Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

12
Resultados de fenômenos meteorológicos de grande intensidade, despreparo dos governos e falta de políticas de habitação pa- ra as cidades brasileiras compõem o quadro da tra- gédia em Santa Catarina. Os efeitos do agravamento do aquecimento global em todo o mundo também são uma preocupação, embora meteorologistas e pesqui- sadores afirmem que as enxurradas não foram provocadas diretamente pela elevação da tempera- tura mundial. Págs. 2 e 3 Santa Catarina São Paulo, de 4 a 10 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.br Ano 6 • Número 301 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 ISSN 1978-5134 Nos Estados Unidos, muitos presídios, grandes negócios Quando se pensava que o sistema capitalista havia esgotado todas as suas formas de exploração, descobre- se mais uma: o uso da mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados. Com 8.700 unidades espalhadas dentro de seu território, os EUA, além de serem o país campeão mundial de presídios, também são o primeiro em números percentuais de presos. E esse é um negócio que interessa aos empresários dos mais inesperados ramos. Até mesmo a rede de lanchonetes KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, investe em presídios no país. Pág. 11 Na Bahia, Jacques Wagner apóia expansão da Veracel Com o total apoio do go- vernador Jacques Wagner (PT), a transnacional do ramo da celulose Veracel deverá investir 2,5 bilhões de dólares na expansão da monocultura do eucalipto. Wagner chegou a ir a Es- tocolmo, capital da Suécia, em meados de novembro, para garantir os investi- mentos. Para as entida- des da sociedade civil, é inaceitável que o governo apóie uma empresa con- denada judicialmente por desmatar áreas de Mata Atlântica Pág. 5 Pela primeira vez desde o início da crise, os movimen- tos sociais brasileiros foram chamados para debater com o governo federal. Na ausência do presidente Lu- la, alguns quiseram apro- veitar o evento para fazer loas à ministra da Casa Civil, antecipando a cam- panha de 2010, destoando, vergonhosamente, da gravi- dade dos fatos. Págs. 2 e 4 Movimentos sociais querem discutir crise, não eleições completa cem dias de governo no Paraguai. Entre os principais de- safios enfrentados estão o combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu. Para o assessor do ministério da Comunicação do país, Juan Díaz Bordenave, o presidente Fernando Lu- go deu início à reforma agrária e está conseguin- do desmontar ninhos de corrupção. Mas o gover- no necessita do apoio do povo para poder fazer as mudanças. Pág. 9 Lugo A propaganda ideológica de todos os dias Pág. 8 “Aqui em Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fiscal.” Assim o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS), em audiência pública no Con- gresso, dia 18, para defen- der a agropecuária – que, segundo ele, sofre pressão dos bancos, ambientalistas, índios e Ministério do Tra- balho –, tentou justificar o assassinato de um servidor público em Goiás. Pág. 6 Deputado dá aval a assassinato de fiscal África – Ismael Ossemane, um dos fundadores da União Nacional de Camponeses (Unac) e militante ativo na construção da Moçambique pós-independência, fala da história de seu país e da luta do seu povo em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Pág. 12 Fernando Donasci/Folha Imagem Familia Blublitz aguarda a chegada do helicóptero de resgate, no município de Luiz Alves, Santa Catarina Divulgação Douglas Mansur/ Novo Movimento AFOGANDO EM NÚMEROS A ajuda destinada pelo governo federal a Santa Catarina, de R$ 1,6 bilhão, é metade do que foi gasto com o Pan-americano do Rio, que custou R$ 3,3 bilhões. Orçado inicialmente em R$ 390 milhões, o Pan superou em 12 vezes a média dos gastos dos jogos de Santo Domingo, Winnipeg, Mar del Plata e Havana, que foi de R$ 280 milhões. Wilson Dias/ABr

description

Uma visão popular do Brasil e do mundo de R$ 1,6 bilhão, é metade do que foi gasto com o Pan-americano do Rio, que custou R$ 3,3 bilhões. Orçado inicialmente em R$ 390 milhões, o Pan superou em 12 vezes a média dos gastos dos jogos de que foi de R$ 280 milhões. Uma visão popular do Brasil e do mundo AFOGANDO EM NÚMEROS A ajuda destinada pelo governo federal a Santa Catarina, São Paulo, de 4 a 10 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno6•Número301 Santo Domingo, Winnipeg, Mar del Plata e Havana, Wilson Dias/ABr

Transcript of Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

Page 1: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

Resultados de fenômenos meteorológicos de grande intensidade, despreparo dos governos e falta de políticas de habitação pa-ra as cidades brasileiras compõem o quadro da tra-gédia em Santa Catarina. Os efeitos do agravamento do aquecimento global em todo o mundo também são uma preocupação, embora meteorologistas e pesqui-sadores afirmem que as enxurradas não foram provocadas diretamente pela elevação da tempera-tura mundial. Págs. 2 e 3

Santa Catarina

São Paulo, de 4 a 10 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno 6 • Número 301

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

ISSN 1978-5134

Nos Estados Unidos,muitos presídios,grandes negóciosQuando se pensava que o sistema capitalista havia esgotado todas as suas formas de exploração, descobre-se mais uma: o uso da mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados. Com 8.700 unidades espalhadas dentro de seu território, os EUA, além de serem o país campeão mundial de presídios, também são o primeiro em números percentuais de presos. E esse é um negócio que interessa aos empresários dos mais inesperados ramos. Até mesmo a rede de lanchonetes KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, investe em presídios no país. Pág. 11

Na Bahia, Jacques Wagner apóia expansão da Veracel

Com o total apoio do go-vernador Jacques Wagner (PT), a transnacional do ramo da celulose Veracel deverá investir 2,5 bilhões de dólares na expansão da monocultura do eucalipto. Wagner chegou a ir a Es-tocolmo, capital da Suécia,

em meados de novembro, para garantir os investi-mentos. Para as entida-des da sociedade civil, é inaceitável que o governo apóie uma empresa con-denada judicialmente por desmatar áreas de Mata Atlântica Pág. 5

Pela primeira vez desde o início da crise, os movimen-tos sociais brasileiros foram chamados para debater com o governo federal. Na ausência do presidente Lu-la, alguns quiseram apro-veitar o evento para fazer loas à ministra da Casa Civil, antecipando a cam-panha de 2010, destoando, vergonhosamente, da gravi-dade dos fatos. Págs. 2 e 4

Movimentos sociais queremdiscutir crise,não eleições

completa cem dias de governo no Paraguai. Entre os principais de-safios enfrentados estão o combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu. Para o assessor do ministério da Comunicação do país, Juan Díaz Bordenave, o presidente Fernando Lu-go deu início à reforma agrária e está conseguin-do desmontar ninhos de corrupção. Mas o gover-no necessita do apoio do povo para poder fazer as mudanças. Pág. 9

Lugo

A propaganda ideológica de todos os dias Pág. 8

“Aqui em Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fiscal.” Assim o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS), em audiência pública no Con-gresso, dia 18, para defen-der a agropecuária – que, segundo ele, sofre pressão dos bancos, ambientalistas, índios e Ministério do Tra-balho –, tentou justificar o assassinato de um servidor público em Goiás. Pág. 6

Deputado dá aval a assassinatode fi scal

África – Ismael Ossemane, um dos fundadores da União Nacional de Camponeses (Unac) e militante ativo na construção da Moçambique pós-independência, fala da história de seu país e da luta

do seu povo em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Pág. 12

Fernando Donasci/Folha Imagem

Familia Blublitz aguarda a chegada do helicóptero de resgate, no município de Luiz Alves, Santa Catarina

Divulgação

Douglas Mansur/ Novo Movimento

AFOGANDO EM NÚMEROS A ajuda destinada pelo governo federal a Santa Catarina,

de R$ 1,6 bilhão, é metade do que foi gasto com o

Pan-americano do Rio, que custou R$ 3,3 bilhões.

Orçado inicialmente em R$ 390 milhões, o Pan

superou em 12 vezes a média dos gastos dos jogos de

Santo Domingo, Winnipeg, Mar del Plata e Havana,

que foi de R$ 280 milhões.

Wilson Dias/ABr

Page 2: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

Em terras de Simón Bolívar

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sa-les de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper,

João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

A crise é grave e atingirá todo povo brasileiro

AS CHUVAS que caem há três meses seguidos em Santa Catarina acaba-ram se transformando em tragédia. E, no meio da dor de milhares de fa-mílias que perderam pessoas e coisas, me vem à mente o célebre debate en-tre Voltaire e Rousseau, feito através de escritos, pouco depois do terre-moto de Lisboa (Portugal), ocorrido em 1755. Naquela tragédia européia morreram mais de 100 mil pessoas, a cidade fi cou destruída e os grandes pensadores da época – que eram os que formavam opinião, tal qual hoje a mídia – erguiam os braços aos céus dizendo que era uma fatalidade, obra da providência divina. Voltaire iro-nizava esta idéia de que o terremoto fosse um castigo de deus e colocava a culpa na natureza. Já Rousseau mos-trava as causas sociais do desastre e apontava: “20 mil casas de seis ou sete andares foram construídas. O homem deveria tê-las feito menores e mais dispersas”. Para ele, era a civili-zação humana a culpada pelos males que se abatiam sobre ela. Rousseau inocentava assim a deus e a natureza, e lembrava que havia sido a idéia insana de muitos lisboetas de prote-gerem seus pertences que os levara – muitos – à morte.

Pois, em Santa Catarina, estamos nesse embate. O mundo literalmente desabou sobre nossas cabeças. Na região do vale do Itajaí, os morros vieram abaixo, soterrando casas e gentes. As construções humanas se esmigalharam como se fossem folhas de papel, mostrando a fragilidade da raça. Algumas cidades foram inteira-mente invadidas pelas águas dos rios, e o desespero tomou conta de mais de um milhão de pessoas atingidas pela catástrofe. Como na Lisboa do século 18, não há aqui nada de pro-vidência divina. Se deus é bondade, não permitiria tanta dor. Eu que creio num deus minúsculo, que é apenas rede onde descansamos a dor, o eximo deste caso.

A grande mídia exibe os argumen-tos de Voltaire. A chuva é a grande vilã. Não fosse ela, nada teria aconte-cido. Ninguém fala que a chuva é coi-sa natural e que desde que o mundo é mundo ela cai, ora mais, ora menos. O que se diz é que os morros caíram por conta dela, que os rios subiram por conta dela e quando, de noite, ela volta, insistente, as gentes a maldi-zem e a temem.

Eu tendo a fazer uma leitura rous-soniana. A chuva é coisa bendita. Ela vem para trazer vida, nunca morte. Se hoje, junto com ela, vem a ceifadora, há que se buscar outros culpados. Afi nal de contas, por que os rios transbordam? Que fi zeram com eles os homens que habitam suas margens? E os morros que desa-bam, não teriam sido revirados para a plantação de tubos da gigantesca obra do gasoduto, tão denunciada por ambientalistas e estudiosos no

início dos anos de 1990. Pois naque-les dias eram chamados de loucos, os “ecochatos”, os antiprogresso, os que impediam o desenvolvimento.

As enchentes e os deslizamentos que cobriram de dor Santa Catarina não são obra do acaso ou da ira de um deus vingativo. Elas são o resul-tado da incapacidade dos homens em perceber que são parte da natureza, membros vivos da Pachamama, da mãe Gaia. Mas qual, isso é conversa de naturebas, falsos hipppies, incon-seqüentes, os que vivem falando de socialismo, cooperação, vida simples e integrada com a natureza. A tragé-dia que se abate sobre o vale do Itajaí e outras tantas regiões do Estado já estava anunciada. Desde sempre... Vinha sendo prevista por aqueles a quem as pessoas denominam “os arautos da desgraça”. Os que vêem defeito em tudo, que questionam ca-da obra faraônica, cada plano diretor mal planejado, cada ação irracional do sistema capitalista.

Basta que se dê uma espiada nos relatórios elaborados por estudiosos e ambientalistas, estes que nunca são ouvidos pelos governantes. As obras de prevenção sempre são caras demais e nunca saem do papel. Às vezes se faz uma concessão aqui ou ali, mas, no geral, as grandes saídas são esquecidas nas gavetas, até que venha uma nova tragédia.

Por isso, me entristece um pouco ver toda essa comoção que imedia-tamente toma conta das pessoas em todos os lugares. Os comitês de aju-da, as doações de comida e roupas, as lágrimas de piedade. Não que eu ache que isso não é necessário. Sim, é. As pessoas precisam comer agora, aqui. Mas o povo de Santa Catarina não precisa só desse breve momento de musculação de consciência que vai durar enquanto a mídia centrar seus holofotes na região. A gente desse Es-

tado vai precisar de todo esse povo na hora de empreender a luta por obras de prevenção, na hora em que tiver de abrir mão de algumas benesses do progresso e do desenvolvimento para garantir que coisas assim nunca mais aconteçam.

Cá com meus botões, eu temo que tudo isso siga seu ciclo perverso. O mundo todo de olho no Estado por um mês ou dois e, depois, o esque-cimento. As famílias que perderam gente, acomodam sua dor. Os que perderam coisas, recuperam. E a vida segue, enquanto nos palácios os governantes contratam empreiteiros para a reconstrução. Os mesmos de sempre levarão os lucros. Os que nada têm agradecerão por estarem vivos, e os remediados se levantarão outra vez. Até quem venha um ciclo-ne, outra chuva, um tsunami e tudo recomece na roda insana.

Talvez, a grande tragédia não seja a chuva, mas essa absurda in-capacidade que grande parte das gentes têm de compreender que as catástrofes são faturas da nossa construção histórica, da nossa forma de organizar a vida, do desejo de do-minar a natureza, da nossa ânsia de acumular riqueza. Não é à toa que enquanto o mundo todo ora por nós, o governo do Estado trame a aprova-ção – em caráter de emergência – de um novo código fl orestal que tem como princípio básico a destruição da natureza. Se efetivamente preci-samos de lágrimas e comoção, que seja por isso. E que todos possam se unir na luta contra esse projeto tan-to quanto estão mobilizados para a ajuda às vítimas. Como já dizia o ve-lho Marx, é sempre bom que a gente possa ver para além da aparência. Eu, otimista incurável, acredito que Santa Catarina vai lutar.

Elaine Tavares é jornalista .

debate Elaine Tavares

As chuvas em Santa Catarina crônicaLuiz Ricardo Leitão

NAS ÚLTIMAS semanas, a imprensa corporativa tem dado destaque aos sinais, fatores, causas e conseqüên-cias da crise. No início, o debate girava em torno de falsas polêmicas, como, por exemplo, se a crise era do capitalismo ou apenas do capital fi nanceiro. Depois, mudaram o en-foque, abordando se a crise era dos Estados Unidos e também da Euro-pa, ou quem sabe mundial. Em se-guida, passaram a abordar se a crise era duradoura ou passageira, cíclica ou estrutural.

A verdade é que poucos analistas trataram com profundidade e bus-caram de fato explicar a natureza da crise, sua gravidade e conseqüências. Primeiro, pelo que se viu dos jorna-listas e dos colunistas econômicos de plantão, o fato é que eles não sabem explicar; a maioria tem formação neoclássica. Segundo, aderiram com “mala e cuia”, como dizem os gaúchos, às teses do neoliberalismo, nas quais o mercado é o Senhor, re-gula tudo e todos. Terceiro, por não estudarem, fi cam como papagaios repetindo a vontade do capital ex-pressa nas declarações de suas fontes empresariais. Agora, diante da crise, além de não saberem explicar, fi cam constrangidos com suas próprias contradições. Conclusão: os comen-taristas da grande imprensa foram todos desmoralizados junto com seus

patrocinadores doutrinários. O feti-che do mercado os “enganou”.

Como consequência, os leitores e telespectadores acabam tendo dia-riamente apenas o relato dos fatos, não explicados, dos sintomas de uma crise grave, profunda, cíclica, estru-tural, mundial, e que, provavelmen-te, será muito prolongada.

Enquanto isso, os assessores do governo Lula parecem mover-se apenas pelo que lêem nos jornais. Muitos deles, inclusive, esqueceram o que estudaram no velho Marx. As explicações do governo para a sociedade seguem o sabor da super-fi cialidade, e, em alguns casos, da irresponsabilidade defendida pela imprensa. Durante várias semanas foi repetido que o Brasil era protegi-do por Deus, que a crise não chega-ria aqui, que tínhamos bases sólidas, reservas em dólar etc., etc., etc.

Mas a realidade é outra. A cada dia estamos assistindo as conseqüências dessa crise baterem à porta de todo povo brasileiro. As vendas da indús-tria automobilística caíram 25%, mui-tos setores já deram férias coletivas para os trabalhadores e o desemprego

cresce. Projetos de investimento são adiados. Isso, justamente nesse setor que é a locomotiva do capitalismo industrial dependente. Além disso, a indústria de calçados está desem-pregando em massa, há defi cit na balança de pagamentos. Sadia, Nestlé e outras empresas do agro jogaram todo peso da crise sobre os pequenos agricultores, baixando o preço pago pelo leite, frango e porco em mais de 30%. Sem baixar o preço no super-mercado, é claro.

Frente a isso, o governo tomou até agora apenas medidas para pro-teger os interesses das empresas. As notícias dão conta de que foram injetados 158 bilhões de reais em fi nanciamento barato para os capi-talistas. Há uma medida provisória que autoriza o senhor Meirelles a fa-zer o que quiser com nosso dinheiro. A taxa de juros continua lá em cima. O governo segue garantindo a taxa de 14% ao ano aos banqueiros. E os bancos cobram até 68% ao ano nas prestações dos consumidores. São as mais altas taxas de juros do mundo. Já nos países ricos, cobra-se apenas de 2% a 3% de juros ao ano.

No dia 26 de novembro, o presi-dente Lula tomou a sábia iniciativa de convocar todos os movimentos sociais do país para debater a crise. Militantes e dirigentes preocupados com a gravidade da crise acorreram massivamente ao convite. Cerca de 60 entidades e movimentos mais representativos do povo brasileiro prepararam um documento com mais de 20 propostas (leia na pág. 4). As sugestões são muitas e am-plas. Vão desde trocar o presidente do Banco Central, mudar a política de superavit primário e aplicar esse dinheiro, que é publico, em vez de pagamento de juros, em programas de solução dos problemas do povo, como reforma agrária, educação, moradia, melhorias na saúde públi-ca, elevação do salário mínimo etc., à necessidade de um plano de emer-gência e massivo de geração de em-pregos, com redução da jornada de trabalho, e penalização das empresas que desempregarem. Os movimentos também defenderam as iniciativas de governos da América Latina para efetivar o Banco do Sul, para colocar nossas reservas, tirando-as de Nova

York, e construir uma zona de moe-da comum, supranacional, fugindo do dólar e de suas armadilhas.

Os movimentos fi zeram sua parte, leram e entregaram os documentos. Mas os puxa-sacos palacianos falta-ram. Como o presidente não pôde comparecer por causa das chuvas em Santa Catarina, alguns espertinhos quiseram aproveitar o evento para fazer loas à ministra da Casa Civil, antecipando a campanha de 2010, destoando, vergonhosamente, da gravidade dos fatos.

A imprensa burguesa se lambusou. Uniram-se os oportunistas do Pa-lácio com os jornalistas tucanos de plantão. Nada de debater seriamente as soluções para a crise. Para os bu-rocratas e carreiristas partidários, só lhes interessam as campanhas elei-torais, para manterem seus cargos públicos, pagos com nosso trabalho.

Mas a história ensina que quem costuma brincar com fogo em geral sai queimado!

Todos sabemos que, quando o ca-pitalismo entra em crise, fi ca ainda mais explorador, mais violento e irresponsável.

É hora do governo Lula e governos estaduais sérios convocarem todas as forças da sociedade para fazermos um grande debate sobre as medidas necessárias para proteger o povo brasileiro da sanha do capitalismo.

de 4 a 10 de dezembro de 20082

editorial

GamaESCREVO DIRETAMENTE de Caracas, na Venezuela, onde tive a honra e o prazer de ministrar uma ofi cina de Literatura para um gru-po de jovens profi ssionais da Vive-TV, emissora estatal que difunde e estimula as lutas e iniciativas comunitárias em todo o país. O clima por aqui é de enorme efervescência: há um processo de mudanças em marcha, liderado pela fi gura polêmica e singular de Hugo Chávez, ao qual ninguém consegue fi car indiferente, o que estimula a crescente politização da vida pública nacional.

O ambicioso projeto da “Revolução Socialista Bolivariana” segue seu curso, em meio a vários desafi os e obstáculos cuja superação, por ve-zes, nos parece quase impossível. Apesar da Constituinte, a estrutura do Estado ainda é incapaz de impulsionar todas as medidas reclama-das pela população. Além disso, o poder dos monopólios e das corpo-rações transnacionais permanece praticamente incólume, fato que soa como um paradoxo dentro de um regime que se pretende socialista. Nacionalizaram-se algumas empresas (entre elas, siderúrgicas, indús-trias têxteis e até mesmo o afamado Hilton Hotel, que agora se chama Alba), é bem verdade, mas o capital privado continua a faturar milhões na terra de Simón Bolívar.

A trágica herança de décadas de submissão da burguesia aos interesses do imperialismo ianque está bem visível na própria fi sionomia da metró-pole. Quase todas as encostas de Caracas (situada em uma região monta-nhosa a poucos quilômetros do litoral) foram ocupadas por condomínios luxuosos, tal como ocorre na zona sul do Rio de Janeiro, ou por moradias populares. Estas confi guram uma ampla malha de comunidades a que os habitantes locais chamam de barrios. Elas me evocam de imediato o cenário das favelas cariocas, mas com uma diferença básica: em vez do poder absoluto das “milícias” ou dos bandos de trafi cantes que há nos morros cariocas, surgem nesses espaços os Conselhos Comunitários, uma forma ainda incipiente, porém efetiva, de inserir o povo venezuelano na revolução proposta por Chávez.

No asfalto, as seqüelas do capitalismo periférico também se notam. Com a gasolina a preço de banana, o número de carros não pára de cres-cer. O tráfego é caótico, os motoristas ignoram todas as regras de trânsito e os congestionamentos são insuportáveis até mesmo para um paulistano habituado à paranóia das marginais do Tietê. O novo alcaide da velha Caracas, Jorge Rodríguez (PSUV), promete investimentos no transporte coletivo e de massa (já existem seis linhas de metrô em funcionamento), mas essa batalha deverá ser bem mais árdua do que a própria Revolução Bolivariana... Isso sem falar na febre dos celulares (há casais que almo-çam sem conversar entre si, presos ao telefone durante a refeição), um índice eloqüente da sedução que a sociedade de consumo pós-moderna exerce sobre a classe média.

No plano político, a efervescência não tem fi m. A julgar pela quan-tidade de textos e análises que circulam pela internet, as eleições do último dia 23 são um exemplo cabal do fenômeno. Há quem jure que o chavismo agoniza, há quem se empolgue com os números do novo partido socialista (PSUV). Como fugaz observador do pleito, devo dizer que “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”... O PSUV logrou recuperar-se da derrota sofrida há um ano, quando a oposição venceu por estreita margem o referendo sobre as emendas constitucionais e barrou as al-terações postuladas por Chávez. Com quase 1,2 milhão de votos a mais que os adversários, o partido elegeu 17 dos 22 governadores estaduais, mas amargou sérios reveses em algumas das províncias mais ricas do território, sobretudo em Zulia (região petrolífera), Táchira e Miranda. Mais além dos números, porém, o fato incontestável na Venezuela é a crescente inserção dos movimentos sociais na vida nacional, decerto o maior trunfo do projeto bolivariano em curso.

É evidente que uma parte da oposição já não cultiva o mesmo tom bélico e agressivo que levou ao golpe de 2003. Até na própria mídia, há sutis matizes dignos de atenção: enquanto a RCTV e a rede Globovisión seguem atacando ostensivamente o governo Chávez, a Venevisión resol-veu adotar uma posição de “independência” ou “neutralidade”, evitando claramente provocações ou calúnias contra o regime. Chávez, por sua vez, insiste na tática do confronto, não concedendo um minuto de trégua aos opositores. Alguns analistas julgam equivocada a tática do comandante, mas quadros do PSUV avaliam que, sem a polarização, não seria possível acelerar o processo de consolidação do poder popular e de incremento das forças bolivarianas. Ninguém pode prever o rumo das coisas por aqui, mas não há dúvida de que Chávez tem prestado uma ajuda decisiva às lutas dos povos latino-americanos.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatu-ra Latino-americana pela Universidad de La Habana, é autor de Lima Barreto:

o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Page 3: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 2008 3

brasil

Raquel Casiraghide Porto Alegre (RS)

A TRAGÉDIA que assola San-ta Catarina nas últimas se-manas pode ser uma amostra dos efeitos do agravamento do aquecimento global em to-do o mundo. Embora meteoro-logistas e pesquisadores afi r-mem que as enxurradas não foram provocadas diretamen-te pela elevação da temperatu-ra mundial, estimativas apon-tam que eventos climáticos ex-tremos devem ocorrer mais ve-zes e com mais intensidade.

O meteorologista do Centro de Previsão de Tempo e Es-tudos Climáticos do Institu-to Nacional de Pesquisas Es-paciais (CPTEC/INPE) Olívio Bahia do Sacramento explica que as chuvas fortes que atin-giram o Estado foram provoca-das por dois sistemas meteoro-lógicos fortes e que estiveram na região por muito tempo. De um lado, um grande anticiclo-ne atuou sobre o Atlântico, fa-zendo com que a circulação de ar levasse a umidade do ocea-no para o continente. Além dos ventos, também havia um vór-tice ciclônico que sugou a umi-dade que estava em superfície e a enviou para camadas su-periores, intensifi cando assim a instabilidade e provocando mais chuva.

Para Sacramento, esses dois fenômenos explicam porque as chuvas, embora normais du-rante o verão no Sul do Bra-sil, caíram com tanta intensi-dade em Santa Catarina. “In-felizmente não havia como evi-tar. Fazemos uma avaliação di-ária e já tínhamos enviado avi-sos sobre chuvas signifi cativas na região, acima de 100 mm.

de Porto Alegre (RS)

A falta de política de habitação, muito comum nas cidades brasi-leiras, agravou os efeitos das chu-vas que atingem Santa Catarina há três meses e que se intensifi caram no fi nal de novembro. O arquite-to e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Uni-versidade Regional de Blumenau (FURB) Luiz Alberto de Souza ava-lia que a urbanização e as moradias precárias no Vale do Itajaí – região mais atingida pelos temporais e pe-las enchentes – contribuíram para as mais de cem mortes. Dados ex-traofi ciais apontam que, somente na cidade de Blumenau, o defi cit de moradia atinge 6 mil famílias.

“Nossa região não difere de ne-nhuma outra parte do Brasil e de outras cidades. Nós temos um modelo de exclusão socioterrito-rial, em que a população menos favorecida, do ponto de vista ha-bitacional, tem que suprir sua de-manda através de alternativas. E essas alternativas geralmente aca-bam sendo as áreas que não são muito apropriadas para a ocupa-ção”, afi rma.

Souza relata que a própria urba-nização da região do Vale do Itajaí foi alterada por outra tragédia, as enchentes de 1983 e de 1984. De-vido às perdas, a população de di-ferentes classes sociais, que antes morava nas áreas planas, passou a desmatar e a ocupar os morros. Processo que, com o agravamen-to das chuvas, resultou nos des-lizamentos e em pelo menos 116 mortes. “As enxurradas e os desli-zamentos atingiram as classes me-nos favorecidas, as pessoas pobres, mas atingiram também, em deter-minados setores e regiões da cida-de casas, edifi cações da classe mé-dia. Mas eu ainda diria que, em um balanço mais geral, a população mais pobre foi a mais penalizada, porque foi na periferia que houve muitos danos materiais.”

Tragédia anunciada em Santa CatarinaDESASTRE Fenômenos meteorológicos de grande intensidade, despreparo dos governos e falta de políticas de habitação para as cidades brasileiras compõem o retrato da tragédia no Estado do Sul. Preocupação aumenta com piora do aquecimento global

O que não esperávamos eram chuvas acima de 300 mm, co-mo caíram no leste de Santa Catarina. O que podemos fazer é avisar. Não há como segurar a natureza”, argumenta.

O pesquisador Antônio Man-zi, do Instituto Nacional de Pes-quisas da Amazônia (INPA), descarta uma infl uência do des-matamento da Amazônia nas enxurradas que caíram no Es-tado. Resultados bastante con-clusivos mostram que a derru-bada da mata altera o clima lo-

O arquiteto reclama que as po-líticas habitacionais não são prio-ridade para os governos estaduais e o federal. Tanto é que, com a ex-tinção do Banco Nacional de Habi-tação (BNH) em 1986, houve um vácuo nas políticas nacionais até 2003, com a criação do Ministé-rio das Cidades. No entanto, os re-cursos disponibilizados para habi-tação ainda são escassos, e os mu-nicípios falham na fi scalização de moradias em áreas de risco. “O que aconteceu aqui em Blumenau não é diferente do que pode aconte-

cer em outras cidades brasileiras. A população pobre continua mo-rando mal, em áreas impróprias e sujeitas a risco. Só que é claro que aqui teve esse fenômeno meteoro-lógico que agravou a situação. Es-peramos agora, com essas tragé-dias que ocorreram, que as políti-cas sejam realmente mais efetivas e que seja resolvida a questão ha-bitacional”, diz. (RC) e (PC)

de Porto Alegre (RS)

Dados divulgados na noite do dia 1º pela Defesa Civil de Santa Catarina registram 116 mortes, 31 pessoas de-saparecidas e quase 79 mil desaloja-dos e desabrigados. A cidade de Ilho-ta contabiliza o maior número de víti-mas fatais, 37, seguida de Blumenau, com 24, e Gaspar, com 16, todas no Vale do Itajaí.

Os deslizamentos de terra também atingiram rodovias – até o dia 1º, uma BR e sete estradas estaduais ainda es-tavam totalmente fechadas – e inter-romperam a distribuição de gás na-tural no Rio Grande do Sul, afetando principalmente hospitais, algumas in-dústrias e a frota de táxi GNV. A BR-101, uma das mais importantes do pa-ís, permaneceu interrompida até o úl-timo domingo em SC.

As exportações via Porto de Ita-jaí, segundo maior porto de contêi-neres do país, sofreram queda de 370 milhões de dólare em novembro por conta dos produtos que deixaram de ser embarcados. Levantamento do Ministério do Desenvolvimento mos-tra que o porto responde por 4% das exportações: 22% das vendas externas de fumo, 26% das exportações de mó-veis, 21% de produtos cerâmicos, 32% de compressores e 60% da produ-ção nacional de maçã. As reformas e a normalização do porto, que foi des-truído pelas enxurradas, deverão levar em torno de 20 dias.

DoençasEm locais que fi caram “ilhados” de-

vido à enchente e aos deslizamentos, a Defesa Civil determinou que os pró-prios moradores enterrassem os ani-mais mortos, principalmente de gran-de porte, como bois e cavalos. Em ca-sos extremos, foi indicado o enterro de pessoas mortas com a marcação do local, para que depois seja feito o pro-cedimento correto. A iniciativa é para evitar doenças.

A Secretaria de Saúde de Santa Ca-tarina já registrou 10 casos de possível infecção de leptospirose. A preocupa-ção é que os casos aumentem, já que em alguns municípios, como em Ita-jaí, não há recolhimento de lixo nor-malizado e a enchente espalhou os re-síduos, situação que contribui para a proliferação dos ratos, causadores da doença. (RC) e (PC)

cal, mas no sentido de tornar mais quente e menos úmido. Sobre alterações no regime de chuvas, há apenas modelos que apontam um aumento do índi-ce pluviométrico no Centro e no Sul do Brasil e da América Lati-na, mas pouco conclusivos.

No entanto, Manzi argumenta que, numa avaliação mais am-pla, é possível relacionar a en-xurrada catarinense com as mudanças climáticas globais. Mesmo que ainda não existam dados sufi cientes, estudos pre-

vêem que as mudanças glo-bais vão amplifi car os fenôme-nos climáticos. “É possível que as mudanças climáticas globais possam ter alguma infl uência na intensidade do efeito em SC. Embora seja muito difícil afi r-mar com certeza em um even-to único. Mas uma das conse-qüências das mudanças climáti-cas globais que os modelos pre-vêem é que esses eventos consi-derados extremos vão aconte-cer com maior intensidade no futuro”, diz.

Má preparaçãoO despreparo dos governos

e das cidades brasileiras para um agravamento dos efeitos do aquecimento global se mostrou gritante na tragédia em Santa Catarina. Grande parte das 116 mortes registradas pela Defe-sa Civil até a noite do dia 1 foi devido a deslizamentos de ter-ra em conseqüência das fortes chuvas, e não diretamente por afogamento nas enchentes.

O meteorologista do CPTEC/INPE Olívio Bahia do Sacra-

mento avalia como necessário pensar em estratégias de ante-cipação desses fenômenos. “As cidades ainda não estão prepa-radas para agir em uma situa-ção dessas, pois não há como parar as chuvas, que em grande quantidade vão alagar os rios e as ruas, os barrancos vão des-lizar e soterrar casas que estão próximas. O que a Defesa Civil vai fazer? Evacuar cidades in-teiras? É uma situação para se avaliar”, afi rma.

O professor do Departamen-to de Arquitetura e Urbanis-mo da Universidade Regional de Blumenau (FURB) Luiz Al-berto de Souza acompanha de perto o drama das famílias fl a-geladas. Blumenau, no Vale do Itajaí, é a segunda cidade que mais registrou número de óbi-tos (24). Ele também concorda que os governos, tanto das cida-des como dos Estados e do pró-prio país, estão despreparados para esse tipo de acontecimen-to e defende mais investimen-to em sistemas de alertas e pre-venção e na infra-estrutura, co-mo a Defesa Civil.

“Acho que o que deve ser re-almente pensado é ter a possi-bilidade disso ser uma práticamais comum. De termos con-dições de alerta como acon-tece nos Estados Unidos comos tornados, que possam fazercom que esse trabalho poste-rior de limpeza e de reconstru-ção seja menor. As pessoas fi -cam nos abrigos, mas eles nãoestão preparados. São abrigosimprovisados. A maioria daspessoas está em escolas compoucos chuveiros, as cozinhasnão estão equipadas. Nós re-almente não temos um planode Defesa Civil que dê conta”,argumenta (colaborou PaulaCassandra).

De acordo com professor, as enchentes de 1983 e de 1984 podem ter associação com os deslizamentos. Desde aquela época, devido às perdas, a população de diferentes classes sociais, que antes morava nas áreas planas, passou a desmatar e a ocupar os morros

Políticas precárias de habitação agravaram o problema

Números de guerra

Famílias lamentam tragédia, e bombeiros ainda buscam sobreviventes

Fernando Donasci/Folha Imagem

Moradores do município de Luis Alves (SC) são resgatados por helicóptero da Força Área Brasileira

Fer

nand

o D

onas

ci/F

olha

Imag

emW

ilson

Dia

s/A

Br

Nei

va D

altr

ozo-

SE

CO

M

Page 4: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 20084

brasil

ECONOMIA

Dafne Meloda Redação

MUDAR A política econômica, am-pliar emprego, renda e direitos so-ciais, fortalecer as alianças latino-americanas. Essas são as linhas ge-rais das propostas que um conjun-to de 57 movimentos sociais brasi-leiros levaram ao governo federal em reunião com os ministros Gui-do Mantega (Economia), Luiz Dul-ci (Secretaria Geral da Presidên-cia) e Dilma Roussef (Casa Civil), dia 26 de novembro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, espera-do pelos movimentos, não compa-receu. Justifi cou sua ausência com a necessidade de ir a Santa Catari-na, por conta dos desastres causa-dos pelas chuvas.

Foi a primeira vez, desde o iní-cio da crise fi nanceira mundial, que o governo sentou para con-versar com os movimentos sociais. Primeiro, falaram Mantega e Dulci, seguido de alguns dos dirigentes. A carta de reivindicações foi lida em voz alta, e outros fi zeram duras crí-ticas à política econômica. Por últi-mo, pronunciou-se Dilma Roussef, que defendeu a postura econômica de seu governo.

Na avaliação de Milton Viá-rio, secretário nacional da Confe-deração Nacional dos Metalúrgi-cos (CNM-CUT), a reunião, ainda que importante, não correspondeu às expectativas. “Queríamos deba-ter e dialogar de forma transparen-te. A reunião caminhou muito pa-ra uma prestação de contas dos seis anos de governo. Não houve o de-bate anunciado”, lamenta.

AvaliaçõesPara Marina dos Santos, inte-

grante da direção nacional do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o não compare-cimento de Lula também acabou prejudicando a reunião. “Querí-amos discutir com o responsá-vel pelas políticas do governo as mudanças necessárias e o desti-no do nosso país. Queremos fazer um debate sério e profundo sobre o Brasil com o presidente. Com-preendemos a situação de catás-trofe em SC, e nos solidarizamos, mas queremos ser chamados pa-ra debater o projeto de nação com o presidente, e não somente nos momentos de crise – como foi fei-to até agora”, protesta.

Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), salienta a importância de

Leia algumas propostas retiradas do documento assinado por 57 enti-dades e movimentos, entre eles Via Campesina Brasil, Assembléia Po-pular, União Nacional dos Estudan-tes (UNE), Central Única dos Traba-lhadores (CUT), Movimento dos Tra-balhadores Sem Teto (MTST), Mar-cha Mundial de Mulheres, Confede-ração Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB):

- Controlar e reduzir imediatamente as taxas de juros;- Impor um rigoroso controle da movimentação do capital fi nanceiro especulativo;- Utilização das riquezas naturais (como o petróleo e minérios) para criar fundos solidários que solucio-nem os problemas do povo;- Cancelamento imediato do novo leilão do petróleo, marcado para dia 18 de dezembro;- Revisar a política de manutenção do superavit primário, uma velha e des-gastada orientação do FMI – um dos responsáveis pela crise econômica in-ternacional. Os recursos devem ser revertidos para a sociedade, com in-

da Redação

No dia seguinte após a reunião entre os movimentos sociais e o governo fede-ral, alguns dos principais jornais do pa-ís reportavam que o encontro havia se transformado em um ato de apoio à can-didatura de Dilma Roussef para a presi-dência da República em 2010.

Ainda que alguns movimentos te-nham feito falas nesse sentido, os repre-sentantes ouvidos pela reportagem ne-gam qualquer declaração de apoio elei-toral à atual chefe da Casa Civil nas pró-ximas eleições. “Houve uma fala nesse sentido que não expressa a totalidade das forças que lá estavam. A UNE não foi lá defender nenhum candidato pa-ra 2010”, declarou Lúcia Stumpf, para

“A reunião caminhou muito para uma prestação de contas dos 6 anos de governo. Não houve o debate anunciado”, lamenta Milton Viário, da CUT

Movimentos apresentam propostas para o Brasil diante da crise mundialALTERNATIVAS Em reunião com governo federal, 57 movimentos sociais criticam política econômica e defendem trabalhadores

quem a imprensa corporativa deu ênfa-se a isso para, na verdade, fugir do deba-te central e do conteúdo das propostas dos movimentos. “Estamos preocupa-dos com o futuro do nosso país, que não será resolvido de eleição em eleição, mas com um novo ascenso do movimento de massas em defesa das mudanças estru-turais e de um projeto nacional”, reitera Marina dos Santos, do MST.

Milton Viário, da Confederação Na-cional dos Metalúrgicos, também afi r-ma que o objetivo da reunião foi deba-ter a crise econômica com o governo fe-deral, nunca declarar qualquer apoio político. “Se, diante da grave crise em que estamos, o governo só pensasse em 2010, seria de uma pobreza política enorme”, opina Milton. (DM)

se manter espaços de diálogo en-tre o governo e os movimentos so-ciais. “Valorizamos o espaço que tivemos para colocar nossas idéias, e conseguimos deixar claro que o povo organizado tem uma opi-nião sobre a crise e estamos aten-tos. Não passarão desapercebidas quaisquer medidas que venham a onerar o povo”, afi rma.

Lúcia também avalia que as me-didas tomadas por Lula para conter a crise são “insufi cientes” e não to-cam na grande contradição do go-verno, que é sua política macroeco-nômica, com a manutenção de al-tos juros e alto superavit primário. Milton Viário concorda: “São medi-das paliativas e de fôlego curto. A longo prazo, não se sustentam”.

Essas medidas, avaliam, estão centradas apenas em setores da elite econômica, sem que nada te-nha sido pensado para o conjunto da classe trabalhadora. “As medi-das do governo, até agora, se limi-

tam ao apoio aos bancos, às gran-des empresas e ao setor exportador, que lucraram com o neoliberalismo e agora, em momento de crise, re-correm ao Estado que tanto discri-minavam”, conclui Marina.

UnidadeUm dos pontos positivos da reu-

nião, destacado pelos três dirigen-tes, é a unidade de diversos movi-mentos em torno de propostas con-cretas para mudar a sociedade bra-sileira (ver box). Lúcia Stumpf en-fatiza que, agora, “a unidade de pro-postas precisa se concretizar numa unidade de luta, em batalhas con-cretas que somem as forças ali re-presentadas”. Para isso, espaços de debates e organização de lutas entre as entidades e movimentos devem ocorrer nos próximos meses. O ob-jetivo é criar agendas de lutas con-juntas para 2009.

Marina dos Santos conta que esses setores vêm participando de discussões, com a meta de ela-borar um programa com propos-tas de mudanças que criem con-dições para um projeto de desen-volvimento nacional que resgate o papel do Estado como ator na economia. “E esse processo não vai parar aí, estamos construindo uma agenda de mobilizações em conjunto para 2009. Nossa pre-ocupação é o tamanho da conta que vai sobrar para a classe traba-lhadora com essa crise. O gover-no brasileiro tem que se preocu-par com o trabalho e as questões sociais do povo”, fi naliza.

Movimentos negam apoio à DilmaNo dia seguinte à reunião, imprensa corporativa afi rma que reunião virou ato pró-Dilma

Saídas à esquerda vestimentos em áreas como a saúde, educação, moradia e reforma agrária;- Execução de um plano de manuten-ção e ampliação dos empregos e ren-da, redução da jornada e punição às empresas que demitem;- Revogação da Lei Kandir que sus-pende o imposto sobre as exporta-ções de matérias-primas agrícolas e minerais;- Fortalecimento da estratégia de in-tegração regional, que se materializa a partir dos mecanismos como o Mer-cosul, Unasul e Alba;- Substituição do dólar nas transa-ções comerciais por moedas locais, como recentemente fi zeram Brasil e Argentina;- Consolidação, o mais rápido pos-sível, do Banco do Sul, como agen-te promotor do desenvolvimento re-gional, auxiliando no crescimento do mercado interno entre os países da América Latina e como um mecanis-mo de controle de reservas, para im-pedir a especulação fi nanceira;- Retirada imediata de todas as for-ças estrangeiras do Haiti. Nenhum país da América Latina deve ter ba-ses e presença militar estrangeira. Propõe-se, no lugar, a constituição de um fundo internacional solidário para reconstrução econômica e so-cial do Haiti.

Renato Godoy de Toledoda Redação

Uma comissão especial da Câmara aprovou, no dia 19 de novembro, um parecer do deputado Sandro Mabel (PR-GO) sobre a reforma tributá-ria. Em termos práticos, essa alteração na cobrança de im-postos já está pronta para ser votada no plenário.

Para a reforma ser aprova-da, é preciso que o governo te-nha uma maioria simples no plenário em favor do Proje-to de Emenda Constitucional (PEC). Ávido por uma alteração na arrecadação de tributos des-de a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimenta-ção Financeira (CPMF), em de-zembro de 2007, o governo de-monstra que se empenhará pa-ra votar a PEC ainda neste ano. No entanto, a oposição prome-te barrar os planos do governo. O bloco DEM-PSDB alega que é favorável à reforma, mas prefe-re esperar a crise passar para

instituí-la, já que ainda não se tem noção do tamanho do im-pacto da turbulência.

O principal articulador da re-sistência à reforma tem sido o governador paulista José Serra (PSDB), que teme perder ver-bas com a criação do Fundo Na-cional de Desenvolvimento Re-gional (FNDR), que repararia algumas disparidades arreca-datórias presentes no atual mo-delo tributário e combateria a guerra fi scal.

A reforma também recebe críticas da oposição de esquer-da, representada no Congres-so pelo Psol, que rechaça a PEC por ela manter a estrutura re-gressiva do sistema de cobran-ça de impostos. Em outras pala-vras, quem ganha mais continu-ará pagando menos, e os pobres permanecerão sendo os mais onerados pelos impostos.

Dentro da própria base aliada, não há consenso sobre a refor-ma. O bloco de Esquerda, for-mado por PCdoB, PDT e PSB, exige alterações no texto para votar com o governo.

Seguridade ameaçadaPara além da disputa par-

lamentar, especialistas apon-tam uma série de falhas no projeto de reforma e, sobretu-do, um elemento nefasto que pode dar fôlego aos argumen-tos favoráveis a uma nova re-forma da previdência, obri-gando milhares de trabalha-dores a contribuir com mais anos de serviço.

Segundo essa análise, a cria-ção do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) ameaçaria o conjunto das verbas da segu-ridade social – que, de acor-do com a Constituição de 1988, engloba previdência, saúde e assistência social. De acordo com o projeto de reforma, es-se novo tributo substituiria o Programa de Integração So-cial (PIS), a Contribuição pa-ra Financiamento da Seguri-dade (Cofi ns) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líqüido (CSLL), que têm receitas vin-culadas à Seguridade Social.

Com o IVA, a arrecadação iria para a conta única do Te-souro Nacional, e o principal temor é de que as verbas se-jam utilizadas para fi ns “me-nos nobres”. Nesse cenário, a equipe econômica do gover-no teria liberdade para gastar essa verba com o pagamen-to de superavit e juros da dí-vida, por exemplo, já que não tem mais a obrigação consti-tucional de investir o recurso em seguridade.

A instituição do novo imposto prevê que parte de sua arreca-dação pode ser destinada à se-guridade, mas o montante não pode ultrapassar 38%. Assim, em um ano fi scal de baixa arre-cadação, a verba de saúde, pre-vidência e assistência social po-dem ser prejudicadas pela nova legislação.

Como resposta a essa críti-ca, o governo afi rma que, se necessário, o Tesouro acudi-rá a seguridade em momentos de crise. No entanto, o Execu-tivo afi rma que esse expedien-te nunca precisou ser utiliza-do até hoje.

MEC descontenteOutro item que causou dis-

córdia dentro do próprio go-verno quando a PEC foi elabo-rada, em fevereiro deste ano, foi a extinção do salário-edu-cação. Este benefício hoje é fi -nanciado pelo recolhimento de 2,5% da folha de pagamen-to. A medida enfrenta resis-tência no Ministério da Edu-cação (MEC), que recebeu R$ 7 bilhões em 2007 por meio dessa contribuição. O governo afi rma que tanto as verbas da seguridade quanto as do salá-rio-educação serão ressarcidas pelo Tesouro Nacional.

Sérgio Miranda, ex-depu-tado federal e presidente do PDT de Belo Horizonte, critica a PEC desde sua primeira edi-ção, no início do ano. Mesmo com as revisões e destaques su-geridos no Congresso, a essên-

Em outras palavras, [com a reforma] quem ganha mais continuará pagando menos, e os pobres permanecerão sendo os mais onerados pelos impostos

Governo pretende aprovar reforma tributária conservadora ainda em 2008Projeto de Emenda Constitucional é criticado por afetar as contas da Seguridade Social e desonerar empresários sem contrapartidas

cia do projeto continua a mes-ma, segundo ele. “As agressõesà seguridade continuam, bemcomo as isenções ao setor pa-tronal e o fi m das contribuições sociais”, explica.

Na análise do pedetista, nãohá clima para votar a PEC nes-te ano, como pretende o go-verno. “A seguridade é umadas conquistas mais avança-das da Constituição. Ela ga-rantiu as igualdades de direi-to e a multiplicidade de fontesde recursos. Não adianta o go-verno dizer que isso [a refor-ma] não vai mudar nada. Nãose pode discutir política socialsem discutir fi nanciamento”,afi rma Miranda.

As centrais sindicais critica-ram o fato de a reforma insti-tuir uma redução da alíquo-ta das contribuições patro-nais ao INSS de 20% para 6%,sem indicar quais fontes re-poriam essa perda fi nancei-ra. Em conversas de bastido-res no início do ano, o própriopresidente da República, LuizInácio Lula da Silva, teria ditoque essa desoneração poderiaaumentar o chamado defi cit da Previdência.

“A desoneração pode au-mentar o que eles chamam dedefi cit da previdência. Se ti-ra de um lado, tem que com-pensar de outro. E isso não foifeito. Pode ser que não tenha-mos problemas agora, masno futuro o governo pode searrepender amargamente”,prevê Miranda.

Dilma Rousseff e Guido Mantega durante encontro com movimentos sociais

Alan Marques/Folha Imagem

Page 5: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 2008 5

nacional

A Veracel possui apenas 410 trabalhadores diretos em sua fábrica e cerca de 9 mil tercei-rizados, além de contar com serviços terceirizados de 180 empresas.

QuantoDafne Meloda Redação

A DESPEITO da condenação pela Justiça da Veracel, por desmatar 96 mil hectares de Mata Atlântica no sul da Bahia, o governo do Estado não tem medido esforços para que a empresa mantenha – e amplie – seus negócios na região. A Veracel atua no ramo da celu-lose e é fruto de uma parceria entre a sueco-fi nlandesa Sto-ra Enso e a brasileira Aracruz. Atualmente, ela atua em dez municípios do sul da Bahia.

Em maio deste ano, a empre-sa já havia manifestado o inte-resse em duplicar sua produ-ção. Em novembro, o governa-dor Jacques Wagner (PT) foi para Estocolmo para acelerar o processo e acertar detalhes da negociata. No programa de rá-dio “Conversa com o Governa-dor” – programa semanal feito pelo seu gabinete –, ele confi r-mou que Stora Enso irá investir 2,5 bilhões de dólares no novo projeto. “Eu me encontrei com o diretor presidente da Veracel mundial e o diretor presidente do grupo Stora Enso. Para mi-nha alegria, vi a absoluta dis-posição deles em confi rmar o investimento de 2,5 bilhões de dólares para fazer a Veracel II e, portanto, duplicar sua pro-dução”, informou, e completou que o empreendimento garan-tirá “mais investimento, mais obra, mais emprego e mais ri-queza para o Estado”.

O governador ainda disse, du-rante a entrevista, que se reuniu com a federação das indústrias de madeira da Suécia com o ob-jetivo de atrair outras transna-cionais do ramo da celulose pa-ra a Bahia. De acordo com in-formações disponíveis na pági-

na na internet do Tribunal Su-perior Eleitoral (TSE), a Ara-cruz doou 100 mil reais para a campanha de Wagner em 2006; a Veracel, outros 100 mil. A Su-zano, outra empresa do ramo, deu 70 mil.

Repercussão“O que nos deixa preocupado

é que, se for dobrar a capacida-de de produção deles, nossos problemas devem dobrar tam-bém”, alerta Ivonete Gonçal-ves, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul (Cepedes). Por problemas, entende-se a concentração de terras, expulsão dos trabalha-dores rurais do campo, degra-dação ambiental causada pelo monocultivo do eucalipto, den-tre outros, conforme denuncia-

va a edição 285 do Brasil de Fato. Ivonete conta que mes-mo antes de confi rmar e ofi cia-lizar seu projeto de expansão, a empresa já vem adquirindo terras no sul do Estado.

O padre José Koopmans, do município de Teixeira de Frei-tas, lamenta que mais uma vez as reivindicações históri-cas dos movimentos sociais da região estejam “sendo jogadas no lixo” pelos governos. “Aqui, o Estado sempre apoiou esse modelo de desenvolvimento. Com a entrada do PT, infeliz-mente, nada mudou.”

Quanto à geração de empre-gos, Ivonete afi rma que a em-presa emprega diretamente pouquíssimas pessoas e apos-ta na tercerização a baixos sa-lários. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas indústrias de

celulose da Bahia (Sindicelpa), a Veracel possui apenas 410 tra-balhadores diretos em sua fábri-ca e cerca de 9 mil terceirizados, além de contar com serviços ter-ceirizados de 180 empresas.

Ação civilOutro ponto grave é que o

governo apóie uma empre-sa que judicialmente foi con-denada por ter desmatado 96 mil hectares de Mata Atlântica. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Na-turais Renováveis (Ibama) e o Centro de Recursos Ambien-tais (CRA) também foram con-denados, por terem sido ne-gligentes e terem autorizado o início das atividades da empre-sa, em 1991, sem os estudos de impacto ambiental que a legis-lação brasileira exige.

A Justiça federal acatou a Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Fede-ral em agosto deste ano, 15 anos depois da data em que a ação foi movida. De acordo com a deter-minação do MPF, a empresa te-rá que restaurar, com vegetação nativa, todas as suas áreas com-preendidas nas licenças de plan-tio de eucalipto liberadas entre 1993 e 1996. A empresa recor-reu, e o processo se encontra a espera de novo julgamento.

Além do processo na área am-biental, o MPF também investi-ga se houve corrupção por par-

te dos funcionários públicos do Ibama e CRA para a libera-ção do plantio. O promotor de Justiça João Alves da Silva, que cuida da ação, em entrevista à edição 285 do Brasil de Fa-to, afi rmou que há indícios de formação de uma quadrilha que atua em favor da empresa, faci-litando autorizações.

Novas degradaçõesDe acordo com Ivonete, as

entidades fi carão atentas a no-vas possíveis ilegalidades. “Oque aconteceu pode voltar aacontecer, inclusive porque osórgãos responsáveis afi rmam que não têm condições técni-cas e humanas de fazer os estu-dos”, explica.

Padre José afi rma que de fa-to há poucos recursos e estrutu-ra para os estudos. “O CRA tem dois escritórios com quatro fun-cionários, no total, para 27 mu-nicípios do sul da Bahia”, de-nuncia. Diante da incapacida-de do Estado de fazer valer a lei ambiental, Ivonete conta que as entidades pedem moratória do plantio, “mas o que tem preva-lecido são os interesses dessas empresas”, que iniciam seus projetos sem estudos.

Outro fator preocupante é a construção do Porto do Sul. No dia 28 de outubro, em visi-ta a Salvador, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um protocolo de intenções para es-tabelecer procedimentos para a construção da obra, que, segun-do as declarações de Jacques Wagner, foi um atrativo a mais para que a Stora Enso decidis-se aumentar a sua produção na região. Entidades ambientalis-tas já afi rmam que o porto, a ser construído na cidade de Ilhéus, trará inúmeros problemas am-bientais, abrangendo inclusive áreas de preservação.

De acordo informações disponíveis na página na internet do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Aracruz doou 100 mil reais para a campanha de Wagner em 2006; a Veracel, outros 100 mil. A Suzano, outra empresa do ramo, deu 70 mil

Veracel II: duas vezes mais problemasMONOCULTURA Empresa obtém apoio do governador Jacques Wagner (PT) para dobrar sua produção de celulose no Estado da Bahia

Deserto verde: eucaliptos da Veracel no sul da Bahia

Reprodução

Page 6: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 20086

brasil

Ralo públicoHá muito tempo que entidades

fi lantrópicas de fachada e ONGs de picaretagem assaltam os cofres públicos com projetos e serviços não executados. Inúmeras enti-dades encobrem os esquemas de caixa dois de deputados e senado-res. A atual CPI das ONGs é um engodo da direita. Cabe ao gover-no tomar a iniciativa de fi scalizar essas atividades mantidas com o dinheiro público, inclusive para separar o que é sério do que é pura trambicagem.

Arrocho salarialUtilizado para o reajuste dos

aluguéis e de outros contratos, o índice IGP-M, da Fundação Getúlio Vargas, fechou o mês de novembro com infl ação acumulada de 9,95% no ano de 2008 e 11,88% nos úl-timos 12 meses. Para compensar esse aumento no custo de vida, os reajustes salariais dos trabalhado-res devem ser de 12% no mínimo. Quem conquistou isso nos dissídios e acordos coletivos?

Luta permanenteA Declaração Universal dos

Direitos Humanos completa 60 anos no dia 10 de dezembro. Re-presentou importante conquista, é referência para todos os povos e consiste num programa de luta para todos aqueles que acreditam na construção de uma sociedade livre, democrática, igualitária, jus-ta e solidária. Os direitos básicos ainda precisam alcançar boa parte do povo brasileiro.

Daniel Dantas – 1O delegado federal Ricardo Saadi,

que assumiu a operação Satiagraha no lugar de Protógenes Queiroz, pediu à Justiça nova prisão do banqueiro Daniel Dantas, já que o acusado – solto de prisão anterior pelo presidente do Supremo Tribu-nal Federal – continua praticando os crimes de gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Se o juiz decretar a pri-são, o STF vai soltar?

Daniel Dantas – 2A situação de Daniel Dantas se

complicou com a documentação e os depoimentos de alguns doleiros, que confi rmaram o esquema do Banco Opportunity para depositar dinheiro sujo no exterior e repatriá-lo com a lavagem. Os nomes dos clientes começam a aparecer aos poucos, entre eles o do empresário e deputado Paulo Maluf (PP-SP). Tem muito mais para ser revelado, se o STF deixar.

Fracasso digitalInaugurado há um ano, o sistema

de TV digital não conquistou o pú-blico, principalmente porque exige do usuário a compra de um conver-sor que custa em média 400 reais. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, que escolheu o padrão digital só para agradar a TV Globo, quer agora que o governo fi nancie a indústria e reduza impostos para baixar o preço do conversor. É mui-ta cara de pau!

Ganância contínuaMais uma vez o discurso ambien-

talista do governo foi desmentido pelo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: o desmatamento da Amazônia cres-ceu 3,8% no último ano, devido à ação de grandes empresas de cria-ção de gado e cultivo de soja. Os Estados que lideraram a derrubada da fl oresta foram o Pará (5.180 km2) e o Mato Grosso (3.259 km2). Um descalabro total!

Crime impuneEstá provado que a mina sub-

terrânea do Grupo Votorantim no município de Vazante, Minas Gerais, causa danos ambientais gravíssimos, como o esgotamento das reservas de água e a contami-nação dos rios da região com zinco, manganês, chumbo e ferro. Os processos movidos por agricultores estão parados no Judiciário. Existe alguma autoridade no Brasil capaz de conter a poderosa empresa?

Traição comercialApesar de a crise econômica

mundial afetar a indústria, o co-mércio e o setor de serviços no Brasil, com redução de produção e aumento das demissões, a im-prensa empresarial brasileira continua fazendo o jogo do capital internacional: critica a posição da Argentina, de proteção indus-trial na rodada Doha, e defende novas concessões do Mercosul pa-ra a indústria dos países ricos. É puro entreguismo!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Eduardo Sales de Limada Redação

“AQUI EM Goiás, até isso aconte-ce, os caras tiveram que matar um fi scal.” Para bom entendedor, a fra-se proferida pelo deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS), em au-diência pública no Congresso Nacio-nal, no dia 18 de novembro, é uma declaração de apoio ao assassina-to de um servidor público que fazia cumprir a lei no Estado de Goiás.

Para o economista José Juliano de Carvalho Filho, diretor da Asso-ciação Brasileira de Reforma Agrá-ria (ABRA), a segurança que Hein-ze demonstra, ao dizer abertamen-te o que pensa, ocorre porque a ban-cada ruralista é apoiada pelo gover-no Lula. “Muitos parlamentares que representam as forças mais retró-gradas do país formam a base parla-mentar do governo. Alguém vai pro-cessá-lo por este testemunho públi-co de assassinato? Com quem anda a Justiça?”, questiona, com indigna-ção, o economista.

Contudo, a bancada ruralista não se concentra somente em Brasília. Seis dias após a declaração, o pre-feito de Unaí (MG), Antero Mânica (PSDB), acusado de mandar matar três fi scais e um motorista em 2003, foi condecorado pela Assembléia Le-gislativa do Estado de Minas Gerais.

O prêmio a Mânica foi proposto pelo deputado estadual Inácio Fran-co (PV), que participou da recente campanha de sua reeleição e é pro-prietário da construtora Embraurb, especializada em pavimentação de estradas e ruas, que presta, em Unaí, serviços pagos pela prefeitura.

“Vejo esse fato como pura desfa-çatez. Além da impunidade, a con-decoração. Fatos como esse ofen-dem a cidadania”, indigna-se o di-retor da ABRA. Acaso Mânica seja preso, a condecoração servirá para diminuir a pena, funcionando como circunstância atenuante.

Endógeno ao EstadoA declaração de Luis Carlos Hein-

ze e a condecoração a Antero Mâ-nica revelam a que ponto chegou o aparelhamento do Estado feito pe-lo agronegócio. “Então, de certa for-ma, o crime é endógeno ao Estado porque tem o envolvimento de par-lamentares e gente do poder Exe-cutivo, como o próprio prefeito de Unaí”, exemplifi ca o coordenador

da Redação

O Relatório Direitos Humanos no Brasil 2008, organizado pe-la Rede Social de Justiça e Direi-tos Humanos, reúne 30 artigos que abordam temas históricos relacio-nados ao acesso à educação, à ter-ra, à moradia e ao trabalho dignos; ao respeito ao meio ambiente, aos direitos da mulher e aos povos in-dígenas e quilombolas.

A obra conta com a participa-ção de 22 entidades ligadas à de-fesa dos direitos humanos. É uma referência principalmente para or-ganizações sociais em seu proces-so de luta e também funciona co-mo um instrumento na educação da opinião pública sobre os temas que aborda, de acordo com a opi-nião de Maria Luisa Mendonça, di-retora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

A edição atual tem como desta-

ques a luta dos povos indígenas e a luta contra a criminalização dos movimentos sociais. No entanto, “a idéia é apresentar um amplo pa-norama, no qual a sociedade pos-sa entender que a luta pelos direi-tos básicos faz parte do cotidiano da maioria da população”, explica Maria Luisa, que reforça que o re-latório não se trata da “‘defesa de bandidos’, como a mídia reacioná-ria tenta colocar”.

Relações de poderUm trecho do artigo escrito pe-

lo Conselho Indigenista Missioná-rio (CIMI) mostra um pouco da vi-são dos que lutam no meio do po-vo. “A partir de uma situação local, de interesses particulares de inva-sores de terras da União (como são as terras indígenas), parte da socie-dade brasileira, neste ano de 2008, passou a olhar para os povos indí-genas como inimigos, e para os alia-dos dos indígenas como criminosos de interesses inconfessáveis”.

Considerada por Maria Luisa um instrumento de cobrança do Estado, a obra aborda os direitos humanos de forma ampla. Isso porque anali-sa a política econômica em conjun-to com as relações de poder e opres-são no Brasil.

Um exemplo dessa relação é mostrado pelo diretor da Associa-ção Brasileira de Reforma Agrá-ria José Juliano de Carvalho Filho,

que acompanha e analisa a polí-tica agrária do governo Lula. Em seu artigo, ele cita a ata secreta de uma reunião do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com a apro-vação de uma série de sanções con-tra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tinha como objetivo fi nal sua dissolução, o fechamento de suas escolas, bem como a recomendação de investiga-ção da atuação do Incra, da Conab e da Via Campesina no Estado.

Temas diversos As ações e omissões na seguran-

ça pública de São Paulo é outro te-ma presente no relatório. Os cien-tistas sociais Adriana Loche e Le-andro Siqueira, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Ar-quidiocese de São Paulo, escre-vem que o número de ocorrências de mortes provocadas pelas polí-cias no primeiro semestre de 2007, comparado com o mesmo período de 2008, aumentou em 21,9%, su-bindo de 201 mortes no ano passa-do para 245 mortes em 2008”.

No que diz respeito ao trabalho escravo, o livro mostra, que, entre janeiro e setembro de 2008, houve 179 denúncias de unidades de pro-dução rural envolvidas em trabalho escravo, com 5.203 trabalhadores resgatados. Entre 2003 e setembro de 2008, período do governo Lu-la, houve 1.446 denúncias. O Esta-do considerado “campeão” no crime tem sido o Pará.

Sobre os direitos da mulher, uma das denúncias do livro são as 250 mil internações por ano no Brasil para tratamento das complicações de aborto e seu conseqüente custo anual para o sistema público de saú-de, que chega a R$ 35 milhões.

No último capítulo, aparecem

do Grupo de Pesquisa Trabalho Es-cravo Contemporâneo/UFRJ, Ri-cardo Rezende Figueira.

Em outro nível, ele aponta, em ar-tigo, que a ação de alguns servidores públicos que promovem o crime ou que são omissos nas investigações, nas denúncias e nas sentenças tam-bém remetem a crimes considera-dos como endógenos ao Estado.

Rezende cita outros nomes envol-vidos com a exploração do trabalho escravo. “Temos o presidente da As-sembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado estadual Jorge Picciani, acusado de envolvimento com o trabalho escra-vo no Mato Grosso, há dois anos; e o deputado federal Inocêncio de Oli-veira (PR/PE), também denunciado por ter envolvimento com o traba-lho escravo.”

Para ele, é essa robustez da ban-cada ruralista, por vezes sustenta-da por membros do poderes Execu-tivo e Judiciário, que difi culta a so-lução de crimes no campo. No ca-so do massacre de Unaí (MG), além do crime não ter sido solucionado, o

principal acusado de ser o mandan-te dos assassinatos, Antero Mânica, foi sancionado positivamente pelos deputados mineiros.

Ricardo Rezende Figueira lembra no artigo outro fato que exemplifi -ca a difi culdade de punir o conjun-to de crimes dos ruralistas: a ope-ração na fazenda Pagrisa, em Uli-nópolis (PA), no fi nal de junho de 2007, quando um grupo móvel pro-cedeu uma das maiores operações de libertação de trabalhadores, num total de 1.064 pessoas. À época, o diretor da empresa, Marcos Villela Zancaner, acompanhado pela ban-cada parlamentar federal paraen-se, obteve audiência com o ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lu-pi, para reclamar do rigor da fi sca-lização. Dias depois, cinco senado-res da “bancada ruralista”, do PSDB e do DEM (ex-PFL), em nome da Comissão Externa do Senado, esti-veram na fazenda da Usina Pagrisa e disseram que o tratamento recebi-do pelos trabalhadores lhes pare-cia adequado, solicitando à Polícia Federal que instaurasse um inqué-

rito para investigar a ação do gru-po móvel. Ou seja, os papéis se in-verteram.

Construção histórica

Para José Juliano de Carvalho Fi-lho, toda a força e manipulação or-questradas pelos ruralistas é, em grande parte, culpa do governo Lu-la, que “prosseguiu e aumentou o avanço das forças políticas mais re-trógradas do país”. Segundo ele, a história se repete. “Foi assim na época das Reformas de Base em 1964 quando ocorreu o golpe mili-tar. Repetiu-se na redemocratização com a frustração da campanha das Diretas e, agora, envolve o governo Lula, o que signifi ca mais uma frus-tração nacional”, lamenta.

Ao interpretar que o culpado da atual situação não é somente o atu-al governo, Ricardo Rezende consi-dera também o peso da história. Pa-ra ele, os resquícios da ditadura ci-vil-militar, em conjunto com todas as Constituições brasileiras, trama-ram e estabeleceram, de fato, o atual poder dos ruralistas. “Apesar de vi-vermos numa abertura política, não signifi ca que as bases de sustenta-ção da ditadura acabaram.” A saber, dois dos partidos entre os que mais expressam os interesses da bancada ruralista, o DEM e o PP (do depu-tado Heinze), são remanescentes da Arena (o partido dos militares).

Quebra de decoroMas a história continua. O Sindi-

cato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho vai entrar com uma ação contra o deputado Luis Car-los Heinze, tentando provar a que-bra de decoro.

A deputada federal Vanessa Gra-zziotin (PCdoB/AM), que chegou a fazer uma representação na Câma-ra contra o deputado Jair Bolso-naro (PP/RJ) por quebra de deco-ro parlamentar, acredita que no ca-so de Heinze, cabe responsabilizá-lo do mesmo modo. Em agosto des-te ano, Bolsonaro afi rmou publica-mente que torturados no período di-tatorial brasileiro deveriam ter sido assassinados.

Mas antes de qualquer represen-tação, a deputada federal afi rmou ao Brasil de Fato que o presidente da Câmara deveria se reportar a Hein-ze para que o deputado revise a sua declaração. “Às vezes, ele pode ter falado sem pensar ou foi mal com-preendido”, pondera Grazziotin.

Deputado “libera” assassinato de fi scais do trabalho no paísAMIGOS DO PODER Declaração de deputado do Rio Grande do Sul e condecoração a prefeito de Unaí ilustram a que ponto chegou o aparelhamento do Estado pelo agronegócio

análises sobre as políticas interna-cionais, como, por exemplo, sobre a Iniciativa para Integração da In-fraestrutura Regional Sul-america-na (IIRSA), a retomada das ativida-des militares dos Estados Unidos na América Latina, uma análise sobre o último ano da “Era Bush” nesse as-pecto, e a situação dos migrantes.

Avanço do capital Na trajetória do primeiro ao atual

relatório (9ª edição), a diretora da Rede Social de Direitos Humanos extrai a essência que vem regendo o conjunto de artigos ao longo dos anos: “Um avanço enorme do capi-tal no meio rural, o que aumenta a destruição de bens naturais e a ex-ploração da força de trabalho”. Pa-ra ela, o governo Lula abandonou a proposta de reforma agrária. “É preciso retomar a bandeira da re-forma agrária como elemento cen-tral de um novo modelo de desen-volvimento”, defende.

Em todos esses anos, desde 2000, Maria Luisa afi rma que o que se vê é a continuidade de políticas públi-cas que benefi ciam as classes do-minantes. “O Brasil teria todas as condições de resolver problemas históricos como a fome, o analfa-betismo, a falta de moradia ade-quada, de acesso à terra, de edu-cação de qualidade, entre outros”, argumenta. Ela se vê indignada ao constatar que, em pleno século 21, o brasileiro ainda é obrigado a con-viver com tamanha desigualdade econômica e social.

O lançamento do livro acontece no dia 4 de dezembro, às 13h30, no Salão Nobre da Faculdade de Direi-to do Largo São Francisco, em São Paulo, dentro da programação do Tribunal Popular: o Estado brasilei-ro no banco dos réus. (ESL)

À sociedade brasileira: Relatório Direitos Humanos no Brasil 2008LANÇAMENTORelatório Direitos Humanos no Brasil chega à sua 9ª edição e será lançado no dia 4 de dezembro

“Aqui em Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fi scal”, diz deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS)

Diógenis Santos

Page 7: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 2008 7

brasil

Sérgio Haddad é coorde-nador geral da Ação Educati-va, membro da coordenação do Fórum Social Mundial (FSM) no Brasil e diretor presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos

Quem é

Renato Godoy de Toledoda Redação

APÓS QUATRO anos, o Fórum Social Mundial voltará ao Bra-sil em janeiro de 2009, agora em Belém (PA). Um dos prin-cipais motivos para a escolha da cidade foi o fato de ser con-siderada o portal da Amazô-nia. Assim, quando a cidade foi eleita, decidiu-se que um dos eixos principais do even-to seria a apresentação de al-ternativas dos movimentos so-ciais de todo o mundo para as agressões ao meio ambiente e a alteração climática, que co-locaram uma agenda ambien-tal na ordem do dia em todas as regiões do planeta.

No entanto, o fórum, tal como todos os outros espaços de dis-cussão, tanto de esquerda quan-to de direita, também será forte-mente pautado pela crise mun-dial defl agrada mais nitida-mente em meados deste ano. O grande desafi o do encontro será relacionar os danos ao meio am-biente com o modelo de produ-ção capitalista, posto em xeque com o agravamento da situação econômica mundial.

Entre os dias 27 de janeiro e 1º de fevereiro, mais de 2 mil organizações de 60 países de-vem se envolver em discus-sões sobre esses temas e pro-curar saídas para a humanida-de a partir de uma perspectiva mais humana, sustentável e so-

De volta ao Brasil, FSM vincula crise fi nanceira à questão ambientalENTREVISTA Representante da coordenação do FSM aponta a relação entre crise fi nanceira e danos ambientais como principal desafi o da reunião

lidária. De acordo com a orga-nização do FSM, ao todo, cer-ca de 100 mil pessoas devem participar das centenas de ofi -cinas nos seis dias do evento.Para Sérgio Haddad, coorde-nador do FSM, a 9ª edição de-ve retomar a raiz do evento: fi r-mar-se como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça).

Confi ra abaixo entrevista com Haddad.

Brasil de Fato - Qual é a importância simbólica da capital paraense como sede do Fórum Social Mundial?Sérgio Haddad – Vários fo-ram os motivos que levaram à escolha de Belém: o tema da crise ambiental, o crescimen-to do efeito estufa e do aqueci-mento global que tem levado à catástrofe ecológica global e à destruição de ecossistemas. Is-to afeta de maneira particular as populações locais e os pobres de uma maneira geral, tornan-do-se uma crise socioambien-tal. Além disso, a Amazônia é o local onde podemos identi-fi car mais fortemente os con-fl itos produzidos pelo modelo de ocupação, onde a fusão en-tre os mercados de alimento e energia se juntam em um avan-ço de destruição ambiental e de populações, produzindo gra-ves confl itos sociais. A Amazô-nia e a América Latina também foram escolhidas pelo crescen-

te número de governos eleitos por oposição ao modelo neoli-beral e que podem apontar pa-ra uma nova alternativa política para a reunião.

Inicialmente, se falava num fórum com uma ca-racterística mais ambien-tal, pelo fato de o aqueci-mento global ter imposto uma agenda “verde” até para os mais conservado-res. O que a organização do FSM fará para que o tema não seja atropelado pelas discussões acerca da crise fi nanceira internacional?

O grande desafi o para os par-ticipantes será relacionar a cri-se socioambiental com a cri-se fi nanceira, que é produto de um modelo de desenvolvimento que aprofunda as desigualdades sociais e o consumismo desen-freado, e que consome energia e bens naturais de forma incom-patível com a sustentabilidade do planeta. No fundo, há uma

crise civilizatória com profun-das conseqüências, e que apon-ta para um futuro sem saída pa-ra a humanidade.

Como o Fórum Social Mundial pretende ligar a crise aos danos ao meio ambiente?

A crise fi nanceira e a sensibi-lidade atual para os temas so-cioambientais apontam para uma oportunidade de aglutina-ção das forças sociais para pen-sar e atuar na construção de ou-tro modo de organização da so-ciedade. As forças presentes no FSM foram as primeiras a de-nunciar os limites das atuais políticas neoliberais e suas con-seqüências nefastas para a hu-manidade. Foram elas também que denunciaram mais forte-mente os organismos interna-cionais que aprofundavam e sustentavam este modelo de de-senvolvimento. Mas é também no FSM que se apresentam se-mentes de alternativas para

uma nova sociedade. A grande questão é como aglutinar forças e construir estratégias de en-frentamento para que as alter-nativas possam se expressar de forma efetiva.

De que forma o fórum pretende apontar alternativas à crise fi nanceira mundial?

O FSM tem sido um local de busca de alternativas, para além das denúncias. Suas múl-tiplas redes sociais apontam pa-ra novas formas de organização da produção, da circulação e do comércio justo, novos modelos de desenvolvimento socioam-biental. De lá tem saído propos-tas para controle dos capitais fi -nanceiros e para as compensa-ções ambientais, sobre alterna-tivas de organização do traba-lho que possam levar em conta a valorização do conhecimento e da mão-de-obra frente ao ca-pital. Também sobre o contro-le orçamentário dos governos e sobre mecanismos de partici-pação democrática que possam valorizar a democracia partici-pativa, na qual a presença das maiorias possa ser motivo de respeito aos direitos humanos e justiça social. Enfi m, são muitas as propostas.

Qual deve ser o formato do fórum? Deve haver um documento fi nal?

O FSM, como um processo, já vem se organizando com as ins-crições de atividades. Agora es-tamos na fase de aglutinação e facilitação destas atividades de forma a irmos construindo afi -nidades programáticas. Alguns eventos ocorrerão no período anterior, como o Fórum Ciência e Democracia, o Fórum Mun-

dial de Educação, Mídia Livre. Depois da marcha de abertura, com destaque para os povos in-dígenas e africanos, apontando para o FSM de 2010, haverá o dia pan-amazônico (28). As ati-vidades autogestionadas ocor-rerão nos dias seguintes, com facilitadores para as assem-bléias do sexto dia, por objeti-vos temáticos, nos quais se bus-carão as aglutinações para de-clarações convergentes, estra-tégias de lutas e campanhas. Deverão ser produzidos vários documentos a partir dessas as-sembléias de convergências te-máticas e alguns de natureza mais coletiva.

Por fi m, o fórum ainda pretende fi rmar-se como um contraponto a Davos ou admite a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas?

Mais do que nunca, o FSM re-toma sua natureza de contra-ponto a Davos. Afi nal, foi para isso que ele nasceu, e hoje, frente à crise, que é muito mais ampla que a questão fi nanceira, a his-tória demonstra o quanto esta estratégia estava correta. O que terão a dizer aqueles que se sen-tam no Fórum de Davos? Como explicar o fracasso de suas reco-mendações frente às profundas conseqüências para a humani-dade e o meio ambiente?

Encerramento do FSM de 2007, no Quênia

Kasuga Sho/CC

Page 8: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 20088

cultura

BIOGRAFIA

Rafael Villas Boas

A produção televisiva de fi c-ção no Brasil, sobretudo do mercado de telenovelas da rede Globo, tem incorporado com freqüência em seus pro-dutos a contrapropaganda de bandeiras dos movimentos sociais da esquerda brasilei-ra, haja vista o caso da críti-ca à política de cotas para ne-gros nas instituições de ensino superior em “Duas caras”, e a defesa aberta das empresas de celulose em “A Favorita”, am-bas telenovelas do assim cha-mado “horário nobre”, espa-ço de maior índice de audiên-cia, em que o preço do anún-cio dos comerciais atinge a ta-xa mais alta.

Seria errôneo chamar esse procedimento de merchandi-sing, porque não se trata sim-plesmente do anúncio de um produto em meio à trama da narrativa fi ccional. Sequer ca-be o termo merchandising so-cial, que propõe a publiciza-ção de práticas civilizatórias e o combate ao preconceito e à discriminação em algumas si-tuações específi cas, como aos portadores de necessidades especiais, inserindo na trama personagens que tenham al-gum tipo de necessidade, co-mo a Síndrome de Down.

O que está em jogo é a prá-tica de propaganda ideológi-ca inserida na trama das tele-novelas, com o objetivo de di-fundir uma opinião sobre te-mas da agenda política que foram pautados pelo esforço progressista de segmentos po-pulares da sociedade, à reve-lia dos interesses reacionários dos quais as grandes emisso-ras são porta-vozes.

A conta-gotasA tática tem lá sua efi ciên-

cia, pois, diferentemente do caráter formal dos telejornais, em que a forma notícia supos-tamente retrata questões da realidade, com a pretensa fi -nalidade de informar a popu-lação, no caso da fi cção, a pro-paganda ideológica é diluída na trama narrativa, pegan-do os telespectadores no mo-mento em que se encontram desarmados dos fi ltros críti-cos que possam ter ao assisti-rem os telejornais.

No limite, o hábito cultural de consumir telenovelas, com a disciplina de horas diárias dedicadas ao gesto da entre-ga ao entretenimento, é tam-bém o momento de introje-ção inconsciente do ponto de vista da classe dominante so-bre assuntos estratégicos pa-ra a manutenção de seu proje-to de poder.

No último capítulo de “Du-as Caras”, uma família mul-tirracial posa feliz para a foto-grafi a que pretende retratar a efetivação do modelo ideal de integração racial no Brasil: a retomada anacrônica do mi-to da democracia racial. Para uma telenovela que concen-trou pesada artilharia contra a legitimidade da política de cotas para negros, e na legiti-mação da privatização do en-sino superior brasileiro, com direito até a personagem ne-gro que escondia sua condição de riqueza para, supostamen-te, numa manobra populista, falar em nome dos negros po-bres, a fotografi a parecia ex-pressar com certo sarcasmo o júbilo com a batalha venci-da no campo da fi cção.

Entretanto, o poder da emis-sora, para além das fronteiras da fi cção, não corresponde à suas expectativas. Pelo contrá-rio, na vida real, a despeito das manipulações dos telejornais e telenovelas, assistimos dia a dia ao aumento de universi-dades que encampam as ações afi rmativas de cotas para ne-gros, indígenas e egressos de escolas públicas, e ao fortale-cimento das instituições pú-blicas de ensino superior – o que certamente incomoda aos empresários que lidam com a educação como uma mercado-ria a ser consumida, entre ou-tras, e representam fatia na-da irrelevante dos anunciantes das emissoras.

A favor de quem?“A Favorita” não representa

novidade no procedimento de incorporação temática nas te-lenovelas de questões polêmi-cas candentes na “sociedade brasileira”. Para fi carmos com exemplos de nosso interesse, em “O Rei do Gado” (1996), a luta pela reforma agrária foi o mote do inverossímil enredo dramático que teve na trama

um romance entre uma sem-terra e um latifundiário. E em “Duas caras”, a crescente or-ganização dos movimentos de trabalhadores sem-teto e de desempregados foi represen-tada como uma luta manobra-da por oportunistas e autoritá-rios líderes comunitários.

Em “A Favorita”, uma em-

presa de celulose é o centro aglutinador dos diversos nú-cleos de personagens da tele-novela, distribuídos entre a fa-mília proprietária e seus agre-gados, e os diversos focos de núcleos dos trabalhadores, habitantes da pequena cida-de que tem como seu principal motor econômico a indústria.

Um dos focos de confl ito da trama é a resistência que um personagem oferece para ven-der suas terras à empresa, que já comprara todas as terras ao redor de sua propriedade, pois pretende estender o monocul-tivo de eucalipto visando o for-necimento de madeira para a produção de papel.

A disparidade do confl ito re-al entre transnacionais de ce-lulose e os povos indígenas, quilombolas e camponeses que antes habitavam as ter-ras que foram transformadas em área de plantio de euca-lipto e a fi guração do confl ito na fi cção chama a atenção: o personagem antagonista é um cantor e compositor famoso em décadas passadas, de esti-lo hippie, que acredita que seu grande amor, a mãe de seu fi -

lho, foi abduzida por extrater-restres. É um dos personagensmais estereotipados da trama,que “vive no mundo da lua”. Aresistência que ele oferece àexpansão das terras da indús-tria parece ser mais um deva-neio entre outros, um capri-cho de artista rico, ou extre-mismo ecológico. Suas açõescômicas e seus argumentospitorescos são refutados natrama com argumentos apa-rentemente incontestáveis,que assinalam a excelênciadas práticas de desenvolvi-mento sustentável da empre-sa, até a importância socialda mesma para a cidade. Es-ses argumentos são proferidosnão apenas pelos personagensque detêm o capital da empre-sa, mas também por aquelesbons trabalhadores do núcleopobre, que se orgulham portrabalhar numa empresa queestá entre as maiores do mun-do nesse ramo.

Ao que tudo indica, a redeGlobo aprendeu com um ti-ro no pé que dera com a nove-la “O Rei do Gado”. Por maisdramática e manipulada quefosse aquela trama, ela cum-priu o papel de divulgar am-plamente a luta pela reformaagrária e os movimentos so-ciais que levantam essa ban-deira, como o Movimento dosTrabalhadores Rurais SemTerra (MST). Em “A Favorita”,nenhum sujeito político coleti-vo, nenhum movimento socialque se contrapõe com freqü-ência, e de diversas formas, àprática predatória das empre-sas de celulose apareceu. Peloque sugere a trama, ser con-tra o progresso garantido pe-lo avanço da empresa seria, nomínimo, um ato romântico eidealista, ou “coisa de louco”.A tática de combate por meioda fi cção implica a supressãodo ponto de vista das classespopulares, por meio de seusmovimentos organizados.

Como a mercadoria teleno-vela chega a todas as casas quetêm um aparelho televisor, pa-ra a militância dos movimen-tos sociais, saber apontar ascontradições e manipulaçõespresentes nesse formato fi c-cional pode ser bastante útilnos trabalhos de articulaçãocom a sociedade e no trabalhode base para massifi cação dosmovimentos, pois, como a re-ferência ao assunto é comum,é possível entrar na discussãopela desconstrução do pontode vista dominante, ao mesmotempo em que informamos edebatemos os passos estra-tégicos para a construção doprojeto popular para o país.

Rafael Villas Boas é militantedo MST

A Rede Globo aprendeu com um tiro no pé que dera com a novela “O Rei do Gado”. Em “A Favorita”, nenhum sujeito político coletivo, nenhum movimento social que se contrapõe com freqüência à prática predatória das empresas de celulose apareceu

A seguir, cenas da ideologia global

capítulo a capítuloANÁLISE Telenovelas da rede Globo incorporam em suas tramas discursos

contra temas pautados por segmentos populares da sociedade

da Redação

Corria a década de 1970. A inauguração de uma “fazen-da”, criada em terra de índios e camponeses expulsos, em São Félix do Araguaia, no Ma-to Grosso, exigia um evento à altura. Várias autoridades fo-ram convidadas para prestigiar a festa: ministros, banqueiros, políticos, religiosos. Presen-tes, à parte, os trabalhadores que haviam “limpado” o terre-no para a criação de gado dos novos donos.

Entre os convidados, o bispo Pedro Casaldáliga, chamado para fazer parte, como era ló-gico, da trupe das autoridades. Chegada a hora do banquete, trabalhadores de um lado, em fi la, com o prato na mão, pa-ra que cada um se servisse. Do outro, a gente importante sen-

do servida do banquete na sede da fazenda.

Casaldáliga olha para um e outro lado, apanha seu prato e caminha até a fi la de trabalha-dores. “Meu lugar é aqui”, diz.

Naquele instante, fi cava cla-ra a personalidade de Pedro Casaldáliga, o pastor dos pe-quenos. Tal fato, ocorrido num Brasil de cenário político con-turbado, marcou a vida do bis-po que encarnava a cristanda-de genuína: o olhar para os pe-quenos, pobres e excluídos. Os últimos da fi la.

Fatos como esse e muitos ou-tros fazem parte do livro: Pedro Casaldáliga – As causas que imprimem sentido à sua vida – Retrato de uma personalidade.

A biografi a traz a lume a vida de um homem conhecido in-ternacionalmente por sua de-fesa da verdade e que doou to-da a sua vida à causa do Evan-gelho. Coerente com a doutrina de Jesus, uma vez colocado pe-la Providência à frente da Pre-lazia de São Félix (MT), “encar-nou-se” junto a seu povo tão amado. Tornou-se um com ele, participou de suas lutas e do-res, principalmente durante a ditadura militar.

O livro Escrever a biografi a de um

homem dessa envergadura, que lutou contra toda a espé-cie de preconceito em várias

frentes, tornava-se difi cílimo. Os coordenadores do livro decidiram, então, tomar ca-da uma dessas facetas, entre-gá-las à pena de vários espe-

Chegada a hora do banquete, trabalhadores de um lado, em fi la, com o prato na mão, para que cada um se servisse. Do outro, a gente importante sendo servida do banquete na sede da fazenda. Casaldáliga olha para um e outro lado, apanha seu prato e caminha até a fi la de trabalhadores. “Meu lugar é aqui”, diz

Pedro Casaldáliga, ao lado dos últimos da fi lacialistas que conviveram com Casaldáliga, a fi m de que na-da se perdesse dessa enorme riqueza de evangélico teste-munho. Dessa forma, sua pri-meira parte discorre sobre as grandes causas abraçadas por Casaldáliga: a Grande Pátria, a terra, os indígenas, os ne-gros, as mulheres, os pobres, o diálogo inter-religioso, os mártires, a Igreja e a causa de Deus. Sem peias, com liberda-de, num tom profético de de-núncia corajosa.

Na segunda parte, outros tantos amigos revelam a perso-nalidade não-manipulável e de extremo respeito dele com as coisas e com as pessoas. Nada o fazia temer nem parar quan-do a injustiça era causa de so-frimento dos pequenos, dos ex-cluídos e dos sofredores.

Esse sentimento de justi-ça, levado até o extremo, alia-do à inteligência e coragem fo-ra do comum (para um homem pequenino e franzino), fez-no crescer como um gigante na defesa do seu rebanho.

Resumo biográfi co Pedro Casáldaliga nasceu

em Balsareny, Espanha, em 1928. Ingressou na Congre-gação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Ma-ria – conhecidos entre nós co-mo claretianos – e se ordenou sacerdote em 1952. Exerceu o

ministério sacerdotal duran-te 16 anos na Espanha. Poeta, escreveu inúmeros poemas de signifi cado profundo, edi-tados em vários livros e lín-guas, que revelam sua sensi-bilidade e fi na percepção da natureza humana.

Enviado por seus superio-res para o Brasil em 1968, após alguns meses de adap-tação no Rio de Janeiro, se-guiu como missionário para São Félix do Araguaia, no Es-tado do Mato Grosso, no cen-tro geográfi co do Brasil, onde vive até hoje. Suas atividades pastorais com o povo ribeiri-nho, camponeses e índios e sua capacidade de viver no meio deles chamaram a aten-ção do Vaticano.

Paulo VI nomeou-o bis-po, ampliando assim sua in-dependência para um traba-lho pastoral ainda mais efi -ciente. Sua sagração se deu às margens do rio Araguaia, a céu aberto, em 1971. No lugar da mitra, um chapéu de palha, do báculo, uma enxada. A mi-séria e as condições infra-hu-manas encontradas não lhe permitiam apresentar-se de outra forma numa terra pau-pérrima de 150 mil km2, onde havia apenas um único posto de saúde para índios, com um médico que só ia lá de vez em quando.

Casaldáliga decidiu viver

Livro conta história do bispo emérito de São Félix do Araguaia, que há 40 anos trocou a Espanha pelo Brasil para viver entre os pobres e excluídos

Livro: Pedro Casaldáliga – As causas que imprimem sentido à sua vida – Retrato de uma personalidade.Coordenadores: Benjamín Forcano, Eduardo Lallana, José M. Concepción e Maximino Cerezo B. Editora: Ave-MariaPáginas: 432Preço: R$ 55,00

Serviço

como pobre no meio dos po-bres e fazer-se tudo para to-dos por mais de meio sécu-lo. Mal compreendido pelasautoridades, foi perseguido ecaçado para morrer. Gestõesdiplomáticas foram feitas vá-rias vezes para levá-lo de voltaà Espanha.

A atriz Cláudia Raia interpreta Donatela em “A Favorita”

Divulgação/Rede Globo

Reprodução

Page 9: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 2008 9

américa latina

Daniel Cassolde Porto Alegre (RS)

QUANDO FERNANDO Lugo conseguiu pôr fi m à hegemo-nia de seis décadas do Parti-do Colorado no Paraguai, já se sabia que a chave de seu go-verno seria o combate à cor-rupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacio-nal em Itaipu. Passados os primeiros cem dias da posse, é justamente nestes pontos que o novo presidente alcan-ça seus principais avanços – e enfrenta as primeiras crises.

Além do desafi o de admi-nistrar uma máquina pública corrompida após 60 anos de domínio de uma mesma cas-ta política, Lugo vem enfren-tando pressões por partes dos movimentos sociais, que de-sejam mudanças mais rápi-das e profundas, e tentativas de desestabilização por parte dos que não querem mudan-ça nenhuma.

O primeiro enfrentamento ocorreu nos primeiros dias de setembro, quando Lugo foi a público denunciar uma cons-piração de “intenções golpistas de setores antidemocráticos e retrógrados”. Lugo referia-se a uma reunião ocorrida na resi-dência do general Lino Oviedo, da qual participaram o ex-pre-sidente Nicanor Duarte Fru-tos, o presidente do Congres-so, Enrique González Quinta-na, o chefe do Ministério Pú-blico, Rúben Candía Amarrilla, e o vice-presidente do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, Juan Manuel Morales.

“Era uma reunião de altas cabeças, de diferentes parti-dos e poderes, que evidente-mente estavam lá para juntar forças contra Lugo”, afi rma o comunicador e pesquisador paraguaio Juan Diáz Borde-nave, em entrevista ao Brasil de Fato (leia ao lado).

A reação imediata de Lugo deu ao presidente não ape-nas respaldo político, interno e externo, como fortaleceu seu discurso por mudanças nos altos cargos da Justiça para-guaia, devido às acusações de corrupção que atingem seus membros, todos alinhados ao Partido Colorado.

“Nos comprometemos du-rante a campanha eleito-ral a realizar as ações políti-cas necessárias para instau-rar um Poder Judiciário inde-pendente, efi ciente e compro-metido com a justiça social”, reiterou Lugo, em 25 de no-vembro, no pronunciamento sobre os 100 dias de seu go-verno. No ato, o presidente apontou o combate à corrup-ção como o principal avanço da sua administração. “Nos-sas primeiras ações vêm de-monstrando o combate à cor-rupção, os primeiros passos para desarticular uma escan-dalosa estrutura que desvia recursos públicos”, afi rmou o presidente paraguaio.

Sem maioria no Congresso, o governo encontra difi culda-des para que os parlamenta-res promovam as mudanças no Poder Judiciário. Por isso, con-ta com o apoio das organiza-ções sociais, que vêm realizan-do manifestações em frente aos órgãos da Justiça do país, prin-cipalmente contra o chefe do Ministério Público, presente à reunião na casa de Oviedo.

Acusado pela oposição de instigar as mobilizações so-ciais, Lugo necessita delas, mas também vê a pressão aumen-tar, principalmente no campo. As organizações camponesas não se demonstram contentes com o ritmo das medidas na área da reforma agrária e vêm organizando ocupações de ter-ra, o que aumenta a revolta dos grandes produtores.

No fi nal de novembro, Lugo reuniu-se com dirigentes cam-poneses e com a Coordena-ção Executiva para a Reforma Agrária (Cepra), que aglutina vários órgãos de Estado, para anunciar, a partir de 15 de de-zembro, as primeiras ações no setor. Mas elas se limitam, por

de Porto Alegre (RS)

Aos 82 anos, o comunica-dor e pesquisador paraguaio Juan Díaz Bordenave aceitou o desafi o de integrar o gover-no Lugo como assessor do mi-nistério da Comunicação. Au-tor de dezenas de livros, como Comunicação e Planejamento (com Horácio Martins de Car-valho), Comunicação Rural: discurso e prática e O que é Comunicação, Bordenave es-teve em Pelotas (RS), em no-vembro, participando de um congresso de pesquisadores em comunicação. Em entre-vista exclusiva ao Brasil de Fato, ele fala dos avanços e desafi os do governo de Fer-nando Lugo, que acaba de completar cem dias.

Brasil de Fato – O governo Lugo se elegeu prometendo combater a corrupção, fazer a reforma agrária e buscar a renegociação de Itaipu. Como o senhor avalia os primeiros cem dias de governo, a partir destes três eixos?Juan Díaz Bordenave –Houve um grande passo à frente. Só para dar um exem-plo: colocaram uma câme-ra escondida no escritório do novo diretor dos portos. Ha-via suspeita de um esquema de corrupção lá dentro, então combinou-se com o Ministé-rio Público colocar uma câme-ra oculta. E aparecem na tele-visão os 12 diretores de portos indo entregar a propina para o diretor. Foi uma vergonha. Mas foi uma coisa muito boa, porque de repente desmante-lou um esquema de corrupção que vem de anos. E, assim, vá-rios órgãos de governo estão conseguindo desmontar ni-nhos de corrupção. Na refor-ma agrária, Lugo também não sabia onde estava se meten-do quando prometeu. Os lati-fundiários paraguaios e brasi-guaios são muito poderosos.

É muito grande a presença de brasiguaios na fronteira.

No total, existem algo como 300 mil brasileiros na frontei-ra, o que vem alterando a cul-

tura do país. Em toda a fron-teira, não se escuta rádio pa-raguaia, não se vê televisão paraguaia, os meninos já não falam nem castelhano nem guarani, só português. E não é culpa das pessoas, é culpa da situação econômica efetiva.

E como o senhor avalia a atuação do diretor de Itaipu, Carlo Mateo (dirigente do Partido Liberal)?

É um homem muito com-petente. Foi presidente da Câmara de Comércio, fez pós-graduação no exterior. Está moralizando a gestão de Itaipu. Está levando à Justiça o antigo diretor, que era um ladrão total.

Qual é a sua participação no Ministério da Comunicação?

Cada ministério organizou um relatório sobre os cem dias. No caso, o nosso, esta-mos juntando as coisas que já fi zemos. Por exemplo: es-tamos criando uma nova car-reira, de técnico em Comuni-cação para o Desenvolvimen-to. São dois anos e meio pa-ra formar tecnólogos em Co-municação para o Desenvol-vimento. Pretendemos for-mar mil em três anos, e já há quatro universidades interes-sadas em criar este curso. Ou-tra coisa que fi zemos foi criar

uma agência de notícias do Estado. E, também, a trans-parência total das informa-ções públicas. Não são gran-des revoluções, mas, para o Paraguai, são.

Quais são os principais avanços do governo Lugo?

A luta contra a corrupção e o início da reforma agrária. Alberto Alderete [ministro do Instituto Nacional de Desen-volvimento Rural e da Terra] está fazendo um estudo sobre quem é dono das terras. Um cadastro. Mas isso é muito caro para fazer. Há proprie-dades que já foram vendidas várias vezes. Há lotes de re-forma agrária que historica-mente foram recebidos por militares, políticos. Doze mi-lhões de hectares foram dis-tribuídos durante o tempo de Alfredo Stroessner a pes-soas que não eram sujeitos da Reforma Agrária. Agora o governo está tratando de re-cuperar tudo isso, já come-çou o processo. Então, estão sendo feitas coisas como es-sa. Nada espetacular.

Que difi culdades o governo enfrenta?

De todos os tipos. A im-prensa já está contra Lugo. Os principais jornais já estão con-tra Lugo. Além disso, houve a reunião na casa do general Li-no Oviedo, composta inclu-sive pelo chefe do Ministério Público, Rubén Candia Ama-rilla. Os camponeses estão fa-zendo fortes movimentos pa-ra que o tirem, pois é o chefe do Ministério Público e é um conspirador. Outro proble-ma é que a Corte Suprema de Justiça no Paraguai está total-mente corrupta. O parlamen-to paraguaio também é mui-to corrupto. É uma luta diária contra esse tipo de coisa.

Mas essa reunião na casa de Oviedo foi de fato uma tentativa de golpe ou Lugo acabou por capitalizar politicamente, ao fazer seu pronunciamento-denúncia?

Não foi uma tentativa de golpe militar. Foi uma tenta-tiva de articular cabeças, in-

clusive convidaram um mili-tar. Na casa de Oviedo, esta-va o presidente do Congresso,o ex-presidente da República.Ou seja, era uma reunião dealtas cabeças, de diferentespartidos e poderes, evidente-mente estavam lá para juntarforças contra Lugo. Inclusi-ve, Oviedo perguntou ao mi-litar o que pensava o Exérci-to sobre Lugo. Perguntar issoa um general é uma pergunta política que não se pode fazera um general. Então, Lugo te-ve que denunciar.

Como está a relação do governo Lugo com os movimentos sociais?

A aliança de Lugo, além de contar com o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), in-clui vários pequenos partidos, inclusive partidos de esquerda que não estão no parlamento. Lugo se deu conta de que, se não contrabalançar o poder do PLRA, este vai se apoderar de tudo. Então, criaram uma frente social e popular com o povo que não é afi liado ao Partido Liberal, quer apoiar Lugo e é contra o PLRA.

Qual é a função desta frente?

Defender Lugo. Fazem mo-bilizações nas ruas. E tam-bém mesas de trabalho. Há 17delas, sobre transporte, edu-cação, buscando propostas degoverno. Não é um partido, éuma frente.

Os camponeses pressionam por mais agilidade na Reforma Agrária.

Eles querem forçar o gover-no. Lugo colocou como minis-tro da Agricultura, encarrega-do da reforma agrária, um su-jeito fraco. Por isso, estão for-çando para romper as coisas. Porque o Parlamento é fra-co, o Partido Liberal diz que quer a reforma agrária, mas são todos proprietários de ter-ra, então os camponeses que-rem forçar. O próprio governo simpatiza com isso.

O governo aposta nas mobilizações populares?

O governo necessita do apoio do povo para poder fa-zer as coisas. (DC)

ENTREVISTA

“O governo necessita do apoio do povo”BALANÇO Juan Díaz Bordenave, assessor do ministério da Comunicação do Paraguai, avalia que, nestes cem primeiros dias de governo, o país avançou

enquanto, a programas de as-sistência a assentamentos ru-rais já existentes. A meta é be-nefi ciar, na primeira etapa do plano, cerca de cinco mil famí-lias assentadas, com progra-mas de saúde, habitação, edu-cação e infra-estrutura.

No tema de Itaipu, o gover-no paraguaio mantém as ne-gociações com o Brasil e de-monstra esperança de chegar a um acordo em pouco tempo. Em reunião realizada no fi nal de novembro, em Montevi-déu, o Parlamento do Merco-sul pediu equilíbrio e transpa-rência nas relações entre Bra-sil e Paraguai sobre o tema da binacional Itaipu. Logo após a reunião, o engenheiro Ricardo Canese, representante para-guaio no ParlaSul, encontrou-se com o presidente Fernando Lugo e afi rmou que espera um acordo com o Brasil até agos-to de 2009. Porém, disse que o Paraguai não renunciará a seis pontos chave na negocia-ção, entre eles a livre disponi-bilidade da energia que per-tence ao país e o recebimento de um preço justo pelo exce-dente vendido ao Brasil.

Pressionado pelos movi-mentos sociais e criticado pela oposição, Lugo recebeu uma avaliação regular nas pesquisas de opinião realiza-das pelos principais jornais do país. Em sondagem realiza-da pela empresa de consulto-ria Ati Snead, a pedido do jor-nal La Nacion, 47,9% dos en-trevistados qualifi caram o go-verno Lugo como “regular”, ao lado de 37,1% que o conside-raram “bom”. O mesmo levan-tamento indicou que as priori-dades do presidente, de acor-do com os entrevistados, de-vem ser o combate ao desem-prego e à violência no país, se-guido por temas como corrup-ção e pobreza.

Já a empresa First Análisis y Estudios, em pesquisa rea-lizada para o diário ABC Co-lor, indicou que 60,1% da po-pulação entrevistada apro-vava os primeiros cem dias de Lugo, ao passo que 31,4% reprovavam e 8,5% não sa-biam responder. De acordo com os jornais paraguaios, o ex-presidente Nicanor Duar-te fora mais bem avaliado que Lugo nos cem primeiros dias de governo.

O presidente paraguaio se saiu melhor no recente relató-rio da ONG chilena Latinoba-rómetro. O Paraguai foi o pa-ís pesquisado, entre 18 nações latino-americanas, em que as expectativas de esperança pa-ra o próximo ano foram mais positivas: 83% dos entrevista-dos disseram que mantêm es-peranças para 2009.

Dilemas de Lugo nos primeiros 100 diasPARAGUAI Fernando Lugo completou, em 25 de novembro, cem dias à frente do governo paraguaio. Combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu estão entre os seus principais desafi os e avanços

Doze milhões de hectares foram distribuídos durante o tempo de Alfredo Stroessner a pessoas que não eram sujeitos da Reforma Agrária. Agora o governo está tratando de recuperartudo isso

O presidente paraguaio Fernando Lugo em evento ofi cial: pressões de movimentos sociais e da velha oligarquia

APC

Page 10: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

Maquiladoras – empresas se-diadas nos países periféricos queimportam peças e componentes de suas matrizes estrangeiras para que os produtos sejam montados por trabalhadores que ganham salários muito baixos

Para entender

de 4 a 10 de dezembro de 200810

internacional

Pedro Carrano eVenâncio de Oliveira

de San Salvador (El Salvador), especial para

o Brasil de Fato

A AMÉRICA Central é formada por um conjunto de países que vivem uma crise econômica, so-cial e política latente, que se ex-pande a passos rápidos a bor-do da crise estadunidense. Este ano, em Honduras, 50 mil pes-soas saíram às ruas contra as al-tas tarifas de energia elétrica, deixando a cidade fechada pa-ra os turistas. Na Nicarágua, é recorrente acabar a água e a luz em alguma hora do dia.

O continente é um mosaico de história de lutas, pobreza, festas populares, povoados e capitais precárias em forneci-mento de serviços básicos. As fábricas maquiladoras, uma das imposições dos gover-nos desde a década de 1990, são parasitárias da economia, não geram sinergias produti-vas e demandam apenas a for-ça de trabalho local, sem direi-tos trabalhistas. O economis-ta Ruy Mauro Marini escrevia que elas eram um enclave de uma economia em outra.

De acordo com o pesquisa-dor holandês radicado na Cos-ta Rica, Win Dierckxsens, o ín-dice de desemprego atual dos Estados Unidos é de 25%, aba-lando setores como o da cons-trução civil. Essa situação força

o retorno massivo dos trabalha-dores migrantes para suas ter-ras de origem.

Cerca de 200 mil centro-americanos atravessam a fron-teira todos os anos. De El Salva-dor, menor país latino-america-no, partem 600 pessoas diaria-mente; porém, em 2008, 70 mil já retornaram. No México, 600 mil. Assim, a falta de emprego e a demanda social aumentam.

Com a queda nas remessas dos migrantes para suas famí-lias, a liquidez do Estado e dos bancos dos países de origem se torna crítica. Além disso, as bancarrotas das instituições fi -nanceiras internacionais po-dem gerar um efeito de contas negativas e de diminuição de oferta de moeda e crédito. A de-manda internacional pela pro-dução centro-americana deve cair – como a das fábricas ma-quiladoras – e o desemprego in-terno pode aumentar. E, assim, o neoliberalismo caminha no fi o da navalha.

Crise política As massas populares respon-

dem à crise com intensidades diferentes. Apenas em 2008, houve três paralisações gerais de trabalhadores hondurenhos. A redução do preço da cesta bá-sica está na pauta. Sem base

de San Salvador (El Salvador)

Anos de guerra civil, encer-rada na década de 1990 e mar-cada no imaginário popular. Logo veio a desertifi cação ne-oliberal e agora uma nova ja-nela se abre para os salvadore-nhos. O país prepara-se para as eleições legislativas e muni-cipais, em janeiro, e presiden-ciais, em março.

A polarização se dá entre dois partidos. De um lado, o ofi cia-lista Arena governa o país des-de 1989 e tem o discurso aba-lado com a crise do neolibera-lismo. A frágil burguesia local, importadora e dependente dos EUA, aposta nessa opção e no discurso de medo. Sem proje-to político, vem fazendo conces-sões à esquerda, prometendo o passe-livre para os estudantes (uma luta histórica dos jovens salvadorenhos).

A histórica Frente Farabun-do Martí pela Libertação Na-cional (FMLN), por sua vez, ge-ra entusiasmo entre militantes e as massas populares. A cara-vana que deu início à campanha mobilizou mais de 300 mil pes-soas. A Frente faz o discurso da mudança, da esperança, da ne-cessidade de moderação para governar em meio à crise – a di-fícil opção de unir interesses di-vergentes. Maurício Funes foi o candidato escolhido para a dis-puta eleitoral de 2009. Apre-sentador televisivo crítico, ele não era militante do partido até então. Em novembro, o candi-dato viajou a Washington para tranqüilizar os investidores.

Países da América Central: turbulência, migração, passado e presente de lutas CRISE SOCIAL Extremamente dependentes da economia dos EUA e após anos de neoliberalismo, países da América Central já enfrentam efeitos da crise do capitalismo mundial

produtiva, Honduras já se con-frontou com a perda de cinco mil empregos nas fábricas ma-quiladoras, devido à conhecida instabilidade de trabalho nas suas plantas.

A crise econômica soma-se à crise política já instalada. Há

O FMLN é o partido herdeiro da insurreição de 40 mil cam-poneses em 1932, das lutas do bispo Romero, da guerra civil dos anos de 1980 (veja qua-dro nesta página). Membros da Frente apontam que houve um movimento de refl uxo das lutas de massas após a assinatura dos Acordos de Paz, em 1992.

Gestão cidadãHoje, existe o risco de fraude

por parte da Arena, e o FMLN busca uma política que, no ge-ral, seja contrária ao neolibera-lismo. “O atual governo colocou 500 milhões de dólares para oxigenar os bancos. Queremos reformas que levem tranqüili-

dade para as pessoas. Nenhum processo pode-se manter com base na lógica eleitoral: há ris-co de fraude, pois as cartelas de votação não possuem o selo ofi -cial”, afi rma um membro da di-reção do partido.

Durante a “Tribuna Partici-pativa”, quando os deputados do FMLN passam informes pa-ra o povo que se aglutina às sex-tas-feiras em frente à catedral de San Salvador, militantes do partido defendem a constru-ção de gestões cidadãs. “Mudar a maneira de fazer política para um modo mais participativo, no qual o cidadão seja o ator prin-cipal”, defende o deputado da Frente Hugo Martinez. Embora

o movimento social no país seja frágil, o FMLN conta com uma inserção nos extratos popula-res, como o setor dos trabalha-dores dos mercados e também dos vendedores informais, que aglutinam uma cota de cerca de 60% da força de trabalho salva-dorenha. São 500 mil trabalha-dores. O partido possui admi-nistrações nos 23 mercados po-pulares da capital.

Nos anos de1990, a hegemonia neoliberal e a ressaca do fi nal da guerra transformaram a Frente numa “instituição partidária de natureza pública, fi nanciada e com funções estabelecidas por lei”, como explica o pesquisador Dagoberto Gutiérrez. Com os

Acordos de Paz, a derrota eleito-ral dos sandinistas na Nicarágua e, sobretudo, a queda do Muro de Berlim, El Salvador passou a viver uma baixa na luta de mas-sas, mas o FMLN sobrevive com milhares de afi liados. Deixou de ser uma frente de cinco partidos para tornar-se um partido mas-sivo, porém monolítico.

Horizonte eleitoral “A luta passou a ser por car-

gos. O militante se converteu em um afi liado, em um conse-lheiro, deputado etc., os diri-gentes passaram a fazer parte do Estado burguês, a Frente en-trou com toda a força no proces-so eleitoral”, critica Fidel Nieto,

membro da organização política Tendência Revolucionária (TR).

Críticos à esquerda do parti-do apontam que as eleições se tornam um fi m em si mesmo e o partido não fomentaria a luta do movimento popular. Com a crise que já golpeia o país, a Are-na está sem discurso. Porém, de acordo com a TR, o programa do FMLN mantém o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA, apóia o empresariado lo-cal e o investidor internacional. O processo buscaria referência no Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro: vitória e mode-ração do governo Lula.

Nesse cenário, é consenso que a derrota da Arena e a vi-tória da Frente são importan-tes, mas a TR aponta a neces-sidade das massas lutarem pela construção de um poder popu-lar, e da aposta em movimentos sociais de luta contra as mine-radoras e as represas, pelos re-cursos naturais etc.

As diferenças institucionais e políticas dos dois países são grandes: por um lado, o Brasil tem uma instituição e democra-cia liberal forte. Já El Salvador não possui uma estrutura pro-dutiva e instituições consolida-das. O próximo governo estaria fragilizado com a crise que atin-ge o capitalismo.

Um detalhe importante: o FMLN conta com uma militân-cia capacitada, com uma ex-pectativa de que, uma vez nãocumprida, deve gerar uma in-satisfação violenta. “Após aseleições, a relação partidoe movimento pode mudar”,aposta Nieto. (PC e VO)

Em El Salvador, antiga guerrilha pode chegar ao governoFrente Farabundo Martí pela Libertação Nacional possui inserção nos setores sociais, mas, segue a lógica eleitoral do PT brasileiro

de San Salvador (El Salvador)

Durante os anos 1980, o FMLN encabeçou o processo mais intenso de enfrentamento da América Latina na época, do ponto de vista militar. A Frente foi resultado da união de cin-co partidos políticos, entre eles o Partido Comunista, com presença histórica em El Salvador.

Sua gênese está no assassinato do bispo Oscar Romero, no momento em que os movimentos de massa eram persegui-dos. As insurreições populares acumuladas desde 1960 desa-guaram, então, em uma tática de acúmulo pela luta armada, por meio do FMLN.

Depois de um assalto à capital do país, em 1989, houve uma constatação: nem o FMLN venceria o exército ofi cial, nem seria derrotada por ele (mesmo com o fi nanciamento estadunidense). Houve o reconhecimento das autoridades de “empate técnico”. Antes, a Frente já havia sido reconhecida pelos governos de México e França como exército beligeran-te. Em 1992, são assinados os Acordos de Paz. (PC e VO)

O que foi o FMLN?

uma tentativa fraudulenta de impedir o vice-presidente hon-durenho, Elvin Ernesto San-tos, de concorrer às eleições. Assembléias de poder cidadão foram montadas para buscar “contaminar o processo eleito-ral com o debate político”, como afi rma Gregório Vaca Rivera, da organização Bloque Popular.

Na Nicarágua, por sua vez, o Partido Liberal não reconhe-ce a vitória dos sandinistas nas eleições municipais do dia 11 de novembro, abrindo um processo de confronto nas ru-as entre a militância dos dois partidos. Os governos de Es-tados Unidos e União Euro-péia começam a imprimir re-taliações contra Daniel Orte-ga, presidente pela frente san-dinista, suspendendo progra-mas de ajuda fi nanceira. Nessa conjuntura, Honduras, Nicará-gua e, possivelmente, El Salva-dor aproximam-se da Alterna-tiva Bolivariana para as Améri-cas (Alba) e do chavismo.

Tratado de Livre ComércioA assinatura do Tratado de

Livre Comércio (DR-Cafta), em 2006, entre os EUA, a América Central e a República Domini-cana, aprofundou o caráter im-portador dos países da região e sua dependência da economia estadunidense. Na República Dominicana, por exemplo, fo-ram os setores de serviços – co-mo a intermediação fi nancei-ra, as comunicações e o comér-cio –, que registraram taxas de crescimento. Novo contraste: em países como a Guatemala, os 200 mil empregos perdidos na cadeia produtiva juntam-se à migração massiva para as ca-pitais e outros países.

El Salvador é considerado pelas organizações sociais umcampo de experimentos do ne-oliberalismo na América Cen-tral desde os anos de 1990, mo-delo aplicado com a seguin-te fórmula: privatizações dosbancos estatais, dolarização eabandono da produção agrí-cola interna. Maquiladoras seinstalaram no país e as empre-sas mais frágeis sumiram. Ho-je, o país está inundado pormercadorias, celulares e car-ros, contrastando com a insta-bilidade no emprego, a falta deinfra-estrutura básica e a baixaqualidade da saúde.

No país centro-americano, a dolarização da moeda, aplica-da em 2001, aconteceu na mes-ma época de um terremoto de grandes proporções. A imagem é forte, e a devastação, parecida. A partir daí, o povo fi cou refém da política monetária dos EUA. Com a possível desvalorização do dólar, o dinheiro em mãos dos salvadorenhos perde o po-der de compra, podendo gerar infl ação interna e prejudicar as transações comerciais externas.

- Estados Unidos: salário de 64 dólares diários nas fábricas maquiladoras.

- El Salvador: salário de 6 dólares diários nas fábricas maquiladoras.

- El Salvador envia 50% de suas exportações aos Estados Unidos e 30% para a região centro-americana

- Em El Salvador, a cesta básica vale 172,83 dólares, enquanto o salário mínimo é de 161,97 dólares

- 1.600: número de mulheres demitidas nas fábricas maquiladoras da cidade de Santa Ana.

- Único país da América Central com tropas no Iraque. FONTE: Red Regional de Monitoreo DR-Cafta

Dependência econômica de El Salvador com Estados Unidos

Fora dos trilhos: política neoliberal em El Salvador trouxe instabilidade no emprego, falta de infra-estrutura básica e baixa qualidade da saúde

Eric Rojas

Bill Robinson

Convenção Nacional da FMLN em novembro, em San Salvador

Page 11: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 2008 11

internacional

Memélia Moreirade Orlando (EUA)

QUANDO SE pensava que o sis-tema capitalista havia esgotado todas as suas formas de explo-ração, descobre-se mais uma: o uso da mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados. Es-sa mão-de-obra, que tem ca-racterísticas de escravidão, é barata até mesmo para os pa-drões chineses. Sem direitos trabalhistas e cuja e única for-ma de protesto é a rebelião, é largamente usada nos Estados Unidos, país campeão mundial de presídios no mundo, com 8.700 unidades espalhadas dentro do território, além dos 17 cárceres fl utuantes, nos na-vios de guerra da Marinha dos EUA. E mais ainda com as inú-meras prisões em suas bases militares, sendo Guantánamo a mais notória de todas.

E há presídios para todos os gostos. Públicos e privatizados, onde se registram os mais ig-nominiosos desrespeitos con-tra os direitos humanos. Diga-se de passagem, o Brasil vem adotando, quase em surdina, esse mesmo sistema de pri-sões privatizadas, num drible à Constituição e sob o rótulo de “PPP” (parcerias público-pri-vadas). Em janeiro deste ano, o governo de Pernambuco abriu licitação para construir mais um cárcere privatizado. Desta vez, em Itaquitinga. E outros estão em pleno funcionamen-to nos Estados de São Paulo, Bahia, Minas e Ceará.

Em 19 de novembro, quando o Brasil comemorava o Dia da Bandeira, o vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Chenney, um dos homens que mais lucra com a guerra do Iraque, e o ex-procurador-geral, Alberto Gon-zalez, eram notifi cados pelo tri-bunal de Willacy, condado no Estado do Texas, perto da fron-teira com o México, para se de-fenderem da acusação de “ativi-dades do crime organizado re-lacionado ao abuso de detentos em prisões privadas”.

O chamado, generosamen-te, de “abuso” são torturas con-tra presos que se recusam a se submeter às regras trabalhistas dos presídios. E a tortura con-tra presos, assunto muito deba-tido na campanha presidencial, é crime previsto na 8ª emenda da Constituição dos EUA.

Os leitores estão livres para comparar Chenney e Gonzalez a Joseph Mengel ou Goebbels. Não a Hitler, porque o criador do nazismo gostava de música. Chenney e Gonzalez não têm o menor interesse pelas artes e defendem abertamente a tortu-ra, a pena de morte e qualquer outro método que atente con-tra a dignidade humana. Gon-zalez, que sempre assessorou o presidente George W. Bush, quando procurador do Texas, fez o Estado bater recordes de condenações à morte.

8.700 presídiosCom uma população de pou-

co mais de 300 milhões de ha-bitantes, os EUA mantém nos seus 8.700 presídios 2,5 mi-lhões de presidiários dentro do seu território. Isto é, bem mais presos do que os países de gran-des populações. Mas o número total de prisioneiros sob a res-ponsabilidade do governo dos Estados Unidos é um segredo.

A estatística é desconhecida não apenas por causa das pri-sões clandestinas dos navios, mas, principalmente porque o governo dos EUA não informa quantos prisioneiros mantém nas bases militares. Argumen-tam com a velha frase “ques-tões de segurança”. Os núme-ros, portanto, cobrem apenas os presos dentro do território, in-cluindo Havaí e Alaska. Quan-tos em em Abu-Ghraib? Ou em Guantánamo? Talvez só mesmo o Departamento de Defesa sai-ba responder. Mas, mesmo as-sim, não deixa de ser impressio-nante o fato de que há 750 pre-sos para cada cem mil estaduni-denses. O percentual é assusta-dor quando se sabe que na In-glaterra são 148 para cada cem mil, na França, 85; na Líbia, 217; e na China, 119.

Prisão típicaNada que lembre os depósi-

tos de presos dos cárceres bra-sileiros. Numa prisão típica, oi-to pessoas por cela já é conside-rada superlotação. As celas das prisões-modelo medem 2,5 m por 1,8 m e contam com uma cama de metal, pia e vaso sani-tário. Algumas chegam ao “lu-xo” de ter janelas com vista pa-ra fora do presídio.

Mas isso não signifi ca que to-dos os presídios obedeçam os mesmos parâmetros. A mais te-mida e odiada prisão dos Esta-dos Unidos é a de Sing-Sing, lo-calizada no luxuoso condado de Westchester, a 40 km de Nova York e onde o ex-presidente Bill Clinton comprou uma casa. Lá, de acordo com relatório da or-ganização não-governamental Human Rights Watch – que re-centemente foi expulsa da Ve-nezuela, depois de uma polêmi-ca com o presidente Hugo Chá-vez – “proliferam ratos, baratas e aranhas venenosas”.

No item “alimentação”, a ONG – que é vista com suspei-tas não apenas por Chávez, mas também pelo Departamento de Estado dos EUA –, denuncia a “falta de higiene” das refeições oferecidas, causa principal de muitas das rebeliões que já agi-taram e continuam agitando os presídios do país.

Para completar o quadro de horrores apresentados pela Hu-man Rights Watch, essa organi-zação jogou na cara da socieda-de estadunidense a notícia so-bre a disseminação da tortu-ra contra os presos, não ape-nas contra os chamados “terro-ristas” presos no Iraque, Afega-nistão e em Guantánamo, mas dentro dos Estados Unidos. Sem se referir especifi camen-te a essa denúncia, o presiden-te eleito Barack Obama se com-prometeu a mandar investigar a veracidade da informação tão logo tome posse.

Nas manchetesA questão carcerária esta-

va afastada do noticiário des-de quando foram denunciadas as torturas da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, ocasião em que foram mostradas cenas de soldados do Exército torturan-

do e humilhando presos ira-quianos, muitos deles, inocen-tes. A partir daí, a sociedade dos Estados Unidos, que parecia ter esquecido os horrores das tor-turas contra os guerrilheiros vietmihn durante a guerra do Vietnã, passou a questionar as práticas dos militares nas du-as guerras nas quais o país es-tá envolvido desde o início do século 21.

Do Iraque, a preocupação saltou para Guantánamo, on-de se encontram grande par-te de muçulmanos acusados de terrorismo. As informações so-bre Guantánamo são escassas, mas a intelectualidade estadu-nidense passou a exigir que os presos da base tivessem direito a advogados (eles não têm ad-vogados, não recebem visitas e são julgados por leis de exceção que não vigoram dentro do ter-ritório dos Estados Unidos).

O assunto, então, se instalou defi nitivamente nos debates, culminando com as declara-ções de Murat Kurnaz, militan-te de direitos humanos, conhe-cido como “Talibã de Bremen”, nascido na Alemanha e de ori-gem turca. Ele foi o primeiro preso de Guantánamo a falar ao Congresso dos Estados Unidos em vídeo-conferência, narran-do os horrores da prisão man-tida no território cubano. Kur-naz, quando entrevistado pelos congressistas, disse que Guan-tánamo é “o campo de tortura americano”. E acredita que Ba-rack Obama vai desativar o pre-sídio da base, “se for presiona-do pela sociedade”. Quando deu esta declaração, Karnaz não sa-bia ainda que Guantánamo já começara a ser desativada.

A partir da videoconferência, que provocou polêmicas e prin-cipalmente revolta entre os es-tadunidenses que ainda conti-nuam a acreditar que seu país é o maior defensor da demo-cracia em todo o mundo, o te-ma dos presídios não tem saído das páginas dos jornais princi-palmente porque os analistas políticos não têm dúvidas de que a crise econômica será fa-tor de crescimento da violência e, conseqüentemente, de um índice ainda maior de prisio-neiros, a maioria levada para as cadeias privatizadas. E esse é um negócio que interessa aos empresários. Quem não gosta-

ria de poder demitir trabalha-dores sabendo que há um exér-cito de presidiários que podem exercer a mesma função por um custo mínimo?

Presídios S.A.Chenney não é o único a lu-

crar com guerras e presídios. A empresa KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui fran-gos fritos aos soldados estadu-nidenses nos fronts do Afega-nistão e Iraque, também inves-te em presídios.

De acordo com relatório do World Search Group, a KFC é uma das mais bem-sucedidas empresas do ramo de presídios. Desde 1997, essa empresa viu o crescimento de suas ações su-perar 70 vezes seu capital ini-cial. E, aproveitando a onda de privatizações das cadeias, ela já vendeu seu “negócio” para a In-glaterra, Austrália e Porto Rico.

Com a venda de frangos, ela abriu uma pequena empresa chamada Corrections Corpo-rations, que se dedica exclu-sivamente a construir e admi-nistrar as prisões. E o negócio é tão lucrativo que essa empresa é uma das cinco mais bem co-tadas na Bolsa de valores de Nova York. Criada em 1983, a Corrections Corporations vi-ve à custa do trabalho gratui-to dos presos, e, em sua pro-paganda, a KFC anuncia que a Corrections “pretende vender cadeias privadas como quem vende frango de aviário”.

E esses mercadores de pri-sioneiros são organizados. Eles editam uma revista e promo-vem reuniões com os “especia-listas do ramo”. Na convocató-ria para uma dessas reuniões, com uma linguagem que ultra-passa os limites do cinismo, os empresários eram chamados ao encontro porque “enquanto as condenações crescem, os lucros também. Os lucros do crime”. Mais direto, impossível.

Outra que se dedica à cons-trução de presídios privatizados é a Motor Coach Industries. No catálogo de vendas pode-se ver o modelo de um desses presí-dios. Mais especifi camente, um “carro-prisão”, semelhante aos usados pelos pioneiros na épo-ca da colonização. A “arquitetu-ra” do presídio lembra um canil dividido em jaulas de aço.

Como se não bastasse serem

transformados em mercado-rias, os presos que cumprem pe-na nas prisões privatizadas são tratados de forma brutal. A tal ponto que, no Estado do Texas, onde se reúne a extrema-direita mais raivosa dos EUA, a socie-dade chegou a se escandalizar com as denúncias de maus tra-tos e abusos sexuais contra os presos em troca de favores. As denúncias levaram os texanos a exigir que as autoridades rescin-dissem o contrato com algumas dessas empresas. Daí o indicia-mento do vice-presidente, Dick Chenney, e do ex-procurador-geral, Alberto Gonzalez.

GlamurizaçãoApesar de toda a situação, a

indústria cinematográfi ca con-seguiu glamurizar (e também demonizar) a vida atrás das gra-des, tornando célebres algumas dessas cadeias, principalmente aquelas que “hospedaram” pre-sos famosos. E assim, cinéfi los sabem mais de Alcatraz do que de Carandiru. Mais de Saint-Quentin do que do complexo de Bangu.

Para começar, a famosa Al-catraz. Localizada na ilha do mesmo nome, ela foi celebri-zada no cinema por vários fi l-mes, o mais famoso deles, Fuga de Alcatraz, na versão original com Burt Lancaster e, na segun-da versão, com Clint Eastwood.

Os dois personagens conse-guem fugir da cadeia, façanha considerada impossível por to-dos aqueles que dirigiram esse presídio. Alcatraz também foi personagem do fi lme A Rocha, com Sean Connery. Sua fama deve-se também a Al Capone, um dos mais famosos bandi-dos dos EUA nos anos de 1930. Foi lá que ele passou os últimos anos de sua vida. Ocupada por lideranças indígenas que reivin-dicavam sua posse, hoje o presí-dio é um museu e recebe 1 mi-lhão de turistas por ano.

Outra famosa é a prisão de Attica, em Nova York, que vi-rou fi lme com Dustin Hoffman, sobre a famosa rebelião dospresos acontecida em setem-bro de 1971 e que deixou umsaldo de 39 mortos entre agen-tes policiais e detentos. Attica éo endereço de Mark David Cha-pman, assassino de John Len-non – que desde agosto passa-do se benefi ciou da lei que per-mite visitas conjugais.

Saint-Quentin, também na Califórnia, se tornou conhecidano mundo no fi nal dos anos de 1950, quando Caryl Chesmann,conhecido como “O Bandido daLuz Vermelha” (apelido depoisdado ao assaltante brasileiroJoão Acácio), passou a rela-tar em livros os horrores da ca-deia, reivindicando a comuta-ção de sua pena. Ele fora con-denado à câmara de gás comcianureto dissolvido em bal-des de água quente contendoácido, por denúncias de assal-to e estupro na Califórnia. Seulivro Cela 2455: Corredor da Morte foi editado mundo afora e levou inclusive o presidentedo Supremo Tribual federal doBrasil, ministro Nélson Hun-gria, a escrever carta ao gover-nador da Califórnia, EdmundBrown, pedindo clemência. Denada adiantou, e Chesmann foimorto em maio de 1961.

Finalmente, Sing-Sing, a mais temida e demonizadadas prisões dos Estados Uni-dos. Para lá são levados os pre-sos condenados à pena capital.Sing-Sing já foi personagem devários fi lmes, entre eles Saco eVanzetti, dois anarquistas ita-lianos que em 1920 foram con-denados à câmara de gás por-que lutavam pelo direito dostrabalhadores. Além deles, jános anos de 1950, perseguidospelo macartismo, o casal Ju-lius e Ethel Rosenberg, conde-nados também à câmara de gáspor “traição”. Foram acusadosde entregar segredos nuclearesdos Estados Unidos para a en-tão União Soviética, em plenaGuerra Fria. Quase 50 anos de-pois, o irmão de Ethel, respon-sável pela denúncia, arrepen-deu-se e disse que a acusaçãoera falsa. Tarde demais. O ca-sal fora assassinado pelo Esta-do em 20 de junho de 1953.

Mais recentemente, um ído-lo popular, Cassius Clay, cam-peão mundial de boxe, passou por Sing-Sing. Ele fora conde-nado por abuso sexual e esca-pou de todos os horrores da pri-são. Mas, também, quem ousa-ria enfrentá-lo numa briga?

EUA são o primeiro país em presídiosMADE IN USA Com características de escravidão, mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados é barata até para padrões chineses

Nos EUA, há 750 presos para cada cem mil pessoas. O percentual é assustador quando se sabe que na Inglaterra são 148 para cada cem mil; na França, 85; na Líbia, 217; e na China, 119

Chenney não é o único a lucrar com guerras e presídios. A empresa KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, também investe em presídios

Presos preparam frangos na cadeia do Condado de Cowlitz, no Estado de Washington

Reprodução

Sob olhar de guarda, presa trabalha em jardim de Kane, em Illinois

cred

ito

Page 12: Edição 301 - de 4 a 10 de dezembro de 2008

de 4 a 10 de dezembro de 200812

áfrica

Sílvia Alvarez de Maputo (Moçambique)

UM DOS fundadores da União Nacional de Camponeses (Unac) e militante ativo na construção da Moçambique pós-indepen-dência, Ismael Ossemane dá uma aula sobre a história do seu país, que sediou, entre os dias 16 e 23 de outubro, em Maputo, a 5ª Conferência Internacional da Via Campesina.

Ossemane conta que, quando das negociações e conversas en-tre a Frelimo (Frente de Liber-tação Moçambicana) e os colo-nos portugueses, estes sugeri-ram que fosse feito um referen-do para perguntar à população moçambicana se queriam per-manecer ou não uma colônia de Portugal. A proposta foi ime-diatamente recusada por Samo-ra Machel, então líder da orga-nização. “Não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre”, foi a resposta dada por ele, que se-guiu com a luta armada até que os portugueses aceitessem que Moçambique tinha o direito de ser independente sem pré-con-dição, o que aconteceu em 7 de setembro de 1974. A data pas-sou a ser celebrada em Moçam-bique como o dia da liberdade. A Indepêndencia acontece de-pois, em 25 de junho de 1975.

Hoje, a Frelimo é o partido que está no poder em Moçam-bique, mas com novas caracte-rísticas. “Eles dizem que a Fre-limo é a mesma. Mas nós temos olhos para ver e corpo para sen-tir o que se passa”, disse. Osse-mane militou no partido como secretário provincial de políti-cas econômicas. Mais tarde foi transferido para o comitê cen-tral, para assumir o programa de socialização do campo. Quan-do percebeu que o projeto revo-lucionário já não existia no par-tido, pediu demissão e foi pa-ra o campo ajudar a construir a Unac. Atualmente, ocupa o car-go de presidente da mesa da As-sembléia Geral desta entidade.

Brasil de Fato – Quem foi Samora Machel e qual o legado deixado por ele? Ismael Ossemane – Eu não participei da luta armada, mas sei que Samora Machel deu um grande impulso à guerrilha. Ele era um jovem moçambicano nacionalista que aderiu ao mo-vimento de libertação de Mo-çambique e fez parte do primei-ro grupo que recebeu treina-mento na Argélia. Por sua gran-de capacidade de liderança, lo-go se tornou um comandante muito importante para a con-cretização da independência do país. Penso que, naquela altura, a liderança tinha que estar com um homem muito ligado às for-ças populares de libertação. Se-ria difícil um intelectual, mes-mo revolucionário, liderar a lu-ta armada. Ele transformou a luta armada em uma luta popu-lar. E, depois da independência, foi um bom comandante, mes-mo sem ter uma grande forma-ção acadêmica. Ele era um ho-mem muito inteligente.

Qual foi a participação e importância da Frelimo na luta pela independência?

A Frelimo passou por trans-formações ao longo desse pro-cesso. Em um determinado momento, existiam duas po-sições dentro da organização: a revolucionária e uma outra que se chamou de reacioná-ria. A certa altura começaram a acontecer as zonas libertárias,

em que a administração portu-guesa não entrava. Foi preci-so formar uma administração da Frelimo nesses lugares. Os cargos da Frelimo eram mistu-rados com pessoas dessas duas correntes, até que fi cou clara a posição da organização como revolucionária, principalmente quando Samora Machel torna-se um de seus líderes. Alguns dos chamados reacionários for-mariam depois a Renamo (Re-sistência Nacional Moçambica-na), que hoje tornou-se o prin-cipal partido de oposição.

Como se deu o processo da independência?

Em 1974, o exército colonial português recuou. Não quise-ram mais a guerra. Eles dizem que foi por causa das negocia-ções, mas, para nós, os militares perceberam que estavam derro-tados no campo de batalha, que os fi lhos dos portugueses esta-vam morrendo. Então, come-çam as negociações. Um pouco difíceis, porque as novas autori-dades portuguesas queriam um referendo para perguntar ao povo moçambicano se queriam a independência. Mas Samora Machel bateu o pé. A nossa lu-ta continuou, e, em setembro de 1974, fi rmaram-se os acor-dos. Nesse mesmo dia, aqui em Maputo, teve um levantamento da comunidade portuguesa rea-cionária. Eles até tomaram uma rádio, mas durou pouco tempo. O novo governo português não deu apoio [o governo depois do Estado Novo], e as populações aqui no subúrbio começaram a se organizar. Três dias depois, os portugueses saíram em de-bandada. Então dá-se a inde-pendência, e seguimos uma linha socialista.

Quais foram os benefícios do socialismo para a população Moçambicana?

Imediatamente começaram grandes programas de massa. Na educação, por exemplo, so-bretudo na questão da alfabe-tização, porque tínhamos mais de 90% da população sem sa-ber ler e escrever, aconteceram grandes campanhas. Naciona-lizou-se a saúde, que passou a estar a serviço do povo. Acon-teceram campanhas também de vacinação para as crianças. Nacionalizaram também os prédios de rendimento. Os mo-çambicanos não precisavam mais pagar aluguel, e isso le-vou a população negra a entrar

na cidade de Maputo. Antes era uma cidade colonial, só de brancos, enquanto os negros viviam nas periferias. A nacio-nalização transformou Maputo em uma cidade africana.

Por que a revolução fracassou?

Quando Ian Smith apoderou-se do governo da Rodésia [atual Zimbabwe] ilegalmente, a ONU não reconheceu o novo governo e mandou aplicar sanções. No entanto, ninguém as aplicava. Mas quando Moçambique fi -ca independente, resolve cor-tar relações diplomáticas e eco-nômicas com a Rodésia. Mas is-so custou muito à Moçambique, porque tínhamos ligações eco-nômicas com eles. A ONU tam-bém havia prometido um apoio para quem aplicasse as sanções, mas nunca os deu. Então a Ro-désia, com o apoio da Renamo, da África do Sul e de dissiden-tes da Frelimo, resolve entrar em guerra com Moçambique. E eles tinham um aparato militar muito grande.

Qual foi o principal erro cometido pelo partido depois da independência?

Nós cometemos alguns er-ros dentro da revolução. Acon-teceu aquilo que podemos cha-mar de esquerdismo. Primeiro, começamos a hostilizar a reli-gião. Não só as que vieram de fora, mas também as próprias tradições da população, as cren-ças. A poligamia, que era tradi-cional, também foi condenada. Depois hostilizamos também os líderes tradicionais, aqueles que eram agentes do colonialismo, mas tinham poder e legitimida-de com o povo. Utilizamos a es-tratégia errada, transformamos o povo em inimigo da revolução. Acabamos por empurrar o povo para ser base da burguesia. Ela então se apropriou das falhas da Frelimo. Falava em “liberda-de religiosa, liberdade das tradi-ções”, quando o objetivo deles não era essa liberdade...

A situação era: estávamos nu-ma crise econômica, a falência da União Soviética, a queda do muro de Berlim, o povo estava morrendo. Então, em 1986 ade-rimos à abertura do mercado, pegamos receitas do FMI e do Banco Mundial. A princípio isso era uma estratégia. Dar um pas-so atrás para avançar depois. No entanto, começamos a perceber que aqueles que eram militantes da revolução estavam se trans-

formando em agentes do capita-lismo. Muitos enriqueceram da noite para o dia. Esse foi o pior golpe que sofremos.

E hoje, qual é a situação política e econômica de Moçambique?

Temos hoje uma economia política neoliberal que em na-da favorece o povo. Recebemos muito dinheiro internacional, que supostamente é para apoiar as comunidades, assim como os programas governamentais. Mas é para apoiar numa pers-pectiva capitalista, principal-mente no campo, como forma de ganhar a base.

O sistema capitalista precisa ter alguns na base que defen-dam o modelo. É uma estraté-gia. Os portugueses fi zeram is-so com os líderes tradicionais, como falei antes. Estes líderes recebiam alguns benefícios e eram os primeiros a defender o regime colonial. Além disso, só dar o dinheiro não resolve. Te-mos que capacitar. Mas o gover-no não capacita, e aí diz: “nós já fi zemos tudo por essas comuni-dades. Já demos dinheiro. Eles é que não tem capacidade, não são empreendedores”.

Depois dos acordos de paz, ou mesmo durante a guerra, mui-tas ONGs deram apoio huma-nitário, como roupas, comida. O que verifi camos nisso é que grande parte (não todos) dos projetos das ONGs é uma repe-tição da implementação das po-líticas a que me referia. São de-senhadas de uma forma que, na minha análise, em vez de terem um impacto no desenvolvimen-to das comunidades, têm maior impacto na maneira das pessoas pensarem. Elas fi cam cada vez mais dependentes de projetos. Acaba um projeto e já pedem ou-tro. Sem perceber, estão tornan-do o país vulnerável para que as grandes empresas dos países que doam esse dinheiro possam entrar aqui em Moçambique. A população não percebe que há um preço que pagamos. O país fi ca nas mãos das grandes em-presas estrangeiras, com a cum-plicidade das elites nacionais.

Perante essa situação, como a Unac se organiza? Como combatem esse modelo?

A Unac tem feito debates, reuniões, ligações com movi-mentos internacionais, como a Via Campesina, para tentar en-contrar soluções perante a rea-lidade da pobreza moçambica-na. Estamos fazendo cursos de formação, inclusive com a aju-da de movimentos sociais bra-sileiros, tentando conscientizar

as pessoas, para que fi que cla-ro quando esses projetos estão nos ajudando ou nos cooptan-do. Então a Unac tem um gran-de trabalho de, nesse contexto, nessa realidade, conseguir levar um desenvolvimento sustentá-vel. Também pressionamos as autoridades para determina-do tipo de política. Por exem-plo, aqui em Moçambique não temos tanto problema de sem-terras como no Brasil. Mas a re-forma agrária não pode ser vis-ta só como distribuição da ter-ra. O que adianta ter terra, mas não ter crédito, e outras condi-ções? Vão te tirar a terra depois. Dirão que os camponeses não estão aproveitando da melhor maneira a terra e a entregarão às multinacionais.

Como a crise mundial e a alta do preço dos alimentos têm afetado os trabalhadores de Moçambique?

O nosso campo não depende muito do mercado para ter ali-mentação. A população produz a sua alimentação. O problema é que ela produz com muita difi -culdade. E não lhe resta dinhei-ro para comprar outras coisas, como caderno para os fi lhos, re-médios etc. O camponês é po-bre. Nas zonas urbanas, onde um trabalhador ganha um sa-lário mínimo de menos de 50 dólares, a vida também é muito difícil. Muitas vezes ele se man-tém porque a família que es-tá no campo lhe manda algum alimento. Agora, com o mer-cado livre e o desenvolvimen-to da África do Sul, a produ-ção do interior de Moçambique não chega à cidade de Maputo. Os custos do transporte aumen-tam muito o preço do alimento que vai vender. Os produtos da África do Sul chegam a um pre-ço baixo, e com uma embala-gem bonita. Então é difícil vo-cê aumentar a produção quan-do não tem mercado. Isso ajuda as empresas a encontrarem es-paço para incentivar monocul-turas como o algodão e o taba-co, porque essas empresas ga-rantem essa comercialização.

O senhor disse que grandes líderes tornaram-se agentes do capital. A Frelimo seria também um agente do capitalismo hoje?

Dizer que no partido só há agentes do capitalismo pode ser injusto. Mas quando temos dentro do partido pessoas in-fl uentes, de peso, que são gran-des capitalistas, podemos ter uma idéia do que é o projeto do partido. Mas não podemos pe-

gar um partido com milhares de membros e dizer que todos são agentes. Muita gente ain-da acredita em uma transfor-mação. Por exemplo, essa esco-la onde estamos (Escola do par-tido Frelimo) foi construída lo-go após a independência, e era onde se dava a consciência do proletariado, do camponês. Eu mesmo fi z curso aqui. Mas se tu me perguntas o que acontece aqui hoje em dia, eu não sei. Es-ta sendo útil agora porque con-seguimos esse espaço para fa-zer a Conferência, mas, tiran-do isso, eu não sei. Além dis-so, a Frelimo, que era um par-tido de operários e campone-ses, com aliança com intelec-tuais, hoje se diz que é de ope-rários, camponeses, burgueses, agentes econômicos...tudo! Não sei se historicamente somos ca-pazes de misturar esses tipos de pessoas com interesses comple-tamente diferentes.

Existe uma esquerda intelectual hoje em Moçambique?

As pessoas estão traumatiza-das, desanimadas. Quando en-tramos com um discurso como o da Unac e o da Via Campesi-na, ainda te toleram, mas di-zem: “bom, essa gente não de-ve andar muito bem da cabeça”, ou dizem que somos românti-cos, algo assim. O capitalismo usa um discurso de que está provado que os regimes socia-listas são fracassados. A univer-sidade também está infl uencia-da pelo modelo capitalista. En-tão, o jovem que sai da universi-dade sai esquematizado dentro do modelo. Há alguns intelec-tuais que nos apóiam, mas que às vezes acham nosso discurso muito radical.

Quais são as perspectivas para o futuro de Moçambique?

A perspectiva é má. Mas tam-bém é verdade que, durante es-ses anos que entramos no capi-talismo – que não são muitos –, já começam a haver algumas frustrações, como jovens de-sempregados, por exemplo. Co-meçam a verifi car que o capita-lismo não é tudo isso que a pro-paganda diz. Em fevereiro des-te ano, houve uma mobilização popular por conta do aumento do preço dos combustíveis, que pegou as autoridades de sur-presa. Então, há uma base in-conformada. A dinâmica do in-sucesso do capitalismo, da ex-ploração dessas elites, pode de-sencadear, gradualmente, uma consciência que engrosse nossa luta. Mas temos que saber que ainda somos uma minoria.

“Não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre”ENTREVISTA A frase acima – segundo Ismael Ossemane, da União Nacional dos Camponeses e militante ativo na construção de Moçambique pós-independência – foi a resposta de Samora Machel, líder da Frente de Libertação Moçambicana (Frelimo), aos colonizadores portugueses ao sugerirem um referendo para perguntar à população moçambicana se queriam permanecer ou não colônia de Portugal

Ismael Ossemani, um dos fundadores da Unac

Camponesas trabalham na zona rural de Moçambique

Fotos: Douglas Mansur/Novo Movimento