EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182,...

36
1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número do Correio foram produzidos por seus autores para a I Jornada o Instituto Appoa, ou a partir dela, e não constituem a totalidade dos trabalhos apre- sentados na Jornada, ocorrida em 27 e 28 de junho últimos, mas vão permitir ao leitor ter uma idéia do que abordamos no evento e do que representou sua realização. Para aqueles que sustentamos a aposta da criação do Instituto APPOA, a Jornada representou um marco. Marco quanto ao tema proposto: “A Psica- nálise e as intervenções sociais”; pela presença de um numeroso público interessado e implicado, que permaneceu atento e dialogando até o fim dos trabalhos e pela qualidade e diversidade dos trabalhos, calcados nas mais diversas experiências de psicanalistas que desenvolvem sua prática em dife- rentes campos. Encerramos a Jornada concernidos pela enorme responsabilidade de sustentar os laços que ali se ampliaram, laços que vem sendo construídos pelo Instituto APPOA, desde a sua fundação, como um lugar de entrecruzamento da clínica, pesquisa e intervenção. A própria Jornada institui-se como um dispositivo de diálogo – termo muito presente ao longo das discussões. Pudemos constatar ali um vivo interesse pela psicanálise, com a presença cada vez maior de psicanalistas inscrevendo seu trabalho em instituições sociais: na universidade, na esco- la, nas instituições jurídicas, nas de saúde e de saúde mental, na assistên- cia social em diferentes dispositivos grupais, incidindo diretamente no âmbi- to das políticas públicas. Sabemos que Freud, ao longo de toda a sua obra, tentou estabelecer o aspecto científico da psicanálise, ele insistia na importância de estender a psicanálise às instituições públicas, torná-la “acessível”. Muitos ainda se levantam contra a prática da psicanálise num âmbito que seja fora do consul- tório. As resistências são muitas. 1 Essa Seção contou com a colaboração de Ester Trevisan.

Transcript of EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182,...

Page 1: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

EDITORIAL

Os textos que compõem a Seção Temática1 deste número do Correioforam produzidos por seus autores para a I Jornada o Instituto Appoa,ou a partir dela, e não constituem a totalidade dos trabalhos apre-

sentados na Jornada, ocorrida em 27 e 28 de junho últimos, mas vão permitirao leitor ter uma idéia do que abordamos no evento e do que representou suarealização.

Para aqueles que sustentamos a aposta da criação do Instituto APPOA,a Jornada representou um marco. Marco quanto ao tema proposto: “A Psica-nálise e as intervenções sociais”; pela presença de um numeroso públicointeressado e implicado, que permaneceu atento e dialogando até o fim dostrabalhos e pela qualidade e diversidade dos trabalhos, calcados nas maisdiversas experiências de psicanalistas que desenvolvem sua prática em dife-rentes campos.

Encerramos a Jornada concernidos pela enorme responsabilidade desustentar os laços que ali se ampliaram, laços que vem sendo construídospelo Instituto APPOA, desde a sua fundação, como um lugar deentrecruzamento da clínica, pesquisa e intervenção.

A própria Jornada institui-se como um dispositivo de diálogo – termomuito presente ao longo das discussões. Pudemos constatar ali um vivointeresse pela psicanálise, com a presença cada vez maior de psicanalistasinscrevendo seu trabalho em instituições sociais: na universidade, na esco-la, nas instituições jurídicas, nas de saúde e de saúde mental, na assistên-cia social em diferentes dispositivos grupais, incidindo diretamente no âmbi-to das políticas públicas.

Sabemos que Freud, ao longo de toda a sua obra, tentou estabelecero aspecto científico da psicanálise, ele insistia na importância de estender apsicanálise às instituições públicas, torná-la “acessível”. Muitos ainda selevantam contra a prática da psicanálise num âmbito que seja fora do consul-tório. As resistências são muitas.

1 Essa Seção contou com a colaboração de Ester Trevisan.

Page 2: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

EDITORIAL

3C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO VIII

SÁBADO – 08 DE AGOSTO DE 2009

Convidamos para a JORNADA DO PERCURSO DE ESCOLA VIII, mo-mento especial para a turma já que desejamos compartilhar os efeitos singu-lares da caminhada de cada um de nós. Caminhadas descontínuas, percur-sos traçados na temporalidade que nos constitui como sujeitos, históriastecidas pela transferência singular que produzimos com a Psicanálise, tes-temunham possibilidades de transmissão.

Concluímos este Percurso, porém sabendo que se está sempre naexperiência da travessia... Vemos a Jornada como um marco importantepara a realização de bordas para nossos interrogantes, pois é do enlaçamentocom o outro que faremos emergir novas possibilidades criadoras e criativasda linguagem.

A diversidade de temas e as interrogações formuladas em nossostrabalhos, nascem da trama complexa em que se realiza a transmissão emPsicanálise.

INSCRIÇÕESValor: R$20,00 (incluindo o Coquetel).Vagas limitadas . As inscrições podem ser realizadas antecipadamente naSecretaria da APPOA. LOCALSede da Associação Psicanalítica de Porto AlegreRua Faria Santos, 258 – Petrópolis – Porto Alegre – RSFone: 3333.2140 – Fax: 3333.7922

Lacan, ao abrir a sua primeira lição do Seminário “Os Escritos técni-cos de Freud”, convida seus interlocutores a justamente “seguir as técnicasde uma arte do diálogo”: ele emprega a metáfora do bom cozinheiro, que,para cortar o animal, deve saber onde e como fazer o bom corte para poderseparar as articulações nos pontos de menor resistência. Ele aponta para oque vai fazer ao longo de seu ensino: este exercício constante e continuadoque todo o psicanalista deve fazer de trabalhar e se deixar trabalhar pelosconceitos psicanalíticos, a partir da clínica. Nem Freud, nem Lacan, estabe-lecem o lugar onde a prática da psicanálise se dá, mas insistem sim, que épreciso saber o que se está fazendo.

Esperamos que o leitor que esteve presente na Jornada possa reteralgo mais do que ali se passou e que aqueles que ali não estiveram possam,a partir da leitura dos textos aqui incluídos, sentirem-se convidados a colo-car algo de si nesta aposta de pensar os avatares da experiência analítica.

Page 3: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

5C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

QUADRO DE ENSINO 2009

EIXO DE TRABALHO DO ANOENCONTROS DE ESTUDO DO SEMINÁRIO

“AS PSICOSES” DE JACQUES LACANReuniões sistemáticas de trabalho, que estão acontecendo ao longo do ano,para estudo do Seminário “As Psicoses”. Esse estudo envolve toda a insti-tuição, inspirando também seus eventos.Coordenação: Eda Tavares, Maria Lúcia Müller Stein e Otávio NunesQuintas-feiras, 21h, reuniões quinzenais, gratuitas e abertas aos interessa-dos.

SEMINÁRIOS

A TOPOLOGIA NA CLÍNICA DA NEUROSE E DA PSICOSECoordenação: Ligia VíctoraSexta-feira, 18h15min, quinzenal.

CLÍNICA PSICANALÍTICA NA CONTEMPORANEIDADECoordenação: Rosane RamalhoSegunda-feira, 20h30min, mensal

O DIVÃ E A TELACoordenação: Enéas de Souza e Robson de Freitas PereiraSexta-feira, 19h, mensal.

OS VINTE CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE LACANCoordenação: Alfredo JerusalinskyQuarta-feira, 20h30min, quinzenal (1a e 3a quartas-feiras do mês).

SEMINÁRIOS RSI E SINTHOMA: CONSTITUIÇÃO E CORTE DO NÓCoordenação: Adão CostaSegunda-feira, 10h, semanal.

A PSICANÁLISE NA CLÍNICA COM CRIANÇAS Coordenação: Alfredo Jerusalinsky Bimensal, em Buenos Aires, Ar.

A PSICOSSOMÁTICA NA INTERDISCIPLINA E TRANSDISCIPLINACoordenação: Jaime BettsSábado, 10h, mensal, em Novo Hamburgo, RS.

DE FREUD A LACAN – CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE Coordenação: Alfredo Jerusalinsky Bimensal, em Belém, Pará.

NOVAS BATALHAS ENTRE A PSICANÁLISE E O POSITIVISMO Coordenação: Alfredo Jerusalinsky

Sábado, 9h, mensal, dias 15/08, 12/09, 17/10 e 14/11, em São Paulo,SP.

FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA PSICANÁLISECoordenação: psicanalistas da APPOA e da AEP (Associação Espa-

ço Psicanalítico)Último sábado de cada mês, de 9-12h e 14-17h. Em Ijuí, RS

GRUPOS TEMÁTICOS

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITOCoordenação: Carmen BackesSexta-feira,10h30min, quinzenal.

Page 4: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

7C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

ADOLESCÊNCIA, EXPERIÊNCIA E LAÇO SOCIAL Coordenação: Roselene Gurski Sexta-feira, 12h30min, quinzenal.

ADOLESCÊNCIA, VIOLÊNCIA E LEI Coordenação: Márcia Menezes Ribeiro e Norton Cezar da Rosa Jr. Sexta-feira, 14h30min, mensal.

AS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTECoordenação: Gerson Smiech PinhoSexta-feira, 16h15min, quinzenal

CLÍNICA PSICANALÍTICA: ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAISCoordenação: Carmen BackesSexta-feira, 14h30min, quinzenal.

FREUD E LACAN: A CLÍNICA PSICANALÍTICA E O SUJEITO CONTEMPORÂNEO Coordenação: Maria Ângela Brasil e Eduardo Mendes Ribeiro Segunda-feira, 10h30min, quinzenal.

HISTÓRIAS DA PSICANÁLISECoordenação: Ana Maria Gageiro e Maria Lúcia Müller SteinSegunda-feira, 18h15min, quinzenal.

LIDERANÇA E PODER NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: UMA LEITURAPSICANALÍTICA

Coordenação: Rosana CoelhoSexta-feira, 19h30min, quinzenal.

LITERATURA E PSICANÁLISE Coordenação: Marieta Madeira Rodrigues Quarta-feira, 14h, mensal (2a quarta-feira do mês). Início no 2° semestre: 12/08.

O BEBÊ E OS PROCESSOS DE ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA – DO LAÇOPARENTAL AO LAÇO SOCIAL

Coordenação: Ana Paula Melchiors Stahlschmidt e Mercês GhazziTerça-feira, 10h, quinzenal.

O SUJEITO NAS FRONTEIRAS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE ABOR-DAGENS PSICANALÍTICAS E BIOLOGIZANTES Coordenação: Marcelo Victor e Roselene Gurski Sexta-feira, 12h30min, quinzenal.

PSICANÁLISE E MÚSICA Coordenação: Heloisa Marcon Quinta-feira, 19h, quinzenal.

ANALISAR UMA CRIANÇA: CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA E CLÍNICA DA IN-FÂNCIA

Coordenação: Mercês Ghazzi e Siloé ReySábado, 10h, quinzenal, em Osório, RS.

ADOLESCÊNCIA: ENTRE A CLÍNICA, AS INSTITUIÇÕES E OS SINTOMASSOCIAIS Coordenação: Ângela Lângaro Becker e Ieda Prates da Silva Sábado, 10h, mensal, em Novo Hamburgo, RS.

A PSICANÁLISE, A INFÂNCIA E AS INSTITUIÇÕES Coordenação: Ieda Prates da Silva e Larissa Costa B. Scherer Terça-feira, 19h30min, quinzenal, em Novo Hamburgo, RS.

AS ESTRUTURAS CLÍNICAS NA PSICANÁLISE LACANIANACoordenação: Marianne Stolzmann Mendes RibeiroData e horário a confirmar, quinzenal, Novo Hamburgo, RS

Page 5: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

9C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

CLÍNICA PSICANALÍTICA DAS PSICOSES Coordenação: Rosane Ramalho Terça-feira, 15h, quinzenal, no Rio de Janeiro, RJ.

COMO NASCE UM SUJEITO? A INFÂNCIA EM SEUS PRIMÓRDIOS Coordenação: Simone Mädke Brenner Quinta-feira, 19h30min, mensal, em Novo Hamburgo, RS. (2a quinta-feira do mês).

ESPECIFICIDADES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA NO CAMPO DA SAÚDEMENTAL

Coordenação: Volnei DassolerQuarta-feira, 18h30min, quinzenal, em Santa Maria, RS.

INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE – CONCEITOS FUNDAMENTAISCoordenação: Walter CruzSegunda-feira, 19h, quinzenal, em Parnaíba, Piauí.

PROBLEMAS DE CLÍNICA PSICANALÍTICA Coordenação: Alfredo Jerusalinsky Sábado, 17h30min, mensal, em São Paulo (3º sábado do mês).

GRUPOS TEXTUAIS

GRUPO DE ESTUDOS SOBRE O LIVRO LACAN E A FILOSOFIA, DE ALAINJURANVILLE Coordenação: Aidê Ferreira Deconte e Sonia Mara Moreira Ogiba Terça-feira, 18h, quinzenal.

MOMENTO DE LER: Seminário XV de Lacan – Ato analíticoCoordenação: Maria Auxiliadora SüdbrackSexta-feira, 16h, semanal. Início: 06/06

SEMINÁRIO I DE JACQUES LACAN - OS ESCRITOS TÉCNICOS DE FREUDCoordenação: Norton Cezar da Rosa JrSexta-feira, 10h, quinzenal.

SEMINÁRIO XXIV DE LACAN - “O NÃO SABIDO QUE SABE DE UMAEQUIVOCAÇÃO” OU “O INSUCESSO DO INCONSCIENTE É O AMOR”

Coordenação: Maria Auxiliadora SüdbrackQuinta-feira, 14h, quinzenal.

ESCRITOS, DE J. LACANCoordenação: Luis Fernando Lofrano de OliveiraTerça-feira, quinzenal. Em Santa Maria, RS.

GRUPO DE ESTUDOS SOBRE O SEMINÁRIO X - A ANGÚSTIA DE LACANCoordenação: Sidnei GoldbergQuarta-feira, 20h30min, quinzenal, em São Paulo, SP.

O SEMINÁRIO III DE LACAN – AS PSICOSESCoordenação: Charles Elias LangQuinta-feira, 19h, semanal, em Maceió, Al.

ATIVIDADES EM CONJUNTO COM O INSTITUTO APPOA –CLÍNICA, INTERVENÇÃO E PESQUISA EM PSICANÁLISE

SEMINÁRIOS

CLINICANDOCoordenação: Ana CostaQuarta-feira, 20h, quinzenal. (2a e 4a semana do mês)

Page 6: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

11C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

DESEJO E INSTITUIÇÃO Coordenação: Eduardo Mendes Ribeiro e Simone Paulon Terça-feira, 14h, quinzenal.

Atividade vinculada ao Instituto de Psicologia da UFRGS.

SEMINÁRIO: A ÉTICA DA PSICANÁLISECoordenação: Maria Cristina Poli e Simone Moschen RickesQuarta-feira, 14h30min, quinzenal (1a e 3a quartas-feiras do mês).

GRUPOS TEMÁTICOS

OS DISPOSITIVOS CLÍNICOS NAS SITUAÇÕES SOCIAIS CRÍTICAS Coordenação: Jorge Broide Sábado, 10h, mensal.

NÚCLEOS DE ESTUDO

NÚCLEO PASSAGENS – SUJEITO E CULTURAResponsáveis: Ana Costa, Edson Sousa e Lucia Pereira

SEMINÁRIO – A FICÇÃO NA PSICANÁLISE: FREUD, LACAN E OS ESCRI-TORES. Coordenação: Lucia Serrano Pereira Data e horário a confirmar, mensal, início no segundo semestre.

NÚCLEO DAS PSICOSESResponsáveis: Ester Trevisan, Maria Ângela Bulhões, Mário Corso,Nilson Sibemberg e Rosane Ramalho

APRESENTAÇÃO DE PACIENTES (com Alfredo Jerusalinsky)Atividade a ser desenvolvida em conjunto com o Cais Mental CentroDatas e horários a confirmar.

NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇASSábado, 10h, reuniões mensais.Responsáveis: Alfredo Jerusalinsky, Beatriz Kauri dos Reis, Eda Tavares,Ieda Prates da Silva, Gerson Pinho, Marta Pedó, Siloé Rey e SimoneMoschen Rickes.

OFICINAS

OFICINA DE TOPOLOGIACoordenação: Ligia VíctoraSábado, 10h, semestral.

EXERCÍCIOS CLÍNICOS

Atividade marcada em função da proposição de algum membro da Institui-ção, e que ocorre aos sábados pela manhã.Datas: 25/04 e 07/11.

LETRA VIVA

Atividade proposta pela Comissão da Biblioteca, com leitura e discussão detrabalhos elaborados por colegas da APPOA. Acontecerá aos sábados pelamanhã, datas a confirmar.

JORNADAS E EVENTOS MAIORES

JORNADA DO PERCURSO DE ESCOLAData: 8 de agostoLocal: APPOA

Page 7: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

13C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

ROBERTO HARARI (1943 – 2009)

É com pesar que, a APPOA, comunica a seus associados o faleci-mento de Roberto Harari, ocorrido em 30 de junho. Psicanalista, doutor empsicologia, fundador e ex-presidente da Mayéutica Institución PsicoanalíticaBuenos Aires e da Maiêutica de Florianópolis.

Harari dedicou sua vida ao estudo da obra de Freud e de Lacan, co-mentando, interpretando através de suas aulas, conferências, dos seus livros publicados, procurando recolocar uma ampla gama de questões atinentesà psicanálise e a sua prática.

Roberto Harari chegou a Porto Alegre em 1976 para, mensalmente,ministrar aulas a um pequeno grupo de interessados em psicanálise freud-lacaniana, pois que em nossa cidade Lacan era desconhecido pelos psica-nalistas e Freud era estudado pelo enfoque Kleiniano.

Seu ensino foi estendendo-se e se estruturando, produzindo efeitosque resultaram na Fundação da Maiêutica Porto Alegre – Instituição Psica-nalítica (1980) onde continuou seus seminários até 1988.

Roberto Harari era discreto, elegante no trato, ao mesmo tempo ami-go e incentivador do ato da escrita pelos seus alunos. Marcou com suapalavra e seu modo de ser, um lugar aberto ao desejo de analista, um lugarde ética na experiência clínica psicanalítica. Sua leitura da obra freudiana elacaniana era rigorosa e detalhista, o que não o impedia de fazer articula-ções inovadoras de grande fineza e pertinência. Partindo do ensino dos mes-tres e de sua prática clínica Harari produziu uma reescritura, conforme elemesmo diz ao comentar o texto de Lacan “L’Etourdit”: ...”o que se seguedeve se inscrever na conta de minha reescritura do texto”.

Entre os livros que escreveu destacam-se os primeiros “Textura yAbordaje del Inconsciente”, “Discorrer a Psicoanalise”, que obteve o prêmiomaior do gênero ensaio pela municipalidade de Buenos Aires (1986), poste-riormente traduzido em português. Também, em português, estão: “Uma In-trodução aos Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, “O Seminá-rio A Angustia de Lacan”, “O que acontece no Ato Analítico?”, “Como se

JORNADA DO PERCURSO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇASData: 12 de setembroLocal: APPOA

JORNADA CLÍNICAData: 17 e 18 de outubroLocal: Centro de Eventos Plaza São Rafael

PERCURSO DE ESCOLA

TURMA: IXSexto semestre: Temas cruciais da psicanálise; história e formação

TURMA:XSegundo semestre: Édipo e castração

PERCURSO EM PSICANÁLISE DE CRIANÇAS Seminário compartilhado com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud

TURMA: IIIPrimeiro e segundo semestres: Metapsicologia do sujeito infantil I e II; Cons-tituição do sujeito psíquico de acordo com as diferentes escolas;Metapsicologia do sujeito infantil III e IV.

Page 8: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

NOTÍCIAS

15C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

DE UMA CLÍNICA QUE NÃO SERIA DO SEMBLANTE

Ana Costa

Ajornada “Psicanálise e Intervenções Sociais” traz a marca de umaprimeira apresentação pública do Instituto APPOA. Assim, gostariade situar a especificidade do esforço da Associação Psicanalítica de

Porto Alegre ao propor a abertura deste lugar que denominamos “Instituto”.Essa especificidade diz respeito a duas questões: por um lado, é precisoreconhecer as iniciativas que nos precederam e não ignorar as contradiçõese problemas que acompanham a nomeação “Instituto” dentro da história dapsicanálise. Por outro lado, na esteira de discordâncias em relação aos fun-damentos das experiências precedentes, a necessidade de inventar um ou-tro dispositivo a partir de nosso campo de experiência. Para que se estabe-leça, neste momento, as balizas de onde partimos, retomarei rapidamentealguns trânsitos por essa história, bem como indicarei algumas das referên-cias que propomos.

UM POUCO DE HISTÓRIAÉ inevitável lembrar aqui do Instituto Psicanalítico de Berlim, criado

em 1920, que ainda trazia a marca de alguns dos primeiros fundadores deinstituições psicanalíticas. Foi ali que se estabeleceu a primeira experiênciade uma escola de formação de psicanalistas, ao mesmo tempo em que seabria a alternativa do atendimento psicanalítico para a população: tanto gra-tuitamente, quanto conforme a renda. Dessa primeira experiência partemdois vícios que acompanham muitas instituições ao longo de toda essa his-tória. De um lado, o controle e dogmatização da prática, submetida aospoderes institucionais de reconhecimento do analista. De outro lado, a ofertade uma clínica-escola, onde praticantes se iniciariam atendendo pessoasque não pudessem pagar no consultório particular. Essa duplicidade equívo-ca ainda tem ressonâncias em nosso tempo, no surgimento de instituiçõesque propõem uma psicanálise “para pobres”. Que espécie de proposição de

chama James Joyce?”, “Porque não há relação sexual?” e “Dissipações doInconsciente”.

Roberto Harari deixa a sua marca inovadora na transmissão da psica-nálise e, mais recentemente, na fundação e no incentivo da Convergencia,movimento lacaniano pela psicanálise freudiana do qual a APPOA é uma dasinstituições convocantes.

COSTA, A. De uma clínica...

Page 9: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

17C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Ou seja, uma clínica na qual a demanda de atendimento não parte necessa-riamente do indivíduo, também na qual o lugar do sujeito se confunde com oexcluído, ou com o desamparado. Ela se estabelece em instituições do Es-tado, as quais tentam responder – muitas vezes – a partir de uma suplênciaao lugar da família. Essa questão requer considerações bastante comple-xas, na medida em que são demandas que encontram as bordas discursivasque antes mencionava. Na esteira de preocupações político/institucionais,percebe-se que não é suficiente atender a essa demanda suprindo somentenecessidades básicas, aquelas que se ocupariam do amparo do corpo, comose este fosse somente biológico; ou mesmo somente considerando o cha-mado trabalho “psíquico”, como se dele pudesse ser dispensado o corpo. Háuma intricada rede de relações entre os suportes corporais e o lugar dosujeito. Elas estão na base das diferenciações primárias, tão bem situadaspor Freud num texto bem conhecido, onde o autor aborda a função psíquicado registro da negação. Assim, torna-se necessário repensar os pressupos-tos que temos em relação ao corpo. Nossa forma de pensá-lo toma por baseuma ciência, que se crê ter franqueado os limites de nossa natureza. Ouseja, uma ciência que pensa dispensar o sujeito. Lembrarei aqui alguns fun-damentos psicanalíticos, na medida em que estes nos permitem propor umasérie de questões que vão interessar sobremaneira à clínica de que estamostratando.

CORPO E DIFERENCIAÇÃO: AS CONDIÇÕESDE PRODUÇÃO DOS LAÇOS SOCIAIS

Situando rapidamente, Freud trata, no texto sobre a negação, dascondições de representação, a partir das quais se dá a circunscrição doslimites do corpo. Ali, situa-se um ponto de partida, um recalcamento originá-rio, no qual se estabelece um “dentro” e um “fora” do corpo, como relaçõespautadas pelas referências prazer/desprazer. A criança constitui suas pri-meiras diferenciações na afirmação de um “eu de prazer”, no qual o desprazer(mesmo quando situado no próprio corpo) e o “fora” – o não-eu – se confun-dem. Vemos em quê isso nos interessa: são balizas primárias a partir das

experiência é essa? Que formação engendra? Reconhecemos nessas pro-posições a mesma via social de exclusão que marca tantos outros laços.

Pois bem, a ruptura de Lacan com a IPA incide diretamente nessasduas vias: seja no que diz respeito à submissão e dogmatização da prática,ou seja, isso em que se tornou a análise didática. Seja na referência à ques-tão do pagamento, ou mesmo a restrição da psicanálise ao consultório. Delá para cá, tem havido uma grande abertura no campo da experiência e ospsicanalistas de formação lacaniana têm se inserido – cada vez mais – naschamadas práticas públicas (saúde, justiça, assistência), no ensino univer-sitário, ou na cultura, de uma forma mais ampla.

A abertura do Instituto APPOA, como um lugar que se dirige ao esta-belecimento de práticas interinstitucionais, busca situar-se em relação aoque faz borda nos discursos. Nesse sentido, a proposição do Instituto nãoestá situada para o “interior”1 da psicanálise, no interesse exclusivo da for-mação. Busca, sim, fóruns de debate e intervenção nos quais as práticasdiscursivas incidem em decisões e políticas que afetam diretamente o sujei-to que nos concerne. Busca levar à consideração das práticas sociais, sujei-to e sintoma – tal qual a psicanálise os propõe – de maneira que a singulari-dade do sujeito em seu ato possa ter lugar, furando o dogmatismo das con-cepções de indivíduo e massa. Estes termos, como sabemos, são correlatos,não constituindo singularidades. Assim, como é possível perceber, uma dasquestões por onde caminharemos diz respeito à relação das práticasinstitucionais com o estabelecimento de políticas: é nelas que pode ser situ-ada a relação entre sujeito e ato. Para abordar esta correlação sujeito/atocomo rompendo com o fechamento indivíduo/massa, a psicanálise propõepressupostos que não estão evidenciados no que corriqueiramente se pensacomo política.

Esse tema interessa na consideração de alguns fundamentos queestão em causa numa clínica que tenta dar conta de uma demanda social.

1 Cabe lembrar aqui a referência moebiana que sempre está em causa em nossa clínica.

COSTA, A. De uma clínica...

Page 10: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

19C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

do sacrifício como algo da ordem da nomeação do excluído, situando ali oretorno e encarnação de um gozo que havia sido colocado fora de circulação.A dimensão do retorno é importante de ser sublinhada. Muitas vezes a injúriavai cumprir essa função. A injúria implica numa função de borda entre um realque insiste e uma interpelação ao dar um nome à coisa.

Michel de Certeau constrói uma alegoria utilizando-se de uma palavraque compõe o relato de um conhecido caso de psicose – o “caso Schreber”.Como sabemos, a produção psicótica produz uma forma peculiar de lingua-gem que precisa ser acolhida e considerada. No caso em questão, Certeautoma a palavra alemã Luder, que Schreber situa na sua “língua fundamental”,na medida em que ela lhe permite construir uma espécie de referência àdecomposição do corpo simbólico. O que lhe interessa é o efeito de verdadeque tem para Schreber essa palavra, mas de uma verdade que não provocaengano e, nesse sentido, é suporte da transformação de seu corpo. É assimque Certeau a propõe como uma palavra performativa. Luder, para Schreber,teria funcionado como o nome próprio funciona na nossa sociedade. É olugar do sem sentido e do vazio, que nada significa, mas que confere umasignificação ao nomeado.

Aqui se colocam termos delicados no encontro de diferentes discur-sos. Para a psicanálise, Luder é sim a nomeação de um gozo enigmáticoque vem do Outro – deste Outro que tem efeito interpelativo para Schreber.No entanto, não é a “causa” de sua psicose. A psicanálise propõe suspen-der nossa busca pela função da causa. E, de uma forma completamenteavessa a tudo o que nos orienta no campo dos valores fálicos, propõe queSchreber precisa ‘fazer com’, fazer algo com isso que pensaríamos ser suainjúria. Não é que Schreber despreze os valores da civilização. Não: elepede que seja reconhecido que o nome singular de seu gozo é Luder –porcaria, prostituta de Deus. A psicanálise vai ainda mais longe nisso: Freudpropõe que toda a dinâmica produzida pelas representações movidas poressa palavra – os delírios e alucinações – são uma tentativa de cura.

Este exemplo nos traz uma série de questionamentos na forma comonormalmente se organizam as diferenciações, para constituição de laços –

quais construímos nossas relações ao corpo, ao outro e à realidade. Numsegundo tempo, uma segunda negação atinente ao juízo de existência, re-conhece ou não o traço de permanência do objeto prazeroso. A marca dessaconstituição preliminar do campo representacional insiste numa ampla gamade construções tardias do sujeito.

Apesar da direção desse funcionamento buscar diferenciações – iden-tidades, diferenças – a relação ao corpo traz a persistência de uma capturanaquilo que retorna como indiferenciado e que implica algo que é vivido comoincestuoso. Algumas disciplinas, como a antropologia, se ocuparam e seocupam da relação entre cultura e interdição do incesto. Freud, a sua manei-ra, abordou isso em “Totem e Tabu”. Ali, o vemos trabalhar com o tema daindiferenciação situado nas representações que pode tomar – por exemplo –a palavra ‘sagrado’. Dessas referências podemos reconhecer que algo per-siste ao longo do tempo e em diferentes organizações sociais, compondo oelemento social do interdito. Esse elemento tem importância nas represen-tações coletivas do corpo, inserindo as formas culturais em que o ‘sagrado’se expressa. Situa-se ali um termo que traz em si as significações de puro,intocado e, ao mesmo tempo, impuro. Originalmente, nas sociedades tribaisdesignava o interdito ao toque. O que ficava interditado era tanto o elevado –o chefe, ou o sacerdote – quanto o excluído, como a mulher menstruada, porexemplo. Pode-se reconhecer, na especificidade dessa busca de diferencia-ção, a relação com o excluído do corpo, ou mesmo do corpo excluído. Ouseja: o tema da diferenciação/indiferenciação – de onde deriva toda referên-cia primária ao incesto – situa seus elementos tanto na palavra, quanto nocorpo. É com eles que se constrói a pregnância do imaginário nas constitui-ções fantasmáticas.

Esses elementos constituem invariantes que vão acompanhar questõesmais complexas. Em termos sociais, a relação entre a interdição e o sagradorepercute nas dimensões de sacrifícios, cujo sítio se faz presente tanto empequenos sintomas do sujeito, quanto em expressões grupais. Apesar de nãoevidente, é algo insistente ao longo do tempo e em diferentes culturas. No queconcerne à constituição de laços institucionais pode-se pensar na dimensão

COSTA, A. De uma clínica...

Page 11: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

21C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

e de investiduras fálicas, uma figuração do mal. Ambos situam, nos circuitosinstituídos, nas representações coletivas, formas de inscrição que denotama inclusão do corpo na linguagem. São, portanto, excedentes pulsionais quecumprem uma função na economia das instituições. Se pensarmos nos ter-mos freudianos, propostos em “Totem e tabu”, constituiriam dimensões do‘sagrado’: do que instaura o sacrifício do corpo no coletivo.

DISCURSO E SUJEITOUma outra proposição importante de lembrar diz respeito ao tema dos

discursos, que foi abordada por Lacan, como se sabe, a partir de um diálogocom Foucault. Neste diálogo ele ficou interessado em pensar a posição domestre no discurso, propondo, a partir daí, quatro estruturas discursivas comodeterminantes da posição do sujeito no campo da linguagem. Não é certoque cada discurso esteja situado no lugar onde sua designação se coloca.Por exemplo, não é certo que o discurso universitário esteja na universidade,pode estar em outras instituições. O discurso da histérica, por exemplo, nãoestá colado à sintomática histérica. Os discursos não estão colados aolugar de onde Lacan se inspirou para nomeá-los. E, na produção dos discur-sos, vamos encontrar distintas posições do sujeito.

O tema do sujeito para a psicanálise toma sua referência aosignificante, com sua produção no lugar mesmo da repetição – onde o sujei-to apresenta sua condição singular de alienação à linguagem. Essa produ-ção significante tem toda importância, na medida em que enlaça simbólico ereal: significante e ato (que, por outro lado, são vertentes em causa na repe-tição). Nessa questão encontramos uma proposição que Lacan desenvolveno Seminário sobre os quatro conceitos fundamentais, onde diz que o in-consciente não é ôntico, é ético. A menção à ontologia diz respeito a que osujeito sempre está tentando capturar uma apreensão qualquer de seu ser.O aspecto extremamente fugaz e evanescente, em que implicam as deter-minações da linguagem, fazem com que o sujeito tenha essa inclinação portentar estabelecer algo de fixado. No entanto, se conseguimos pensar noque nos determina, vamos chegar a esse estatuto ético, no sentido em que

esses de que dependemos na construção de nossas instituições. Eles im-plicam na produção de um ‘dentro’ e um ‘fora’. Os mecanismos origináriosresponsáveis pela constituição dessas diferenciações foram analisados porFreud, como já apontamos anteriormente. Ele os propôs a partir da constru-ção da negação e podemos reconhecer que esse mecanismo tem incidênci-as importantes nas representações coletivas. No juízo de existência, porexemplo, a incidência da negação se dá com base no “sistema de crenças”,num circuito representacional compartilhado, se sobrepondo como uma basemoral, instituída a partir de valores estabelecidos pelo sistema. Trata-se,portanto, da transição do ‘bom’ ou ‘mau’ (na constituição do dentro/fora apartir do prazer/desprazer) para ‘o bem’ ou ‘o mal’.

Com estes elementos propomos uma distinção específica entre cren-ça e saber. Do lado deste último teremos as referências ao inconsciente,naquilo que do pulsional busca expressão. A colocação lacaniana a propósi-to do inconsciente como um saber que se constitui como insabido sublinhaessa questão. A desnaturação do corpo pela linguagem não implica numfuncionamento ‘desorientado’. O que dirige esse funcionamento é a insistên-cia de uma repetição, como inscrição mesma do movimento pulsional. Osaber, ali, fica regido por uma gramática pulsional que, ao longo da vida,busca sua representação por meio da fantasia. Já do lado da crença, encon-traremos as condições de inscrição coletiva de uma representação, no lugarem que se apresenta um ‘furo’ no saber. Assim, no lugar do furo no saber, asinstituições organizam seus sistemas de crenças e investiduras fálicas. Pormeio delas constituem-se ‘o bom de dentro’ e ‘o mau de fora’, ou mesmo oBem e o Mal.

Os temas da ‘exclusão’ e da ‘injúria’ podem ser pensados a partirdesses dois registros constituídos pela negação. Poderíamos propor que o‘excluído’ é aquele que fica fora dos circuitos instituídos, ‘fora’, portanto, dequalquer acesso ao saber em nome próprio. O que ‘se sabe’ estaria sempredo lado do Outro, e aí permaneceria como um gozo inacessível. Já o injuria-do padece do retorno de um significante que representa – coletivamente –um excesso do saber. Ele encarna, em um determinado sistema de crenças

COSTA, A. De uma clínica...

Page 12: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

23C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Lacan, J. O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.

_______ O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 1992.

_______ O seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1988.

_______ O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2007.

ele se situa por relação à ética de cada discurso. Isso está dentro do queabordamos anteriormente: nossos atos são inscritos discursivamente.

Como pensar nesse estatuto ético proposto por Lacan? Podemos si-tuar a ética – de uma maneira aproximativa – como o que dirige os atos dosujeito. A construção da referência ao ser é determinada pela posição numdiscurso: isso que faz a ética de nossos atos determinando nossas esco-lhas. E em que base se determinam nossas escolhas? Lidamos, aqui, como que faz limite, que implica o impossível e que, por outro lado, é o que abreo campo das possibilidades. A ética se determina pelo que é impossível emcada discurso. O impossível não se confunde com a moral. Tentamos tradu-zi-lo para o campo da moral, na medida em que funcionamos pela encarnaçãono Outro de atributos e censuras. A ética é a linha traçada pelo que amarra osujeito ao discurso. Nesse sentido traça a borda do impossível. A partir daí osujeito precisa dar as razões, precisa preencher o vazio, criado por essaborda. Que essas razões se situem nas invenções de sintomas, a partir dosrestos catados do lixo da civilização, abre um campo clínico de difícil traba-lho, na medida em que ele não pode ser prescritivo, como o é a moral e alegislação. É aqui que se constitui um trabalho necessário de produção deuma temporalidade que se inscreve no a posteriori da experiência.

Passamos, aqui, por balizas que nos parecem essenciais à funda-mentação de uma clínica, que – como colocamos no início deste trabalho –encontra rapidamente as bordas dos discursos. É nesse sítio de borda quemuitas vezes se encontra injúria e exclusão, componentes dos limites doinstituído. “De uma clínica que não seria do semblante” encontraria essesítio do Real como impossível, saindo do registro imaginário da impotência.Essa expressão pode tornar-se um dos motores de sua potência de cria-ção.

Referências bibliográficas:Certeau, M. Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Paris : Gallimard,

2002.Freud, S. Totem y tabu. In: Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972.________ La negación. Op. Cit.

COSTA, A. De uma clínica...

Page 13: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

25C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Com o Código de Menores a adoção dividia-se em dois tipos: a sim-ples, que não assegurava direitos de filiação e patrimoniais à criança; e aplena, que assegurava os mesmo direitos que ao filho biológico com paterni-dade reconhecida. As formalidades para a adoção plena eram tão comple-xas que eram deixadas para mais tarde, num mais tarde que tardava verda-deiramente a chegar. Nestas condições, as crianças cresciam no seio dafamília “adotiva” na condição de agregados ou criados.

Desde o advento do ECA (07/1990) a adoção é ato privativo do juiz,tem caráter irrevogável e irretratável, e confere à criança a condição defilho para todos os efeitos legais. A adoção por escritura pública não éadmitida.

Voltemos então ao primeiro ano de trabalho. Recebi muitos proces-sos – e a palavra “muitos” talvez aqui se imponha pela crueza da experiência– para avaliação com a seguinte demanda: famílias procuravam o juizadopara “devolver” o adolescente que estivera sob sua responsabilidade desde onascimento, porque o convívio tornara-se insuportável por um sem númerode problemas, nada incomuns da passagem adolescente. Para algumas si-tuações em que a questão parecia ser mais de auxiliar no andamento daresolução de conflitos entre pais e filhos, redimensionando os lugares, foisuficiente acolher as queixas mútuas para encaminhar aos colegas, deixan-do à seara da justiça apenas o que lhe cabia em termos legais, como, porexemplo, a formalização da adoção.

Outras situações mais dramáticas resultaram no abrigamento dosadolescentes por absoluta falta de alternativas. Nestas situações em que foiimpossível a manutenção do convívio do adolescente na família em que cres-cera, um argumento se repetia no discurso dos adultos: estavam decepcio-nados, ele ou ela tornara-se muito diferente daquele que criaram desde bebêe que isso sem dúvida era efeito do “sangue ruim da família” que agora semanifestava. Logo, sendo responsabilidade da carga genética que ele ou elatrazia nas veias sem nem mesmo saber, ninguém tinha responsabilidades,que se ocupasse dele o Estado ou que se procurasse a família biológica.Poderia ser uma opção a considerar, sem dúvida.

DIÁLOGOS COM O DIREITO1

Marcia H. de Menezes Ribeiro

Trabalho em uma equipe técnica num JRIJ (Juizado Regional da Infân-cia e Juventude), que abarca uma região com 23 Comarcas e atende81 municípios. Esta equipe responde pelas demandas de avaliação

em processos criminais e cíveis que envolvam crianças, adolescentes e suasfamílias.

Vou trazer para discussão uma experiência de acompanhamento deadoções de crianças (com mais de quatro anos) com trajetória de abrigamento,que uma vertente do campo psicojurídico convencionou chamar de “adoçãotardia”.

Para situar como nessa equipe conduzimos essa experiência hoje,quero levá-los à época que comecei no Juizado da infância para compartilharalgumas passagens que influenciaram nosso estilo de trabalho.

Então, em 1997, e a data é importante porque ainda que já estivésse-mos à época com sete anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adoles-cente, recebíamos os desdobramentos do que havia sido o tempo sob vigên-cia do Código de Menores (1979). Foi com o Código de Menores que se criouno Brasil o instituto da adoção semelhante ao que se conhece hoje. Emboraadmitisse ainda adoção de menores, em situação regular, por escritura pú-blica firmada em cartório2 . Maria Luiza Marcírio3 propõe que esta forma deadoção, por escritura pública, fosse resquício do tempo da escravidão.

1Trabalho apresentado na Jornada do Instituto APPOA: “Psicanálise e Intervenções Soci-ais”– Porto Alegre, 26 e 27 de junho 2009.2 A Lei 6.697 de 10 de outubro de 1979, denominada Código de Menores, estabelecia que aadoção simples, de menor em situação irregular, somente se procederia sob intervenção doPoder Judiciário. Com efeito, em se tratando de menor, em situação regular, a adoção, antesdo advento da Lei 8.069/90, que revogou o referido Código de Menores, poderia ser realiza-da por meio de escritura pública, nos termos do art. 375 do Código Civil de 1.9163 MARCÍLIO, M. L. História social da criança abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1998.

RIBEIRO, M. H. DE M. Diálogos com o direito.

Page 14: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

27C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

tência do laço: birras, desafios, cenas de ciúme, desobediências... Enfim,detalhes mais bicudos do laço de amor. Quando a vertente insuportável fala-va alto, a devolução ao abrigo ocorria. Ou, se o peso da responsabilidademoral fosse deveras forte, a criança era enviada para alguém das relações deamizade ou mesmo da família, evitando o retorno à instituição.

Zezinho, um menino de quase quatro anos, que vivia no abrigo desdeo primeiro ano de vida, era o segundo de três irmãos de um casal deandarilhos, cuja embriaguez fizera esquecer dos filhos mais de uma vez noslugares mais insólitos da cidade. Embora o casal fosse alvo de intervençõesdos órgãos de assistência, o amor ao álcool se impunha a eles como escra-vidão. A embriaguez transformava os filhos em personagens coadjuvantes,cuja ausência por vezes nem percebiam.

Zezinho e os irmãos freqüentavam separadamente a casa de trêsfamílias e a idéia era avaliar se esta acolhida significava desejo de adotá-los. O casal que recebia Zezinho para os finais de semana o encontrarapela primeira vez quando fora ao abrigo para escolher uma criança parapassar o Natal; para “animar a festa” que só tinha adultos. Seis meseshaviam se passado desde aquela primeira visita quando os encontrei. Ocasal não tinha filhos biológicos, tampouco diagnóstico de infertilidade. Elaacalentava o sonho de engravidar. Ele se imaginava pai de Zezinho. Eladizia que ele não parecia em nada com o filho que sonhava, mas para nãodecepcionar o marido pensara adotá-lo e, “afinal – dizia ela – eu me dis-traio com ele, o tempo passa mais rápido”. Zezinho produzia sintomas:abria o portão e saía para rua para caminhar, deixando a guardiã atônita,que identificava este comportamento com aquele dos pais andarilhos.Ela falava e ele parecia surdo. Manifestações de desagrado ou desafiovindas de Zezinho produziam interpretações dantescas: um dia ela orepreende e ele toma de uma faca de mesa num gesto ameaçador, olaço se desfaz na fantasia de parricídio, em que Zezinho crescido osmataria a facadas enquanto estivessem dormindo. Este discurso queantecipa o futuro sinistro de Zezinho é termômetro da relação que ali seproduzia e baliza as intervenções subseqüentes. As visitas, que já vinham

Havia uma recusa consistente dos adultos para reconhecerem suaimplicação naquela história, no laço construído e que resultara no “adoles-cente problema”. Passada a estupefação provocada pelo insólito encontrocom a crueza do desamparo, do abandono, restaram muitas perguntas quehoje posso reduzir a duas: qual a origem disso e se havia algo em comum,além do ato de entrega, nestas “devoluções”.

Com aqueles que puderam, retomamos a história e identificamos queo acolhimento daqueles bebês, tornados adolescentes, fora movido predomi-nantemente por compaixão caridosa, pela situação de miséria/abandono quese encontravam com suas famílias de origem. Não raro os guardiões sedescreviam como pessoas que haviam agido com intensa dedicação e abne-gação, “dando tudo de si” para suprir as carências das crianças. E o adoles-cente ingrato que ele se transformara era muito diferente da criança obedien-te do passado. A lógica que possibilitava a “devolução” do adolescente, einsisto em não usar a palavra filho porque como bem lembrou uma dessaspessoas, “a gente devolve uma criança, mas não devolve um filho”, revela queo laço que ali pôde se produzir se sustentava na justa medida do retorno daimagem da “criança feliz”. Desfeita imagem desfazia-se a liga.

Contemporânea a essas “devoluções” era a prática do abrigo de auto-rizar pessoas caridosas da comunidade a levar crianças abrigadas para suascasas para os finais de semana ou em datas comemorativas, como Natal,dia da criança... Essa prática, diziam, encontrava amparo em artigo do ECA:toda criança tem direito a vida familiar, social e comunitária. A prática causa-va uma série de problemas às crianças, e destaco, ao que interessa nestetrabalho, a reprodução desta lógica de acolhimento, por compaixão caridosa,que inscreve aquele que recebe a graça numa posição de devedor eterna-mente cobrado. Ao término dos finais de semana idílicos as crianças eramdevolvidas ao abrigo onde passavam o restante da semana, às vezes à espe-ra do próximo encontro. Esse circuito de passeio/devolução se repetia atéque a família desaparecia ou se sentia moralmente responsável pela criançae a levava para sua casa por tempo indeterminado. Não raro, passado otempo do encantamento recíproco, iniciava-se o tempo de testes de consis-

RIBEIRO, M. H. DE M. Diálogos com o direito.

Page 15: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

29C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

mãe, logo não há filho e se não há filho, não há mãe. O bem fundado de umaadoção repousa no desejo de filho, de onde emana a potência que assegurao laço e que permite partilhar esta experiência.

Zezinho e seus pais foram mestres, de cujos ensinamentos sou pro-fundamente grata. Ensinaram um caminho e inauguraram uma experiênciade preparação e acompanhamento de adoção de crianças maiores na equi-pe onde trabalho, conhecido no campo psicojurídico como “adoção tardia”. Oadjetivo “tardio” alimenta o imaginário que haveria um tempo correto paraadotar e estimula uma idéia que, a partir deste ponto em que deixa de ser sóadoção para ser também tardia, adotar seria por altruísmo. Adotar não ésolução para a infância abandonada. Aqueles meninos e meninas que foramdevolvidos são a prova viva que o acolhimento por altruísmo, caridade oupiedade corre o risco de produzir justo o que queria evitar: desamparo, aban-dono, abrigamento.

A letra fria da lei é incapaz de abarcar a complexa arte da construçãodos laços de filiação, cuja delicada arquitetura não aceita atropelos. O diálo-go da Psicanálise com este Direito da infância abre um campo interessantede trabalho ao lembrar que as intervenções no campo humano se produzemno caso a caso, dando voz, tornando visíveis e audíveis questões fundamen-tais que, no intuito de cumprir a lei, a criança, propósito do processo, corre orisco de ficar escondida atrás de enunciados legais.

sendo parcimoniosamente dosadas, foram definitivamente suspensas e opseudoprojeto de adoção terminado.

Zezinho volta a viver em tempo integral no abrigo. Era uma criançaexcepcional, se destacava dos demais pela vivacidade, que andava de mãosdadas com um estilo mais autônomo e voluntarioso. Corajoso, sabia deixarbem claro o que queria. Muito perto, sentia-se seus espinhos. Com ele nadaera simples, emburrava-se e emudecia, era preciso reconstruir de novo, maisuma vez o caminho até ele. Passados alguns meses do retorno ao abrigo háuma determinação judicial para colocá-lo em família substituta.

Uma criança vivendo no abrigo em condições jurídicas para adoçãonão é compreensível para o Direito. A manutenção no abrigo quando há con-dições jurídicas para adoção não raro corre o risco de ser interpretada pelosoperadores do Direito como índice de negligência ou descaso dos profissio-nais responsáveis pela colocação da criança em família substituta.Ocorreque há uma disjunção, nem sempre conciliável, entre o tempo do processo eo tempo subjetivo da criança, e dos adotantes. Ou seja, a autorização judici-al não corresponde necessariamente ao desejo de ser adotado. Da autoriza-ção formal à adoção há um percurso singular, construído na delicada arquite-tura do laço, sem o qual a adoção não é viável, exeqüível, prudente.

Quando Zezinho começou a montar brincadeiras de uma criançamachucada que era levada para casa para ser tratada pela mãe e outrosroteiros similares, começamos a pensar que poderia ser o momento de falarem pai e mãe, em sair do abrigo para “sua” família. Por estas coincidênciasinexplicáveis da vida, recebemos um casal que conhecera Zezinho em visitaao abrigo e queria saber mais dele. Começava ali um trabalho de apresenta-ções, aproximações, passeios e visitas que culminou um ano e meio depoiscom a formalização da adoção de Zezinho pelo casal. Dentre as experiênci-as que tive o privilégio de testemunhar recordo de um momento fundamentalpara todos. Zezinho ouve da mãe, após um episódio de birra, que daquelejeito não dava para continuar, ao que ele responde: “se eu não sou mais teufilhinho tu também não é mais mamãe”. Zezinho, pequeno psicanalista. Oslugares de mãe e de filho são interpendentes, um define o outro. Se não há

RIBEIRO, M. H. DE M. Diálogos com o direito.

Page 16: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

31C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

propostos para berçários e maternais, como essenciais, foi nos dando umretrato da profundidade e complexidade da questão. Educação de bebês?Como são cuidadas estas crianças que estão em plena constituição subje-tiva nos espaços de creches e escolas infantis? O olhar em algum momentorecai sobre o sujeito ou apenas em suas necessidades básicas? Como com-preender os sintomas de bebês e das crianças pequenas, que permanecemem instituições por 10, 12 horas e que, da família, só têm notícias durante osono e no fim de semana? A quem escutar? Família? Cuidadoras? A queOutro estes bebês, estas crianças, estão referidos quando iniciam quadrosde sofrimento e adoecimento precoces? Quais as conseqüências do Outropoder estar encarnado em uma figura que não é o casal parental? De estacriança ser inserida no discurso por um outro não familiar?

O grupo é formado por psicanalistas, médicos e psicólogos, todostrabalhando com a infância, alguns em consultório, outros em instituiçõesgovernamentais e em organizações da sociedade civil. A complexidade dosenfrentamentos na lide diária com as políticas públicas, mesmo interferindodiretamente no trabalho em si, não impossibilita que o psicanalista se faça aípresente. Acreditamos que isto possibilite aberturas para que o singular sur-ja do conjunto e assim cada sujeito possa assumir e reconhecer algo própriono lugar desde o qual emerge o seu discurso, o discurso do seu desejo.

De articuladores de um projeto a proponentes de uma intervenção.A proposta deste grupo segue um fluxo que é o inverso da maioria dos

trabalhos. A partir de um convite para sermos articuladores, ocupamos olugar de questionadores, flexionando as certezas, não aceitando a fixidez dopré-determinado e nos responsabilizando por criar um espaço onde a troca,as discussões sobre o trabalho de escuta dos pedidos lançados ao grupofundam possibilidades de intervir nas políticas públicas, nas instituições,nos programas, fomentando a pesquisa e criando demandas por novos espa-ços da clínica.

Em tempos em que se intensifica no discurso social a urgência depromoção dos direitos das crianças, ainda parece necessário lembrar que,em se tratando, especialmente, da primeira infância, não há proteção sem

PSICANÁLISE E INTERVENÇÃONO CUIDADO À PRIMEIRA INFÂNCIA1

Inajara Erthal AmaralRenata Maria Conte de Almeida

Opresente trabalho contém, como tessitura do texto, discussões equestionamentos de um grupo de trabalho2 a partir de um caminhoque parte do instituto APPOA para as diferentes instituições que se

ocupam da infância. Ou seja, partimos justamente da discussão sobre impli-cação e responsabilidade enquanto psicanalistas preocupados com o lugarque a infância ocupa atualmente.

Traremos hoje algumas inquietações desse grupo de profissionais reu-nidos na linha de trabalho “Cuidado à primeira infância: psicanálise e inter-venção”, do Instituto APPOA. Iniciamos questionando: como tomar o cuida-do à primeira infância, sob a ética da psicanálise, como uma possibilidadede intervenção no social?

Há muito que o sofrimento infantil bate às portas de consultórios,ambulatórios, creches e escolas. Nosso grupo tem como premissa construiruma proposta de intervenção neste universo de creches, escolas infantis eseus berçários. Adentramos na questão específica das creches, enquantogrupo, após a organização de um evento de lançamento de uma campanhanacional em parceria com outras instituições articuladoras do projeto daABRINQ: “A primeira infância vem primeiro”, responsável pelo programa “Cre-che para todas as crianças”. Neste momento inicial surgiram muitas ques-tões: maior número de vagas, construção de novas creches e também comoqualificar o atendimento existente. A discussão de projetos educacionais,

1 Trabalho apresentado na Jornada do Instituto APPOA em 26 e 27 de junho de 2009.2 Luciana Leiria Loureiro, Dorisnei Jornada da Rosa, Glaucia Escalier Braga, Márcia Contri,Verónica Perez, Cláudia Meffazioli, Cláudia Miüller , Eda Estevanel Tavares, Inajara ErthalAmaral e Renata Maria Conte de Almeida.

AMARAL, I. E.; ALMEIDA, R. M. DE. Psicanálise e intervenção...

Page 17: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

33C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Como manter a ética de uma intervenção em psicanálise nos primórdiosdo tempo de subjetivação? Tempo em que o cronológico e o lógico se enla-çam para dar conta da constituição de um sujeito. O cronológico, tempoevolutivo que conta particularmente na primeira infância na medida em que amaturação, o crescimento e o desenvolvimento são cruciais para que seopere a intersecção com o tempo lógico das operações psíquicas fundamen-tais. Tempo em que a palavra ocupa um lugar humanizante. Como tomaressa preocupação com o tempo, ao pensarmos uma intervenção, sem cairna armadilha da urgência, já que a escuta neste tempo da primeira infâncianão desconhece a passagem cronológica, pois o desenvolvimento que estáem marcha obedece tanto ao ritmo biológico quanto ao desejo? Sabemosque as aquisições nesse momento são muito rápidas e as paralisações nodesenvolvimento podem bloquear processos complexos que nem sempresão resgatáveis depois. Temos aqui um dos paradoxos que a questão dotempo na infância nos coloca. Portanto, se faz necessário manter em segun-do plano a pressão do tempo contida no termo intervenção precoce, utilizadopara referir o trabalho com bebês e crianças pequenas. Tal intervenção preci-sa em muitos momentos ser menos interpretativa para poder se sustentarem um ato, que vai do acolhimento do sofrimento em jogo à sustentação dasfunções que fraquejam e ao encontro das palavras que organizam os lugarese as memórias.

Pensar a ética da psicanálise como espaço de escuta do sujeito nosancora: “o eu não se funda na verdade que enuncia, mas no diálogo propria-mente dito” (Kehl, 2002)3 . “A palavra é metade daquele que a diz, e metadede quem a escuta” (Maria Rita Kehl, citando Montaigne)4 . A ética da psica-nálise é deixar falar a verdade do sujeito, singularizando os discursos, o queimplica em ocupar o lugar de produtor de dúvida e não de certezas. Assim,como intervir em ato sem produzir certezas paralisantes, pensando o traba-lho com as instituições responsáveis atualmente pelo cuidado à infância?

3 Kehl, Maria Rita Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 p. 71.4 Ibidem.

um olhar cuidadoso. E sabemos que, no que se refere aos primórdios daconstituição psíquica, um olhar só fará função de convocação, inclusive parao que é da ordem do funcionamento, se estiver sustentado por um desejoarticulado na palavra. A clínica psicanalítica nos faz saber que se há olhar(que faz marca no corpo convertendo-o em desejo) por conseqüência haverácuidados. O inverso está longe de ser verdadeiro. Tanto a clínica em intençãocomo a circulação por espaços institucionais nos leva a constatar a facilida-de com que os cuidados das crianças pequenas são terceirizados aprestadores de serviço. Com freqüência tais “serviços” estão restritos à pue-ricultura e, logo mais, a intervenções pedagógicas que, em detrimento dostempos de subjetivação em jogo, buscam inserir os pequenos, tão cedoquanto possível, no mundo das aprendizagens formais e da conquista de“habilidades”.

Assim, interessa-nos pensar, por exemplo, as relações entre as dife-rentes formas de cuidados dirigidos à pequena criança, nos serviços e nasfamílias de origem: afinal, como circula o saber acerca da criança? Pensa-mos em concentrar nossas investigações em espaços destinados ao acolhi-mento de crianças de 0 a 6 anos, sejam com fins educativos (abrigos, cre-ches, por exemplo) ou de intervenções na área da saúde (maternidades,ambulatórios pediátricos, postos de saúde, etc). O formato de tais investiga-ções tem sido o objeto central de nosso trabalho.

Por aí direcionamos a possibilidade de trabalho partindo de muitasinterrogações sobre as possíveis intervenções, pautadas por alguns cami-nhos surgidos pelas tensões da combinatória de bordas, entre disciplinasdistintas – como a relação entre psicanálise, saúde e educação.

Se a modernidade traz os avatares do declínio dos Nomes-do-Pai,como pensar o momento de constituição subjetiva dentro de creches e esco-las municipais de educação infantil, estas últimas hoje responsáveis peloatendimento das crianças em situações de risco social, muitas vezes apar-tadas de suas figuras parentais?

Frente a essa realidade qual o lugar do psicanalista, ou seja, qual é aresponsabilidade com a ética proposta pela psicanálise?

AMARAL, I. E.; ALMEIDA, R. M. DE . Psicanálise e intervenção...

Page 18: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

35C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

cional, evitar o incômodo. Mas, em psicanálise, não há como prevenir osujeito, pois não se tem como decifrar para ele o enigma diante do outro,logo, o incômodo é necessário. É justamente aí que um trabalho com bebêsse torna diferente de outras abordagens. Assim, intervir é favorecer as condi-ções para o infans se subjetivar, tomando a prevenção como aposta, no lugarda certeza.

Estas são algumas das questões que temos trabalhado ao longo des-tes meses iniciais para a construção de um projeto piloto de intervenção. Aconstrução de uma intervenção ética onde estaremos apostando que a psi-canálise tem uma função estruturante além do setting, além dos consultóri-os e ambulatórios, podendo fazer frente às imposições do real, aqui situadona tensão entre o público e o privado.

Na tessitura desta teia de questionamentos, recebemos a visita dedirigentes de uma creche do município de Porto Alegre quando elas nostrouxeram questões da sua práxis e dificuldades diárias. Precisamos salien-tar que esta creche conveniada é incomum no cenário da cidade: tem na suadireção uma pedagoga e, ao menos uma das cuidadoras do berçário tam-bém tem formação em pedagogia. Lembramos que a lei de diretrizes debase da educação infantil exige apenas o ensino fundamental como acessoao curso de educadora assistente. Sabemos que a educação formal não écondição que assegure boa capacidade de maternagem, porém, tambémsabemos que o conhecimento pode fazer diferença na história de um sujeito.Mas, resta mais uma questão: poderíamos chamar de maternagem o traba-lho das cuidadoras nas creches?

Como demanda importante deste primeiro encontro com essa institui-ção, ficou dirigido ao grupo um “pedido” situado na seguinte frase: “Cuida-mos a criança para ela sair daqui inteira... mas vocês não se esqueçam denós!!”.

Nossa teia foi se tramando cada vez mais complexa.Abrir espaços de intervenção, que entendemos deve ser de escuta

inicialmente de educadores e cuidadores, é nossa proposta. Escuta queultrapassa o setting para ir ao encontro dos inúmeros pedidos que entende-mos não serem exatamente de formação, no sentido de instrumentalizar ascuidadoras sobre como se estruturam psiquicamente as crianças. Já queconhecimento técnico é necessário, porém é preciso que possamos sermaiores que a técnica, criando espaços onde possamos dar conta dasidiossincrasias. Pois, o problema da técnica pela técnica é que se obriga auma formatação em que fazemos uma coletivização da norma sem olhar osujeito. Como transmitir o conhecimento da psicanálise aos cuidadores eeducadores sem cair na armadilha narcísica de querer fazer preponderante onosso saber e, sem cair num furor de prevenir?

Apostamos na necessidade do incômodo, este que estamos compar-tilhando com vocês, para dar conta da principal característica do nosso cam-po que acaba por ser paradoxal: prevenir implica, no campo médico e educa-

AMARAL, I. E.; ALMEIDA, R. M. DE . Psicanálise e intervenção...

Page 19: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

37C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

quase sem parada. Também é neste espaço que o esvaziamento de falaspelo desenlace do adoecimento psíquico, ou pela inércia e entorpecimentoda clausura, contrastam com as aventuras individuais ou grupais de algunsem torno das drogas e do tráfico. Tais relatos de aventuras, retratando umimaginário quase cinematográfico, pelas dificuldades de produzirem abertu-ras e pelas sucessivas repetições sem deslocamentos, resistem, entretan-to, em poder enlaçar lugares de existência... Explicitam os impasses dosjovens em suas possibilidades de produzirem passagens.

Lembramos os escritos de Benjamim (1994) que denuncia a misériasubjetiva que se anuncia com o advento do capitalismo, do progresso técni-co e do individualismo no qual a narrativa, a possibilidade de inscrição daexperiência e sua transmissão entram em declínio. Esses jovens parecemdenunciar, em seus atos, esse apagamento de rastros da nossa cultura, nasdificuldades que encontram em poder produzir referentes que possam lhessituar no mundo, frente às convocações ao adolescimento, bem como aosinúmeros apelos a situações de fragilização sociais, familiares e subjetivasque vivenciam.

A busca ao hospital, como via de proteção ou reclusão, torna igual-mente evidente a demanda da comunidade ao saber da ciência como formade dar algum estatuto ao inominável, ao insuportável, ao que transborda emnosso laço social, e que, por isso mesmo, contorna suas bordas.

Frente a essas demandas, algumas possibilidades de respostas: oencontro com o saber anônimo e o fechamento em sentidos prévios, ou oendereçamento a uma alteridade que possa auxiliar os jovens na retomadade um laço e na abertura significante.

É essa aposta que fazemos ao tentarmos estruturar, no dia a dia dainternação, diferentes espaços de escuta e expressão, individuais e em gru-po. Apostamos igualmente na busca ativa da rede de cada jovem que noschega e nas tentativas de implicação das diferentes instâncias no trabalhocom os mesmos.

É a partir deste lugar que podemos escutar suas buscas, seus cami-nhos e descaminhos, suas rupturas e suas errâncias. É ali que também nos

ENTRE CLAUSURAS E PASSAGENS: OS JOVENS,AS CIDADES E SUAS CONSTRUÇÕES

Tatiane Reis Vianna

Iniciamos pela clausura... pelos desenlaces... pelas redes de cuidado,mas também de captura que conduzem ao manicômio. História de tantosjovens que, por motivos diversos, chegam ou são conduzidos à internação

psiquiátrica.Estruturo este trabalho a partir do meu lugar como integrante da equi-

pe do Centro Integrado de Atenção Psicossocial (CIAPS) do Hospital Psiqui-átrico São Pedro (HPSP). Serviço que surge em 2001 no HPSP e respondepela atenção em saúde mental a crianças e adolescentes de alguns bairrosde Porto Alegre e de uma vasta região do Rio Grande do Sul, nas modalida-des, respectivamente, de atendimento ambulatorial e em internação.

Este serviço, em sua construção cotidiana, é atravessado por práti-cas e paradigmas de saúde distintos. Esta diversidade tem relação tantocom o momento histórico no qual ele surge e no qual vivemos, como com olugar onde se estrutura – o hospital psiquiátrico.Também sofre interferênciadas múltiplas orientações que referenciam a equipe que ali trabalha, entreestes, a psicanálise. Neste sentido, habitamos um paradoxo de estarmosem um hospital psiquiátrico e, ao mesmo tempo, apostarmos em umparadigma de atenção psicossocial e na escuta singular de um sujeito.

Contarei sobre um dos dispositivos que temos buscado inventar nonosso dia a dia na internação para trabalharmos com as crianças e jovensem sofrimento que chegam até nós e, assim, ajudarmos a transformar aclausura do hospital em um espaço possível de escuta que permita algumenlace subjetivo e favoreça armar passagens.

Voltemos aos jovens que chegam ao hospital por razões diversas –como surtos, tentativas de suicídio, abuso de drogas, agressividade...

É nesse cotidiano da internação que nos defrontamos com a repeti-ção de baixas e altas, e nessas, muitas vezes, com a intensidade de um agir

VIANNA, T. R. Entre clausuras e passagens...

Page 20: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

39C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

ção pudesse se dar a partir de suas próprias experiências de circulação emsuas cidades, nessa árdua tarefa de encontrar espaços de pertencimentos,constituir territórios de vida. Mas que esta construção também pudesse des-pertar alguma curiosidade sobre o que não estivesse estabelecido.

É importante retomar aqui o conceito de território, tal como vem sendotomado na saúde coletiva e como é mencionado por Elia (2005) enquanto“campo que ultrapassa o recorte regional e geográfico” (p.47). O autor lembraque o território é “tecido pelas instâncias pessoais e institucionais que atra-vessam a experiência de cada sujeito, dessa forma, constitui-se neste espa-ço interinstitucional e intersubjetivo”. (p.47)

Assim propusemos a construção desta oficina, inspirada em uma di-nâmica de grupo correntemente utilizada em oficinas e espaços de forma-ção. Essa atividade, que teve continuidade durante um ano, já foi re-editadaem várias ocasiões, com proposições diversas por diferentes grupos de es-tagiários e residentes, levando em conta também as inúmeras composiçõesde grupos e usuários e seus diferentes momentos subjetivos ao longo dotrabalho.

Ao planejá-la, preocupava-nos que as construções que ali se dessemtivessem algum tipo de permanência, mas que ao mesmo tempo, pudessemser modificadas. Por isso, a base na qual a cidade seria construída, queinicialmente era feita de cartolina, foi, posteriormente, cortada em isoporpela marcenaria do hospital. Mas essa base não poderia ser só a sua cons-trução material. Teria de ser sustentada por uma narrativa, mesmo que frag-mentária, constituída neste espaço coletivo. Uma narrativa que antecedessea participação de cada integrante do grupo, mas que incluísse a experiênciade cada um com a maquete e que também pudesse ser transmitida para osdemais jovens que viessem sucedê-los na internação.

Assim se iniciou a construção da maquete da cidade, em uma oficinasemanal que acontecia na sala de atividades da unidade de internação dosadolescentes. Num primeiro momento, a proposta e a base da maqueteeram apresentadas pelos oficineiros, que também disponibilizavam materi-ais como sucata, lápis, cola, tesoura, canetinhas. Na seqüência das ofici-

deparamos com o sofrimento das famílias ou o sofrimento dos jovens pelaausência das mesmas e pela exclusão da comunidade.

Algumas questões vividas no dia a dia da internação nos movimentama buscar alternativas:

Como possibilitar que essas repetições de vivência pelos jovens pos-sam ser apropriadas pelos mesmos de modo a favorecer vinculações e pas-sagens subjetivas? Como auxiliar os jovens a ampliarem, suporem outrasvias de circulação em suas cidades que possa lhes conferir alguma legitimi-dade frente ao Outro?

Foi em busca de dispositivos que pudessem auxiliar nessas abertu-ras que um grupo de estagiários de Psicologia Social e Psicopatologia1 pro-pôs, no espaço de supervisão por mim sustentado, a invenção da Oficinadas Cidades2.

Era preciso criar artifícios, desde dentro da internação, para pensar acirculação de cada jovem em sua cidade e poder compor, mesmo que artifi-cialmente, outra forma de poder habitá-la. Tínhamos a pretensão de queessas construções pudessem auxiliá-los a esburacar este excesso de reali-dade vivido e criar, então, espaços para outras possibilidades de estar nomundo.

Lembrávamos Souza (2006) ao falar de utopia que assinala a urgênciaem poder abrir furos nesses véus de amanhã. Também Block (2005) querefere que para isso é preciso, “que possamos antecipar, no testemunho do”irrompido–interrompido de cada história vivida, o surgimento do que aindanão veio, o não realizado “(p.127). Não realizado que não se refere somenteà existência de cada sujeito, mas, como lembra o autor, ao que “está surgin-do na história e no mundo”.

Almejávamos possibilitar a esses jovens um espaço para a invençãode uma cidade fictícia, cidade na qual desejariam viver. E que esta constru-

1 Mariana Pires, Carlos Augusto Piccinini, Carolina dos Reis e, inicialmente, Sofia e Rodrigo.2 Foi a partir dos relatos construídos pelos estagiários que se tornou possível a escrita destetrabalho.

VIANNA, T. R. Entre clausuras e passagens...

Page 21: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

41C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.40 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

“A minha cidade é uma droga, não tem nada para fazer”, diz Eiseu.Carolina, da mesma cidade, lembra a existência de um lugar de encontro nabeira do rio, que é recusado pelo menino por ser um lugar de uso de drogase pelo seu desejo de estar produzindo um certo distanciamento deste uso edestes lugares.

Jéferson constrói uma rodoviária. Menciona que sua cidade nunca teverodoviária e ele sempre quis que tivesse alguma. Pensa também na rodoviá-ria como o lugar que pretende ser buscado quando for visitar Rosaura, umamenina que ele conheceu durante a internação.

As diferentes posições subjetivas dos jovens também tornavam pecu-liares as construções, levando à necessidade de um acompanhamento maispróximo pelos oficineiros. Jonas, por exemplo, um jovem psicótico, minorianaquele período, sofria uma certa exclusão do grupo por representar o estig-ma da “loucura” que os rondava no hospital psiquiátrico. Este jovem resolveconstruir uma casa que, no entanto, como ele, não consegue se sustentar.Precisa, então, ser auxiliado em sua construção pelos oficineiros para queesta obra possa ter uma certa consistência e encontre algum lugar no grupoe na maquete. Alencar constrói uma grande muralha num canto da cidadepara proteger a cidade de Deus, um templo inventado por ele na busca singu-lar que estava fazendo de construir algum anteparo frente ao Outro. Cidadede Deus que nas oficinas seguintes será transformada, por outros jovens, nosupermercado BIG. Talvez também explicitando, sem saber, um dos grandestemplos ao Deus consumo das sociedades contemporâneas.

O tema da loucura e as diferentes significações em jogo sobre o estarno hospital aparecem em diferentes oficinas. Em uma delas, identificam osdois prédios construídos um com a prefeitura e outro com o Hospital SãoPedro, dividindo maniqueisticamente o lugar dos loucos e dos drogados. Osjovens que estavam ali, em função do abuso de drogas, buscavam delimitaruma diferença em relação àqueles que o estavam em função de sofrimentopsíquico. Movimento este que também acontece no cotidiano da unidade deinternação, às vezes de forma mais agressiva, às vezes lidando com estadiferença de forma mais solidária, a partir da própria intervenção da equipe

nas, esta apresentação se dava pelo próprio grupo de usuários, que tambémapresentava a cidade que vinha sendo criada e que, a cada encontro, ganha-va novas formas e se transformava. No decorrer do ano, algumas modifica-ções foram sendo propostas, como um momento inicial só de fala a respeitoda oficina e do que vinha sendo produzido, e um momento final em que osjovens eram convidados a fotografar suas produções. Fotos que muitas ve-zes eram publicadas no blog construído por eles na oficina de informática.

Outras pessoas na unidade, como a Tia Ana, a senhora da rouparia,auxiliava os jovens disponibilizando alguns materiais como fios de linha epedaços de retalho. A cidade que foi sendo criada era povoada de bocas defumo e algumas outras representações dispersas: delegacias, mercados,postos de gasolina, lojas, praças, campos de futebol.

Construções que se faziam individualmente e eram depositadas na-quele espaço, sem nenhum ordenamento. Com a chegada de novos jovens esaída de outros, algumas questões levantadas pelos jovens e pelos oficineirosforam aos poucos alterando alguns contornos dessa construção: ruas ligan-do espaços a outros, praças, shoppings, um zoológico.

Muitas das obras colocadas na maquete eram tentativas de reprodu-ção de lugares significativos, freqüentados pelos jovens em suas cidades deorigem. Em outras, a própria organização urbana da cidade fictícia obedeciaà disposição geográfica da sua própria cidade:

“– O shopping tem que ficar de fronte a praça”, afirmava Rosaura!3

Ao falar desses lugares que compunham seus territórios, contavamhistórias de suas vidas, colocavam os oficineiros a par de como transitavamem sua cidade e de alguns impasses que viviam.

Rodrigo, em um encontro, falava das vantagens e desvantagens demorar em uma cidade pequena. Dizia: “É bom porque todo mundo é amigo,mas é ruim porque se faz algo de errado todo mundo fica sabendo”.

3 Os nomes dos jovens citados ao longo do trabalho são fictícios a fim de preservar o sigiloem relação a sua situação de tratamento.

VIANNA, T. R. Entre clausuras e passagens...

Page 22: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

43C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.42 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Mas, muitos meses se passaram até que pessoas pudessem habitara cidade... Angustiava-nos a não lembrança de colocarem pessoas na cida-de... Talvez nos falassem da invisibilidade de si e deste humano em nossascidades.

Os espaços de consumo, sejam as bocas de fumo, mercados ou osshoppings, eram preponderantes em suas construções, contrapondo-se aosespaços de moradia ou à existência de pessoas, mesmo que os oficineirosprovocassem, com suas questões, um olhar para o que estava indiferenciado.

Um dos oficineiros questiona, num encontro, o fato de não existirempessoas na cidade. A explicação dada por Joaquim é que todas as pessoassaíram para viajar e não voltaram. Ficamos pensando de quem estariamfalando? Deles e de suas “viagens”? Dos amigos? Dos adultos? Dos seusdesamparos frente à ausência de referências?

Joaquim nomeia a cidade de Cidade Zero, cidade que faltava tudo.Essa fala repercutiu no grupo e alguns adolescentes, neste momento, brin-cam com isso e dizem: – “a cidade da farta: que fartava tudo”. Joaquimcomeçou, então, a cantar, parodiando a canção infantil: – “Era uma cidademuito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...” Todos riram...

Assim, o desamparo pelo abandono aparece na cena criada. Ao mes-mo tempo, na construção chistosa produzida, há uma condensação entrefalta e fartura. O que essa condensação poderia estar enunciando?

Arriscamos uma hipótese: notamos que esse excesso de gozo pelouso de drogas, ou aventuras em torno deste uso, aparentemente se colocacomo tentativa de abolir a falta simbólica, mas que acabam provocando oaparecimento de sua faceta imaginária e real, seja na figura do do jovemfissurado, ou da casa depredada, seja no inominável que essas situaçõesconvocam. Mas o deparar-se com a falta, não precisa necessariamente re-meter ao desamparo, pode ser um encontro farto, movimentar desejo, inven-ção, como fizeram com o chiste e com a música.

Para isso, talvez necessitemos sustentar o deslocamento do que estápositivado nesse objeto droga, através de um delicado caminho de escuta eenlace com outros significantes, anunciando outras possibilidades sociais e

nesta relação e que refletem também os nossos impasses sociais e dasredes de saúde. Mais adiante se perguntam se não seriam loucos também,já que vendiam tudo para consumir drogas.

Em outros grupos, o gozo em torno das drogas e transgressões apa-rece de forma marcante na tomada da cidade pelas bocas de fumo, sendouma delas colocada no caminho entre duas vias. Ao buscar materiais paraessa construção contavam vantagem em relação aos furtos e assaltos co-metidos. Um jovem que se mantinha calado durante a oficina construiu umcarro de polícia para derrubar a boca, quebrando uma certa hegemonia dogrupo. As intervenções dos oficineiros nesses momentos, levando-os pensarsobre o lugar exclusivo desses atos e construções e questionando sobreoutros lugares e possibilidades, eram interpretadas algumas vezes pelosjovens como um apontamento moral, como se os oficineiros não quisessemque eles construíssem bocas de fumo. Em outro momento pareciam colocaros oficineiros no lugar de parceiros, insinuando sobre seus possíveisenvolvimentos com drogas, por serem jovens ou por estarem magros comoeles.

Elementos infantis também aparecem na construção da cidade. Emuma outra oficina, ao construírem prédios e os colocarem na cidade, osadolescentes referem que a cidade lembra Townsville, a cidade das meninassuper poderosas. Mencionam que elas que iriam destruir as bocas da cida-de.

Na tentativa de des-construção das bocas de fumo por outros jovensem oficinas seguintes, os mesmos se questionam sobre a possibilidade ounão de abolirem as drogas da cidade. Milena se pergunta : – “mas existembocas de fumo numa cidade ideal?” Após discutirem entre si que é muitodifícil uma cidade sem drogas, resolvem que a boca de fumo tem que ficarnum lugar escondido.

Em determinadas oficinas, alguns adolescentes assumiam a lideran-ça, num processo de construção que, às vezes, se coletivizava. Em outrosmomentos, várias cidades pareciam estar sendo construídas simultanea-mente.

VIANNA, T. R. Entre clausuras e passagens...

Page 23: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

45C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.44 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

ENTRE FADAS E LOBOS:UM DISPOSITIVO PARA ESCUTAR A DOR

Sandra Djambolakdjian Torossian

Abram a porta, porquinhos, senão vou soprar,soprar,soprar até a casa arruinar!

Os porquinhos não abriram a porta.O lobo soprou, soprou... e nada! A casa nem se moveu!

– Eu não consigo destruir casa de pedra, e agora?

O que farei?

Conta outra vez? É essa a voz de uma criança abrigada, que deman-da insistentemente uma e outra vez a narração desse trecho tãobem conhecido por todos de uma, também, bem conhecida história.

Conta outra vez? Essa solicitação não é rara a todos os que já conta-ram histórias a uma criança. No entanto, quando conto essa história dizendoquem é a criança que solicita a repetição e qual o trecho a ser novamentelido, tanto eu quanto os meus interlocutores atribuímos um sentido, talvezdemasiado apressado. O mesmo que muitos de vocês podem estar pensan-do neste momento. Associamos a segurança da casa de pedra, à segurançaalmejada por uma criança abrigada.

Talvez um sentido demasiado apressado, porque é isso que tambémpoderá encontrar no conto uma criança que não tenha tido a necessidade deabandonar a sua casa. Mas, certamente, a ruptura do laço doméstico temespecificidades que fazem com que a segurança de uma casa de pedraganhe significados diferentes.

Boris Cyrulnik, um psicanalista que tem se dedicado ao trabalho comsujeitos que sofreram traumatismos pelas guerras, abandonos, etc., reafir-ma que, para a elaboração de um trauma, precisa-se trabalhar a aquisiçãode recursos no decorrer das interações precoces, o significado que otraumatismo adquiriu na história do sujeito, no seu contexto familiar e social

subjetivas. Trabalho que pode se dar neste espaço circunscrito, mas certa-mente urge que aconteça mais próximo do cotidiano da vida desses jovens.Considerarmos que o zero, da cidade zero não precisa ser lido só comoausência, pode também estar no lugar de início de uma outra série.

Assim, o lugar da oficina talvez possa ser, para esses jovens, propici-ar ensaios de outras vias de relação e circulação, de compartilhamento epossibilidades enunciativas neste espaço de tanta positivação e redes decaptura como é o hospital psiquiátrico.

Esse escrito também nos remete a pensar no lugar dos estagiários,residentes e os efeitos muitas vezes provocados por suas proposições du-rante este espaço-tempo em que eles habitam conosco esta instituição se-cular. Função de auxiliar-nos a abrir brechas na instituição total e, quemsabe, com essa experiência, vir a compor outras redes, poder efetivamentereceber as crianças e jovens em sofrimento, desde outros lugares.

Referências:BENJAMIM, Walter. Experiência e Pobreza. In: Magia e Técnica: arte e política. 7.

ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119. (Obras Escolhidas).BLOCK, Ernest. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto,

2005.ELIA, Luciano. A Rede de Atenção na Saúde Mental: articulações entre CAPS e

ambulatório.In: _______ BRASIL.Ministério da Saúde. Departamento de AçõesProgramáticas. Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto- Juve-nil. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005.

SOUZA, Edson Luis de. Furos no Futuro: Utopia e Cultura. In: Schüller, & M.Barcelos(org). Fronteiras: Arte e Pensamento na época de multiculturalismo (p.167-180) .Porto Alegre: Sulina, 2006.

TOROSSIAN, S. D. Entre fadas e lobos...

Page 24: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

47C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.46 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

O termo vulnerabilidade social é complexo e polêmico, nos aproxima-remos dele através da experiência de trabalho.

No nosso percurso de investigação de vários anos em diferentes ser-viços que trabalham com crianças e adolescentes em “vulnerabilidade soci-al” foi possível observar que a inclusão, o pertencimento aos mesmos, emmuitos casos, fazia com que esses sujeitos tivessem que se nomear vulne-ráveis. Assim eram vistos por quem os acolhia o que, em muitas situações,ampliava a vulnerabilização.

ERA UMA VEZ...Uma série de oficinas organizadas com idades variadas em diversos

serviços.A leitura de um conto, escolhido pelas crianças ou pelos oficineiros-

pesquisadores, foi a estratégia utilizada para o início do trabalho em cadaencontro. Isso seguido de um momento no qual se privilegiassem outrosmodos de expressão, como desenhos, dramatizações, pinturas, traba-lhos com argila, massa de modelar, narração de outras versões dos con-tos, de outros finais e, também, invenção de outras histórias. A seqüência“leitura – outras formas de expressão”, nem sempre foi constante, já queem muitas ocasiões a leitura precisava ser interrompida e depois retoma-da.

Os livros precisaram ser construídos como algo “a ser lido”. De obje-tos a serem destruídos, pisoteados, utilizados como “munição” dirigida aoscolegas, passaram a ser brinquedos para, finalmente, constituírem uma pos-sibilidade de leitura e conexão com narrativas da cultura.

A voz da leitura, precisou também passar pelo canto. Várias versõesdos contos foram musicadas pelas crianças. Versões já conhecidas que seconectavam com algum elemento narrativo da vida desses sujeitos e cons-truíam novas histórias.

A leitura, quase forcluída como possibilidade de subjetivação, foi habi-tando o espaço da oficina e inscrevendo-se como possibilidade de trabalho eprazer tanto para as crianças quanto para os leitores-oficineiros. Além disso,

e a possibilidade de encontrar lugares de afeto em atividades e programasque a sociedade proporciona.

Esse gesto de reelaboração, diz o autor, não pode ser solitário, existea necessidade de um olhar do outro sobre a transformação. A necessidadede um olhar Outro, poderíamos afirmar a partir de Lacan, que potencialize osrecursos do sujeito num processo de construção de novos sentidos para otraumatismo. No entanto, esse olhar é frequentemente solitário e corre orisco de acentuar o abandono, se pensarmos nas políticas de desamparo esolidão contemporâneas. Precisam-se, então, “lugares de afeto” coletivosque possibiltem aos sujeitos a continência necessária para a construção eelaboração do traumatismo.

Escutando a demanda de Jose, a menina da casa de pedra, surgiu-nos a possibilidade de tomar a literatura infantil como uma estratégia deintervenção. Um trabalho semelhante foi realizado por Gutfreind e relatado notexto “O terapeuta e o lobo”. A literatura associou-se ao dispositivo da oficinaao pensar na necessidade de produção de uma grupalidade que pudesse sercontinente para o processo de reelaboração traumática e de produção desujeito.

As oficinas de literatura infantil que aqui vamos relatar fizeram partede um trabalho coletivo de pesquisa da qual participou uma equipe de estu-dantes1 bem como profissionais de diferentes serviços públicos e privadosque acolhem crianças em situação de vulnerabilidade, (em especial o Grupode Trabalho-GT em saúde mental da Fundação de Assitência Social e Cida-dania-FASC, e os profissionais dos módulos Centro e Nordeste, e o Progra-ma Escolhinhas Integradas-PEI/Unsinos), todos co-autores vivenciais destaexperiência.

É nossa intenção neste trabalho recortar algumas questões da escu-ta psicanalítica neste dispositivo, a partir de algumas cenas do nosso cotidi-ano e tangenciar, assim, a temática do coletivo na psicanálise.

1 Ana Maria Ribeiro, Bárbara Zwetsch, Clarice Portanova, Daniel Henneman, Janaina Carloto,Juliana Cidade, Marica Fagan, Raquel da Rosa, Rose Paludo e Simone Derosso.

TOROSSIAN, S. D. Entre fadas e lobos...

Page 25: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

49C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.48 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

naquele momento, freqüentam os espaços da oficina. Eles também diver-tem-se, ficam alegres e falam. Falam muito e há quem os escute.

Essa possibilidade de escuta, no entanto, precisou ser construída.Muito facilmente podemos nos deixar tomar pela impotência ao deparar-noscom uma infância que nos traz sofrimento, que nos faz sofrer porque estamosimplicados na desigualdade social que a produz. Arrisco-me a dizer quemais implicados do que em outros modos de sofrimento. Narro o texto pro-duzido a partir de outras cenas das oficinas:

“Um mal-estar se produz entre a equipe encarregada de levar adianteas oficinas quando as crianças rasgam as caixas de papelão, material quehavia sido levado para montarem a cidade de um conto. A atividade lúdicaque segue ao conto foi rasgar as caixas.

Essas ocupam de novo o espaço das oficinas nos encontrossubsequentes. Já não eram caixas, mas pedaços de papelão, restos decaixas, produções industriais transformadas em restos pelas mãos das cri-anças. Brinquedos que podiam ser destruídos, sem sofrerem. Objetos atra-vés dos quais poder expressar a dor de viver... e a dor de viver naquelascondições (humanas?).

Romper as caixas do sentido cristalizado que associava “rasgar ascaixas” a “rasgar a disponibilidade para cuidar”, “rasgar o trabalho dedicadodos cuidadores”, “rasgar o valor de cada um” requereu um tempo e um trabalhode reflexão e elaboração sobre a implicação de cada um nessa produção.

Os restos – pedaços de papelão – foram devolvidos às crianças para,a partir deles, realizarem novas construções. Do tramado das experiênciasgrupais, no qual cada um se colocou em conexão com o outro, surgiu umacidade parecida com a do conto, suplementada com detalhes da cidadeonde as crianças vivem”.

Estas cenas fazem ecoar, ressoar outras cenas vivenciadas no cotidi-ano do trabalho de quem lida com estas condições. Condições demiserabilidade construídas em mais de quinhentos anos de Brasil. Uma in-fância vulnerável que historicamente produziu duas categorias: os menores eas crianças (de família). As crianças com as quais trabalhamos são herdei-

produziram interrogações sobre os modos de ler e de escutar a dor produzi-da pela miserabilidade.

Na realização dessas passagens o corpo precisou entrar na cenacomo elemento dramático. A luta corporal, que frequentemente se colocavacomo única possibilidade de relação entre as crianças, transformou-se emato teatral. Os braços desenhados-machucados com alfinetes, num dos lo-cais onde aconteceram as oficinas, foram acoplando o lápis, as canetinhas,a tinta e habitando outros espaços: o chão, as folhas, as telas...

Através das oficinas, o livro, o desenho e os diversos materiais foramganhando vida, ao estilo dos brinquedos do Toy Story, e se inseriram na vidadas crianças como modos de expressar uma verdade para a qual é muitasvezes difícil disponibilizar escuta.

A partir da história do “Diário de uma minhoca”, um conto que a princí-pio nos pareceu em excesso pedagógico e higienista, cuja moral da históriapoderia ser aprender a escovar os dentes, tomar banho, ir à escola e todauma seqüência de rotina esperada para as crianças, Luciana, uma das par-ticipantes, ilumina outra leitura. Ela se narra a partir do mundo subterrâneo,escuro, úmido e sem banho, no qual a minhoca vive, e pode assim falar-dramatizar o seu mundo subterrâneo e sombrio, desamparado. Faz issoconvidando os outros participantes a entrarem na história. Assim monta-seuma cena na qual se fala, através de diferentes bichos, sobre o mundo decada um, sobre sofrimento de, sobre as alegrias de si mesmo e de si emrelação aos outros. Tece-se nesse momento uma grupalidade, uma superfí-cie de acolhida que permite a todos falar e serem escutados.

O teor das histórias centra-se, nesse momento, num desamparo quenão encontra pontos de ancoragem, em função das condições demiserabilidade em que vivem e pela dificuldade de acolhida nos espaçospelos quais circulam. As famílias encontram-se em igual desamparo. Emoutros espaços como escola, igrejas, serviços de saúde, etc., a acolhidamistura-se com gestos de desagrado, narizes franzidos, olhares de “nojo” ecorpos receosos que evitam qualquer contato. É assim que se apresentamna cena os patos falantes, os sapos que cantam e todos os bichinhos que,

TOROSSIAN, S. D. Entre fadas e lobos...

Page 26: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

51C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.50 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

tar o recalque que promove a distância social e da qual o “psicanalista” (am-pliemos esta denominação para outros profissionais que se ocupam dessaescuta) usufrui. Portanto, aqui, a escuta supõe a ruptura com o pacto desilêncio do grupo social ao qual pertencemos.

Jean Marie Gagnebin, em “Lembrar, escrever, esquecer” destaca umsonho de Primo Levi, que narra as atrocidades do holocausto sem podertransmitir a experiência vivenciada e encontra pessoas que dão as costas.Há aqui uma confluência entre a inenarrabilidade da experiência e a impossi-bilidade de escutar.

Ao trabalhar a perspectiva desses “ouvintes que dão as costas” paraas narrrativas da dor, Gagnebin propõe uma ampliação do conceito de teste-munho. Esse não se referiria somente àquele que vê com seus própriosolhos, mas também àquele que não vai embora, que consegue fazer a fun-ção de ouvinte, ouve a narração insuportável, permitindo assim a invenção dopresente, sem que seja necessário repetir infinitamente o passado. A dificul-dade reside, justamente, em encontrar ouvintes que suportem a narração dador.

Desde o campo da saúde coletiva Rosana Onoko Campos toca nessadificuldade ao assinalar os sintomas institucionais produzidos pela realidadedo trabalho, pelo contato com a dor e com a morte e as dificuldadesprovocadas pelas situações de miséria extrema. A desvalia produzida pelamiséria será transportada pelas equipes que lidam com a população afetadapelas condições de miserabilidade e assim poderão construir-se barreirasque não permitam o contato e o encontro com aquilo que faz doer. A autoraressalta a necessidade de se criar dispositivos de trabalho que possibilitemo reestabelecimento de um espaço subjetivo coletivo, de possibilidadetransicional com certa operatividade.

As oficinas que aqui trazemos inserem-se nessa possibilidade detransicionalidade, ao apostar no potencial clínico da arte literária e abrir bre-chas para que a relação trabalhador-usuário, muitas vezes cristalizada eestagnada pela dor, possa resgatar espaços de escuta e da invenção deinfâncias, não necessariamente centradas na vulnerabilização social.

ras da miséria de quinhentos e tantos anos de desigualdade e segregaçãosocial. Crianças que carregam com elas a marca da escravatura, do abando-no e do desamparo estatal.

Quem delas se ocupa encontra-se hoje amparado por políticas públi-cas que propõem outro olhar sobre a infância. Mas sabemos da dificuldadede transformar tantos anos de história a partir de uma perspectiva tão recen-te (o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – tem aproximadamentevinte anos e o Sistema Único de Assistência Social – SUAS – não mais de4 anos).

Além disso, as leis, diretrizes e estatutos precisam, como os materi-ais das nossas oficinas, ganhar vida. A passagem da diretriz política ao tra-balho cotidiano pode produzir diferentes direções: propiciar novos modos deolhar para a vulnerabilidade, considerando os sujeitos em questão, mas tam-bém pode recalcar o assitencialismo histórico nas posições transferenciaisque este nos impõe na escuta dessas questões. Por isso, podemos ficar tãochateados de rasgarem nossa disponibilidade de trabalhar.

Em “A escuta de vidas secas”, Miriam Debieux Rosa dedica-se aotema da transferência em situações de desamparo. O desamparo social éapontado como uma das políticas do neoliberalismo, que produz a quebrados fundamentos do contrato social e tem como conseqüência a desproteçãode uma parcela da população. Isso expõe o sujeito ao risco de confrontaçãocom o traumático, àquilo que está fora de sentido, não facilitando os recur-sos que seriam necessários para a elaboração do trauma. Promove-se as-sim efeitos de dessubjetivação. Ou ainda, mascara-se a política neoliberalpautada pela lógica do mercado e pelo privilégio do capital.

Do ponto de vista transferencial encontramos sujeitos que ocupamlugares opostos na estrutura social e isso poderá fazer com que as interro-gações consideradas habituais, numa técnica psicanalítica mais tradicional,produzam e repitam a violência à qual os sujeitos, discursivamente desam-parados e simbolicamente violentados, são submetidos.

Além disso, a escuta desses sujeitos pode tornar-se insuportável por-que tomar esse outro como sujeito de desejo implica em se deparar e levan-

TOROSSIAN, S. D. Entre fadas e lobos...

Page 27: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

53C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.52 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

As crianças passaram também a habitar diversos espaços desubjetivação. Do corpo como quase única superfície para o desenho – umcorpo já machucado pelas condições de desamparo – foi se delineando umespaço de espelhamento. Em movimentos lúdicos as crianças espelharam-se umas nas outras, na literatura e nos cuidadores (oficineiros-pesquisado-res) na tentativa de construirem desvios nos territórios que lhes indicaram avulnerabilidade como uma das únicas vias subjetivantes. Assim, puderamtambém, enquanto sujeitos singulares, disparar movimentos de reelaboraçãode suas histórias, habitando outras superfícies simbólicas – folhas para aescrita de outra infância.

As oficinas são dispositivos “coletivos”, espaços intermediários,transicionais, entre sujeitos e subjetividades, que podem produzir desviosem relação a sentidos cristalizados. O “coletivo” emerge, então, como umespaço moebiano entre a produção social e a sua singularização, entre epsicanálise em extensão e a psicanálise em intensão, entre o sujeito doinconsciente e a discursividade política.

Referências Bibliográficas:

CAMPOS, Rosana Onoko. “O encontro trabalhador-usuário na atenção á saúde:uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde cole-tiva.” Ciência e Saúde Coletiva 10 (3), 2005 p. 573-583.

CRONIN, Doreen. Diário de uma minhoca. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2004.CYRULNIK, Boris. Os patinhos feios. São Paulo: Martins Fontes, 2004.GAGENBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34,

2006.GUTFREIND, Celso. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia

da criança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.ROSA, Miriam Debieux. “Escutando vidas secas.” Adolescência um problema de

fronteiras. Porto Alegre, 2004, p. 12-36.

OS TRÊS PORQUINHOS, ENTÃO, VOLTAM À CENA:“O conto dos Três porquinhos é uma das escolhas recorrentes. A de-

manda de repetição da leitura recai, geralmente, no sopro do lobo... umacasa derrubada. Mais um sopro... outra casa derrubada. Algumas das crian-ças fazem aí gestos de sofrimento. Ficam ali, interrompem a leitura da histó-ria. Conectam-se e prendem-se a essa narrativa. À narrativa do desamparo.Em algumas situações demora-se três ou quatro encontros para poder fina-lizar a leitura. Dramatizar o sofrimento é uma das alternativas de expressão.Teatro, mudança dos papéis: “agora tu és o lobo”, “agora sou eu”... até esgo-tar as possibilidades de vivência dos diferentes lugares. O corpo em ato.Pode-se retomar a história. “Agora, essa casa de pedra, o lobo não vai poderderrubar”, antecipam as crianças e riem com satisfação. Os rostos espanta-dos dão lugar a gestos de conforto”.

Os oficineiros-pesquisadores brincam, partilham da possibilidade decontar e dramatizar as histórias. Há um ponto de encontro, um ponto desuportabilidade para a narração das histórias doloridas... e para as colori-das. Produzem “um com o outro” uma trama, um tecido, uma tessitura desustentação.

Tudo isso foi se transformando em reflexão e produzindo alguns des-locamentos na posição dos sujeitos e na produção de sentidos. De um con-to com teor higienista surgiu a possibilidade de expressar a escuridão e osubterrâneo de uma vida em excesso de desamparo e exclusão social. Aoganhar em expressão, a dor deixa de ser um sofrimento solitário, sem possi-bilidade de significação, para ganhar em alteridade ao incorporar olhares. Osouvintes, assim, podem se virar de frente.

As oficinas no seu desenho grupal constituiram-se num dispositi-vo coletivo produtor de saúde, que através da potência artística e danarrativa cultural possibilitou a produção de gestos de reelaboração dador. Uma dor gestada pelos processos de exclusão social que pôde serfissurada a partir do compartilhamento narrativo “entre” as crianças, “en-tre” as crianças e os seus cuidadores e de todos no “encontro” com aliteratura.

TOROSSIAN, S. D. Entre fadas e lobos...

Page 28: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

55C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.54 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

inconsciente. Sujeito este que, como trabalhamos nas discussões dentro doInstituto Appoa, não se equivale ao sujeito cidadão das reformas sanitária epsiquiátrica. No dia-a-dia do nosso trabalho, somos constantemente questi-onados sobre onde eles se separam e onde podem se encontrar.Os serviçosde saúde reúnem profissionais de diferentes especialidades, representantesde saberes e práticas no campo da medicina, da enfermagem, do serviçosocial, da terapia ocupacional, da psicologia, da psicanálise, entre outros.Cada um deles constitui um conjunto que obedece a lógicas discursivasespecíficas. Além do encontro multiprofissional, os serviços também desen-volvem práticas intersetoriais. Uma equipe interage não somente com osdiferentes equipamentos que compõem a rede de atenção à saúde, mascom outros que fazem parte da assistência social, da educação, da cultura,da economia, da política. Os profissionais não interagem somente com suaclientela, mas com seus colegas e com a cidade.O modo de intervençãoclínica pensado na lógica do ato isolado das relações com o outro já está hámuito ultrapassado. Se o médico não tem como atuar isolado da enferma-gem, do serviço social e das outras especialidades, tampouco podemospensar numa intervenção psicanalítica que fique situada fora dessa rede decomunicações.Para compor essa rede temos que partir de um pressuposto.Retomando Lacan, a verdade tem a ver com o real, e o real é um impossível.Dizer toda verdade é materialmente impossível, faltam palavras.Não há umaúnica especialidade que tenha em seu conjunto de conhecimentos uma ver-dade totalizadora sobre o objeto das práticas em saúde mental. O modelofísico-natural, pretendido na psiquiatria biológica, deixa aberta a questão sobrequem é o sujeito que habita este corpo: corpo biológico, corpo erotizado nasrelações com o corpo social, corpo da cultura.A construção de equipemultiprofissional não garante o preenchimento da falta, não aproxima dasbordas do real. O somatório das intervenções falha, não produz totalidade.Trabalha na fragmentação dos corpos, corpos estes que podem ser pensa-dos como plurais e únicos a um só tempo. Trata-se de um sujeito que seconstitui na pulsação de seu corpo marcado pela palavra do Outro.Aestruturação de saberes e práticas interdisciplinares aponta para um cami-

CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS PARA ACONSTRUÇÃO DE EQUIPES INTERDISCIPLINARES NOS

EQUIPAMENTOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

Nilson Sibemberg

Lacan inicia sua fala em Televisão dizendo: “sempre digo a verdade:não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impos-sível, materialmente: faltam palavras”1. A Psicanálise não é uma

hermenêutica. Freud não explica. Ela se constitui, nos diz o texto de abertu-ra da jornada, como um discurso que interage e tensiona com os demaisdiscursos em nossa sociedade. O espaço criado nesse tensionamento, en-tre diferentes saberes e práticas no campo da saúde mental, lança-nos umdesafio : como construir práticas interdisciplinares nas equipes que traba-lham nos equipamentos da reforma psiquiátrica.A presença de psicanalistasem equipes de saúde coletiva, saúde mental, em hospitais e outros equipa-mentos de atenção psicossocial é cada vez mais freqüente. Como nos colo-camos, então, diante da pluralidade de saberes e práticas que acontecemnesses espaços? Como escapar da fragmentação do trabalho no encontromultiprofissional e multidisciplinar? Será possível pensar na construção depráticas interdisciplinares no campo da saúde pública, principalmente selevarmos em conta que a reunião de distintos profissionais em um equipa-mento não se dá por uma transferência de trabalho, mas por critérios admi-nistrativos no campo das políticas públicas? Como estabelecer um trabalhode equipe horizontal, contra a tendência de constituição das equipesmultidisciplinares marcadas pela hierarquização dos saberes, verticalizaçãodos poderes disciplinares e seu agir corporativo?Nós que trabalhamos nosespaços públicos de saúde, vemo-nos cotidianamente confrontados e desa-fiados para colocar em ato/ palavra uma ética fundamentada no sujeito do

1 Lacan, J. Televisão. in: Outros Escritos . Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed, 2003, p. 508

SIBEMBERG, N. Contribuições psicanalíticas...

Page 29: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

57C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.56 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

ca da psicose, o idealismo abre a brecha na direção de uma reabilitação queestá mais perto da reeducação do que de um sujeito que tenta se posicionardiante do Outro. A reeducação busca uma normatização que achata oprotagonismo do sujeito.Esse recorte que exemplifica uma tensão possívelentre os saberes da clínica da reabilitação psicossocial e a clínica psicana-lítica nos coloca no ponto como uma equipe se estrutura em determinadaposição discursiva, o que determina sua prática e as relações clínicas epolíticas entre equipe, usuários, equipamentos de saúde e outras esferas dacidade.Ana Costa, no texto Uma clínica aberta3, aponta de forma precisaque a transferência não se estabelece somente por quem demanda atendi-mento. Ela se constitui no entre dois, ou seja, a posição de quem se ofereceà demanda por atendimento é constituinte do laço transferencial. Então, omodo como a palavra define o saber fazer de uma equipe diz do lugar que opaciente ali poderá ocupar. Torna-se um importante elemento ordenador des-sa relação.Numa instituição, a modalidade do discurso que ali se inscreverevela como se estrutura o sintoma institucional. A reforma psiquiátrica pro-pôs a quebra do paradigma manicomial como forma hegemônica no trato daloucura. O debate atual no campo da reforma é qual o novo paradigma clíni-co: a clínica aberta? a clínica da reabilitação psicossocial ? A clínica docuidado ? A clínica do sujeito ? Cada uma dessas modalidades institui umalógica que arma a posição da demanda do usuário e o desejo da equipe.Existe uma posição clínica melhor que a outra? Uma equipe deve se pautarpor uma direção única de tratamento ou se permitir questionar de seu lugar apartir da questão provocada pelo sujeito demandante?A tendência das insti-tuições é a cristalização de um sintoma. A instituição total tem como princi-pal característica o fechamento às relações sociais para seus usuários. Aexpressão imagética desse fechamento são os muros, as grades, que repre-sentam uma determinada forma de distribuição do saber e do poder dentroda equipe e entre a equipe, o gestor, a sociedade civil e os usuários. Uma

3 Costa, A. Uma clínica aberta, in Psicose : Abertura da clínica. Org. Comissão de Aperiódicosda Associação Psicanalítica de Porto Alegre. APPOA & Libretos. Porto Alegre. 2007.

nho distinto das especialidades. Direciona para a construção de novasespecificidades que podem acontecer na porosidade do insabido.O desejoda interdisciplina nasce da pergunta cuja resposta pode não estar inscrita noparadigma de quem questiona. Abertura à dimensão do Outro. É no suportarda diferença, na desacomodação que ela provoca, que uma nova acomoda-ção pode se dar na abertura dialógica. O embate corporativo produz fecha-mento. A verticalização das relações numa equipe marcada pela disputahegemônica de poder é inimiga do debate.A interdisciplina surge contra ailusão de completude. Sua dialética dialógica não pressupõe uma síntesefinal. Toda síntese é abertura para nova questão que se produz no encontroentre diferentes campos do saber. Como no inconsciente, há que pressupore conviver com o contraditório. A negação do contraditório em uma equipeproduz isolamento, direção oposta do trabalho de tensionamento das frontei-ras do saber.Como isso poderia se dar numa equipe de saúde mental? O quepode acontecer no ambulatório, no CAPS, no hospital ou nos setores deplanejamento e gerenciamento das políticas de saúde mental?Lacan, no textoDa psicanálise em suas relações com a realidade, diz-nos em tom de per-gunta:

“A assunção mística de um sentido além da realidade, de um seruniversal qualquer que nela se manifesta em imagens será ela compatívelcom a teoria freudiana e com a prática psicanalítica?”2

Lacan nos lembra que temos de ter cuidado com a construção deimagens ideais. Elas andam de mãos dadas com a alienação no outro e coma frustração imaginária das equipes.A psicanálise tem importante lugar naconstituição dessas equipes. Alguns conceitos podem atravessar os diferen-tes campos de saber, abrindo brechas e novas costuras.O conceito de sujei-to de desejo, que se confronta com o de sujeito de direito, aponta para aresponsabilização do sujeito sobre seu sintoma e os encaminhamentos deseu desejo. O sujeito como protagonista de seu ato.Em se tratando da clíni-

2 Lacan, J. Op. Cit., 351.

SIBEMBERG, N. Contribuições psicanalíticas...

Page 30: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

59C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.58 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

mentos de um caso em seu trabalho conjunto pela equipe.Se no texto deAna Cristina Figueiredo encontramos a experiência de um método de pes-quisa clínica em psicanálise, aqui penso em colocá-lo como contribuição naformação da equipe interdisciplinar via discussão de caso clínico.A discus-são de um caso passa por três elementos: a história do paciente, como opaciente se apresenta para sua referência e para a equipe, e como a equipeintervém na transferência.A história do paciente não se reduz à história dadoença e seus sintomas. É a história do sujeito falante que vem a serconstruída pela equipe nos diversos momentos em que o paciente a ela sedirige. Trata-se da composição de uma ficção que representa esse sujeitopara o outro.A forma como o sujeito se apresenta à equipe é indissociável damaneira como a equipe se posiciona frente à sua demanda. Aqui temosinstituído o fundamento da práxis analítica: a transferência.Discutir um caso,o que é uma construção, ficção necessária ao fazer clínico em equipe, envol-ve os diferentes saberes e leituras sobre quem é o sujeito em seu sintoma.Direção distinta da pergunta sobre o que é esse sujeito. Isso inclui pensar odiagnóstico psicanalítico e o psiquiátrico. Debate, não embate. Ainda que sefale de uma síndrome psiquiátrica, há um sujeito que assim se faz nomear,seja pela psiquiatria, seja pela psicanálise. O diagnóstico psicanalítico sefaz em transferência. Questiona-se aqui não apenas o sujeito demandante,mas aquele que arma o dispositivo institucional que irá delimitar a circulaçãoda palavra, do ato, do desejo.Na construção do caso clínico, a equipe temque se colocar, expor seu modo de funcionamento. Qual o gozo na repeti-ção? Há giro na posição discursiva conforme a construção singular de cadacaso? Ou se repete uma fórmula de tratamento idealizada, imagem cunhadafora do sujeito demandante?A equipe necessita revisitar constantemente seusintoma, como antídoto contra as armadilhas da repetição, à tendência aobjetalizar o paciente na alienação ao discurso institucional. Discurso esteque, pela função nomeante, pode produzir novas formas de fechamento ouabertura para que um sujeito se produza. Isso que só pode ser lido na singu-laridade de cada caso.Na discussão do caso é preciso respeitar três tem-pos: tempo de ver, de compreender e de concluir. O tempo de concluir não

instituição, para se opor a essa estrutura total, necessita estar aberta parasua própria mudança. Precisa refletir constantemente sobre suas formas degozo e a repetição, pois a repetição pode vir na direção da burocratização dofazer clinico.Poderíamos pensar no modo como o sintoma institucional searma utilizando os quatro discursos desenvolvidos por Lacan: o discurso domestre, o do universitário, o da histérica e o do analista. O trabalho de cons-tituição de uma equipe interdisciplinar passa pela análise da ação do agentena direção do outro, da verdade que ali se faz representar e do que se produzcomo efeito em seu ordenamento discursivo. É preciso manter a placa gira-tória dos quatro discursos em movimento para que uma equipe esteja abertaa se reinventar.

O discurso do mestre tem como agente um significante mestre, que éapresentado ao outro como O saber que satisfaria o desejo. O sujeito, comoverdade, fica velado. Temos aqui a representação da lei e do poder.

O discurso do universitário é comandado por um saber estabelecidoque pretende dar conta do desejo adaptado. Quando ele predomina numaequipe, o fazer se torna burocrático.

O discurso da histérica é comandado por um sujeito que, ao questio-nar o significante mestre, aponta o outro na direção de produzir saber. Inflexãonecessária contra a acomodação nos discursos anteriores.

Já o discurso do analista é comandado pelo analista na função deobjeto causa de desejo do analisante, semblante que pretende dirigir o atoanalítico para que o analisante produza seu significante mestre.

Haveria uma metodologia para a construção desse trabalho em equi-pe a partir do que até aqui foi colocado?

Ana Cristina Figueiredo4 propõe-nos a construção do caso clínico comouma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. A cons-trução do caso clínico se produz no compartilhamento de determinados ele-

4 Figueiredo, A. C. In : Revista Latino americana de Psicopatologia Fundamental, Ano VII, nº 1,p. 75-86, março 2004.

SIBEMBERG, N. Contribuições psicanalíticas...

Page 31: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

61C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.60 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

SOBRE A POLISSEMIA DO TEMA INTERVENÇÃO

Elaine Rosner SilveiraGiselda Endres1

Escrevemos essas breves palavras após a Jornada do Instituto APPOA“Psicanálise e Intervenções Sociais” ocorrida em junho de 2009. Im-portante dizer da satisfação em participar da mesma, participação

que já vem ocorrendo em vários momentos da própria construção do Institu-to. Na Jornada foram socializadas diferentes práxis da psicanálise articula-das ao social e à esfera do público, provocando reflexões e aberturas parapensar em outros possíveis espaços, discussões e contribuições da psica-nálise nesse campo. Tão importante como o próprio trabalho de inter relaci-onar a psicanálise com as várias áreas do social e do mundo é poder publicizar,tematizar e problematizar este trabalho de forma mais ampla, como ocorreunesse evento.

As experiências relatadas na Jornada falam de intervenções que têmcomo principal referência, entre outros saberes, a psicanálise: oficinas, gru-pos, movimentos sociais, trabalhos em instituições, pesquisas, etc. Fazen-do trabalhar as referências fundamentais da psicanálise em intensão com apsicanálise em extensão. Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967considera que a extensão diz respeito à psicanálise no mundo e a intensãofornece operadores para a extensão, não as tomando de forma excludente,mas sim como uma continuidade.

O nome do Instituto APPOA é acompanhado das palavras “clínica,pesquisa e intervenção”, o que mostra a relevância da idéia de intervençãoque é apontada como um dos eixos importantes da instituição. Sabemos daarticulação entre estas três palavras: toda clínica tem um espírito investigativoe de pesquisa como já nos apontava Freud. Da mesma forma, toda clínica

1 Assistente Social da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre.

remete a um fim, mas ao giro necessário das posições discursivas – domestre, do universitário, da histérica e do analista – por parte da referênciado paciente e da equipe. Endereçamento para uma nova aposta sobre o devirdesse suposto sujeito.A supervisão de equipe pode ser um elemento desuporte na construção do caso clínico. Aqui não se trata do grande olhar,super-visão, de um saber que se apresenta de fora para a equipe. O supervisorse faz presente como mais um, alteridade instituída no laço transferencialcom a equipe. É o facilitador da circulação livre da palavra desde seus dife-rentes pontos de origem, apontando na direção dos encontros e desencontrosentre os saberes interdisciplinares. O supervisor não pode ser aquele que seapresenta pelo douto saber, mas aquele que permite à equipe trabalhar ori-entada na sua falta a saber.

Por fim, o que costura a interdisciplina e a transcende é um projeto.Um projeto se faz no eixo longitudinal do tempo, atravessado pelo jogo detensões inerentes à equipe e desta com a cidade. Trabalho constante dereinvenção.

SILVEIRA, E. R.; ENDRES, G. Sobre a polissemia...

Page 32: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

63C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.62 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Michel Foucault, mas, se por um lado não nos propomos a ficar emaranha-dos no imaginário das disputas de poder, por outro lado não é possível igno-rar o jogo de forças das diferentes posições presentes nessas situações.

Várias possibilidades de intervenção podem ser pensadas no campodas políticas públicas levando em conta a contribuição do diálogo entre apsicanálise e as diferentes áreas. Algumas iniciativas nesse sentido já acon-tecem, mas de forma ainda restrita e talvez fossem potencializadas se envol-vessem um coletivo maior de atores dentro do Instituto e fora dele. Somosresponsáveis pelo lugar ou falta de lugar que a experiência psicanalítica enossas idéias possam ocupar ou não nos mais variados campos. Fica oconvite a pensarmos e para que outras intervenções e aberturas se constru-am.

Referências Bibliográficas:

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio: o dicionário da língua portu-guesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2008.

LACAN, Jacques. A proposição de 9 de outubro de 1967. Outros Escritos. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

traz consigo uma forma de entendimento sobre o sintoma e o sofrimentohumano e de intervenção sobre ele. A clínica psicanalítica guiada por umaética do desejo e do inconsciente que não visa o Bem supremo, tambémprovoca seus efeitos, assim como clínicas guiadas por outras éticas, isso éinevitável. Por outro lado, sabemos também que as intervenções mais am-plas no coletivo são guiadas pela experiência clínica e também podem seracompanhadas desse espírito investigativo.

Entretanto, gostaríamos de lançar para discussão novas aberturaspossíveis para outro aspecto da palavra intervenção além dos já citados,uma outra forma de intervenção que talvez possamos explorar mais. No ver-bete do Dicionário Aurélio, a palavra intervenção tem, entre outros, os signi-ficados de “ato de intervir”, “interferência”. Estamos mais familiarizados coma interferência psicanalítica no âmbito mais individualizado da clínica do su-jeito e em algumas interferências no âmbito de instituições. Na clínica emestrito senso, tendemos a uma posição mais de escuta dos significantes ede deixar-nos guiar pelo tempo lógico do sujeito.

A formulação e construção dos programas e políticas na área públicaé uma área que exige um posicionamento mais ativo e uma área na qual nóspsicanalistas ainda intervimos bastante timidamente ou de forma isolada, emuito comumente não intervimos. As políticas públicas ocorrem basicamen-te em três esferas: municipal, estadual e federal. Muitos de nós atuamos emalguma dessas esferas onde é possível ter algum nível de interferência sobreas políticas e programas voltados, por exemplo, para a saúde, a assistência,a educação etc. Muitas vezes fazemos isso de forma individual, quando po-deríamos somar forças na construção de políticas públicas a partir da interrelação com o que nos é ensinado pela experiência da psicanálise. Ou pode-ríamos pensar no interior do coletivo psicanalítico estratégias para operarintervenções e sugestões nessas políticas. Poderíamos nos posicionar deforma mais organizada e refletida diante de programas ou políticas que pro-põem, por exemplo, montar a assistência à saúde mental a partir de apenasuma linha teórica ou uma forma de intervenção única, em detrimento dariqueza das diversificadas produções. Saber e poder andam juntos segundo

SILVEIRA, E. R.; ENDRES, G. Sobre a polissemia...

Page 33: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

65C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.64 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO DEBATES

permanecer na memória). Construímos um memorial porque queremos lem-brar, porque não queremos esquecer! Num memorial de guerra, por exemplo,não queremos esquecer esses que morreram para que depois pudéssemosviver de um outro modo, bem como não podemos esquecer que os horrorese as barbáries, que se apresentam numa guerra, participam, ainda, do hu-mano.

Tem-se falando bastante, entre psicanalistas, sobre tatuagem, atéporque ela vem se fazendo presente nos consultórios. No entanto, muitasvezes, fala-se de tatuagem com certa reserva, como que com “um pé atrás”,ou, o outro lado da mesma moeda, fazendo estardalhaço em torno do tema.Nesses momentos, quase sempre surgem interrogações/explicações do tipo:“para quê fazer uma marca definitiva no real do corpo?” ou “isso que se quertatuar é algo que deve ser tratado ou elaborado em análise para ser simboli-zado”.

Mas será que tudo pode ser simbolizado pela via da fala? E, aindamais, será que é sempre esse o objetivo da nossa clínica? Sim, porqueconsiderando que a resposta a estas perguntas seja sim, estamos com issoafirmando que somos sujeitos estruturados apenas simbolicamente, ou queo ideal ou o melhor seria, no mínimo, haver um predomínio do simbólicosobre o imaginário e o real.

Talvez esta querela tenha relação com o que chamamos, entrelacanianos, de primeira e segunda clínicas de Lacan.

Com Lacan aprendemos que são heterogêneas as determinações dohumano: simbólicas, imaginárias e reais. E, ainda mais: são determinaçõesque se relacionam, mas não se subsumem.

Então, por que seria uma boa saída (boa enquanto de reconhecidovalor social) se fazer ou se construir um memorial de guerra, mas não seriauma boa saída se fazer uma tatuagem memorial? Trata-se de um mesmoreal que insiste: a morte. Trata-se daquilo que não podemos falar, porqueindizível, inefável, inominável, e, por isso, é do que mais falamos, sem parar.Trata-se do que já foi chamado de “núcleo duro das coisas”.

Fazer o memorial – nos dois casos – diz respeito ao ato tipicamente

À FLOR DA PELEOU

A FLOR NA PELE

Heloísa Marcon

“Que símbolo fecundoVem na aurora ansiosa?Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.”Fernando Pessoa (O Encoberto)

Muito estranhamente, o tema da “tatuagem memorial” me lembrouao da “filosofia bélica” do “olho por olho, dente por dente”. Tal asso-ciação estranha me fez pensar na seguinte hipótese: há coisas

que o melhor é que sejam tratadas no registro possível de lidar com elas (eque nem sempre corresponde com o ideal ou o politicamente correto).

Explico-me: há um tipo de tatuagem que se pode chamar de memorialem função do que foi o motivador do ato de tatuar-se: lembrar alguém ou algoimportante.

Da minha experiência quase cotidiana num estúdio de tatuagem, pos-so dizer que um grande número de tatuagens é do tipo ornamental, isto é,feitas para enfeitar o corpo ou uma parte dele. Ao menos assim o são – detipo ornamental – no momento em que são feitas, pois après-coup, muitasvezes, fazem aparecer um significado (ou seria um significante?). Mas, emsua minoria, existem as tatuagens do tipo memorial, feitas com algo querepresente alguém ou algo que, este que se tatua, não quer esquecer, preci-sa lembrar.

Freud, no seu texto “Fetichismo”, apresenta o objeto fetiche como ummemorial. Ele usa para isso a palavra alemã Denkmal. Denk, pensamento,Denkmal sendo assim algo como trazer para o pensamento – como possibi-lita um memorial. Memorial diz respeito à memória e à memorável (digno de

MARCON, H. À flor da pele ou...

Page 34: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

66 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

SEÇÃO DEBATES

66 67C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009.

AGENDA

AGOSTO – 2009

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA

Reunião da Comissão da Revista

PSICANÁLISE E CINEMA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

14h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min

06

06, 13,20 e 27

10 e 24

07, 14,21 e 28

07 e 28 Sede da APPOA

Reunião da Comissão da BibliotecaSede da APPOA

humano de fazer litoral, fazer borda, instaurar descontinuidade, esburacar oreal que é duro, excessivo e contínuo. Nesse sentido, o memorial é um atosimbólico para algo não simbolizável em si; ou seja, é fazer algo que é pos-sível com isso que é da ordem do impossível, com esse real que, a partir deentão, arado, revolvido, cavado, pode fazer brotar uma flor!

De qualquer forma, não se trata da lógica do “olho por olho”, mas,quem sabe, a do “olho por olhar”...

19h30min28

Page 35: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Fernanda Breda e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt, Gerson Smiech Pinho,Márcia Lacerda Zechin, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,

Marta Pedó, Mercês Gazzi e Robson de Freitas Pereira.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

GESTÃO 2009/2010Presidência: Lúcia Alves Mees

1a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg2a Vice-Presidência: Marieta Luce Madeira Rodrigues

1a Secretária: Maria Elisabeth Tubino2° Secretários: Otávio Augusto Winck Nunes e Ieda Prates da Silva

1a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz2a Tesoureira: Liz Nunes Ramos

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Costa, Ana Laura Giongo, Beatriz Kauri dos Reis,Carmen Backes, Emília Estivalet Broide, Inajara Erthal Amaral, Lucia Serrano Pereira,

Márcia da Rocha Lacerda Zechin, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Ângela Bulhões,Maria Elisabeth Tubino, Nilson Sibemberg, Norton Cezar dal Follo da Rosa Júnior,

Regina de Souza Silva, Robson de Freitas Pereira, Sandra Djambolakdjian Torosian,

Siloé Rey, Simone Goulart Kasper, Tatiane Reis Vianna.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Page 36: EDITORIAL deste número do Correio O Para aqueles que ... · C. da APPOA, Porto Alegre, n. 182, ago., 2009. 1 EDITORIAL O s textos que compõem a Seção Temática 1 deste número

INSTITUTO APPOA

N° 182 – ANO XVI AGOSTO – 2009 ISSN 1983-5337

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 3SEÇÃO TEMÁTICA 15DE UMA CLÍNICA QUE NÃOSERIA DO SEMBLANTEAna Costa 15DIÁGOLOS COM O DIREITOMarcia H. de Menezes Ribeiro 24PSICANÁLISE E INTERVENÇÃO NOCUIDADO À PRIMEIRA INFÂNCIAInajara Erthal AmaralRenata maria Conte de Almeida 30ENTRE CLAUSURAS E PASSAGENS:OS JOVENS, AS CIDADESE SUAS CONSTRUÇÕESTatiane Reis Vianna 36ENTRE FADAS E LOBOS: UMDISPOSITIVO PARA ESCUTAR A DORSandra Djambolakdjian Torrossian 45CONSTRUÇÕES PSICANALÍTICASPARA A CONSTRUÇÃO DE EQUIPESINTERDISCIPLINARES NOS EQUIPAMENTOSDA REFORMA PSIQUIÁTRICANilson Sibemberg 54SOBRE A POLISSEMIADO TEMA INTERVENÇÃOElaine Rosner da SilveiraGiselda Endress 61

SEÇÃO DEBATES 64À FLOR DA PELE OU A FLOR NA PELEHeloísa Marcon 64

AGENDA 67