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1297 INTRODUÇÃO Vários estudos em relação à dor aguda foram pu- blicados na literatura médica veterinária nos últimos anos, porém em relação à dor crônica, mais especi- ficamente relacionada ao câncer, a literatura é qua- se inexistente 1 . Durante a última década, houve um grande avanço na compreensão e no tratamento da dor em animais, porém muitos deles ainda sofrem desne- cessariamente. O conceito de que os animais não sentem dor, atrasou muito a veterinária em relação ao desenvolvimento de escalas de avaliação, pro- tocolos e fármacos analgésicos. A literatura veteri- nária ainda é escassa em relação à dor principal- mente, no que se refere à dor crônica. Muitos con- ceitos, formas de avaliação e os protocolos farma- cológicos foram trazidos da literatura médica e adaptados aos animais. ABSTRACT Cancer is the major cause of morbidity and mortality in older pets. Many studies about acute pain in animals have been published in the literature but not related to cancer pain. Most of the information about cancer pain is based on human’s studies and adjusts to animals. The aim of this paper is to emphasize the importance of pain and quality-of- life evaluation in dogs with cancer to establish adequate analgesia. Keywords: Cancer, pain, quality-of-life, dog. Artigo de Revisão REV. DOR 2008 - Jul/Ago/Set - 9 (3): 1297-1304 AVALIAÇÃO DA DOR E DA QUALIDADE DE VIDA EM CÃES COM CÂNCER PAIN AND QUALITY-OF-LIFE EVALUATION IN DOGS WITH CANCER Karina Velloso Braga Yazbek 1 RESUMO O câncer é a maior causa de morbidade e mortalidade em animais idosos de companhia. Vários estudos em relação à dor aguda foram publicados na literatura médica veterinária nos últimos anos, porém em relação à dor crônica, mais especificamente relacionada ao câncer isso não aconteceu. Muitos conceitos relacionados à dor oncológica em cães foram baseados na literatura médica humana e adaptados aos animais. Objetivou-se neste artigo enfatizar a importância da avaliação da dor e da qualidade de vida em cães com câncer a fim de se estabelecer adequada analgesia. Unitermos: Dor, câncer, qualidade de vida, cão. 1 - Médica Veterinária, Doutora pelo Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP). Professora de Anestesiologia do Curso de Medicina Veterinária da Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Responsável pelo Ambulatório de dor e cuidados paliativos do PROVET. Certificada em Dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED). Endereço para correspondência: Karina Velloso Braga Yazbek E-mail: [email protected] AvaliaDor_Qual V09 n3 9/5/08 3:04 PM Page 1297

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INTRODUÇÃOVários estudos em relação à dor aguda foram pu-

blicados na literatura médica veterinária nos últimosanos, porém em relação à dor crônica, mais especi-ficamente relacionada ao câncer, a literatura é qua-se inexistente1.

Durante a última década, houve um grandeavanço na compreensão e no tratamento da dor emanimais, porém muitos deles ainda sofrem desne-

cessariamente. O conceito de que os animais nãosentem dor, atrasou muito a veterinária em relaçãoao desenvolvimento de escalas de avaliação, pro-tocolos e fármacos analgésicos. A literatura veteri-nária ainda é escassa em relação à dor principal-mente, no que se refere à dor crônica. Muitos con-ceitos, formas de avaliação e os protocolos farma-cológicos foram trazidos da literatura médica eadaptados aos animais.

ABSTRACTCancer is the major cause of morbidity and mortality in older pets. Many studies about acute pain in animals have

been published in the literature but not related to cancer pain. Most of the information about cancer pain is based onhuman’s studies and adjusts to animals. The aim of this paper is to emphasize the importance of pain and quality-of-life evaluation in dogs with cancer to establish adequate analgesia.

Keywords: Cancer, pain, quality-of-life, dog.

Artigo de RevisãoREV. DOR 2008 - Jul/Ago/Set - 9 (3): 1297-1304

AVALIAÇÃO DA DOR E DA QUALIDADE DE VIDA EM CÃES COM CÂNCER

PAIN AND QUALITY-OF-LIFE EVALUATION IN DOGS WITH CANCER

Karina Velloso Braga Yazbek1

RESUMOO câncer é a maior causa de morbidade e mortalidade em animais idosos de companhia. Vários estudos em

relação à dor aguda foram publicados na literatura médica veterinária nos últimos anos, porém em relação à dorcrônica, mais especificamente relacionada ao câncer isso não aconteceu. Muitos conceitos relacionados à doroncológica em cães foram baseados na literatura médica humana e adaptados aos animais. Objetivou-se neste artigoenfatizar a importância da avaliação da dor e da qualidade de vida em cães com câncer a fim de se estabeleceradequada analgesia.

Unitermos: Dor, câncer, qualidade de vida, cão.

1 - Médica Veterinária, Doutora pelo Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo(FMVZ-USP). Professora de Anestesiologia do Curso de Medicina Veterinária da Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Responsável peloAmbulatório de dor e cuidados paliativos do PROVET. Certificada em Dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED).

Endereço para correspondência:Karina Velloso Braga YazbekE-mail: [email protected]

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Em 1998, o Colégio Americano dos Anestesiologis-tas Veterinários (ACVA) publicou a sua posição em re-lação ao tratamento da dor em animais, na qual deter-minou que a dor é uma condição clínica importanteque prejudica a qualidade de vida, devendo ser obriga-toriamente prevenida e tratada para que o animal man-tenha atividades diárias normais, como sono, lazer, ali-mentação e higiene adequadas e também interaçãocom o proprietário2. Nesta mesma publicação, o ACVAestipulou que um estímulo considerado doloroso nohomem também deve ser considerado doloroso emanimais e que a inabilidade de comunicação verbal emnenhum momento impossibilita a expressão da sensa-ção álgica2. Desde então muitos centros de pesquisadedicam-se ao estudo da dor em cães e gatos princi-palmente nos geriátricos com doenças crônicas. Esteartigo objetivou enfatizar e revisar informações sobre aimportância da adequada avaliação da dor e da quali-dade de vida em cães com câncer e dor.

CÂNCER EM CÃES E GATOSO avanço no diagnóstico e tratamento de doen-

ças, associado ao adequado manejo nutricional eprofilático, aumentou a expectativa de vida dos cãese gatos e conseqüentemente a incidência de doen-ças relacionadas à idade avançada, como por exem-plo, o câncer e osteoartrose3. Atualmente, o câncer éa maior causa de morbidade e mortalidade em ani-mais idosos de companhia4. Um estudo sobre mor-talidade em cães na Dinamarca apontou o câncercomo a segunda maior causa de morte (14,5%), per-dendo apenas para o óbito por idade avançada(20,8%)5. Um levantamento de 2.000 casos de ne-cropsia em cães mostrou que 45% dos animais com10 anos de idade ou mais, morreram de câncer6.

Segundo Dobson et al. (2002), a incidência estima-da de desenvolvimento de neoplasias em cães do Rei-no Unido é de 1.948 novos casos para cada 100.000

cães por ano, sendo proporcional ao aumento da ida-de. Neste mesmo estudo, os tumores de pele e de te-cidos moles foram os de maior incidência(1.437/100.000 cães), seguido das neoplasias do tratogastrintestinal (210/100.000 cães), glândula mamária(205/100.000 cães), trato urogenital (139/100.000 cães),sistema linfóide (134/100.000 cães), endócrino(113/100.000 cães) e de orofaringe (112/100.000 cães)7.Um recente estudo epidemiológico realizado pelo De-partamento de Patologia da FMVZ-USP na cidade deSão Paulo mostrou que no Serviço de Cirurgia de Pe-quenos Animais do Hospital Veterinário da Faculdadede Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade deSão Paulo (FMVZ-USP), durante os anos de 2002 e2003, dos 3.620 casos novos de animais atendidos,716 foram de cães e gatos com neoplasias (663 emcães e 53 em gatos), ou seja, 19,8% dos casos8.

No Brasil, o tratamento curativo do câncer em pe-quenos animais ainda está longe do ideal. A radiote-rapia ainda não é utilizada de rotina e o custo da qui-mioterapia é inviável para muitos proprietários. Alémdisso, muitos animais são considerados membros dafamília e tratados como tal e, cada vez mais, a melho-ra ou pelo menos a manutenção da qualidade de vi-da tem sido uma exigência freqüente dos proprietá-rios9. Em decorrência desta situação, a eutanásia temsido cada vez mais questionada e evitada pelos pro-prietários. Cães e gatos com câncer, na grande maio-ria das vezes, apresentam-se fora da possibilidadede cura e com dor de intensidade moderada a inten-sa, necessitando de analgesia contínua para mantê-los com qualidade de vida10. Atualmente, um dosmaiores desafios da medicina veterinária é o desen-volvimento de protocolos analgésicos e de cuidadospaliativos eficazes para diminuir a realização da euta-násia precoce em animais fora da possibilidade decura. A adequada avaliação e o diagnóstico precoceda dor crônica são fundamentais para o sucesso do

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tratamento e a conseqüente manutenção da qualida-de de vida10. Estas informações demonstram e enfa-tizam a importância do preparo do médico veteriná-rio para o diagnóstico e tratamento da dor oncológi-ca em cães e gatos e do desenvolvimento de proje-tos de pesquisa sobre o assunto.

CÂNCER E SÍNDROMES DOLOROSASEM CÃES E GATOSNo homem, a dor oncológica atinge 50% dos pa-

cientes durante todo o curso da doença. Ao avaliarsomente os pacientes na fase avançada, a incidênciade dor pode chegar aos 75%11. Um estudo realizadocom 70 cães com câncer mostrou que 83% dos ani-mais apresentavam dor de intensidade moderada deacordo com a opinião do proprietário12. O alívio dador é essencial antes, durante e após o tratamentooncológico, principalmente quando a doença se en-contra em fase avançada10. Para a instituição do tra-tamento adequado, é necessária a identificação dotipo de dor, a localização correta, o estado físico queo paciente se encontra, a fase do tratamento, as limi-tações e os riscos dos procedimentos10.

A classificação da dor nos animais de companhiabaseia-se na classificação utilizada no homem. A doré classificada em aguda ou crônica de acordo com asua disposição temporal; em leve, moderada e inten-sa de acordo com a sua intensidade; em nocicepti-va, quando for resultante da ativação de nocicepto-res e em neuropática quando houver alteração ou le-são do sistema nervoso central e/ou periférico11. Ocâncer pode causar dor em qualquer fase da doen-ça, mas a freqüência e a intensidade da dor tendema aumentar nos estágios mais avançados11.

No câncer, os pacientes podem ter múltiplascausas de dor podendo ser causadas pelo própriotumor, por metástases, por síndromes paraneoplási-cas, em decorrência do tratamento cirúrgico, qui-

mioterápico e radioterápico ou até mesmo por cau-sas não relacionadas à doença4,11,13,14. O reconheci-mento do tipo de síndrome é essencial para o ade-quado manejo da dor oncológica11.

A dor secundária ao câncer também pode serclassificada como somática, visceral ou neuropáticana sua origem4,11,14,15. A dor mista é o tipo mais fre-qüente, pois o tumor, dependendo da sua localiza-ção, pode infiltrar vários tecidos ao mesmo tempo16.A dor somática pode ser causada pela invasão dotumor nos ossos, músculos e pele4,16,17. A presençado tumor produz e estimula a produção local de me-diadores inflamatórios, causando ativação diretados nociceptores periféricos15. Esse tipo de dor écomumente associado a neoplasias e metástasesósseas, fraturas patológicas, dor pós-operatória esíndromes pós-radio e quimioterapia. A dor somáti-ca é descrita como contínua bem localizada, e quepiora ao movimento4,15. Nem toda metástase ósseaé dolorosa e a magnitude da dor pode não ser pro-porcional a imagem radiográfica15,17. Os nocicepto-res aferentes estão em maior número no periósteo,sendo a medula óssea e a porção cortical do ossomenos sensíveis a dor, portanto os principais meca-nismos que contribuem para a dor óssea incluem adistensão do periósteo pela expansão tumoral, mi-crofraturas locais e liberação local de substânciasalgogênicas pela medula óssea15. Na doença me-tastática, a atividade osteoclástica é a principal res-ponsável pela dor óssea15.

A dor visceral possui características clínicas pe-culiares. Alguns órgãos menos sensíveis a dor, comoo pulmão, fígado e parênquima renal, só se tornamdolorosos quando há distensão da cápsula ou com-prometimento de estruturas adjacentes15. Em vísce-ras ocas, a dor está relacionada à torção, tração,contração, obstrução, isquemia e irritação da muco-sa, sendo usualmente mal localizada e associada

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com náusea e vômitos11. Em vísceras sólidas, a dorocorre por estiramento, distensão da cápsula e ne-crose do tumor4,11,15. Estudos recentes mostraramque existem duas classes de nociceptores nas vís-ceras. A primeira classe é composta pelos recepto-res de alto limiar, localizados no coração, pulmões,trato gastrintestinal, ureteres e bexiga e a segundaclasse é composta pelos receptores de baixo limiar.Ambos os receptores estão envolvidos com a detec-ção de estímulos mecânicos, como tração e torçãoe de qualquer estímulo nocivo. Estudos experimen-tais também demonstram a presença de nocicepto-res aferentes silenciosos viscerais, que na presençade inflamação, isquemia, hipóxia ou qualquer injúriatecidual tornar-se-iam sensibilizados11,18.

A lesão do sistema nervoso central ou periféricocausada por infiltração tumoral, compressão diretapelo tumor, ou lesão por quimioterapia e radiotera-pia, lesão durante a amputação, pode induzir oaparecimento de dor neuropática, que se caracte-riza por hiperatividade patológica de membranasexcitáveis, resultando em descargas de potenciasde ação ectópicos11,15. As alterações periféricas in-cluem descargas ectópicas e espontâneas, altera-ção na expressão dos canais de sódio, recruta-mento de nociceptores colaterais e neurônios afe-rentes primários e sensibilização de nociceptores.Mecanismos centrais incluem sensibilização cen-tral, reorganização do corno dorsal e cortical, alte-rações na modulação descendente inibitória e ex-pansão do campo receptivo11,19. Este tipo de dor édescrita por humanos como em queimação, lanci-nante e em formigamento, e se caracteriza pelapresença de déficits sensitivos (alodinia e hiperal-gesia), motores e autonômicos na área comprome-tida14,15,20. Nos animais, podemos considerar a lam-bedura excessiva, a automutilação, o mordisca-mento e a presença de alodinia e hiperalgesia no

local da lesão, como a manifestação clínica maissugestiva de dor neuropática.

AVALIAÇÃO DA DOR Uma das maiores dificuldades na medicina veteri-

nária é a quantificação e o reconhecimento da dorcrônica. A dor, por ser uma experiência individual, émuito difícil de ser observada e quantificada. Somen-te o homem tem a habilidade de expressar e quanti-ficar verbalmente a dor, já em animais o reconheci-mento é subjetivo e baseado principalmente nas alte-rações comportamentais. A mesma dificuldade en-contrada pelos médicos veterinários para a avaliaçãoda dor nos animais é enfrentada pelos pediatras, en-fermeiras e anestesistas durante a avaliação da dorem crianças de zero a 2 anos ou adultos impossibili-tados de comunicação verbal. Nestes casos, a ava-liação do comportamento por familiares e enfermei-ras treinadas ainda é a forma mais eficaz de avaliaçãode dor21. Na clínica de pequenos animais, o veteriná-rio tem o proprietário e/ou cuidador do animal comoum grande aliado na avaliação das alterações com-portamentais já que as alterações podem ser gra-duais e somente perceptíveis a pessoas familiariza-das com o comportamento normal do animal22,23.

As respostas frente à dor são, na maioria das ve-zes, espécies específicas, sendo essencial que opesquisador seja familiarizado com o comporta-mento normal da espécie estudada a fim de detec-tar as possíveis alterações comportamentais2. Asprincipais alterações comportamentais encontradasem cães e gatos com dor são: alterações de perso-nalidade ou atitude, onde o animal dócil torna-seextremamente agressivo frente a estímulos doloro-sos ou vice-versa; vocalização especialmente quan-do manipulado na região dolorida; automutilação;alterações na aparência principalmente na higienedo pelame; alterações na postura e deambulação;

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piloereção; relutância em se movimentar; proteçãoda área dolorida; diminuição do apetite e conse-qüente perda de peso; alteração da expressão facialdentre outras2. As alterações comportamentais cau-sadas pela dor, citadas previamente, contribuemmuito para a mensuração da dor crônica em ani-mais de companhia4,13,24.

Infelizmente em relação à avaliação da dor crôni-ca a literatura veterinária ainda é escassa. Entretan-to, várias escalas utilizadas para a mensuração dedor crônica no homem podem ser adaptadas paraanimais4,10. A Escala Visual Analógica (EVA), ampla-mente utilizada, é uma linha com 10 cm de compri-mento, que apresenta em uma extremidade o con-ceito “ausência de dor” (zero) e na outra “pior dorimaginável” (dez)4,13,25,26. O proprietário ou o cuidadormarca com uma caneta a localização da dor. Estaescala pode ser fornecida ao proprietário do animalou pode ser utilizada por médicos veterinários paramonitorar a terapia analgésica. Outro tipo de escalautilizada no homem é a Escala Numérica, onde sãocolocados números de 1 a 10 para que o pacientemarque a intensidade da sua dor. Utiliza-se tambéma Escala Numérica Verbal, onde o paciente dá umanota de zero (ausência de dor) a dez (pior dor ima-ginável), e a Escala Descritiva Verbal onde a dor éclassificada em ausente, leve, moderada e inten-sa10,12,25. Atualmente a escala mais utilizada e eficazpara a avaliação da dor crônica em cães e gatos é aEscala Numérica Verbal4,10,12.

Segundo Wiseman et al. (2004), a dor pode cau-sar alterações comportamentais importantes emcães com dor crônica secundária a doença articulardegenerativa como redução da mobilidade, ativida-de, apetite, curiosidade, sociabilidade e disposiçãopara brincadeiras e aumento da dependência,agressividade, ansiedade, comportamentos com-pulsivos, medo, vocalização e mobilidade. Em cães

com câncer e dor as alterações comportamentaissão semelhantes10. Nos gatos, o isolamento, a redu-ção do apetite e da “auto-higiene” são as alteraçõescomportamentais mais evidentes. As alteraçõescomportamentais causadas pela dor, citadas pre-viamente, contribuem muito para a mensuração dador crônica em animais de companhia. Além das al-terações deletérias que a dor pode provocar no or-ganismo, deve-se ter em mente que a dor crônica éa causa mais freqüente de sofrimento e incapacida-de que prejudica a qualidade de vida16,27. A qualida-de de vida tem se tornado uma relevante medida daeficácia terapêutica nos estudos clínicos27.

DOR E QUALIDADE DE VIDAA Associação Americana de Medicina Veterinária

(AVMA) acredita que a dor é de grande importânciaclínica resultando em sofrimento e redução da qua-lidade de vida do animal28,29. Após décadas sendosubtratada, subestimada e muitas vezes ignorada, ador atualmente é considerada um fator de grandeimportância em relação à qualidade de vida tanto nohomem quanto nos animais30.

O conceito de qualidade de vida está começandoa surgir na literatura médica veterinária, porém a suadefinição para os animais ainda gera muita discussãoe os critérios e questionários de avaliação ainda sãoescassos na literatura9,28. O conceito de qualidade devida é complexo, subjetivo e várias definições na lite-ratura médica e médica veterinária são encontradas.Mas, na visão da maioria dos autores, a escolha dosfatores que compõem a definição de qualidade de vi-da tem como base o conceito de saúde: saúde é ocompleto bem-estar físico, mental e social e não me-ramente a ausência da enfermidade. McMillan (2000)tenta definir o conceito de qualidade de vida para ani-mais como a ausência ou a presença mínima de des-confortos físicos (p.ex. náusea, retenção urinária,

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prurido, dor, tosse, dispnéia), e emocionais (p.ex. me-do, ansiedade, solidão, frustrações)31.

Em Oncologia, a medida da qualidade de vidatem sido sugerida para demonstrar diferenças deresposta dos pacientes frente a tipos específicos decâncer, avaliar o alívio dos sintomas e comparar aresposta aos tratamentos32. Um recente estudo emrelação à expectativa de proprietários de cães e ga-tos com câncer em relação ao tratamento mostrouque: 52,5% dos proprietários esperavam a reduçãodo tamanho do tumor, 44,1% desejavam o alíviodos sintomas e 42% a manutenção ou melhora daqualidade de vida e bem estar do animal33.

Alguns trabalhos tentaram avaliar a qualidade de vi-da do animal questionando o proprietário de formasubjetiva28. Mellanby, Herrtage e Dobson (2003), emestudo retrospectivo, avaliaram a qualidade de vida de25 cães com linfoma durante a quimioterapia. A avalia-ção foi realizada pelo telefone e os proprietários pode-riam avaliar a qualidade de vida do animal por meio detrês opções: boa, não tão boa quanto antes da doen-ça e ruim. O autor enfatiza a subjetividade da forma deavaliação e sugere o desenvolvimento de questionáriomenos subjetivo9. Em outro estudo sobre a Síndromede Fanconi, a avaliação da qualidade de vida foi reali-zada sem questionário, também de forma subjetiva34.Infelizmente, a presença de questionários validadospara a avaliação da qualidade de vida em cães e gatosé escassa na literatura médica veterinária. McMillan(2003) ressalta que a decisão da eutanásia pelo pro-prietário é baseada, na maioria das vezes, na qualida-de de vida do animal28. Em estudo de cães com insu-ficiência cardíaca congestiva, baixa qualidade de vidafoi relatada por 13% dos proprietários como sendo oprincipal motivo para a decisão da eutanásia35. Em es-tudo com gatos com câncer, todos os proprietários re-portaram a utilização da avaliação da qualidade de vi-da como pré-requisito para a eutanásia36.

Em 2005, Yazbek e Fantoni (Tabela 1) validarama primeira escala de avaliação da qualidade de vi-da relacionada à saúde em cães com dor crônicasecundária ao câncer. O questionário é compostode 12 questões com 4 alternativas possíveis deresposta. Cada questão vale de zero a 3, alcançan-do um total de 36 pontos. Zero é considerado apior qualidade de vida e 36 a melhor. As questõesabrangem informações sobre comportamento, in-teração com o proprietário e avaliação da dor, ape-tite, cansaço, distúrbios do sono, problemas gás-tricos e intestinais, defecação e micção. Para vali-dação a escala foi submetida a proprietários vete-rinários e não veterinários (leigos) de cães saudá-veis, cães com doenças dermatológicas e cãescom câncer e dor. Cães com câncer e dor (mode-rada) apresentaram escore de qualidade de vida20,7; os cães com doença dermatológica obtive-ram escore 30,6 e os cães saudáveis 34,0 sendo adiferença entre os grupos estatisticamente signifi-cativa (p<0,001). Este resultado demonstra a baixaqualidade de vida de cães com dor oncológicamoderada em comparação aos outros animais eenfatiza a importância da constante avaliação du-rante o tratamento25. Esta escala tem sido utiliza-da como método complementar e auxiliar na ava-liação da dor oncológica na rotina da clínica de pe-quenos animais10.

CONCLUSÃOCães com câncer podem apresentar dor em di-

versas fases da doença. A avaliação da dor baseadaem alterações fisiológicas e comportamentais e aavaliação da qualidade de vida por intermédio dequestionários validados são de fundamental impor-tância para o diagnóstico e o tratamento precoce eadequado da dor oncológica. É um dever do médicoveterinário aliviar o sofrimento do animal com dor.

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TABELA 1 – Escala para avaliação da qualidade de vida validada para cães com câncer e dor27

(zero – pior QV / 36 – melhor QV)

1. Você acha que a doençaatrapalha a vida do seuanimal?0. ( ) muitíssimo1. ( ) muito2. ( ) um pouco3. ( ) não

5. Você acha que o seuanimal sente dor?0.( ) sempre1.( ) freqüentemente2.( ) raramente3.( ) nunca

9. O seu animal tem vômitos?0.( ) sempre1.( ) freqüentemente2.( ) raramente3.( ) não

2. O seu animal continuafazendo as coisas que gosta (brincar, passear...)?0.( ) nunca mais fez 1.( ) raramente2.( ) freqüentemente3.( ) normalmente

6. O seu animal tem apetite?0.( ) não 1.( ) só come forçado/só oque gosta2.( ) pouco3.( ) normal

10. Como está o intestinodo seu animal?0.( ) péssimo/funciona

com dificuldade1.( ) ruim2.( ) quase normal3.( ) normal

3. Como está tempera-mento do seu animal?0.( ) totalmente alterado1.( ) alguns episódios de alteração2.( ) mudou pouco3.( ) normal

7. O seu animal se cansafacilmente?0.( ) sempre1.( ) freqüentemente2.( ) raramente3.( ) está normal

4. O seu animal manteveos hábitos de higiene (lamber-se, p. ex.)?0.( ) não 1.( ) raramente 2.( ) menos que antes3.( ) está normal

8. Como está o sono doseu animal?0.( ) muito ruim1.( ) ruim2.( ) bom3.( ) normal

12. Quanta atenção o animal está dando para a família?0.( ) está indiferente1.( ) pouca atenção2.( ) aumentou muito

(carência)3.( ) não mudou/está normal

11. O seu animal é capazde se posicionar sozinhopara fazer xixi e cocô?0.( ) nunca mais conseguiu1.( ) raramente consegue2.( ) às vezes consegue3.( ) consegue

normalmente

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RECEBIMENTO: 27/06/2008APROVAÇÃO: 06/08/2008

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