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CHÁ DE SUMIÇO

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Ma r i a n Keye syyy

MELANCIA

FÉRIAS!SUSHI

Casório?!

É Agora... ou Nunca

Los Angeles

Um Bestseller

pra Chamar de Meu

Tem Alguém Aí?

Cheio de Charme

A Estrela Mais Brilhante do Céu

CHÁ DE SUMIÇO

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Tradução

Renato Motta

Rio de Janeiro | 2013

Marian Keyes

CHÁ DE SUMIÇO

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Olha só que ironia... Talvez eu seja a única pessoa que conheço que

não acha nem um pouco maravilhosa a perspectiva de ir para “um

lugar” a fim de “descansar”. Vocês precisam ouvir minha irmã Claire

tagarelando a respeito disso, como se acordar certa manhã e descobrir

que você está num hospital para doentes mentais fosse a experiência

mais deliciosa do mundo.

— Tenho uma ideia ótima! — declarou ela para sua amiga Judy.

— Vamos surtar ao mesmo tempo.

— Genial! — disse Judy.

— Ficaremos num quarto duplo. Será fantástico.

— Descreva a cena para mim.

— Beeeeem... Pessoas gentis... Mãos macias, acolhedoras... Vozes

sussurrantes... Roupa de cama branca, sofás brancos, orquídeas

brancas, tudo branco...

— Como no céu — maravilhou-se Judy.

— Exatamente como no céu! — confirmou Claire.

Não exatamente como no céu! Abri a boca para protestar, mas

não havia jeito de fazer com que parassem.

— ... o som de água tilintando...

— ... o cheiro de jasmim...

— ... um relógio tiquetaqueando em algum lugar distante...

— ... o nostálgico repicar de um sino...

— ... e nós duas deitadas na cama, com as cabeças desligadas pelo

Xanax...

— ... olhando, sonhadoras, para grãos de poeira no ar...

— ... ou lendo a revista Grazia...

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— ... ou comprando picolés Magnum Gold do homem que passa

lentamente, de enfermaria em enfermaria, vendendo sorvetes...

Mas é claro que não haveria ninguém vendendo picolés. Nem

qualquer das outras coisas legais.

— Uma voz sábia dirá — Judy fez uma pausa, para causar mais

impacto: — “Livre-se de todos os seus fardos, Judy.”

— E alguma adorável enfermeira que parece flutuar enquanto

caminha cancelará os nossos compromissos — completou Claire.

— Dirá a todos que nos deixem em paz. Avisará aos canalhas

mal-agradecidos que estamos com esgotamento nervoso por culpa

deles, e todos terão de ser muito mais simpáticos conosco, se algum

dia conseguirmos sair de lá.

Tanto Claire quanto Judy tinham vidas loucamente agitadas —

crianças, cachorros, maridos, empregos e uma dedicação demorada

e caríssima à missão de parecerem dez anos mais novas do que de

fato eram. Zuniam perpetuamente de um lado para outro em auto-

móveis, levando os filhos para treinarem rúgbi, pegando as filhas no

dentista, correndo pela cidade para irem a alguma reunião urgente.

Ser multitarefa era uma forma de arte para elas; usavam os segundos

inúteis nos sinais de trânsito fechados para esfregar nas pernas

paninhos com bronzeador artificial, respondiam aos e-mails sen-

tadas nas poltronas dos cinemas e cozinhavam cupcakes Veludo

Vermelho à meia-noite, enquanto eram alvo da zombaria das filhas

adolescentes, que as chamavam de “patéticas vacas velhas e gordas”.

Nem um único momento sequer era desperdiçado.

— Eles nos darão Xanax. — Claire voltara ao devaneio.

— Ah, que maraviiiilha!

— Tanto quanto quisermos. No instante em que a felicidade

começar a desaparecer, tocaremos uma sineta e uma enfermeira

surgirá para nos dar uma dose extra.

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— Nunca precisaremos nos vestir sozinhas. Todas as manhãs nos

trarão pijamas de algodão novinhos em folha, tirados do pacote.

E dormiremos dezesseis horas por dia.

— Ah, dormir...

— Será como estar embrulhada num grande casulo de marsh-

mallow; nos sentiremos flutuantes, felizes e sonhadoras...

Era hora de apontar uma grande e desagradável falha naquela

visão deliciosa delas.

— Vocês estarão num hospital psiquiátrico! — lembrei-lhes.

Tanto Claire como Judy pareceram imensamente alarmadas.

Depois de algum tempo, Claire disse:

— Não estou falando de um hospital psiquiátrico. Apenas de um

lugar para ir... repousar.

— Esse lugar para onde as pessoas vão a fim de “repousar” é um

hospital psiquiátrico.

Ambas ficaram em silêncio. Judy mordeu o lábio inferior.

Estavam, obviamente, refletindo sobre tudo aquilo.

— O que você achou que poderia ser? — perguntei.

— Bem... Tipo assim, uma espécie de spa — afirmou Claire. —

Com... Sabe como é... Remédios interessantes.

— Eles têm pacientes loucos lá dentro — expliquei. — Pessoas

malucas de verdade. Gente doente.

Veio mais um longo silêncio; por fim, Claire ergueu os olhos

para mim, com o rosto vermelho-vivo.

— Pelo amor de Deus, Helen! — exclamou. — Você é mesmo uma

tremenda vaca insensível, sabia? Por que nunca consegue deixar

alguém curtir um lance agradável?

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Quinta-feira

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Capítulo Um

Eu estava pensando em comida. Quando estou presa num engarra-

famento, é isso que faço. Aliás, é o que qualquer pessoa normal faz;

por outro lado, analisando melhor, eu não tinha comido nada desde

as sete da manhã, e isso já fazia dez horas. Uma canção da banda

Laddz tocou no rádio pela segunda vez só naquele dia — era ou não

uma tremenda falta de sorte? Enquanto os acordes piegas e açuca-

rados tomavam conta do carro, tive uma vontade forte e súbita de

bater de frente com um poste.

Havia um posto de gasolina logo adiante, à esquerda, onde um

letreiro vermelho e tentador anunciava refrigerantes. Eu podia me

libertar daquele nó no trânsito, entrar ali e comprar um donut. Mas

os donuts vendidos nesses lugares eram tão sem gosto quanto as

esponjas que repousam no fundo do mar; acho que daria até para me

esfregar no banho com um deles. Além disso, um bando de abutres

negros imensos voava em círculos sobre as bombas de gasolina, e

isso me demoveu da ideia de parar. Não, decidi... Eu seguiria adiante

até...

Espere um minuto! Abutres?

Numa cidade?

Sobre um posto de gasolina?

Dei uma segunda olhada e vi que não eram abutres. Apenas

gaivotas. Gaivotas comuns.

Então pensei: Ah, não, outra vez, não!

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• • •

Quinze minutos depois, estacionei o carro diante da casa dos meus

pais, esperei um momento para me recompor e comecei a futucar

na bolsa em busca da chave para poder entrar. Eles haviam ten-

tado fazer com que eu devolvesse minha chave quando fui embora

daquela casa, três anos antes. Porém — raciocinando de forma estra-

tégica —, eu me agarrara a ela. Mamãe ameaçara trocar as fecha-

duras, mas eu sabia que se ela e papai haviam demorado oito anos

para decidir comprar um simples balde amarelo, quais as chances

de conseguirem lidar com uma tarefa tão complicada como mandar

trocar as fechaduras?

Encontrei os dois na cozinha, sentados à mesa, bebendo chá e

comendo bolo. Pessoas velhas. Que vida ótima elas têm. Mesmo as

que não fazem tai chi chuan (falaremos sobre isso depois).

Eles ergueram os olhos e me olharam fixamente, com um res-

sentimento maldisfarçado.

— Tenho uma notícia para vocês — informei.

Mamãe pareceu recuperar a voz.

— O que está fazendo aqui? — perguntou ela.

— Eu moro aqui.

— Não mora mais! Nós nos livramos de você. Pintamos seu

quarto. Nunca fomos tão felizes.

— Eu disse que tenho uma notícia. Minha notícia é essa: moro

aqui.

O medo começou a surgir aos poucos no rosto de mamãe.

— Você tem sua própria casa. — Ela vociferava, mas parecia ter

perdido a convicção. Já devia esperar por isso, afinal.

— Não mais. Desde hoje de manhã. Não tenho nenhum outro

lugar para ir.

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— Foi o pessoal da hipoteca? — Ela estava cinzenta (por baixo

da base laranja usada tradicionalmente pelas mães irlandesas.)

— O que está acontecendo? — Papai era surdo. E também con-

fuso na maioria das vezes. Era sempre difícil saber qual das duas

deficiências estava no comando.

— Ela não pagou a PRESTAÇÃO — disse mamãe, no ouvido bom

dele. — O apartamento dela foi RETOMADO!

— Eu não consegui pagar a prestação — protestei. — A senhora fala

como se fosse culpa minha. De qualquer modo, a coisa toda é muito

mais complicada que isso.

— Você tem um namorado — disse mamãe, com ar esperançoso.

— Não pode ir morar com ele?

— Onde está o seu discurso de católica radical, mamãe?

— Precisamos acompanhar os tempos modernos.

Balancei a cabeça negativamente.

— Não posso ir morar com Artie. Os filhos dele não permitiriam.

— Não era exatamente assim. Somente Bruno iria se opor. Ele me

odiava profundamente. Iona, porém, era bastante agradável e Bella

me adorava de paixão. — Vocês são meus pais. Amor incondicional.

Preciso lembrá-los disso? Minhas coisas estão no carro.

— O quê?! Todas as suas coisas?

— Não.

Eu passara o dia com dois sujeitos que só aceitam dinheiro vivo.

O que restava da minha mobília estava agora armazenado num

gigantesco guarda-móveis que ficava muito depois do aeroporto,

esperando a volta dos bons tempos.

— Só trouxe minhas roupas e algumas coisas de trabalho — con-

tinuei. — Na verdade, tinha levado uma porção de coisas de trabalho,

já que eu tinha sido obrigada a devolver meu escritório também,

havia um ano. Ah, e um monte de roupas, embora eu tivesse jogado

fora toneladas e mais toneladas, enquanto fazia as malas.

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— Mas quando isso vai ter fim? — perguntou mamãe, com ar

de lamúria. — Quando teremos nossos anos dourados, afinal de

contas?

— Nunca! — Papai falou com repentina confiança. — Isso é uma

síndrome da vida moderna. A Geração Bumerangue. Filhos adultos

voltando para morar na casa dos pais. Li a respeito disso na Grazia.

Não havia como discordar da Grazia.

— Você pode ficar conosco por alguns dias — concedeu mamãe.

— Mas vou logo avisando: pode ser que nós resolvamos vender a

casa e partir num cruzeiro pelo Caribe.

Os preços dos imóveis na Irlanda haviam despencado tanto que

a venda daquela casa não renderia grana suficiente nem para um

passeio às ilhas Aran. Mas eu não disse nada. Fui até o carro, arrastei

minhas caixas de tralhas e decidi não mencionar o fato. Afinal, eles

iam me oferecer um teto.

— A que horas é o jantar? — Eu não estava com fome, mas queria

me informar sobre os horários da casa.

— Jantar?

Não havia nenhum jantar.

— Não ligamos mais para essas coisas — confessou mamãe. —

Agora que somos só nós dois...

Puxa, essa era uma notícia péssima! Eu já me sentia muito mal,

mesmo sem meus pais subitamente se comportarem como se esti-

vessem na antessala da morte.

— Mas... O que vocês comem?

Eles olharam um para o outro, surpresos, e depois para o bolo

na mesa.

— Ora essa... Bolo, é claro!

No passado, isso teria sido perfeito. Nos meus tempos de menina,

minhas quatro irmãs e eu considerávamos uma atividade de alto

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risco comer qualquer coisa que minha mãe tivesse cozinhado. Mas

eu não estava em meu estado normal.

— Então... A que horas é o bolo?

— A qualquer hora que você tiver fome.

Isso não servia.

— Preciso de um horário específico.

— Às sete, então.

— Está bem. Ouçam... Avistei um bando de abutres sobrevoando

o posto de gasolina.

Mamãe apertou os lábios.

— Não temos abutres na Irlanda — informou papai. — São

Patrício os expulsou de vez.

— Ele tem razão — disse mamãe, com determinação. — Você

não viu nenhum abutre.

— Mas... — Parei de falar. De que adiantaria? Abri a boca e tentei

inspirar um pouco de oxigênio.

— O que está fazendo? — Mamãe me pareceu alarmada.

— Estou... — O que eu estava fazendo mesmo? — Estou ten-

tando respirar. Meu peito está todo emperrado. Não há espaço sufi-

ciente para o ar entrar.

— Claro que há espaço. Respirar é a coisa mais natural do

mundo.

— Acho que minhas costelas diminuíram de tamanho. Sabe

como é... do jeito que os ossos encolhem, quando a pessoa está

velha.

— Você tem apenas trinta e três anos. Espere até chegar à minha

idade e vai descobrir tudo sobre ossos encolhidos.

Embora eu não soubesse qual era a idade exata de mamãe — ela

mentia sobre isso o tempo todo, e de forma elaborada, algumas vezes

fazendo referência ao papel vital que desempenhara na Revolta de

1916 (“ajudei a datilografar a Declaração de Independência para o

jovem Padraig ler nos degraus da sede dos Correios”); outras vezes

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tornava-se lírica ao falar dos anos de sua adolescência, que pas-

sara dançando ao som de “The Hucklebuck”, quando Elvis visitou a

Irlanda (Elvis nunca fora à Irlanda e nunca cantara “The Hucklebuck”,

mas, quando alguém dizia isso mamãe piorava, insistindo que Elvis

fizera uma visita secreta, sim, a caminho da Alemanha, e que cantara

“The Hucklebuck” a pedido dela, especificamente). — Nessas horas,

ela parecia maior e mais robusta do que nunca.

— Recupere o fôlego! Vamos, vamos, qualquer pessoa consegue

fazer isso — insistiu. — Até uma criancinha! Então, o que pretende

fazer esta noite? Depois de comer bolo? Vamos ver TV? Temos gra-

vados vinte e nove episódios de Come Dine With Me.

— Ahn... — Eu não queria assistir a Come Dine With Me. Normal-

mente, eu assistia a pelo menos dois programas por dia. De repente,

porém, me senti enjoada de tudo aquilo.

Tinha um convite em aberto para visitar Artie. Mas os filhos dele

estariam lá naquela noite, e eu não tinha certeza se conseguiria ter

força suficiente para bater papo com eles; além do mais, sua presença

interferiria nos meus planos de livre acesso sexual ao pai deles. Mas

Artie estivera trabalhando em Belfast a semana inteira e... Sim, bote

pra fora, Helen, admita de uma vez por todas para si mesma... Eu

tinha sentido saudades dele.

— Provavelmente vou dar uma passadinha na casa de Artie —

comuniquei.

Mamãe se empolgou toda.

— Posso ir também?

— Claro que não! Já lhe avisei!

Mamãe era louca pela casa de Artie. Vocês provavelmente co-

nhecem esse tipo de casa, se curtem revistas de decoração. Por fora,

parece um chalé típico da classe operária — agachado sobre a cal-

çada, com o boné arriado, sabendo seu lugar. O telhado de ardósia

é torto e a porta da frente tão baixa que as únicas criaturas capazes

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de atravessá-la com plena certeza de que não vão rachar o crânio

são os anões.

Quando a pessoa entra no ambiente, porém, descobre que

alguém colocou abaixo a parede dos fundos da casa e a substituiu

por uma maravilhosa terra mágica, vítrea e futurista, com escadas

flutuantes, quartos de dormir suspensos como ninhos de pássaros e

claraboias distantes.

Mamãe estivera lá apenas uma vez, por acaso — eu avisei para

não sair do carro, mas ela me desobedeceu na maior cara de pau —,

e ficou tão impressionada que me causou enorme constrangimento.

Eu não permitiria que isso acontecesse novamente.

— Está bem, então eu não vou — disse ela. — Mas tenho um

favor para lhe pedir.

— Qual?

— Você vai comigo ao show de reencontro da banda Laddz?

— Eu, hein? Ficou maluca?

— Maluca, eu? Olhe quem está falando... Uma pessoa que enxerga

abutres!

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Capítulo Dois

Chalés nanicos que parecem pertencer à classe operária são inte-

ressantes e ótimos, só que não costumam oferecer estacionamentos

subterrâneos convenientes para visitantes. Demorei mais para

encontrar uma vaga do que o tempo que gastei dirigindo os três

quilômetros até a casa de Artie. Finalmente enfiei meu Fiat 500

(preto com interior revestido também em preto) entre duas gigan-

tescas picapes, e só então me permiti adentrar o celestial universo-

casulo de acrílico transparente. Tinha minha própria chave — fazia

só seis semanas desde que Artie e eu tínhamos feito aquela troca

cerimoniosa. Ele me dera uma chave da sua casa; eu lhe dera a chave

do meu apartamento. Porque, na ocasião, eu ainda tinha um.

Ofuscada pela luz do sol das noites de junho, segui cegamente o

som de vozes através da casa, descendo pelos degraus mágicos que

flutuavam soltos até chegar ao deque onde um grupo de pessoas de

boa aparência e cabelos louros estava reunido montando — ima-

ginem só o quê? — um quebra-cabeça. Artie, meu lindo viking!

Iona, Bruno e Bella, seus lindos filhos. E Vonnie, sua linda ex-esposa.

Sentada no banco comprido ao lado de Artie, ali estava ela, com seu

ombro magro e moreno encostadinho no do ex-marido, que era

grande e largo.

Eu não esperara vê-la, mas Vonnie morava perto e, muitas vezes,

aparecia casualmente, em geral com Steffan, seu parceiro, a reboque.

Ela foi a primeira a me notar.

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— Helen! — exclamou, num tom muito caloroso.

Um coro de saudações e sorrisos que pareciam flashes se esten-

deram para mim, e fui arrastada para um mar de braços acolhe-

dores, a fim de ser beijada por todos. Uma família cordial, os Devlin.

Só Bruno se manteve recuado, e ele não precisava achar que eu não

notara isso; eu mantinha um registro mental das muitas e muitas

vezes em que ele me tratara sem consideração. Nada me escapava.

Todos nós temos dons específicos.

Bella, vestida em cor-de-rosa da cabeça aos pés e cheirando a

chiclete de cereja, ficou muito emocionada com minha chegada.

— Helen, Helen! — Ela se atirou em cima de mim. — Papai não

avisou que você vinha. Posso arrumar seus cabelos?

— Bella, dê um tempo para Helen — disse Artie.

Com nove anos e uma personalidade muito amorosa, Bella era

a mais jovem, a mais frágil e fraca de todo o grupo. Apesar disso,

seria imprudente deixá-la de lado. Antes disso, porém, eu precisava

cuidar de um assunto importante. Olhei para a região onde a parte

de cima do braço de Vonnie se encontrava com o de Artie.

— Afaste-se! — ordenei. — Você está perto demais dele.

— Ela é a esposa dele. — As maçãs do rosto exageradas como as

de um travesti, típicas de Bruno, pareceram acender de indignação.

Será que ele estava usando blush?

— Ex-esposa — lembrei a ele. — Sou sua namorada. Ele agora

é meu. — Depressa e sem sinceridade, acrescentei: — Rá-rá-rá!

(porque, assim, se alguém me acusasse algum dia de egoísmo e ima-

turidade e dissesse: “pobrezinho do Bruno”, eu poderia responder:

“Pelo amor de Deus, foi só uma piada. Ele tem de aprender a aceitar

zoação.”)

— Na verdade, era o Artie que estava apoiado em mim — disse

Vonnie.

— Não estava não! — Naquela noite, eu estava sem paciência

para aquele joguinho constante com Vonnie. Mal consegui escolher

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as palavras para continuar a farsa. — Você está sempre dando em

cima dele. Desista de uma vez, Vonnie. Ele é louco por mim.

— Tá legal, você tem razão.

Com muito bom humor, Vonnie mudou de posição e arrastou o

corpo para o lado sobre o banco, colocando espaço enorme entre ela e

Artie.

Geralmente eu não era assim, mas confesso que não conseguia

deixar de gostar dela.

E quanto a Artie, no meio dessa cena? Demonstrava o maior interesse

e parecia profundamente concentrado no canto inferior esquerdo

do quebra-cabeça. Muitas vezes ele exibia um jeito caladão e mis-

terioso, mas sempre que Vonnie e eu começávamos com nossas

agressivas brincadeiras mútuas de mulheres-alfa, ele aprendera —

seguindo instruções minhas — a se ausentar por completo.

No começo, tentara me proteger dela, mas eu me sentira mor-

talmente ofendida.

— É como se você estivesse insinuando que ela é mais assusta-

dora do que eu! — desabafei.

Na verdade, era Bruno, de treze anos, o verdadeiro problema.

O pivete era mais abusado que a mais vingativa das garotas e, sim,

eu sabia que tinha bons motivos para isso; seus pais se separaram

quando ele estava na tenra idade de nove anos. Agora, ele se tornara

um adolescente dominado pelos hormônios da raiva, que expressava

o tempo todo vestindo-se num gênero “fascista chique”: camisas

pretas justas, calças pretas estreitas enfiadas para dentro de relu-

zentes botas pretas que iam até os joelhos e cabelos muito, muito

louros, cortados bem curtos, a não ser por uma franja majestosa,

típica dos anos 1980. Também usava sombra nos olhos e, pelo visto,

começara a passar blush.

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— E então?... — Sorri, um pouco tensa, para os rostos reunidos.

Artie ergueu os olhos do quebra-cabeça e me deu uma encarada

intensa com seus olhos azuis. Meu Deus. Engoli em seco, com força.

Na mesma hora, desejei que Vonnie fosse para casa e as crianças para

a cama, para eu poder curtir algum tempo sozinha com Artie. Será

que seria descortês pedir a eles para darem o fora?

— Quer beber alguma coisa? — perguntou ele, sustentando o

olhar.

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça, em silêncio.

Torci para ele se levantar, para eu poder segui-lo até a cozinha e

dar uma cheirinho nele, mesmo que rápido e furtivo.

— Podem deixar que eu pego as bebidas — ofereceu Iona, com

ar sonhador.

Engolindo um uivo de frustração, espiei-a descer adejando pelos

degraus flutuantes até a cozinha, onde a bebida morava. Aquela

menina tinha quinze anos! Eu achava espantoso ela ser capaz de

carregar um vinho de um cômodo para outro sem beber tudo pelo

caminho. Quando eu tinha quinze anos, bebia qualquer coisa que

não estivesse presa na mesa com pregos. Isso era simplesmente o que

todos os adolescentes normais faziam, certo? Todo mundo era assim.

Talvez fosse falta de um dinheirinho extra no bolso, não sei explicar;

só sei que eu não entendia Iona e sua confiabilidade, muito menos

suas tendências abstêmias.

— Quer algo para comer, Helen? — perguntou Vonnie. — Há

uma salada com erva-doce e queijo vacherin na geladeira.

Meu estômago se apertou com força: não havia jeito de ele deixar

nada entrar.

— Eu já comi. — Na verdade, não tinha comido. Não tinha con-

seguido empurrar para dentro do estômago nem uma fatia de bolo

da hora do jantar de mamãe e papai.

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— Tem certeza? — Vonnie me lançou um olhar de cima a baixo.

— Você me parece meio magrinha. Não ouse ficar mais magra do

que eu!

— Não precisa ter medo disso. — Mas talvez houvesse razão

para eu parecer abatida. Não fazia uma refeição adequada desde...

Bem, já tinha algum tempo. Na verdade, nem conseguia lembrar

quando... Uma semana. Talvez mais. Meu corpo parecia ter parado

de notificar minha mente de que precisava de comida. Ou então

minha mente estava tão cheia de preocupações que não con seguia

lidar direito com as informações. Quando a mensagem finalmente

chegava ao destino, eu já não era mais capaz de fazer qualquer coisa

remotamente complicada para aplacar a fome, como despejar leite

em cima de cereais, por exemplo. Até comer pipoca, como eu havia

tentado na noite anterior, me parecera a coisa mais esquisita do

mundo — por que alguém comeria aquelas bolinhas crespas de

isopor, que cortam o interior da nossa boca e ainda espalham sal

nas feridas?

— Helen! — disse Bella. — É hora de brincar! — Ela me exibiu

um pente cor-de-rosa e um tupperware também cor-de-rosa cheio

de grampos de cabelos cor-de-rosa e elásticos para cabelos reves-

tidos de pano. Tudo cor-de-rosa! — Sente-se aqui...

Ah, meu Deus. Brincar de cabeleireira. Pelo menos aquele não

era dia de “atendente de registros de placas de veículos”. Esse era, de

longe, o pior dos nossos jogos. Eu tinha de ficar em pé, como se esti-

vesse numa fila, e ela se mantinha impassível atrás de um guichê de

vidro imaginário. Eu vivia sugerindo para brincarmos disso online,

mas ela protestava e argumentava que assim não seria um jogo.

— Veja, chegou sua bebida! — exclamou Bella, e sussurrou para

Iona: — Anda, entregue logo o copo, não vê que ela está estressada?

Iona me apresentou uma taça de vinho tinto e um copo alto,

gelado, tilintando com cubos de gelo.

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CHÁ DE SUMIÇO 25

— Vinho shiraz ou então chá gelado de valeriana, feito em casa.

Eu não sabia o que você iria preferir, então trouxe os dois.

Fiquei por um segundo contemplando o vinho, mas logo decidi

dispensá-lo. Tinha medo de, se começasse a beber, não conseguir

mais parar. Não poderia suportar o horror de uma ressaca.

— Vinho não, obrigada.

Fortaleci-me para o espanto exagerado que em geral se seguia a

esse tipo de declaração:

“O quê? Vinho não?!... Ela disse ‘Vinho, não’? Pirou de vez?”

Esperei que os Devlin se levantassem todos juntos e lutassem

comigo até eu ficar imobilizada numa chave de braço, de modo que

o shiraz pudesse ser despejado dentro de mim através de um funil

plástico, como um carneiro sendo entubado, mas minha declaração

passou em branco, sem comentários. Eu tinha me esquecido, por

um momento, de que não estava com minha família de origem.

— Prefere Coca zero? — perguntou Iona.

Meu Deus, os Devlin eram os perfeitos anfitriões, até mesmo

uma figura excêntrica e etérea como Iona. Eles sempre tinham

Coca-Cola zero na geladeira especialmente para mim, pois nenhum

deles bebia.

— Não, obrigada, apenas chá está ótimo.

Tomei um pequeno gole do chá de valeriana — não era ruim,

embora também não fosse bom — e depois me sentei num maciço

almofadão de chão. Bella ajoelhou-se ao meu lado e começou a

acariciar meu couro cabeludo.

— Você tem cabelos maravilhosos — murmurou a menina.

— Muito obrigada.

Detalhe: ela achava que eu tinha tudo bonito; não era exata-

mente uma testemunha confiável.

Seus dedinhos pentearam e separaram mechas, e os músculos

dos meus ombros começaram a relaxar pela primeira vez em cerca

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de dez dias; tive o alívio de uma respiração adequada, em que meus

pulmões se encheram plenamente de ar e depois o soltaram.

— Puxa, isso é tão relaxante!...

— Teve um dia ruim? — perguntou ela, solidária e simpática.

— Você nem faz ideia, minha amiguinha cor-de-rosa.

— Pode desabafar comigo.

Eu já estava pronta para jogar um monte de coisas terríveis em

cima da menina quando lembrei que Bella tinha apenas nove anos.

— Bem... — disse eu, esforçando-me muito para dar às coisas um

toque alegre. — É que eu não consegui pagar minhas contas e tive

de me mudar do meu apartamento...

— O quê? — Artie pareceu espantado. — Quando foi isso?

— Hoje. Mas tudo bem. — Eu falava mais para Bella do que para

ele.

— Mas... Por que você não me contou? — insistiu ele.

Por que eu não tinha contado? Quando lhe dera a chave do apar-

tamento, seis semanas antes, eu lhe avisara de que isso era uma

possibilidade, mas fizera a coisa soar como se fosse brincadeira;

afinal, o país inteiro estava com prestações imobiliárias em atraso,

todos enterrados até o pescoço em dívidas. Mas ele ficara com as

crianças no fim de semana anterior, tinha estado ausente durante

toda a semana, e eu achava difícil ter esse tipo de conversa séria pelo

telefone. Além do mais, para falar a verdade, não havia contado a

ninguém o que estava acontecendo.

Na véspera daquele dia, de manhã, percebi que tinha chegado

ao fim da estrada — o fim da estrada, na verdade, fora alcançado

algum tempo antes, mas eu negava o fato, esperando que os operá-

rios do Departamento de Obras aparecessem com asfalto, algumas

linhas brancas para dividir as pistas, e construíssem alguns quilô-

metros a mais para mim —, então simplesmente marquei com os

dois sujeitos que faziam mudanças. Vergonha, provavelmente, foi

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o que me mantivera calada. Ou terá sido a tristeza? Ou o choque?

Difícil saber ao certo.

— O que você vai fazer agora? — A voz de Bella soou preocupada.

— Voltei a morar com minha mãe e meu pai por algum tempo.

Eles estão passando por dificuldades, no momento, e não há muita

comida, mas dá para ir levando...

— Por que não se muda para cá? — perguntou Bella.

Na mesma hora, o lindo rostinho aveludado de Bruno se acendeu

de fúria. Em geral ele vivia tão zangado que era de esperar que seu

rosto fosse todo coberto de espinhas. Uma manifestação externa,

por assim dizer, da sua bile interior. Na verdade, porém, ele exibia

uma pele muito macia, suave e delicada.

— Porque seu pai e eu estamos saindo juntos há muito pouco

tempo, e...

— Cinco meses, três semanas e seis dias — relatou Bella. — São

quase seis meses. Metade de um ano!

Um pouco ansiosa, olhei para seu rostinho ardente.

— E vocês se dão muito bem um com o outro — afirmou ela,

com entusiasmo. — É o que mamãe diz. Não é, mamãe?

— Digo sim, com certeza — falou Vonnie, com um sorriso

torto.

— Mas eu não posso me mudar para cá — tentei com muito

esforço falar de maneira alegre — ... porque Bruno me esfaquearia

no meio da noite. — E depois roubaria minha maquiagem.

Bella ficou horrorizada.

— Ele não faria uma coisa dessas.

— Faria, sim — garantiu o menino.

— Bruno! — Artie gritou para ele.

— Desculpe, Helen. — Bruno conhecia as regras. Virou-se de

lado, mas deu para vê-lo formar palavras que não expressou em voz

alta: “Vá se foder, sua cara de xereca.”

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Precisei de todo autocontrole para não fazer com a boca, em

resposta: “Vá se foder você, menino fascista.” Mas eu já tinha quase

trinta e quatro anos, lembrei a mim mesma. E Artie poderia per-

ceber essa reação.

Minha atenção foi desviada por uma luz que piscava no meu

celular. Um novo e-mail tinha acabado de chegar. O título curioso

era: “Imenso pedido de desculpas”. Então, vi quem era o remetente:

Jay Parker. Quase deixei o aparelho cair no chão.

Queridíssima Helen, minha deliciosa rabugentazinha. Em-

bora me mate reconhecer o fato, preciso muito da sua

ajuda. Que tal deixar para trás as coisas passadas e entrar

em contato comigo?

Aquilo merecia uma resposta curta, apenas uma palavra. Demorei

menos de um segundo para digitar:

Não.

Deixei Bella brincar com meus cabelos, bebi meu chá de vale-

riana e espiei os Devlin montando o quebra-cabeça, desejando que

todos — menos Artie, é claro — dessem o fora dali. Será que não

po díamos, pelo menos, ir lá para dentro e ligar a TV? Na casa onde

eu fui criada, tratávamos o que estava “do lado de fora” da casa com

muitas suspeitas. Mesmo no auge do verão, nunca entendíamos exa-

tamente o porquê da existência de jardins, especialmente porque

o fio da TV não se estendia até o lado de fora da casa. E o aparelho

de televisão sempre fora muito importante para os Walsh; nada,

absolutamente nada tinha acontecido em nossas vidas — nascimentos,

mortes, casamentos — sem a participação da televisão como pano de

fundo da ação, de preferência transmitindo alguma novela em que

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os personagens se expressavam aos gritos. Como será que os Devlin

conseguiam aguentar toda aquela conversa tranquila?

Talvez o problema não fosse com eles, percebi. Talvez o problema

fosse eu mesma. Minha habilidade para conversar com outras pes-

soas parecia estar se esvaindo de mim, como o ar escapando de um

balão velho. Eu estava pior agora do que uma hora antes.

Os dedos suaves de Bella puxavam meu couro cabeludo, e ela

emitia sons agudos que certamente eram estalos de admiração com

a língua; depois se alvoroçava, até finalmente chegar a algum tipo de

resolução com a qual estava feliz.

— Perfeito! Agora você parece uma princesa maia. Veja só!

Colocou um espelho de mão diante do meu rosto. Captei uma

rápida visão dos meus cabelos em duas tranças compridas e algum

tipo de coisa tecida à mão amarrada através da minha franja.

— Olhem para Helen! — convocou a menina, olhando em

torno. — Ela não está linda?

— Linda! — exclamou Vonnie, num tom de profunda sinceri-

dade.

— Parece uma princesa maia — enfatizou Bella.

— É verdade que foram os maias que inventaram o sorvete

Magnum? — perguntei.

Houve um breve silêncio atônito e depois a conversa recomeçou,

como se eu não tivesse dito nada. Eu estava totalmente fora de sin-

tonia, ali.

— Ela está igualzinha a uma princesa maia — confirmou Vonnie.

— A não ser pelo fato de que os olhos de Helen são verdes, e os de

uma princesa maia seriam provavelmente castanhos. Mas os cabelos

estão perfeitos. Muito bem, Bella! Mais chá, Helen?

Para minha surpresa, eu me senti farta dos Devlin, pelo menos

naquele momento. Estava cheia daquela família, revoltada com sua

aparência impecável, sua graça, suas maneiras finas, seus jogos de

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tabuleiro, suas pausas amistosas e as pequenas taças de vinho ao

jantar, para as crianças. Na verdade, eu queria ficar sozinha com

Artie, mas isto não iria acontecer, e eu não consegui reunir nem

mesmo a energia para me sentir chateada com a situação; aquilo

não era culpa dele. Artie tinha três filhos e um emprego que tomava

muito do seu tempo. Ele não fazia ideia do dia que eu tinha enfren-

tado. Ou da semana, na verdade.

— Não, não quero mais chá, obrigada, Vonnie. É melhor eu ir

embora. — Levantei-me.

— Você já vai embora? — Artie parecia preocupado.

— Virei aqui para ver você no fim de semana. — Ou quando for a

vez de Vonnie ficar com as crianças. Eu me perdera quanto às escalas

deles, que eram muito complicadas. A premissa básica era de que

as três crianças passassem quantidades de tempo escrupulosamente

iguais nas casas dos dois pais, mas os dias em que isto acontecia

variavam de uma semana para outra, dependendo de fatores do tipo

Artie ou Vonnie (sobretudo Vonnie, se querem saber) terem mini-

férias, cerimônias de casamento de amigos comuns no campo etc.

— Você está bem? — Artie começava a parecer preocupado.

— Estou ótima. — Eu não podia tratar do assunto naquele

momento.

Ele me agarrou pelo pulso.

— Não quer ficar mais um pouco? — Com a voz muito baixa,

propôs: — Posso pedir a Vonnie para ir embora. E as crianças terão

de ir para a cama, em algum momento.

Mas isso ainda poderia demorar várias horas para acontecer.

Artie e eu nunca íamos para a cama antes das crianças. É claro que

muitas vezes eu estava lá de manhã, de modo que era óbvio que eu

tinha passado a noite ali, mas nós — todos nós — costumávamos

recorrer à farsa de que eu dormira em alguma cama extra imagi-

nária, e que Artie passara a noite sozinho. Embora eu fosse o caso

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amoroso de Artie, todos costumavam me tratar apenas como uma

amiga da família em visita.

— Preciso ir. — Eu não aguentaria nem mais um minuto sen-

tada ali no deque, esperando pegar Artie sozinho, louca para ter a

chance de tirar as roupas do seu belo corpo. Eu explodiria.

Antes, porém, ainda havia as manifestações de adeus. Demoraram

cerca de vinte minutos. Eu não estava acostumada com despedidas

muito compridas; se a escolha fosse minha, preferia resmungar

alguma coisa sobre ter de ir ao banheiro, sair de forma furtiva e já

estar a meio caminho de casa antes que qualquer pessoa percebesse

que eu me ausentara dali.

Em minha opinião, dizer “até logo” é uma coisa insuportavelmente

chata. Puxa, mentalmente eu já tinha dado o fora dali! Tipo... Fui!

A mim, parecia uma perda total de tempo aqueles “tudo de bom”,

“até a próxima”, “cuide-se bem, viu?”, os sorrisos generosos e coisas

do gênero.

Algumas vezes sinto vontade de arrancar as mãos das pessoas

dos meus ombros, afastá-las com um empurrão e simplesmente me

arremessar para a liberdade. Mas transformar o ritual de despedidas

numa grande produção era o jeito de ser dos Devlin: abraços e beijos

dos dois lados do rosto — mesmo da parte de Bruno, que, claramente,

ainda não tinha conseguido romper inteiramente com seu condi-

cionamento de classe média. Da parte de Bella, beijos quádruplos

(nas duas faces, na testa e no queixo), acompanhados de sugestões de

que, muito em breve, poderíamos tirar um bom cochilo no quarto

dela.

— Eu lhe emprestarei meu pijama estampado da Moranguinho

— prometeu ela.

— Você só tem nove anos — disse Bruno, ridicularizando a irmã

de forma implacável. — Helen é, digamos assim... Velha. Como acha

que seu pijama vai caber nela?

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— Somos do mesmo tamanho — garantiu Bella.

Engraçado é que praticamente éramos, mesmo. Eu era baixa para

minha idade e Bella era alta para a sua. Eles eram todos altos, os

Devlin; tinham puxado a Artie.

— Tem certeza de que deve ficar sozinha? — perguntou Artie,

quando me acompanhou até a porta da frente. — Vejo que você teve

um dia muito ruim.

— Que nada, estou ótima.

Ele pegou minha mão e esfregou a palma contra sua camiseta,

por cima dos seus músculos peitorais, e depois desceu lentamente

na direção da sua barriga de tanquinho.

— Pare! — afastei-me dele. — Não adianta começar uma coisa

que não poderemos terminar.

— Hummm... Tá bem. Mas vamos pelo menos tirar esse troço

dos seus cabelos, antes de você ir embora.

— Artie, eu já disse que...

Com muita ternura, ele desamarrou a faixa maia que Bella colo-

cara em mim, exibiu-a para mim com um floreio e depois a deixou

cair no chão.

— Ah... — murmurei. E depois “ahn...”, quando ele deslizou

suas mãos debaixo do contorno dos meus cabelos e por cima do

meu pobre e atormentado couro cabeludo, começando a desfazer

as duas tranças. Fechei os olhos por um momento, deixando suas

mãos abrirem caminho através dos meus fios. Ele girou os polegares,

fazendo lentos círculos em torno das minhas orelhas, seguiu para

minha testa, sobre as linhas franzidas entre as sobrancelhas, e parou

no ponto tenso onde meu pescoço se encontrava com meu couro

cabeludo. Meu rosto começou a se suavizar e senti meu maxilar

paralisado relaxando aos poucos; quando finalmente parou, eu

estava em tamanho transe, que uma mulher menos enérgica teria

desabado.

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Mas consegui me manter ereta.

— Babei em você? — Eu quis saber.

— Dessa vez, não.

— OK, vou nessa!

Ele curvou a cabeça e me beijou, um beijo mais contido do que

eu preferiria, mas era melhor não iniciar nenhum incêndio.

Deslizei minha mão para cima, até a parte de trás da sua cabeça.

Gostava de emaranhar meus dedos entre os cabelos da sua nuca e

puxá-los, mas não com força suficiente para machucar. Quer dizer,

mais ou menos.

Quando nos afastamos, eu disse:

— Gosto dos seus cabelos.

— Vonnie diz que preciso cortá-los.

— Eu discordo. E quem decide sou eu.

— OK — disse ele. — Durma um pouco. Telefonarei para você

mais tarde.

Tínhamos entrado numa rotina — bem, acho que era uma

rotina — nas últimas semanas, e sempre conversávamos rapida-

mente pouco antes de dormir.

— E quanto à sua pergunta — disse ele —, a resposta é sim.

— Que pergunta?

— Foram os maias que inventaram os sorvetes Magnum?

— Ah...

Sim, é claro que os maias tinham inventado os sorvetes

Magnum.

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