Dostoievski e o Enigma Humano

download Dostoievski e o Enigma Humano

of 5

Transcript of Dostoievski e o Enigma Humano

  • 8/16/2019 Dostoievski e o Enigma Humano

    1/5

  • 8/16/2019 Dostoievski e o Enigma Humano

    2/5

     

    74

    II

    Dostoievski foi uma influência decisivana vida do jovem Berdiaeff. Não sócomo artista, mas como grande pensador

     — e como o maior metafísico que aRússia já teve. E é como que para saldarestá influência que o filosofo russo, emsua maturidade, escreve o livro O

     Espírito de Dostoievski, publicado em1921:

    “Dostoievski concebe as idéiasoriginais, mas concebe-as sempreem movimento, dinâmicas, no seudestino trágico. Recordemos estas

    linhas que escreveu modestamentesobre si mesmo: “Sou bastante fracoem filosofia (mas não no meu amora ela; no meu amor a ela sou forte)”.Fraco para a filosofia acadêmica quelhe convinha mal, porque seu gêniointuitivo conhecia neste domínio osverdadeiros caminhos. Foi ele umverdadeiro filósofo, o maior filósoforusso. Deu infinitamente à filosofia,e parece que a especulação filosóficadeve ser penetrada de suas

    concepções. A obra de Dostoievskitraz um tributo considerável àantropologia filosófica, à filosofia dahistória, da religião, à moral. Talveza filosofia lhe tenha dado pouco,mas ela pôde tomar muito dele; seele lhe abandona as questões

     provisórias, no que concerne àscoisas finais, é ela que vive, desdelongos anos, sob o signo deDostoievski”. (BERDIAEFF, 1926,

     p. 34-35)

    Para Berdiaeff, Dostoievski concebe ummundo das idéias completamente diversodo de Platão. Para o romancista russo, asidéias são “o destino do ser vivo, aenergia de fogo que o guia”. EmDostoievski as idéias não são arquétiposdo ser, as entidades primeiras ou asnormas. É penetrando neste “reino” ondesão inteligíveis os destinos humanosatravés de uma  pneumatologia  que se

     pode compreender a concepção domundo de Dostoievski, compreender

    intuitivamente a essência do seuuniverso.

    As idéias são ondas de chama; estãoligadas ao destino do homem, ao destinodo mundo e ao destino de Deus. Sãoontológicas, encerram em si a própriasubstancia do ser, possuem, em estadolatente, uma energia destruidora. Noentanto, “Dostoievski mostra-nos quesua explosão espalha ruínas em redor.Mas também elas possuem a energiacapaz de dar a vida”.

    Aqui não se trata de um sistema abstrato,como se esperaria de um artista. A obra

    de Dostoievski, além de artística, é perpassada por uma intuição intelectual, por um senso filosófico genial. Sua obra, podemos dizer, é uma ciência doespírito.

    Berdiaeff acredita que para penetrar noespírito de Dostoievski de maneiraintegral é preciso ter uma almaaparentada ao universo deste autor. Asanálises puras são matéria morta frente

    ao espírito. É preciso vivenciá-lo e, emalguma medida, tratá-lo com a alma deum crente, pois, como diz o próprioBerdiaeff:

    “Não imitaremos muitos dos nossoscontemporâneos sempre inclinados atratar com o bisturi o escritor queapreciam, suspeitando nele algumaenfermidade oculta, algum câncersecreto: iremos ao encontro deDostoievski pelo caminho dos

    crentes, mergulhando sem segundasintenções no mundo de suas idéiasdinâmicas, a fim de penetrar nosegredo de sua concepçãofundamental do mundo”.(BERDIAEFF, 1926, P. 12)

    Ou seja, Berdiaeff talvez esteja emconsonância com o método anunciado,anos antes, por Nietzsche: “Em lugar dateoria do conhecimento uma doutrina

     perspectivista dos afetos (à qual pertence

    uma hierarquia dos afetos: os afetostransfigurados: seu ordenamento

  • 8/16/2019 Dostoievski e o Enigma Humano

    3/5

     

    75

    superior, sua espiritualidade” (FOGEL,2002, p. 89). 

    Dostoievski incorpora em si todas ascontradições do espírito russo:Apocalíptico, niilista, desmesurado…essas são algumas das autodenominações

     próprias do povo russo.

     No entanto, com Dostoievski surge umaalma nova, uma alma ainda devorada

     pelos extremos da fé escatológica de umlado, e da descrença destruidora dooutro; mas, desta vez, afundada nestaluta interior, sua alma vê-se consumidaem chamas, chamas infernais, donde ele

    se evadia para atingir a luz.Todos os heróis de Dostoievski são, naverdade, ele mesmo. Seguem o caminhoque ele seguiu; os diferentes aspectos doseu ser, seus tormentos, sua inquietude,sua experiência dolorosa, e por isso osromances de Dostoievski não são,

     propriamente falando, romances:constituem uma tragédia, a tragédiainterior do destino humano, do espírito

    humano único revelando-se sob seusdiversos aspectos e em fases diferentesda sua rota.

    Dostoievski nos apresenta o homemtomado na sua mobilidade turbulenta,apaixonada, exaltada, levando o leitor asentir-se como que atravessado por umfuracão. Arremessando as personagensdas regiões mais profundas do ser, dosubsolo em que se agita, oculta, anatureza humana. É impossível voltar-se

     para a ordem sancionada pelo passado,torna-se imperativo enfrentar o ignoradovir-a-ser. É desvelando o segredo dohomem que a arte de Dostoievski semostra profética. Ao estudar o homem,ele o põe num ambiente inconstante,entre a loucura e o crime. Porquanto é naloucura e não na saúde, no crime e nãona legalidade, nas correntes obscuras,inconscientes, e não nas práticas

    quotidianas, nas partes da almailuminadas pela grande luz da

    consciência que se podem sondar as profundezas da natureza humana e tocar-lhe os limites.

    A obra de Dostoievski também éconduzida por Dioniso, uma vez quegera a tragédia, pois só consegue mostraro homem na sua natureza exaltada; “écomo se, após termos visitados outrosuniversos, outros planos, tornássemos aonosso mundo medido, organizado, aonosso espaço de três dimensões”.

    E como podemos encarar-nos de novo?

    “Uma leitura atenta de Dostoievskié, na vida, um acontecimento donde

    a alma recebe como um batismo defogo. O homem que viveu nouniverso forjado por ele guarda daíverdadeiramente a revelação deformas inéditas do ser, porqueDostoievski é, antes de tudo, umgrande revolucionário do espírito,dirigido contra todas as formas daestagnação e daesclerose”.(BERDIAEFF, 1926, p.19-20)

    Ao mostrar a natureza profunda doniilismo, Dostoievski parece saber acercadas regiões subterrâneas do espírito.Dostoievski concebe a vida como odesdobramento do espírito humano. Istose revela ao comparamos a sua obra à deLeon Tolstoi. Este último se preocupaconstantemente com a teologia.Dostoievski, por seu lado, está

     preocupado com a antropologia, ou seja,o enigma do espírito do homem que o

    seduz. Não é o problema divino que ele busca resolver; como um homemespiritual, como um cristão, ele buscaresolver o problema do homem.

    “Porque a questão de Deus é a que propõe o homem. A questão dohomem é a que a si mesmo se

     propõe Deus, e talvez seja precisamente através do enigmahumano que se possa melhoraproximar-se dele. Dostoievski nãofoi o teólogo, porém esteve, ainda

  • 8/16/2019 Dostoievski e o Enigma Humano

    4/5

     

    76

    assim, mais perto do Deus vivo queTolstoi, porquanto Deus se lherevela no destino dohomem”.(BERDIAEFF, 1926, P. 22)

    Essa perspectiva teológica aventada porBerdiaeff lança-nos muito mais

     próximos da mentalidade do autor de Os Irmãos Karamazov.

    III

    Sobre Dostoievski disse Nietzsche: “Parao problema que se apresenta aqui, otestemunho de Dostoievski é importante

     – de Dostoievski, o único psicólogo, sejadito de passagem, do qual tive algo que

    aprender: ele pertence aos mais beloscasos de sorte de minha vida, maismesmo que a descoberta de Stendhal”.(GIACOIA, 2001, p. 15)

    Comumente e ao longo deste texto, Nietzsche e Dostoievski são postos ladoa lado, como os desbravadores doniilismo europeu; no entanto,dificilmente ouvimos falar sobre asconclusões antagônicas a que ambos

    chegaram.E a questão do homem apresenta-secomo melhor terreno onde se evidenciamessas diferenças. Até porque, aqui, ficaclara a opção cristã de Dostoievski.

    Berdiaeff concorda que Dostoievski e Nietzsche partem de um mesmo solo,qual seja: a certeza de que “o homem éterrivelmente livre, que sua liberdade étrágica e que ela lhe é um fardo e

    sofrimento…” No entanto, eles seafastam quando um vai a busca doHomem-Deus, isto é, o Cristo, e o outrovai à procura dadeificação/transformação do homem emdeus, no Super-homem.

    Tanto Nietzsche como Dostoievski estãocontra o humanismo racionalista.Segundo Berdiaeff, depois deles éimpossível voltar ao velho humanismo

    racionalista. Entretanto, eles diferem naconcepção do homem.

    Berdiaeff tem uma visão muito negativada concepção nietzschiana. Para ele, ofilósofo alemão considera o homemcomo uma vergonha (uma ponte) por

    vencer no caminho do Super-homem.Assim, em Nietzsche, descobrimos que oculto ao homem criado no humanismotraz a sua própria destruição — o Super-homem.

    Berdiaeff acredita que Nietzscherepresenta o fim do humanismo; nele oSuper-homem aparece como um ídoloque devora tão avidamente o homem,que acaba por cair de joelhos ante tudo o

    que é humano. O Super-homem é adeificação final do próprio homem.

    Ao matar Deus, Nietzsche,simultaneamente mata o homem, e“sobre o túmulo destas duas Idéias —Deus e homem — eleva-se a imagem deum monstro, a imagem do homem quequer ser deus”.

    Já Dostoievski, segundo Berdiaeff, irádesferir o golpe mortal no humanismo.

    Ele reconhece a ilusão da deificação dohomem e, para mostrar isso, explorará profundamente o caminho daarbitrariedade humana. E, além disso, ele

     possuía outra ciência; via a luz do Cristo.

    O cristianismo salvaguarda a idéiahumana, pois supõe a essência divina.Em Dostoievski, Deus e o homemexistem; “nem Deus devora o homem,nem o homem desaparece em Deus:

     permanece ele mesmo até o fim e pelaconsumação dos séculos”. O homem

     participa, para ele, do cerne daeternidade. Toda a obra de Dostoievski éum advogar em favor do homem.

    É no cemitério de Nietzsche que o“cristão torturado” Dostoievski encontraos elementos de redenção do destinohumano. Neste sentido, pode-se repetircom bastante energia que o espírito deDostoievski tinha uma tendência por

    construir e não por destruir, que seuestado de alma o impelia para a

  • 8/16/2019 Dostoievski e o Enigma Humano

    5/5

     

    77

    afirmação e não para a negação. Mas eleconcebia Deus, o homem e o mundoatravés de todas as angústias dodesdobramento e das trevas. Se

    compreendeu até o fundo a natureza doniilismo, ele mesmo era antiniilista.

    Berdiaeff acredita que com Dostoievskise abre uma fenda no velho mundo, nomundo das trevas do niilismo donde

     brota uma nova luz. E é precisocompreender que:

    “A tragédia de Dostoievski, comotoda tragédia verdadeira, comporta a

     purificação e a libertação. Não o

    compreendem aqueles que elemantém nas trevas inextricáveis,aqueles que ele entristece sem osalegrar. A leitura de Dostoievski dátambém uma alegria, uma libertaçãodo espírito. Alegria que se obtém

     pelo sofrimento. É o caminho que percorre o cristão. Dostoievskiressuscita a fé no homem, na noçãode sua profundeza, que o humanismodesconhecera. O humanismo destróio homem. Este renasce se crê em

    Deus, e só sob esta condição podecrer em si mesmo. Dostoievski nãosepara a fé no homem da fé noCristo, no Deus-Homem. De mais amais, toda a sua vida ele guardou umsentimento exclusivo, uma espéciede amor exaltado por sua facedivina. É em nome do Cristo, poramor infinito ao Cristo que rompeucom o mundo humanitário […]. Estafé ele a fundira no crisol de suasdúvidas temperadas pelo fogo”.

    (BERDIAEFF, 1926, p. 74)

    Portanto, mesmo com as afinidades entreDostoievski e Nietzsche é necessárioregistrar os antagonismos existentesentre os dois autores. 

    IV

    Para Berdiaeff, Dostoievski foi o pensador que mais esteve ligado aohomem, encontrando até na maisdecadente das criaturas humanas aimagem e semelhança com Deus. Masseu amor ao homem não foi o amor doshumanistas. Ele associa neste amor umasimpatia infinita com certa aspereza.Prediz aos homens o caminho dosofrimento. Isto está em nexo com o fatode, na sua concepção antropológica, estarencerrada a idéia da liberdade (ou serialivre arbítrio). 

    Sem liberdade o homem não existe. EDostoievski conduz toda esta dialéticaacerca do homem e seu destino como adialética do destino da liberdade. Ora, ocaminho da liberdade é o caminho dosofrimento, que, até o fim, deve ser

     percorrido pelo homem. 

    Podemos acreditar que em Dostoievski ohomem é lançado ao caminho daliberdade e do sofrimento para daí sair

    não como um robô que agemecanicamente, mas como um ser livreque, renascido na profundidade do seusofrimento, vê revelado em si mesmo —o enigma do seu destino.

    Referências

    BERDIAEFF, Nikolai. O  Espírito deDostoievski. Editora Panamericana Ltda, Rio deJaneiro, 1926.

    FOGEL, Gilvan. “Por que não teoria doconhecimento? Conhecer é criar”. In:Cadernos Nietzsche, n 13, 2002

    GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo.Editora Unisinos, São Leopoldo, 2001.

    * ELTON MOREIRA QUADROS é professor de Filosofia no Instituto Nossa Senhora das Vitórias.