há de ajudar. Ensinei pra ele que deve ser honesto, que não deve fazer como eu fiz, tanta coisa errada nessa vida. E eu tentei mudar, tentei seguir um caminho pra ser melhor. Mas já não tenho mais idade nem jeito pra isso. Eu sou apenas isso, um matador. Também um pescador, mas... É, o que eu mais sei fazer é matar. Só que eu nunca matei uma criança. Até hoje.

— Olha, pai! Parece um boto... Ele tá seguindo a

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gente, não tá? Diacho... E não é que tá mesmo? Diacho de criatura do

demônio! Acho que adivinhou o que eu queria fazer e veio atrás do filho... Deve tá só esperando eu jogar o menino na água pra ele tomar conta, o safado.

— Inferno! — Inferno por que, pai? Acho boto bonito, o senhor

não acha? Até já nadei junto com um... — Que é que tá me dizendo, moleque? — Vira e mexe aparece um, pra nadar comigo. Contei

pra mãe, ela falou que não tinha mal nenhum, se fosse de dia. Quer ajuda pra remar, pai? O senhor tá cansado...

Mais um pouco e a gente chega na margem, a salvo dessa criatura. Sumiu, mas eu aposto que tá seguindo a gente, só esperando. Não vou dar esse gosto pra esse tinhoso não. Justino vai é ficar longe dele.

— Chegamos! — Desce, Justino. E me promete uma coisa. — Fala, pai. — Fica longe do boto, faz favor. Essa criatura é do cão.

Nunca mais chega perto dele. — Tá, pai. — Promete, filho? — Prometo, pai. — E me promete outra coisa: se eu sumir, vai morar

com a Vó Inácia. — E a mãe? — A mãe não vai poder mais ficar com você. Depois

você vai entender. Tchau, filho.

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— Pra onde o senhor tá indo, pai? Vai me deixar aqui por quê?

Não respondo, senão é capaz de não conseguir segurar as lágrimas. Tristeza e alegria, é o que estou sentindo. Triste por não poder mais cuidar do moleque. Alegre por ter deixado ele seguir a vida dele. Agora eu vou me entender com o desgraçado. Pego meu facão, caio na água e só saio daqui depois de acabar com essa criatura lazarenta. Ou morto, se ele acabar comigo primeiro. É assim que tem que ser.

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LAÇOS ETERNOS5

MAURO APENAS OBSERVAVA AQUELA a quem ele conhecera ainda menina. Ele viu Helena se aproximar do caixão e olhar para o rosto cadavérico de Renata, serenamente deitada no esquife. Tinha a moça loira e esguia uma expressão tão calma que qualquer um teria certeza de que estava em prece pela defunta, o rosto enlevado, perdido em pensamentos. Aos poucos, saiu de seu estado de transe e, em poucos passos, sentou-se ao lado do viúvo, do outro lado do caixão.

— Nem parece estar morta! Ai, quem dera não estivesse! Sabes que estou sendo muito sincera, acreditas nisso, não acreditas? — sussurrou Helena para Mauro, que em silêncio fazia apenas um movimento de cabeça a quem lhe dava os pêsames. — Renata era uma mulher de tanta classe, como eu nunca tinha visto igual... Muito mais rica e com muito mais classe que Larissa. O Senhor a guarde em um bom lugar... Certamente a guardará. Assim como deve estar guardando sua primeira esposa... 5 Nesse conto inédito tento misturar um pouco o fantástico com o policial. Acredito que ainda preciso trabalhar mais nesse conto, que me trouxe certa sensação de estranheza, rs. Seria interessante saber as opiniões dos leitores. =)

Certa Estranheza contos de Bia Machado - 32 -

Mauro olhou friamente para a moça e por mais que ele se lembrasse dela como uma menina doce e calada, que muitas vezes não podia brincar na rua com ele por ter que ajudar a mãe com as costuras, não conseguiu deixar de sentir repulsa.

— Que estás dizendo, sua louca? Até parece que sentes algum remorso...

— E não sinto? Claro que sinto, meu querido, claro que sinto... Precisas definitivamente acreditar em mim. Digo-te isso todos os dias, todas as noites... E sei que um dia qualquer levarás minhas palavras a sério.

— Quantas vezes, Helena, quantas vezes terei que dizer que estou arrependido pelo que nos aconteceu? Se eu pudesse escolher...

— Terias escolhido a mim? A filha do leiteiro? E da costureira? Ora, sem hipocrisia, Maurinho, pois teu semblante me diz exatamente o contrário. O que querias, conseguiste! Dinheiro! Desfrutar do bom e do melhor! Esquecer da tua origem naquele cortiço fétido da Rua da Piedade, deixá-lo para trás!

Mauro suspirou fundo, um cansaço verdadeiro vindo à tona. Não aguentava mais aquela vida. Uma vida que ele mesmo buscara, que conquistara a um preço alto demais. Ao trabalhar no Cassino Imperador, na Urca, o que ele mais almejava era atrair os olhares das ricas e belas mulheres que frequentavam o lugar. Tinha um belo porte e os finos ternos emprestados davam-lhe um ar galante. Não demorou muito para que Larissa o notasse e se casasse com ele, apesar da origem humilde do rapaz.

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Havia apenas um impedimento: Helena. Ele a amava e ali estava o problema. Como poderia amar alguém que representava para ele a desgraça, a derrota, um empecilho a todos os sonhos que ele queria tornar reais? Helena tinha a beleza ofuscada pelos vestidos pobres, de segunda mão, aqueles doados pelas freguesas das costuras. Antes, tão bonitos, eram refeitos para que ela os pudesse usar ali, em meio à pobreza: detalhes mais finos eram retirados, golas e mangas de cetim davam lugar a um tecido que já tinha sido parte de uma saia ou uma blusa qualquer. Casariam e o que fariam? Continuariam a viver no cortiço, dessa vez no mesmo quarto, enquanto no quarto ao lado algum outro casal brigava, com um choro de criança ao fundo? Após algum tempo, seriam eles a brigar, por causa do orçamento apertado, da amargura, dos planos que nunca seriam realizados.

— Que mal fiz eu em querer uma vida melhor, Helena?

— Antigamente, eu era a tua Menina... — Disseste bem: antigamente. Antes de matar minhas

duas esposas, eras minha querida Menina, a mais linda da Piedade! Pálida e magra, mas bonita como uma manhã fresca...

— Depois do que me fizeste passar, como querias que eu agisse? Jamais deixarei que uma grã-fina fique entre nós, Mauro. Não peças isso a mim, que seria totalmente impossível. Não querias o dinheiro delas? Pois bem, agora o tens! E ainda tens a mim...

Mauro não pode deixar de rir, fazendo com que as

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pessoas presentes no velório pousassem o olhar nele. Silenciaram, porém, entendendo talvez aquilo como um reflexo de alguma lembrança do tempo em que tinha sido casado com a morta. Ou, talvez, estivesse realmente feliz e não conseguisse esconder? Renata Bastos de Alencar era uma mulher temperamental, geniosa, cheia de caprichos. O capricho maior tinha sido casar-se com ele, Mauro Baptista, sujeito sem eira e nem beira que tinha acabado de enviuvar de Larissa Magalhães, após uma união que não ultrapassara os dez meses.

— Bem sabes que eu nunca a mereci, Helena. Se fiz o que fiz, é porque não mereço nada de ti, nem mesmo tua devoção.

— Talvez. Mas estamos ligados por algo muito maior. E já te aviso: se casares de novo, não pensarei duas vezes em agir. Contente-se apenas comigo, querido. Sei que a morte de Larissa foi muito violenta, não consegui me controlar, mas já com Renata, garanto-lhe que ela não sentiu dor.

— Essas mulheres não te fizeram mal algum, entenda isso. Se queres punir alguém, que puna logo a mim.

Helena sorriu. Resolveu deixar a calma de lado e mostrar a Mauro que ela não era mais quem ele havia conhecido. Despiu-se do rosto que ele tão bem conhecia e voltou a ser a criatura em que ele a transformara: na pele, o lodo grudado, os cabelos molhados estavam ralos, sujos de lama. Ao falar novamente, ela exalava um odor fétido, como ele nunca tinha sentido antes.

— Vejas no que me transformaste, Mauro! Matou-me, para não fraquejar! Tinhas medo de que eu o fizesse desistir

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dos seus planos, não tinhas? Eu sinto muito frio, Mauro, muito frio! Tira o meu corpo do fundo daquele rio, por favor!

— Eu não posso! — gritou Mauro. — Eu queria muito poder fazer isso, mas não posso!

Cecília, uma amiga de Renata, aproximou-se dele, preocupada.

— Tudo bem, Mauro? Claro, não está nada bem, mas... Tente se acalmar... Todo mundo sabia que Renata exagerava em tudo, inclusive no álcool e isso não iria acabar bem. Que bom que você a fez feliz nos últimos meses de vida dela...

Helena riu. — Feliz? Não consegues nem fazer feliz a ti mesmo,

querido... E sabes por quê? Porque ao matar-me, mataste tua alma também... Até logo, querido, espero-te em casa... — e, dizendo aquilo, Helena levantou-se e foi-se embora, atravessando o corpo de Cecília e de outras pessoas presentes.

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PALÍNDROMOS6

MAIS HISTÓRIAS ODIÁVEIS PARA contar. Hannah estremeceu diante daquela visão demoníaca de seu padrasto com um livro de contos infantis nas mãos. —Oh, outro livro, Raymond? – perguntou a mãe dela. — Não acha que Hannah é um pouco crescida para ouvi-lo contar essas histórias na hora de dormir? Devia comprar algo mais apropriado a sua idade e deixar que ela mesma os lesse... — Eu prometi, não prometi? Disse que seria um ótimo pai, tal como o dela jamais seria. Ele nunca contou histórias como essa a você, não é mesmo, querida Hannah? Hannah balançou a cabeça, negando e engolindo em seco. Cafajeste. Apesar de não ter idade ainda para ser considerada adulta, Hannah já tinha suas formas femininas bem delineadas. E aquilo tinha sido seu grande tormento. Não se achava bonita, mas via como seu corpo era cobiçado. Não se importava com os olhares dos outros homens, o que lhe enojava eram os olhares dele, que fazia com que se sentisse suja, por dentro e por fora. E cúmplice, pois não 6 Gosto do clima sombrio desse conto. Escrevi para um desafio e foi muito comentado pelos participantes. Nesse, o enredo não se passa no Brasil, para variar um pouquinho.

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tinha coragem de contar seu martírio a ninguém, tinha vergonha, tinha medo. Em Faulkner, uma cidadezinha puritana ao extremo, o que fariam com a enteada que se deitava com o padrasto, ainda que sob as mais torturantes ameaças? “Você não contará a ninguém, é o nosso segredo. Aceite isso e aproveite nossos momentos, minha querida. Sua mãe é muito doente, não me serve como deveria. Se ela continuar assim, logo morrerá... E se você não “colaborar”, sua mãe pode morrer de repente. Sabe disso.” Detestava ser chamada de “querida” por ele. Só quem podia chamá-la assim era Patrick. Patrick, que era o oposto de Raymond, seu pai. Há três anos cresciam juntos, como irmãos. Mas não eram e sentia-se aliviada por isso porque o amava, como nunca pensou que seria possível. Era um amor verdadeiro e que sabia ser recíproco. Mas como ter alguma esperança? Patrick nem desconfiava que o próprio pai e ela, a enteada... Deus, se o rapaz imaginasse o que faziam, enquanto o pai dele contava histórias infantis em seu ouvido! Dias depois, assim que Raymond terminou a leitura do último livro que trouxera, ele a procurara. Não queria saber de nada, chegava arrancando-lhe as vestes e possuindo-a como um animal, enquanto sussurrava a inocente história, a infantil história, como se fosse um feitiço, como um encantamento ruim. Ela não queria ouvir a história de “Alice através do Espelho”. Se um dia conseguisse se livrar dele, nunca mais iria querer ler um conto-de-fadas. Jamais contaria essas histórias para seus filhos.

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Quando Raymond terminou, levantou-se e foi-se embora. Já tivera o que queria. Hannah ficou ali, deitada, soluçando e arquitetando os planos mais macabros que, quem sabe um dia, teria coragem de colocar em prática. Algum tempo depois, fracas batidas na porta. Era Patrick. — Está tudo bem, Hannah? Parece que você está chorando. — disse ele, encostado à porta, do lado de fora. — Está tudo bem, Pat... Não estou chorando, não se preocupe. Sim, ninguém deveria ser preocupar. E se engravidasse? Até nisso o padrasto tomava todos os cuidados. Perguntava-lhe quando tinham vindo suas regras e parecia procurá-la somente nos períodos em que não havia risco de que ela engravidasse. Certa vez, ficou desconfiado de que ela pudesse estar grávida. Trouxe algumas ervas, fez um chá e lhe deu para beber, fazendo com que Hannah tivesse cólicas terríveis e sangrasse por vários dias. Um dia ela teria filhos com alguém a quem realmente amasse? Seu padrasto jamais consentiria que se casasse e fosse embora, tinha certeza disso. Ainda mais se fosse com Patrick. Pensando nisso e na história que ele havia lhe contado naquela noite, começou a sentir-se sonolenta. Seria maravilhoso se ela pudesse fugir através de um espelho, para outro mundo, ficaria livre daquela vida. “Eu mataria Raymond com minhas próprias mãos, se tivesse coragem...”, pensou. — Eu o matarei para você, se quiser. A princípio, pensou ter ouvido a voz de Patrick. Mas era a sua própria voz que tinha dito aquilo. Não, ela não

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tinha pronunciado aquilo, tinha certeza. Ainda com os olhos fechados, ouviu novamente como que se fosse ela mesma falando: — Estou aqui, no espelho. Hannah levantou-se e olhou em direção ao grande espelho da penteadeira. Olhava para o seu reflexo, mas aquilo não parecia ser ela mesma. Não era a sua imagem. Mas era ela, como podia não ser? — O que... Foi você quem falou? Seu reflexo balançou a cabeça, afirmativamente, fazendo com que Hannah estremecesse. Sim, era o seu reflexo, mas estava diferente. Ela não tinha aquela pele esbranquiçada demais, como se nunca tivesse visto a luz do sol. Parecia um fantasma de si mesma dentro do espelho... — Sim, fui eu. — Mas eu não... Como pode estar falando comigo, se é o meu reflexo? — Falo com você simplesmente porque quero falar. Não é porque sou seu “reflexo”, como você diz, que não tenho vontade própria. Aliás, tenho uma vida própria, aqui desse lado. Como poderei explicar? Seria muito complicado e talvez você não entendesse. A Hannah do espelho contou-lhe um pouco sobre sua vida no “lado de dentro” do objeto. As coisas aconteciam ao contrário do modo como aconteciam fora dele. Dentro do espelho, Hannah tinha um pai e uma madrasta. Não havia o filho do padrasto, mas sim a filha da madrasta. A moça fumava e bebia, duas coisas que eram totalmente permitidas a qualquer um.

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— Você fuma? Eu nunca encostei um cigarro em minha boca... – disse Hannah. — Eu sei. Mas vontade não lhe falta, não adianta negar! Olhe aqui, vamos falar do que realmente interessa. Você quer se livrar desse maníaco, não quer? — Sim, eu quero. – Hannah afirmou para a imagem, continuando a achar que aquilo tudo era um delírio seu. — Mas como? — Com magia. Encontrei um livro com feitiços seculares. Agradeçamos a ele por nós duas estarmos conversando agora. E nesse livro há um feitiço que ensina a trocarmos de lugar. Eu iria para fora do espelho, enquanto você viria para cá. – Nas pausas entre uma frase e outra, a Hannah do espelho tragava o cigarro e soltava a fumaça bem lentamente. — Então nós vamos fazer uma troca? — Exatamente. E eu vou matá-lo. Hannah sentiu seu coração acelerar. “Eu vou matá-lo”, aquela afirmação ficou se repetindo e se repetindo em sua mente. Ela, Patrick, sua mãe... Todos se livrariam daquele monstro pervertido! Mas havia muitos pontos obscuros. — Como vai matá-lo? — Um punhal, cravado em seu coração. — E o que faremos com o corpo dele? — Eu o trarei comigo para dentro do espelho e o enterrarei aqui. Você volta para o lado de fora. Vão pensar que ele desapareceu. Jamais encontrarão o corpo dele. — Por que está fazendo isso tudo? Por que está

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disposta a me ajudar, depois de tanto tempo? A Hannah do espelho deu o último trago no cigarro e o jogou no chão, pisando em cima dele e soltando a fumaça, antes de responder. — Eu estou cansada de ver vocês dois fazendo tudo aquilo na cama. Estou mais cansada ainda de ver o seu sacrifício. Sei que gosta de Patrick e se Raymond não sumir, jamais haverá uma oportunidade com ele. Não gostaria de poder se entregar a Patrick, ser amada por ele? Hannah fechou os olhos, sentindo as lágrimas em seus olhos. Sonhava com aquilo todas as noites. Com Patrick, seria diferente. Ela seria amada, ele a trataria com toda a ternura do mundo... Foi imaginando o que seria perfeito que ela tomou a decisão de aceitar o que a Hannah do espelho se propunha a fazer. — Quando podemos fazer isso? – perguntou Hannah para o seu reflexo, que talvez não pudesse mais ser chamado daquela forma. — Amanhã à noite ele virá lhe “contar” o restante da história, não virá? Então será amanhã mesmo. Para que esperar mais? Já esperamos muito tempo. Preste atenção no que iremos fazer... A jovem do espelho explicou como o encantamento deveria ser feito. Hannah ouviu tudo atentamente e deitou-se em sua cama, para finalmente tentar dormir. Levantou-se algumas vezes e olhou para o espelho, mas o seu reflexo era apenas ela mesma, refletida. Nenhum sinal da “outra”. Durante o dia todo ela fez suas atividades normalmente, mas quieta, pensando em tudo o que tinha

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acontecido. E mais ainda, imaginando tudo o que aconteceria naquela noite. A noite da sua libertação. Não foi fácil sentar ao lado de Raymond para o café-da-manhã. Queria gargalhar na sua frente, xingá-lo, dizer: “Aproveite suas últimas horas de vida, seu monstro! Hoje você não vai terminar a história que começou!” — Por que está sorrindo assim, Hannah? – perguntou sua mãe naquele instante. — Deve estar se lembrando da história de ontem, Marion. Tenho certeza de que ela está gostando muito de “Alice através do espelho”. O final dela será ainda melhor... Hannah saiu correndo da mesa e foi para o quintal. Era apenas uma questão de tempo, era o que dizia para si mesma. Em algumas horas, ele não estaria mais ali. Era uma pena que ela mesma não o mataria. Ou mataria? A outra não era o seu reflexo, sua imagem? Ela iria assistir a tudo, de dentro do espelho. Finalmente deixou que a gargalhada saísse, alta, forte. Olhou para a casa e viu Patrick sentado na varanda, olhando-a sem entender nada. Em alguns minutos ele sairia para trabalhar e somente à noite regressaria. “Amanhã não haverá ninguém entre nós, Pat.” Hannah não conseguiu se lembrar sequer qual era o seu jantar. Só pensava na faca que levara para o quarto e escondera debaixo do travesseiro. Pensava em subir logo para lá e fazer tudo o que estava planejado. Raymond só chegou quando todos já tinham jantado. “Deve ter ido para a farra com as garotas da Rua Kensington”, pensou Hannah. Olhou para sua mãe e viu o

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sofrimento estampado em seu rosto. Ela sabia o que ele fazia fora de casa. Era uma pena que nem imaginasse o que acontecia debaixo de seu próprio teto. — Amanhã é minha folga. Vamos dar um passeio à tarde? – perguntou Pat. — Adorarei, Patrick... – Hannah respondeu baixinho, para que Raymond não ouvisse. O rapaz sorriu e subiu para o seu quarto, precisava estudar para os exames do colégio. Raymond queria que ele fosse doutor, estudado, como ele mesmo não conseguira ser. Com um pouco mais de esforço, iria para a Universidade no começo do ano que vem. Por isso usava todo o tempo que tinha livre para estudar e fazer suas leituras. Hannah entrou em seu quarto e ficou no meio do cômodo, a esperar pela manifestação da outra, que tinha pedido para que ela ficasse de olhos fechados, até que ouvisse sua voz. Depois de alguns minutos ela chegou, finalmente. — Estou aqui. Rápido, vista sua camisola. E faça o que lhe pedi. Hannah colocou a camisola, arrumou a cama como se fosse se deitar e mais uma vez verificou a faca debaixo do travesseiro. Era pequena, mas muito afiada. Foi com ela que fez o pequeno corte em seu dedo anular da mão esquerda, o suficiente para que um pouco de sangue saísse e começasse a escorrer. — Venha logo, daqui a pouco ele estará aí. Hannah correu para o espelho, tocando-o com sua mão esquerda, onde estava o ferimento. A jovem do espelho

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fez o mesmo, com a mão direita, também ferida. Uniram as palmas de suas mãos, enquanto proferiam o encantamento. Eram algumas poucas palavras, desconexas para Hannah, que deviam ser ditas enquanto uma olhava para a outra, fixamente e só deveriam piscar ao final. Quando finalmente piscaram, o quarto inteiro girou. Hannah sentiu-se sendo transportada para dentro do espelho. Durante a passagem, viu o corpo da Hannah do espelho sendo também transportado para fora. Por um instante, elas se tocaram. No quarto de dentro do espelho, Hannah podia observar seu quarto do lado de fora e a outra Hannah a lhe sorrir. — Está tudo dando certo! – disse ela. Hannah assentiu, de dentro do espelho. Começou a reparar no quarto em que estava. Móveis muito velhos, como se tivessem décadas de mau uso. Ali havia muita poeira também. O aspecto do cômodo não era bom, como a outra conseguia viver ali, em meio àquela sujeira? — Está estranhando a sujeira, Hannah? Não se preocupe. Não é tão ruim se comparado a... A porta do quarto abriu e Raymond entrou. De dentro do espelho, Hannah prendeu a respiração, mal podendo esperar pelo que aconteceria. Queria ver tudo, queria vê-lo morrer. No entanto, algo não estava certo como haviam combinado. Viu a imagem dela, agora fora do espelho, despir-se da camisola e ficar nua em frente a Raymond, que espantado perguntou:

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— O que aconteceu? Você nunca agiu assim... — Não gostou da surpresa? – perguntou a outra Hannah, desafiadora. — É claro que gostei. Só estranhei. Você nunca me pareceu que um dia agiria dessa forma. — Venha, Raymond. Deixe-me mostrar o que aprendi com você durante esses anos. Hoje sou eu quem lhe contará uma história! De dentro do espelho, Hannah assistiu a tudo, horrorizada. A outra estava se divertindo com Raymond, tendo prazer com ele, fazendo coisas que ela jamais tinha imaginado serem possíveis, comportando-se como uma devassa. — Não! – gritou Hannah, presa dentro daquele quarto imundo, enquanto a outra divertia-se do lado de fora e às vezes olhava para o espelho, rindo do terror que via na face da jovem aprisionada. Depois do ato consumado, Raymond ainda ficou um tempo dentro do quarto. Nunca tinha ficado assim, sempre ia embora logo depois. Mas aquela tinha sido uma noite perfeita, pois a jovem tinha decidido colaborar. Estava orgulhoso de si mesmo, Hannah parecia ter aprendido tudo direitinho. Apenas tinha achado sua palidez mais acentuada, estaria ela doente? Finalmente foi embora, para não correr o risco de ninguém perceber. A outra colocou a camisola calmamente e afinal aproximou-se do espelho. — Você não precisa ficar olhando tudo o que faço aqui, Hannah. – disse o nome dela em tom irônico. – Pode

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quebrá-lo e nunca mais verá o seu padrasto. Não era o que queria, livrar-se dele? — Você me enganou! Você queria sair daqui e me usou! Por favor... Eu quero voltar! – gritou Hannah. — Pode esquecer, querida Hannah. Agora o seu lugar é aí dentro. Assim como o meu mundo agora é esse aqui, me divertindo com Raymond... E com Patrick. Hannah arregalou os olhos. O que Patrick tinha a ver com aquilo tudo? — Patrick agora é meu. Vou mostrar a ele o quanto eu o desejo. Pensa que sou tola de ficar esperando, como você? Não sou de me conformar. Jamais aceitaria ficar aí, nesse mundo, cercada de seres nojentos. Tenho pena de você, não pense que não tenho. Os homens desse mundo são horrendos, fétidos e o pior, pensam que as mulheres são apenas objetos. Eles as usam para qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo. Bendita a hora em que encontrei o livro com os encantamentos para fazer a passagem. — Não faça isso! — E sinto dizer-lhe, mas... O livro está aqui comigo. Trouxe-o justamente para não correr risco nenhum. Desculpe, eu precisava me certificar de que não correrei risco nenhum de voltar para esse inferno... Ouviu batidas na porta e a voz de Patrick. — Hannah, ainda está acordada? Posso entrar? — Sim, estou acordada. Pode entrar, Pat. – disse ela, olhando fixamente para Hannah, enquanto dizia aquelas palavras em um tom sereno, que a aterrorizou ainda mais. Patrick entrou e admirou Hannah, vestida apenas

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com a camisola. — Oh, Patrick... – a outra o abraçou e o beijou, tomando o rapaz de surpresa. Que estranha era Hannah! Sempre fugindo dele e, no entanto, agora estava em seus braços, beijando-o com urgência. – Não quero mais esperar, Pat... Sei que você também não... Não resista, por favor! Colocou-o na cama, deitado de uma forma em que pudesse beijá-lo enquanto olhava para Hannah no espelho. Quando ela tirou a camisola novamente, Hannah gritou. — Não! – Sem pensar, esmurrou o espelho com tanta força que ele se partiu, transformando-se em cacos. Agora não poderia nunca mais ver Patrick. E ele não sentiria a falta dela, nem saberia que não era ela que estava ali, beijando-o. Tentou sair do quarto, mas estava trancada ali dentro. Procurava por uma chave, quando ouviu grunhidos do lado de fora e alguém abrindo a porta. — Estúpida, o que aprontou dessa vez? Quebrou o espelho? Vai limpar tudo, ouviu! Quem disse aquelas palavras era o ser mais horrendo que ela já tinha visto. Era um homem, provavelmente o pai da outra. Não tinha cabelos e seus dentes eram podres. A pele era mais branca ainda e havia bolhas em seu rosto e também nas mãos. Hannah estremeceu. — Quero isso tudo limpo, antes de eu voltar aqui. Tenho que terminar de contar aquela história, está lembrada? Limpe isso ou ficará sem cigarros! E já me espere sem a camisola. Poupe meu tempo. Saiu do quarto e trancou a porta novamente. Não podia ser verdade, aquilo era um pesadelo! Como poderia

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sobreviver àquilo, ficar ali para sempre? Hannah deu-se conta de que não havia como escapar. Resignada, tentou entender o porquê daquilo tudo. Será que ela não merecia Patrick, não merecia ter filhos como um dia sonhara? Era assim que terminaria seus dias? “Não, não vai ser assim, não vai!” Olhou para os cacos do espelho. O espelho, sua única saída dali. “Única saída”, disse a si mesma, enquanto fazia um corte em seu pulso. E mais um corte, e mais outros, só pararia quando não houvesse mais lugar para cortar. “E assim ela viveu feliz para sempre”, foi a última coisa em que pensou.

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LÁ, NO FIM DO MUNDO, DEPOIS DO PÔR-DO-SOL7

JÁ ESTAVAM OS SEIS REUNIDOS no bar quando o sol começou a se por. Em silêncio, quase todos bebiam, por conta da casa. Clarêncio, o dono do local, secava algumas canecas e as enfileirava sobre a bandeja que havia no balcão. Por que fazia aquilo, nem ele mesmo sabia. E se, dali a instantes, ele... Não, não pensaria no pior.

Lá fora, apenas o assobio do vento. Em uma noite como aquela, ninguém saía de casa. Os poucos que sobravam por ali ainda se escondiam em seus lares, nos celeiros, ou até mesmo nos currais. Onde quer que fosse, queriam estar longe da mira de Enrico quando ele chegasse. E a única certeza é de que ele chegaria e, mais uma vez, cumpriria sua promessa.

Os seis homens que esperavam no bar bem queriam poder estar longe também. Mas não adiantava. Não havia escapatória. Carlos tinha tentado fugir à sina. Fora para um povoado distante e Enrico o encontrara, trazendo-o de volta, arrastando-o pelas estradas, fazendo sangrar-lhe a carne. 7 Primeiro conto de faroeste que escrevo. Com um toque fantástico, claro! Não dizer onde se passa a história foi de propósito, hehehe...

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Trouxera o corpo dilacerado para expor na praça e, se pudesse, gritaria: “Não fujam de mim! Não entendem que estão condenados?” Depois disso, montou em seu cavalo e arrastou novamente o corpo de Carlos consigo, desta vez para onde ninguém até hoje sabe, assim como ninguém nunca soube dos outros corpos.

Depois de sete mortos, àqueles seis somente restava aguardar, esperar pela próxima noite de lua cheia, quando ele retornaria, depois do pôr-do-sol.

— Que ele venha logo e acabe com tudo de uma vez. — pediu Frederico. — Se não há como fugir, que ele faça logo o que tem que fazer.

—Eu só tenho dezenove anos. É certo que seja eu o escolhido desta vez? — Raul parecia ter menos idade ainda ao dizer aquelas palavras. Se pudessem saber o que se passava pela mente do rapaz, veriam que ele só pensava na família que já não tinha. Pai, mãe, irmãos, todos já mortos, vítimas de Enrico. Não tinha sido justo então o motivo para ele ir atrás do pistoleiro, junto com os outros doze, naquele dia quente de janeiro?

— Tanto faz quem ele escolher. Todos nós aqui já estamos mortos mesmo. Morremos no dia em que trouxemos Enrico para entregá-lo ao delegado. Todo mundo sabia dos riscos. Só que a gente queria justiça, não queria?

Jamil parou de beber e tragou mais uma vez o cigarro. Perdera a conta de quantos já acendera. Ficou pensando nas palavras que ele acabara de dizer. Sim, ele mesmo sabia de todos os riscos. Enrico tinha centenas de mortes nas costas, era a verdadeira face do demônio. Tinha sido Jamil o

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primeiro a desferir o soco no rosto do bandido, que após a agressão ficou a encará-lo friamente. Estaria, quem sabe, fazendo a si mesmo a promessa de que daria um fim naquele que ousara encostar-lhe a mão?

—Eu podia meter uma bala na cabeça. Não deixarei que ele me mate. — ameaçou Euzébio, já colocando a mão no coldre.

— E dar essa vitória a ele? Largue isso e beba, enquanto ele não chega. — Raimundo não queria que os outros percebessem que ele mesmo já sentira vontade, diversas vezes, de acabar com a própria vida. Que ninguém soubesse que já fraquejara em pensamento, não uma vez, nem duas.

Todos pareceram aquietar ao mesmo tempo. Ninguém respondeu, nenhum lamento mais foi confessado. Já passava da hora de Enrico aparecer, todos sabiam o momento exato em que ele costumava entrar no vilarejo. E foi quando o vento assobiou, como uma alma perdida chorando no inferno, que eles pressentiram que o demônio enfim retornara.

Estremeceram com o frio cortante que de um momento para o outro lhes invadiu o corpo. Lá fora, era como se as almas tristes estivessem à solta, em uma comitiva que acompanhava o assassino, observando-lhe os passos. Não precisavam sair do bar para saberem que Enrico trazia com ele as almas de outros foras-da-lei, como se estivessem a seguir um líder. Queriam observar o espetáculo, ver o sanguinário pistoleiro cumprir mais uma parte da promessa.

Dentro do bar, Clemêncio se arrependia por não ir à

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missa já há um bom tempo. “Devia ter ido, devia ter perdido perdão ao Pai... Devia ter implorado por misericórdia”, era o que dizia a si mesmo.

Ao ouvir a primeira gargalhada do pistoleiro, Raul fez o sinal da cruz, rezando tal qual a mãe lhe ensinara quando criança. Queria um dia reencontrar a família, mas não daquele jeito, não pelas mãos fétidas de Enrico. “Rogai por nós, pecadores... Rogai por nós, pecadores...” E então ele era um pecador, por ter condenado um homem à morte? Tinha sido ele a condenar alguém à morte? “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora... de nossa... morte...”

Quando Enrico entrou no salão, todos olharam para ele. O assassino tinha um cigarro caído, entre o que restava dos lábios, que parecia não estar aceso. No lugar dos olhos, apenas buracos, negros, sem vida. Ele sabia, porém, onde pisar. E foram exatamente sete passos dados (contados pelos condenados) que o fizeram se aproximar daquele a quem a sorte tinha abandonado naquela noite.

Enrico apontou o dedo para Raimundo. Com toda a revolta por ser o escolhido, o único barbeiro da localidade sacou sua arma e a descarregou no fantasma que ousava querer levar sua alma. Sem se incomodar com os tiros, que lhe atravessaram o "corpo" e ficaram cravados na parede atrás de si, o assassino ainda gargalhou mais uma vez, antes de agarrar Raimundo pelo colarinho como se fosse um travesseiro, de tão leve. Raul também apontou sua arma para o demônio e a descarregou, mais por raiva. Devia ter feito isso quando Enrico estava vivo.

Os outros nada fizeram, a não ser lamentar. Lamentar

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o dia em que tinham montado um grupo de homens destemidos, treze bravos homens, para caçar Enrico Fermiano, aquele que vendera barato demais sua alma ao diabo. Lamentaram, também, terem assistido ao enforcamento, pois ouviram de sua boca a promessa: "Eu volto, volto do inferno, para acertar as contas com cada um de vocês!"

Como Raimundo gritou! Enquanto era arrastado para fora do bar, gritava por misericórdia, sentindo a mão gelada a lhe segurar a camisa. Lá fora, foi preso ao fantasmagórico cavalo branco de Enrico. E enquanto era arrastado pelo galope ligeiro da criatura, tudo o que algumas pessoas que tiveram a coragem de observar por trás de cortinas podiam ver era Raimundo ser arrastado por uma força que, se não conseguiam enxergar, tinham a certeza: era Enrico Fermiano, o arauto do demônio.

Dentro do bar, agora, apenas cinco. Não disseram uma palavra enquanto os gritos do companheiro podiam ser ouvidos. E mesmo ainda quando o silêncio se fez retumbante, não tiveram coragem de falar nada. Como das outras vezes, provavelmente passariam a noite ali. Esperando o nascer do sol, na certeza de que a noite finalmente tinha terminado. Cada um apenas com seus próprios pensamentos.

Raul pensava que o encontro com a família tinha sido adiado, mais uma vez. Estava aliviado por isso e, por esse motivo, se sentia também culpado. "Mas eu logo vou estar no lugar de Raimundo".

Euzébio agora tinha certeza: assim que saísse do bar,

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daria um fim ele mesmo à sua vida. Não passaria por aquilo novamente. Se tivesse que enfrentar Enrico, queria fazê-lo tão morto quanto ele, em pé de igualdade.

Frederico pensava nos sonhos que tinha desde antes do primeiro dos treze ser morto. Sonhos premonitórios? Talvez, mas eram sonhos de esperança, ao menos para ele. Neles, Frederico se via no funeral dos doze amigos. Fazendo uma prece, diante das doze covas, antes de colocar o chapéu na cabeça e sumir dali. Sua mãe, quando viva, tinha sonhos estranhos que se tornavam realidade. Teria ele o mesmo dom? A cada pôr-do-sol ele pedia aos Céus para que sim, que aquilo fosse possível.

Jamil terminou de fumar o último cigarro que tinha e prometeu a si mesmo que não haveria a próxima tragada. Se continuasse assim, fumando sem controle, seria mais fácil morrer por causa da nicotina do que pelas mãos de Enrico.

Clarêncio finalmente sentou-se no piso, recostado ao balcão. As pernas dobradas, braços encobrindo a cabeça, respirava aliviado. Aliviado por saber que poderia voltar ao vilarejo vizinho, para que todos vissem que ele ainda estava vivo. As apostas tinham sido altas e Clarêncio era um dos mais lembrados sobre quem seria levado por Enrico naquela noite.

Ele não resistira às apostas também. Tinha jogado uma grana alta em Raimundo. Agora pensava no que fazer com o dinheiro que receberia, precisava gastá-lo logo. Antes da próxima lua cheia.

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JACK BARBAZUL8

ERA UMA VEZ, há muito tempo, quando o Brasil ainda tinha um Imperador, um casal de prósperos fazendeiros. Eles tinham quatro filhos: uma menina e três meninos. A menina, a mais velha dos quatro filhos, era muito feia. Os pais tentavam ver em Cláudia algo que pudessem enaltecer, mas era difícil: o ralo cabelo de um louro pálido, a pele marcada por inúmeras verrugas, os dentes tortos, que apodreceram muito antes do esperado, além da triste sina de mancar da perna esquerda, faziam com que a tentativa não tivesse muito sucesso. A menina cresceu, ciente de sua feiúra, pois ninguém a deixava esquecer-se disso.

Quando Cláudia já tinha completado quinze anos, Dona Maria engravidou pela quinta vez, meses depois dando à luz a uma linda menina. “Essa será diferente! Posso ver sua beleza desde agora!”, dizia para si mesma, comparando as duas filhas. Ao pensar naquilo, viu surgir diante de si uma mulher que proferiu as seguintes palavras: 8 Para esse desafio, eu tinha que escrever uma versão macabra de um conto-de-fadas. E esse tipo de texto já é macabro em si, de certa forma. Em tempos remotos, histórias como essa não eram nada infantis. Acabei optando pela história do Barbazul, que sempre me causou incômodo, só de imaginar a situação...

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— Sou a Fada Madrinha de sua filha que acabou de nascer! Ouça bem meus conselhos, para que a pequena tenha uma vida feliz!

E aproximando-se do bercinho da menina falou, diante de Dona Maria:

— Será a perfeição em forma de pessoa. Mas preste bem atenção ao que vou dizer: para ser feliz ela deverá se casar com o homem mais estranho que já viu em sua vida, um estrangeiro que virá de muito longe, de além mar! Este homem sim, saberá valorizar sua beleza. Não precisará procurar por ele, pois ele baterá à vossa porta!

Com o passar dos anos, as palavras maternas e as da Fada se materializaram: Rosália era a moça mais linda que qualquer pessoa já tinha visto. Os cabelos loiros da cor do trigo, os olhos azuis da cor do céu, a pele alva e perfeita, o sorriso capaz de emocionar, as mãos delicadas, a voz melodiosa como o canto dos pássaros! Não havia como não comparar: como Cláudia e Rosália podiam ser irmãs? Como?

Faltava agora aparecer o tal homem estranho... Intimamente, Dona Maria não desejava um casamento daqueles para Rosália, queria-a casada com um bom moço, tão belo quanto ela. Por outro lado, tinha medo de que a filha não fosse feliz.

Os três filhos homens do casal já tinham formado suas famílias e ido morar em suas próprias fazendas quando Seu Félix faleceu de um ataque do coração. A mãe ficou só com as duas filhas na propriedade da família. Ela não se importava muito com o que Cláudia fazia com o seu tempo livre. A filha mais velha costumava passar algumas noites

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em um orfanato onde era voluntária, cuidando das crianças e Dona Maria não se incomodava. Ia e voltava sozinha, em uma carruagem. Esse deveria ser o destino de Cláudia, pensava Dona Maria: viver para a caridade, pois certamente não se casaria. O tempo em que não estava no orfanato, Cláudia devotava-o todo a Rosália, era tal qual um anjo-da-guarda, uma companheira para todos os momentos.

Um dia, estavam Dona Maria e Rosália sentadas debaixo do alpendre da casa, bordando, quando viram um homem estranho se aproximar, tão estranho que até possuía uma barba azul! Ele desceu de seu cavalo, fez uma reverência e começou a falar:

— Boa tarde! Chamo-me Jack Barbazul Knife e venho de longe, dos Estados Unidos da América, porém sou filho de brasileiros. Moro no país há dez anos e mudei-me para esta vila recentemente. Para minha alegria, descobri que é aqui que mora a única mulher nesse mundo que há de me fazer feliz!

Rosália e Dona Maria estremeceram. A primeira, porque não tinha gostado nem um pouco do jeito daquele homem: grande, com cabelos pretos ensebados, presos na nuca, além de uma barbicha azul reluzente. Não, ele não se parecia em nada com o príncipe que sonhara para si! A segunda, porque teve a certeza de que era aquele homem o tal estranho que a Fada tinha mencionado. E que criatura estranha! Além da feiúra, o desgraçado fedia!

— O que desejas aqui, Sr. Barbazul? — Desejo pedir a mão de vossa filha mais nova em

casamento! Amo-a, desde que a vi sair da igreja, na missa de

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domingo. — Não, mamãe, não! - suplicou Rosália, gritando. -

Eu não quero me casar com esse homem! Dona Maria começou a chorar. Estava dividida, mas a

Fada dissera... — Dar-te-ei a resposta em três dias, precisarei pensar.

- pediu a senhora, tristemente. — Eu retornarei, com a certeza de que meu pedido

será aceito! Sou um homem riquíssimo, capaz de realizar todos os desejos daquela a quem eu desposar!

E foi-se embora, deixando Rosália em prantos, nos braços da mãe. Quando Cláudia retornou, ao cair da tarde, a mãe contou tudo à filha mais velha. Também contou sobre a aparição da Fada Madrinha e do que havia profetizado, algo que não havia contado a ninguém até então. Cláudia parecia encantada com o fato da irmã mais moça ter uma Fada Madrinha. Ela, pelo visto, não tivera a mesma regalia!

— Se o destino de Rosália deve ser esse, minha mãe, de minha parte prometo-te que, se quiseres, poderei ir viver com Rosália quando ela se casar! Serei tal qual uma guardiã, protegendo-a! Deixarei até mesmo minhas atividades no orfanato para estar com ela todo o tempo! - assegurou Cláudia à mãe.

A mãe tranquilizou-se um pouco mais e, no dia combinado, lá estava Jack Barbazul Knife de volta à fazenda dos Torres de Medeiros. As três mulheres o aguardavam no alpendre.

— Concedo-te a mão de Rosália, minha filha mais nova, porém com a condição de que minha filha mais velha,

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Cláudia, acompanhe-a quando forem morar em tua casa. — Muito justo. Aceito a condição! Obrigado, Senhora,

farei de sua filha a mais amada entre as mulheres! Adianto que não desejo esperar muito tempo. Farei correr os proclamas imediatamente.

Jack partiu rápido, para providenciar tudo o que fosse necessário à união com Rosália. Cláudia consolou a irmã, dizendo que o tal Jack certamente haveria de ter qualidades que compensariam aquela aparência.

— Acalma-te, irmã... Para tudo dá-se um jeito. Se ele te ama, com certeza fará o que pedires! Aquele fedor sairá com banhos aromáticos, aposto. Algo poderá ser feito também para retirar aquele sebo do cabelo... Se ele cortar a barbicha sempre, quem dirá que ela é azul? Ele não parece ser como eu, no meu caso não há remédio, sou feia e assim morrerei!

— Cláudia, tens razão... Se for esse o meu destino, tentarei cumpri-lo, fazendo o que me sugeriste... Mas não sejas tão dura contigo mesma! Se não tens a beleza exterior, certamente és bela no amor que devotas aos entes a quem deseja o bem! Estou feliz de tê-la ao meu lado!

Enfim, em poucos dias casaram-se. Não houve uma grande festa, Jack levou as duas irmãs para sua fazenda e a vida de Rosália como Senhora Barbazul Knife começou, sem o povo entender como uma mãe tivera a coragem de dar a própria filha em casamento a um homem como aquele.

— Nem mesmo é católico! Passa longe da porta da igreja! Quem sabe não foi uma promessa desesperada? Viram como escarrava quando a carruagem deles passou

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por aqui? - comentavam os moradores. Meses depois a vila, antes tão calma, tornou-se

agitada com as notícias que chegavam da capital da província. Crimes horrendos começaram a acontecer, sem nenhuma explicação. Durante seis noites de lua cheia, separadas por um intervalo de poucos dias, seis cortesãs foram brutalmente assassinadas em São Paulo: todas evisceradas, os úteros arrancados e, o pior, todas degoladas, sem que nenhuma das seis cabeças tivesse sido encontrada. A notícia de que um assassino de cortesãs agia em São Paulo deixou o povo daquela vila amedrontado: estariam seguros ali, separados por apenas uma hora de viagem da capital?

— Ao menos sabemos que ele ataca somente cortesãs, as moças de família estão a salvo!- foi o comentário feito por um moralista.

Rosália passava muito tempo sozinha com a irmã, pois o marido tinha negócios a tratar em outras cidades. Rosália não entendia o porquê, depois de pouco mais de dois meses, do marido não demonstrar a mínima intenção em consumar o casamento. Até fazia questão de que dormissem em aposentos separados. Como ela não tinha conseguido ainda fazer com que Jack Barbazul modificasse seus hábitos de higiene, Rosália não reclamava daquela condição. Ainda mantinha a pureza virginal, para sua felicidade. Jack era bem mais velho que ela, ele poderia morrer... E ela estaria livre! Uma ideia passou a ocupar sua mente todo dia, sempre que o via fazer uma refeição: ele comia como um porco! E se o envenenasse, lentamente? Já não tinha cumprido a vontade da mãe e da Fada Madrinha?

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Só não sabia como faria aquilo, pois Cláudia a vigiava em todos os momentos, salvo quando estava dormindo. Se saísse na calada da noite, talvez conseguisse encontrar algum veneno! Talvez uma das mucamas pudesse ajudá-la nesse sentido. Antes, porém, precisava estar muito segura de que não seria descoberta. Mucamas não lhe pareciam confiáveis. Deveria tentar então contar com Cláudia para o que planejava? Seria tão fiel a irmã, a ponto de ser sua cúmplice?

Uma das coisas que intrigava Rosália era uma sala que vivia sempre fechada e somente Jack Barbazul tinha a chave. Ele passava muito tempo ali, sozinho, sem deixar que ninguém entrasse nela além dele. Quando ele retornava de uma viagem, era para lá que se dirigia em primeiro lugar.

Iniciava-se o mês de março e Jack começou a se preparar para viajar novamente. Daquela vez, chamou Rosália para lhe fazer um pedido:

— Rosália, desta vez demorarei mais dias para voltar. Deverei ficar o mês todo fora. Aqui estão todas as chaves da casa, caso necessite abrir uma das portas. Peço-te, porém, que não use esta chave prateada. É a chave que abre minha sala particular, onde somente eu devo entrar, compreendes? Deixo as chaves contigo para que eu não corra o risco de perdê-las nessa longa temporada fora. Se resolveres desobedecer-me eu saberei, estejas certa! Adianto-te que, caso isso aconteça, tu e tua irmã serão severamente punidas, entendeste?

— Sim, senhor meu marido. - assentiu Rosália, abaixando a cabeça, em sinal de obediência. Jack Barbazul

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partiu, deixando as irmãs sozinhas com os criados. Conforme os dias passavam, a curiosidade de Rosália

só aumentava. Aquela porta fechada, misteriosa, fazia nascer em sua mente uma dúvida maior a cada dia: o que o feioso marido guardava ali, que somente ele podia ver? Já fazia mais de uma semana que Jack partira e ela não resistiu, por fim. Disse a si mesma que apenas abriria a porta, olharia para dentro, veria como era a sala e a fecharia novamente. Assim tentou fazer, porém quando abriu o cômodo, um vento gelado tal qual a morte pareceu escapar de lá, quase a fazendo desistir. Estava muito escuro e ela não conseguia enxergar nada. Pegando um candelabro com uma vela acesa entrou, prometendo a si que seria por apenas um minuto. Não mais que um rápido minuto.

Havia, nessa sala, apenas uma cadeira e uma mesa, muito comprida. Em cima da mesa, diversos apetrechos, cuja serventia Rosália desconhecia. Estranhos, pareciam objetos usados por médicos. Ao olhar para sua esquerda, viu a cortina que cobria quase toda a parede. Uma cortina vermelha. O que teria atrás dela? Um quadro muito valioso, talvez?

“Só mais alguns segundos”, pensou ela, afastando a cortina com cuidado. Porém, tão grande foi seu susto que, na tentativa de abafar seu grito, deixou o candelabro cair ao chão, fazendo com que um pequeno incêndio começasse. Rosália controlou as chamas, porém uma parte da cortina tinha ficado danificada, com as pontas enegrecidas.

— Senhor! Não pode ser verdade... Diante dela, em três prateleiras, estavam seis cabeças

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de mulheres, dispostas duas a duas. Todas com os olhos abertos, petrificados. Todas sorrindo, um sorriso que devia ter sido produzido por Jack, com as ferramentas estranhas. Todas sorriam exatamente igual!

Saiu correndo, nem pensando se tinha colocado a cortina no lugar. Agora não importava mais. Precisava sair dali o quanto antes. Avisaria Cláudia de sua descoberta e as duas iriam para a casa da mãe e depois, contariam às autoridades o que ela tinha visto.

Encontrou Cláudia lendo na biblioteca: — Minha irmã, precisamos sair daqui. Jack, ele... É ele

o assassino, o matador de cortesãs, o ladrão de cabeças femininas, ou sei lá como o chamam. É ele!

— O que dizes? Como... — Sim, Cláudia, é ele! Abri a tal sala misteriosa, com

a chave prateada. Estão lá, as seis cabeças... Ele faz algo com elas, tem muitos objetos lá dentro estranhos... E ele vai saber que o desobedeci, a cortina ficou chamuscada quando deixei a vela cair... Vamos sair daqui agora, não posso continuar nesse lugar. Vamos, por favor! — falava a moça, sem controle.

— Sim, claro que vamos... Vá ao meu quarto, pegue uma valise que tenho lá, dentro do armário. É mais cômodo para carregarmos apenas o necessário, não podemos usar os baús de seu quarto. Nem pensemos em roupa nenhuma agora. Onde está o molho de chaves? Dê-me para que eu possa verificar se tu fechaste mesmo a porta da sala...

— Sim, eu nem sei se a fechei... Cláudia, estou apavorada! Esse homem... Ainda bem que nós nunca...

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Nunca... - disse Rosália, em desespero, entregando as chaves à irmã.

Rosália foi ao quarto de Cláudia e abriu o armário, procurando pela valise. Foi sem demora que ouviu o barulho da porta se fechando atrás de si e sendo trancada por fora.

— Cláudia? Correu para tentar abri-la, mas estava mesmo

trancada. — Cláudia! Cláudia! Foste tu? Deixe-me sair! Ouviu a voz da irmã do lado de fora: — Eu deixarei que saias na hora certa. Não adianta

gritar, Rosália. Aguarda tua hora. Não adiantavam os gritos de Rosália. A janela tinha

tábuas presas com pregos, como ela conferiu, ao tentar encontrar uma saída. Do lado de fora, dois escravos de confiança montavam guarda. E nenhum dos outros ousaria contar a alguém que a esposa do “Barão” Knife tinha enlouquecido, sob pena de ir para o tronco. Rosália não teve outro destino a não ser esperar, sem entender a atitude da irmã.

Na madrugada de 17 de março, precisamente, Jack Barbazul retornou. A porta do quarto onde a esposa estava se abriu e ele entrou, junto com Cláudia. Ele trazia uma valise e, de dentro dela, tirou um facão afiado.

— Na verdade, Rosália, eu sabia que não conseguirias deixar a curiosidade de lado. Isso é um grande defeito das mulheres belas e sensíveis, como tu. Saibas, porém, que teu destino já estava traçado, desde o teu nascimento. Era teu

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destino servir em um lento e mágico ritual. A sétima mulher, a sétima a ser degolada. A sétima que, diferente das outras, deve ser virgem. O sangue da sétima, ao ser derramado por um varão, deve libertar a Rainha Anoli do mundo das almas errantes. E ela reinará de novo, no Reino de Aknon.

— Piedade, senhor meu marido... Piedade! - suplicou Rosália. Foi quando viu aparecer diante deles aquela que deveria ser a sua Fada Madrinha, pela descrição que a mãe lhe tinha feito. Sim, só podia ser ela, que tinha vindo ajudá-la naquele horripilante momento!

— Rosália, que bom vê-la! - disse a Fada. — Ajoelha-te diante da Rainha Anoli! - gritou

Cláudia, gargalhando. — Rainha Anoli? Mas ela é... - Rosália não conseguia

entender. — A tua Fada Madrinha? - perguntou a mulher,

gargalhando, enquanto se transformava completamente. Seus cabelos cresceram até o chão, tornando-se negros e volumosos. O vestido era negro, colado ao corpo, uma capa vermelha caía de seus ombros, tão vermelha quanto eram os seus olhos impiedosos. - Sinto que tenhas descoberto em péssima hora que não tens fada madrinha! Sinto que tenhas descoberto que tua irmã é uma das minhas mais fiéis servas, junto a teu marido, aquele que tomou para si a missão de me devolver ao meu reino! Até que viveste muito, Rosália. O suficiente para ser admirada. Agora, eu tenho milênios à minha frente para serem aproveitados, depois de milênios trancafiada em outra dimensão... Corte-lhe a garganta, agora! Já se passaram exatamente treze horas do eclipse

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anular solar! Jack cumpriu a ordem, separando a cabeça de Rosália

de seu corpo com apenas um golpe. A Rainha banhou-se no sangue da irmã de Cláudia, enquanto um tremor sacudia o local. Após alguns minutos, um portal de fogo se abriu, a passagem para Aknon, um dos reinos malditos das profundezas. Antes de partir, a Rainha fez um pedido:

— Deixo a cargo dos dois que consigam mais servos para adorarem a mim e ao Reino de Aknon, em algum lugar onde estejam a salvo. Quando tudo estiver pronto, voltarei para dar-vos novas ordens. Adeus!

E a Rainha atravessou o portal, desaparecendo e levando consigo o corpo de Rosália e as sete cabeças. Quando tudo se fechou, Jack e Cláudia se beijaram. Tinham cumprido a missão, iniciada há tanto tempo!

— Precisamos ir embora agora! Desaparecer! - disse Cláudia.

— Já pensei em tudo. Vamos partir, há um navio indo para a Inglaterra, saindo do porto daqui a dois dias. Deixaremos uma carta, dizendo que fomos embora nós três, como se tua irmã estivesse conosco.

— Inglaterra? A ideia é deveras interessante! “Interessante e esperta és tu, Cláudia”, era o que

pensava Jack Barbazul Knife naquele momento. Ela podia ser feia. O pescoço, porém, era lindo. O mais lindo que já vira na vida.

E assim, os dois viveram felizes, por um tempo. Um breve tempo, por sinal.

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PEQUENAS DÚVIDAS SOBRE LURDINHA (UMA VERSÃO NÃO MUITO CONFIÁVEL)9

DESDE QUE LURDINHA SE SUICIDARA, a pequena cidade de Santa Cruz não sabia mais o que era sossego. Ninguém conseguia se decidir: a alma da moça que tinha sido abandonada no altar e se enforcara com o próprio véu agora deveria ser considerada santa milagreira ou fantasma? Se eu não tivesse visto como tudo aconteceu, não teria acreditado. Convenhamos, o que vou contar é coisa de novela. Mas eu vi. Claro, qualquer um tem o direito de não acreditar, mas... Era uma dúvida cruel essa, como eu ia dizendo, começada há três meses quando Lurdinha, moça pura, prendada e bela, foi abandonada no altar por Adilson, que disse não poder fazer aquilo com ela por estar apaixonado por Lorena. Safado! Isso depois de cinco anos de namoro e dois de noivado... E logo com a Lorena, aquela menina de 9 Esse conto é uma versão com alguns detalhes a mais do original, publicado na coletânea “Contos de Todos Nós”, da Editora Hama, durante a Bienal do Rio de 2009. Como o título avisa, a versão não é muito confiável. Leiam e saibam o porquê.

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caráter duvidoso, que namorava um por mês (dizem até que era um por semana, isso sim!)... Lurdinha, coitada, não aguentou ver seu amado e a sem-vergonha (sim, ela tinha ido à cerimônia!) saírem da igreja juntos, correndo, para sumir da cidadezinha na moto dele. Foi para casa, entrou em seu quarto e deu fim à vida. E antes que digam que estou inventando coisas, afirmo: eu vi. Vi quando retiraram o corpo da moça de dentro da casa, coberto por um lençol. Até aí, infelizmente, nada de extraordinário. Afinal, é mais do que fato que muitas pessoas tiram a própria vida diariamente no planeta. Mas não para o povo de Santa Cruz. O caso era comentado, mesmo que com certo receio, pois não era sempre que acontecia alguma coisa de anormal naquela cidadezinha. Era até bom, ajudava a passar o tempo ali, naquele lugar esquecido de meu Deus, onde não havia teatro, cinema, poucas casas com aparelho de televisão e poucos carros na rua (praticamente só os dos vereadores e o do prefeito)... — Coitadinha, tão moça... Esperou tanto para o dia chegar e aí... Que pena de Lurdinha! – comentava um. — É uma pena mesmo, mas só ela e a família que não enxergavam a “boa” peça que era o Adilson! – comentava outro. — Se eu fosse ela, não tinha me matado, tinha era dado uma festa e convidado a cidade toda, para comemorar o fato de finalmente ter me livrado daquele indecente! Não sei como ela chegou pura ao dia do casamento... Isso é, será que ela chegou mesmo pura? Eu tenho minhas dúvidas! – comentava outro, com a língua mais afiada ainda.

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— Deixem quem morreu em paz! Vai que a alma dela ouve? Eu, hein! – disse alguém, mais ressabiado, fazendo o sinal da cruz. Como ia dizendo, a coisa complicou quando, depois de algum tempo, coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro foi o Adilson, que retornou. Quer dizer, o corpo dele... Ou melhor (ou será que eu deveria dizer “pior”?), as partes do corpo dele, em um caixão fechado, nem puderam abrir para velar... — Pobre Adilson – disseram as línguas mais falsas – Não merecia uma morte dessas... Ser feito em pedaços nos trilhos do metrô... — É por isso que eu não quero saber de ir morar em cidade grande! Metrô assassino! Concordo. Só de ver aquele povo todo entrando e saindo daquele bicho já me dá um desespero. Mas cá entre nós: foi bem merecido. Notícias de Lorena? Sim, todos souberam que estava presa. Era a assassina de Adilson: em uma violenta discussão entre os dois, a respeito de quem seria realmente a criança que ela trazia no ventre, a moça tinha empurrado o “pobre” rapaz para a morte. — Deus que me perdoe, mas tiveram o que mereciam! – gritou uma beata, no enterro do rapaz, para quem quisesse escutar. E não demorou nada para que logo surgisse o comentário: a causadora da tragédia tinha sido Lurdinha. Sim, a alma de Lurdinha, que não tivera descanso, que queria vingança, que vagou até encontrar as duas pessoas

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que haviam lhe causado a morte tão prematura. Principalmente depois que Lorena, na prisão, teve um ataque de loucura, gritando descontroladamente que “Lurdinha estava atrás dela”. Parece que até perdera o filho que estava esperando... E que, por sinal, não era de Adilson, pois tanto o rapaz quanto Lorena eram bem loiros, ao contrário do bebê morto, prematuramente, que... Bem, deixemos para lá esse triste detalhe! Foram apenas alguns comentários do povo de Santa Cruz... E quem começou a boataria? Já nem sei. Só tenho certeza de que não chamaria isso tudo de boataria. Não mesmo. Como se não bastasse o que já tinha acontecido, muitos dos parentes do desafortunado rapaz começaram a viver uma verdadeira história de terror! Era um tio que perdia o emprego, o pai que começou a sofrer de câncer, uma prima que desquitou, uma sobrinha que sofreu um sequestro relâmpago quando foi fazer a prova do vestibular na capital... Um caos, o pior! A mãe de Adilson, atormentada pelas conversas que ouvia, de que a culpa daquilo tudo era da alma de Lurdinha, foi cumprir penitência no túmulo da moça: todo dia ia lá, cuidava da lápide, fazia orações, pedia perdão de joelhos, da janela da sala aqui de casa eu conseguia ver tudo (bem, quase tudo...), dava até dó... Mas parecia que tudo isso não estava dando muito resultado não: o tio que perdeu o emprego foi preso por não pagar a pensão, o câncer do pai estava em estágio avançado e ele partiu dessa para melhor em menos de dois meses, a prima desquitada virou mulher da vida e a sobrinha passou no vestibular... Mas foi morar na

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favela, com o próprio sequestrador: segundo ela, era um homem de atitude. O que deixou o povo da cidade zonzo, mas zonzo mesmo foi o fato de que, enquanto essas coisas terríveis aconteciam, a alma da Lurdinha ganhava fama de milagreira também. De um dia para o outro, algumas moças totalmente encalhadas começaram a casar. E diziam que a grande ajuda para que isso acontecesse tinha sido a novena que rezaram para a defunta. Só que os rapazes que estavam noivos também contavam coisas estranhas: tinham tido pesadelos com o fantasma de Lurdinha, que surgia ameaçador. O Geraldinho veio se queixar comigo desses pesadelos. Falei para o coitado procurar a Riva benzedeira, ela havia de dar conta dessa situação.

Dias depois, lá veio o Geraldinho, desesperado. A reza da Riva tinha afastado a agonia durante uns dias. Depois, a coisa tinha piorado. Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos o rapaz, todo amofinado... Dava dó. Ah, se dava. Em pouco tempo, quase não tinha mais nenhuma moça noiva na cidade. E o túmulo de Lurdinha vivia repleto de flores, grinaldas, buquês, véus, tudo deixado lá pelas noivas agradecidas. Só que a situação não podia continuar daquele jeito. Afinal, a noiva suicida era um fantasma vingativo ou uma santa milagreira? O assunto não saía da roda de conversa das beatas: — Como é que pode uma santa que assombra? Nunca vi isso, valei-me!

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— Claro que é fantasma! E fantasma das mais perigosas, porque tenta se disfarçar de santa ainda por cima... — Coitadas dessas que ficam fazendo novena para Lurdinha! Com um casamento “facilitado” pela alma perdida da coitada, não duvido nada que a coisa não termine bem, podem escrever! A coisa chegou ao extremo quando, na data de um ano da morte da jovem, a mãe de Lurdinha, Dona Genoveva, resolveu fazer uma cerimônia no túmulo da moça, para ver se com isso dava um pouco de paz ao espírito da filha. Convidou as pessoas mais próximas, só que em cidade pequena como Santa Cruz não adiantava só chamar os mais próximos, pois a informação se espalhava tal qual rastilho de pólvora. Eu mesma, soube no mesmo dia, só porque fui ajudar as beatas nos preparativos da quermesse. E eu não ia faltar, é claro. E na data marcada estavam todos lá: a família, os vizinhos, as beatas, as moças casadas que tinham sido atendidas, a família do Adilson (ou o que tinha sobrado dela), eu... Dona Serafina, uma das mais beatas, antes que a coisa começasse, tratou logo de ver se resolvia a dúvida que pairava sobre a “fantasmice” ou “santice” da Lurdinha: — Acho que devíamos resolver isso logo, afinal essa situação está terrível, não há como acender uma vela a uma alma sem saber se ela é mesmo alma penada ou santa milagreira! E em minha opinião, ela é alma penada, sim, e das mais penadas que eu já vi! Acabou com a família do

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Adilson! — Velha linguaruda! – gritou a Clara, que estava abraçada ao marido, bem do meu lado. – Dobre a língua quando falar da Santa Lurdinha, graças a ela é que eu estou casada, depois de esperar quase oito anos pelo enrolado do Maneco! Não é, meu bem? — É... Mas se ela não tivesse me ameaçado no sonho, eu tinha esperado um pouco mais... A coisa está difícil, né, Clarinha? – confessou o rapaz, meio envergonhado. E começou o falatório. Todo mundo, matraqueando ao mesmo tempo, destacando os defeitos e as qualidades da noiva defunta. Até eu, que não sou de falar muito, dei meus palpites. Só não comento o que falei na época porque acho que não seria coisa de gente direita. E a Dona Genoveva, coitada? Chorando, só agradecia, por seu marido não estar vendo aquele quadro deprimente. Começou a pedir, em pensamento, pela alma da filha, pois ela não merecia aquilo tudo, ah, não merecia... Rogava para que tudo se esclarecesse logo. Não queria a filha nem como alma penada, nem como santa. Queria mais era que ela tivesse sossego. O que aconteceu e que acabou calando a boca do povo no cemitério foi algo inusitado, ninguém ali poderia esperar! O túmulo vizinho era o do finado compadre Sebastião, que em vida tinha sido justamente casado com a beata Serafina, a mesma que tinha começado o rebuliço no cemitério. Pois não é que o fantasma do próprio apareceu, mais bravo ainda do que costumava ser em vida? Todo mundo ficou paralisado ao ver a coisa do outro mundo, só a

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viúva do morto ainda conseguiu esboçar alguma reação: — Tiãozinho... E o Sebastião, gritando para quem quisesse ouvir: — Tinha que ser você, mulher, logo vi! Reconheci seus gritos lá das profundezas! Com essa mania de beatice, já passou da hora! Agora vai receber o que merece! Ao dizer isso, Tião apontou para a mulher e de sua mão todo mundo viu sair um raio que acertou Dona Serafina, fazendo com que caísse fulminada, tostada, em meio ao pessoal assombrado. O povo viu o fantasma fazer mais um movimento e, nisso, a alma da beata Serafina foi puxada de encontro a ele... — Já estou até arrependido, tudo estava tão tranquilo por lá... E vocês, parem com essa coisa toda! Vão procurar o que fazer, porque a Lurdinha acabou de pedir para avisar a todos que ela não tem nada a ver com nenhuma dessas histórias aí não, nem de fantasma e nem de santa! Ela só não vem aqui falar a vocês porque a garganta ainda está dolorida do enforcamento... E passem bem! – disse aquilo e foi-se embora, puxando a alma da mulher pela mão. Dona Genoveva agradeceu aos Céus por esse verdadeiro milagre. Não esperou mais nenhum segundo para tirar de cima do túmulo tudo que era objeto ofertado à filha... Os outros? Saíram todos correndo, com os cabelos em pé, do susto que levaram. Dizem que tem gente que está correndo até hoje... Bem, eu não corri... Afinal, essa história toda precisava de uma testemunha idônea, senão quem é que iria acreditar?

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LENGA-LA-LENGA10

QUANDO AQUELE VIZINHO se mudou para a casa vazia de nossa rua, eu e meus amigos pensamos que não era nada demais. Calado, entrava e saía sem nem mesmo dar bom dia, ou boa tarde... Mesmo assim, a gente reparava nele. Afinal, a casa estava vazia há muito tempo, nossas mães é que contavam cada coisa de arrepiar! Talvez agissem assim para nos afastar de lá, pois era um lugar que chamava a nossa atenção, que aguçava a nossa curiosidade infantil. Havia mais crianças na rua, mas nossa turminha era inseparável: Jonas, Claudinho, Rebeca, tinha o Dani também e eu, Beth, a menina mais nova. Eu tinha oito anos quando tudo aconteceu, Rebeca e Dani, nove. Jonas e Claudinho eram os mais velhos, com dez anos. Até hoje me pergunto se foi tudo um pesadelo. Tenho medo de voltar... Será que todos ainda estarão lá, do mesmo 10 Esse foi o primeiro conto com o qual ganhei um desafio de contos no Orkut! Quase não fiz alterações nele. Escrevi inspirada em um episódio da série “Além da Imaginação”, que eu assistia muito nos anos 80!

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jeito? Só de pensar nessa possibilidade, sinto medo de enlouquecer. E como contar a alguém? Penso neles todos os dias, todos... Depois de trinta anos, não sou mais aquela menininha. Mas eles, eles continuaram crianças... Infelizmente, não cresceram. Às vezes fico pensando por que escapei. Um dia estávamos sentados na calçada, bem em frente à tal casa. Vimos quando o homem saiu, com uma kombi onde se podia ler a logomarca “Lenga-la-lenga Comércio de Doces Ltda.”

— Ele vende doces, viram? Deve ter um armário cheio de marias-moles lá dentro! - disse Claudinho, sorridente. - Por que não entramos lá e conferimos?

—Sabe que não podemos! - lembrou Rebeca, negando com a cabeça e fazendo com que seus lindos cachos loiros (que eu tanto admirava por não achar graça nenhuma nos meus, que eram negros) balançassem em volta de seu delicado rosto. — Mamãe não gostaria nem um pouco de saber que fomos até lá.

Claudinho fez uma expressão de aborrecido, como se concordasse com a amiga, mesmo sem querer. Ao levantar os olhos, apontou para uma das janelas do piso superior da casa e exclamou:

— Olhem! Tem uma menina morando na casa! Olhamos na direção da janela e vimos a menina. Uma

linda menina loira, de cabelos muito lisos, vestida de camisola. Ela nos viu e acenou. Depois fez um gesto como que nos chamando a entrar na casa.

—Não devemos... - comecei a dizer, mas Jonas me

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interrompeu. —Ah, vocês meninas sempre com essa conversa!

Dani, Claudinho, vamos lá! Se elas quiserem, que venham atrás!

Terminamos por seguir os garotos, eu e Rebeca. Claro que também estávamos curiosas! Entramos pelo portão mesmo, que era baixo e não tinha chave ou cadeado. Indo até a varanda dos fundos, vimos que a porta estava entreaberta. Quando nos aproximamos, a porta abriu de uma vez e vimos a menina loira em pé, atrás de uma mesa repleta de doces.

—Podem comer todos esses doces, agora são meus amigos! - disse ela.

Meus quatro amigos entraram mais que depressa. Eu, não sei o porquê, fiquei parada ali, somente assistindo à cena.

—Ei, Beth! Você não vai comer nem um bombom? Pode deixar, eu como a sua parte! - falou Dani, com a boca cheia de doces.

—Como é o seu nome? - perguntou Jonas. —Eu me chamo Júlia. —Você fica sozinha aqui, enquanto seu pai sai para

trabalhar? - perguntou Claudinho. —Até que estou acostumada com isso. Mas sinto falta

de ter alguém com quem brincar... —Podemos brincar, se quiser! - afirmou Rebeca,

sorridente. A promessa feita aos pais sobre manter distância da casa já estava totalmente esquecida. Ela resolveu me chamar: — Ei, Beth! Venha logo! Não fique de manha!

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—Deixe-a pra lá! - disse a menina. Depois olhou para a minha direção e mostrou-me a língua. - Eu nem gostei dessa menina mesmo! Vamos nos divertir sem ela! Que tal brincarmos de “lenga-la-lenga”?

Fez com que todos dessem a mão, em uma roda no meio da cozinha.

“Lenga-la-lenga, lagucha lagauê... Lagucha go-go.. Lagucha lagauê...” Começaram a rodopiar, cantando a canção que todos

nós conhecíamos. E cada vez mais rápido, e mais rápido. Eu apenas observava, do lado de fora, pensando se não era bobeira minha não entrar. Foi quando notei que a roda girava tão rápido, que não conseguia nem mesmo distinguir meus amigos... E a menina estava no meio da roda, sorrindo para mim. Mas seu rosto não era o mesmo. Era cadavérico, os dentes apodrecidos, os lábios negros... Fiquei paralisada e não conseguia gritar.

Foi quando a roda parou, subitamente. Meus quatro amigos me olharam, atordoados.

—Beth, ajude a gente... - pediu Dani, levando as mãos à barriga.

Sua voz ia ficando cada vez mais fina, mais fina... Enquanto os quatro começaram a diminuir de tamanho, cada vez menores... Até se transformarem em quatro bonequinhos, que a menina segurou em seus braços. Com uma voz sibilante, explicou-me, como se eu pudesse

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entender tudo aquilo. —Agora tenho os meus “filhinhos” para brincar.

Viram como se parecem comigo? Loiros como eu! Se você não tivesse esses cabelos pretos, horríveis, poderia fazer companhia à Rebeca... Se contar a alguém, arrancarei a cabeça de todos eles, está ouvindo? Agora, suma daqui!

Ao gritar a ordem, senti meu corpo ser arremessado longe, como se levado por um furacão. Duas semanas depois, quando acordei, a rua não era a mesma. Temendo que meus amigos sofressem, nunca contei a verdade. Assim como nunca mais quis boneca alguma para brincar, o que minha família não conseguia entender. E todos se perguntavam: quem teria raptado as quatro crianças? Só eu sabia o que lhes acontecera. Somente eu, por esses longos trinta anos...

Conforme o tempo passava e as crianças não eram encontradas, minha família se mudou do local, cerca de uns dois anos depois. Tudo para me fazer esquecer a tragédia. Como se fosse possível.

Hoje, tomei coragem. Resolvi procurar a Lenga-la-lenga Comércio de Doces Ltda. Tive sorte, pois o homem que fora nosso vizinho ainda é o proprietário da empresa. Chama-se Valter Marques. Não conseguiu entender muito bem o que eu queria.

—Desculpe, eu... Eu morava na Rua da Aliança na época em que o senhor se mudou para lá. Algumas crianças desapareceram, eram meus amigos... Não foram encontradas até hoje.

—Ah, sim... Isso é muito triste... Eu me mudei de lá

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cinco anos depois do acontecido. —Mudou-se? Levou tudo o que havia na casa?

Brinquedos, tudo? Sua filha ainda tem os quatro bonequinhos?

Valter olhou-me sem entender o que eu dizia. —Como? Filha? Deve ter se enganado! Não tive

filhos... Meu coração disparou e pelo visto ele percebeu o

quanto fiquei em desespero. —Ei, calma... Sabe, eu não tive filhos. Mas no dia da

mudança, encontrei os tais bonequinhos que você mencionou. Fiquei sem entender como teriam ido parar ali, mas se está falando deles é porque certamente eram seus, isso?

Eu concordei, apenas balançando a cabeça. —Vamos à minha casa, moro no andar de cima da

loja. Estão guardados em uma caixa. Não pude esconder as lágrimas. Novamente veria

meus amigos. Depois de tanto tempo, finalmente cuidaria deles. Acharia uma maneira de trazê-los de volta à condição humana, não iria desistir!

Foi com as mãos trêmulas que peguei das mãos do Sr. Marques a caixa e a abri. Lá estavam eles! Jonas com seu ar de mandão, Claudinho com seu sorriso de anjo, Dani com seu olhar sonhador e Rebeca, com os cabelos loiros, tão sedosos quanto foram na vida humana.

—Obrigada por guardá-los... Pode me responder uma pergunta? Conheceu alguma Júlia? Uma menina loira, pouco mais velha que eu naquela época em que meus

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amigos desapareceram... —Como sabe de Júlia? Como conheceu minha irmã?

Não é possível que a tenha conhecido! Ela faleceu muito, muito antes de você nascer! Morreu quando brincava em frente de casa, um carro a atropelou... Minha empresa tem esse nome em homenagem a ela, estava sempre brincando disso com as outras crianças... Afinal, o que está acontecendo aqui? De onde você surgiu?

Ia explicar a ele toda a triste história, quando nós dois ouvimos a canção:

“Lenga-la-lenga, lagucha lagauê... Lagucha go-go.. Lagucha lagauê...”

E Júlia apareceu diante de nós, da mesma forma como

a vi dentro da roda, naquele horrível dia há trinta anos. Ficamos como estátuas, aterrorizados pela sua aparição. Vimos quando ela pegou os bonecos, um a um, falando calmamente.

—Ah, Jonas é rebelde demais! Não sei o que faço para que me obedeça! Claudinho... Só quer saber de correr, está sempre caindo e se machucando. Daniel está a todo momento gritando comigo. Já tentei lhe ensinar bons modos, apliquei castigos severos e nada resolveu! Já Rebeca... É manhosa até dizer chega. Não para de chorar! Já perdi minha paciência!

Olhou em nossa direção e, tomando os bonecos em seu braço, sorriu.

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—Creio que a companhia do tio fará uma grande diferença! E você, Beth... Tenho toda a certeza de que dará uma ótima babá.

E começou a cantar, com uma voz melodiosa, olhando fixamente para nós:

“Lenga-la-lenga, lagucha lagauê...”

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OS DIAMANTES DE TIA EUFRÁSIA SÃO ETERNOS11

ANTES DE AUGUSTO EXPERIMENTAR o delicioso manjar que a serviçal lhe colocara à frente, ouviu passos apressados e a figura eufórica de Bibiana aparecer na sala de jantar em alguns segundos.

— Saia. - ordenou ela para a serviçal, que aguardava por alguma ordem próxima à mesa. Augusto já não se importava mais com o jeito da noiva, que agia como se já fosse a dona da casa. Tinha plena certeza de que seria, ainda naquele ano, pois Tia Eufrásia, a ricaça da família, já estava desenganada pelos médicos. Então Bibiana herdaria a fortuna da velhota e ele estaria salvo financeiramente.

11 Escrito em forma de terrir, só posso dizer que me diverti imaginando a situação!

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— Tia Eufrásia morreu. - anunciou ela, com um sorriso radiante nos lábios. Nunca vira a noiva tão esfuziante.

— Morreu? Morreu mesmo? — Morta, mortinha. Mortíssima! Morta, morta, morta!

- ela repetia, quase em transe. — Juro que pensei que ela ainda duraria uma eternidade, que precisaríamos envenená-la, ou algo parecido. Não estou sonhando, estou, Augusto?

— Não, querida. É a mais pura realidade, pelo visto. Do que ela morreu, precisamente? Sua tia tinha tantas moléstias esquisitas...

— Segundo o médico, foi a pneumonia. Ela não suportou. Se fossemos esperar pelo coração dela parar, esperaríamos sentados. Acho que já podemos marcar a data do casamento, não? Que tal um mês após a leitura do testamento? Sei que há o período de luto, mas...

— Sua tia tinha um testamento? - perguntou Augusto. — Sim, tinha. Gostava de tudo correto. Mas não se

preocupe. Eu fui a única que a aguentei desde os meus quatorze anos, quando fiquei órfã. Se temos outros parentes, não faço ideia. Ela nunca reclamou de ninguém. Sempre se referia a alguém da família como “o finado”, “a finada”...

Augusto suspirou, procurando esconder sua reação de alívio. Claro, gostava de Bibiana, não ficara com ela por quase seis anos à toa. Mas suas finanças não podiam mais esperar. Já tinha vendido metade dos seus escravos, não tinha dinheiro para pagar as recompensas para os que buscavam os fugidos... Não teria dinheiro sequer para a próxima safra de café! Precisava do dinheiro de Tia Eufrásia.

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Ah, bendita Tia Eufrásia, que tinha compreendido isso e batido as botas em momento mais que oportuno.

Que ela ardesse no fogo do inferno, a maldita velha. Chegava a ter dó do chifrudo. O Coisa-ruim, a essa hora, devia estar ouvindo um dos belos sermões dela.

Agora, nada impediria a felicidade dos dois. Principalmente a dele, que se casaria agora com uma rica herdeira. Sete dias depois, na leitura do testamento...

— Isso deve estar errado! Está tudo errado! - gritou Bibiana, sem se importar com os modos intempestivos. Apesar de seus gritos, o Dr. Assis não se intimidou, permanecendo impassível. Estava acostumado com reações do tipo nas leituras de testamento.

— Srta. Cortez, asseguro-lhe de que está tudo correto, como sua finada tia (que Deus a conserve em um bom lugar) desejava em vida: o saldo de sua conta bancária para as obras da Igreja do Sagrado Coração, descontando-se as despesas dos rituais de exéquias. O casarão para a única sobrinha e parente viva, ou seja, a senhorita e, além disso, desejava ela que fossem enterradas consigo suas únicas joias: colar, brincos, pulseira, tiara e um anel de diamantes. Foi o que aconteceu, não foi? Ela foi enterrada com o conjunto de diamantes, sua vontade está sendo feita conforme o disposto neste documento.

Bibiana não conseguia esconder o ódio. Augusto a segurava, temendo que ela tivesse uma síncope.

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— Calma, minha querida... Bibiana chegou a sentir o próprio coração palpitar de

uma forma diferente, mas julgou que era devido à raiva que sentia transbordar de si. Que coração não palpitaria? De raiva? De desespero?

— Aquelas joias... Ela sempre dissera serem falsas. E eu... Eu acreditei! Como fui burra! Jamais acreditaria que ela, pão-dura, muquirana como era, que remendava os vestidos várias e várias vezes para não comprar novos, que seria capaz de cozer centenas de vezes as meias, se preciso fosse... Como ela teria diamantes verdadeiros?

— Era esse o motivo dela viver alardeando que o conjunto de diamantes era uma cópia, isso aos poucos que sabiam de sua existência, já que evitava usá-lo. A única joia que não deixava de usar era o anel, que trazia sempre no dedo anular, sempre tratando-a como uma pedra falsa. Não queria a cobiça de ninguém sobre elas. Ninguém. - frisou bem Dr. Assis, sentindo-se um pouco sádico nessa hora, pois era evidente que a sobrinha da Sra. Eufrásia Papadopoulos, a velha ranzinza de origem paterna grega, esperava herdar muito mais do que o velho casarão quase em ruínas onde as duas moravam. Regozijava-se com a expressão de terror nos olhos da moça, pois Bibiana Cortez não era o que podia se chamar de “simpática”. Era rude, andava pelas ruas com o rei na barriga e parecia esquecer que não tinha onde cair morta, se a tia não a acudisse. Não era nem um pouco bonita, com aquele cabelo cor de fogo e o rosto coberto por sardas. Pois bem, ela que fizesse o que quisesse com as ruínas que tinha herdado. Ela e o noivo falido.

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— Passem muito bem. — o advogado deixou claro que a sessão para leitura do testamento estava encerrada.

— Assim que a escritura estiver pronta, Srta. Cortez, eu a avisarei prontamente. E, claro, felicidades aos noivos. Três semanas depois, o plano...

— Você entendeu bem? Repita o que quero que faça. Quero ver se entendeu mesmo. - pediu Bibiana.

Epaminondas olhou para a mulher e o homem que a acompanhava e que ficara quieto o tempo todo, as mãos nos bolsos. Que achavam que ele era? Um imbecil? Só porque era um humilde coveiro?

— A senhora quer que eu cave e abra a cova da finada sua tia, certo?

— Certo. — A senhora precisa tirar de lá uns objetos que foram

enterrados por engano com ela... Certo? — Certo, coveiro. E o mais importante? — O mais importante... Ah, claro, o mais importante:

ninguém pode ficar sabendo, certo? — Certo, senhor Epaminondas. Esqueceu-se também

de que por esse ato de verdadeira caridade, o senhor receberá uma generosa recompensa em dinheiro, providenciada por meu noivo, Augusto.

— Certo? — perguntou Epaminondas ao homem calado, com expressão um tanto quanto apática, até modorrenta. — É o senhor quem tem que confirmar agora.

— É certo, certo, claro que é certo... - concordou Augusto, quase sem pensar. Aquilo, para ele, era tudo

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loucura. Se tivessem outra saída... Mas não havia! Em menos de um mês, precisava pagar os impostos da propriedade... De onde tiraria aquele dinheiro? Precisava mais que nunca das joias da demoníaca Tia Eufrásia.

Após a confirmação da recompensa, Epaminondas avisou:

— Há uma condição. Bibiana chegou a ranger os dentes, ao perguntar: — Que condição, senhor Epaminondas? Augusto percebera naqueles dias que Bibiana não

estava muito bem, parecendo sofrer dos nervos, tendo palpitações, desesperada em resolver aquela situação, de uma forma a que conseguissem ainda alguma vantagem com a morte de sua tia. Ele sabia o quanto ela esperara, o quanto suportara, para ter em mãos o dinheiro da velha rabugenta. Assim que resolvessem aquilo, iria sugerir que ela procurasse um médico para se consultar sobre suas reações nervosas.

— Preciso confessar que nunca tive coragem de abrir um túmulo de novo. Passo mal. Chego a desmaiar.

— O quê? E como consegue continuar nessa profissão? - Bibiana não conseguia acreditar.

— Não é comum a gente precisar fazer essas coisas. De modo que, quando preciso, quem faz isso para mim é a Rosaura. A minha esposa. Sem ela, não vou poder fazer o serviço.

Bibiana pensou um pouco e achou que aquilo era muito fácil de resolver.

— Bem, ela é sua esposa, não é? Basta que a mantenha

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calada. Ela é daquelas fofoqueiras que não seguram a língua dentro da boca, por acaso?

— Rosaura? Ah, Rosaura é discretíssima! Com ela, os segredos vão para o túmulo, se necessário. Ela jamais contaria a alguém o nosso acordo.

Augusto não pode deixar de rir daquele trocadilho infame. “Nada mais apropriado que a esposa de um coveiro leve os segredos para o túmulo”.

— Então está tudo acertado. Amanhã à noite, na hora combinada, iremos até lá para pegar os dia... os objetos enterrados. Não falhe. - Bibiana, acostumada a dar a última palavra, deu as costas e foi-se embora do cemitério, seguida por seu noivo.

Epaminondas ficou observando os dois se afastarem. E achou que Rosaura não ia gostar muito de Bibiana. Aliás, ele não achava. Tinha certeza.

Augusto olhou uma vez para trás e seu olhar cruzou com o do coveiro. Na noite seguinte...

Rosaura e Epaminondas já esperavam por Bibiana e Augusto em frente ao túmulo de Tia Eufrásia. O coveiro viu, pela expressão de Rosaura, que tinha acertado: a mulher estava com uma cara de quem não tinha aprovado nem um pouco o casal, pois estava com o cenho franzido e os olhos apertados, tal qual como ficava sempre que desaprovava alguém.

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— Rápido, coveiro. Comece a fazer o combinado. — Bibiana dera a ordem em uma voz um tanto trêmula. A ideia de que logo veria o cadáver de Tia Eufrásia estava lhe atormentando desde a noite passada.

Rosaura entregou a pá para o marido, dizendo: — Cave até onde conseguir. E foi o que Epaminondas fez, enquanto os outros o

observavam, cada um com seus pensamentos. Augusto entregou um cantil para a noiva.

— O que é? - perguntou Bibiana. — Conhaque. Beba, vai lhe fazer bem. É forte, vai

esquentá-la. - afirmou Augusto. — Acho que não devo, querido... Esses dias, com

todas essas emoções, não tenho me sentido muito bem. — Um gole não vai fazer mal algum, ao contrário. Rosaura se intrometeu na conversa: — Não está tão frio assim, mas um conhaque é

sempre bom. Deixe de frescura e tome isso, moça. Vai ajudar também para a hora em que abrirmos o caixão. Espero que não desmaie.

— Desmaiar? Não, prometo que serei forte. Vai valer a pena.

— Afinal, que objetos são esses, hein? - perguntou a mulher, que tinha um modo de falar muito seco, muito ríspido, como se não se importasse com o tom de voz desagradavelmente inquisidor que possuía. — Devem ter muito valor, para resolverem fazer isso tudo. Prataria? Não me diga que a rabugenta da Eufrásia foi enterrada com a prataria da casa?

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Soltou uma gargalhada que ecoou pelo cemitério, fazendo Bibiana tremer.

— São joias de família. De grande valor sentimental. Cometeram um erro ao enterrá-la usando as peças. — a moça tentou convencer a mulher, sem saber se tivera muito sucesso com a mentira que contara.

— Valor sentimental, é? Coisa de gente rica! — Rosaura... Ajude aqui. Epaminondas tinha cavado uma boa parte, mas as

pernas já começavam a tremer, só de pensar que o caixão estava próximo.

— Suba, fracote. Agora é a minha vez. Augusto pensou que Epaminondas e Rosaura mais

pareciam irmãos: tinham a mesma estatura baixa, atarracada, o corpo roliço, os cabelos pretos e lisos e até uma verruga no rosto. A mulher, porém, parecia ter muito mais determinação e frieza que o marido.

— Augusto? — Bibiana chamou-lhe a atenção. — Até agora não lhe agradeci pela ideia que me deu. Se não tivesse me sugerido o que estamos fazendo, não sei o que seria de mim. E olhe que não sou muito de agradecer a alguém por qualquer coisa que seja. Claro que, a você, agradeceria todos os dias, se fosse preciso. Só de pensar que poderia ter me deixado quando descobriu que eu não herdaria nada...

— Nem fale isso, meu amor. Não lhe disse que pensaríamos em algo? Em alguns minutos, nós teremos... você terá as joias de sua tia em suas mãos. E finalmente, poderemos nos casar.

— É só o que penso, senão não conseguiria estar aqui,

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querido... Só de pensar em como estará o corpo dela dentro do caixão... Terá virado pó? Terão sobrado apenas ossos? Sinto-me apavorada só de pensar...

— É muito cedo para que ali dentro estejam apenas os ossos dela. Oh, querida, pense que será algo rápido e logo estará tudo resolvido!

— Sim, Augusto, sim... Bibiana sentia-se estranha. Somente Augusto tinha a

capacidade de acalmá-la, como estava fazendo agora. Ela não conseguia ser nem um pouco autoritária com ele. Percebeu que faria qualquer coisa que ele pedisse. E não sabia se aquilo era bom para ela.

Naquele instante, Rosaura parou de cavar, quando a pá encostou na tampa do caixão. Todos se voltaram para ela, enquanto a mulher retirava o máximo de terra que se espalhava por cima da tampa, para depois abri-lo.

— Ei-la, Dona Eufrásia! - disse Rosaura. Bibiana percebeu que tinha fechado os olhos enquanto Rosaura abria o caixão. Ainda de olhos fechados, ordenou:

— Traga aqui para cima a tiara, o colar, os brincos, a pulseira e o anel...

— Nada disso. — Negou a mulher. — Desça aqui e pegue você mesma.

— O quê? - Bibiana não conseguia acreditar. Abriu os olhos e ficou chocada com a cena. Dentro do caixão repousava um cadáver que em nada se parecia com sua tia. Ainda havia pele. Aquilo era pele? Os olhos, porém... Não havia mais olhos...

— Isso mesmo que ouviu, dona. Desça aqui e pegue o

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que quer. Você nos contratou apenas para cavar e abrir o caixão. Agora venha aqui e termine. Pode levar tudo, se quiser, cada ossinho!

Rosaura gargalhou novamente. — Augusto... Diga que não vou ter que fazer isso...

Por favor! — Calma, tudo ficará bem. É só ir lá e pegar as joias. E

pronto. Eu estarei aqui, observando-a. Tire as joias dela, jogue-as para mim e pronto, tudo estará terminado. Sairemos daqui ricos, Bibiana! — Ricos, ricos... Ricos... Sairemos daqui ricos... Olhou mais uma vez para o cadáver da tia. Era impressão sua, ou os dedos da mão direita de Tia Eufrásia tinham se mexido? Aquilo era impossível! Agora ela era apenas um amontoado de carne e ossos em decomposição... — Ricos, ricos... Sairemos daqui ricos... - ela sussurrava, enquanto começava a descer, amparada por Augusto. Rosaura já tinha subido e observava a cena, com as mãos na cintura. Bibiana contemplou o cadáver da tia. Sentiu o gosto do vômito em sua garganta, tendo que tampar a boca e virar o rosto. Havia larvas por toda a parte ainda, se alimentando das carnes putrefatas. “Ricos...” pensava ela, consigo mesma. “Ricos, Bibiana. Mas só se você pegar as joias.” A moça voltou a olhar para o cadáver, tentando se concentrar nas joias. Primeiro, a tiara. Ali ela podia contar, por cima, pelo menos umas vinte pedras de diamantes. Arrancou-a da

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testa, não rápido o bastante para não sentir a carne mole, se dissolvendo, afundando com facilidade. — Oh, meu Deus! - gritou Bibiana, ouvindo mais uma gargalhada da maldita mulher que observava, com deleite, o desespero dela. Jogou a tiara para Augusto e pegou os brincos, que estavam nas duas laterais da cabeça de Tia Eufrásia, pois já não havia mais orelhas para sustentá-los. O colar ainda estava em volta do pescoço. Precisou arrancá-lo, porém sem muita dificuldade. Só que ao fazer isso, ela fez com que o cadáver se erguesse um pouco, aterrorizando-a. Jogou o colar para Augusto e imediatamente puxou a pulseira do que restava do braço, fazendo o mesmo. Só faltava o anel. Estava no mesmo dedo, o anular da mão esquerda. Uma única pedra, solitária, mas radiante. “E ela dizia que era imitação... E eu acreditava nisso!”, pensou Bibiana. — Vamos, Bibiana! - chamou Augusto. — Falta o anel... Lembrou-se de sempre ter visto Tia Eufrásia com ele no dedo, ela quase não o tirava. “Agora vai ser meu”, disse Bibiana para si mesma. “Não vou vendê-lo... Farei questão de ficar com ele!” Bastava um pequeno puxão, quase não havia mais pele nas mãos. Quando o anel estava quase saindo, ouviu uma voz que parecia vir das profundezas: — O que pensa que está fazendo? — Meu Deus! - gritou Bibiana. Sentiu que a mão direita de Tia Eufrásia, nesse momento, tinha agarrado a

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sua, prensando-a na mão esquerda, onde estava o anel. Viu a cabeça deformada do cadáver se levantar, a boca se abrir, revelando o que restava de uma língua. Os globos oculares estavam vazios, mas de dentro deles parecia emanar uma luz vermelha, intensa. Bibiana arregalou os olhos quando ouviu novamente a voz. — Este é o meu anel. O meu anel. Ninguém vai tirá-lo de mim. Ninguém, ninguém! - a criatura falava e um hálito fétido atingia em cheio o rosto de Bibiana, que já se sentia nauseada com aquele cheiro pestilento que parecia entrar em sua própria alma. — Perdão, Tia Eufrásia, perdão! Augusto não estava entendendo nada do que estava acontecendo na cova. O que Bibiana dizia? Parecia estar tendo uma alucinação, olhando para o cadáver da velha como se conversasse com ele. — Augusto... Ajude-me... — Bibiana sentiu que suas forças a deixavam, seu corpo paralisara. Só conseguia ouvir a voz demoníaca gritando incansavelmente “O meu anel...” e também parecia ouvir a gargalhada de Rosaura, dessa vez acompanhada da risada do coveiro. Em seu delírio, pensava até ter ouvido Augusto gargalhar. A dor no peito só fez aumentar, até se tornar insuportável. Até que Bibiana não sentiu mais nada, quando a escuridão pareceu cobri-la por completo. Rosaura começou a jogar terra de volta na cova. Augusto olhava as pedras, admirado, tendo o coveiro ao seu

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lado. — Foi uma pena, mesmo. Deus sabe como lamento que tenha sido assim. Mas veja, no final nem precisamos matá-la! Quem diria que ela sofreria um ataque? — O senhor teve sorte. Se livrou de quem o aborrecia e ainda ficou com uma fortuna... São verdadeiros? — Sim, verdadeiros. Deixarei uma pedra com vocês... E, se quiserem, podem ficar com o anel, já tenho o suficiente para pagar o que devo e... Augusto jamais completou a frase. — Gente rica pensa que é esperta. - disse Rosaura, gargalhando. - Podem até ser, mas até um certo limite. No fim, quem ficou com as pedras? Nós, a escória! Que noite divertida! Só de ver a Bibiana Cortez tendo um faniquito dentro da cova e morrendo, só isso já foi engraçado. Aquela mesma Bibiana que andava cheia de pose na rua. Não tinha nem onde cair morta.... Bem, agora caiu! A família inteira reunida: tia, sobrinha e futuro sobrinho... Que graça ela viu nele, me diz? — Rosaura, após tantos anos de casamento, você ainda me espanta. A mulher começou a jogar terra em cima do rosto de Augusto, ele ainda tinha os olhos arregalados e a cabeça estava toda ensanguentada, do golpe de pá que tinha recebido de Rosaura. Tinha colocado um corpo de cada lado

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do caixão. — O que será que fez a Bibiana ter esse ataque? Que será que ela viu? - perguntou Epaminondas, sem saber na verdade o porquê da pergunta. — Foi na hora de tirar o anel. Mas eu aposto que foi alguma coisa que o doutorzinho colocou no conhaque, só pode ter sido. — Rosaura, o anel! — O que tem o anel, homem? — Vai deixá-lo lá? Rosaura olhou para o marido e para as peças que ele segurava. Já não tinham o bastante? Sim, tinham o suficiente para não trabalharem mais a vida toda, assim pensava. Mas deixar uma pedra ali, enterrada, era uma pena, não era? — Vou pegá-lo. Rosaura desceu e abriu mais uma vez o caixão. Lá estava o anel. Era uma pedra bonita, esse ela não venderia, ficaria com ele, como lembrança daquela noite tão singular... Impressão sua, ou tinha visto os dedos do cadáver de Tia Eufrásia se mexendo?

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PARA SEMPRE!12 É APENAS MAIS UMA NOITE escura, fria e silenciosa, por onde minha alma caminha, sem destino algum. Ouço meus próprios passos pelos corredores do castelo. Não tenho pressa. A chama da vela no candelabro de prata que seguro em minhas mãos não projeta mais a minha sombra na parede, mas sim sombras de seres negros, que voam, em um voo calmo, lento, como se me escoltassem naquele solitário passeio. Um passeio que poderei fazer sempre. Para sempre!

É uma pena que não seja noite todo o tempo. Durante o dia, as pessoas invadem a minha morada. Anseiam pelas histórias contidas naquele lugar. Histórias de paixões antigas que ali ainda ecoam, lembranças de morte e de ódio. O meu ódio, por quem ousou prender minha alma e meu corpo. A minha morte e todas as mortes que eu tinha causado, com minhas próprias mãos. Gargantas cortadas,

12 Esse conto foi uma singela homenagem a Edgar Allan Poe.

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corações esfaqueados, olhos arrancados... Nunca mais a minha servidão... Nunca mais!

E de quem foi a culpa pela minha loucura no final de minha breve vida? Foi minha culpa quando ele, sangue do meu sangue, provou de minha inocência, do cheiro de minha pele, do sabor de minha carne? Foi minha culpa quando procurei reviver nos braços de meu primo, Edgar? Eu morria um pouco a cada noite em que era tomada, voluptuosamente, por meu tio, meu tutor, Lord Craven. E com Edgar eu revivia, renascia. Com ele, era como se eu provasse do mais saboroso vinho, para simplesmente poder continuar a viver aquele destino sem sentido. A cada noite eu me transformava no que sou agora: uma alma atormentada, um espectro triste e enclausurado. Até que não suportei mais. Explodi, em uma ira que consumiu aos dois, pois representavam a antagonia de minhas paixões e meu desespero. Uma ira que consumiu a mim mesma. Em fúria, arrebatei nossas três almas para esse mundo ao qual pertencemos agora e para sempre. Prometi a mim mesma, enquanto arrancava os olhos de Craven: nunca mais!

Essas paredes... Aqui, dentro delas, sinto-me segura. Lord Craven não mais ousará entrar aqui. As sombras jamais deixarão que ele se aproxime de mim novamente. Elas me guardarão pela eternidade, agora pertenço a elas, assim como minha alma pertence a Edgar, ansiosa por nosso encontro. Posso ver Craven, pelas janelas, algumas vezes sussurrando meu nome, outras vezes gritando-o com toda a fúria, sem poder ver a mim, as órbitas vazias, nunca mais poderá ver aquela a quem conspurcou. Nunca mais!

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— Lenore! Lenore! Deixe-me entrar! - Tal qual um demônio, coberto de pústulas, ele vocifera e clama por justiça. Justiça? Gargalho, o som de minha risada ecoa e agita as sombras, elas se movimentam mais rápido, como se o som causado por mim pudesse reanimá-las, torná-las quase vivas.

Sento-me no piso do salão principal, em meio ao veludo de minhas vestes negras e ainda ensanguentadas. Um sangue que não estanca, que está a verter da ferida que eu mesma causei em meu peito. Acostumei-me a isso, a esse cheiro que me inebria, é o meu sangue e ele próprio me banha, um sangue que jamais sai de minhas mãos, que as mancha eternamente.

Aguardo pela chegada de Edgar. Depois de tanto tempo, não sei precisar o quanto, sinto que é chegada a hora. Já nem ouço o apelo eterno de meu tio, que aos poucos se torna apenas um eco, cada vez mais distante e, de repente, desaparece. Nunca mais o ouvirei... Nunca mais!

Ouço passos em minha direção. Não preciso me virar para saber que é Edgar, o único a quem amei. É ele quem volta, para ficar ao meu lado. Sinto-o tocar meu ombro, sinto seu hálito gélido. Viro-me e descanso minha cabeça em seu peito. Não preciso desculpar-me por ter lhe cortado a garganta, sei que por isso ele não poderá me dizer doces palavras, mas poderá, no entanto, mostrar-me isso de todas as formas, fazer-me sentir. Agora somos somente nós...

Para sempre!

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SENHORA QUINTANA VAI MORRER13

NENHUMA MÃE DEVERIA SOFRER por um filho. Nunca, nunca... Quando se perde um filho, um pedacinho da alma vai embora. E quando outro se vai, outro pedaço... Nunca mais fui uma pessoa inteira desde a partida de Carlinhos, de Juliano e de minha pequena Laurinha. Por que meus filhos tinham que deixar de me amar quando estavam vivos, meus queridos anjinhos? Por acaso não terei eu sido uma boa mãe? Por todos os santos, todos os anjos são testemunhas de que o que eu mais queria era alimentá-los com o meu leite. Que castigo, não poder fazer isso, ser seca do alimento que nutriria meus preciosos bebês! Nenhuma mãe deveria ser trocada por uma ama de leite, de pele negra e suja, cheirando a alho. Como acha que me sentia ao ver meus filhinhos, um a um, sendo

13 Esse é o único conto da coletânea que não possui um toque fantástico.

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amamentados por aquela bastarda que parecia rir da minha fraqueza? Meus tesouros não mereciam aquele leite a corroer-lhes as entranhas, tornando-os criaturas sujas também. De tanto sugarem o leite da escrava demoníaca, eles acabariam por se tornarem animais da mesma espécie amaldiçoada... E eu não suportaria! Como viveria com esse fardo? Carlos era tolo. Não me ouvia, nunca me ouviu. Pedia a ele uma ama branca e cristã, mas ele nunca me atendeu. Por quê? Só podia estar enfeitiçado! E não adiantava o que eu dissesse, apenas pedia que eu me calasse. Chamava-me de insana. Às vezes, olhava-me com pena, com compaixão, bem sei. Carlos, Carlos... Quanta fraqueza em apenas uma pessoa! Sou eu quem tem pena de sua alma, das contas que irá acertar com Nosso Senhor. Imagino o que deva ter feito com as negrinhas, inclusive com a víbora. E os filhos ilegítimos que teve coragem de gerar... Estes, sim, merecem esse mundo fétido e asqueroso. Que vivam amaldiçoados por todos os seus dias, tendo nas veias o sangue impuro dos bastardos. Só me restou proteger meus três anjos da forma como pude: entregando-os de vez ao Senhor, dando-lhes a vida eterna, pois eu tinha certeza de que logo estaria ao lado deles... E então seríamos somente nós, sem demônio algum a nos rodear, sem nada que sujasse a inocência deles. Eu sempre estive certa do que deveria fazer. A verdade me pertenceu, sempre... E eu mereço ser feliz ao lado dos meus queridos filhos, nunca quis nada além disso. Foi esse o único motivo de entregá-los aos Céus, de

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forma calma, suave, durante o sono, para que fossem levados pelos anjos, um a um... Para que ninguém tomasse o lugar que era meu de direito, pelas Leis Divinas. Se eu não poderia cuidar deles como uma mãe deveria, que ficassem ao lado de Deus, a salvo de toda a mácula... É preciso muita coragem para agir conforme os princípios da moral e da justiça, a justiça que diz que ninguém pode tomar o lugar de uma boa e devotada mãe, muito menos uma escrava imunda, da pior espécie, que parecia zombar de mim enquanto um de meus amados filhinhos lhe sugava o seio venenoso, como se fosse o meu próprio... — Filha, filha... — é a voz do sacerdote a me chamar. — Acalma-te! Vim até tua cela para que tu te confesses, para que não possuas a alma enegrecida em teu encontro com o Pai. Porém, o que ouvi de ti até agora foi o horror de seus atos para com seus filhos... Crês então que praticaste um bem a eles, pequeninos sofredores, tirando-lhes a vida? Proclamas a ti direitos de mãe? Como podes agir assim? Não consegues perceber o grandioso pecado que cometeste, o de matar friamente teus próprios filhos? E por isso perderás a vida na forca daqui a pouco... Perco minha paciência diante das palavras desconexas do padre. Quem é ele para me julgar? Meu único juiz será Deus! Aquele que conhece a verdade que carrego dentro de mim. Pouco me importa de que forma serei punida pelos homens. O Senhor está comigo e aguarda minha presença para devolver-me os filhinhos queridos! — Padre, não tenho o que confessar a ninguém, a não ser ao meu Senhor.

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— Senhora Quintana, pela alma de seus três filhos, que clamam por misericórdia... — Por acaso acha que eu não os escuto, Padre? Sim, eles me chamam! Eles dizem, sussurram em meus ouvidos: “Venha, mãezinha, aqui é o seu lugar, ao nosso lado!” Eles me sorriem, Padre, e eu nunca os vi tão felizes! E estou feliz da mesma forma hoje, o dia em que os reencontrarei, deixando a todos que quiseram nos separar para trás! Repito, não tenho nada a confessar, a não ser o meu amor, de mãe, aquele que é capaz de tudo para ter seus filhos a salvo dos pecados desse mundo! Finalmente, o religioso parece se convencer de que o que eu digo é a verdade absoluta e irrefutável. Vejo-o inspirar o ar, soltando-o depois, lentamente, enquanto seus ombros parecem cair e assim permanecem, mostrando-me que ele se deu por vencido. Nesse momento, os meus algozes aparecem para o meu sacrifício final. Será que eles percebem o quanto estou feliz? Nem mesmo o grito da multidão que me condena lá fora é capaz de me entristecer. Hoje é um dia feliz, e é com o peito tomado por essa felicidade que eu dou meus últimos passos. E a cada passo, estou mais perto de meus anjinhos. E é para acordá-los, para que me aguardem despertos, que eu canto a mais doce canção de ninar durante o meu caminho para a forca.

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TRECHO DO ROMANCE

“CINQUENTA E TRÊS DIAS NO TÚMULO”14 Joice ouvia Vanilla Sky quando o microonibus parou.

Ironicamente, a letra da antiga canção dizia: “É a sua vez, é o seu dia.” Bem, ao menos era no que ela queria acreditar. Não que precisasse se iludir com algo, depois de tanta coisa, mas fazia bem acreditar que nada podia ser pior do que o que já lhe havia acontecido há oito anos.

Uma voz que saiu pelo sistema de som tirou-a de seus pensamentos. Sentiu-se agradecida por isso.

— Ô, moça, tá me ouvindo? — Era o cara que viajava na frente, com o motorista. Havia uma janela entre ela e os homens, provavelmente feita de algum material inquebrável, e o máximo que ela conseguia enxergar eram as nucas dos dois. Não tinham se virado uma única vez durante a viagem, certamente a monitoravam de alguma forma. E... Como é que ela iria fugir? Não havia necessidade

14 Título provisório.

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nem mesmo daquele pedacinho de metal colocado em sua pele, próximo ao pulso. Era muita coisa em jogo. E ela não iria errar de novo, pois isso implicava em trazer ainda mais sofrimento a quem ela queria bem. Isso, ela tinha prometido há oito anos, não iria mais acontecer.

— Sim, estou ouvindo. — Coloque sua máscara. O Isolamento começa a

partir daqui, nunca se sabe se o ar é confiável ou não. Ele esperou que ela pegasse o objeto jogado no

assento vazio ao lado e o colocasse. — Não a tire, em hipótese alguma. Faça isso apenas

quando estiver dentro do Quartel, sob pena de ser levada de volta. Sabe o que isso significa, não é?

— Sim, senhor. — confirmou Joice, pronta para soltar uma ironia, mas apenas respondendo da melhor forma possível, depois de pensar alguns segundos.

O homem colocou sua própria máscara depois disso, constatando:

— Ela não parece tão perigosa. — Nenhuma fêmea parece, na verdade. Mas todas

são. — Você é cruel! — brincou o homem, que se chamava

Marcos. — O que foi que ela fez mesmo? Deve ter sido alguma coisa terrível, para ter sido a única mulher a ser mandada para cá desde que tudo começou... Por acaso ela contrabandeou remédios? Comida?

— Dizem que ela matou o marido. – respondeu o motorista, de nome Adriano.

Marcos gargalhou.

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— “Só” isso? Pegaram pesado com ela, então! Quem era o cara? Algum figurão importante?

— Parece que era Chefe da Equipe Médica do Exército, algo do tipo.

— No mínimo ele a traiu com alguma enfermeira... — Se foi isso, eu não sei. Mas ela não foi lá e

simplesmente deu um tiro nele e acabou. Marcos ficou imaginando o que aquela gracinha

poderia ter feito. — O que ela fez, afinal? Agora que começou, conta!

— ele insistiu. — Ninguém sabe, homem. O corpo do cara sumiu.

Mesmo assim, ela confessou. Marcos deixou o assunto de lado quando viu a cerca

que parecia não acabar mais aparecer. A cerca da área chamada de Isolamento. O lugar, porém, tinha outros nomes. O oficial era Região de Quarentena. Uma quarentena que nunca terminava. Entre as pessoas do Quartel, o lugar era chamado de Túmulo. Um apelido mórbido, contudo parecia ser o mais apropriado.

Joice desligou o pequeno aparelho em meio a uma

música do Pink Floyd e prestou atenção ao que acontecia fora do microônibus. O veículo avançava lentamente. Aos poucos, ela percebeu soldados do lado de fora, em posição de sentido, olhando para o nada. Tinham viajado a madrugada toda, talvez fugindo do calor causticante do dia. Ela dormira pouco durante a viagem. O tempo todo olhou a paisagem soberana do lado de fora da janela: o deserto, era

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só o deserto desde que tinham saído de Brasília em direção ao Sul.

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ALGUMAS PALAVRAS Sou Pedagoga e trabalho como Professora. Casada há

12 anos, moro em Campo Grande-MS com meu marido e nossas três filhas.

Em 2009 publiquei três livros como co-autora. Já palestrei como escritora e adorei a experiência! Escrever é uma paixão e uma aventura, ao mesmo tempo em que é uma necessidade, sem exageros. Desde que me tornei leitora, escrevo também histórias. Até 2009, elas nunca terminavam. Então não é errado dizer que jamais pensei que pudesse ter alguma coisa publicada.

Tenho amigos maravilhosos, poucos reais e virtuais, mas maravilhosos, que já me mostraram que estão comigo para o que der e vier.

Passei a infância na capital de São Paulo, em parte enclausurada em apartamentos, em outra parte no aconchego da casa da bisavó. Dos 11 aos 15 anos, vivi a tranquilidade de uma cidade interiorana: em Birigüi pulei muito muro, corri muito com o pé no chão, tomei banho de chuva... Só não subi em árvore (com exceção de

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jabuticabeiras!). Como escritora, quero ainda poder dar vida a muitos

personagens. Gosto de suspense, principalmente em ficção científica. Adoro Agatha Christie, Rubem Fonseca, Edgar Allan Poe, cresci com Monteiro Lobato e Lúcia Machado de Almeida, além de vários outros. Eles são os culpados, rs!

Publicar um livro está, em termos, mais fácil. Difícil é chegar às editoras sem ter que tirar do seu bolso dinheiro para isso. Este livro, uma publicação independente, tem razão de ser: é uma forma de divulgar minha escrita a quem não tem acesso a Orkut ou não está acostumada a ler contos em sites. E eu não posso pensar em escrever somente para o público da internet.

Fiquei durante um bom tempo tentando decidir o que faria depois de publicar essa coletânea, pois tenho material para escrever uns cinco romances diferentes, de temáticas diferentes. Complicado é pensar: “qual desses cinco poderia ser mais facilmente aceito por uma editora?” É muita coisa em jogo. Decidi pela história que, a princípio, batizei de “Cinquenta e três dias no túmulo”. Não sei quando ela será publicada. Mas será. Vou terminá-la e buscar quem publica obras nessa temática. Esse é apenas o comecinho de uma estrada.

Além disso, ainda podem encontrar meus textos em algumas comunidades literárias do Orkut. Ou, para qualquer contato, deixo o e-mail: [email protected].

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