Educação Para Potência (8 Aulas) - Luiz Fuganti

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    EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA

    TRANSCRIÇÃO (8 AULAS)

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    Educação para a Potência Aula 1 (Ditos Transcritos)(Transcrição literal sem revisão do autor feita por Renata Melo)

    EDUCAÇÃO PARA POTÊNCIA - Aula 1 / Ano 2008 - Turma IIPor Luiz Fuganti

    Esse curso faz parte de um projeto maior, “bem ambicioso” chamado Filosofia naPrimeira Idade, que tem uma visão muito diferenciada em relação a educação, afilosofia, a estética, a ética, a memória. São estas as questões que vamos trabalhar aqui.Educação para Potência é um nome que contrasta com os modos tradicionais que, a meuver, são todos voltados para uma educação para a obediência. Nossa idéia é desmontar,desconstruir o sentido que se tem de educação. É muito raro ver uma educação que, defato, se volte para a potencia. Existem escolas que trabalham a competência, mas acompetência é ainda algo que se refere às disciplinas. Não que a disciplina seja em si

    algo ruim, mas o uso que se faz dela que pode ser algo muito nocivo. E a disciplina numsentido moderno, kantiano, tem a ver com certo instante de autoridade ou deautorização. Então você adquire um saber e na medida em que se torna apto a aplicaresse saber, você adquire uma competência e também uma autoridade. A educação estátoda fundada neste modelo.

    Por mais que se diga que a educação liberta, a nosso ver, esse tipo de educaçãoaprisiona. A educação é uma forma de engajar o desejo, assim como a família e outrainstituições, numa forma humana de viver, que a nosso ver, ao longo da vida, vai

    despotencializando a vida. Então esse curso se insere numa postura crítica em relaçãoaos valores estabelecidos, às nossas práticas humanas em todas as áreas, ao mesmotempo em que nos insere numa postura criativa. Criar uma linha de fuga afirmativa, umaoutra maneira de existir, de agir e de pensar. Essa postura lança um desafio que não é

     pequeno. Um dos motivos que nos levou a investir nessa área também é que hoje em diaos homens mais conservadores, os mais moralistas, os mais místicos, os mais deesquerda, ou seja, todo espaço entre deus e o diabo, entre o bem e o mal, todos dizem,unanimemente: a educação é a saída. É de se estranhar essa unanimidade? Não, porquea educação sempre foi uma máquina de fazer com que a vida, de alguma maneira, seconformasse com um modo moral e racional de ser. Muitas vezes vemos estudantesuniversitários se rebelarem, que a educação está errada, que os currículos enchemlingüiça, muita coisa não tem nada a ver com a prática da vida, mas na verdade, seanalisarmos, veremos que não está nada errado. Se a sociedades com suas instituições,quisessem, de fato, mudar a educação, já teriam feito. Mas não há este investimento,esse desejo. O desejo é sistematicamente quebrado sempre que ele tenta mudar uma

     postura, ou inventar outra maneira, ele é quebrado pela máquina de anti produção social,que mais tarde vamos falar. O que mais a gente vê são professores, coordenadores,diretores, educadores, se queixarem que o ensino está ruim, a rede do estado, domunicípio, da união, etc. E há um investimento de forma quantitativo na educação,

    assim como na saúde e outra áreas. Nenhuma criança fora da escola. Será que não seriauma sorte uma criança ficar fora desse tipo de escola? Ser incluído neste sistema

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    educacional é bastante complicado, pois é um sistema que está montado numa certaformatação, cujo objetivo nunca é dito. A transmissão de conteúdo, de verdades ésecundária em relação a uma operação formal de corte, de separação da vida do que ela

     pode. É isso que a máquina da educação faz efetivamente. É neste corte que vamosoperar o tempo inteiro, de modo critico e, ao mesmo tempo, fazer do corte uma ponte

     para uma postura criativa. De que maneira?

    Imagina-se que o problema escolar ou educacional é de conteúdo. Tem muitas escolasalternativas que alteram o currículo, ou mudam o conteúdo, mudam até a forma, masnão transmuta a forma, transforma, criando outros sistemas operacionais. Mas antesdessa forma ou conteúdo existe uma operação de separação que é silenciosa, é muda,surda, cega, e opera numa zona de nós mesmos que faz com que a gente se transforme

    no mesmo lugar, imperceptivelmente, através de uma transformação incorporal, queimpede que a gente fale em nome próprio, que experimente realmente, que encontre oimediato do pensamento, do corpo. Essa quebra essencial nos põe demandando poreducação, competência, autorização, formação. Alunos e professores se tornamcúmplices dessa máquina, por mais rebeldes que eles sejam, por mais que queiram criaroutras maneiras. Existe um corte mais imperceptível, mais sutil, que vamos trabalhar.Precisamos atingir uma zona virtual do modo de viver. Nessa zona virtual é que eleopera. É uma espécie de superfície de inscrição que se dá tanto no tempo como nomovimento. Tanto no pensamento, através da linguagem, como no movimento ou no

    corpo, através da sensibilidade ou das imagens. Vamos ver qual o regime das imagens eda linguagem onde a coisa opera. A idéia então não é mudar os paradigmas, mas sairdos paradigmas e atingir, de fato, onde interessa que é a produção de um desejointensivo, de um pensamento afirmativo, de um modo ativo de viver, cuja forçadominante é a capacidade de criar a própria condição da experiência. A única nobrezada conservação seria conservar a capacidade de criar. Na medida em que se mantemcolado à capacidade de criar não se demanda referências, sistemas, provedores,

     providências, tutores. A única referência é o seu modo de vida, que varia a capacidadede se fazer a seleção, a capacidade ética, estética e a capacidade de pensar. O

     pensamento, estética e ética estão absolutamente interligados, um atravessando o outro,gerando uma condição de sustentabilidade para um devir ativo. Nessa medida ele setorna produtor de memória, que não é mais representação do passado, mas é função defuturo.

    Os 5 blocos:

    -Experiência do pensamento

    -Experiência do corpo

    -Experiência da seleção

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    uma vida separada do que ela pode precisa investir naquilo que supostamente a ligarianovamente com essa potência. Mas como essa relação é extrínseca, essa potencia virauma relação de poder. Já é uma impotência que precisa de poder. Mas há um círculovicioso. Porque a sociedade não muda? Porque ela precisa daquilo que a enfraquece.Pela imaginação você morde o anzol. Como se diz, o peixe morre pela boca. Você vai

     buscar o alimento fora, o poder, o reconhecimento e aí que você alimenta o buraco, afalta em você. E quanto maior o buraco e a falta mais necessidade de buscar o objetofora para preencher. A pessoa fica no campo da imaginação, do simbólico, da estrutura.Existem sistemas extremamente sofisticados de se operar isso hoje em dia. Oestruturalismo é um deles.

    Existe em nós, sempre, uma presença que é disponibilizada no mecanismo da atenção,da atualização. Uma parte desse mecanismo é consciente ou não é disponibilizado, masa presença está lá, algo em nós está. Os modelos geralmente fracassam, principalmente

    os de esquerda, pois a esquerda é prisioneira da falsa demanda, da inconsciência queestão alienados. Esse modelo da ideologia, da alienação, da consciência, éextremamente falido e sabemos que não teria outro destino porque ele já parte de umresultado, não daquilo que produz. Já parte de uma determinação operada naconsciência. A consciência é um dispositivo sempre retardado, sempre chega depois queo mais importante já foi decidido. Algo decide em você e você acredita que foi umaconsciência em você que decidiu, mas ela foi determinada a decidir psicologicamente.Tem uma determinação anterior a essa decisão psicológica. Isso opera no campo doencontro. Por isso precisamos retomar o modo de relação, o modo de encontrar, o modo

    de acontecer porque a determinação se opera no acontecer e produz algo em nós e esseefeito é que se torna consciente em nós. Nós só temos consciência do efeito, mas nãoentendemos a causa que operou e produziu isso em nós. E pelo efeito, uma vez que agente não ultrapassa o efeito na consciência, a gente vai precisar imaginar a causa. E aívai imaginar a causa com o um outro efeito desse algo que se põe no lugar da causa.Então você vai inverter, por o efeito no lugar da causa, explicar de modo invertido. Éum mecanismo que acontece e vários pensadores vão desconstruir esse mecanismo:Epicuro, Lucrecio, os estóicos e principalmente, Spinoza, Hume, Nietzsche, Bérgson,Foucault, Deleuze-Guatari. Spinoza faz isso com muito rigor, com uma plenitude, inseretudo num campo de imanência e Nietsche também, com uma outra linguagem.

     Nietzsche chama de imagem invertida e Spinoza de ilusão de consciência. Bérgsonchama de visão retrospectiva.

    A questão é que mesmo na consciência alienada existe uma cumplicidade. Algo quedeseja em mim tem vantagem nesse modo de viver. É o certo ao contrário. Mas avantagem o torna ainda mais refém e dependente. Uma sutileza atual extremamenterefinada vem de Kant e tem muitos filósofos e educadores que seguem essa linha, quedizem que é importante trazer a filosofia para a escola. Essa filosofia que eles queremtrazer para a escola é a filosofia da autonomia. Mas a filosofia da autonomia é aquela

    que você conquista uma pura forma de ser, que nada mais é que dever ser e, nessamedida você se torna autorizado e autorizador como diz Kant, um legislador, até capaz

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    de inventar leis, a partir dessa pura forma. Você adquire uma competência. Umaautonomia extremamente refinada, onde você não é mais comandado por nenhuma coisade fora. Como diz Nietzsche, outrora eu tinha deus para nos carregar. Nós como burrosde carga carregávamos nos valores divinos. Agora o homem diz: chega de deus, deusmorreu, eu mesmo me carrego, não preciso de deus. Essa é a autonomia moderna.Carrega-se os valores morais nos ombros. É o tal do imperativo categórico em Kant.Você não faz uma coisa porque vai obter vantagem, faz por puro desinteresse, porverdade, porque é a maneira superior de ser. É uma maneira desinteressada, faz por puraverdade. Eu amo meu pai porque ele é meu pai. Eu me relaciono com a lei porque a lei éa lei, é universal. Essa é a mentira ainda mais hipócrita. É mais fingida, mais mascarada.É a questão moral de modo superior, não do ponto de vista da religião. Deus morreu. Éa lei a serviço do bem. Mas o bem que é resultado da lei. O que importa é a lei, a puraforma de dever ser e o resultado que vai ter daí é uma autorização, uma justificação,uma legitimação. É a nossa sociedade, jurídica, legal, legalista, dos direitos humanos, da

    cultura da paz. E aí tem muitas instituições que investem nisso, numa ficção no que éviolência. Uma visão mascarada da violência real. Essa cultura da paz é totalmentehipócrita em grande parte, uma paz que é uma rendição das forças mais interessantes dohomem. Uma espécie de deposição de armas. Vamos nos desarmar todos. Mas quearmas que se tem? São armas bizarras, nesse sentido é bom desarmar-se , mas não paraficar desarmado e sim pegar autênticas armas. Armas que combatem tudo que vive das

     paixões tristes. Armas que produzam uma máquina de guerra em relação a tudo que precisa se combatido, da miséria, da tristeza, do enfraquecimento, da opressão, daapropriação para viver e fundar o seu poder. Aí sim, esse tipo de arma a gente precisa

    construir. Não depor as armas ou achar que pelo convencimento racional vai se chegar aalguma coisa. Primeiro precisa ver que tipo de razão é essa. Existem vários tipos derazões que são sempre postas em um campo de forças. Não existe uma racionalidadeverdadeira. Todas são verdadeiras ou todas são falsas. Você tem a racionalidade quemerece, assim como a vida e a sociedade, depende do uso que faz dela, o que motiva,qual o motor dessa racionalidade, o que ela objetiva, como ela funciona.

    Mas nosso argumento essencial é reencontrar o imediato do movimento e do tempo, pois já o encontramos alguma vez, já foi presente em nós de modo dominante. Não queele não está mais aí. Ele está, mas não de modo dominante. Ao contrário, o que édominante em nós é uma mediação. Essa inversão que precisamos operar, essadesconstrução, sob o ponto de vista crítico e um cultivo sob o ponto de vista criativo

     para que essa dimensão se torne dominante em nós e auto sustentável. Esse é o desafio.

    A primeira esfera que nomeamos experiência do pensamento ou filosofia na primeiraidade pode dar um panorama na medida em que a gente vai explicitar a palavraexperiência, que não é uma palavra, mas um conceito. O que é experimentar? O que é

     pensar? O que é filosofia? O que é primeira idade? Na medida em que voudesconstruindo isso vamos também entender o que é a experiência do corpo, ou a

    estética na primeira idade. Vai, ao invés de situar o pensamento onde se colocou, emvez de situar a filosofia a gente situa a estética.

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     Vamos agora desdobrar a experiência, a idéia do imediato do pensamento, que é a

     primeira idade que se refere ao pensamento, ao corpo e depois aos modos de escolha.Em seguida temos a experiência da escolha ou do modo de fazer a diferença na vida oude criar uma superfície seletiva, que não é nem do ponto de vista do imediato, quevamos chamar de ética, que entra em contraste com a moral, o modo moral e racional dedecidir. Existe uma zona que decide em nós, uma zona imediata, que faz a diferença,que não tem nada a ver com a consciência, ainda que ela se apresente. Primeira idade serefere ao que falei de imediato. Faremos também uma diferenciação conceitual entre

     primeira idade e primeiridade.

    Primeira idade é o encontro com o imediato. O imediato acontece em mim, tanto do ponto de vista do corpo, quanto do pensamento, quanto da capacidade seletiva. Eu faço parte do imediato e o imediato faz parte de mim, eu sou parte disso.

    A primeiridade é algo mais adiante, é uma conquista da capacidade de manter esseimediato como comandante na minha vida, é tomar parte do imediato. Ser capaz deconduzir o próprio destino e criar a si mesmo. Estilizar a existência. Criar corpo,

     pensamento, desejo, capacidade seletiva.

     Na esfera da memória a mesma coisa vai se operar. Vai haver uma experiência dotempo ou do registro do tempo ou da condução de registro do tempo imediato. Nessamedida, no tempo que se conserva ou que se apreende a si mesmo e se redispõe em

    direção ao futuro. Isso que diz respeito à produção de memória de futuro ou produçãode pontes, ou plano de continuidade para um devir ativo ou intenso, auto sustentável.Fazer de si um moto continuo. Nós, de alguma maneira, somos moto continuo. Aquiloque Varela chama de auto poresi. Auto fabricação de si, de modo ativo, afirmativo, semser determinado de fora. O fora como excitante e aliado, e não como opressor,determinante ou algo que submete a vida a alguma autuação. Esse imediato na produçãoe disponibilização do tempo e da memória é um outro tipo de experiência. Cada esfera éuma esfera distinta de experimentação. São cinco: A do pensamento, do corpo, daseleção, da continuidade ou da duração que produz memória de futuro, e a última que éesse encontro com o imediato no ensino aprendizado, enquanto a experimentação te põeem contato com o próprio imediato do movimento e do tempo. O que o tempo e omovimento apreendido de modo imediato, transmite, ensina, cria, aprende, apreende.Como se dá esse processo? E como a partir desse processo há então uma capacidade demultiplicação? De vontade de expansão.

    Experiência do pensamento ou filosofia na primeira idade

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    O que é experiência? O que é experimentar para nós? Para nós, geralmente é seapropriar de algo, saber usar, ter uma disponibilização à medida que aumentamos ocontato com o objeto em experiência.

    A gente vai experimentar porque acha que vai se enriquecer. Experimentar é motivado pela promessa de enriquecimento. A gente geralmente copia, porque saltamos umaetapa. Saltamos, pois a própria experimentação é sabotada. Há uma dimensãoimperceptível que sabota a experimentação e o que se coloca no seu lugar é o consumo.

     Nós consumimos imagens, sensibilidades, sentimentos, sensações, afetos, sempre do ponto de vista de uma imagem. Os afetos sobre a imagem são paixões e sofrimentos, nomelhor dos casos, é o que consumimos. Muitas imagens, muitos signos, discursos,muitas palavras, muita instrução, muita formação. No lugar da experiência se édisponibilizado uma capacidade de consumir. É por isso que o sistema não te exclui oudescarta. Ele não pode, ele precisa de você, como um consumidor e, ao mesmo tempo,

    como um produtor. Essa dimensão da experimentação é a dimensão do consumo. Entãoo que se passa é que em vez de você se conectar com a fonte real que sustenta acapacidade aberta de experimentar, realmente, o inédito, o imediato, o novo, você écondicionado na experimentação a investir num certo padrão, numa certa referência,num elemento que legitimaria uma experiência tolerável. Admissível socialmente,

     politicamente, moralmente, economicamente, racionalmente, religiosamente. Isso para oseu próprio bem, senão você vai ser esmagado. Há um corrente de transmissão decovardia. Carta ao Pai, de Kafka, é isso: meu pai, você baixou a cabeça, você quer queeu baixe também? Eu te perdôo por você ser covarde, mas não queira que eu seja

    também. Porque queres que eu baixa a cabeça? Para o meu bem? E a forma maishipócrita de baixar a cabeça é levantar com autoridade. Aquele que tem a cabeça em pé,sustentada pela autoridade, esse já baixou, perdeu a cabeça. Pôs o rosto, que é umincorporal, no lugar da cabeça, que é o corpo. Em nome da autoridade você pratica oautoritarismo. É por isso que a forma esconde uma violência e um terrorismo. Nãoadianta dizer que a forma é democrática. Por mais democrática e pulverizada que seja, aforma é micro fascista. Assim como todo poder. Não adianta dizer: Ah, o poder é dos

     brancos, vamos dar para os negros, índios, mulheres e crianças, pois só o adulto machotem. Não adianta pulverizar o poder, ou a forma da decisão, numa democracia que todomundo tem o direito de dar a sua opinião, seu voto, a seu isso ou aquilo. Você já érefém de uma instância que autoriza. Aqui se esconde o elemento inconfessável. Oconteúdo é sempre um diagrama de forças. A forma está articulada, mas é uma formavazia, que não se sustenta sem o conteúdo, que são forças dominantes. Em nome do

     bem se invade o Iraque, o Afeganistão, faz as piores coisas. Assim é a lei. Dizemsempre que só ganha quem tem mais dinheiro. Nenhuma lei tem uma interpretaçãoverdadeira em si mesma. Toda lei depende da força que a está interpretando. Há uminterpretante atrás do elemento a ser interpretado. E esse interpretante é força, não éforma, não é formal. Essa é a enganação, a hipocrisia.

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    O que a gente chama de experimentar é, geralmente, consumir referências, autorizações,reconhecimentos. A gente geralmente consome aquilo que, justamente, nos devolve

     poder, e não potência. A gente consome para se enriquecer. A gente experimenta para seenriquecer. Mas se a experiência é fraudada, inviabilizada, e no seu lugar é posto umarelação de consumo de imagens, de signos, de discursos, de sentimentos, de instruçõesde formações, de objetos de prazer, o que se passa, efetivamente, é que vou meentupindo no corpo, no pensamento e na vida. O que era para ser um elementoenriquecedor através da experiência, tornou-se um elemento mortificador. Seguimosnessa relação, pois a morte é lenta, em vida. E, ao mesmo tempo, esse elemento nos dáuma ilusão de satisfação. Mas sabemos que no fundo a insatisfação e a frustraçãocrescem. E quanto mais insatisfação e mais frustração mais necessidade de “enriquecer”com o consumo. Mais objetos de consumo.

     Não há investimento do desejo ou submissão do desejo que não tenha uma

    cumplicidade do próprio desejo. Então, o primeiro reencontro que precisamos operar emnós, a lição que temos que fazer no corpo, que é a nossa casa, é cultivar a capacidade deexperimentar realmente. Aprender isso, praticar isso. Um investimento de umacapacidade receptiva, que Spinoza chama de potência de ser afetado, que não é uma

     passividade, é uma potência em ato, não uma mera paixão. É uma potencia que secultiva, que a gente desdobra, desenvolve. Implica numa abertura tal, que aquilo que se

     passa na relação da vida com o que envolve a vida não tem atravessador, não temintermediário, é uma relação direta. Aí se dá uma experimentação. A capacidadereceptiva precisa ser investida e ao mesmo tempo produzida em nós. Precisamos nos

     preparar para sermos capazes de experimentar. Somos também cúmplices dessafalsificação da experimentação, que põe o consumo no lugar da experimentação, que éum falso enriquecimento, na verdade, é uma mortificação de nós mesmos, que estimulaem nós, não uma dança, mas um espírito de gravidade, de pesadume. Ficamos cada vezmais pesados quanto mais consomimos. Ao invés de nos enriquecermos, no sentido deficar dinâmico, leve, veloz, potente, a gente enriquece no sentido que vai se entupindo,cada vez mais sedentário, mais ancorado, mais tristes. Esse investimento na capacidadereceptiva, essa produção implica em acessar uma espécie de crítica. Precisamosaprender a dizer não para aquilo que se quer por no meio, aquele atravessador da nossaexperimentação direta. O modo como nos relacionamos com a imagem que se produz narelação, é ela que acaba entupindo os poros do corpo, que acaba segmentarizando osmovimentos, criando uma cadeia de ações e paixões que vai organizando nosso corpo enosso movimento. A gente vai criando poses, etiquetas, posturas, maneiras de semovimentar, a gente cria cidade, arquitetura, as nossas caixas, nossas gaiolas, nossomovimento ordenado, coordenado, organizado. Isso tudo se dá pelo campo da imagemou da sensibilidade. Isso que vai entupindo nossa capacidade de experimentar no corpoou de acessar o imediato do movimento que se engendra em si mesmo e não omovimento que, separado dele mesmo, se pendura numa referência, para aderir a umacadeia social de organização corpórea, um regime de luz ou de corpo, que disponibiliza

    o corpo e até retribui muitos prazeres que ficam aderido para que esse corpo agüente otranco do dia a dia. Outra maneira de inviabilizar a experiência é por o signo ou a

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     palavra no lugar do pensamento. É como se tivesse uma dimensão de nós mesmos quefica comentando o que vamos fazer, agora estou fazendo isso, agora isso outro, ficamediando o acontecimento com essa consciência e isso é operado, na verdade, nocampo da linguagem, no uso que faz da própria linguagem. Põe a linguagem no lugar do

     pensar. O pensamento é silencioso, mas a gente acha que ele é tagarela. Para cada coisa bem vulgar, existe os refinamentos máximos, bem elevados, filosofias, ciênciasextremamente refinadas.

    O signo no tempo, esse é outro atravessador, outro mediador. Esses mesmos elementossão usados pelo poder para nos separar do que podemos e para nos religar a ele, investirnele. Da mesma maneira que há um entupimento da nossa capacidade receptiva quandoo estado de corpo, ou pensamento ou o estado do desejo ou da potência ocupa o lugardo acontecimento. O acontecimento é primeiro. O acontecimento é a pura capacidade devariar, virtualmente. Virtualmente, somos pura variação e atualizamos essa capacidade

    de variar na medida que nossa potência, nossa presença, freqüenta a fronteira delamesma, numa relação com o que há em volta, enquanto potência e não enquanto estadode potência. Mas a potência que encontra sempre produz algo e esse algo enquanto

     produto pode se instalar e falsificar, produzir uma inversão. À medida que é apenas umestado, ocupar o lugar da própria potência, da própria essência ou do que nós somosinteiramente, é uma parcialização de nós mesmos que se põe no lugar do nosso desejoou potência plenas. É claro que ele está investido de potência, mas uma potênciaseparada da capacidade de acontecer diretamente, porque ela é mediada noacontecimento por esse estado. Isso é o que Nietzsche chama de ressentimento, mas a

    maneira como ele explica isso é bem sui generis. Spinoza chama de dupla ilusão dolivre arbítrio, como causa primeira de si mesma, o desejo começa em mim e comoilusão de causas finais ou a ilusão da intencionalidade que a natureza opera em nós,agimos por vista de um fim, são duas ilusões, que fazem com a gente perca a capacidadeética, seletiva real porque, como diz Nietzsche, só retorna o que afirma plenamente, oque afirma inteiramente o acontecimento. O próprio acontecimento como afirmação dadiferença que produz uma diferenciação ou uma singularização, faz essa mesmadiferença diferenciante, diferencial, diferenciar novamente. Faz o retorno dela. Oretorno da diferença, não o retorno do mesmo. Isso é uma capacidade seletiva, sóretorna a diferença que afirma plenamente a si mesma. Essa capacidade seletiva, nós a

     perdemos quando colocamos o estado de desejo no lugar do acontecimento. Aí oretorno que acontece é o retorno de estados, de permanências, de paradas, de repousos,de identificações, de fixações, de unificações, de totalizações e a gente vai relacionarmais com o ser, e o devir vai ser apenas uma função desse ser. (Na verdade, o ser deveser filho do devir. No fundo de tudo só tem devir, só tem variação. Aquilo que já diziaBérgson, a única substância é a mudança. Ou a substância de Spinoza que é a potênciaabsoluta de acontecer, de variar a si mesma, de produzir a si mesmo e a todas as coisas.)Isso inviabiliza nossa capacidade ética e vai fazer com a gente se relacione a umademanda moral. A gente vai precisar criar uma referência para se constituir como

    critério de escolha, que nos afasta do mal e nos liga ao bem, que nos afasta do nocivo enos liga ao útil, que nos afasta da injustiça e nos liga a uma máquina de justiça, que nos

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    nós? O estado? O que pensa em nós? È um sujeito chamado estado mental? O que ageem nós? É um individuo chamado estado corporal? Nós achamos que existe umainstancia em nós que move o corpo e que recebe o movimento, na verdade é um estadode corpo. Que há uma instância em nós que pensa, um sujeito de pensamento. Naverdade é um estado da captura do pensamento em nós, que chamamos de alma ousujeito, que ninguém admite não existir. A questão do estado de escolha que habita azona de indeterminação do acontecimento, simplesmente como uma zona primitiva ouentupida pelo campo de possibilidade, que nada mais é que essa retroprojeção do que jáfoi vivido, só que reprojetado no futuro, de modo melhorado, de modo moral. Eu viviassim, mas podia ser melhor ou eu vivi essa merda e isso tem que ser eliminado. Temum campo do possível mal que vou evitar, afastar, destruir e um possível bom que euvou investir, vou trazer para o presente. Então esse estado de escolha seria evitar o mal eseguir o bem, evitar o engano e seguir a verdade, evitar a injustiça e seguir a justiça.Dicotomiza a escolha supostamente alojada na existência da consciência. É uma

    maneira de entupir a capacidade seletiva.

    A extração em tudo, seja do passado, do presente, ou de uma idéia inédita, algo que sejaseu próprio elemento afirmativo. Esse elemento afirmativo da idéia, ou da memória oude uma instância incorporal é uma maneira de acontecer da própria potência, que põeisso no horizonte do meu futuro. O que me dá direito ao futuro? O que me disponibilizao futuro ou a continuação de mim mesmo? É uma espécie de liga, de ponte, que é uma

     passagem de um aumento de potência. Um acontecimento que é o crescer da potênciaque está antes da própria potência que vai crescer. Então esse crescer da potência, que

     Nietzsche chama de vontade de potência, que determina a escolha do ponto de vistaafirmativo e ativo, determina a seleção e a produção de memória de futuro, é o que fazcrescer. Isso é o que comanda em nós e é o que captura em nós porque tambéminvestimos no poder, no consumo, na imagem, no signo, no espelho, pois aparentementeisso nos dá direito ao futuro, a se manter ligado, consumindo e se enriquecendo, só quedependendo de uma instância exterior a si mesmo. Então essa vontade de potência viravontade de poder, você vira refém de uma referência. É um modo de se capturar adecisão e a escolha. Inverte. Aí a moral e essa racionalidade, que pressupõe esse sujeitomoral, entram com tudo.

    As tribos e as sociedades primitivas tem os seus anciãos, os seus espíritos que estãomortos, mas que na verdade não estão, estão inteiramente vivos em outro plano, ovirtual. Quando uma sociedade dessas adoece, o xamã, ou feiticeiro ou curandeiro vaidiagnosticar e geralmente ele diagnostica que ouve um desinvestimento, umesquecimento, uma ausência de uma maneira de ser e acontecer que era vital paraaquela sociedade. Um espírito de um antepassado nada mais é que uma maneira de serque ultrapassa o indivíduo enquanto indivíduo. Uma maneira de ser sem a qual asociedade fica mais fraca, adoece. Você aprende com o passado naquilo que o passadotem de futuro, de liberador da situação presente. O passado te põe em relação com o

    sentido em que ultrapassa uma certa coação presente, um certo deslocamento, uma certa

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    obstrução, uma certa fixação. O passado é uma ponte, é o próprio futuro quedesterritorializa o presente das suas amarras e extratificações.

    Esse aprendizado da tradição que o Foucault vai fazer em relação a história. Ele vaicaptar o inédito de cada acontecimento para depois entender a condição dos fatos. Osfatos são o modo como as forças dominantes interpretam o acontecimento. Mas antes deele ficar reduzido a isso ele vai direto às condições do acontecimento, àquela maneira deser. A maneira de ser traz consigo a capacidade de se repetir, é uma singularidade que

     por repetição pode, ou não, virar uma espécie de valor universal. Se ela for de fato umaemergência, uma maneira de ser afirmativa da vida, ela se torna uma potência dediferenciação, de singularização e não cai na ilusão do universal.

    É uma idéia do Bérgson. Nietzsche também fala em memória de futuro, com outras palavras. Em função do futuro, uma representação do passado. Bérgson, ao contrário de

    Hegel, (que dizia que o passado foi e o futuro vai ser), diz: o passado é, de maneiracontemporânea do presente, junto com o seu presente se traz todo o seu passado, pormais que ele não esteja ativo, mas há uma pressão virtual dele, pontas dele que sereatualizam, se diferenciam, se tornam outra coisa nesse presente. Há uma coexistênciado passado com o presente. Passado e presente não tem apenas uma relação de sucessão,e se tiver, não é a principal. A principal é a coexistência. Nessa mesma medida eutambém posso dizer que o futuro é. De modo virtual. Atualmente temos devir. O futuroé ser, o passado é ser e o presente é devir. O presente é um movimento. Geralmente agente se relaciona com o passado de modo representado. A gente tem memórias de

    marcas que foi, do que está marcado, estigmatizado e o retorno dessas marcas que acabarepetindo, copiando, inviabilizando o inédito no presente. O presente é radicalmenteinédito, é impossível que não haja o inédito, estamos sempre no inédito. O dejavú éilusão. A gente perde o inédito porque o nosso passado já nos fixa em várias posiçõesque faz com que a gente represente esse virtual. No lugar dele coloca uma memóriaformal ou figurativa e com essa memória achamos que temos direito ao futuro. Porqueessa mesma memória que a gente projeta de maneira idealizada no nosso futuro. Fica ocampo do possível no futuro e perde o virtual que é na verdade a potência de criar

     possíveis. O possível tem que ser criado. E não se submeter ao possível que é aidealização do que já foi vivido. Ah, isso não é possível porque nunca existiu! De quemaneira o novo é possível? O novo jamais seria possível?

     Nós usamos o termo vontade aqui no sentido de Nietzsche, como vontade de potência. Não como Schopenhauer, nem como Kant, nem Hegel, ou como na psicanálise. Não éuma vontade psicológica, não tem uma unidade psíquica, nem psicológica, nem física,nem ideal. A vontade é o querer da força. É o relacional de toda a realidade em relação.

     Não existe realidade que não esteja em relação. É como diz Spinoza, tudo é em modo,ou potência de modificar ou ser modificado. Tudo é essa potência. Para que semodifique é preciso estar em relação, é necessário haver um ser da relação, que é esse

    relacional. Esse relacional podemos chamar de vontade. Vontade não tem unidadesubjetiva, nem substrato. A unidade subjetiva é a condição de julgamento, é a condição

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    de representação, do poder. O poder que precisa representar e julgar. Para haver julgamento é preciso nivelar, unificar os desejos e por tudo de um ponto de vista dosenso comum. O desejo de um tipo ativo seria o mesmo que o desejo de um tipo reativo

     para esse tipo de pensamento. Nessa medida, se um ativo faz maldades ele pode ser julgado. Se o reativo, que é impotente, não faz, ele pode dizer que não faz porque ele é bom e não porque ele é impotente. Ele poderia fazer, mas na verdade ele não pode. Essaé uma maneira de falsificar o real, de se desqualificar a vida, pressupõe uma base, umsubstrato comum chamado vontade. Não é dessa vontade que estamos falando aqui.Quando falamos dessa vontade, essa vontade como livre arbítrio, aí a gente desconstroi.Pode se usar o termo vontade, mas para que você apreenda a dimensão virtual do atual,que antes de ser uma forma seria uma força. O atual é uma força. O querer da força é ovirtual da força, que é uma potência. Potência e força são nuances, são distinções, nãose usa no mesmo sentido.

    Sobre essa maneira de ver o tempo, Renato Russo intuiu isso na música: Quem me deraeu pudesse entender que o passado ainda está por vir e o futuro não é mais como eraantigamente. Às vezes alguém qualquer produz um enunciado novo. O que pensa emalguém? Não é o fulano instruído ou o cientista, o filósofo ou o artista. É algo que pensaem nós. Aí se encontra o imediato do tempo. Ele faz com que você veja essa dimensão.

    Até agora estamos vendo apenas um conceito, que é a experimentação. Não chegamosainda no que é pensar.

    E ainda estamos falando da experimentação do ponto de vista receptivo, mas ainda há atomada de posição nesse processo de experimentação, que é uma atitude ativa. Não quea outra não seja ativa também. A outra é receptiva, ela instala uma relação com a fontedo movimento e do tempo, te põe em contato direto com o acontecimento e por issodispensa um provedor, você não precisa do poder, de uma condição instituída paraexperimentar. Não precisa de nenhum artifício ou artefato social, econômico, político.Como diz Fernando Pessoa, ser milionário das sensações. Até o mais reles dosmendigos pode se conectar com essa capacidade receptiva, com a própria fonte do realque está bem diante de nós. Na nossa fronteira nós tocamos essa fonte, na fronteira denós mesmos. Ela não está em outro mundo, numa profundidade, num inconsciente, emalgum lugar do eu profundo e encoberto. Ela está bem na superfície. Precisamos fazerdo nosso ser uma passagem. Justamente o contrário da práticas espíritas, passes deenergia para nos potencializarmos, se tornar a passagem.

    Experimentação implica não em consumo. O que a gente chama de consumo é,geralmente, consumo de coisas mortas ou o que institui em nos a morte lenta, a morteem vida. Experimentar é modificar-se. A modificação não é uma transformação, não éuma mudança de forma, nem uma transfiguração, uma mudança de figura. Não é no

     plano formal que a gente se modifica, nem no figurativo, nem da imagem, nem do

    signo. Mas se modifica no limiar do próprio desejo, no modo de desejar. A gente setransmuta e não se transforma. A modificação só é verdadeira se existe transmutação.

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    Experimentar não é se enriquecer com a diversidade casual ou com o caos. Não é umenriquecer que vai satisfazer, preencher e desenvolver a forma que já estava pronta emmim. Aí não estou mudando coisa alguma. Estou apenas usando a experiência parareforçar ainda mais as fixações que já me constituem. A experiência vira testemunha,um elemento de confirmação daquilo que eu já afirmava previamente. Os meus

     preconceitos são reforçados. Isso é o que devemos desconstruir no que chamamos deexperimentação. Ao invés de reforçar o que eu já sou, de melhorar o que já sou, oudesdobrar e desenvolver um suposto eu, um suposto sujeito ou indivíduo, me levando ame encontrar cada vez mais comigo mesmo, a me conhecer, a conhecer o profundo eu, aexperimentação deve fazer justamente o contrário. Eu me torno cada vez mais afastadode mim mesmo, diferente de mim mesmo. Tem uma diferença em mim para serdiferenciada. A experimentação vira uma ocasião de transmutação, de diferenciação desi. Quanto mais eu me diferencio mais eu me multiplico, mais eu crio elementosheterogêneos, uma multiplicidade que me constitui. Esse elementos heterogêneos são

    co-autores, são aliados, são forças do fora selecionadas, dobradas, gerando um dentrocapaz de dispor do futuro. A experimentação vira esse motor ou plataforma delançamento para o futuro. E não simplesmente uma coisa casual, um acidente, um caosque existe por aí que dá uma enriquecida na ordem representativa e formal que meconstitui. É justo o contrário. Experimentação tem um gosto real pela diferenciação, quenão faz de conta.

    Ser ou não ser? Devenha. De modo afirmativo. Heideger: ser no mundo. Não. Devenhano mundo. O ser não é o primeiro. O acontecer que vem primeiro. A não ser que se

    chame ser o acontecer. Acontecer é produzir realidade e se produzir. Isso é que é entrarem devir. Tem uma potência em variação, na experimentação você de fato se põe emvariação real e não uma variação de uma constante que você é. Há uma pura variação devocê, que varia e produz afetos ou intensidade ativas em você. Essas dobras de forçaque criam um plano de consistência em você, e não um sujeito. Crescer numacontinuidade imanente do movimento que engendra o próprio movimento, do tempoque engendra tempos. E não ter um tempo homogêneo e fragmentar esse tempohomogêneo e distribuir ele pra lá e pra cá, e da mesma maneira o espaço. Elementos queocupam um espaço aqui e ali, todo esse esquadrinhamento exterior. Oesquadrinhamento exterior é superado quando você atinge essa dimensão imanente queengendra o próprio movimento e o próprio tempo, fabrica espaço e tempo. Não temosmais espaços e tempo prontos e homogêneos para ocupar ou pra ter. Nós inventamos o

     próprio tempo e o próprio espaço, a gente cria lugar na potência, em acontecimento. A potência em acontecimento, em ato, ela é primeira e a experimentação acontece quandoeu habito a zona do acontecer. Quando algo em mim se confunde com o próprioacontecer. Quando o acontecimento passa a desejar em mim. O acontecimento antes deacontecer já é o desejo em mim. Mas o acontecimento não tem forma. Esse desejo nãotem intencionalidade, não quer chegar numa forma ou numa figura, ele é potência devariar. Essa potência de variar é o começo do desejo. Onde o desejo começa? No eu?

     No sujeito? Não. Ele começa na fronteira, na superfície, no horizonte de mim mesmo.Arnaldo Antunes diz: o desejo é o começo do corpo. Ele começa no acontecimento e o

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    acontecimento é o começo do corpo, do pensamento, é o começo de tudo. O começo, ofim e o meio. Na verdade, é o meio, o começo e o fim são resultantes. Objeto e sujeitosão produtos. Os seres são produtos do devir. O eu e o outro são efeitos de um outremou de um entre. É essa zona que Spinoza chama de ser comum, onde se dá a identidadeou mesmo. O único mesmo que é real é o mesmo como afirmação da diferença. É omesmo ser que se diz de todas as diferenças. Esse ser se chama afirmação. Afirmaçãodas diferenças. Uma afirmação da diferença faz a diferença se diferenciar. Essa mesmaafirmação de uma outra diferença faz a diferença se diferenciar de outra maneira. Nãovai haver nunca uma igualização, uma identificação. O único igual, o único mesmo, aúnica identidade é a própria afirmação que se diz imediatamente da diferença. É por issoque é impossível haver um igual, a identidade, o equilíbrio. No máximo elas sãosimulacros, como zonas comuns. Por exemplo, um devir animal, um devir criança, odevir orquídea da abelha, ou devir abelha da orquídea. Que zona é essa que elas seencontram? É a mesma? É idêntica? É semelhante? Não, a semelhança e a identidade

    são apenas simuladas. É uma zona de indeterminação, de acontecimento, é um platô devariação. É aquilo que te põe em devir de alguma maneira. Não é um conceito, é umazona, uma região, um limiar, uma espécie de grau do horizonte, um horizonte móvel.Tem o horizonte movente que é aquilo que separa o dentro do fora, mas que é,simultaneamente, uma fronteira que está dentro e fora. É esse horizonte movente que éessa zona que poderíamos dizer que é idêntica, que é semelhante, que é comum, masesse idêntico ou semelhante apenas simulado é, na verdade, a necessidade de cadarelação. É o relacional de cada relação. É a base ou o ser de cada relação. Na medida emque eu toco isso, eu toco o imediato tanto do tempo quanto do movimento. Isso que

    vamos cultivar, aproximar, desconstruir o que impede isso. Investir e criar pontes parachegar nisso e se relacionar de modo imediato com isso. Isso é um modo de vida. Porisso precisamos cultivar, tanto do ponto de vista do corpo como da sensibilidade, namusica, no cinema, na literatura, o que for que atravessa o corpo, como aquilo quealimenta o espírito (como sinônimo de tempo), ou a mente ou o pensamento. Essecultivo implica também um outro uso da linguagem.

    Experimentar não é consumir. Experimentar é modificar-se, não é um faz de conta.Você age e sente de maneira diferente quando há uma modificação. Você se tornadiferente de você mesmo. Isso é essencial, pois faz você ter um gosto real peloacontecimento e pela diferença e não um “tolerar” o acontecimento e a diferença. Os

     politicamente corretos toleram a diferença, eles não fazem a diferença. Eles, ou algo emnós, certas instâncias em nós, só toleram a diferença. E toleram porque tem vantagensna tolerância. Quanto mais se tolera, é civilizado, é racional, calcula, espera, nãoavança, em tudo tem a ordem, o tempo, seu jeito, mais vantagens você vai ter. Você érecompensado socialmente. Você é educado, amável, civilizado, respeitoso, respeitável,autorizador, autorizável. Entra naquele campo de legitimação instituído. Esse pontoessencial da experimentação de todas as atmosferas, do pensamento, do corpo, daseleção, da produção de memória, de oportunidade, da instrumentação do aprendizado e

    do ensino tem essa dimensão de uma modificação real que faz com você se tornediferente de você mesmo e não simplesmente mude de roupa, de casca. De fato, outra

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    coisa que deseja em você, que pensa em você, que age em você, a cada diferenciação, acada modificação. Aquilo que Bérgson chama de diferença da natureza. Há umacontinuidade em nós, que só se divide mudando de natureza. Uma continuidadeintensiva e expressiva e não uma falsa continuidade na extensão e de um falso corte narepresentação. É uma qualidade expressiva e não representativa, é intensiva e nãoextensiva.

    A agressividade mais eficaz, a maneira mais potente de destruir o que precisa serdestruído, sem culpabilidade, de modo inclusive afirmativo, é a doçura, e com humor.Isso é uma conquista, é difícil. Uma coisa é essencial para não ser enquadrado pelo

     poder, é se tornar imperceptível, deixar de chamar atenção sobre você, se pintar com ascores do mundo, ser um homem bem comum. Não é ser humilde. Você pode ser o maiscomum, sendo o mais extraordinário. Devir imperceptível. Você sabe que existe umazona na sociedade que elogia a amabilidade, a doçura, a educação, não alterar o tom, o

    não se indispor, a não alterar o humor, não ser explosivo, não ser animalesco. Você pode habitar essa zona, mas com outro ponto de vista, com outra motivação, fazendooutro uso disso. O teu amável se torna um habitar um tempo próprio que te constitui eum movimento próprio que engendra movimento, sem atropelar, sem saltar, semretardar. Isso cria uma suavidade, uma necessidade que se confunde com a falsanecessidade dos amados, dos respeitados, dos justos, dos bons, dos verídicos. É umazona simulada. Você não finge, é amável de fato, mas de outro ponto de vista. Pode atése mostrar não amável deste ponto de vista. O amável que finge jamais abandona acarapuça, ele é covarde e precisa daquilo, ele se agarra aquilo porque não pode fazer

    frente a nada. Investe nisso como uma capacidade plástica, estética, você se transfigura,se exprime de várias maneiras, tem dinamismo. Mas o importante é nunca estar naquiloque te fotografa. A fotografia do instante é apenas um instante de uma passagem que éincapturável. Desse ponto de vista, confundir-se com a própria passagem gera uminvestimento de se mostrar ao máximo, (que é o contrário de se esconder), na passageme não na figura ou na forma. É algo que se mostra em ser de passagem. Quanto mais semostra como ser de passagem, mas se torna incapturável e mais se torna indestrutível. O

     poder não apreende a passagem, não a compreende. Ele só julga a passagem. Ele temque fragmentar, segmentar, instantanear, encadear, registrar, mapear. Vai decalcandotudo. Se você se torna a pura passagem, ele não te pega. Isso é a potência da vida A vidaé totalmente potente para fazer frente a qualquer poder. É impossível que não haja essa

     potencia em nós. A vida é totalmente perfeita, é uma plenitude. Só que nós, separadosda capacidade de acontecer, substituímos isso. Caímos num buraco e procuramos umcéu para pendurar lá e ser resgatado desse buraco, já que não temos mais superfície. Porisso dizemos que a vida é imperfeita e triste. Pois toda vez que estamos no buraco,estamos sofrendo. Um sofrimento por falta e não por excesso de vida. Isso faz com queeu identifique a existência à mal, à imperfeição. Há um mal na existência, uma falta, aodesejo falta o objeto.

    Imagem pode virar mais que índice, um sinal, uma porta de entrada de um fluxo, comoefeito de um movimento. A imagem viva. A imagem como instante, como elemento

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    opaco, que impede acessar ou congela o movimento, deve ser dissolvida. Essa imagemfixa pode também ser imagem de um fluxo e aí é péssimo, pois com a imagem fixa vocêfaz uma imagem não fixa. Por exemplo os sentimentos. De tristeza, de alegria. È aimagem de um fluxo, de um afeto, da variação de uma potência, de um desejo.Enquanto imagem eu não apreendo o próprio afeto. Mas se eu faço dessa imagem a

     porta de entrada para o afeto enquanto afeto, da força enquanto força, viva essa imagem.A imagem não é má, o signo não é mau, depende do uso que fazemos deles. É tudo umaquestão do uso. Não existe nem bem nem mal. Existe um mau jeito e um bom jeito.Como diz Nietzsche, existe o bom e o mau jogador. O mau jogador é aquele queressente, que é prisoneiro de um estado de corpo, que busca um ideal, que julga, queinveste numa falsa verdade, aquele que carrega, que retem para si, que não querqueimar. Bom, mas a chama já está aí! Você pode mudar a maneira de queimar e viva aqueimação, vamos queimar. O bom jogador é o que dança, que é veloz, potente,dinâmico. Um leva para força, como generosidade e o outro leva para fraqueza, como

    mesquinho. Parar o tempo, o tempo como horizonte da morte ou da decadência é umdesperdício.

    Ética não é aquela que seleciona entre o bem e o mal. É aquela que, em qualquerrelação, seja boa, seja má, de saúde ou de doença, há o necessário nela, que pode virarcombustível da minha vida. Isso que é a capacidade de transmutar e aí é o segundomomento da experiência. A experiência também me leva para maus encontros, para adoença. Não é experimentar só o que é bom e garantido. Ao contrário, a experiência nãodá nenhuma garantia, por isso tenho que me preparar, não com um escudo dos

    mediadores, mas com a capacidade de olhar o sol de frente, de ver somente,movimentos, tempos e modos imediatos, sem mediadores de representação. Não é fácil, por isso temos medo, nos acovardamos, fugimos, temos medo das próprias forças, sedesvia, dá mais atenção ao outro, ama o outro, odeia o outro. Transformar a dor num

     presente. É difícil também, mas sempre tem jeito. Nem Henry Miler, nem em Nietzscheexiste uma acusação sequer contra a vida. E Nietzsche sofreu muito. Esse segundomomento da experiência é transmutar o que te acontece para que você se torne digno doque te acontece em vez de reclamar do que te aconteceu O que eu mereci de imerecidoé, na verdade, o que diz Deleuze que transforma as nossas chagas em coisas repugnantesou que faz do acontecimento chagas repugnantes. Isso é desperdício. A gente nãoexperimenta, de fato, porque a gente tem medo que o acontecimento seja injusto com agente. Por isso que temos que desenvolver a prudência e o devir imperceptível, que éum aspecto fundamental da prudência. E a preparação, o aprendizado da constituição desi, que nos faz potentes o suficiente para podermos dizer bem vindo à todo acaso e nãosó a parte boa do acaso, inclusive o pior deles, pois ele é inocente como uma criança.

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    Educação para a Potência Aula 2 (Ditos Transcritos)(Transcrição literal sem revisão do autor feita por Renata Melo)

    EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA - Aula 2 / Ano 2008 - Turma IIPor Luiz Fuganti

    Este curso, “Educação Para a Potência”, vem em decorrência de uma ausência, que nãoé de agora, é a ausência do homem. Desde que o homem é homem existe essanecessidade de produzir-se a si mesmo, de criar maneiras de existir. Se a gente observarcomo as sociedades primitivas vão trabalhar essa questão da auto produção de si, designos, de corpos, das relações sociais, que nelas tem essa singularidade, o que chamaatenção é que elas não lançam mão de nenhum plano transcendente, de nenhumadivindade fora da natureza, de nenhuma referência racional autônoma. Elas já estãodiretamente inseridas numa espécie de campo ou plano de imanência da própria terra.

    Se a natureza mesmo, através dos corpos, dos corpos produtivos inclusive, se servisseme inventassem maneiras de criar diferenciação e continuidade dessa diferenciação,talvez esse fosse o sentido mais profundo da palavra cultura. Inventar, diferenciar e secontinuar nessa diferenciação.

    Uma dos elementos essenciais deste curso é a questão da memória. Memória como uma produção de continuidade. Memória enquanto produção de futuro e não comorepresentação do passado. Esse aspecto é essencial para entendermos qual a natureza dacontinuidade que nos interessa, a natureza dos cortes que nos interessam. Cortes reais,

    continuidades reais que se dão no campo da natureza. O homem, na medida em quedesvia dessa atividade de produção de si mesmo, de imanência, ele também inventa umafalsa continuidade e, o mesmo tempo, uma falsa ruptura, um falso corte, na medida emque ele precisa instaurar uma instância que se descola da própria natureza, da própriavida. E essa instância começa a aparecer sobre a terra, nas sociedades humanas, a partirda emergência do Estado. O Estado, mesmo no seu momento mais primitivo, mais puro,é que inaugura esse corte artificial entre homem e a natureza. Entre cultura e natureza.Entre indústria e natureza. Não existe um ponto na origem da história que este momentose estabeleceu. Existe mais ou menos um domínio disso, a partir de 10, 12 mil anosA.C. isso se torna um modo dominante em algumas formações sociais humanas. Porquea possibilidade de emergência do Estado, está sempre dada. Seja há cem mil anos atrás,agora. Não é uma questão cronológica de marcar uma origem, como os evolucionistasimaginavam que o Estado era um certo avanço no estágio humano, uma certa evoluçãonecessária. Somos radicalmente contra esse postura. Porque o Estado não só não énecessário, como ele tem necessidade de despontencializar a vida para se sustentar. Essatese vai atravessar todo nosso pensamento e toda nossa prática. Não há Estadointeressante do ponto de vista da vida. O Estado só é interessante do ponto de vista davida enfraquecida. Esse falso corte, que de alguma maneira funciona, não é apenas falsocomo uma idéia, ideológica, que não teria nenhuma eficácia. Ele tem eficácia porque ele

    opera uma captura e um desvio das forças da terra, do corpo, do desejo, das potênciasque atravessam essas sociedades primitivas. E nessa medida, ele produz realidade, do

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     ponto de vista desta forma negativa. Um produto real, que recai novamente sobre a vida.A vida se modifica na medida em que essa captura ou ficcção opera, ela se modificanela. É o que Nietzsche chama de “produto do negativo”. Mas o principal produto aí é,não só a vida enfraquecida por um mau encontro eventual, é a vida cultivada comoenfraquecida, porque o poder, o Estado, não tolera a vida senão no estado de fraqueza,separada do que pode. Somente este tipo de vida que o Estado tolera ou cultiva. E setiver um outro tipo de vida ele vai inventar um jeito de quebrar essa vida ativa, até ela setornar separada do que pode. É muito simples: a vida ativa, afirmativa, que de fato gozaela jamais se relaciona ou alimenta uma referência fora dela. Ela não precisa dereferência, ela é, de fato, autônoma, é auto sustentável. Então é evidente que o estadonão suporta esse tipo vida. Esse tipo de vida ameaça o Estado. Essa falsa continuidade,esse primeiro corte é o que Nietzsche chama de niilismo negativo.(O niilismo é o motorda história, e não a luta de classes.) Vamos entender de que maneira esse corte se operae como se torna extremamente nocivo. A vida está sempre sujeita a maus encontros e ao

    enfraquecimento, que é inclusive o tempero da vida. As dores, os sofrimentos, asdoenças são provocações da vida e é uma positividade. É como se a vida nos provocasse

     para tomarmos uma postura diferente. Essa é a perfeição da natureza. O que acontece éque esse corte faz uso desses maus encontros, dessas paixões tristes, dessas doenças, sealimenta desse uso e sustenta a vida nesse estado de fraqueza. Aí que começa a rupturade uma continuidade vital. Nessa medida perde a capacidade de se manter num plano deimanência do nosso desejo na nossa própria vida. A gente precisa sempre se referir aosnossos desejos a um objeto que falta a ele.

    Como podemos retomar essa condição de continuidade de si mesmo, da variação ativaque acontece a nossa potência, e se alimenta dessa abertura? Esse é todo o problema quetomamos aqui como educação para a potência. Retomar essa continuidade é o quechamamos de reencontrar o imediato. Um plano de continuidade que opera em doisregistros ou, de duas maneiras diferentes, sob dois tipos de diferenciação:

    continuidade intensiva

    continuidade das qualidades expressivas que chamamos de memória de futuro

    Sem esse plano de continuidade, o que Deleuze-Guatari chamam de plano deconsistência, a vida se mantem separada do que pode. Como religar a vida ao que ela

     pode? Ao que ela pode de modo livre, afirmativo, ativo e por conseqüência com alegria,com gozo. Isso implica em dois aspectos essenciais. Numa postura crítica e numa

     postura criativa. Uma dupla postura. Claro, se a postura é criativa, necessariamente elatem, por efeito, uma postura crítica. Nosso foco é na postura criativa. Por conseqüênciaa gente consegue fazer uma crítica. Não uma “crítica construtiva”. Tem que serdestrutiva mesmo, destruir o que inviabiliza as condições de uma vida ativa. Por efeito.

     Não é que vai se lutar contra. Mas na medida em que eu apreendo essa dimensão

    afirmativa, por conseqüência, há uma desconstrução de tudo aquilo que impede que nósnos reencontremos com o imediato do movimento no corpo, com o imediato do tempo

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    no pensamento. Ou aquilo que temos chamado de superfície. A superfície relacional eestética. Sem essa retomada, esse reencontro, a nossa crítica é atravessada por umaespécie de niilismo negativo, reativo e passivo e precisamos atingir a dimensão doniilismo ativo, que é uma crítica que destrói as condições de inviabilização da vida. Masisso só como fruto, como resultado de um toque, de um vislumbre com o imediato.Precisamos retomar esse reencontro com o imediato, que na verdade já fizemos esseencontro, por isso chamamos de reencontro. De alguma maneira ele está em nós, masnão tomamos parte do imediato em nós. Esse cultivo do imediato, vai nos abrindo umadimensão que faz a potência crescer, que faz o combustível da invenção de novasmaneiras de produzir real, nessa mesma medida que, com esse combustível a crítica setorna eficaz e acontece por efeito e não como objetivo. É por conseqüência. O “não”não tem o mesmo estatuto do sim. É uma conseqüência, é um dos efeitos do sim. Ondeque incide essa crítica, esse não? E como ele é apenas efeito de um sim? Ele incide

     basicamente nos dois modos de vida humanos perderem a relação com o imediato, que

    são: o movimento que atravessa o corpo, que a gente chama de “regime de luz” ou desensibilidade, campo da sensibilidade, o campo corpóreo e o outro que é o campo do

     pensamento ou do tempo. Uma coisa é o movimento do corpo. Outra coisa é o tempo no pensamento. Uma coisa é a região do corporal, a outra é a do intemporal. São regiõesdistintas. Não significa que haja uma dicotomia entre alma e corpo. São duasmultiplicidades autônomas e, por assim serem, devem ser infinitas. Então é precisoreencontrar a dimensão infinita do movimento do corpo, do tempo e do pensamento a

     partir da finitude que nos atravessa e nos constitui. Nós como finitos, temos um começoe um fim finitos, temos que retomar esse infinito. Sem esse infinito a gente não

    apreende a noção de autonomia real. A gente fica com aquela noção moral daautonomia , que é uma noção kantiana. E como acreditamos, junto com Nietzsche, quemoral e autônomo se excluem, então a gente precisa criar uma autonomia real. Eencontrar a autonomia real significa reencontrar a dimensão do infinito e do imediato.Rencontrar a dimensão do inesgotável no acontecimento. Reencontrar a dimensão doreal virtual sem o qual não haveria o real existencial, sem a qual não haveria realidade.A realidade atual é alimentada, fomentada, é maquinada pela realidade virtual.Realidade virtual e real, uma pressupõe a outra. É essa realidade virtual que estáapagada, nadificada. Nietzsche usa uma expressão interessante quando usa a expressãoniilismo. É uma vontade de nada. Niil não é não ter, é uma nadificação, umadesqualificação. Essa vontade de nada é dupla. Não se diz “nada” para esse mundo. Sediz tudo para um mundo superior. Viva o ideal, o valor superior. Como essa existência édeclarada imperfeita, pelo mal uso do sofrimento, uma vez que se identifica dor esofrimento em mal, imperfeição, diz um falso sim a um valor superior e então sedesqualifica a vida e a natureza. Se lá é superior aqui é inferior. É um duplo nada. Lá éuma ficção, lá é o nada mesmo. Só que o desejo que investe na ficção é real e ele éintrojetado em nós e nos desqualifica, na medida em que lá é mais que aqui. Você criaessa distância. Em busca de nada se nadifica, desqualifica a existência. Como?Perdendo a capacidade de acontecer. Em que zona isso se dá? Na zona virtual das

    relações. O virtual, de fato, não existe. Mas ele é real. O que faz uma vida separada doque pode? Jamais apreende a dimensão do virtual. Para os que têm a vida separada do

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    que pode, o virtual é nada mesmo. É uma matéria que escapa. É como apreender osentido incorporal? Você não pega. Mas aí você reduz a realidade ao corpo, é uma coisaestranha.

    A questão crítica só se torna de fato interessante e não mais ressentida, quandocomeçamos a vislumbrar esse outro real virtual. Esse real virtual é a dimensão de umsim afirmativo, como se já gerasse uma direção, uma tendência à produção de uma novotipo de realidade que, por conseqüência, desconstroi as condições anteriores quenadificava uma vida ou que nos roubava a superfície. A vida separada do que pode énada, e a vida ligada ao que pode é o real virtual. O real virtual desaparece diante de nósquando nos separamos do que podemos. Se eu começo a cultivar e reencontrar essadimensão do real virtual, ao mesmo tempo eu sei de que maneira se opera essanadificação, essa desqualificação sobre o movimento e sobre o corpo. Eu apreendo omodo do movimento se cristalizar em mim, do tempo e do pensamento se instantanear,

    que é uma outra maneira de se cristalizar. Há uma segmentação do movimento. Há umfalso corte do movimento, assim como uma segmentação no tempo, um falso corte notempo e, portanto uma necessidade de recosturar o movimento e o tempo. Essa operaçãoé feita por dois tipos de máquina social, tanto sobre os corpos como sobre as almas.Pelo uso do movimento e pelo uso da linguagem. Você produz um tipo de sensibilidade,um tipo de organismo no corpo, uma subjetividade no pensamento e um tipo de objetode pensamento significante, que inviabiliza o imediato no pensamento e no movimento.Inviabiliza portanto o reencontro com a fonte que é essa superfície, que não precisa denenhuma referência para ser justificada, legitimada ou para se operar.

    Como a gente reencontra essa dimensão, se ela não existe? Através do que? De queelemento existente, pois estamos na existência. Como meu corpo existe? Vamosapreender a região onde eu sinto que meu corpo existe, a região em que o meu

     pensamento pensa. Essas regiões que temos que começar a cultivar. E elasnecessariamente são regiões preenchidas, ocupadas, povoadas, determinadas. Onde?

     Nos encontros que fazemos, nos encontros que a vida traz. É sempre no plano dosencontros que se dá. Você encontra com idéias, com imagens, com sensações, com

     pessoas, coisas, paisagens, não importa o que. Sempre essas regiões são preenchidas edeterminadas. Se o meu desejo já está separado do que pode ou ele é confundido com oestado de corpo, com o estado mental, com estado de época, de relação, ele nãoconsegue ver nos outros ou nas coisas que encontra, senão estados de coisas também.Então ele vai de estado de coisas para estado de coisas, de signo para signo, de seres àseres, de imagem para imagem, de sujeito para sujeito, de sujeito para objeto, de objeto

     para objeto, de substância para substância, de substrato para substrato. Mas não vai demovimento para movimento, de devir a devir, de tempo a tempo, de fluxo a fluxo, deacontecimento a acontecimento, de intensidade a intensidade, de potencia a potencia, deforça a força. Essa dimensão está apagada, esquecida.

    Como somos determinados nos encontros que fazemos? Já estamos sem a condição deencontrar o movimento enquanto movimento, o tempo enquanto tempo, a intensidade

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    enquanto intensidade, já estamos nesta falta. Estamos e cultivamos as condições que nosgarante a conservação de nós mesmos. O nosso valor supremo, no modo de vida reativo,separado do que pode, é a conservação. Não é o ultrapassamento, a criação, a ousadia, ainvenção, não é a produção de um novo tempo, um novo lugar, um novo elemento. É aconservação de si. Claro, sempre melhorando, do ponto de vista do ideal, do progresso.Vamos evoluindo, progredindo e assim vamos melhorando a vida. Mas é a posturamoral que faz isso. Então na experiência, na experimentação, o que se passa, já que nósapreendemos a região do virtual, se conseguimos apreendê-la, através da existência, e aexistência tem essa dimensão do concreto, então concretamente somos preenchidos naexistência e como esse preenchimento concreto na existência opera uma inversão, ouseja, nos separa do que podemos.

    É a qualidade dos nossos alimentos, dos nossos encontros, das nossas relações que nosentopem ou nos liberam. É o jeito de encontrar, é o modo de viver. Aqui reside o

     problema do mal, ou do bem, ou da doença ou da saúde. Da liberdade ou da escravidão.Exatamente no entre. Não está no outro, nem em mim. No outro e em mim existe umacumplicidade nesse entre. Somos vítimas de um entre, de uma máquina social, docapital, do poder tal. E precisamos criar um jeito de combater as forças do mal. Isso temvários nomes. Todos os nomes das forças do politicamente correto que atravessam asociedade. Nós, na verdade, continuamos piedosos, desse ponto de vista. Continuamos aachar que a natureza tem uma dimensão malévola e que precisamos investir numa outradimensão, a do bem, e que por ela seríamos resgatados. E hoje em dia a coisa maiscínica é que esse papel é desempenhado pela lei. Inclusive na idéia de diretos humanos.

    É um cinismo extremo, embora maioria das pessoas não perceber como isso opera. Osvalores em si. Os mais humanos, os mais democráticos, os mais libertários, escondemisso hoje em dia.

    Aproximar dessa região do imediato, implica ao mesmo tempo, bodas, uma espécie decópula com essa região que está dentro de nós mesmos, mesmo que seja uma coisaesboçada, vaga, mas é aí que nós conseguimos um plus de potência, de energia, para

     justamente apreender o que cristaliza essa potência. Onde? Nas relações que fazemos nodia a dia. Através do uso do nosso corpo e do uso da nossa linguagem. Sempre nessasduas dimensões. O que Foucault chamou de regime dos corpos e regime do discurso.

     Na dimensão da linguagem faremos a sua desconstrução, seja oral, escrita, seja ao falar,ao ouvir, ao ler, ao escrever, ao se relacionar signo semiológico ou semiótico. Noregime dos corpos a desconstrução será feita no movimento, no gesto, nas ações e nas

     paixões, naquilo que se passa no plano das velocidades e lentidões e nos ritmoscorpóreos.

    Isso tudo nos remete à questão da experiência, que falei na aula passada. O acesso àregião do virtual, que o niilismo nadificou, se faz na existência, nos encontros que

    fazemos e a porta de entrada e saida para esse entendimento é a experimentação. Umavida não pode ser chamada de vida, se não tiver acontecimento. Viver é acontecer.

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    Acontecer é variar, é se modificar. E não é um modificar-se metafórico, umametonímia, uma analogia. Não é apenas um faze de conta, nem é uma imitação, nemuma busca de uma identificação, nem a tentativa de encontrar um fim acabado, quesalvaria a nossa vida. A saída perfeita para uma vida perfeita, nem buscar uma origem

     para voltar ao útero original do cosmo ou de deus. Viver é acontecer, é passagem, é semodificar, se diferenciar. Isso se passa naquilo que a gente chama de experiência, naexperimentação. E nós temos uma visão muito vulgar e ordinária do que é experimentar.E o melhor que a gente consegue dizer a esse respeito é que experimentar é enriquecer.Então a gente evolui, enriquece, aprende, vamos experimentando cada vez mais valores,mas não basta a declaração de intenções. Será que a gente enriquece de fato aoexperimentar? É só v. observar? Uma pessoa jovem, depois aos 25 anos, começa a ficarcansado, aos 35 já quer ficar em casa, quer ficar no seu cantinho. Ou seja, ao invés davida, da experimentação gerar mais vida, ela vai gerando cansaço. É justo aquela idéiade Heideger “o ser para a morte”. Seríamos heidegerianos, nesse ponto? O ser só é o ser

     para a morte para quem está desconectado ou separado da fonte do acontecimento.Daquilo que Nietszche chama de “viver no próprio tempo” ou que Deleuze chama de“devir criança de cada idade”, “devir jovem de cada idade”. Cada idade, cada tempo,tem o seu frescor, seu ineditismo, sua fonte essencial. Mas nós vislumbramos no tempoo túnel para a morte ou para uma outra vida, ou para o que for. Uma vez que estáseparado do devir a gente fica preso ao que vai ser e, ao mesmo tempo, referido ao quefoi. Fica entre a memória e o projeto e justamente a eternidade que se faz noacontecimento, no devir, a gente joga fora, ela passa a nossas costas, passa apesar denós. Está o tempo inteiro passando. Como o conto do Henry James, “ A Fera na Selva”.

    Alguém sente que esta prestes a viver um amor e esse amor está bem diante do nariz.Quando vai ser, quando vai ser? De repente já foi e não tem mais como retomar, porquefoi. E assim a gente passa a vida, perde o acontecimento o tempo inteiro. A gentesempre procura o mais importante em outro lugar. Gil, no seu modo simples de dizer,canta “ o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Será que a gente consegue ter umavida onde o melhor lugar do mundo é aqui e agora? A gente sempre acha que está

     perdendo alguma coisa em outro lugar. Que está aqui de modo conformado, pois nãoconseguiu coisa melhor. É uma visão depreciativa de si mesmo, pois algo de impotenteestá acontecendo com você. Ou está fixo no que foi, ou no que vai ser. Pois é

     justamente no que está se passando que está a fonte de qualquer realidade, e eternidade.Porque fomos educados, ou deseducados para nos separarmos dessa capacidade deacontecer no imediato. É claro, uma vida ligada a essa capacidade de acontecer, desdequando ela precisa pedir licença? Desde quando ela vai servir a alguma demanda? Masisso é insuportável para uma sociedade fraca que precisa instaurar um regime dedemandas extrínsecas e capturar a vida. É insuportável. Então a sociedade criainstituições justamente para separar a vida: as mães, os tios, as vós dizem vinde a mimas criancinhas para que eu as separe do que elas podem. E aí eu as domestico. Para

     preencher a miséria existencial, para seguir investindo no sistema que alimenta adimensão parasitária da vida. São os supérfluos, os que não fazem a diferença, que não

    criam nada, que sempre precisam de um reconhecimento, uma provisão, um provedor,tiram lucro da provisão do outro. As crianças são uma maneira de reproduzir isso.

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    Esse desinvestimento opera na dimensão prática, experimental da vida. Vai para escola para adquirir uma competência, uma autoridade, uma posição, uma profissão, umreconhecimento. A pessoa vai crescendo, a vida vai se empoderando com os prêmios,com as iscas que o poder oferece. É o poder que dá existência. Neste empoderamento euexisto mais, tenho mais influência social. Consigo fazer mais coisas, mas tudo emrelação a referências exteriores, ainda que você acredite que elas já estão em você.Então o que é o processo de experimentação? É um processo de entupimento. É um

     processo que liga ao peso, ao espírito de gravidade, de pesadume, que vai te tornandocada vez mais pesado, mais atolado, mais entupido, mais triste. Ainda que tenha sempreum jeito de compensar, pois na vida tem sempre esse descontentamento, como se a vidafosse uma insuficiência insuperável. Já que é assim, vamos inventar um jeito de

    compensar um pouco. Às vezes passa vida achando que é feliz dessa maneira. A questãode felicidade é uma ficção inventada no séc. 18, 19, que substitui a idéia de salvação.

     Na medida em que eu aconteço, que eu produzo realidade e conduzo o meu destino eufico mais entupido, mais triste, mais pesado, mais fixado, mais sedentário e todo esse

     passado, como fala Marx “pesa no ombro dos vivos, como mortos”. Mas, e os mortos ea história que fazemos em nós? Essa que nós somos responsáveis. Como produzimosessa estória e esse destino para nós mesmos? Esse passado não foi, ele cooexiste,estamos com ele o tempo inteiro e ele vai se modificando com a gente. Por isso a idéia

    de experiência é a porta de entrada de tudo. O que é experimentar? Precisa ter muitocuidado com o experimentar. Não é de qualquer maneira. Não poderia se chamarexperimentação esse suposto enriquecimento, essa instrução, essa aquisição de coisas,esse consumo de imagens, de discurso, de objetos, de signos, de relações, de outros.

     Nós consumimos os outros e os outros nos consomem. Não é essa a idéia deexperimentação.

    Experimentar não é confundir signos, opiniões, discurso, palavras. Se você não temopinião, então leia a Folha de São Paulo, ou a Veja.

    Ou consumir imagem, sorvete, comida. O jeito como se consome as coisas. Comem-secomo porcos. Como diz D. H. Lawrence, ao comer uma maça deve sentir o cheiro daterra, o orvalho, os elementos da terra. Onde está a zona de sensibilidade experimental,que te modifica, que cria um outro modo de desejar, de se relacionar com a maçã?Ficamos consumindo signos ou palavras mortas. A palavra já é o pensamento. Quandoconsumimos discursos, estamos inviabilizando, jogando fora nossa capacidade de

     pensar, colocamos a linguagem, a palavra no lugar do pensamento. A palavra tem umsignificante, mas ela já tem um significado na relação com o outro, no meio da frase. Osignificado já é uma redução, um aprisionamento do pensamento, do sentido. Já é a

    mortificação do pensamento, um fantasma. Como diz Nietzsche, nós só consumimosmúmias e fantasmas. Fantasmas enquanto esses signos, essas palavras mortas, sem

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    corpo e sem vida e imagens como múmias ou objeto de consumo, que você consome eno momento seguinte, o mais rápido possível,esse consumo de imagem ou de corpo setorna uma múmia. O capital tem essa necessidade de fazer com que o elemento, umavez que atravessou o outro lado da axiomática, que eu o adquiri, ele tem que perder ovalor o mais rápido possível.

    Viver é acontecer, não como faz de conta. É se modificar, desejar de modo diferente,acreditar de modo diferente, investir de modo diferente, a partir de uma novaexperiência. Algo em mim deseja, pensa de modo diferente a partir de uma experiência.Eu encontro e me modifico, entro em devir, eu não viro a outra coisa. Não busco umaidentidade em mim mesmo, nem fico imitando, nem faço de conta. Algo em mim metorna diferente do que eu sou no encontro que eu faço. Aí a experimentação é real. Se euconsumo palavra morta ou fantasma, imagens e múmias o que acontece com essa forçaem mim que se torna diferente do que é? Ela se torna cada vez mais pesada, ela não é

    alimentada, é como diz Nietzsche “a vida de camelo e de burro de carga acaba nodeserto”. Nós nos carregamos de signo e imagens, fantasmas e múmias, de valoresestabelecidos, de referências. O desejo que diferencia nós de nós mesmos vai acabar nomesmo buraco, na mesma insuficiência que se seria o existir. E isso demanda maisconsumo, mais fantasma, mais veneno e mais múmias. Pequenos prazeres. Uns venenos

     para o dia, outros para noite. Esse meios quereres, esse modo separado ou impotente dedesejar que diz ao meu desejo: falta o objeto. E no objeto já está o anzol. Nós

     penduramos nosso desejo naquilo que nos é oferecido, nos discursos, na linguagem,consumo teórico, moral, de opiniões, de idéias ideológicas, nós penduramos nosso

    desejo no modo corporal, que é demandado pela máquina social. Como diz Artaud, “cúde rato morto pendurado no teto do céu”. É o nosso desejo pendurado no regime designos e no regime de luz. Desse ponto de vista nosso desejo é um cú mesmo. É umafalta, um buraco que aumenta cada vez mais, pois não há um alimento, uma fonte real.O alimento está em outro lugar. Talvez na lei, no Estado, no progresso, na felicidade, nocapital, talvez, em deus, ou seja lá o que for. Não é a toa que o ecletismo tomou contada vida moderna, cada um encontra o seu: nova era, tem várias maneiras de buscar essealgo que estaria fora de você. Essa busca só retro alimenta e aumenta esse buraco negrodentro de nós. É como o buraco negro na física mesmo. É aquela região de nós mesmosque não volta para a vida. Apesar desse buraco negro na física ser mais sutil. Naverdade não existe buraco, não existe falta. Existe velocidades imperceptíveis ou que agente não capta. O buraco negro é a tomada de velocidade das partículas mais rápidoque a luz. Então vamos fazer da nossa vida esse tipo de buraco negro? Existem

     partículas mais rápidas do que nós mesmos, que o nosso pensamento, nosso movimento,que nos arranca de nós mesmos? A gente é capaz de habitar essa velocidade? Quevelocidade é essa? É a velocidade extrínseca do poder, da imagem? Daquilo que Marxchama de movimento aparente gerado pelo fetichismo. Ou é a velocidade real do nossodesejo que acontece em zonas não reconhecidas ou cultivadas socialmente? Qual é aqualidade do nosso buraco negro?

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    O buraco negro em nós, o eu, o sujeito, é uma dimensão social, é uma instituição social.Assim como a prática do medo, da violência, da insegurança, são instituições primeiras,e a segurança é só um efeito da violência gerada. Gera violência para oferecersegurança. Gera desconfiança para oferecer confiança. Gera guerra para se oferecer paz.Desqualifica para se requalificar. Cria-se o buraco negro para pendurar o desejo numcéu que o resgate. Que céu é este? É o consumo? De uma boa casa, de uma boa praia,uma viagem? Uma família, um amor, um ideal, uma vida bem sucedida? Que teto éesse? Que significante é esse? Que significante dominante que a gente inscreve nohorizonte do nosso tempo, que faz com que nosso desejo vai atrás. E assim que opera amáquina social. Nisso os publicitários são mestres. De desenhar o significante, os maisnecessários. São mestres em pegar o que é necessário, do ponto de vista do capital, etransformar em necessário, do ponto de vista da vida. Confundir o vital com o capital.Para eles é tudo a mesma coisa. São os desenhadores, escritores, os escultores dosignificantes que penduram nosso desejo, que fazem aumentar o buraco negro em nós.

    Buraco negro que Deleuze-Guatari chamam de muro branco. Essa dupla relação quecria uma rostificação em nós. Uma máquina de rostificação que faz com que a gente

     perca a cabeça. O rosto é aquilo que se põe no lugar da cabeça. Onde há rosto, a cabeça já foi cortada, já perdemos o corpo. A rostificação é essa máquina abstrata de separaçãode nós mesmos do que podemos. É justamente a ausência de realidade no acontecimentoque é um real virtual. É um muro que se põe no lugar da fronteira. Na fronteira seinstala o muro. A fronteira é o lugar onde se dá a ligação, a diferenciação. Comomembrana. Não é o lugar que separa o dentro do fora. É o que põe o dentro e o fora emcontato imediato de modo copológico. O muro faz um corte artificial. As nossas

    instituições sociais cultivam esses muros, de não prover, de não membrana. É isso quese põe no lugar do acontecimento. A maioria acha que acontecimento é um fatoqualquer, uma ocorrência. Nietzsche diz que não existem fatos. Existem interpretaçõesde forças que se apoderam do acontecimento. Esses fatos, essas interpretações, naverdade, escondem uma dimensão inefetuável, inesgotável do acontecimento. Adimensão virtual do acontecer. É essa dimensão que precisamos trabalhar. Você faz daocorrência, do fato, não um acontecimento acidental, mas a singularidade sem a qualaquele fato não ocorreria. Você encontra inclusive a questão da repetição daqueleacontecimento, que é a singularidade. Você encontra a singularidade do acontecimentoe deixa de ter uma visão extrínseca do acontecimento, como se ele fosse um acidente,um acaso. Encontra o necessário do acaso. O essencial do acidente. O ser do devir.Reencontrar a fonte do real, o começo e o fim do desejo. O desejo começa e termina noacontecimento. O objeto e o sujeito do desejo é o acontecimento. O acontecimento querem mim, não é um eu que quer em mim, para gerar uma diferença no que podeacontecer. É a minha parte que faz a singularização, que faz uma diferençaindispensável, e não supérflua. E daí que eu faço da minha vida um destino. Um ato quese dá no encontro, que só acontece pela qualidade da experimentação. Esse encontro éessencial. É preciso encontrar, inventar, experimentar, cultivar um outro modo de nosdispormos em transação.

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     Na observação real você tem elementos concretos: cores, figuras, linhas, coisas,quantidades, qualidade de movimentos. Para que se observe é preciso ter relação comisso. Algo se relaciona. A relação mesmo já é abstrata. Ela é incorporal, a relação é àdistância. Há uma distância no espaço e no tempo. O próprio ser dessa distância é ovirtual. O vazio do espaço, o entre tempo dos tempos, esses hiatos, intervalos, que namedida em que você suspende o movimento, você suspende o tempo da existência ouque você suspende a relação automática entre o sensório e o motor e aí que o caos, ovirtual, todos elementos que não eram contemplados começam a aparecer. Comoquando relaxa o corpo ao dormir. Essas viagens que acontecem através dos sonhos, sósão possíveis porque suspendeu o sensório motor. O virtual começa a entrar. A matériade criação está aí. Se ficar o tempo todo correspondendo a demandas não se cria nada.Existe um ditado: “Se eu trabalho não tenho tempo para ganhar dinheiro”. Isso fazsentido. A palavra escola vem do grego e significa ócio. Os pensadores gregos, não quedesprezavam o fazer, mas tinham uma posição crítica em relação ao fazer. Se você entra

    num fazer tarefeiro não tem tempo de criar e pensar. É lógico que tem que ter essadimensão prática, mas jamais perder a dimensão criativa, a potência de criar ao fazer enão a potência de reproduzir, de ser tarefeiro. Às vezes é uma mera tarefa que vocêresponde automaticamente, ok, você está liberado para fazer outras coisas, assim comoo estômago quando está fazendo a digestão e você está liberado para fazer outras coisas.Mas existe uma zona que você liga o fazer ao criar, fazer com potência criativa. Essa

     potência começa na capacidade receptiva, naquilo que chamamos potência de sermosafetados, essa potência pode aumentar à medida que crio mais aberturas, que eu tornocapaz de me abrir para o inédito, o inesperado, para zonas até perigosas da existência.

    Para isso, primeiramente, tem que vencer o medo. Don Juan, de Castanheda e atémesmo Nietzsche diz que o primeiro inimigo do guerreiro é o medo. E é o medo a primeira instituição das sociedades escravas. A vida não acontece sem ser submetida aesse terror, por isso ela pode ser domada, domesticada. A cultura do medo éfundamental. E para experimentar é preciso vencer o medo, o que não significa serimprudente. No lugar do medo, uma arte das doses. Experimentar na medida em que

     pode experimentar. Mas é um limiar que não se tem certeza se vai afundar ou não. Éuma sensação que precisa desenvolver. Ou, se você se ferrar, que o faça até o ponto que

     pode retornar e se não retornar, isso também faz parte da perfeição da vida. É claro quea vida, uma vez dobrada, ela quer desdobrar-se do modo mais potente possível, quer ir omais longe possível, segundo o que a constitui. Ela não vai querer sair de si mesma demodo idiota, qualquer. Não vai numa linha suicidária, a não ser por captura.Desenvolver a arte das doses, como um modo de prudência, que faz frente ao medo.Esse é o melhor lado do aumento da capacidade de ser afetado. Do ponto de vista críticoeu deixo de investir só naquilo que já tem forma ou figura, naquilo que já tem umencadeamento de signos admitidos socialmente. Deixo de me relacionar com isso, issonão é a dimensão do bem, da verdade, da justiça, do poder, porque aquilo também varia.A linguagem começa a variar, começo a experimentar uma gramática fora da fonéticaestabelecida, eu começo por a língua em variação, a fazer um uso diferente. A língua

    como expressão de um desejo em indagação. Fazer como Kafka que fazia língua piar,

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    miar, grunhir, atingir a dimensão musical da linguagem. Para isso é preciso perder omedo de escrever, de ler, de falar de modo não correto.

    Existe gente que não fala, mas pensa muito, pois o pensamento não se confunde com alinguagem. Eu posso variar a linguagem sem perder potência na relação do uso dalinguagem com o interlocutor, pois o interlocutor pode nos desqualificar e se euacreditar nisso, eu vou me apegar de novo ao modo correto de falar, e eu me proíbo essaexperimentação, de entrar em variação. Foucault diz bem, uma forma de discurso é umaforma de época, ela é o que te permite dizer o que você pode dizer e que te faz dizermuitas coisas. Você nem sabe como, mas acaba dizendo. Só