EDITORIAL Q - appoa.com.br · tema do saber na política; apontamos para o “saber inconsciente”...

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 151, out. 2006. EDITORIAL Q uando chega ao final de seu Seminário sobre “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Lacan assinala que o que dirige seu ensino e sua pesquisa é a formação de analistas. Recém saído da IPA, a preocupação com a transmissão da psicanálise, e com as condições de autorização e eticidade da práxis analítica, tornam-se ainda mais agudas. É na afirmação do exercício de um desejo – o “desejo do psicanalista” – que Lacan vai fundamentar a legitimidade da ação do analista, sua condição de representante de um sujeito suposto ao saber na sustentação da transferên- cia. Mas o que é afinal esse “desejo do psicanalista”? No Correio de julho desse ano, dedicamo-nos a trabalhar esse tema, crucial à psicanálise e elo de ligação entre seus principais conceitos. A pergunta, no entanto, perma- nece aberta, posto que se trata nesse desejo, como indica Lacan, do “ x da questão” na prática da psicanálise. Podemos afirmar que, certamente, tal desejo não se refere à imposi- ção de um “bom objeto” para o gozo, deduzido das demandas do dito analis- ta; tampouco a busca pela confirmação de um saber impostor, visto que imposto como “bom objeto” para conhecer. Longe, portanto, de se reduzir às preferências do analista em questão, trata-se da presença do desejo do Outro na transferência, agenciado pela sustentação de um “objeto inútil” mas privi- legiado: o objeto causa do desejo. Na última página do seminário, Lacan o formula como “um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela pri- meira vez, à posição de assujeitar a ele” (p. 260). Inconsciente, repetição, transferência e pulsão: significantes primor- diais da psicanálise aos quais, enquanto analistas, estamos assujeitados. Reconhecemos, com Lacan, a necessidade de passar por esses significantes – significantes inscritos pelo pai da psicanálise -, para reescrevê-los sob “nossa pena” (no duplo sentido: objeto da escrita e luto do pai). Ao longo desse ano, percorremos os fios associativos que compõem o texto do Seminário. Nesse número do Correio, apresentamos um testemu- nho do trabalho desenvolvido com produções resultantes do Cartel de leitura

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 151, out. 2006.

EDITORIAL

Quando chega ao final de seu Seminário sobre “Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise”, Lacan assinala que o que dirige seuensino e sua pesquisa é a formação de analistas. Recém saído da

IPA, a preocupação com a transmissão da psicanálise, e com as condiçõesde autorização e eticidade da práxis analítica, tornam-se ainda mais agudas.É na afirmação do exercício de um desejo – o “desejo do psicanalista” – queLacan vai fundamentar a legitimidade da ação do analista, sua condição derepresentante de um sujeito suposto ao saber na sustentação da transferên-cia.

Mas o que é afinal esse “desejo do psicanalista”? No Correio de julhodesse ano, dedicamo-nos a trabalhar esse tema, crucial à psicanálise e elode ligação entre seus principais conceitos. A pergunta, no entanto, perma-nece aberta, posto que se trata nesse desejo, como indica Lacan, do “x daquestão” na prática da psicanálise.

Podemos afirmar que, certamente, tal desejo não se refere à imposi-ção de um “bom objeto” para o gozo, deduzido das demandas do dito analis-ta; tampouco a busca pela confirmação de um saber impostor, visto queimposto como “bom objeto” para conhecer. Longe, portanto, de se reduzir àspreferências do analista em questão, trata-se da presença do desejo do Outrona transferência, agenciado pela sustentação de um “objeto inútil” mas privi-legiado: o objeto causa do desejo. Na última página do seminário, Lacan oformula como “um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervémquando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela pri-meira vez, à posição de assujeitar a ele” (p. 260).

Inconsciente, repetição, transferência e pulsão: significantes primor-diais da psicanálise aos quais, enquanto analistas, estamos assujeitados.Reconhecemos, com Lacan, a necessidade de passar por esses significantes– significantes inscritos pelo pai da psicanálise -, para reescrevê-los sob“nossa pena” (no duplo sentido: objeto da escrita e luto do pai).

Ao longo desse ano, percorremos os fios associativos que compõemo texto do Seminário. Nesse número do Correio, apresentamos um testemu-nho do trabalho desenvolvido com produções resultantes do Cartel de leitura

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NOTÍCIAS

JORNADAS CLÍNICAS DA APPOAFUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

INCONSCIENTE, REPETIÇÃO, TRANSFERÊNCIA, PULSÃO

Data: 21 e 22 de outubro de 2006

O que constitui fundamento para a psicanálise? O texto freudiano,herança legada na abertura de um campo e invenção de uma práxis, operacomo matriz originária. “Freud – diz Lacan – não foi apenas o sujeito supostosaber; ele sabia”. Desse saber o que se transmite é o que permanece comoenigma. Diferentemente das proposições dogmáticas tão na moda e tão afei-tas aos fundamentalismos contemporâneos, doutrinários ou religiosos, cien-tíficos ou, até mesmo, com notas de um ceticismo cínico como se tornou otema do saber na política; apontamos para o “saber inconsciente” que convo-ca o sujeito a se fazer cargo da falta que lhe constitui.

O saber na psicanálise se conjuga com o desejo. Desejo de certezaque Freud sustentou em sua pesquisa, e que Lacan retoma para nele situare interrogar o fundamento da práxis analítica. Desejo que ultrapassou o pró-prio Freud, instituindo-se como efeito da análise: no exterior do espelho doamor e da identificação, mas na base da formação dos analistas. “Desejo doanalista”, sustenta Lacan, é articulador na análise das fundações de seuexercício. Os fundamentos da psicanálise, como os alicerces de uma cons-trução, arrimam uma obra, assim como as bases da clínica, na qual o desejodo analista sustenta a operação analítica no desenrolar da experiência. Ospilares conceituais formam o princípio a partir do qual a práxis se torna con-seqüência, do mesmo modo que instiga a teorização.

Os conceitos de inconsciente, repetição, pulsão e transferência sãofundamentais à psicanálise desde Freud, assim como o foram para Lacan equalquer formulação sobre o fantasma, a direção da cura e a formação doanalista, bem como sobre o que se tem hoje a dizer sobre a ciência, areligião ou a política; passa necessariamente por eles. Ao retornar aos fun-damentos, portanto, afirma-se a psicanálise, ao mesmo tempo em que se

do Seminário e dos pequenos cartéis dedicados aos conceitos. Resgate dosconceitos através do recorte de leitura escolhido pelos autores. Resgatetambém da nossa própria história com a publicação de uma palestra inéditade Contardo Calligaris, proferida no ano de fundação de nossa Associação,1989.

Reescrever a história está igualmente em causa na publicação deuma nova tradução do Seminário XI, que viemos fazendo, lição a lição, nasessão debates. Nesse número, as lições de números dois e três do Semi-nário, traduzidas por Claudia Berliner.

No final desse mês de outubro, as Jornadas Clínicas apresentarão umoutro recorte, ampliado, das produções que o trabalho coletivo, de cartel,propiciou. Mais do que uma exegese de um texto, uma reafirmação da apos-ta na psicanálise e em nosso laço associativo, dirigida pela preocupaçãocom a transmissão de uma experiência, o engajamento na formação de ana-listas e a sustentação desse singular “desejo do analista”1.

1 Editoria escrito por Maria Cristina Poli.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

12. Estranha vagância na língua – Marta Pedó13. O texto que não cabe na página – Fernanda Pereira Breda14. A pulsão escópica na contemporaneidade – Jaime Betts

Domingo 22 de outubroManhã

9hMesa 5: A Transferência15. A transferência e o desejo do professor – Rosana Coelho16. “A(s) transferência(s) nas Políticas Públicas de Saúde” – Emilia Broide17. “Bicho de Sete Cabeças”: A clínica psicanalítica em instituições – MarianneStolzman M. Ribeiro18. O infantil na transferência – Gerson Pinho

11hMesa 6: A Transferência19. Transferência, verbo intransitivo – Maria Cristina Poli20. Impasses na transferência – Rosane Ramalho21. A liberdade – Ricardo Goldenberg

Tarde15h30minMesa 7: A Repetição22. Repetição: conceito e clínica – Lúcia A. Mees23. Sobre determinação – Maria Ângela Bulhões24. Monocromos psíquicos: litoral, literal, lutoral – Edson L.A. de Sousa25. Quanto mais sujeito, menos automatismos. Quanto mais automatismos,menos sujeito – Alfredo JerusalinskyEncerramento – Lucia Serrano Pereira

LOCAL: Centro de eventos Plaza São Rafael, Av. Alberto Bins, 514 – PortoAlegre – RS.

indaga seus pressupostos. Seguindo a trilha deixada por Lacan, propomosnestas Jornadas Clínicas da APPOA a revisão conceitual enquanto retorno einovação.

PROGRAMA

Sábado 21 de outubroManhã

9h15min – Abertura – Lúcia Mees9h30minMesa 1 : O Inconsciente1. Conceitos em psicanálise e fundação de um campo – Ana Costa2. O ato tradutório – Cláudia Berliner3. Eneaotil – Otávio Augusto Winck Nunes

11hMesa 2: O Inconsciente4. A Esperteza do inconsciente – Sílvia C. Teixeira5. A construção do conceito de recalcamento em Freud – Elaine S. Foguel6. Inconsciente e desejo do analista – Robson de Freitas Pereira7. O tempo e o inconsciente – Osvaldo Arribas (Argentina)

Tarde15hMesa 3: A Pulsão8. Afânise – Ligia Gomes Víctora9. A agressividade nos limites da linguagem – Luis Fernando Lofrano10. O trabalho da pulsão na condição de morbidade – Denise Mairesse

16h30minMesa 4: A Pulsão11. Notas da pulsão – Heloísa Marcon

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

PERCURSO EM PSICANÁLISE DE CRIANÇAS O Percurso em psicanálise de crianças é uma atividade que está inte-

grando o quadro de ensino da APPOA, desde março de 2005, como umespaço de estudo e desdobramento das questões levantadas à psicanálisepelo trabalho com a infância.

Mesmo que a formação do psicanalista que trabalha com criançasesteja alicerçada sobre os mesmos pilares daquele que trabalha com adul-tos, uma série de interrogações se coloca quando um sujeito é abordadonesse momento tão particular da vida. Diferente do adulto, a criança atraves-sa um tempo em que a estrutura não está decidida de modo definitivo, con-vocando o analista a se ocupar com aquilo que ainda não está inscrito. Aparticular relação da criança com o significante, estabelece para ela umaforma específica de sua representação. Eis então, que a prática diverge e setorna específica.

 O Percurso em psicanálise de crianças traz consigo uma nova moda-lidade de ensino para a APPOA, já que foi elaborado e funciona em parceriacom outra instituição psicanalítica da cidade. Além de eixos de estudo pro-postos pela APPOA, uma série de temas é abordada em seminários com-partilhados com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud. A pluralidade de ques-tões e autores que atravessam o campo da psicanálise de crianças propi-ciou a composição desse trabalho em conjunto.

 O Percurso em psicanálise de crianças destina-se a todos aquelesque se sintam concernidos pelas questões suscitadas à psicanálise pelotrabalho com crianças.

 PROGRAMA

Metapsicologia do sujeito infantilA direção da cura na psicanálise de criançasA constituição subjetiva de acordo com as diferentes escolasHistória da psicanálise de criançasIntersecçõesInfância, adolescência e modernidade

INSCRIÇÕES:

Categorias Antecipadas até 06/10/2006 Após o dia 06/10/2006Associados R$80,00 R$110,00Estudantes R$90,00 R$120,00Profissional R$110,00 R$140,00

APPOA NA FEIRA DO LIVRO/2006

Comprometida com a inserção e sustentação do discurso psicanalíti-co nos mais diversos contextos culturais, a Appoa convida para a seguinteprogramação:

Dia 28/1018h30min – Sessão de autógrafos da Revista da APPOA: “Narrar, construir,interpretar”.Local: Pavilhão de autógrafos

19h30min – Mesa-redonda: “Ficção e verdade nas Mil e uma noites”Participantes: Antônio Marcos Sanseverino – Prof. De Literatura/UFRGSMaria Auxiliadora Sudbrack – Psicanalista/APPOAMamede Mustafá Jarouche – Tradutor da recente edição da “Mil e uma noi-tes” (a confirmar)Lucy Linhares da Fontoura – Psicanalista/APPOA (debatedora)Local: Memorial do RGS/Sala dos Jacarandás

Dia 29/1017h30min – Mesa-redonda: “As faces da palavra”Participantes: Cláudio MorenoCarmen BackesLocal: Memorial do RGS/Sala dos Jacarandás

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Início: março / 2007Duração: 2 anosEncontros: segundas e quartas-feiras, das 19h30min às 22h30minPeríodo de inscrições: até 30/11/2006Valor da inscrição: R$ 45,00Documentação: Cópia do diploma de graduação, currículo, memorial (relatode sua trajetória e interesse pelo Percurso) e uma foto 3x4.Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

ERRATA

No último Correio, na notícia sobre a Oficina de Topologia, por um errodo corretor de texto, o nome de Reidemeister foi publicado como “Reider-meister”.

Kurt Werner Friedrich Reidemeister (1893 - 1971) foi um importantematemático alemão, que desenvolveu a teoria dos grupos matemáticos e ados nós. Também foi filósofo, poeta, e tradutor de poesias para a línguaalemã.

Ligia Víctora

SEMINÁRIO O DIVÃ E A TELAFILME: GANGUES DE NOVA YORK, DE MARTIN SCORCESE

Nestes momentos de tensào política e efeitos do 11 de setembro,“Gangues de Nova Iorque” torna-se um painel fundamental para debater ascondições da violência atual com todos os seus desdobramentos individuaise culturais.

Data: 18 de outubro, quarta-feira, 19h30minCordenação: Eneas de Souza e Robson PereiraLocal: sede da APPOA

PERCURSO DE ESCOLA – 2007TURMA IX

 O percurso de escola faz parte do quadro de ensino da APPOA, des-

de 1994, como um lugar possível do desdobramento das perguntas que oencontro com a Psicanálise coloca a cada um. Esta proposta inscreve-secomo um espaço de estudo sistemático dos textos fundamentais de Freud eLacan, bem como das disciplinas que com eles dialogaram no transcurso daconstituição e consolidação da psicanálise, quais sejam, Lingüística,Topologia, Literatura, Antropologia, Filosofia e as Artes em geral. O Percursode Escola destina-se àqueles que se sentem concernidos pela Psicanálisee pelas questões que ela suscita.

 O trabalho se desenvolve em torno dos seguintes eixos temáticos: – O inconsciente– Édipo e castração– Narcisismo e identificação– O sintoma– A transferência– Temas cruciais da psicanálise; história e formação

 Esses eixos temáticos são trabalhados ao longo do percurso, sendo

desdobrados nas perspectivas das obras de Freud e Lacan, em textos clíni-cos (casos ou textos concernentes à clínica) e ensino contextual (Antropolo-gia, Lingüística, Filosofia, Estética, Literatura, Topologia e outros)

 Inscrições para seleção da nova turma:Início: março/2007Duração: 3 anosEncontros: segundas e terças-feiras, das 19h30min às 22h30min.Período de inscrições: 16/10 a 30/11/2006Valor da inscrição: R$ 50,00Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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SEÇÃO TEMÁTICA

tarefa de escrever a história das suas dores a um escritor alemão comoGoethe, mas se ele mesmo tivesse escrito, certamente ele teria ganho oamor de Charlotte e não teria se matado como Goethe o matou.

Então, há uma resistência específica para falar de transferência poresta razão, mas, enfim, eu gostaria de situar, pelo menos, como, entre Freude Lacan, a questão do que seria engano na transferência se situa, porque écerto que se situa de um jeito diferente. Algo já falei sobre isso (acabo defalar): é que não é uma amor falso. O amor de transferência é um amorautêntico, como qualquer amor.

Vou poder, dificilmente, me deter como precisaria sobre o textofreudiano, porque a posição de Freud em matéria da transferência é eminen-temente ambivalente como, certamente, vocês sabem. Ambivalente, porque,por um lado, Freud coloca claramente a transferência como sendo uma re-sistência ao tratamento. Por outro lado, também como sendo condição in-dispensável ao tratamento. Vocês lembram dos “Escritos técnicos” e, maisparticularmente, o texto “Conselhos aos jovens médicos” (se bem me lem-bro) quando ele insiste sobre a necessidade de criar um laço transferencialpara que o tratamento possa começar. Freud, nesse contexto, parece pen-sar que a necessidade de transferência está ligada à criação de um suficien-te para que o tratamento possa se engajar e durar. Mas, por outro lado, atransferência seria uma resistência ao tratamento. Por que a transferênciaseria uma resistência ao tratamento para Freud? Pela razão seguinte: se(esta hipótese merece ser sublinhada) o essencial do tratamento analítico éa rememoração, é rememorar, então, trazer de volta na memória algo queseria da ordem de uma memória inconsciente, se, então, o essencial dotratamento é rememorar, então, repetir resistiria à rememoração. De outraforma, a repetição do que deveria ser rememorado não facilitaria arememoração, rememoração que seria o essencial do tratamento. O fatoengraçado é que esta posição de Freud é uma de suas posições, porque,por outro lado, é certo que tanto nos seus “Casos clínicos” quanto num textofamoso sobre neurose de transferência, a posição de Freud é diferente. Édiferente porque nos seus “casos clínicos” ele afirma, muitas vezes, que

CALLIGARIS, C. Estória de um engano.

“ESTÓRIA DE UM ENGANO”1

Contardo Calligaris

Écerto que falar sobre o tema da transferência é uma coisa difícil.Difícil por duas razões: a primeira porque todos os analistas, desdeFreud – embora confrontados ao fenômeno da transferência do coti-

diano da clínica deles – sempre continuaram a achar extremamente abalanteo encontro, na situação terapêutica, com algo que, de uma certa forma,todos reconheceram como sendo uma amor autêntico. Desde Freud, a trans-ferência nunca foi considerada, deste ponto de vista, como um engano, comoum amor falso, mas sempre como um amor autêntico. É bem por isso que oconfronto com a transferência é abalante, porque se trata de um amor autên-tico.

A segunda razão, pela qual falar de transferência é difícil, é ligada auma certa reticência que é um pouco a seguinte: embora estes termos tal-vez apareçam mais claros no percorrido do que eu tenho para conversar comvocês hoje à noite, mas, enfim, antecipando um pouco, se se pode esperarde uma análise que, de uma certa forma (e vamos ver qual, eventualmente,se o tempo der, e se eu conseguir) ela resolva a questão desse amor dealguma maneira, é certo que falar sobre transferência é algo que, necessari-amente, o alimenta. Falar sobre o amor é algo que alimenta o amor. Desseponto de vista, eu queria fazer o seguinte comentário – depois da linda inter-venção da Lúcia – que eu desconfio, de fato, que Sócrates tenha consegui-do, com o seu discurso, mandar Alcebíades de volta para o seu desejo.Acho que isto só aconteceu no texto que Platão escreveu. Sócrates, falandocomo ele falou, de fato, só poderia ter, de uma certa forma, alimentado oamor de Alcebíades. Em outras palavras, se Werther não tivesse deixado a

1 Palestra proferida em 1989, na Jornada sobre “Transferência”, promovida pelo COESP-UFRGS. A íntegra deste texto, incluindo o debate, encontra-se no site www.appoa.com.br

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SEÇÃO TEMÁTICA

ultimamente. A ordem é a seguinte: inconsciente, repetição, transferência,pulsão. Eu acredito, vou tentar mostrar rapidamente, que esta ordem é, deuma certa forma, a articulação de uma frase, e que deste ponto de vista, oSeminário XI é o seminário clínico por excelência. Eu diria mesmo que é oseminário sobre a questão da transferência no sentido pleno, até porque oseminário em que ele consagrou a questão mesma da transferência é ante-rior uns três ou quatro anos, como vocês sabem. É um seminário no qualalguns dos conceitos fundamentais sobre a questão da transferência aindanão estavam colocados e, particularmente, o conceito de sujeito-suposto-ao-saber que só aparece no Seminário da identificação em 1961.

Então, inconsciente, repetição, transferência, pulsão, nesta ordem. Efe-tivamente, se eu consegui explicar o que fazia a dificuldade de Freud, vai serimpossível sair desta dificuldade. Um amor autêntico, então, o que ele repete,sem modificar algo do lado do nosso conceito de inconsciente e de repetição.É bem isso que acontece no Seminário XI. Se eu pudesse resumir numa fraseesse Seminário, e como todos os Seminários de Lacan, eles todos são articu-lados assim. O que acontece é que a gente só se dá conta da articulaçãoglobal por volta da 25ª leitura. Porque Lacan é um parentético, alguém quedivaga, que faz parêntesis, ele fala (como ele mesmo sempre diz) comoanalisante. Então, o fio do que ele está falando não é sempre muito evidente.

Então, como é que começa o Seminário. O inconsciente, nos dizLacan, não tem estatuto ôntico, quer dizer, não é alguma coisa. O que éentão? O problema é o seguinte: não é um depósito de memória inconscien-te. Nada disso, o inconsciente é, resumindo, uma estrutura (vocês podempensar isso do jeito mais fácil possível, um gráfico qualquer) que designa olugar de onde o sujeito pode desejar. Se o inconsciente é isso, uma estruturafamiliar muito simples: papai, mamãe, irmãozinho, irmãzinha e eu, isso querdizer o quê? Uma estrutura que desenha um lugar do qual eu posso falar.Esse lugar aí, o lugar que eu falei agora, eu, como sendo filho. É esta estru-tura formal, nada mais do que isto o que me atribui um lugar do qual euposso desejar, do qual eu posso “ser” (ser entre aspas porque não é bem deser que se trata), me exercer como sujeito.

CALLIGARIS, C. Estória de um engano.

sem a repetição fornecida pela transferência, nada de alguma coisa poderiater sido rememorada e, no contexto sobre “Neurose de transferência”, eletoma uma posição bem próxima do que vai ser a posição lacaniana e que, deuma certa forma, é a seguinte: a neurose do sujeito se desdobra na transfe-rência. A psicanálise lida com a neurose de transferência, isto é, com aneurose que se organiza na transferência e resolvendo a neurose de transfe-rência, resolver-se-ia, eventualmente, a neurose do sujeito.

Então, de repente, neste texto em particular, as coisas estão coloca-das de um jeito diferente. Não aparece mais que a repetição na transferênciaresistiria à rememoção. Mas, repetição do que, se estamos falando de umamor autêntico? É bem aí que está a questão. Se se trata de um amorautêntico, no que seria uma repetição? Uma repetição da relação, comoFreud mesmo vai falar, como um imago, por exemplo, a imago fraterna, qual-quer tipo de imago que poderia ou que deveria ter sido rememorada, o queteria permitido bem melhor o trabalho analítico do que se ela tivesse sidorepetida como está sendo na transferência. Quer dizer que, de uma certaforma, Freud nunca sai desta questão. A transferência, de uma certa forma,é um engano porque apesar de ela ser um amor autentico, o que ele reco-nhece, apesar disso, não é bem da gente que se trata. O que está sendovivido como amor é a repetição de algo que deveria ter sido rememorado.

Vocês vêem, imediatamente, que para intervir nesta dificuldade deFreud sobre como considerar a transferência, para mudar algo na problemá-tica mesma, é preciso voltar a dois conceitos preliminares. Por que? Porquese o inconsciente é uma memória e a repetição é, então, repetição destamemória, vai ser muito difícil pensar a transferência como não sendo umengano como eu falei, isto é, um amor autêntico, tudo bem, mas que repeteo que poderia ser rememorado.

Não é por acaso, e as pessoas aqui que leram o Seminário XI deLacan, “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (que infelizmenteé um dos seminários que não temos em versão corrigida) lembram em queordem os quatro conceitos, ditos fundamentais, aparecem neste seminário.Que esta ordem tivesse uma necessidade lógica é algo que me apareceu só

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SEÇÃO TEMÁTICA

a fala do paciente continue rememorando, o que é normal, mas o acesso aoinconsciente seria muito mais pela via da repetição, mas entendendo porrepetição uma repetição que não implica um repetido, mas que é mesmouma colocação em ato do inconsciente do sujeito.

Falando nisso, estamos bem longe de ter uma idéia do que é a trans-ferência, porque Lacan também fala que transferência é uma resistência. Elefala isso no Seminário XI, bastante. Nos fala mesmo que a transferênciafunciona como um obturador, que fecha, uma tampinha. Por que seria umaresistência? Eu acho que a passagem do Seminário XI dificilmente pode serentendida se a gente não pensa que Lacan está usando o conceito de trans-ferência num sentido que vocês me permitirão talvez chamar de dinâmico.Quando ele fala de transferência, ele está falando de transferência analítica,porque fora disso é um amor como qualquer outro. Ele está falando de umpercorrido no qual a responsabilidade do analista está engajada seriamente,mas de um percorrido que vai fazer algo diferente com este amor autênticoinicial. Nesse percorrido, a transferência é também resistência e vamos vercomo e porque seria uma resistência fazer algo um pouco diferente comoeste amor autêntico inicial. Esse fazer algo uma pouco diferente com o amor(ficou bem dito na exposição precedente) seria permitir ao sujeito que ama eque vem com uma demanda de amor, ter acesso ao seu desejo, que é umnegócio muito diferente do amor.

Vou voltar depois sobre o quarto termo, pulsão, que tem uma grandeimportância na frase da qual falei, mas eu vou ter de tomá-lo no fim.

Primeiro, o que eu quero dizer, quando digo que Lacan, falando datransferência, está falando de uma dinâmica? Onde vai esta dinâmica, deonde sai, onde ela acaba, quais seus dois pólos? (os dois pólos é umapremissa). Esses termos podem parecer, a alguns, estranhos. Talvez aca-bem tornando-se mais claros depois. São os seguintes: a transferência ana-lítica é o percorrido que vai do sujeito suposto ao saber ao desejo do analis-ta. É disso que se trata, dito em termos sintéticos. Como entender isso, dosujeito suposto ao saber ao desejo do analista? O que é o sujeito suposto aosaber, comecemos por aí. Para que isso se entenda um pouco, vamos tomar

CALLIGARIS, C. Estória de um engano.

Se o inconsciente é isso, o que é a repetição? A repetição não é umavolta de algo que estaria nesse depósito. A repetição é simplesmente, deuma certa forma, o jeito normal do meu ser. Não é diferente do que a minhadeterminação. Desse ponto de vista, o que é a transferência? Definição deLacan, que é a única definição, eu diria, definitiva que eu conheço na obradele: “a transferência é a colocação em ato do inconsciente”. Vejam bemcomo esta passagem tão rápida que eu fiz permite a Lacan falar da transfe-rência não como sendo uma repetição. Isto é, talvez uma repetição, mas quenão implica um repetido. É a colocação em ato (que é a única boa traduçãoportuguesa a partir da versão não corrigida, versão essa que fala em atua-ção, que é falso, porque mise en acte é colocação em ato e não atuação) doinconsciente. Então, não há repetido, embora se trate, certamente, de umarepetição, porque eu sempre vou colocar em ato este inconsciente aí. Esteinconsciente aí não é um depósito escondido no fundo de minha memória, éo que me faz sujeito. Se a transferência não é uma repetição, mas umacolocação em ato do meu inconsciente, então, desse ponto de vista, ela nãoé um engano, não dá para dizer que esse amor, além de ser autêntico, seriaum engano porque, de fato, tratar-se-ia da repetição de algo que seria oautêntico do qual dever-se-ia tratar. Nada disso! Numa colocação em ato deuma estrutura, qualquer colocação em ato, é tão autêntica quanto outra. Nãohá engano nenhum, ou seja, a neurose de transferência é perfeitamentehomóloga à neurose do sujeito. Isso tem uma série de conseqüências clíni-cas radicais que, certamente, aparecem evidentes. Nem vale a pena se de-ter muito sobre isso, mas é evidente que nessa ótica não há interpretaçãopensável da transferência. Transferência não pode ser um objeto para serinterpretado. Só há interpretação na transferência, no quadro de colocaçãoem ato do inconsciente do sujeito que esse amor autêntico permite. Emoutras palavras, o que acontece numa análise não vale como repetição dealgo de infantil, por exemplo, mas vale efetivamente, pelo que está aconte-cendo mesmo.

A mudança de acento, então, de Freud para Lacan, seria a seguinte:que o acesso ao inconsciente não é mais pela via da rememoração, embora

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dizer não me contar, diria Lacan, não me contar tomando este exemplo quetodo mundo conhece: eu tenho três irmãos, Paulo, Roberto e eu. É issomesmo, não me contar para agradar ao legislador. Esta, geralmente, é aposição de qualquer neurótico que chega em análise. O amor do qual setrata, é o amor do suposto ao saber, e a posição do sujeito, desse ponto devista, é histérica, discursivamente, isto é, como agradar. Como eu poderiaser um eu ideal amável para o ideal do eu que coloco no sujeito suposto aosaber. Sujeito suposto ao saber, por sinal, não é necessariamente o analis-ta, é algo suposto a sua função.

É um amor, um amor autêntico, sem dúvida, só que vocês vêem bemqual é o preço deste amor e talvez, não necessariamente, seja o preço dequalquer amor, mas desse amor aí, por autêntico que seja, dá para ver ime-diatamente qual é o preço. O preço é a renuncia ao lugar a partir do qual osujeito poderia desejar, porque o seu trabalho é autorizar um exercício que jálhe foi outorgado como sustentando o Outro, o legislador e o saber do legis-lador com esse amor.

Então, a questão da transferência analítica é o que fazer com esteamor para devolver ao sujeito a possibilidade de desejar – ou mais propria-mente, para ser menos psicologístico –, devolver o sujeito ao que ele é, umdefeito de discurso, isto é, um efeito de estrutura.

Isso funciona assim: quando mais eu suponho um saber – que é osaber da minha verdade – quanto mais eu suponho esse saber idealizado noOutro, tanto mais o meu eu ideal ocupa o que deveria ser meu espaço desujeito. Eu não sou nada mais do que algo que tem de agradar o ideal colo-cado no Outro.

É importante talvez entender esta relação entre saber e verdade quemencionei apenas. É importante porque ela vai ser importante para nós en-tendermos um pouco o que seria o desejo do analista, esse “x”, como falaLacan. Esse meu inconsciente, do qual falei, essa estrutura forma, embora,de certa forma, não seja nunca enunciável com um saber, eu posso até dizerque é uma saber e certamente é um saber, mas no sentido no qual falaLacan que um saber não é nada diferente do seu exercício. Então, é um

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as coisas desse jeito: eu falei antes que, lacaniamente, o inconsciente nãoé alguma coisa, não é um depósito de memória, é uma estrutura. Este grá-fico minimal do qual falei antes – papai, mamãe,... – de fato, ele é muito maiscomplicado, mas tanto faz, pelo menos um gráfico tem de ser ternário. En-tão, esta estrutura, como cada um sabe, é exatamente o que a lei coloca. Alei quer dizer o quê? A lei edípica. A lei é justamente o que, vindo do Outro,coloca um sujeito numa posição, por exemplo, de filho, ou o inscreve numagenealogia e, reconhecendo uma significação, o inscreve numa sexuaçãohomem ou mulher. O efeito da lei é isso, é lhe outorgar um lugar, desde ondeele vai poder desejar. É por isso que Lacan insiste sempre que lei e desejosão fios de uma mesma trança.

Então, o que funda a possibilidade de exercício do meu desejo é a lei,é esta lei, por exemplo, a lei edípica que me situa como filho. Só que asegunda frase vai ser a seguinte: se o que funda o exercício do desejo é a lei,o neurótico vai imediatamente juntar: o que autoriza esse exercício é o saberdo legislador. Em outras palavras, a partir desse enunciado – do qual poder-se-ia mesmo dizer que, de uma certa forma, ele não implica neurose nenhu-ma – o cuidado do neurótico vai ser sustentar o agente da lei, procurar entãoautorizar algo que já lhe está sendo permitido. Autorizar o exercício do seudesejo a partir do lugar que é o seu. Autorizar esse exercício que já lhe épermitido é bem isso, é trabalhar na construção da suposição do saber dolegislador. Isso é uma banalidade neurótica, mas essa banalidade neurótica,de uma certa forma, funda o que... (troca de fita) ... histeria como discurso,não como estrutura, mas como discurso. Vocês sabem (vocês que são umpouco lacanianos) que a histeria não é só uma estrutura, mas é um discur-so, é a única das neuroses que seja um discurso. Por quê? Porque a ques-tão, de repente, vai ser a seguinte – a questão histérica por excelência, masque concerne a qualquer neurótico: se o meu problema é autorizar este exer-cício de desejo que de qualquer forma já me é permitido, me foi outorgado,mas autorizá-lo como? Me referindo, supondo um saber ao legislador? Aconclusão da história vai ser necessariamente a seguinte: que eu vou renun-ciar ao meu desejo para agradar ao legislador. Renunciar ao meu desejo quer

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vedora por ser uma pessoa extraordinariamente apagada, mas não apagadaporque a gente não realizasse a sua presença, mas apagada porque elaconhecia um único modo de resposta e esse modo era a renúncia. Estoupensando em coisas muito banais, do tipo: “Tia, a gente abriu uma garrafa dechampagne, a senhora quer um pouquinho?” “Não, não. Esta bem, se vocêsinsistem eu quero, mas só um pouquinho”. Ela era assim, o dia inteiro. Cadaum deve ter uma tia-avó assim, isto não é nada extraordinário. Ela, por sinal,era adorável.

Então, o que é interessante nessa história? Vejam bem, eu não tenhorazão ideológica nenhuma para pensar que seja melhor casar, ter filhos, doque ficar criando o menino do seu irmão. Não, não há aí escolha ideológicanenhuma, mas o problema é que o que me aparece – embora nunca tenhaanalisado a minha tia e, por sinal, ela não teria aceitado, porque teria achadoque era demais. Talvez tivesse aceitado uma sessão breve, bem curtinha.Isso teria sido bem característico dela – por querer ter tomado esse exemploé que no momento em que se tratou sensivelmente na família de decidirquem ajudaria o irmão a criar o filho, que essa escolha é exatamente umaescolha de amor, certamente uma escolha de amor, mas uma escolha deamor em qual sentido: de amor para o legislador. Uma escolha do lado de umamor que coloca uma forma de ideal que apaga o seu lugar de desejo einstaura nesse lugar um eu ideal que possa ser, eventualmente, simpáticoaos olhos do ideal do eu do qual se trata.

Esse caminho de renúncia é muito freqüente na vida de todo mundo eé um efeito do amor, por sinal, necessariamente, é um efeito do amor, pelomenos, de um certo tipo de amor – talvez tenha outros tipos de amores. ALúcia, uma vez a mais, lembrou antes, estas últimas passagens do Seminá-rio XX de Lacan, tão problemáticas. Problemáticas, mas vou voltar a elasdaqui há pouco talvez para propor uma leitura.

Então, se este é o caminho da histeria universal, quer dizer, escolhera renúncia do lado do próprio desejo para agradar o legislador e se é nessaposição que o neurótico chega em análise e com um amor que coloca osujeito suposto ao saber como justamente o que se trataria de agradar – o

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saber cujo exercício é a minha verdade, mas um saber que nunca vai poderser um saber. É um saber cujo exercício é a minha verdade. O exercíciodessa estrutura que seria o meu saber inconsciente é a minha verdade.Quanto mais eu tento supor como saber sabido, como saber possível esseminha verdade que é um exercício, tanto menos eu tenho acesso ao meudesejo. O que isso quer dizer? Para que se entenda um pouco melhor, euvou tomar um caso que não sei direito porque e talvez se soubesse nemfalaria, mas, nos últimos tempos, há uma série de lembranças familiares queme voltam à cabeça.

Falando com um grupo de estudos já evoquei a história de uma tia-avó. Vou evocar esta história primeiro porque uma mulher completamenteesquecida então merece ser evocada em algum lugar e segundo porque, poracaso, ela se chama Dora o que, falando em psicanálise, impõe a sua evo-cação. A história desta tia-avó é uma história banal, e ela tem interessejustamente por isso, por ser uma história banal. Ela era a terceira, de trêsirmãs, uma das quais era a minha avó materna e essas três irmãs tinham umirmão que casou e teve um filho. A mãe desse filho que, por sinal, é meuprimo, morreu no parto e então o meu tio-avô ficou viúvo jovem, com um filhopara ser criado. As duas irmãs casaram, evidentemente, senão eu não esta-ria aqui e tiveram filhos. Mas, a minha tia-avó Dora, ficou para ser mãe dessefilho que não tinha mais mãe. Logo depois, o meu tio-avô, o pai desse meni-no, também morreu e esta tia-avó criou o menino praticamente sozinha nacasa na qual ela ficou, na casa dos pais dela. Criou-o até o tempo dele ficaradulto, viajar para estudar na universidade em outro lugar da Itália e daí, acasa materna (coisa bem interessante), a casa da família foi fechada porqueera uma casa enorme, de uma vila no centro da Itália, não fazia sentido, nãodava para colocar calefação e ela estava aí sozinha. Então, a casa foi fecha-da e ela passou o resto da sua vida comprida (ela morreu o ano passado com84, 85 anos), coisa bem interessante, sem nunca ter um lugar a ela. Ela viviauma parte do ano com o primo, uma parte do ano com uma irmã, uma partedo ano com outra irmã, mas ela não tinha residência fixa. Além disso, embo-ra a coisa seja bem fenomenológica, era uma pessoa extremamente como-

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renunciou. É disso que se trata, é apontar esse índice como sendo a verda-de. Não apontar o resto como sendo a mentira – isso tem uma grande impor-tância – mas apontar esse índice como sendo o índice da verdade do sujeito.

Então, voltando ao que falamos antes, se a transferência, mesmopara Lacan, pode ser dita como sendo uma resistência, ela é uma resistên-cia (em termos, de qualquer forma, diferentes dos termos de Freud) enquan-to este amor inicial ao sujeito suposto ao saber, mas é evidente que só apartir daí que o sujeito vai poder encontrar o desejo do analista, isto é, algoque lhe restitua o lugar de onde querer e falar o seu lugar na sua estrutura.Enfim, uma resposta que reconheça o sujeito, que o reconheça no sentidoforte, como efeito de discurso. Não se trata de um desengano. Trata-se bemdisso: de reconhecer o sujeito como efeito de discurso.

O que é isso, reconhecer o sujeito como efeito de discurso? Algodiferente do que desengana-lo, muito pelo contrário, reconhecer. Eu acreditoque, de uma certa forma, seja possível dizer – e é este o sentido que possoreconhecer das últimas páginas do Seminário XX – que este ato analíticotalvez seja uma forma de amor. A única forma de amor com a qual o analistapode pagar o amor de seus pacientes. Uma forma de amor bem diferente,porque é uma forma de amor que consiste em reconhecer – no sentido dereconhecimento e não no sentido de encontrar, por acaso, perdido na selva –o lugar ao qual o sujeito renunciou. Isso talvez seja a forma de amor da qualLacan fala no Seminário XX, quando fala de amor como reconhecimento desujeito a sujeito, insistindo bem que se trata de sujeito do inconsciente.

Mas eu gostaria de dar um exemplo do que isso quer dizer. O exem-plo me é oferecido por algo que não é um exemplo clínico, embora esteexemplo tenha-se apresentado para mim na clínica, isto é, foi algo que mefoi contado por alguém que me faz confidências e que fala comigo regular-mente. A história é a seguinte: uma mulher sai com um homem que, porsinal, é um homem casado e, então, esse homem casado dá uma cantadaextremamente tradicional, banal, desesperadoramente banal, ou seja, “sim,eu sou casado, mas a gente já está separado de fato há muito tempo e tudoisso...”, essas coisas que um homem casado fala, mas fala isso justamente

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amor não é nada mais do que isso, é querer ser amado, justamente – então,o que deste amor, faria transferência? Para Lacan, seria que este amor quese endereça ao sujeito suposto ao saber encontre o desejo do analista. Oque é o desejo do analista? Essa questão não é muito fácil e nem sei seprecisa ser respondida. O que é certo é que não se trata, de jeito nenhum, no“manejo” da transferência de produzir algo que consistiria em se despojar dosujeito suposto ao saber. Bem por isso que duvido dos efeitos da fala deSócrates. Dizer: “eu não sei nada”, geralmente, só alimenta a suposição desaber. Acontece que Sócrates fala algo a mais: “ eu não sei nada (como foilembrado) a não ser de Eros”. Eu acredito também que o analista precise deum certo saber. Esse saber aí, que tem há ver Eros.

Não se trata, então, de se despojar. Não se trata também de pensarque o “manejo” da transferência consistiria na recusa. Será que se trata sóde se recusar este amor? Isso seria levar a psicanálise em caminhos queLacan contestou radicalmente. A psicanálise não funciona do lado da frus-tração. Não é disso que se trata. Trata-se de algo diferente. A questão não érecusar este amor, porque a questão nem se coloca nos termos de aceitarou recusar. A questão é responder do lugar desse sujeito suposto ao saberde tal forma que algo, que chamamos o desejo do analista, produza no sujei-to, uma volta, aproximativamente, ao lugar de onde ele possa desejar. O queseria isso? Lacan diz uma coisa fenomenologicamente bem interessante,justamente, no Seminário XI. Ele fala que a interpretação sempre é construídano modelo: “você está dizendo a verdade”. É bem interessante, porque umavez a mais a problemática não é uma problemática de engano. Não é: “vocêestá errado, está mentindo, não é isso que você está querendo dizer, mas éoutra coisa que eu vou lhe dizer...” Não é nada disso, mas o modelo dainterpretação é: “você está dizendo a verdade”. Propor como modelo de inter-pretação esse tipo de fala endereçada ao sujeito quer dizer o quê? Querdizer que a questão é: o que se formula, o que se enuncia graças a esteamor maluco, este amor abalante, mas que é um amor que o sujeito pagacom o preço da renúncia ao seu desejo. Escutar, então, o que se formulagraças a esse amor, escutar o que é um índice deste lugar ao qual ele

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estrutura e nada mais. Eu sou, como sujeito, nada mais do que um efeito dediscurso. O original em tudo isso, é ter chamado este algo, que eu encontra-ria numa análise como resposta diferente ao meu amor, de desejo do analis-ta. Isso é original porque é certo que se trata de um desejo próprio à funçãodo analista e não do desejo na sua singularidade de cada sujeito. É originalpor muitas razões, porque esse desejo funda. Se há um desejo do analista,há uma ética da psicanálise, certamente. Porque se a psicanálise tem algu-ma coisa para dizer em matéria de ética, geralmente, a única coisa que elatem a dizer é o que foi falado por Lacan, que a única culpa que a psicanálisereconhece é a de ter renunciado ao próprio desejo (Seminário da Ética).

A psicanálise, então, não tem julgamento moral nenhum. O seu únicointeresse ético é devolver ao sujeito o lugar de onde desejar. Isso implica umdesejo do analista. Implica o quê, esse desejo do analista? Implica certa-mente a análise do analista. Não há dúvida que o analista, ele tenha voltadopara este lugar porque é só isso que pode garantir que ele não responda aeste amor de um jeito que não seria nada catastrófico, mas que seria catas-trófico no sentido de que o sujeito não poderia tirar nada da sua aventuraanalítica. Mas, além disso, eu acho que o analista precisa de algo mais.Engraçado, porque, geralmente, o que se fala, com razão, é que para seranalista, é condição necessária ter feito uma análise, isso é evidente, maseu não sei se isso é uma condição suficiente. Eu acho que Platão tem razãoquando Sócrates fala que ele não sabe de nada a não ser de Eros. Mas issoabriria um outro capítulo que talvez tenha uma certa importância na questãoda transferência que é a questão do que é o saber do analista, o saberpróprio à função do analista, que, certamente, não é um saber redutível a nãosaber de nada. É isto. Já falei bastante.

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numa posição de renúncia ao seu próprio desejo. Ele passa por isso nãotanto porque está querendo agradar à mulher. Ele está querendo agradaralgo do lado do seu suposto saber. É ele que está renunciando ao lugar doqual ele poderia desejar. O que é interessante é que se esta cantada fosseno quadro da análise, se se tratasse de uma analista mulher, e de um ho-mem casado falando isto para sua analista mulher, digamos assim, o proble-ma seria o seguinte: o que seria a resposta possível e mesmo fora do quadroanalítico, o que seria uma escuta analítica disso. Seria reconhecer o que elenão está conseguindo falar, Isto é, o seu desejo por esta mulher. De umacerta forma, negligenciar o patético de sua renúncia ao desejo passandopela cantada mais trivial. É certo que se a gente pudesse sempre se escutarassim, se fosse o caso, a psicanálise constituiria um laço social. Não é paraamanhã, mas, se fosse o caso, talvez conseguisse construir um laço social.

Uma última coisa, para acabar essa leitura do Seminário XI. O quartoconceito é a pulsão. Esse conceito de pulsão surge aí (como eu possolembrar rapidamente aos meus amigos lacanianos sem que isso atrapalheaos outros) exatamente pela mesma razão pela qual a escritura da pulsãono gráfico do desejo na “Subversão do sujeito e dialética do desejo” apareceem cima, à direita. Qual é esta razão? É porque no lugar interpelado pelosujeito suposto ao saber, este lugar que eu pago, cujo amor eu pago comrenúncia ao meu desejo, que desse lugar me responda o simbólico no queele tem de mais acéfalo. Me responda o simbólico assim como ele me cons-titui na estruturinha da qual eu estava falando. Isto é, um simbólico acéfaloque me constitui como efeito de discurso. É bem esse o efeito de discursoacéfalo que me permite desejar. Então, é quando no lugar do sujeito supostoao saber algo responde que é da ordem da pulsão que é o que há de maisacéfalo no simbólico que talvez se possa falar de resolução da transferênciaou de, como se falava erroneamente, da liquidação da transferência. É aí quetalvez eu encontre, do lado do Outro, uma resposta que não alimente umamor cujo preço é a renúncia ao meu desejo. Uma resposta suficientementeacéfala, isto é, sem sujeito, para que me devolva um lugar a partir do qual eupossa desejar, dado que esse lugar não é intenção de ninguém. É uma

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“A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está semprevelado na análise, por causa da identificação da repetição com a transferên-cia na conceitualização dos analistas. Ora, é mesmo este o ponto a que sedeve dar distinção” (Lacan, 1985, p. 56).

De outro lado, ressalta-se que Freud marca – ao referir a repetição comonão rememoração – uma impossibilidade, a qual Lacan relacionará com o real.

“Vejamos então como o Wiederholen [repetição] se introduz.Wiederholen tem relação com Erinnerung, a rememoração. O sujeito em suacasa, a rememorialização da biografia, tudo só marcha até um limite, que sechama o real. Se eu quisesse forjar diante de vocês uma fórmula spinozianaconcernente ao de que se trata, diria – cogitatio adaequata semper vitateamdem rem. Um pensamento adequado enquanto pensamento, no nívelem que estamos, evita sempre – ainda que para se reencontrar em tudo – amesma coisa. O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esselugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, nãoo encontra” (Lacan, 1985, p. 51).

Logo, a repetição envolve elementos que, anterior a não lembrar, nãose pode inscrever, pois não estão incluídos na cadeia significante, a qualpermite representar. Sinônimo de “impossível de dizer” ou “impossível depensar”, a repetição envolve a função da tiquê.

“Primeiro a tiquê que tomamos emprestada (...) do vocabulário deAristóteles em busca de sua pesquisa da causa. Nós a traduzimos por en-contro do real. O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, dainsistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio doprazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton” (idem, p.56).

O real toma o estatuto de causa, daquilo que interrompe a cadeiasignificante, barra a seriação regular dos significantes do sujeito do inconsci-ente – o autômaton –, ou ainda, caracteriza-se pelo que está fora, mas tam-bém por aquilo ao redor do qual a cadeia gravita.

O autômaton, de outro lado, obedece ao princípio do prazer, o que nosreporta ao outro texto principal de Freud sobre a repetição: “Além do princí-pio do prazer”.

MEES, L. A. As origens da repetição.

AS ORIGENS DA REPETIÇÃO

Lúcia A. Mees

Arepetição, um dos quatro conceitos fundamentais propostos por Lacan(1985), tem, como de costume, seu início na obra freudiana. A partirdo texto de Freud, “Recordar, repetir e elaborar”, o conceito é nome-

ado. Antes disso, ele já havia sido tangenciado ao longo dos seus escritos.Porém, é em 1914 que a “compulsão à repetição” ganha estatuto de concei-to e é definida como impedimento à recordação, bem como associada àtransferência.

“(...) podemos dizer que o paciente não ‘recorda’ coisa alguma do queesqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out).Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação, repete-o, sem, natu-ralmente, saber o que está repetindo” (Freud, 1914[1969], p.196).

“Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um frag-mento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado es-quecido” (idem, p.197).

Lacan toma o conceito de acting out para designar uma especificidadeda clínica e o faz sobretudo no seminário sobre “A angústia” (1962 – 63).Assim, redireciona a noção ao enfatizar o que ela diz sobre o fracasso datransferência. A “atuação” surge, aqui, no lugar da falha na escuta do analis-ta, principal fonte de resistência. Se, no texto freudiano antes citado, a resis-tência do analisando – motivada pela transferência hostil ou excessivamenteintensa – fazia barreira à elaboração; em Lacan, ela é do analista que, aonão escutar algo da transferência, leva o analisando à “atuação”. O actingout, portanto, guarda a marca da transferência, na medida em que aindabusca a interpretação, mas é também sinal do fracasso do campo discursivo etransferencial, pois extravasa para o campo motor aquilo que deveria ser fala.

A torção de Lacan, logo, conserva a relação entre transferência e actingout, porém desassocia a repetição a essas duas outras noções, relançandoa indagação sobre a especificidade do repetir.

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imediatamente, como quer a mão que se estende para os objetos exteriores”(Lacan, 1985, p. 159).

Sobre o jogo do Fort/Da, Lacan o interpreta como o intuito de repre-sentar o irrepresentável da falta, e a fundação de um sujeito e do objeto aobuscar fazê-lo. O carretel se transforma, assim, não tanto na mãe que seausenta, mas no próprio bebê que se constitui a partir da fenda aberta nodesejo dela. Como efeito desta construção, o pequeno objeto se desprendedo que antes era colagem e um sujeito toma posição ativa.

“Este carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha (...) é algumacoisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que eleainda segura. Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito,como não reconhecer aqui – só pelo fato de esse jogo se acompanhar deuma das primeiras aparições a surgirem – que o objeto ao qual essa oposi-ção se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito. A esteobjeto daremos ulteriormente seu nome na álgebra lacaniana – o a minúscu-lo” (Lacan, 1985, p. 63).

Mas afinal, o que há em comum na rememoração, no traumático, noprazer/desprazer ou no jogo infantil, e de que forma eles configuram o queparticulariza a repetição? Ressalta-se que o ponto de intersecção entre es-ses elementos é a dinâmica entre o real e o simbólico, o enodamento entreos registros. O simbólico delimitando a borda do buraco irrepresentável doreal, e este limite anunciando a não abrangência integral do símbolo.

Este mesmo enlaçamento é trabalhado por Lacan no Seminário “Aidentificação” (1961 – 61), quando ele trata do traço unário, aspecto relembradono Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”:

“(...)simbolizamos por S barrado [$] o sujeito, no que constituído comosegundo em relação ao significante. Para ilustrar isto, eu lhes lembrarei quea coisa pode ser representada da maneira mais simples pelo traço unário.O primeiro significante é o entalhe com o qual se marca, por exemplo, queo sujeito matou um animal (...) e é a partir do traço unário que ele os contará[e] é ao nível da conta que o sujeito tem de se situar como tal” (1985, p.135).

MEES, L. A. As origens da repetição.

Em 1920, ao formular a segunda tópica, Freud revê suas concepçõessobre a repetição, perguntando-se se ela é diferente do princípio do prazer.Se este princípio se pauta por reduzir ao mínimo o desassossego psíquico,Freud fica intrigado com a repetição de algo que contradiz esta busca doprazer como sinônimo de homeostase. Os sonhos que rememoram o sofri-mento da guerra, por exemplo, contradizem o intuito psíquico de esquecer oque faz sofrer. O netinho de Freud, ao brincar com o carretel, repete mais oFort (lá) do que o Da (cá), mesmo que o jogo fosse para agir ativamente àausência de sua mãe. Ao buscar simbolizar a falta da mãe, a distância émais referida que a presença, mesmo que fazer aparecer o objeto fosseacompanhado de mais contentamento.

Freud responde, em seu texto, que a compulsão a repetição não énecessariamente distinta do princípio do prazer: ela pode ser promotora daelaboração, no caso dos sonhos traumáticos ou da brincadeira infantil, ousimplesmente, ser efeito do retorno do recalcado, quer dizer, promover pra-zer pulsional e desprazer egóico.

“Mas, como se acha a compulsão – a manifestação do poder do repri-mido – relacionada com o princípio do prazer? É claro que a maior parte doque é reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar desprazerao ego, pois traz à luz as atividades dos impulsos instituais [pulsionais]reprimidos. Isso, no entanto, constitui desprazer de uma espécie que já con-sideramos e que não contradiz o princípio do prazer: desprazer para umsistema e, simultaneamente, satisfação para outro” (Freud, 1976/1920, p.33).

Vê-se como Freud combina duas correntes – a do prazer e a dodesprazer – associadas à repetição, o que em Lacan se deslocará para osdois registros: o do real e o do simbólico. Quer dizer, Lacan descentra arepetição do eixo prazer ou desprazer para situá-la entre a ordem significantee a irrupção do real, ou seja, desloca homeostase para rede dos significantese o desprazer para a interrupção deste encadeamento.

“(...) em Freud, é desta forma que aparece o real, a saber, o obstáculoao princípio do prazer. O real é o choque, é o fato de que isso não se arranja

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Janeiro, Imago, 1976LACAN, J. O Seminário: A Angústia (1962 – 63). Inédito______. O Seminário: A identificação (1961 – 62). Inédito______. O Seminário. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar editora, 1985.

MEES, L. A. As origens da repetição.

Diz ainda Lacan que o que se repete é o traço unário, pois ele funda asérie depois do “um”, a partir do qual os demais traços podem ser contados;e um sujeito, consequentemente, pode ser contabilizado. Repetição, entre-tanto, que não é da igualdade, ao contrário, cada traço delimita a diferença,pois cada um é o que o outro não é, seja porque ocupam lugares distintos,seja pela razão que aludem a tempos ou objetos diversos. Diferença ainda –e principalmente – devido ao corte radical que o primeiro significante/entalheintroduz no real, separando a coisa (o animal, por exemplo) de sua represen-tação (o traço).

Ainda no Seminário sobre “A identificação”, Lacan trata da repetiçãocomo tentativa de fazer ressurgir o significante que é como tal o número queele funda, algo que é sempre o mesmo: a diferença, distinção, a unicidade.Com isso, esvazia a suposta igualdade do repetir e frisa a diferença implicadano significante. E agrega: o único ponto em comum entre os significantes éde serem constituídos como traço, de terem o traço como suporte. A repeti-ção, portanto, implica a tentativa de encontrar a verdade da verdade, algocomo a “essência” do significante, sua garantia. Na medida em que o efeitoprimeiro do significante é o apagamento da relação entre o signo e a coisa,repetir é voltar a esta inscrição.

Mais uma vez, retorno ao tempo do enlaçamento entre o real e osimbólico, momento de instalação da diferença entre o animal e seu registro,entre o bebê e sua mãe (carretel), ou entre o que se pode dizer ou viver (e,portanto, lembrar) e o que é impossível inscrever destas experiências. Pois,se há repetição é porque o traço reenvia a alguma coisa perdida no momentoda sua inscrição, o que conduz o sujeito a retornar pra dizer de novo (oautômaton) e redescobrir que há algo sob silêncio (a tiquê).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In Obras Completas. Rio de Janei-ro, Imago, 1976

_______. Recordar, repetir e elaborar (1914). In In Obras Completas. Rio de

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mo que possamos acrescentar outros elementos a estas concepções jáencontradas em Freud.

Não raro, com a difusão e os efeitos provocados pela psicanálise nacultura, muitos pacientes chegam à análise já com esta afirmativa: “Podeser alguma coisa inconsciente!” Ou seja, a hipótese de que alguma coisaescapa à consciência e provoca um sofrimento não é descartada. Justamen-te, a partir deste hiato – que largamente aparece na voz dos pacientes –Freud situou a existência do inconsciente, nesta lacuna situada entre umacausa e o seu efeito.

Assim, o que interessaria problematizar neste aspecto é que estahipótese condensa dois elementos bastante importantes no trabalho analíti-co, pois reúne tanto a dimensão da causalidade, quanto a dimensão daexistência de um saber. Esta dupla dimensão, então, colocou um sujeito emcena. Estas noções Freud esboçara sutilmente, mas Lacan as retomou demaneira exemplar no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psi-canálise”, ao aproximar desta concepção a sua conhecida formulação: “oinconsciente é estruturado como uma linguagem” (p.25). Este desdobramento,proposto por Lacan, teve conseqüências muito produtivas para a psicanálisee do qual ainda não extraímos todas as suas possibilidades. O que, para onosso trabalho, é muito animador, desde que possamos entender que, aqui,a linguagem tem o registro de um endereçamento

Mas, o que gostaria de trabalhar aqui pontualmente, é uma questãoque foi despertada pelo recente e excelente, diga-se de passagem, filme1:“Obrigado por fumar!”, dirigido por Jason Reitman. Nele a crítica ao politica-mente correto é feita sem muita cerimônia e de maneira exemplar. No filmeum lobbysta, funcionário das poderosas indústrias produtoras de cigarrosamericanas, propagandeia os benefícios causados pelo hábito de fumar, ouna melhor das hipóteses, que o cigarro não é o inimigo público número dois

1 Não foi surpresa que o Correio da APPOA de n°150, de setembro de 2006, tenha como tema“Cinema e loucura”. As imagens da sétima arte, pelo visto, só não agradaram, pelo quedizem, a Freud.

NUNES, O. A. W. Obrigado(,) por falar!

OBRIGADO(,) POR FALAR!

Otávio Augusto Winck Nunes

Apreparação para a Jornada Clínica da APPOA, de outubro 2006,atualizou-nos com um debate bastante promissor, para dizer o míni-mo. A discussão sobre os conceitos fundamentais da psicanálise

mais do que necessária é, sem dúvida nenhuma, a colocação em causa doincessante fazer e refazer do ofício dos analistas.

Os chamados, por Lacan, quatro conceitos fundamentais, quais se-jam: inconsciente, pulsão, transferência e repetição animam nosso trabalhodiariamente, não só em seus aspectos teóricos mas, também, nas diferen-tes formas com que operam e se articulam clinicamente. Nesta direção, aafirmação de Lacan, encontrada em seu Seminário, que ora estudamos, deque o conceito ”está sempre estabelecido numa aproximação que não deixade ter relação com o que nos impõe, como forma, o cálculo infinitesimal”(p.25),toma uma dimensão muito peculiar. Afinal, tal como a própria psicanálisenos ensina, estamos sempre nos aproximando e, por vezes, tocamos e so-mos tocados pelo que o conceito tem de real.

Não seria demais lembrar que Freud, ao inventar a psicanálise, furouo real científico vigente, nomeando – via ato simbólico – o inconscientecomo o centro da vida psíquica. A produção deste furo provocou uma mu-dança de eixo no terreno das humanidades em que a prevalência da consci-ência e da razão se fazia sentir. Neste sentido, a psicanálise, desde Freud,enquanto práxis – mais do que promover uma evolução conceitual por umsimples desenvolvimento ou aprimoramento – é efeito de sua própria produ-ção.

Aliás, no cartel que se dedicou a este eixo conceituado Seminário,trabalhamos a respeito desta questão, pois situar o inconsciente como opostoao consciente, ou como a porção mais profunda do indivíduo, ou mesmocomo algo desconhecido é voz corrente na maneira de tentar descrevê-lo oucomo conceituá-lo. E, talvez, não seja equívoco pensá-lo desta forma, mes-

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PEQUENO ESCRITO SOBREAS PULSÕES E A INTERPRETAÇÃO

Marta Pedó

Durante os últimos três meses, temos trabalhado o conceito da pulsãoem um pequeno cartel na Appoa. Nele, giramos ao redor de algunstextos, cuja leitura trouxe-nos algumas luzes e outros tantos inter-

rogantes para que sigamos trabalhando. É assim, um pouco nesse mesmoespírito, que este breve escrito busca apontar alguns elementos, cujas con-seqüências para nossa práxis podem ser relevantes, mais especificamenteem torno da pulsão e da interpretação.

A pulsão é um conceito fundamental, um Grundbegriff1, necessárioao corpo da psicanálise e que comporta duas características essenciais. Aprimeira é de que funciona como mito, como uma postulação necessáriaenquanto se mantiver válida e interessante. A segunda reside no fato de quea pulsão comporta uma aventura, entre o corpo e a linguagem, que traça umitinerário de cujo circuito, ao final, emerge ein neues Subjekt, literalmente,um novo sujeito.

É no Outro que reside a linguagem, sendo o infans, em seu momentoinicial, mais próximo do Real do que de um sujeito propriamente dito. Consi-derando esse “momento inicial” como uma concepção necessária ao desen-rolar da teoria, mas não necessariamente localizável em sua gênese, nãoargumentamos em favor de uma perspectiva genética, no sentido de desen-volvimento em que há determinados passos que o pequeno sujeito vai neces-sária e ordenadamente seguir. Até mesmo, porque, como acima introduzi-mos, sabemos que há significantes que operam desde muito antes do nas-cimento do bebê, no Outro, os quais são determinantes de escolhas força-

1 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: Obras completas. Imago: Rio deJaneiro, 1976.

PEDÓ, M. Pequeno escrito...

dos EUA (o cigarro foi desbancado depois de uma terrível batalha pelos ter-roristas do Talibã, pelo menos por enquanto). Ao mesmo tempo, o persona-gem, tenta apresentar-se como um pai exemplar para seu filho. Claro, asituação é difícil, publicamente atacado por todos os lados fica difícil serreconhecido como bom pai, afinal a situação é muito paradoxal. Qual o exem-plo que um pai quer dar para seu filho amado?

Mas o que destacaria, brevemente, é que a defesa por poder expres-sar uma opinião contrária ao que está estabelecido, por poder falar o quepensa, em certo sentido, tem uma proximidade interessante com a psicaná-lise. Tanto pela sua vertente histórica, por se ver atacada por dar voz aosujeito que não segue o politicamente correto (o desejo é, por definição, docontra), quanto por expressar que quando se fala – articulação da linguagem– diz-se mais do que se pensa.

Então, o título do filme suscitou, na verdade, uma observação inicial.“Obrigado, por fumar!” Rapidamente, o fumar foi substituído por falar. “Obriga-do (,) por falar!” (até porque se sabe que no instante de fumar, não se podefalar!). Não se trataria de simplesmente agradecermos aos usuários de pala-vras, nem tampouco atribuir aos psicanalistas a função de lobbystas dapalavra e com isso forçarem aos sujeitos a falar mas, antes, de reconhecerno inconsciente a sua inclusão. A dimensão referida acima da causalidade edo saber, da suposição de um sujeito é efetiva quando isso ocorre. Quandoalguém se vê impelido, obrigado, forçado a falar a um analista, é por encon-trar nele um endereço para aquilo que propriamente o constitui como sujeitodo inconsciente, presença necessária. E esta experiência, pelo que ela com-porta, bem o sabemos, tem pouco de politicamente correto.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS:

LACAN, J. O Seminário, livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanáli-se(1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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ro ponto a ressaltar é de que “o que se olha é aquilo que não se pode ver” ( nosentido do proibido, de uma olhadela furtiva, no primeiro momento, e, esten-dido, no sentido de objeto perdido). Um segundo ponto é de que somente nomomento do olhar de um outro (um outro olhar sobre a cena) é que o sujeitoque olha se destaca surpreendido, e mais, emerge no efeito de vergonhacomo sujeito escondido. Assim, há um sujeito escondido (que emerge quan-do um outro olha) e um objeto perdido, enlaçados. Lacan instiga, indo além,ao indagar: “No momento do ato do voyuer, onde está o sujeito, onde está oobjeto?” 2

O sujeito advém no momento de fechamento do circuito pulsional,escreve Freud, mas esse sujeito é outro, acrescenta Lacan. Esse outro ain-da não se apresenta em condição de sujeito da palavra, pois está atreladoem seu corpo como sujeito acéfalo, “amarrado” por orifícios diversos cujoordenamento não se faz presente, evocando uma figura surrealista.

Ao tomarmos a pulsão enquanto esse “movimento” de laçada de cujoponto de fechamento emerge um novo sujeito, mas que esse sujeito aí apa-rece acéfalo, propomos pensar na pulsão invocante para seguir. A pulsãoinvocante, aquela que Lacan diz ser a mais próxima da experiência inconsci-ente, pareceu-nos interessante por dar relevo à palavra.

Allain Didier-Weill3 fala sobre a música, tema pouco ou nada abordadopor Freud e Lacan, e aponta um tempo primordial ao infans, um tempo noqual o sujeito, antes mesmo de receber a palavra, recebe um assinalamento.Trata-se de um assinalamento preliminar sobre sua origem, do qual poderávir a palavra. O traço unário teria sua condição numa nota musical, a “notaazul”, percebida pelo infans na voz do Outro primordial, antes mesmo de elepoder perceber os fonemas. Pela cadeia melódica que lhe vem do Outro, osujeito é representado e pode perceber a origem – experiência que constitui

2 LACAN, J. [ 1964] O Seminário: livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicaná-lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 172-3.3 DIDIER-WEILL, A. A Intraduzibilidade in: Os três tempos da lei . Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 1997

PEDÓ, M. Pequeno escrito...

das. Por outro lado, somos levados pela clínica a reconhecer efeitos – inegá-veis – de sujeito, relativos a narrativas que se constroem e, ao fazê-lo, teste-munham da inscrição de elementos do Real que “não teria se inscrito”, masque, uma vez constatado em seu registro simbólico e imaginário, permitesua leitura a posteriori. Assim, desde que nossa clínica é nosso campo deinvestigação por excelência, se constatamos que um passado que “não teriaexistido” passa a “existir”, torna-se interessante o interrogar sobre um mo-mento de advir do sujeito (por mais que suposto ou apenas constatável comojá tendo ocorrido) em que o significante se inscreve e cria um passado atrásde si.

Freud descreve o ponto de início pulsional como o Real Ich, uma baseligada ao Sistema Nervoso Central, que não envolve o corpo em sua totalida-de. Ele delineia, descreve, esse Real Ich como uma plataforma achatada,um campo esburacado. Nessa representação, os buracos do campocorrespondem aos orifícios corporais por onde o circuito da pulsão faz arco –como o arco que lança uma flecha – e almeja chegar ao alvo final. O alvo échegar ao ponto de fechamento, no que podemos lembrar a ilustração doestofador que laça o tecido em “ponto de capitonê” e, assim, amarra a super-fície em determinados pontos privilegiados.

Os pontos privilegiados ou descartados dependem do que no Outro háde determinação significante a se fazer viável na relação com o infans. Énecessária a presença de um Outro encarnado, e, no passado a posteriori,podemos ler sobre a gênese (mítica): haveria eu e outro enlaçados em buscade satisfação pulsional: olhar-ser olhado; comer-ser comido; ouvir-ser ouvi-do; cagar-ser cagado e seus derivados.

A manifestação da pulsão na articulação freudiana, segundo a leiturade Lacan, se dá no modo de um sujeito acéfalo e não tem relação ao sujeitosenão aquela de uma “comunidade topológica”. Ao usar a expressão “comu-nidade topológica”, Lacan enfatiza a idéia de que, na manifestação pulsional,o sujeito e o outro estão enlaçados e pouco ou nada diferenciados numcampo comum. Neste sentido, a estrutura da pulsão escópica é exemplar:Se pensarmos num olho que olha pelo buraco de uma fechadura, um primei-

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seja, é retroativamente que se outorga o caráter sexual a determinado eventopsíquico, o qual, uma vez interpretado, dá lugar ao desejo.

Por fim, interrogamo-nos, a partir dessa leitura de Lacan e das contri-buições que encontramos em Didier-Weill, sobre o estatuto desse nomeassinalado, intraduzível como uma nota musical, e ainda sem significação.Pois, se é no momento de uma interpretação que o passado passa a tersignificação e que o recalcado passa a ser significante, é também com ainterpretação, e não antes dela, que o exercício pulsional pode encontrarpalavras e o sujeito pode emergir na cadeia significante.

Para haver sujeito – que o é apresentado a um significante por outrosignificante (S1-S/-S2), S1, significante primordial – precisa ter sua interpre-tação dada por S2. Pensamos encontrar aí uma indicação de que o recalcadoé sem conteúdo, não-senso, pois situado aquém do advento da palavra, sen-do-lhe necessário Outro para a sua interpretação e, assim, retroativamentetrazê-lo (o recalcado) à existência enquanto tal. Uma vez interpretado, opulsional se constitui como sexual, recalcado.

Se, na clinica, o que mais ouvimos é relativo ao pulsional, é a interpre-tação que dá lugar ao desejo em seu movimento significante, ao mesmotempo em que inscreve retroativamente aquilo que, a partir dela, cria signifi-cação, inclusive de recalcado. Talvez possamos assim seguir nossas inter-rogações a partir de algumas luzes, pois, lembrando Freud, é a partir da curaque alguém rememora, e não o oposto.

PEDÓ, M. Pequeno escrito...

uma condição inconsciente. Arma-se uma dimensão em que não há sentido,mas há a indicação de uma nota musical nomeada, ainda não representada.

Sabemos que uma nota musical é intraduzível – um lá bemol é um lábemol em qualquer língua – e, da mesma forma, o som, a nota azul queassinala a origem do sujeito não se traduz, mas funciona, ao mesmo tempo,como suporte para a conseqüente cadeia significante. Arma-se uma base,um substrato sobre o qual o significante poderá ocupar seu lugar.

A conseqüência mais imediata que daí podemos extrair é de que aqui-lo que constitui e forma a base à toda significância é também o que nãocomporta uma redução a uma significação. O não-senso, o que não temsentido, nem por isso deixa de ter efeitos sobre o inconsciente está doravanteatrelado ao som4.

O caráter de intraduzibilidade remete ao homofônico que circula evincula os significantes em associações representativas, tais como aquelasque encontramos nos nomes próprios esquecidos e em outras formações doinconsciente. Uma segunda conseqüência possível de elaborarmos a partirdaí, é relativa à interpretação e naquilo que ela comporta de não-senso, doregistro que passa intraduzido e intraduzível.

A respeito da interpretação, Lacan propõe, no seminário XI5, que noscoloquemos nos dois extremos da experiência analítica. No primeiro, está orecalcado primordial. Sendo o recalcado primordial um significante, e o sin-toma aquilo que se edifica sobre o mesmo como um andaime de significantes,constitui-se homogeneidade entre recalcado e sintoma. Na outra extremida-de, há interpretação, que aponta o desejo. E, no intervalo entre ambos, en-contramos a sexualidade em forma de pulsões parciais. “A legibilidade dosexo na interpretação do mecanismo inconsciente é sempre retroativa”6. Ou

4 Marie Cristine Laznik, (LAZNIK, M. C. A voz da sereia . Salvador: Agalma, 2004.) acentua oefeito da melódica maternante sobre a erogeneização do corpo do bebê, extraindo de suainvestigação conseqüências cruciais ao tratamento e à prevenção do autismo infantil preco-ce.5 LACAN, J. [ 1964] O Seminário: livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicaná-lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 167.6 Idem.

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SEÇÃO DEBATES

IIO INCONSCIENTE E A REPETIÇÃO*

Jacques LacanTradução: Claudia Berliner

O inconsciente freudiano e o nossoPensamento selvagem.

Só há causa do que claudica.Hiância, tropeço, achado, perda.

A descontinuidade.Signorelli.

Para começar na hora, vou iniciar minha fala com a leitura de umpoema que na verdade não tem nenhuma relação com o que lhes voudizer hoje, mas tem alguma com o que disse o ano passado, no meu

seminário, sobre o objeto misterioso, o objeto mais escondido de todos, o dapulsão escópica.

Trata-se do curto poema que, na página 73 de Fou d’Elsa, Aragonintitula Contre-chant [Contracanto].

Vainement ton image arrive à ma rencontreEt ne m’entre où je suis qui seulement la montreToi te tournant vers moi tu ne saurais trouverAu mur de mon regard que ton ombre rêvée

Je suis ce malheureux comparable aux miroirsQui peuvent réfléchir mais ne peuvent pas voirComme eux mon oeil est vide et comme eux habitéDe l’absence de toi qui fait sa cécité1

Dedico esse poema à nostalgia que alguns possam ter daquele semi-nário interrompido e do que eu ali desenvolvia sobre a angústia e a função doobjeto pequeno a.

Esses, penso, captarão – peço desculpas por ser tão alusivo, – elescaptarão o sabor do fato de que Aragon – nessa obra admirável onde meorgulho de encontrar o eco dos gostos de nossa geração, aquela que fazcom que eu seja forçado a me remeter a camaradas da mesma idade que eupara ainda poder me entender sobre esse poema – de que Aragon faz seupoema ser seguido do seguinte verso enigmático: Ainsi dit une fois An-Nadjî,comme on l’avait invité pour une circoncision2.

Ponto onde aqueles que ouviram meu seminário o ano passado reco-nhecerão a correspondência das diversas formas do objeto a com a funçãocentral e simbólica do menos-fi (– ϕ)– aqui evocado pela referência singular,e certamente não fortuita, que Aragon confere à conotação histórica, porassim dizer, da emissão por seu personagem, o poeta louco, dessecontracanto.

1Sei que há aqui algumas pessoas que estão se iniciando no meu

ensino. Iniciam-se nele por escritos já datados. Gostaria que soubessemque uma das coordenadas indispensáveis para captar o sentido desse pri-meiro ensinamento está em que, dali onde estão, eles nem imaginam a quegrau de desprezo, ou simplesmente de ignorância de seu instrumento, po-dem chegar os praticantes. Que soubessem que, durante alguns anos, tivede empenhar todo meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instru-mento, a palavra – para lhe devolver sua dignidade e fazer com que nãoconsistisse sempre nesses vocábulos desvalorizados de antemão, que osforçavam a fixar o olhar em outra parte para encontrar o que os caucionava.

* Tradução da aula do Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.Republicamos esta aula após revisão final da tradutora.1 Em vão tua imagem vem ao meu encontro/ E não me entra onde estou quem somente amostra(o)/ Voltando-te para mim só poderias achar/ Na parede do meu olhar tua sombrasonhada // Sou esse infeliz comparável aos espelhos/ Que podem refletir mas não podem ver/Como eles meu olho está vazio e como eles habitado / Da ausência de ti que faz sua cegueira.

2 Assim disse uma vez An-Nadjî, quando o convidaram para uma circuncisão.

LACAN, J. O seminário - Livro XI...

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SEÇÃO DEBATES

Foi por isso que fui tido, ao menos por um tempo, como alguém obse-dado por não sei que filosofia da linguagem, heideggeriana até, quando naverdade tratava-se apenas de uma referência propedêutica . E não será porfalar nestes espaços aqui que falarei mais como filósofo.

O que se trata de enfrentar é outra coisa, que efetivamente me sintoaqui mais à vontade para nomear, algo que não chamarei de outra formasenão de recusa do conceito. É por isso que, como anunciei ao término deminha primeira aula, tentarei introduzi-los hoje aos principais conceitosfreudianos – que isolei em número de quatro e que cumprem propriamenteessa função.

Estas poucas palavras no quadro-negro (sob o título de conceitosfreudianos) são os dois primeiros, o inconsciente e a repetição. A próximavez, espero abordar a transferência, que nos introduzirá diretamente aosalgoritmos que acreditei dever propor na prática, com o intuito específico daaplicação da técnica analítica como tal. Quanto à pulsão, ainda é de umacesso tão difícil – a bem dizer, tão inabordado – que não creio conseguirfazer mais este ano do que chegar a ela somente depois de termos faladoda transferência.

Portanto, apenas examinaremos a essência da análise – especial-mente o que a função da análise didática tem nela de profundamente proble-mático e ao mesmo tempo diretor. Só depois de ter passado por essa expo-sição é que talvez possamos, no fim do ano – sem que nós mesmosminimizemos o lado movediço, senão escabroso, da aproximação desseconceito –, abordar a pulsão. E isso por contraste com aqueles que nisso seaventuram em nome de referências incompletas e frágeis.

As duas flechinhas que vocês vêem escritas no quadro depois de Oinconsciente e A repetição apontam para o ponto de interrogação que sesegue. Este indica que nossa concepção do conceito implica que ele sem-pre se estabelece como uma aproximação, que não deixa de estar relacio-nada com o que o cálculo infinitesimal nos impõe como forma. Embora oconceito se modele de fato por uma aproximação da realidade que ele foifeito para captar, é apenas por um salto, por uma passagem ao limite, que

ele termina de se realizar. A partir daí, exige-se que digamos em que pode secompletar – diria, na forma de quantidade finita – a elaboração conceitualque se chama o inconsciente. O mesmo vale para a repetição.

Os dois outros termos escritos no quadro no final da linha, O sujeito eO real, é com relação a eles que seremos levados a dar forma à perguntafeita a última vez: a psicanálise, em seus aspectos paradoxais, singulares,aporéticos, pode ser considerada entre nós como constituindo uma ciência,uma esperança de ciência?

Começarei por tomar o conceito de inconsciente.

2A maioria dessa assembléia tem alguma noção de que enunciei que

o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o que remete a um cam-po que hoje nos é bem mais acessível que nos tempos de Freud. Vou ilustrá-lo com algo que está materializado num plano certamente científico, comesse campo que Claude Lévi-Strauss explora, estrutura e elabora e que intituloude Pensamento selvagem.

Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual,antes mesmo de se inscreverem nele as experiências coletivas, relacionáveisapenas com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, inscrevenele as linhas de força iniciais. É a função que Claude Lévi-Strauss nosmostra ser a verdade da função totêmica e que reduz sua aparência – afunção classificatória primária.

Já antes de se estabelecerem relações propriamente humanas, al-gumas relações estão determinadas. São extraídas de tudo o que a nature-za pode oferecer como suportes, suportes que se dispõem em temas opos-tos. A natureza fornece, para chamá-los pelo seu nome, significantes, eesses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, for-necem suas estruturas e as modelam.

O importante, para nós, é que percebemos aqui o nível em que –antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que sesitua aí – isso conta, é contado, e nesse contado já está quem conta. É

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SEÇÃO DEBATES

somente em seguida que o sujeito terá de se reconhecer nisso, reconhecer-se como quem conta. Lembremos o ingênuo tropeço do homenzinho comque o medidor de nível mental exulta quando aquele enuncia: – Tenho trêsirmãos, Paulo, Ernesto e eu. No entanto, é muito natural: primeiro sãocontados os três irmãos, Paulo, Ernesto e eu, e depois há o eu no nível emque dizem que tenho de pensar o primeiro eu, isto é, o eu que conta .

Em nossos dias, neste tempo histórico de formação de uma ciência,que podemos qualificar de humana embora deva ser distinguida de qualquerpsicossociologia, qual seja, a lingüística, cujo modelo é o jogo combinatóriooperando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva, – éessa estrutura que confere seu estatuto ao inconsciente. É ela, em todocaso, que nos garante que, sob o termo inconsciente, há algo qualificável,acessível e objetivável. Mas quando incito os psicanalistas a não ignoraremesse terreno, que lhes proporciona um apoio sólido para sua elaboração,será que isso quer dizer que pretendo manter os conceitos introduzidos his-toricamente por Freud sob o termo inconsciente? Pois bem, não! Não pre-tendo. O inconsciente, conceito freudiano, é outra coisa, que hoje gostariade tentar fazê-los entender.

Certamente não basta dizer que o inconsciente é um conceito dinâmi-co, pois isso seria substituir um mistério particular pela ordem de mistériomais corrente – a força serve em geral para designar um lugar de opacidade.É à função da causa que irei me referir hoje.

Bem sei que entro aí num terreno que, do ponto de vista da críticafilosófica, não deixa de evocar todo um mundo de referências, bastantespara me fazer hesitar entre elas – teremos apenas de suportar escolher. Éprovável que ao menos parte de meu auditório não saciará sua fome se eusimplesmente indicar que, no Ensaio para introduzir a noção de grandezasnegativas em filosofia3 de Kant, podemos ver o quanto é analisada comprecisão a hiância que, desde sempre, a função da causa oferece a toda

compreensão conceitual. Nesse ensaio, o que se diz aproximadamente éque se trata de um conceito em última instância inanalisável, impossível decompreender pela razão (supondo-se que a regra da razão, a Vernunftsregel,seja sempre alguma comparação, Vergleichung ou equivalente), e que nafunção da causa resta essencialmente uma certa hiância, termo empregadonos Prolegômenos4 do mesmo autor.

Não preciso sublinhar que o problema da causa foi desde sempreuma complicação para os filósofos e que ele não é tão simples quanto se crêao ver equilibrarem-se as quatro causas em Aristóteles –, pois não estoufilosofando aqui e não pretendo me desincumbir de uma tarefa tão pesadacom essas poucas referências, que simplesmente bastam para tornar claroo que quer dizer aquilo sobre o que insisto. Para nós, a causa, seja qual fora modalidade com que Kant a inscreve nas categorias da razão pura – ins-creve-a, mais precisamente, no quadro das relações entre a inerência e acomunidade –, a causa nem por isso é mais racionalizada.

Ela se distingue do que há de determinante numa cadeia, em outraspalavras, da lei. Para exemplificar, pensem na imagem da lei da ação ereação. É, por assim dizer, uma coisa só. Uma não existe sem a outra. Numcorpo que se esborracha no chão, sua massa não é a causa do fato de elereceber de volta sua força viva, sua massa está integrada a essa força que aele retorna para dissolver sua coerência por um efeito de retorno. Não há aquinenhuma hiância, exceto no final.

Em contraposição, cada vez que falamos de causa, há sempre algode anticonceitual, de indefinido. As fases da lua são a causa das marés –isso é vivo, sabemos nesse momento que a palavra causa foi bem emprega-da. Ou então, os miasmas são a causa da febre – também isso não querdizer nada, há um buraco, e algo que vem oscilar no intervalo. Em suma, sóhá causa do que claudica.

3 In Escritos pré-críticos , Ed. Unesp, 2005. (Versuch den Begriff der negativen Größen indie Weltweisheit einzuführen (1763))

4 Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência, Lisboa,Edições 70. (Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik). Para uma discussãosobre o termo “hiância” e a remissão que Lacan faz a Kant, ver http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=igmartinez270600

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Pois bem! O inconsciente freudiano, é nesse ponto, para o qual tentodirigi-los por aproximação, que ele se situa, nesse ponto onde, entre a causae o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o incons-ciente determina a neurose – quanto a isso, Freud adota facilmente o gestopilático de lavar as mãos. Um dia desses, quem sabe, encontrarão algumacoisa, determinantes humorais, pouco importa – é-lhe indiferente. Pois oinconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conecta a um real– real que bem pode, ele sim, não ser determinado.

Nessa hiância, algo acontece. Tapada essa hiância, a neurose estarácurada? Afinal, a questão permanece sempre aberta. A neurose só se tornaoutra coisa, às vezes simples debilidade, cicatriz, como diz Freud – nãocicatriz da neurose, mas do inconsciente. Não estou ordenando muito enge-nhosamente essa topologia, porque não tenho tempo – vou direto a ela, eacho que vocês poderão se sentir guiados pelos termos que introduzo quan-do forem aos textos de Freud. Vejam de onde ele parte – da Etiologia dasneuroses –, e o que ele acha no buraco, na fenda, na hiância característicada causa? Algo da ordem do não-realizado.

Fala-se de recusa. É avançar rápido demais – aliás, faz algum tempoque quando falam de recusa já não sabem o que estão dizendo. De primeiro,o inconsciente se manifesta para nós como algo que permanece à espera naárea, diria eu, do nonato. Que o recalcamento ali despeje algo, não é deestranhar. É a relação da fazedora de anjos com o limbo.

Essa dimensão deve certamente ser evocada num registro que não énada de irreal, nem de desreal, mas de não-realizado. Nunca é sem perigoque se faz com que algo nessa zona de larvas se mexa, e talvez seja próprioda posição do analista – caso a ocupe verdadeiramente – dever ser assedia-do, digo realmente assediado por aqueles em quem ele evocou esse mundode larvas sem ter conseguido sempre trazê-las à luz. Nem todo discurso éinofensivo aqui – meu próprio discurso destes últimos dez anos encontra aíalguns desses efeitos. Não é à toa que, mesmo em um discurso público, ovisado sejam os sujeitos e que sejam tocados no que Freud chama o umbigo– umbigo dos sonhos, escreve ele para designar, em última instância, o

centro de desconhecido deles –, que nada mais é, como o próprio umbigoanatômico que o representa, senão essa hiância de que falamos.

Perigo do discurso público na medida em que ele se endereça justa-mente ao mais próximo – Nietzsche sabia que um certo tipo de discurso sópode endereçar-se ao mais longínquo.

A bem dizer, essa dimensão do inconsciente que evoco estava es-quecida, como Freud previra perfeitamente bem. O inconsciente fechara-sesobre sua mensagem graças aos cuidados dos ativos ortopedistas que osanalistas da segunda e da terceira geração se tornaram, analistas estes quese dedicaram, psicologizando a teoria analítica, a suturar essa hiância.

Creiam-me, eu mesmo nunca a reabro sem tomar precauções.

3Agora, nesta data, nesta época, estou certamente em condições de

introduzir no terreno da causa a lei do significante, no lugar onde essa hiânciase produz. Ainda assim, se quisermos entender de que trata a psicanálise,será preciso tornar a evocar o conceito de inconsciente nos tempos em queFreud procedeu para forjá-lo – pois não podemos completá-lo sem levá-lo aoseu limite.

O inconsciente freudiano não tem nada a ver com as formas, ditas doinconsciente, que o precederam, acompanharam ou que ainda o cercam.Para entender o que quero dizer, abram o dicionário Lalande. Leiam a muitobela enumeração feita por Dwelshauvers em um livro publicado faz uns qua-renta anos pela Flammarion. Enumera ali oito ou dez formas de inconscienteque não ensinam nada a ninguém, que simplesmente designam o não-cons-ciente, o mais ou menos consciente e, no campo das elaborações psicológi-cas, encontramos mil e uma variedades suplementares.

O inconsciente de Freud não é de forma alguma o inconsciente ro-mântico da criação imaginante. Não é a sede das divindades da noite . Issosem dúvida não deixa de ter alguma relação com o lugar para o onde se voltao olhar de Freud – mas o fato de que Jung, sucedâneo dos termos do incons-ciente romântico, tenha sido repudiado por Freud, é indicação suficiente de

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que a psicanálise introduz outra coisa. Tampouco deveríamos nos precipitare dizer que o inconsciente tão saco de gatos, tão heteróclito, que ÉdouardVon Hartmann elaborou durante toda a sua vida de filósofo solitário não é oinconsciente de Freud, pois, no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, opróprio Freud faz referência a ele em nota – ou seja, é preciso examiná-lo demais perto para designar o que, em Freud, dele se distingue.

A todos esses inconscientes sempre mais ou menos vinculados auma vontade obscura considerada primordial, a algo anterior à consciência,o que Freud opõe é a revelação de que no nível do inconsciente há algo emtodos os aspectos homólogo ao que acontece no nível do sujeito – isso falae isso funciona de modo tão elaborado quanto no nível do consciente, queperde assim o que parecia ser privilégio seu. Sei das resistências que aindaprovoca essa simples observação, que no entanto é clara em qualquer textode Freud. Leiam a esse respeito o parágrafo do capítulo VII intitulado Oesquecimento dos sonhos5 , onde Freud faz referência exclusivamente aosjogos do significante.

Não me contento com essa referência maciça. Destrincei ponto porponto o funcionamento do que Freud primeiro produz como fenômeno doinconsciente. No sonho, no ato falho, no chiste – o que primeiro chama aatenção? O modo de tropeço pelo qual aparecem.

Tropeço, desfalecimento, fissura. Numa frase pronunciada ou escrita,algo tropeça. Freud está magnetizado por esses fenômenos e é onde irábuscar o inconsciente. Ali, uma outra coisa pede para se realizar, algo quecertamente aparece como intencional, mas dotado de uma estranhatemporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termoproduzir-se, se apresenta como o achado. É inicialmente assim que a explo-ração freudiana encontra o que acontece no inconsciente.

Achado que é ao mesmo tempo solução – não necessariamente aca-bada, mas, por mais incompleta que seja, tem esse não-sei-quê que nos

afeta com esse toque particular que Theodor Reik destacou de forma tãoadmirável – só destacou, pois Freud o notara claramente antes dele – asurpresa – aquilo pelo que o sujeito se sente ultrapassado, pelo que ele achaao mesmo tempo mais e menos do que esperava – mas que de qualquermodo, com relação ao que ele esperava, é algo de valor único.

Ora, esse achado, assim que se apresenta, é um reachado , e mais,sempre prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda.

Entregando-me um pouco à metáfora, Eurídice duas vezes perdida é aimagem mais clara que possamos dar, no mito, da relação do Orfeu analistacom o inconsciente.

Com o que, se me permitirem acrescentar uma pitada de ironia, oinconsciente se acha na margem estritamente oposta do que ocorre com oamor, do qual todos sabem que é sempre único e que a expressão quemperde uma encontra dez encontra nele sua melhor aplicação.

A descontinuidade, tal é portanto a forma essencial em que o incons-ciente como fenômeno nos aparece de primeiro – a descontinuidade na qualalgo se manifesta como uma vacilação. Ora, se essa descontinuidade temesse caráter absoluto, inaugural, no caminho da descoberta de Freud, seráque devemos colocá-la – como os analistas tenderam a fazer em seguida –sobre o fundo de uma totalidade?

Será que o um é anterior à descontinuidade? Penso que não, e tudo oque ensinei nesses últimos anos tendia a fazer dispensar essa exigência deum um fechado – miragem à qual se apega a referência ao psiquismo-envoltório, espécie de duplo do organismo onde residiria essa falsa unidade.Vocês concordarão comigo que o um introduzido pela experiência do incons-ciente é o um da fenda, do traço, da ruptura.

Aqui brota uma forma ignorada do um, o Un do Unbewusste. Digamosque o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não o não-conceito, mas o con-ceito da falta.

Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traçoda abertura faz surgir a ausência – assim como o grito não se desenha sobreum fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio.5 Lacan cita esse parágrafo como sendo “O esquecimento nos sonhos”.

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Se conservarem essa estrutura inicial, isso os impedirá de se entre-garem a esse ou aquele aspecto parcial do que está em questão no queconcerne ao inconsciente – como, por exemplo, que é o sujeito, enquantoalienado em sua história, no plano onde a síncope do discurso se une comseu desejo. Verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincroniaque devem situar o inconsciente – no plano de um ser, mas na medida emque pode se aplicar a tudo, ou seja, no plano do sujeito da enunciação, namedida em que, conforme as frases, conforme os modos, ele tanto se perdequanto se acha, e em que, numa interjeição, num imperativo, numa invoca-ção, ou até num desfalecimento, é sempre ele que lhes coloca seu enigma eque fala – em suma, no plano em que tudo o que se expande no inconscientese difunde, tal como o micélio, como diz Freud a respeito do sonho, em tornode um ponto central. É sempre do sujeito enquanto indeterminado que setrata.

Oblivium é lévis [laevis] com o e agudo – polido, unido, liso6 . Obliviumé o que apaga – o quê? O significante como tal. Reencontramos aí a estru-tura basal, que torna possível, de modo operatório, que algo adquira a funçãode barrar, de riscar, de cortar uma outra coisa. Nível mais primordial, estrutu-ralmente, que o recalcamento de que falaremos mais adiante. Pois bem,esse elemento operatório do apagamento é o que Freud designa, desde aorigem, na função de censura.

É a censura a tesouradas, a censura russa, ou então a censura ale-mã, conforme Henri Heine no princípio do Livro da Alemanha. Senhor eSenhora Fulanos de Tal têm o prazer de anunciar o nascimento de um filhobelo como a liberdade – o Doutor Hoffmann, censor, risca, corta a palavraliberdade. Podemos decerto indagar qual passa a ser o efeito dessa palavradevido a essa censura propriamente material, o que é outro problema. Mas éjustamente sobre isso que se aplica, da maneira mais eficiente, o dinamis-mo do inconsciente.

Retomando um exemplo nunca suficientemente explorado, aquele queé o primeiro ao qual Freud aplicou sua demonstração, o esquecimento, otropeço de memória, concernente à palavra Signorelli após sua visita às pin-turas de Orvieto, será possível não ver surgir do próprio texto e se impor, nãoa metáfora, mas a realidade do desaparecimento, da supressão, daUnterdrückung, passagem para baixo7? O termo Signor, Herr, passa parabaixo – o mestre absoluto, disse eu uma vez, a morte em suma, desapareceali. Mas não vemos também, lá atrás, desenhar-se tudo o que obriga8 Freuda encontrar nos mitos da morte do pai a regulação de seu desejo? Afinal, elese encontra com Nietzsche para enunciar, no seu próprio mito, que Deusestá morto. E talvez sobre o fundo dos mesmos motivos. Pois o mito doDeus está morto – de que eu, de minha parte, estou bem menos certo, comomito entendam bem, do que a maioria dos intelectuais contemporâneos, oque não é de modo algum uma declaração de teísmo ou de fé na ressurrei-ção –, esse mito talvez não seja mais que o abrigo encontrado contra aameaça da castração.

Se souberem lê-los, vocês a verão nos afrescos apocalípticos da ca-tedral de Orvieto. Se não, leiam a conversa de Freud no trem – fala-seapenas do fim da potência sexual, que seu interlocutor médico, precisamen-te o interlocutor diante de quem ele não encontra o nome Signorelli, relatacomo tendo um caráter dramático para aqueles que costumam ser seuspacientes.

Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila numcorte do sujeito, de onde ressurge um achado, que Freud assimila ao dese-jo, desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do dis-curso em causa, onde o sujeito se capta em algum ponto inesperado.

7 No original, “passage dans les dessous”. Note-se que dessous também é o termo queaparece relacionado com o pudendum no primeiro capítulo.8 As várias traduções consultadas cometeram um erro de leitura neste trecho, erro cheio deimplicações teóricas e clínicas. No original: “se profiler tout ce qui nécessite Freud à trouverdans les mythes de la mort du père la régulation de son désir?” A construção “nécessiterqqn à faire”, também usada em português (necessitar alguém a) apesar de pouco usual,significa exigir, obrigar, coagir alguém a.

6 Laevis significa 1) Liso, plano, igual, polido, acepilhado. 2)Pelado, que não tem pêlo, gasto(com o roçar). 3) Escorregadio, que faz escorregar. 4) Mole, efeminado.

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IIIO SUJEITO DA CERTEZA*

Jacques LacanTradução: Claudia Berliner

Nem ser, nem não ser.Finitude do desejo.

O evasivo.O estatuto do inconsciente é ético.

Tudo tem de ser refeito na teoria.Freud cartesiano.

O desejo da histérica.

Semana passada, minha introdução do inconsciente pela estrutura deuma hiância deu a um de meus ouvintes, Jacques-Alain Miller, aoportunidade de fazer um excelente traçado do que, nos meus escri-

tos anteriores, ele reconheceu como a função estruturante de uma falta, e,mediante um arco audaz, aproximou-a do que designei como a falta-a-ser1

ao falar da função do desejoDepois de ter realizado essa sinopse, que certamente não foi inútil, ao

menos para aqueles que já tinham algumas noções de meu ensino, indagou-me sobre minha ontologia.

Não pude lhe responder dentro dos limites impostos ao diálogo pelohorário, mas teria sido conveniente ele precisar primeiro como define o termoontologia. Contudo, não creia que achei sua pergunta minimamenteinapropriada. Diria até mais. Sua questão vinha particularmente a calhar, nosentido de que é justamente de uma função ontológica que se trata nessahiância, pela qual acreditei dever introduzir, como lhe sendo a mais essenci-al, a função do inconsciente.

1 Tradução provisória.* Tradução da aula do Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.

No que diz respeito a Freud e sua relação com o pai, não esqueça-mos que todo o seu esforço só o levou a reconhecer que, para ele, a questãopermanecia intacta. Ele o disse a uma de suas interlocutoras: – Que queruma mulher? Questão que nunca resolveu, ou seja, aquilo que foi efetiva-mente sua relação com a mulher, seu caráter uxório, como se exprimepudicamente Jones ao se referir a ele. Poderíamos dizer que Freud teriacertamente dado um admirável idealista apaixonado se não tivesse se dedi-cado ao outro, na forma da histérica.

Decidi parar sempre meu seminário às vinte para as duas em ponto.Como vêem, não fechei hoje a questão do que seja a função do inconsciente.

Faltam as perguntas e as respostas.22 de janeiro de 1964.

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se considerar excepcional, aberrante até, o que no círculo analítico de nos-sos dias se prende ao que foi chamado – de maneira, aliás, bastante signifi-cativa, para os esterilizar – fenômenos psi (φ). Alusão às investigações deum Servadio, por exemplo.

Não foi por certo nessa direção que nossa experiência nos conduziu.O resultado de nossa investigação do inconsciente vai, ao contrário, na dire-ção de um certo dessecamento, de uma redução a um herbário cuja amostrase limita a um registro que se tornou catálogo comentado, a uma classifica-ção que bem poderia ser tida por natural. Se, no registro de uma psicologiatradicional se costuma constatar o caráter indomável, infinito, do desejo hu-mano – vendo nele a marca de não sei que pegada [sabot] divina que ali teriaficado impressa –, o que a experiência analítica nos permite enunciar é,antes, a função limitada do desejo. O desejo, mais que qualquer outro pontodo escopo humano, encontra em algum lugar seu limite.

Voltaremos a tudo isso, mas destaco que disse o desejo e não oprazer. Que o prazer limita o alcance do escopo humano é o que teremos deentender. Que o princípio do prazer seja princípio de homeostase, é essa ahipótese básica que não poderia existir sem dar lugar a tudo o que se possaimaginar de aspiração, de tensão para transpor, para transcender seus limi-tes. O próprio desejo, por sua vez, encontra seu contorno, sua proporçãofixa, seu limite, e é na relação com esse limite que ele se sustenta como tal,que pode se sustentar transpondo o limiar imposto pelo princípio do prazer. 3

Não é um traço pessoal de Freud essa repulsão do que designoucomo aspiração oceânica para o campo da sentimentalidade religiosa. Nos-sa experiência nos permite reduzir essa aspiração a uma fantasia, garantir-nos alhures bases sólidas e remetê-la ao lugar do que Freud chamava, apropósito da religião, ilusão.

3 Neste parágrafo, optamos por seguir a transcrição de Joel Dor, que parece mais clara queo texto estabelecido por J.A Miller.

1Poderíamos dizer que a hiância do inconsciente é pré-ontológica. In-

sisti nesse caráter por demais esquecido – esquecido de um modo nãodestituído de significação – da primeira emergência do inconsciente, que éde não se prestar à ontologia. O que de fato se revelou inicialmente a Freud,aos descobridores, aos que deram os primeiros passos, o que ainda serevela a quem quer que na análise acomode por um tempo seu olhar ao queé propriamente da ordem do inconsciente, é que não é nem ser, nem não-ser, é não-realizado.

Evoquei a função dos limbos, poderia igualmente ter falado do que,nas construções da Gnose, chamam de seres intermediários – silfos, gnomos,ou até formas mais elevadas desses mediadores ambíguos. Tampouco deve-mos esquecer que Freud, quando começou a remexer nesse mundo, articu-lou o verso: Flectere si nequeo superos Acheronta movebo2, que pareciacarregado de inquietantes apreensões quando o pronunciou, e cuja ameaça,note-se, foi completamente esquecida depois de 60 anos de experiência. Énotável que o que se anunciava como uma abertura infernal tenha sido, naseqüência, tão notavelmente asseptizado.

Mas é igualmente chamativo que o que se anunciava tão delibera-damente como abertura para um mundo inferior não tenha feito em nenhumlugar, salvo raras exceções, uma aliança séria com tudo o que existiu –ainda existe, embora menos que na época da descoberta freudiana – deinvestigação metapsíquica, como se dizia, ou de prática espírita, espiritista,evocatória, necromântica, tal como a psicologia gótica de Myers, que seimpunha seguir a pista dos fatos telepáticos.

É claro que Freud aborda de passagem esses fatos, aquilo que even-tualmente sobreveio na sua experiência. É nítido, contudo, que é na direçãode uma redução racionalista e elegante que sua teorização se exerce. Pode-

2 Literalmente: “Se não puder dobrar os deuses, transporei o Aqueronte”. O que poderiasignificar algo como “moverei céus e terras” ou “Se não puder ganhar o céu, moverei oinferno”.

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circunscrevê-lo numa estrutura, uma estrutura temporal, da qual podemosdizer que, até hoje, nunca foi articulada como tal.

2Interessamo-nos por outra coisa, e aqui estou este ano para lhes

mostrar a via pela qual esses deslocamentos de interesse foram sempre nosentido de isolar estruturas, de que se fala mal, na análise, de que se falaquase como profeta4. Com freqüência, ao ler os melhores testemunhos teó-ricos que os analistas dão de sua experiência, tem-se a sensação de que épreciso interpretá-los. Vou lhes mostrar isso no momento oportuno, quandofalar do que há de mais vivo, de mais ardente na nossa experiência, ou seja,a transferência, sobre a qual vemos coexistir os testemunhos mais fragmen-tários e mais esclarecedores, numa confusão total.

É o que explica que eu vá avançando passo a passo, pois, do quetenho de tratar com vocês – o inconsciente, a repetição –, outros falariam noplano da transferência, dizendo que é disso que se trata. É corrente ouvir, porexemplo, que a transferência é uma repetição. Não digo que isso estejaerrado e que não haja repetição na transferência. Não digo que não foi apropósito da experiência da transferência que Freud abordou a repetição.Digo que o conceito de repetição não tem nada a ver com o de transferência.Por isso, sou obrigado a fazê-lo entrar primeiro na nossa explicação, a lhedar a dianteira lógica. Pois, seguir a cronologia seria favorecer as ambigüida-des do conceito de repetição, decorrentes do fato de sua descoberta ter sidofeita durante os tateios impostos pela experiência da transferência.

Gostaria de destacar agora, por mais surpreendente que a formulaçãopossa parecer, que o estatuto de ser do inconsciente, tão evasivo, tão incon-sistente, lhe é dado pelo proceder de seu descobridor.

4 A edição em espanhol interpreta assim esta frase: “por qué camino estos desplazamientosde interés siempre han ido más en el sentido de separar estructuras, de las que se hablamal, en el análisis, del que se habla casi como profeta.”

O que é ôntico na função do inconsciente é a fenda por onde essacoisa, cuja aventura no nosso campo parece tão curta, é por um instantetrazida à luz do dia – um instante, pois o segundo tempo, que é de fecha-mento, dá a essa apreensão um aspecto evanescente. Voltarei a isso, quetalvez até seja o passo que poderei dar agora, não tendo podido mais queevitá-lo até o presente por razões de contexto.

Contexto ardente, como sabem. Por motivos que teremos de analisar,nossos hábitos técnicos tornaram-se tão melindrosos no tocante às funçõesdo tempo que, por querer introduzir aqui distinções tão essenciais que elasse delineiam em toda as disciplinas menos na nossa, tive aparentemente deme meter numa discussão mais ou menos pleiteante.

Já fica evidente, no plano da própria definição do inconsciente – refe-rindo-nos apenas ao que dele diz Freud a respeito do processo primário (demaneira necessariamente aproximativa, já que de início só pôde empregá-lopor meio de toques, tentativas) –, que o que ali ocorre é inacessível à contra-dição, à localização espaço-temporal e também à função do tempo.

Ora, embora o desejo nada mais faça senão veicular o que sustentade uma imagem do passado para um porvir sempre curto e limitado, Freud odiz indestrutível. E, assim, o termo indestrutível é afirmado justamente so-bre a realidade mais inconsistente de todas. Se escapa ao tempo, a queregistro pertence o desejo indestrutível na ordem das coisas? Pois, o que éuma coisa, senão o que dura, idêntico, um certo tempo? Não caberia aquidistinguir, ao lado da duração, substância das coisas, um outro modo dotempo – um tempo lógico? Como sabem, já abordei esse tema em umescrito.

Reencontramos aqui a estrutura escandida dessa pulsação da fendacuja função evoquei a última vez. O aparecimento evanescente se dá entreos dois pontos, o inicial e o terminal, desse tempo lógico – entre o instantede ver em que algo da própria intuição é sempre elidido, perdido até, e omomento elusivo em que, precisamente, a apreensão do inconsciente nãoconclui, em que se trata sempre de uma recuperação enganosa.

Onticamente, pois, o inconsciente é o evasivo – mas conseguimos

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Sucumbindo ao sono, o pai vê surgir a imagem do filho, que lhe diz: Pai, nãovê que estou queimando? Ora, ele está queimando no real, no quarto aolado.

Por que, então, sustentar a teoria que faz do sonho a imagem de umdesejo, nesse exemplo em que, numa espécie de reflexo chamejante, éjustamente uma realidade que, quase decalcada, parece aqui arrancar osonhador de seu sono? Por que, a não ser para nos evocar um mistério quenada mais é senão o mundo do além e não sei que segredo compartilhadoentre o pai e esse filho que vem lhe dizer – Pai, não vê que estou queiman-do? De que é que ele queima, se não é do que vemos desenhar-se em outrospontos designados pela topologia freudiana, do peso dos pecados do pai,que o fantasma carrega no mito de Hamlet que Freud associou ao mito deÉdipo. O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei –mas o legado do pai é aquele que Kierkegaard designa, é seu pecado.

De onde surge o fantasma de Hamlet, senão do lugar de onde denun-cia de que foi surpreendido, ceifado na flor de seu pecado, e, longe de dar aHamlet os interditos da Lei que podem fazer subsistir seu desejo, trata-se atodo instante de uma profunda colocação em dúvida desse pai ideal demais.

Está tudo ao alcance da mão, emergindo, nesse exemplo que Freudcoloca aí para de certo modo indicar que ele não o explora, mas o aprecia, opesa, o saboreia. É desse ponto, o mais fascinante, que ele nos desvia, paraentrar numa discussão sobre o esquecimento do sonho e o valor de suatransmissão pelo sujeito. Todo esse debate gira em torno de um certo núme-ro de termos que convém sublinhar.

Com efeito, o termo principal não é verdade. É Gewissheit, certeza. Oproceder de Freud é cartesiano, no sentido de que parte do fundamento dosujeito da certeza. Trata-se daquilo de que se pode estar certo. Para tanto, oprimeiro a fazer é superar uma conotação presente em tudo o que tem a vercom o conteúdo do inconsciente – especialmente quando se trata de fazê-loemergir da experiência do sonho – superar o que flutua por toda parte, o quepontua, macula, mancha o texto de toda comunicação de sonho: Não tenhocerteza, duvido.

O estatuto do inconsciente, que afirmo ser tão frágil no plano ôntico, éético. Freud, na sua sede de verdade, disse – Seja como for, é preciso ir atéele – porque, em algum lugar, esse inconsciente se mostra. E isso, ele odisse na sua experiência do que até aquele momento era, para o médico, arealidade mais recusada, mais encoberta, mais contida, mais rejeitada, a dahistérica, na medida em que – em certo sentido, desde a origem – ela estámarcada pelo signo do engodo.

Isso, é claro, nos levou a muitas outras coisas no campo para o qualfomos levados por esse proceder inicial, pela descontinuidade constituídapelo fato de que um homem descobridor, Freud, tenha dito – Aí está a terrapara onde levo meu povo. Por muito tempo, o que se situava nesse campopareceu estar marcado pelas características de sua descoberta original: odesejo da histérica. Mas logo se impôs algo totalmente diferente que – àmedida que se ia avançando na descoberta – era sempre formulado comatraso, a reboque. É que a teoria só fora forjada para as descobertas anteri-ores. Portanto, tudo tem de ser refeito, inclusive o que concerne ao desejoda histérica. Impõe-se-nos uma espécie de salto retroativo, se quisermosdestacar aqui o essencial da posição de Freud no tocante ao que aconteceno campo do inconsciente.

Não é de modo impressionista que quero dizer que seu proceder éaqui ético – não estou pensando na famosa coragem do cientista que nãorecua diante de nada, imagem a ser matizada, como todas as outras. Seformulo aqui que o estatuto do inconsciente é ético e não ôntico, é precisa-mente porque Freud não explicita isso quando dá ao inconsciente seu esta-tuto. E o que eu disse da sede de verdade que o anima é aqui uma meraindicação de por onde nos aproximaremos do que nos permitirá indagar ondeestava a paixão de Freud.

Freud conhece toda a fragilidade dos furta-cores do inconsciente noque concerne a esse registro, quando introduz o último capítulo da Interpre-tação dos sonhos com o sonho que, de todos os analisados no livro, tem umdestino à parte – sonho pendente do mais angustiante dos mistérios, aqueleque une um pai ao cadáver de seu filho mais chegado, de seu filho morto.

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SEÇÃO DEBATES

de que o sujeito está em casa nesse campo do inconsciente. E é porqueFreud afirma essa certeza que se dá o progresso mediante o qual ele mudanosso mundo.

Para Descartes, no cogito inicial – os cartesianos concordarão comi-go, mas já me adianto à discussão – o que o eu penso visa quando oscilapara o eu sou é um real – mas a verdade fica tão fora que logo em seguidaDescartes precisa se certificar, de quê? De um Outro que não seja enganosoe que, ademais, possa, por sua mera existência, garantir as bases da verda-de, garantir-lhe que na sua própria razão objetiva estão os fundamentos ne-cessários para que o próprio real de que ele acaba de se certificar possaencontrar a dimensão da verdade. Nada mais posso senão mencionar asprodigiosas conseqüências que teve essa recolocação da verdade nas mãosdo Outro, nesse caso Deus perfeito, cujo negócio é a verdade, pois, diga oque disser, será sempre a verdade: mesmo que tivesse dito que dois e doissão cinco, teria sido verdade.

Que implicações isso tem, senão que podemos começar a brincarcom as letrinhas da álgebra que transformam a geometria em análise, que aporta se abriu para a teoria dos conjuntos, que qualquer coisa pode ser umahipótese de verdade.

Mas deixemos isso, que não é problema nosso, embora saibamosque o que começa no nível do sujeito nunca deixa de ter conseqüências,desde que se saiba o que quer dizer este termo: o sujeito.

Descartes não sabia, sabia apenas que era sujeito de uma certeza erejeição de todo saber anterior – mas, graças a Freud, sabemos que o sujei-to do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes de entrar na certeza.

Isso é encargo nosso. E é aí que a coisa complica. Em todo caso,esse passa a ser um campo que coloca uma questão que não podemosmais recusar.

3Quero sublinhar agora que, a partir daí, o correlativo do sujeito já não

é da ordem do Outro enganador, mas da ordem do Outro enganado. E nos

E quem não duvidaria sobre a transmissão do sonho quando, comefeito, há um evidente abismo entre o que foi vivido e o que é relatado?

Ora – e Freud enfatiza isso com todas as suas forças – a dúvida é oapoio de sua certeza.

E o justifica, dizendo: é justamente sinal de que ali há algo a preser-var. E a dúvida é então sinal da resistência.

No entanto, a função que atribui à dúvida continua ambígua, pois essealgo a preservar pode igualmente ser o algo que tem de se mostrar – porque,de todo modo, o que se mostra só se mostra sob uma Verkleidung, umdisfarce, postiço ademais, que pode não segurar. Seja como for, insisto nofato de que há um ponto em que os dois modos de proceder, o de Descartese o de Freud, se aproximam, convergem.

Descartes nos diz – Porque duvido, estou certo de que penso, e –diria eu, para me ater a uma formulação não mais prudente que a dele, masque nos poupa o debate sobre o eu penso – Por pensar, sou. Notem, depassagem, que ao eludir o eu penso, eludo a discussão resultante de que,para nós, esse eu penso seguramente não pode ser separado do fato deque, para formulá-lo, Descartes tem de dizê-lo, implicitamente – coisa queele esquece. Reservaremos isso para daqui a pouco.

De modo exatamente analógico, ali onde duvida – pois, afinal, sãoseus sonhos e é ele que, no começo, duvida – Freud está certo de queexiste um pensamento, inconsciente, o que quer dizer que se revela comoausente. É nesse lugar que convoca, ao lidar com outros5, o eu penso poronde o sujeito vai se revelar. Em suma, ele tem certeza de que esse pensa-mento está ali totalmente só de todo seu eu sou, por assim dizer, desde que(é este o salto) alguém pense no seu lugar.

É aqui que se revela a dissimetria entre Freud e Descartes. Não estáno proceder inicial da fundamentação da certeza do sujeito. Decorre do fato

5 “Ao lidar com a dúvida”, na transcrição de Joel Dor.

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tanto a umas quanto às outras, relativamente a Dora bem como à famosahomossexual – ele foi passado para trás e o tratamento se interrompeu. Notocante à sua interpretação, ele mesmo ainda está hesitante, um poucocedo demais, um pouco tarde demais. Por falta de referências estruturais,que são aquelas que espero destacar para vocês, Freud ainda não podia verque o desejo da histérica – legível de forma gritante na observação – consisteem sustentar o desejo do pai, no caso de Dora, em sustentá-lo por procura-ção.

A complacência tão manifesta de Dora relativamente à aventura do paicom aquela que é a mulher do Senhor K., o fato de permitir que ele a corteje,é exatamente o jogo mediante o qual é o desejo do homem que ela tem desustentar. Aliás, a passagem ao ato, a bofetada da ruptura, que se dá quan-do um deles, o Senhor K., no lugar de lhe dizer: Não me interesso por você,lhe diz: Não me interesso pela minha mulher, mostra que ela precisa que seconserve o laço com esse elemento terceiro, elemento este que lhe permitever subsistir o desejo, de todo modo insatisfeito: tanto o desejo do pai queela favorece como impotente, quanto o seu próprio, por não poder se realizarcomo desejo do Outro7.

No mesmo sentido, é para o desejo do pai que a homossexual encon-tra uma outra solução: desafiar esse desejo. Isso justifica uma vez mais a

7 Há muitas leituras desta frase. No texto estabelecido por Miller lê-se: ... cet élément tiersqui lui permet de voir subsister le désir, de toute façon instaisfait – aussi bien le désir dupère qu’elle favorise em tant qu’impuissant, que son désir à elle, de ne pouvoir seréaliser en tant que désir de l’Autre. Na transcrição de Joel Dor lê-se: ....de ne pouvoirse réaliser qu’en tant que désir de l’autre. A tradução brasileira diz: “preciso que esselaço seja conservado preso a esse elemento terceiro que lhe permita ver subsistir odesejo, de todo modo insatisfeito – também o desejo do pai que ela favorece enquantoimpotente, como o desejo dela mesma, de não poder se realizar enquanto desejo doOutro”, a ed. em espanhol de F. Monge traduz “no puede realizarse más que en tanto quedeseo del Otro.” e a tradução espanhola de Mauri e Sucre diz “ese elemento tercero que lepermite ver subsistir el deseo, de todos modos insatisfecho: tanto el deseo del padre queella favorece en tanto impotente, como el suyo, por no poder realizarse como desejodel Otro.

aproximamos disso da maneira mais concreta quando entramos na experi-ência da análise. O que o sujeito mais teme é nos enganar, colocar-nosnuma falsa pista ou, mais simplesmente, que nos enganemos, pois, afinal,está na nossa cara que somos pessoas que podem se enganar como qual-quer um.

Ora, isso não perturba Freud, pois – e é justamente o que temos deentender, especialmente quando lemos o primeiro parágrafo do capítulo so-bre o esquecimento dos sonhos – os signos coincidem e se confirmam.Será preciso levar em conta tudo, libertar-se, sich frei machen, diz ele, dequalquer escala de avaliação que ali se busque, Preisschätzung6, avaliaçãodo que é certo e do que não é certo. A mais tênue indicação de que algoentra no campo deve nos fazer atribuir-lhe igual valor de traço no que serefere ao sujeito.

Mais tarde, na famosa observação de uma homossexual, Freud zom-ba dos que, a respeito dos sonhos da dita cuja, venham lhe dizer: E então,onde está esse famoso inconsciente que deveria nos dar acesso ao maisverdadeiro, a uma verdade – ironizam eles – divina? Sua paciente burlou dosenhor, já que na análise fez sonhos com o propósito expresso de persuadi-lo de que recuperava o que lhe pediam, o gosto pelos homens. Freud não vênisso nenhuma objeção. O inconsciente, diz ele, não é o sonho. Na bocadele, isso quer dizer que o inconsciente pode se exercer no sentido do engo-do e que isso não tem para ele nenhum valor de objeção. Com efeito, comopoderia não haver a verdade da mentira que, contrariando o suposto parado-xo de Epimênides, torna perfeitamente possível afirmar: Minto?

O que aconteceu naquela ocasião foi simplesmente que Freud nãoconseguiu formular corretamente o que era o objeto tanto do desejo da histé-rica quanto do desejo da homossexual. Foi por isso que – relativamente

6 [sic] Na transcrição de Joel Dor, a palavra é Sicherheitschätzung, que significa avaliação,estimativa de certeza. Já Preisschätzung significa avaliação,estimativa de preços !!

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SEÇÃO DEBATES

Para entender o que é o tempo lógico, temos de partir de que, nocomeço, a bateria significante está dada. Sobre essa base, é preciso intro-duzir dois termos que, como veremos, a função da repetição exige – Willkür,o acaso, e Zufall, o arbitrário.

Assim, Freud examina que conseqüências tem para a interpretaçãodos sonhos o acaso da transcrição e a arbitrariedade das conexões: por querelacionar isso com aquilo e não com qualquer outra coisa? É certo queFreud nos leva assim para o âmago da questão que o desenvolvimento mo-derno das ciências levanta, na medida em que elas demonstram o que pode-mos fundar sobre o acaso.

Na realidade, nada pode ser fundado sobre o acaso – cálculo dasprobabilidades, estratégias – que não implique uma estruturação prévia elimitada da situação em termos de significantes. Quando a teoria modernados jogos elabora a estratégia dos dois adversários, cada um deles disporáda máxima chance de vencer com a condição de que cada um raciocinecomo o outro. O que dá valor a uma operação dessa espécie? Simplesmenteque o mapa já está traçado, nele estão inscritos os pontos de referênciasignificantes do problema e a solução nunca irá além deles.

Muito bem! Com relação ao inconsciente, Freud reduz tudo o que estáao alcance de sua escuta à função de puros significantes. É a partir dessaredução que isso opera e que pode aparecer, diz Freud, um momento deconcluir – um momento em que ele sente a coragem de julgar e de concluir.É algo que faz parte do que chamei seu testemunho ético.

A experiência lhe demonstra em seguida que no trato com o sujeitotopa com limites: a não convicção, a resistência, a não cura. A rememoraçãocomporta sempre um limite. É indubitável que se poderia obter umarememoração mais completa por outras vias que não a análise, mas elassão inoperantes quanto à cura.

Aqui é onde devemos distinguir o alcance destas duas direções: arememoração e a repetição. De uma à outra, não há nem orientação tempo-ral nem reversibilidade. Elas simplesmente não são comutativas. Não é amesma coisa começar pela rememoração para tratar das resistências da

fórmula que articulei, originada na experiência da histérica para situá-la emseu justo nível, o desejo do homem é o desejo do Outro. Releiam a observa-ção e verão o caráter de evidente provocação de toda a conduta dessa moçaque, tendo-se grudado a uma mundana bem conhecida na cidade, exibesem cessar as atenções cavalheirescas que lhe dedica, até o dia em que,encontrando o pai – o que encontra no olhar do pai é a evitação, o desprezo,a anulação do que acontece diante dele –, ela imediatamente se atira porcima da balaustrada de uma pequena ponte de ferrovia. Literalmente, já nãopode conceber, a não ser se abolindo, a função que tinha: mostrar ao paicomo se é um falo abstrato, heróico, único, e consagrado ao serviço de umadama.

O que a homossexual faz no seu sonho, ao enganar Freud, é outrodesafio dirigido ao desejo do pai: Você quer que eu goste de homens, entãoterá tantos sonhos de amor por homens quantos quiser. É o desafio emforma da derrisão.

Só me estendi tanto nessa abertura para que pudessem distinguirqual é a posição do proceder freudiano com respeito ao sujeito, na medidaem que o campo do inconsciente concerne ao sujeito. Distingui, assim, afunção do sujeito da certeza com relação à busca da verdade.

A próxima vez, abordaremos o conceito de repetição, indagando-noscomo concebê-lo, e veremos que é a partir da repetição como repetição dadecepção que Freud coordena a experiência, decepcionante, com um realque doravante estará situado no campo da ciência como aquilo para com oqual o sujeito está condenado a faltar, mas que essa própria falta revela.

RESPOSTASX: Tempo lógico e tempo-substância das coisas não são idênticos?O tempo lógico está constituído de três tempos. Em primeiro lugar, o

instante de ver – que não deixa de ter seu mistério, embora bastante bemdefinido na experiência psicológica da operação intelectual que é o insight.Em seguida, o tempo de compreender. Finalmente, o momento de concluir.Só para rememorar.

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POST-SCRIPTUM DA TRADUÇÃOCONVITE À COMUNIDADE PSICANALÍTICA

FALTA-A-SER como tradução de manque-à-être tem como única jus-tificativa, afora a enorme dificuldade de encontrar uma solução melhor, atradução literal de cada palavra da expressão e não da expressão em si,cunhada por Lacan talvez para diferenciar do manque d’être (falta de ser) deSartre, ou talvez, como sugere Marco Focchi, numa construção que encon-tra respaldo na linguagem contábil, em particular na expressão manque àgagner que significa ausência de ganho, perda de rendimentos, prejuízo,déficit. Nesse contexto, o ganho em questão não é uma soma previamenteexistente e que desapareceu: é uma soma que nunca foi registrada. Assimtambém é o ser do sujeito: não é algo que existiu e se perdeu durante odesenvolvimento, mas aquele que o sujeito nunca teve e que ainda assimalmeja.

Para traduzir a idéia para o inglês, Lacan propôs a expressão “want tobe”, em que “want” significa tanto uma perda quanto a tensão voltada paraesse ser que falta, o anseio de ser. Também se encontra em inglês a tradu-ção “lack of being”.

Em espanhol encontramos as traduções falta-en-ser, carencia del ser.Em alemão: Mangel an Sein ou Seinsmangel.

Gramaticalmente, manque à gagner é pertinente, pois manquer à podesignificar deixar de, p. ex., manque à combler, no sentido de deixar de cum-prir algo, de preencher, satisfazer, no sentido de falha.

Existem outras duas expressões fixas em francês com “manque à”:Manque à virer – relacionado com a vela, trata-se de falha cometida em umamanobra com as velas e Manque à toucher, bilhar, não conseguir tocar nabola da vez

Já em português, falta-se apenas à palavra, ao respeito, no sentido dedeixar de cumprir, ou a um compromisso qualquer, no sentido de ausência.

repetição, ou começar pela repetição para ter um começo de rememoração.É isso o que nos indica que a função-tempo é aqui de ordem lógica, e

ligada a uma conformação significante do real. Com efeito, a não-comutatividade é uma categoria que pertence exclusivamente ao registro dosignificante.

Podemos perceber aí por meio de que aparece a ordem do inconsci-ente. A que Freud o refere? O que o garante? Freud consegue resolvê-lo numsegundo tempo elaborando a função da repetição. Veremos mais para afrente como podemos formulá-la reportando-nos à Física de Aristóteles.

P. KAUFMANN: O ano passado você formulou que a angústia é o quenão engana. Você poderia relacionar esse enunciado com a ontologia e acerteza?

A angústia é para a análise um termo de referência crucial, porque,com efeito, a angústia é o que não engana. Mas a angústia pode faltar.

Na experiência, é necessário canalizá-la e, se me permitem dizer,dosá-la, para não ficar submergido nela. Essa é uma dificuldade correlativaàquela que existe em conjugar o sujeito com o real – termo que tentareidefinir a próxima vez a fim de dissipar a ambigüidade que persiste a propósi-to dele em muitos de meus alunos.

O que, para o analista, poderia ratificar no sujeito o que se passa noinconsciente? Freud, para localizar a verdade – mostrei-o a vocês ao estudaras formações do inconsciente – remete-se a uma certa escansão significante.O que justifica essa confiança é uma referência ao real. No entanto, o míni-mo que se possa dizer é que o real não se entrega a ele facilmente. Tome-mos o exemplo do Homem dos lobos. A importância excepcional dessaobservação na obra de Freud consiste em mostrar que é com relação ao realque o plano da fantasia funciona. O real suporta a fantasia, a fantasia protegeo real. Para elucidar-lhes essa relação, retomarei a próxima vez a cogitaçãoespinosiana, colocando, porém, em jogo um outro termo para substituir oatributo.

29 de janeiro de 1964.

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RESENHA

FEIÚRAS1

TAJES, Claudia. A vida sexual da mulher feia. Rio deJaneiro: Agir, 2005. 136p.

Vocês conhecem a Jú? Trata-se duma mu-lher feia, criada pela escritora ClaudiaTajes, em seu livro “A vida sexual da

mulher feia” (Agir, 2005). Jú, Jucianara, porquenem o nome possui encanto, é devotada ao amore à comida, mas nem um nem outro saboreia,ambos são devorados e a devoram. Jú não é feiaporque é gorda, mas porque é escroncha, alémdisso é ácida em suas observações e demolidorana autocrítica.

Jú não é bonita nem aos olhos da própria mãe. Passa a vida sobrevi-vendo de migalhas de sexo e amizade, mas não é infeliz. Claudia não escre-ve uma história onde o sofrimento transcende, revela, purifica, nem é umfolhetim de superação. Jucianara não se revela um gênio, não passa por umExtreme Makeover, nem é resgatada no lombo do cavalo branco para ne-nhum castelo, mas, repito, nem por isso é infeliz.

Insistentes comédias românticas, programas televisivos de encontros,revistas femininas, propagandas e livros de teor literário duvidoso entopemnossos sentidos da crença que o amor é lindo. Iludidos, sonhamos que emseu nome somos capazes de produzir a beleza e a força de vontade neces-sárias para vencer na vida. Isso até pode acontecer, mas nem sempre.

Muitas vezes, engolimos a vida com mais voracidade que qualidade eela faz o mesmo conosco. Seguindo as metáforas alimentares que seriamdo gosto da nossa personagem, costumamos viver mais como americanosengolindo seus burgers gordurosos, do que como franceses deleitando-secom pratos que tem mais decoração do que substância. Veja bem, não

1 Publicado no jornal Zero Hora, dia 14 de junho de 2006.

Feitas essas considerações, ousemos brincar:

querer-serfalta-de-ser (confunde com Sartre, mas é a melhor tradução)falta-do-serfalto-de-sermanco-de-serfalta-serfaltassermanquessermanquejar do sercaresserser-falto

Experimentando:O sujeito como manco-de-ser é sujeito a desejar.O sujeito como falto-de-ser é sujeito a desejar.

Esta e outras expressões que se fixaram em nosso linguajar em fun-ção das traduções a que temos acesso merecem uma nova reflexão, essavez por parte de uma comunidade maior. Um dos benefícios da tradução éreavivar coisas que se cristalizaram sem que ninguém desse muita atenção.

Está feito o convite. Procuremos uma tradução melhor para “manque-à-être” ou resignemo-nos diante da dificuldade e usemos “falta-a-ser” umpouco mais cientes do porquê.

Set/06Claudia Berliner

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RESENHA

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AGENDA

OUTUBRO – 2006

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

05 Reunião da Mesa Diretiva aberta aosMembros e Participantes da APPOA

06 e 20 Reunião da Comissão de Aperiódicos06 e 20

Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista

PSICANÁLISE E LITERATURA

09 e 30 Reunião da Comissão do Correio

05, 19e 26

19

19h30min

15h15min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa Diretiva

Sede da APPOA

Sede da APPOA21h

8h30min

20h30min

21h

Sede da APPOA

penso que as francesas são felizes porque são magras, pois se bem é verda-de que no “sexo-burger” o encontro se consuma rápido e sem graça, no pratoenfeitado, na cama coberta de pétalas de rosas, há um cenário suntuosoque nem sempre corresponde aos resultados. Cada jeito, de comer e viver,tem seus gozos e insatisfações. Um se deleita com o atrolho estuporante,outro com a ponta de fome que sempre resta.

A Jú não é infeliz graças a um recurso: seu humor, que é o humor deClaudia. Eis a fonte da leveza, mesmo para um peso pesado como Jucianara.Se nos apontam o romantismo como a grande solução, talvez seja a hora delembrar dos tantos de nós que não fazem nado sincronizado com outro hu-mano, mas nem por isso se afogam. Um olhar divertido, jocoso, sobre odesencanto talvez seja mais interessante do que a vã esperança das solu-ções românticas.

Somos mais trash e mais feios do que gostaríamos, menos espertosdo que seria necessário, muito menos equilibrados do que seria recomendá-vel. Neste caso, a palavra “feia” traduz a distância universal entre o ideal e arealidade. Há algo no humano de irredutivelmente falho, que encontra àsvezes nessa palavra sua melhor tradução. Ainda bem que fica melhor, oumenos pior, se tivermos recursos mentais para olhar sobre isso com algumacrítica, pensar e, quem sabe, até achar divertido. Mulheres como Claudiaestão demolindo com muita graça o pior dos grilhões femininos: a ilusãoromântica. Não quer dizer que vamos todas virar gordas, toscas e mal ama-das, apenas que estamos aprendendo a ser menos bobas. Nem sempre, àsvezes.

Diana Corso

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Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschimidt, Fernanda Breda, HenrieteKaram, Liz Nunes Ramos, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli, Marta Pedó,

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira,Rosane Palacci Santos e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2005/2006

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa

2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues

2a Secretária: Ana Laura Giongo e Lucy Fontoura1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein

2a Tesoureira: Ester TrevisanMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes,Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil,Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg,

Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

N° 151 – ANO XIII OUTUBRO – 2006

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 3

SEÇÃO TEMÁTICA 10ESTÓRIA DE UM ENGANOContardo Calligaris 10AS ORIGENS DA REPETIÇÃOLucia A. Mees 24OBRIGADO(,) POR FAVOR!Otávio Augusto Winck Nunes 30PEQUENO ESCRITO SOBREAS PULSÕES E A INTERPRETAÇÃOMarta Pedó 33

SEÇÃO DEBATES 38SEMINÁRIO XI - CAPÍTULO II 38SEMINÁRIO XI - CAPÍTULO III 51

RESENHA 67A VIDA SEXUAL DA MULHER FEIA 67AGENDA 69