Doutorado - completo
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
LAURENT AZEVEDO MARQUES DE SAES
A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a
Revoluo francesa (1788-1802)
VERSO CORRIGIDA
So Paulo
2013
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a
Revoluo francesa (1788-1802)
Laurent Azevedo Marques de Saes
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria Social do Departamento de Histria da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo, para a obteno do
ttulo de Doutor em Histria
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron
VERSO CORRIGIDA
So Paulo
2013
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer
meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a
fonte.
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Nome: SAES, Laurent Azevedo Marques de
Ttulo: A Socit des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a Revoluo
francesa (1788-1802)
Tese apresentada ao Programa de Histria Social do Departamento de Histria da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para
obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr.: ___________________________Instituio: __________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
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Agradecimentos
Aos meus pais, Michle e Dcio, e ao meu irmo, Guillaume, a quem dedico esta tese.
Aos professores Dr. Rafael de Bivar Marquese, Dr. Maximiliano Mac Menz, Dra.
Maria Cristina Cortez Wissenbach, Dr. Modesto Florenzano, Dr. Carlos Ziller
Camenietzki e Dr. Rodrigo Faustinoni Bonciani por seus comentrios, crticas e
sugestes. Sua contribuio foi preciosa para que este trabalho tenha chegado a bom
termo.
Aos colegas de graduao e ps-graduao, em especial todos os participantes do grupo
de discusso organizado por nosso orientador, que contriburam com suas perguntas e
observaes para o desenvolvimento de nossa reflexo.
A Flvio, Sylvia e Alexandre Saes, pelo apoio constante manifestado ao longo da
pesquisa.
Aos Archives Dpartementales de Loire Atlantique (ADLA), aos Archives Nationales
de France (stio de Paris) e Bibliothque Nationale Franaise (stio Franois
Miterrand), que nos receberam durante nossas estadias em Nantes e Paris.
A Maria de Ftima S. G. Morashashi e todos os responsveis pela coordenao do
Programa de Aperfeioamento de Ensino (PAE FFLCH).
E, acima de tudo, ao Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, nosso
orientador, mentor e amigo. Devemos s suas virtudes como professor, pesquisador e
leitor as eventuais qualidades deste trabalho.
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - Brasil.
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Resumo
No final do sculo XVIII, o poderio econmico da Frana repousava
essencialmente sobre o comrcio que o pas realizava com as suas colnias. Graas,
principalmente, ao acar e ao caf de So Domingos, a "prola das Antilhas", o
comrcio colonial francs atingia o seu auge no mesmo momento em que o pas rumava
para um processo violento de transformao de suas instituies. Ao mesmo tempo,
havia, na metrpole, questionamentos a respeito da gesto de colnias cada vez mais
povoadas de escravos, arrancados de seus lares para exercer o cultivo nas plantations.
Nesse contexto, em 1788, formou-se a primeira organizao antiescravista francesa, a
Sociedade dos Amigos dos Negros. Sob a liderana de alguns dos principais
personagens do perodo revolucionrio, como Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette e
Condorcet, essa sociedade de nobres, homens de letras e financistas procurou introduzir
a questo do trfico negreiro na ordem do dia dos debates polticos que marcaram a
Revoluo francesa. Procuramos, no presente trabalho, retraar a atividade desses
homens, cuja moderao contrasta com o rumo que a questo colonial tomou, a partir da
grande insurreio dos escravos em So Domingos, de agosto de 1791. Acreditamos
que o estudo dos limites do discurso antiescravista do final do sculo XVIII e da poltica
colonial das assembleias revolucionrias traz consigo ensinamentos sobre os limites da
prpria Revoluo francesa.
Palavras-chave: Revoluo francesa, escravido, antiescravismo, comrcio colonial,
revolta escrava
Abstract
At the end of the 18th century, France's economic power relied foremost on
trade with its colonies. Thanks to the sugar and coffee produced in Saint-Domingue, the
"pearl of the Antilles", French colonial commerce reached its peak at the very moment
the country was moving toward a violent process of radical institutional transformation.
At the same time, it was a moment of interrogations about the administration of colonies
whose slave population was in continuous increase. In this context, in 1788, the first
French antislavery organization was created, the Society of the Friends of the Blacks.
Under the leadership of some of the key-characters of the revolutionary period, like
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Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette and Condorcet, this society of nobles,
intellectuals and financiers endeavored to bring the issue of slave trade to the political
debate that marked the French Revolution. We intend, with this study, to retrace the
activities of those men, whose moderation of principles was in contrast with the turn of
events that marked the colonial space, with the slave insurrection of August 1791, in
Saint-Domingue. We hope that, by approaching the limits of the antislavery program of
the late-18th century and of the colonial policies of the revolutionary assemblies, this
study might offer teachings on the limits of the Revolution itself.
Keywords: French Revolution, slavery, antislavery, colonial commerce, slave revolt
Rsum
la fin du XVIIIe sicle, la puissance conomique de la France reposait avant
tout sur le commerce qu'elle entreprenait avec ses colonies. Grce, notamment, au sucre
et au caf produits Saint-Domingue, la "perle des Antilles", le commerce colonial
franais avait atteint son apoge, alors que le pays avanait vers un processus violent de
transformation de ses institutions. En mme temps, on se posait, en mtropole, des
questions propos de l'administration de colonies de plus en plus peuples d'esclaves,
arrachs de leur sol pour cultiver le sol des habitations coloniales. Dans ce contexte, en
1788, s'est forme la premire organisation anti-esclavagiste franaise, la Socit des
Amis des Noirs. Sous la direction de certains des personnages-cls de la priode
rvolutionnaire, comme Brissot, Clavire, Mirabeau, La Fayette et Condorcet, cette
socit, compose de nobles, hommes de lettres et financiers, a tent d'introduire la
question de la traite ngrire l'ordre du jour des dbats politiques qui ont marqu la
Rvolution franaise. Dans ce travail, nous chercherons retracer l'activit de ces
hommes, dont la modration des ides contraste avec la tournure qu'a prise la question
coloniale, partir de la grande insurrection des esclaves Saint-Domingue, en aot
1791. Nous esprons que l'tude des limites du discours anti-esclavagiste de la fin du
XVIIIe sicle et de la politique coloniale des assembles rvolutionnaires soit rvlateur
des limites de la Rvolution elle-mme.
Mots-cls: Rvolution franaise, esclavage, anti-esclavagisme, commerce colonial,
rvolte d'esclaves
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ABREVIATURAS
ADLA: Archives Dpartementales de Loire Atlantique (Nantes, Frana)
AP: Archives Parlementaires
BFEA: Biblioteca da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da USP
BFF: Biblioteca Florestan Fernandes (FFLCH-USP)
BN: Bibliothque Nationale Franaise
Observao: as citaes includas no texto foram livremente traduzidas por ns.
Inclumos, para as citaes mais extensas, o texto original nas notas de rodap.
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Sumrio
Introduo...................................................................................................................p.14
Parte I A Revoluo francesa diante da escravido negra (fevereiro de 1788
setembro de 1791).......................................................................................................p.46
I.1) A Sociedade dos Amigos dos Negros..................................................................p.47
I.1.1) Uma sociedade antiescravista s vsperas da Revoluo.......................p.47
I.1.1.1) O comrcio colonial no quadro da economia francesa.............p.47
I.1.1.2) Um contexto poltico favorvel................................................p.58
I.1.1.3) Brissot e o problema da escravido..........................................p.67
I.1.1.4) A fundao...............................................................................p.71
I.1.1.5) Um novo tipo de sociedade......................................................p.77
I.1.1.6) Uma sociedade de elite.............................................................p.81
I.1.1.7) Composio..............................................................................p.84
I.1.1.8) Os financistas...........................................................................p.87
I.1.2) Um programa antiescravista moderado...................................................p.96
I.1.2.1) Condenao moral, cautela poltica: uma herana das Luzes..p.98
I.1.2.2) A crtica econmica escravido na Frana..........................p.123
I.1.2.3) As reflexes de Condorcet sobre a escravido.......................p.130
I.1.2.4) O programa da Sociedade dos Amigos dos Negros...............p.134
I.1.2.4.1) Abolio do trfico: uma luta internacional............p.134
I.1.2.4.2) Abolio gradual da escravido...............................p.138
I.1.2.4.3) Suavizao da condio dos escravos.....................p.141
I.1.2.4.4) Um novo projeto colonial........................................p.146
I.1.2.5) Variaes de um mesmo programa........................................p.153
I.1.2.6) Um incio pouco promissor....................................................p.161
I.2) Os Amigos dos Negros e a Revoluo..............................................................p.164
I.2.1) Os Estados Gerais: uma nova perspectiva............................................p.164
I.2.1.1) As consideraes de Brissot sobre os Estados Unidos..........p.164
I.2.1.2) A causa dos negros nos cadernos de queixas........................p.166
I.2.1.3) A campanha junto aos deputados...........................................p.170
I.2.2) O primeiro debate: a questo da representao colonial.......................p.175
I.2.3) Formao do bloco antagonista.............................................................p.185
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I.2.4) A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado...........................p.192
I.2.5) A campanha contra o trfico.................................................................p.195
I.2.5.1) O trfico negreiro: um comrcio ruinoso para a Nao.........p.195
I.2.5.2) O discurso de Mirabeau..........................................................p.200
I.2.5.3) O debate de maro de 1790....................................................p.206
I.3) O combate pelos homens de cor livres.............................................................p.215
I.3.1) O movimento antiescravista na luta contra o preconceito....................p.215
I.3.1.1) Julien Raimond e a Sociedade dos Cidados de Cor..............p.216
I.3.1.2) Os Amigos dos Negros na luta pela igualdade da epiderme..p.230
I.3.1.3) O memorial de Grgoire e a resposta do campo colonial.......p.235
I.3.2) Maro e outubro de 1790: reviravoltas no debate colonial...................p.242
I.3.2.1) As Instrues de 28 de maro: uma vitria aparente..............p.242
I.3.2.2) 12 de out. de 1790: consagrao da competncia colonial.....p.245
I.3.2.3) Reaes do campo antiescravista...........................................p.248
I.3.3) O martrio de Og e as novas investidas dos cidados de cor...............p.252
I.3.4) O debate de maio de 1791: uma vitria momentnea...........................p.261
I.3.4.1) Constitucionalizao da escravido, igualdade da epiderme.p.261
I.3.4.2) Repercusses do decreto de 15 de maio.................................p.272
I.3.5) Maio-setembro de 1791: o retrocesso...................................................p.279
I.3.5.1) A ofensiva colonial contra o decreto de 15 de maio..............p.279
I.3.5.2) O debate de setembro de 1791...............................................p.283
I.3.5.3) Reaes lei de 24 de setembro.............................................p.286
I.3.5.4) Duas ordens constitucionais distintas.....................................p.289
Parte II A Revoluo na via abolicionista (outubro de 1791 julho de 1794).p.293
II.1) A insurreio escrava no debate colonial (outubro de 1791 abril de
1792)...........................................................................................................................p.294
II.1.1) A Legislativa e a ascenso poltica dos Brissotinos............................p.294
II.1.2) Insurreio geral em So Domingos....................................................p.297
II.1.2.1) A Revoluo nas colnias.....................................................p.297
II.1.2.2) So Domingos em chamas....................................................p.311
II.1.2.3) A rebelio escrava na via revolucionria..............................p.315
II.1.3) A Assembleia Nacional diante da insurreio negra...........................p.322
II.1.3.1) O ceticismo perante o "impensvel".....................................p.322
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II.1.3.2) Os Amigos dos Negros contra a parede................................p.331
II.1.4) A igualdade da epiderme.....................................................................p.334
II.1.4.1) Os cidados de cor e a preservao da ordem colonial.........p.334
II.1.4.2) A lei de 24 de maro 4 de abril de 1792: maior e
derradeira vitria dos Amigos dos Negros..........................................p.345
II.1.4.3) Uma nova comisso civil......................................................p.351
II.1.5) Fim do antiescravismo sob a Revoluo?............................................p.356
II.1.5.1) O apagamento dos Amigos dos Negros................................p.356
II.1.5.2) A guerra entre Girondinos e Montanheses: a tese de um
deslize da esquerda..............................................................................p.357
II.2) Insurreio escrava e impulso republicano: a superao do gradualismo.p.366
II.2.1) A ascenso do abolicionismo radical...................................................p.366
II.2.1.1) Alguns planos de abolio gradual.......................................p.367
II.2.1.2) A insurreio negra na imprensa patritica: os primeiros
sinais de uma evoluo.......................................................................p.371
II.2.1.3) A popularizao da causa antiescravista...............................p.378
II.2.1.4) Milscent: o modelo de uma evoluo...................................p.383
II.2.1.5) Os homens de cor na luta abolicionista.................................p.389
II.2.2) A Repblica radical.............................................................................p.393
II.2.2.1) A petio de 4 de junho de 1793...........................................p.393
II.2.2.2) A abolio das subvenes ao trfico...................................p.398
II.2.3) A conquista da liberdade em So Domingos.......................................p.401
II.3) A abolio (lei de 16 pluvioso do ano II 4 de fevereiro de 1794)...............p.410
II.3.1) A deputao da igualdade e a supresso da escravido colonial.........p.410
II.3.2) As reaes lei: sinais de uma adeso popular...................................p.423
II.3.3) A guerra pela liberdade.......................................................................p.434
II.3.3.1) A atitude dos robespierristas.................................................p.434
II.3.3.2) A perseguio aos colonos....................................................p.439
II.3.3.3) As medidas de execuo.......................................................p.445
Parte III Do colonialismo assimilacionista ao restabelecimento da escravido
(1794-1802)................................................................................................................p.453
III.1) Emancipao dos negros e assimilao das colnias...................................p.454
III.1.1) A aplicao da abolio: o problema dos regimes de trabalho..........p.454
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III.1.2) A transio thermidoriana..................................................................p.463
III.1.2.1) O fim da represso aos colonos...........................................p.464
III.1.2.2) Uma nova ofensiva colonial................................................p.467
III.1.2.3) Os representantes das ilhas Mascarenhas............................p.469
III.1.3) A Constituio do ano III...................................................................p.474
III.1.3.1) Ruma a uma nova poltica colonial.....................................p.474
III.1.3.2) A nova Constituio............................................................p.478
III.1.3.3) As tentativas de aplicao....................................................p.482
III.1.4) Os escravistas no seio da reao monarquista....................................p.486
III.1.4.1) Uma tendncia reacionria em matria colonial..................p.486
III.1.4.2) As eleies da primavera de 1797 e a ofensiva
antirrepublicana...................................................................................p.488
III.1.5) O golpe de 18 fructidor do ano V (4 de setembro de 1797)...............p.497
III.2) A Sociedade dos Amigos dos Negros e das Colnias...................................p.500
III.2.1) Continuidade e renovao do movimento antiescravista...................p.500
III.2.1.1) A fundao...........................................................................p.500
III.2.1.2) Composio.........................................................................p.502
III.2.2) O programa.........................................................................................p.508
III.2.2.1) Linhas gerais........................................................................p.508
III.2.2.2) Emancipao dos negros......................................................p.511
III.2.2.3) Educao dos novos livres...................................................p.514
III.2.2.4) Trabalho livre nas colnias e inovaes na cultura
colonial................................................................................................p.516
III.2.2.5) Expanso colonial sobre novas bases..................................p.519
III.2.2.6) Projetos gradualistas............................................................p.527
III.2.3) A organizao constitucional das colnias.........................................p.530
III.2.3.1) A lei de 12 nivoso do ano VI (1 de janeiro de 1798).........p.530
III.2.3.2) Aplicao da lei...................................................................p.533
III.2.3.3) Os Amigos dos Negros e Toussaint Louverture..................p.537
III.2.4) O fim da Sociedade............................................................................p.539
III.3) O restabelecimento da escravido (novembro de 1799 maio de 1802)...p.544
III.3.1) Um novo contexto..............................................................................p.546
III.3.1.1) Bonaparte e seu crculo........................................................p.546
III.3.1.2) A propaganda escravista......................................................p.552
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III.3.1.3) O antiescravismo sob o Consulado......................................p.560
III.3.2) Uma nova poltica colonial.................................................................p.566
III.3.2.1) Relaes tensas com as colnias..........................................p.566
III.3.2.2) A Constituio do ano VIII..................................................p.569
III.3.2.3) A Constituio de So Domingos........................................p.573
III.3.3) A revogao da abolio....................................................................p.578
III.3.3.1) A paz com a Inglaterra.........................................................p.578
III.3.3.2) A lei de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802).............p.584
III.3.3.3) Resultado final.....................................................................p.591
Concluso..................................................................................................................p.599
Bibliografia................................................................................................................p.614
Apndices..................................................................................................................p.654
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Introduo
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[...] a partir do momento em que as artes e o comrcio conseguem penetrar no povo e criam um novo meio de riqueza em proveito da classe laboriosa, prepara-se uma revoluo nas leis polticas; uma nova distribuio da riqueza produz uma nova distribuio do poder. Assim como a posse das terras elevou a aristocracia, a propriedade industrial eleva o poder do povo; ele adquire a sua liberdade, ele se multiplica, ele comea a influir nos seus assuntos.1 (grifo nosso)
As palavras acima foram escritas no ano de 1792, por Antoine Pierre Joseph
Marie Barnave, ento antigo deputado da Assembleia Constituinte. Antes de cair em
desgraa na esteira da derrubada da realeza2, Barnave havia se afirmado como um dos
mais populares e influentes oradores da Assembleia Constituinte e um dos principais
protagonistas da primeira fase da Revoluo francesa. No texto em questo, ele, que
tinha sido um dos fundadores do Clube dos Jacobinos e, posteriormente, dos Feuillants,
refletia a respeito das origens da Revoluo. Manifestava a percepo segundo a qual
esta marcava o fim de uma sociedade baseada na propriedade fundiria e dominada pela
aristocracia feudal e o comeo de uma nova, baseada em outra forma de propriedade e
tendente igualdade. Barnave afirmava que uma sociedade fundada na propriedade da
terra, onde a produo agrcola era a nica fonte de riqueza, tendia desigualdade em
favor da aristocracia, ao passo que "[...] a onde existe uma renda de comrcio e de
indstria, o trabalho dos pobres consegue, pouco a pouco, atrair para si uma poro das
terras dos ricos".3 Barnave identificava nessa "riqueza mobiliria" o marco do declnio
da aristocracia feudal e, consequentemente, o fundamento de numa nova sociedade
baseada na liberdade e na igualdade jurdica, uma sociedade que ele entendia por
democrtica.4 A Revoluo se explicava, assim, pela necessidade de mudar as
instituies polticas sobre as quais a aristocracia feudal se apoiava e, com isso, libertar
o comrcio e a indstria de suas amarras.
1 "[...] ds que les arts et le commerce parviennent pntrer dans le peuple et crent un nouveau moyen de richesse au secours de la classe laborieuse, il se prpare une rvolution dans les lois politiques; une nouvelle distribution de la richesse produit une nouvelle distribution du pouvoir. De mme que la possession des terres a lev l'aristocratie, la proprit industrielle lve le pouvoir du peuple; il acquiert sa libert, il se multiplie, il commence influer sur les affaires" (BARNAVE, Antoine. Introduction la Rvolution franaise. In: Oeuvres. Paris: J. Chapelle et Guiller, 1843, v.1, pp.13-14). 2 Barnave foi comprometido pela descoberta, aps a jornada de 10 de agosto de 1792, de documentos que o associavam Coroa. O trecho aqui reproduzido integra, alis, uma obra escrita na priso em 1792 e publicada somente em 1843, sob o ttulo Introduction la Rvolution franaise. O ttulo original dado por Barnave era De la Rvolution et de la Constitution. 3 "[...] l o il existe un revenu de commerce et d'industrie, le travail des pauvres parvient peu peu attirer lui une portion des terres des riches" (BARNAVE, Antoine. Introduction la Rvolution franaise, p.9). 4 Ibidem, p.31.
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A Revoluo no resultou somente da liderana de uma burguesia homognea,
mas da ao de diferentes classes e fraes, cada uma na luta por seus prprios
objetivos: nobres, grandes negociantes, pequenos artesos, camponeses abastados e
diaristas, todos viram naquele momento de convulso social e poltica uma
oportunidade de concretizar as suas aspiraes na nova ordem que estava sendo
construda. Objetivamente, o processo revolucionrio como um todo resultaria no
estabelecimento das condies institucionais necessrias para o desenvolvimento
capitalista da Frana, o qual ocorreria essencialmente a partir da segunda metade do
sculo XIX.5
Barnave, entretanto, procurava apresentar a ascenso da classe detentora da
propriedade mobiliria como o sinal do advento da democracia. Esse advogado de
Grenoble poderia ser um dos "intelectuais" de que falava Karl Kautsky em suas
reflexes sobre a luta de classes em 1789, isto , homens de letras que representavam os
interesses de burgueses, apresentando-os sempre como o interesse social geral.6 Essa
burguesia no apresentava a si mesma como classe, mas como representante da
sociedade como um todo. Defensor do ideal de liberdade na metrpole, Barnave foi
tambm, sob a Constituinte, o principal porta-voz dos grupos ligados ao comrcio com
as colnias francesas, o que o levou a defender, por um lado, os termos do sistema
exclusivo e, por outro, o trfico e a escravido negra. Para homens como ele, a riqueza
gerada pelo comrcio de insumos coloniais, produzidos com base na explorao da mo
de obra escrava, era uma das bases da nova sociedade democrtica em construo.
Paradoxalmente, a liberdade que se proclamava na metrpole emanava da privao da
liberdade de centenas de milhares de indivduos nas colnias.
Ao longo dos anos que marcaram a Revoluo, a Frana viu a criao de um
regime parlamentar, a proclamao da liberdade de imprensa e da liberdade religiosa, a
abolio dos privilgios de ordem e dos direitos senhoriais, o estabelecimento de uma
nova organizao judiciria e a instituio da liberdade no uso da propriedade. Na sua
faceta mais radical, a Revoluo promoveu uma certa redistribuio da terra, por meio
de medidas como a venda dos bens nacionais. Entretanto, nesse processo de construo 5 Nesse sentido, o que entendemos por revoluo burguesa no a revoluo planejada pela burguesia com vistas criao imediata de uma sociedade capitalista, mas aquela que estabelece as condies necessrias para o desenvolvimento ulterior do capitalismo. Por criao de condies, entendemos a transformao do Estado e de sua expresso normativa, o Direito, cujo papel na reproduo das relaes de explorao econmica fundamental. Christopher Hill desenvolveu semelhante linha de pensamento em Reformation to Industrial Revolution, 1530-1780 (Middlesex/New York: Penguin Books, 1969). 6 Cf. KAUTSKY, Karl. La lutte des classes en France en 1789. Traduo de douard Berth. Paris: Librairie G. Jacques & Cie, 1901, p.74.
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17
de uma ordem jurdica burguesa, o fim da escravido nas colnias no seria, no final das
contas, includo. A Declarao dos direitos do homem e do cidado de 1789 trazia, no
seu artigo 1, o princpio segundo o qual "os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos". Mas a histria revolucionria mostrou que essa frmula clssica do
liberalismo poltico foi capaz de gerar, de imediato, posturas contraditrias entre os
diferentes atores histricos do perodo, que interpretavam os termos liberdade e
igualdade luz de suas prprias aspiraes e interesses. Para a maioria dos homens nas
assembleias revolucionrias, esses "princpios" encontravam uma fronteira, um limite
ditado pela condio da Frana de potncia colonial.
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Tradicionalmente, prevalecia no territrio francs o princpio da liberdade, isto
, a noo de que qualquer escravo que pusesse os ps no solo francs seria considerado
livre. Esse princpio, cujas primeiras manifestaes remontavam aos sculos XV e XVI,
fortaleceu-se, ao longo do tempo, por conta da ao das cortes francesas. Sue Peabody
aponta que, ao longo do sculo XVIII, quando intensificou-se a chegada de escravos nos
portos franceses, ocorreram esforos por parte da Administrao, pressionada pelos
meios ligados ao comrcio colonial e preocupada com a proliferao de uma populao
negra livre na metrpole, em flexibilizar ou mesmo erradicar o princpio da liberdade.
Essa tentativa foi, entretanto, neutralizada pelo Parlamento de Paris e o Amiraut de
France, que continuaram libertando escravos durante a segunda metade do sculo
XVIII, at a Revoluo.7 Assim, no final do Antigo Regime, centenas de escravos
trazidos por seus senhores como serviais recorreram, com sucesso, s cortes soberanas
francesas para obter, com base no princpio da liberdade, o reconhecimento da sua
emancipao. Consagrava-se a noo de que no havia escravos na Frana.
7 Um edito de outubro de 1716 autorizava senhores a trazer, sob autorizao e registro prvios, seus escravos metrpole para aprender um determinado ofcio ou receber educao religiosa, sem que sua propriedade fosse ameaada. Apenas se as condies no fossem respeitadas, os escravos seriam declarados livres. Uma declarao de 1738 reiterou essa medida, acrescentando somente que, caso as formalidades no fossem cumpridas, os escravos no seriam mais libertados, mas confiscados em nome do rei e devolvidos s colnias. Contudo, nem o edito de 1716, nem a declarao de 1738 foram registrados pelo Parlamento de Paris, corte mais poderosa do pas e cuja jurisdio cobria um tero do territrio. No geral, tais leis no tiveram aplicao. Uma lei de 9 de agosto de 1777, Dclaration pour la police des Noirs, proibia a entrada de todos os negros, mulatos e outras pessoas de cor no reino. A lei no falava em escravos, para evitar a rejeio do registro pelo Parlamento de Paris. Ela estabelecia a criao de depsitos nos portos franceses, onde ficariam detidos os escravos que acompanhassem seus senhores em viagens. As cortes soberanas de Paris mantiveram-se, entretanto, fiis ao princpio da liberdade e continuaram a julgar pedidos de liberdade, que chegaram ao auge nos anos 1780 (cf. PEABODY, Sue. "There Are No Slaves in France": The Political Culture of Race and Slavery in the Ancien Rgime (verso digital). New York: Oxford University Press, 1996, pginas no numeradas).
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Mesmo a servido, que muitos viam como um estgio intermedirio entre a
escravido e a liberdade8, era uma instituio em vias de extino, embora ainda
subsistisse em algumas provncias, sobretudo no Nordeste do reino. Na noite de 4 de
agosto de 1789, a Revoluo apagaria os seus ltimos traos. Contudo, o longo processo
de erradicao das formas de submisso pessoal no continente europeu foi
acompanhado pela introduo e a intensificao da explorao da mo de obra escrava
nas colnias. Enquanto celebrava-se a liberdade na Frana, o pas tornava-se cada vez
mais economicamente vinculado escravido colonial e ao trfico negreiro. No
momento em que explodia a Revoluo, o dualismo entre "uma dedicao crescente
liberdade, na Europa, e uma expanso do sistema mercantil baseado no trabalho do
negro na Amrica"9 atingia o seu paroxismo, em razo do sucesso da produo colonial
francesa.
Apesar das perdas ocasionadas pela Guerra dos Sete Anos10, as colnias
ocupavam um lugar primordial na organizao econmica da Frana do final do sculo
XVIII. As suas posses ultramarinas podiam ser divididas em dois grandes grupos.
Havia, em primeiro lugar, um domnio situado alm do cabo da Boa Esperana, que
inclua cinco comptoirs (feitorias) nas ndias orientais (Pondichry, Chandernagor,
Mah, Yanaon, Krikl), cuja importncia comercial era reduzida. No Oceano ndico, as
posses mais importantes eram as ilhas Mascarenhas: a le-de-France (atual Maurcio) e a
ilha Bourbon (atual Reunio), que possuam importantes plantaes escravistas.
Podemos ainda incluir nesse grupo as posses francesas na frica, mais precisamente na
ilha de Madagascar, estabelecimento destinado compra de escravos, e alguns
territrios na costa ocidental do continente (Saint-Louis do Senegal, a ilha de Gore e
Jud, no atual Benin).
Contudo, consideravelmente mais importantes do que esses territrios orientais e
africanos, eram as colnias da Amrica, ou ndias Ocidentais. Elas incluam,
primeiramente, duas ilhas importantes, temporariamente perdidas para os britnicos,
8 Ao contrrio do escravo, o servo era sujeito de direito, mas, por conta da mo-morta, ele sofria uma srie de limitaes que restringiam a sua capacidade de contratar. Assim como o ttulo de propriedade sobre o escravo, os direitos do senhor sobre o servo eram vistos como uma propriedade inviolvel (cf. BART, Jean. Esclavage et servage tardif. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, de L.F. Sonthonax V. Schoelcher 1793-1794-1848. Paris: Presses Universitaires de Vincennes / ditions UNESCO, 1995, p.28). 9 Cf. DAVIS, David Brion. O Problema da Escravido na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p.130. 10 Com o tratado de Paris, de 10 de fevereiro de 1763, a Frana havia cedido Dominica, Granada, Saint-Vincent e as Grenadines, a Louisiana, Tobago, Minorca, Acadie, as ilhas de Cap Breton e Saint-Jean e o Canad.
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mas devolvidas pelo Tratado de Paris: a Martinica at 1740, a mais prspera das
colnias francesas e a Guadalupe, com suas dependncias (Marie-Galante, Les Saintes
e La Dsirade). Havia ainda a ilha de Sainte-Lucie e o arquiplago de Saint-Pierre-et-
Miquelon, recuperados com o mesmo tratado. No continente, encontrava-se a Guiana,
uma pequena e pouco lucrativa colnia, marginalizada num momento em que as ilhas
atingiam o seu pice comercial. Mas, acima de tudo, o imprio colonial francs girava
em torno da "prola das Antilhas", So Domingos, no propriamente uma ilha, mas
parte de uma ilha, a Hispaniola, cujo restante pertencia Espanha. Era essa colnia que
havia projetado a Frana para o topo do mercado internacional de produtos coloniais. As
perdas ocasionadas pela Guerra fizeram com que o comrcio martimo francs se
voltasse quase que exclusivamente para as suas ilhas, iniciando uma fase de
desenvolvimento vertiginoso. Contando com uma mo de obra de cerca de meio milho
de escravos, So Domingos tornava-se a colnia mais produtiva do mundo.11 O sucesso
da produo caribenha era a base da riqueza da burguesia dos portos franceses,
detentora da "riqueza mobiliria" que, nos termos de Barnave, constitua o fundamento
da sociedade que estava emergindo.
*
O sucesso da produo colonial no deixava, entretanto, de levantar questes na
metrpole a respeito da manuteno da ordem em sociedades construdas em torno da
escravido. Embora nunca tenha sido de fato aplicado, o Code Noir de 1685, a lei da
escravido francesa, j era a traduo de preocupaes relativas ao aumento da
populao escrava nas colnias, aos efeitos do tratamento cruel dessa populao e ao
consequente crescimento de atos de resistncia escrava. Conforme desenvolvia-se o
comrcio colonial e, consequentemente, aumentava a demanda por mo de obra nas
colnias, essas preocupaes se intensificaram.
Nas primeiras dcadas do sculo XVIII, as eventuais observaes crticas
escravido e ao trfico tendiam ainda a ser contrabalanadas pela reiterao de
determinadas justificativas que autorizavam essas prticas, tais como a guerra justa, a
comutao de uma condenao pena de morte, a alienao da prpria pessoa em caso
11 Cf. GAUTHIER, Florence. Triomphe et mort du droit naturel 1789-1795-1802. Paris: PUF, 1992, p.155; BNOT, Yves. La Guyane sous la Rvolution franaise. Kourou: Ibis Rouge ditions, 1997, p.15; TARRADE, Jean. L'esclavage est-il rformable? Les projets des administrateurs coloniaux la fin de l'Ancien Rgime. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, p.11.
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de necessidade extrema e o nascimento na escravido.12 Assim, a escravido aparecia
legitimada por razes religiosas e humanitrias, alm de cumprir uma funo econmica
indispensvel. o que verificamos no seguinte trecho, de Jacques Savary des Brlons,
extrado do seu Dictionnaire universel du commerce (1723-1730):
difcil justificar totalmente o comrcio dos Negros; entretanto, verdade que esses miserveis escravos encontram ordinariamente a sua salvao na perda da sua liberdade e que a razo da instruo crist que lhes dada, associada necessidade indispensvel que se tem deles para a cultura dos acares, dos tabacos, dos anis, etc., suaviza o que parece desumano num negcio onde homens so os mercadores de outros homens e os compram como se fossem animais para cultivar as suas terras [...]. (grifo nosso)13
O que era o princpio de uma condenao moral da escravido encontrava uma
compensao imediata na ideia de que a escravizao do Negro vinha comumente como
a comutao de uma pena de morte decretada em seu pas de origem. O autor citava
ainda os benefcios da evangelizao dos Negros e o carter necessrio da mo de obra
escrava para o cultivo das terras. O autor fazia apenas uma ressalva quanto aos excessos
no tratamento dispensado aos escravos.
Conforme avanamos no sculo XVIII, verificamos o desenvolvimento de uma
crtica mais pronunciada ao sistema escravista. Marcel Dorigny afirma que a dcada de
1740, em particular, foi marcada por uma "tomada de conscincia moral do carter
criminoso do trfico e da escravido".14 Mas o que essa conscientizao mais ou menos
generalizada expressava era menos a necessidade de abolir tais instituies do que
atentar para os efeitos provveis das prticas desumanas existentes nas colnias. Ao
denunciar o carter brbaro da escravido, pensadores como Montesquieu e Jaucourt
indicavam a necessidade de reformar o sistema colonial. Houve, com isso, um
deslocamento no debate sobre a questo colonial, com o recuo progressivo, no campo
12 Como explica Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, esses ttulos foram extrados da tradio jurdica romana e acabaram sendo retomados pela jurisprudncia medieval (cf. ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de f. A Companhia de Jesus e a Escravido no Processo de Formao da Sociedade Colonial (Brasil, Sculos XVI e XVII). Traduo de Antonio de Padua Danesi. So Paulo: Edusp, 2011, p.109). 13 "Il est difficile de justifier tout--fait le commerce des Ngres; cependant il est vrai que ces misrables esclaves trouvent ordinairement leur salut dans la perte de leur libert et que la raison de l'instruction chrtienne qu'on leur donne, jointe au besoin indispensable qu'on a d'eux pour la culture des sucres, des tabacs, des indigos, etc., adoucit ce qui parat inhumain dans un ngoce o des hommes sont les marchands d'autre hommes et les achtent de mme que des bestiaux pour cultiver leurs terres [...]" (SAVARY DES BRLONS, Jacques. Un Ngoce o des hommes sont les marchands d'autres hommes. In: L'abolition de l'esclavage. Un combat pour les droits de l'homme. GEORGEL, Chantal (org.). Paris: ditions Complexe, 1998, p.48). 14 DORIGNY, Marcel, GAINOT, Bernard. La Socit des Amis de Noirs 1788-1799: Contribution l'histoire de l'abolition de l'esclavage. Paris: UNESCO, 1988, p.16.
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escravocrata, das tradicionais justificativas morais, jurdicas e religiosas da escravido.
Entre os adeptos da escravido, a invocao dos ttulos que constituam o fundamento
de uma escravizao "legtima" foi, a partir de ento, dando lugar defesa de
consideraes materiais ou econmicas. Doravante, embora as antigas justificativas
continuassem a aparecer, a escravido comearia a ser defendida essencialmente como
um "mal necessrio" conservao das colnias. Em resposta s acusaes de barbrie,
o interesse dos colonos na conservao de seus escravos seria apresentado como a
garantia material de um tratamento justo e humano. Nesse sentido, tornar-se-ia comum
o argumento de que os camponeses na Frana eram mais miserveis do que os escravos
nas colnias.15 O que estava em discusso era menos a legitimidade da escravido do
que a boa ordem colonial.
Aps a Guerra dos Sete anos, as questes coloniais ganharam nova urgncia.
Durante o conflito, a Frana tinha dado prioridade total s colnias da Amrica do
Norte, deixando o Caribe desprotegido. O bloqueio britnico havia cortado o comrcio
francs com So Domingos em 70%. A Guadalupe tinha se rendido aos ingleses sem
resistncia e a Martinica, embora tivesse repelido uma primeira tentativa britnica em
1759, havia seguido o mesmo caminho em 1762. A Guerra suscitou suspeitas recprocas
entre colonos e administrao metropolitana. Esta desconfiava da fidelidade dos
colonos, enquanto estes projetavam, cada vez mais, libertar-se das amarras do sistema
exclusivo.16 Ao mesmo tempo, os anos que seguiram a Guerra marcaram o incio do
auge da produo antilhana, multiplicando a entrada de escravos africanos nas ilhas do
Caribe. Nesse contexto, sentia-se a necessidade de repensar o sistema colonial.
Dorigny entende que, a partir da dcada de 1770, teve incio, um novo perodo
na evoluo do antiescravismo francs, com "a passagem de uma denncia moral da
escravido a uma radicalizao espetacular do discurso".17 No fundo, a radicalizao
talvez no tenha sido to espetacular assim, mas, de fato, houve, a partir dos anos 1770,
o aparecimento de textos que no se limitavam a denunciar o carter abominvel da
15 Em 1785, um autor annimo escreveu: "Os Negros das Colnias so muito menos infelizes que os Jornaleiros da Europa, que, no possuindo nada e no podendo contar com nada, existem apenas para temer e sofrer" ("Les Ngres des Colonies sont moins malheureux que les Journaliers de l'Europe, qui, n'ayant rien et ne pouvant compter sur rien, n'existent que pour craindre et souffrir"; Du commerce des Colonies, ses principes et ses lois. La Paix est de temps de rgler & d'agrandir le commerce. S.l: 1785, p.51). 16 Cf. GARRIGUS, John D. Before Haiti: Race and Citizenship in French Saint-Domingue. New York: Palgrave MacMillan, 2006, pp.111-112; BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies. Paris: La Dcouverte, 1987, pp.13-14. 17 DORIGNY, Marcel, GAINOT, Bernard. La Socit des Amis de Noirs, p.18.
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escravido e do trfico, mas que se propunham a explicitar as consequncias da
manuteno dessas prticas para as colnias e para aqueles que se beneficiavam dessas
instituies. Novamente, o objetivo era menos pregar a abolio total da escravido do
que alertar para a necessidade de medidas que atenuassem os seus aspectos mais cruis
e destrutivos. Mas, nesse intuito, surgiram textos que, pela sua virulncia, permitiam
conceber o "inconcebvel": uma insurreio geral dos escravos negros e a obteno da
liberdade pela fora. Uma "profetizao" dessa insurreio apareceu em L'An deux mille
quatre cent quarante, rve s'il n'en fut jamais (1771), de Louis-Sbastien Mercier, para
ser retomada nas segunda e terceira edies da Histoire des deux Indes (1774 e 1780) do
abade Raynal. Como veremos adiante, longe de conclamar os negros para uma rebelio
geral, tratava-se antes de alertar para os perigos que poderiam ser eventualmente
evitados caso reformas fossem promovidas no sistema escravista. Mas essas "profecias
apocalpticas"18 permitiram tambm ampliar o campo argumentativo dos crticos da
escravido, autorizando-os a pregar medidas de reforma ou abolio gradual como algo
do interesse dos prprios colonos.
As discusses sobre a necessidade de reformar a escravido no permaneceram
confinadas ao plano terico. Alimentadas por homens afeitos s novas ideias, elas
inspiraram as ordenaes reais de 1784-85, destinadas a recuperar e complementar as
medidas protetivas do Code Noir. nesse contexto de auge da economia escravista nas
colnias, mas tambm de questionamentos a respeito do funcionamento das sociedades
coloniais, que a Frana ganhou a sua primeira sociedade antiescravista organizada.
*
No ano de 1788, um grupo reduzido, porm seleto, de nobres, homens de letras e
de finanas fundou, na capital francesa, a Sociedade dos Amigos dos Negros. Animada
por alguns dos futuros protagonistas da cena poltica da Revoluo, como Brissot, La
Fayette, Mirabeau, Condorcet e Clavire, a Sociedade se tornaria o smbolo da opinio
antiescravista francesa, desenvolvendo suas atividades em duas fases distintas (1788-92
e 1797-99). No vocabulrio da oposio colonial, ser antiescravista significaria ser um
Amigo dos Negros.
Os relatos e rumores sobre os trabalhos da Sociedade provocariam, alis, alarme
nas colnias, onde tendia-se a exagerar as intenes e o impacto da propaganda
antiescravista. Os Amigos dos Negros seriam vistos como os responsveis por todas as
18 Ibidem, p.20.
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perturbaes existentes no espao colonial. Conscientes da instabilidade das sociedades
escravistas, os colonos viam o surgimento de uma sociedade antiescravista como uma
fagulha capaz de detonar uma onda incontrolvel de insurreies escravas. No entanto,
fomentar movimentos revolucionrios nas colnias estava muito longe das intenes
dos Amigos dos Negros.
A exemplo do movimento ingls fundado um ano antes e que lhe serviu de
inspirao, a Sociedade dos Amigos dos Negros se situava numa linha antiescravista
moderada, voltada essencialmente para a abolio do trfico negreiro. A supresso
efetiva da escravido era concebida apenas num futuro mais ou menos distante,
promovida por medidas de emancipao gradual da populao escrava. Na base desse
programa, havia, ao lado da indignao quanto barbrie do trfico e da escravido, a
preocupao fundamental com a capacidade das colnias de se adaptarem a um novo
sistema de explorao e reposio da mo de obra, assim como uma preocupao com a
insero produtiva dos negros num regime de trabalho livre. Havia tambm a projeo
de uma ampliao do imprio colonial francs, a partir de um novo modelo colonial,
sem escravido e voltado para novas relaes comerciais com os povos africanos.
Os Amigos dos Negros estavam, portanto, longe de querer a subverso da ordem
colonial. De certa forma, eles no estavam distantes da lgica que havia orientado a
crtica escravido desde meados do sculo XVIII. Eles se pretendiam uma superao
do mero reformismo, na medida em que concebiam, ainda que de forma um tanto vaga,
o fim da escravido nas colnias, mas veremos que, no esforo de acomodar-se s
complexidades do contexto revolucionrio, sua atitude diante do problema da
escravido tendeu, em certos momentos, a cruzar a fronteira da crtica preservacionista
do sistema. Para eles, no se tratava de eliminar o comrcio com as colnias, mas de
repensar o sistema colonial de uma forma que fosse compatvel com a moral, com a
estabilidade das sociedades coloniais e com os interesses gerais da Nao.
Fundada s vsperas da Revoluo, a Sociedade procuraria levar a sua causa
para a Assembleia Nacional, agora fundada em princpios constitucionais de liberdade e
igualdade jurdica. Mas mesmo as intenes conciliatrias dos Amigos dos Negros no
seriam capazes de superar os obstculos interpostos pelos representantes dos interesses
das colnias e do comrcio francs. A histria da primeira sociedade antiescravista
francesa seria a histria de um fracasso.
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primeira vista, poderamos pensar que o processo revolucionrio de derrubada
das instituies do Antigo Regime e que poderamos, a posteriori, chamar de pr-
capitalistas implicava ideologicamente a eliminao da escravido nas colnias.
Politicamente, entretanto, a converso da oposio ideia da escravizao de seres
humanos em tomadas de posio mais concretas sobre as colnias enfrentaria, ao longo
do perodo, obstculos importantes, quando no intransponveis. Num momento de
sucesso das ilhas do acar, poucos eram os que contestavam a importncia das colnias
para a economia francesa e, para a maioria, no era possvel pensar a colonizao em
outros termos que no os do escravismo. Assim, fazer a defesa da emancipao da mo
de obra empregada nas plantations coloniais era algo muito problemtico. Num quadro
de concorrncia com outras potncias europeias, especialmente a Gr-Bretanha, alterar a
poltica colonial naquilo que ela tinha de mais essencial era, na prtica, pouco vivel.
No entanto, com a Revoluo, os legisladores se viram imediatamente obrigados
a definir as colnias em termos legais, o que levantava o problema de sua incorporao
ou no nova ordem jurdica em construo. A Declarao dos direitos do homem e do
cidado, base da Constituio francesa, implicava, em razo de sua vocao
universalista, problemas ligados manuteno do escravismo nas colnias francesas.
Em que medida os princpios nela contidos se aplicavam aos territrios ultramarinos?
Essa foi a questo fundamental que orientou os debates sobre as colnias durante a
Revoluo. No plano do discurso, a Revoluo era comumente apresentada como um
movimento contnuo, destinado a disseminar o germe da mudana pelos quatro cantos
do planeta. Essa percepo encontrava, entretanto, o seu primeiro limite na questo
colonial, no argumento de que, aplicada s colnias, a Declarao dos direitos do
homem produziria inevitavelmente a sua destruio.
Os debates do perodo revolucionrio sobre a escravido remetem
fundamentalmente ao problema da contradio ou no da ideologia liberal com a prtica
escravista. As cidades martimas da Frana, como Nantes, Bordeaux, La Rochelle, Le
Havre e Marselha, representavam perfeitamente a contradio entre a exaltao da
liberdade e a defesa de um comrcio baseado na escravizao e na venda de seres
humanos. No caderno de queixas de Bordeaux, produzido por ocasio da convocao
dos Estados Gerais, o Terceiro Estado louvava "a liberdade do homem na disposio de
sua pessoa, de seus bens e de todas as suas faculdades", pregava o fim dos privilgios e
dos direitos senhoriais, ao mesmo tempo em que pedia encorajamentos e a eliminao
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de quaisquer obstculos ao comrcio das colnias, o que significava proteger o trfico.19
J para os colonos, a Revoluo francesa trazia a esperana de uma forma de liberdade
de comrcio, com o fim ou a atenuao do sistema exclusivo. Ora, para eles, comrcio
livre estava muito longe de implicar trabalho livre. Para negociantes e colonos, e mesmo
para a maioria dos que compunham a Assembleia Constituinte, a concretizao da
ideologia liberal na metrpole no implicava, ou at mesmo afastava, a sua extenso s
posses ultramarinas. Cyril James afirmou que "o comrcio de escravos e a escravido
foram a base econmica da Revoluo francesa".20 A questo da escravido era
embaraosa para a maioria dos revolucionrios, que preferiam cobrir as realidades
coloniais com um vu.
*
Apesar disso, a lei consular de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802), ao
restabelecer o trfico e a escravido nas colnias francesas, falaria expressamente em
restaur-los tal como eram praticados em 1789, o que era estranho visto que medidas
abolicionistas s foram adotadas em 1793-94. A referncia a 1789 no faz sentido a no
ser pelo fato de que, a despeito das intenes da maioria da burguesia revolucionria, a
Revoluo francesa, ao entrar em contato com as realidades coloniais, desencadeou, de
imediato, um curso de eventos cujos resultados superaram at mesmo as pretenses dos
antiescravistas da metrpole.
Ao chegarem aos territrios ultramarinos, as noes de liberdade e igualdade
proclamadas na metrpole foram reinterpretadas e reformuladas pelos diferentes grupos
sociais das sociedades crioulas. Para os ricos plantadores de acar e caf de So
Domingos, impactados pela independncia dos Estados Unidos, a liberdade significava
a possibilidade da restrio ou mesmo do fim do controle metropolitano sobre os
assuntos internos e externos da colnia, isto , autonomia poltica e liberdade de
comrcio. Por outro lado, os brancos mais pobres da sociedade colonial, os chamados
petits blancs, viram na Revoluo uma oportunidade de subverter um quadro social que
os mantinha numa posio humilhante nas colnias. Abraaram a causa patritica, mas
redefinindo-a nos seus prprios termos, o que implicava reforar a segregao racial.
Para um branco sem propriedade e sem talento, a cor branca da pele era o nico fator
que lhe dava algum status. Inversamente, para os chamados "homens de cor livres", a
19 Cf. AP, v.2, pp.397-405. 20 Cf. JAMES, C.L.R.. Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revoluo de So Domingos. So Paulo: Boitempo editorial, 2000, p.58.
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Revoluo representava a possibilidade de pr fim segregao e reivindicar a
igualdade com os brancos. A histria da Revoluo de So Domingos-Haiti no
comeou com um levante de escravos, mas com lutas entre brancos em torno da questo
da autonomia legislativa da colnia e lutas entre brancos e "pessoas de cor" a respeito
da igualdade dos homens livres de todas as cores. As centenas de milhares de escravos
que povoavam a mais rica colnia francesa observavam os acontecimentos e
modificavam suas expectativas de acordo com as condies objetivas nas quais se
encontravam. A Revoluo na metrpole e os seus efeitos na colnia ampliavam os seus
horizontes e permitiam conceber uma alterao do estado de opresso no qual se
encontravam. A historiografia tem questionado recentemente a existncia ou no de
uma ideologia abolicionista entre os milhares de escravos que se revoltaram em agosto
de 1791. Sabe-se que a atitude dos revoltosos no foi homognea ao longo da revoluo
e que a supresso da escravido como sistema no estava necessariamente nos planos
dos primeiros lderes da insurreio. Para alguns escravos, tratava-se de ampliar a
margem de autonomia existente dentro da escravido; para outros, a revolta era a
possibilidade de garantir a liberdade pessoal, sem, entretanto, que a emancipao geral
fosse concebida. Como mostrou David Geggus em seus estudos sobre Toussaint
Louverture21, a prpria atitude do grande lder negro no fcil de decifrar e sofreu
variaes de acordo com o momento. O que se pode afirmar que cada reviravolta na
histria da revoluo levava os revoltosos a alterar a sua percepo das coisas e seus
objetivos luz dos acontecimentos. Objetivamente, a insurreio de agosto de 1791
evoluiu, no espao de dois anos, para uma luta pela abolio e, mais tarde, pela
independncia.
Assim, se os conflitos entre as diferentes camadas da sociedade escravista j
germinavam muito antes do perodo revolucionrio, um fator exgeno a Revoluo na
Frana exacerbou as contradies existentes no seio dessa sociedade e abriu a via para
a derrubada da ordem estabelecida.22 Da mesma forma, os eventos ocorridos no espao
colonial alteraram a percepo que se tinha na metrpole da questo da escravido. A
insurreio massiva dos escravos em So Domingos, um acontecimento visto como
improvvel pelos antiescravistas moderados da Sociedade dos Amigos dos Negros,
tambm abriu a via para que a Revoluo evolusse rumo abolio da escravido.
21 Cf. GEGGUS, David Patrick. Haitian Revolutionary Studies: Blacks in the Diaspora. Bloomington, IN: Indiana University Press, 2002, pp.119-136. 22 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravido e capitalismo. 2 edio. Petropolis: Vozes, 1982, p.103.
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Como veremos ao longo deste trabalho, no se deve, entretanto, ver as atitudes
na metrpole diante da escravido unicamente como uma resposta evoluo dos
acontecimentos na colnia. Fenmenos histricos so pluricausais e, no caso da histria
colonial da Revoluo francesa, fatores internos e externos se combinaram
constantemente para produzir reviravoltas na esfera poltica. Primeiramente, no se deve
jamais esquecer que a histria da Frana revolucionria a histria de um pas em
guerra e que as decises mais importantes tomadas durante o perodo traduziam, em
parte, as flutuaes da situao militar. Da mesma forma, a situao poltica na
metrpole um fator frequentemente desprezado pela historiografia dedicada aos temas
coloniais e, no entanto, trata-se de um elemento fundamental para a compreenso da
poltica colonial da Revoluo. Nesse sentido, a atuao do movimento popular, cuja
influncia sobre as esferas de poder foi, em muitos momentos, capital, no pode ser
esquecida. A abolio da escravido, proclamada em 16 pluvioso do ano II (4 de
fevereiro de 1794), muitas vezes interpretada como "lei de circunstncia" ou como um
"paradoxo histrico", deve ser compreendida luz das condies objetivas existentes
nas colnias e na metrpole.
*
Apesar da enorme quantidade de panfletos e projetos produzidos durante o
perodo sobre a questo colonial, esta foi praticamente omitida das grandes narraes da
Revoluo francesa. Autores simpticos ao Antigo Regime, como Pierre Gaxotte ou
Charles Maurras, decidiram ignorar o tema, talvez incomodados em explicitar a
escravido colonial como uma das bases econmicas do Estado absolutista. Mas
tambm autores republicanos, como o "dantonista" Jules Michelet e os da tradio
marxista (Albert Mathiez, Georges Lefebrevre, Albert Soboul), dedicaram um espao
nfimo aos eventos que marcaram a pgina colonial da Revoluo. Isso talvez traduza a
dificuldade em acomodar as atitudes das assembleias revolucionrias diante do
problema da escravido a uma determinada viso da revoluo liberal e burguesa.
Apenas Jean Jaurs abordou o tema, destacando que, longe de ser um aspecto
secundrio da Revoluo, o problema colonial era revelador de suas contradies: "A
burguesia revolucionria ficou presa, na questo colonial, entre o idealismo da
Declarao dos Direitos e os interesses de classe mais brutais, os mais tacanhos".23
23 "La bourgeoisie rvolutionnaire fut prise, dans la question coloniale, entre l'idalisme de la Dclaration des Droits et les intrts de classe les plus brutaux, les plus borns" (JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution Fra\naise. 2a edio. Paris: ditions de la Librairie de l'Humanit, 1927, v.2, p.209).
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Contudo, o autor da Histoire socialiste de la Rvolution franaise inexplicavelmente
silenciou a respeito da lei de abolio de 16 pluvioso do ano II. Para Carolyn Fick, o
pequeno lugar que a questo da escravido e da abolio tradicionalmente ocupou na
historiografia da Revoluo pode expressar:
[...] a inabilidade dos prprios revolucionrios franceses em confrontar diretamente a questo da escravido nas assembleias legislativas, e faz-lo francamente em nome dos princpios que guiavam a revoluo isto , os princpios universalistas de liberdade e igualdade.24
Como veremos, a atitude das assembleias no resultou apenas de uma mera
"inabilidade", mas o fato que a questo da escravido mostrou-se, durante muito
tempo, incmoda aos estudiosos da Revoluo francesa. Foi necessrio que se
desenvolvesse, margem das grandes interpretaes da Revoluo, uma linha
historiogrfica voltada especificamente para a questo colonial. Por muito tempo, as
narrativas da Revoluo de So Domingos-Haiti constituram a principal fonte de
reflexo sobre o problema colonial. A Histoire de la rvolution de Saint-Domingue
(publicada em 1814), escrita por Antoine Dalmas, antigo colono do Norte de So
Domingos, talvez seja o mais antigo relato da grande insurreio escrava. Apesar dos
partis pris do autor, a obra mantm o seu interesse por ter sido supostamente composta
no calor dos eventos.
Em meados do sculo XIX, essa mesma histria foi objeto de importantes
narraes por parte de pioneiros historiadores haitianos, como Thomas Madiou (cf.
Histoire d'Hati, 1847-48) e Beaubrun Ardouin (cf. tudes sur l'histoire d'Hati, 1853-
60). Suas contribuies se inscreviam numa tica nacionalista que procurava enfatizar o
papel das grandes lideranas da Revoluo, apresentado-as como personagens
portadores das aspiraes de liberdade de toda a raa negra.25
No final do sculo XIX e no incio do sculo XX, outros autores dedicaram-se a
analisar os efeitos da Revoluo francesa na questo colonial, caso de Herbert E. Mills
24 "[...] the inability of the French revolutionaries themselves to confront the issue of slavery head on in the legislative assemblies, and to do so forthrightly in the name of those principles guiding the revolution that is, the universalists principles of liberty and equality" (FICK, Carolyn. The French Revolution in Saint-Domingue. A Triumph or a Failure. In: D.B. GASPAR (orgs). A Turbulent Time: the French Revolution and the Greater Caribbean. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p.52). 25 A partir de meados da dcada de 1940, desenvolveu-se no Haiti uma outra vertente historiogrfico com maior conotao social. Um dos expoentes dessa nova corrente, Jean Fouchard, dedicou-se, por exemplo, ao estudo da resistncia marron desde antes da grande insurreio de 1791 (cf. HECTOR, Michel. L'historiographie hatienne aprs 1946 sur la Rvolution de Saint-Domingue. Annales historiques de la Rvolution franaise, Paris, n.293-294, 1993, pp.545-549. Disponvel em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahrf_0003-4436_1993_num_293_1_3395. Acesso em: 4 de jun de 2013).
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(cf. The Early Years of the French Revolution in San Domingo, 1892) e Pierre
Boissonnade (Saint-Domingue la veille de la Rvolution franaise et la question de la
reprsentation coloniale aux tats Gnraux, 1906). Victor Schoelcher, o homem da
abolio de 1848, abordou o tema em sua biografia de Toussaint Louverture (cf. Vie de
Toussaint Louverture, 1899), enquanto Adolphe Cabon dedicou Revoluo a maior
parte dos quatro volumes de sua Histoire d'Hati (1895-1919). J Lothrop Stoddard
dedicou The French Revolution in San Domingo (1914) a uma abordagem da Revoluo
haitiana enquanto guerra racial. No mesmo ano, T.G. Steward, um militar, empreendeu
nova narrativa da revoluo, com o mrito de destacar o protagonismo dos escravos no
processo de emancipao e independncia (cf. The Haitian Revolution, 1791-1804).
No que se refere especificamente atuao das assembleias revolucionrias da
metrpole, pode-se mencionar trabalhos como Les colonies pendant la Rvolution
franaise (1898), de Lon Deschamps, e The French Colonial Question, 1789-1791
(1918), de Mitchell Bennett Garrett, ambos restritos aos debates coloniais da
Assembleia Constituinte. Os volumes que compem La colonisation franaise pendant
la Rvolution (1930), de J. Saintoyant, talvez tenham sido os primeiros a oferecer uma
anlise mais ampla embora pouca profunda sobre o conjunto da poltica colonial da
Revoluo.
A reflexo sobre o tema ganhou um forte impulso, fora da Frana, com a
publicao de Os Jacobinos Negros (1938), do marxista nascido em Trininad, e
radicado na Inglaterra, Cyril Lionel Robert James. Trata-se, ainda hoje, da mais
influente narrao dos eventos que marcaram a Revoluo haitiana e suas repercusses
na Frana revolucionria. A despeito de alguns erros factuais e generalizaes que
exigem certo cuidado por parte do leitor, a obra permanece incontornvel por sua
qualidade literria e pela anlise consistente das foras histricas em especial, o
embate entre as classes que pesaram sobre os agentes das revolues haitiana e
francesa.
Nessa mesma poca, o francs Gabriel Debien esforou-se em renovar os
estudos sobre o Caribe com abordagens quantitativas sobre as plantations escravistas de
So Domingos antes da Revoluo. Suas concluses seriam posteriormente reunidas na
sua principal publicao, L'esclavage aux Antilles franaises (XVIIe-XVIIIe sicles)
(1974). Antes disso, entretanto, ele ofereceu uma importante contribuio ao estudo da
poltica colonial do perodo revolucionrio com Les colons de Saint-Domingue et la
Rvolution: Essai sur le Club Massiac (1953), obra bastante detalhada sobre o
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movimento de presso dos colonos pela defesa do escravismo num contexto de agitao
poltica.
Mais tarde, o encontro das revolues na Frana e em So Domingos foi o
objeto de reflexo do poeta e militante poltico martinicano Aim Csaire, em Toussaint
Louverture: la Rvolution franaise et le problme colonial (1962), obra em que a
questo colonial aparece como o problema crucial da Revoluo francesa. Ao mesmo
tempo, Csaire procurou apresentar a Revoluo em So Domingos como uma fora
autnoma e no como uma mera decorrncia dos eventos da metrpole: uma ideia
importante para estabelecer a especificidade da insurreio dos escravos, mas que no
deve levar ao desprezo da relao dialtica existente entre as duas revolues, a da
metrpole e a da colnia. Charles Frostin, por outro lado, pouco escreveu sobre o
perodo que nos interessa, mas ofereceu um importante estudo sobre as tendncias
secessionistas da populao branca de So Domingos nos dois sculos que precederam
a Revoluo (cf. Les rvoltes blanches Saint-Domingue aux XVIIe et XVIIIe sicles,
1975), aspecto relevante para a compreenso do quadro poltico e social no qual se deu
a insurreio escrava. J o historiador norte-americano Eugene Genovese dedicou a sua
obra From Rebellion to Revolution: Afro-American Slave Revolts in the Making of the
Modern World (1979) a uma reflexo sobre o carter inovador do caso haitiano na
histria das rebelies escravas. Genovese desenvolveu a ideia de um salto qualitativo na
ideologia da resistncia escrava, sob o impacto da Revoluo na metrpole, passando do
"restauracionismo" a uma ideologia revolucionria burguesa e democrtica.26 Embora a
formulao tenha os seus limites, ela estabeleceu as bases para o debate, ainda atual,
sobre a ideologia dos escravos em revolta.
As contribuies citadas acima tornaram-se referncias para as discusses sobre
a Revoluo e as colnias. Um verdadeiro fluxo de publicaes sobre o tema,
entretanto, viria a partir da agitao em torno do bicentenrio da Revoluo francesa. A
exaltao da primeira abolio da escravido, de 1794, foi inscrita na ordem do dia das
celebraes, muito embora a lei tenha conhecido uma vida curta e uma aplicao pouco
efetiva. Com isso, muitos autores dedicaram-se a refletir sobre a postura das
assembleias revolucionrias diante do problema colonial. Yves Bnot, por exemplo,
procurou, em La Rvolution franaise et la fin des colonies (1987), resgatar o papel das
Luzes e dos antiescravistas no longo processo que levou abolio. Embora
26 Cf. GENOVESE, Eugene. Da rebelio revoluo. So Paulo: Global, 1983, pp.14-18.
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reconhecesse o papel fundamental da insurreio escrava no processo, Bnot sustentou
que, para que a Conveno tomasse a deciso de abolir a escravido, sob o impacto dos
eventos em So Domingos, era necessrio "um quadro de pensamento previamente
constitudo, e que o papel daqueles que por muito tempo gritaram no deserto , nesse
sentido, capital".27 Procuraremos mostrar, entretanto, que, se o papel das ideias no
processo poltico no deve ser rejeitado, acima de tudo o exame das condies e das
prticas (o peso econmico e poltico da burguesia mercantil, a situao nas colnias, os
movimentos de revolta escrava, a guerra entre as naes europeias, a composio das
assembleias, a presso do movimento popular parisiense) que deve nortear o olhar do
historiador, na medida em que ora propulsionam, ora neutralizam a converso das ideias
em ao poltica concreta.
Numa outra linha, herdeiros da tradio jacobina, historiadores como Florence
Gauthier, Jean-Daniel Piquet e Claire Blondet dedicaram-se a recuperar o papel da
Conveno montanhesa e dos robespierristas no processo abolicionista. Muito bem
documentado, L'mancipation des Noirs dans la Rvolution franaise (2002), de Jean-
Daniel Piquet, teve o grande mrito de destacar a transio, durante a Revoluo, do
antiescravismo moderado para o abolicionismo propriamente dito, com uma penetrao
maior dos ideais abolicionistas nos meios populares. O autor exagera apenas ao querer
identificar um abolicionismo militante entre a cpula do governo do ano II, sem
perceber que talvez mais importante do que as convices desses homens era o conjunto
de fatores em especial, a atuao das massas populares, coloniais e metropolitanas
que informavam as suas aes. Nesse sentido, vale destacar o trabalho de Jean-Claude
Halpern, que dedicou-se a estudar o envolvimento popular na questo colonial a partir
das manifestaes de apoio lei de abolio.28
Claude Wanquet e Bernard Gainot, por outro lado, dedicaram-se poltica
colonial da Conveno thermidoriana e do Diretrio. Gainot destacou a ao das
correntes republicanas (ou "neojacobinas") sob o Diretrio e seu combate contra os
adeptos da restaurao da ordem escravocrata nas colnias. No caso de Wanquet, a
nfase foi dada ao caso das ilhas Mascarenhas. Em La France et la premire abolition
de l'esclavage 1794-1802: le cas des colonies orientales, o autor abordou a atuao dos
27 Cf. BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies, p.18. 28 Cf. HALPERN, Jean-Claude. L'universel et le lointain. Les mondes exotiques dans la culture populaire, la fin du XVIIIme sicle. History of European Ideas, v.15, n.4-6, 1992, pp.767-772; Idem. Les ftes rvolutionnaires et l'abolition de l'esclavage en l'an II. In: M. DORIGNY (org.). Les abolitions de l'esclavage, de L.F. Sonthonax V. Schoelcher 1793-1794-1848. Paris: Presses Universitaires de Vincennes / ditions UNESCO, 1995, pp.187-198.
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representantes da le-de-France e da Reunio (Bourbon) sob a Conveno, o Diretrio e
os primeiros anos do Consulado, destacando a sua habilidade em usar as ambiguidades
da poltica colonial revolucionria e as clivagens nas esferas de poder para impedir a
aplicao da lei de abolio nesses territrios.
Sobre a evoluo do problema colonial sob o Consulado e o Imprio, deve-se
mencionar La dmence coloniale sous Napolon (1992), de Yves Bnot. O autor
procurou caracterizar a poltica colonial de Bonaparte sob a tica da formao de uma
ideologia racista, contrapondo-a a uma corrente antiescravista pouco incisiva e cujas
ambiguidades prenunciavam uma segunda onda de colonizao. O que no fica claro na
obra como a poltica colonial de Bonaparte se insere no quadro mais geral das bases
polticas e econmicas do regime consular e de que forma ela se relaciona com a
reconstituio de um grupo de interesse ligado ao comrcio colonial. Uma tentativa de
elucidar essas questes foi empreendida em Napolon, l'esclavage et les colonies
(2006), de Pierre Branda e Thierry Lentz, ainda que no de forma totalmente
conclusiva.
Recentemente, em The Old Regime and the Haitian Revolution (2012), Malick
Ghachem trouxe novas perspectivas, ao aplicar questo colonial a ideia de Tocqueville
de uma continuidade entre o Antigo regime e a Revoluo. O autor dedicou-se a mostrar
a sobrevivncia da lgica precaucionria por trs do Code Noir no discurso sobre a
escravido das Luzes, na legislao revolucionria e at mesmo na ideologia das
lideranas negras. Ghachem bastante preciso na sua caracterizao da crtica
preservacionista escravido, muitas vezes confundida pela historiografia com um
abolicionismo autntico. Por outro lado, o autor talvez v um pouco longe nos paralelos
traados entre o Code Noir, a Declarao dos direitos do homem e do cidado, a lei de
abolio e a Constituio de Toussaint Louverture. Ainda que seja, de fato, possvel
reconhecer traos da legislao do Antigo Regime nessas leis, os seus significados e
finalidades essenciais guardam elementos de ruptura que no se pode negligenciar.
No que se refere histria da Revoluo haitiana, o movimento de produo
intelectual foi ainda mais intenso. Na Frana, Jacques Thibau trouxe, em Le temps de
Saint-Domingue: l'esclavage et la Rvolution franaise (1989), uma interessante
abordagem do processo que levou insurreio de agosto de 1791. Seu relato se inicia
com a narrao do famoso caso Lejeune, senhor acusado pela tortura e morte de duas
escravas na So Domingos dos anos 1780, espcie de prenncio dos eventos que
marcariam a colnia durante a Revoluo. Thibau alterna o relato da insurreio com a
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descrio do impacto desses eventos nas discusses parlamentares na metrpole. Com
isso, pretende mostrar "o encontro entre a Revoluo francesa e a escravido
francesa".29 Infelizmente, o autor no incluiu a abolio de 1794 na sua obra.
Foi, entretanto, entre os historiadores da Amrica do Norte que os estudos sobre
So Domingos e o Caribe em geral tiveram uma maior evoluo. A canadense Carolyn
Fick dedicou-se, com The Making of Haiti (1990), a revisitar a grande insurreio
escrava sob a tica da tradio do marronnage (fuga de escravos) nas colnias, numa
linha semelhante adotada pelo haitiano Jean Fouchard na dcada de 1970 (cf. Les
marrons de la libert, 1972). A abordagem possui alguns limites, cuidadosamente
apontados por David Geggus30, mas a obra incontornvel pela sua anlise sempre
lcida das posturas dos negros diante da revoluo e da abolio. A autora teve ainda o
mrito de enfatizar a evoluo dos acontecimentos no Sul de So Domingos, provncia
at ento pouco estudada pelos historiadores do perodo.
Por falar em David Geggus, devemos a ele uma srie de reflexes crticas sobre
diversos temas relativos a So Domingos-Haiti, muitas delas reunidas na coletnea
Haitian Revolutionary Studies: Blacks in the Diaspora (2002), que permitem a
superao de esteretipos e generalizaes reiteradas na historiografia, sobretudo no que
se refere investigao das mentalidades e aspiraes dos negros insurretos. Por fim,
preciso citar a obra de Laurent Dubois, autor de narraes importantes sobre a
Guadalupe (A Colony of Citizens, 2004) e So Domingos (Avengers of the New World,
2005) durante a Revoluo. Suas contribuies nos ajudam a compreender de que forma
as diferenas fundamentais entre as duas colnias (grau de integrao ao mercado,
dimenso e estrutura da populao escrava, importncia da populao de cor livre) esto
relacionadas aos resultados nelas produzidos pela Revoluo.
Parte importante da historiografia tem se dedicado ao tema dos homens de cor
livres das colnias francesas, aspecto fundamental para a compreenso da dinmica da
Revoluo haitiana. Inspirados pelo trabalho pioneiro de Yvan Debbasch, alguns
autores tm direcionado seus esforos para a tese da racializao das relaes sociais e
jurdicas em So Domingos, na segunda metade do sculo XVIII. John D. Garrigus
trouxe, em Before Haiti: Race and Citizenship in French Saint-Domingue (2006), uma
nova viso sobre o tema, ao abordar a construo de uma linha de cor entre brancos e os
29 Cf. THIBAU, Jacques. Le temps de Saint-Domingue: l'esclavage et la Rvolution franaise. Paris: J.-C. Latts, 1989, p.7. 30 Cf. GEGGUS, David Patrick. Haitian Revolutionary Studies, captulos 2 e 5.
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chamados mulatos da principal colnia francesa como forma de fortalecer os vnculos
da populao branca com a metrpole, na esteira das tenses que marcaram a Guerra
dos Sete Anos. A abordagem original e vlida, ainda que acreditemos ser necessrio
aliar essa explicao a outras mais tradicionais, que encaram o preconceito como
instrumento de controle ideolgico da populao escrava e de conteno da ascenso
social dos proprietrios de cor num momento em que as colnias conheciam novas
levas de imigrao branca. Essas teses, que encontram amparo na documentao da
poca revolucionria, j eram defendidas por Gwendolyn Midlo Hall, em Social Control
in Slave Plantation Societies (1971).31 A obra de Garrigus tem, entretanto, o mrito de
destacar a particularidade da populao de cor do Sul de So Domingos, que se
caracterizava por uma maior integrao elite crioula. Essa distino importante para
caracterizar as atitudes de Julien Raimond, um importante quadraro do Sul da ilha, e
seu movimento pelos direitos de cidadania dos livres de cor durante a Revoluo.
Em L'aristocratie de l'piderme. Le combat de la socit des citoyens de couleur
1789-1791 (2007), Florence Gauthier contornou essa distino e procurou descrever a
atuao dos homens de cor livres na Frana revolucionria como uma luta pelo fim do
preconceito e at mesmo da escravido. Embora bem documentada, a sua reflexo
procura atribuir ao movimento liderado por Julien Raimond um combate pela totalidade
dos homens de cor e negros livres da colnia. A histria do perodo mostra, ao
contrrio, que havia entre a populao de cor livre diferentes atitudes diante de questes
como preconceito e escravido.
No que se refere ao antiescravismo propriamente dito, encontramos uma srie de
estudos centrados na evoluo da crtica escravido na Era Moderna. A obra de David
Brion Davis, O problema da escravido na cultura ocidental (1966), continua sendo
uma referncia essencial sobre a evoluo intelectual do pensamento antiescravista.
Demonstrando uma invejvel erudio, o autor procurou demonstrar o peso da religio
forte no caso ingls e do Iluminismo na formao do pensamento antiescravista.
Contudo, a abordagem proposta por Davis pode induzir a uma concepo puramente
idealista da histria do antiescravismo, caso no seja completada pelo estudo das
condies que fizeram com que determinadas ideias se difundissem em determinado
tempo e espao. Verificamos esse problema em trabalhos dedicados a evidenciar a
relao entre as Luzes e o antiescravismo, sem vincular a evoluo das ideias a uma
31 Cf. HALL, Gwendolyn Midlo. Social Control in Slave Plantation Societies: a comparison of St. Domingue and Cuba. Baltimore, Londres: The John Hopkins Press, 1971, pp.136-148.
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evoluo das prticas sociais. Tende-se, com isso, a apresentar, o movimento de ideias
como um preldio formao de sociedades antiescravistas organizadas, o que no
falso, desde que se entenda a formao desses movimentos como parte de uma evoluo
condicionada por fatores conjunturais e estruturais.
De resto, verifica-se, sobretudo na literatura de lngua francesa, uma tendncia
exaltao da postura iluminista diante da escravido, apesar de todas as suas
ambiguidades. Jean Ehrard, por exemplo, procurou resgatar o antiescravismo das Luzes,
atribuindo as eventuais contradies diante do problema da escravido a uma dualidade
do discurso, em que uma prudncia prtica viria contrabalanar a audcia da crtica
escravido. Da mesma forma, autores como os j mencionados Jean-Daniel Piquet e
Yves Bnot no questionam o antiescravismo das Luzes e chegam a reconhecer nele
uma incontornvel postura anticolonialista.32 Tal interpretao bastante problemtica,
visto ser difcil encontrar, at mesmo entre os abolicionistas mais radicais do perodo
revolucionrio, um abandono da postura colonial. Alm disso, a distino entre a crtica
preservacionista da escravido, o antiescravismo gradualista e o abolicionismo
propriamente dito tende a se perder nessa linha de anlise.
Louis Sala-Molins ofereceu uma viso mais crtica, questionando de forma
virulenta o antiescravismo das Luzes (cf. Les misres des Lumires. Sous la raison
l'outrage, 1992), ainda que fazer o julgamento moral dos Filsofos talvez no seja a
melhor forma de situ-los no debate colonial. Nesse sentido, a citada obra de Malick
Ghachem, ao ressaltar a reiterao de uma lgica precaucionria na crtica escravido,
reveste-se de grande importncia para a compreenso da literatura antiescravista do
final do sculo XVIII.
Todos os temas mencionados acima ainda encontram-se, no momento em que
escrevemos este trabalho, em pleno desenvolvimento. Um turbilho de novas
publicaes tm, a cada ano, enriquecido o debate sobre a questo colonial, o que
mostra que algumas questes ainda permanecem abertas. A Sociedade dos Amigos dos
Negros, por exemplo, atraiu pouco interesse por parte dos historadores do perodo, que
tenderam a desprez-la como uma fraca contrapartida da sociedade antiescravista
inglesa surgida um ano antes. Tratados de forma marginal nas obras sobre as revolues
francesa e haitiana, os Amigos dos Negros foram objeto de poucos trabalho especficos.
32 Cf. BNOT, Yves. La Rvolution et la fin des colonies, pp.7-9, 12, 18. PIQUET, Jean-Daniel. L'mancipation des Noirs dans la Rvolution franaise (1789-1795). Paris: ditions Karthala, 2002, pp.24-26.
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No incio do sculo XX, a Sociedade foi abordada em, pelo menos, dois artigos:
"Condorcet et la Socit des amis des Noirs" (1906), de Lon Cahen, e "La Socit
franaise des Amis des Noirs" (1916), de Claude Perroud. Dcadas mais tarde, o tema
foi abordado em textos de Daniel Resnik (cf. "The Socit des Amis des Noirs and the
abolition of Slavery", 1972), Serge Daget (cf. "A Model of the French Abolitionist
Movement", 1980) e Franoise Thse (cf. "Autour de la Socit des Amis des Noirs:
Clarkson, Mirabeau et l'abolition de la traite, aot 1789 mars 1790", 1983). J
Seymour Drescher (cf. dois artigos, "Two Variants of Anti-Slavery: Religious
Organization and Social Mobilization in Britain and France, 1780-1870"; "British Way,
French Way: Opinion Building and Revolution in the Second French Emancipation")
abordou o tema em estudos que procuraram contrapor os Amigos dos Negros a um
modelo abolicionista "anglo-americano", abordagem problemtica, tendo em vista que
os antiescravistas franceses e britnicos se inscreviam ambos numa mesma lgica
gradualista e moderada. Quaisquer diferenas entre as duas correntes devem ser situadas
na especificidade do momento histrico de cada pas.
Devemos a Marcel Dorigny e Bernard Gainot a principal contribuio ao estudo
da entidade, com a publicao de La Socit des Amis de Noirs 1788-1799:
Contribution l'histoire de l'abolition de l'esclavage (1988), uma compilao do
registro das sesses das duas fases dos Amigos dos Negros e outros documentos, com
textos introdutrios produzidos pelos autores. Embora tenham empreendido uma breve
e nem sempre convincente anlise do programa e do funcionamento da Sociedade, a
partir de dados extrados do registro (atas das sesses, composio, frequncia), os
textos no pretendem oferecer uma reflexo profunda sobre o antiescravismo da poca
revolucionria. Dorigny, entretanto, voltou ao tema com um valioso artigo, "Mirabeau
et la Socit des Amis de Noirs: quelles voies pour l'abolition de l'esclavage?" (1995),
em que destacou a especificidade da argumentao de Mirabeau no seio dos Amigos
dos Negros, aspecto que exploraremos na primeira parte da tese. Mais recentemente, a
Sociedade foi finalmente objeto de um livro especfico, graas a Jean-Pierre Barlier, a
quem devemos La Socit des Amis des Noirs, 1788-1791: Aux origines de la premire
abolition de l'esclavage (2010). Infelizmente, pouco documentado, o estudo se limita
primeira formao da Sociedade, destacando os principais aspectos de sua atuao. Se
ele reconhece as contradies do discurso dos Amigos dos Negros sobre a escravido,
Barlie