DOC_DSC_NOME_ARQUI20110705153528

download DOC_DSC_NOME_ARQUI20110705153528

of 134

Transcript of DOC_DSC_NOME_ARQUI20110705153528

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    DEUS E A QUESTO DO MAL NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LVINAS

    LUIZ FERNANDO PIRES DIAS

    BELO HORIZONTE 2011

  • LUIZ FERNANDO PIRES DIAS

    DEUS E A QUESTO DO MAL NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LVINAS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre. Orientador: Prof. Dr. Mrcio Antnio de Paiva

    BELO HORIZONTE 2011

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Dias, Luiz FernandoPires D541d Deus e a questo do mal na filosofia de Emmanuel Lvinas / Luiz Fernando Pires Dias.

    Belo Horizonte, 2011. 132f.

    Orientador: Mrcio Antnio de Paiva Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de

    Ps-Graduao em Cincias da Religio

    1. Alteridade. 2. Deus. 3. Filosofia e religio. 4. tica. 5. Lvinas, Emmanuel, 1905-1995 - Crtica e interpretao. 6. Ontologia. 7. Responsabilidade. I. Paiva, Mrcio Ant6onio. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio. III. Ttulo.

    CDU: 211.1

  • LUIZ FERNANDO PIRES DIAS DEUS E A QUESTO DO MAL NA FILOSOFIA DE EMMANUEL

    LVINAS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre.

    ------------------------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Mrcio Antnio de Paiva (Orientador) - PUC Minas

    -------------------------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira - PUC Minas

    --------------------------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Marcelo Martins Barreira - UFES

    Belo Horizonte, 27 de abril de 2011

  • Dedico este trabalho a Lucas Santos Pires Dias, meu filho.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu pai e minha me (in memoriam) que mostraram, na prtica, o amor desinteressado, que posteriormente encontrei, em forma de teoria, no pensamento de Lvinas,

    A minha esposa Vnia e ao meu filho Lucas, pela pacincia, pelo apoio e pelo amor

    dispensados, imprescindveis nessa intensa jornada,

    A minha esposa Vnia, em especial, pela ajuda inestimvel nas tradues do francs,

    Ao Professor Dr. Mrcio Antnio de Paiva pela amizade, pela confiana e pela orientao cuidadosa e segura, durante a qual esteve sempre disponvel para me atender com presteza e generosidade. A ele agradeo ainda por ter me apresentado, e facilitado o acesso, ao pensamento levinasiano.

    Ao Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira pela amizade, pelo incentivo, pela importante ajuda bibliogrfica e pelas valiosas crticas, observaes e sugestes, que muito contriburam para o aperfeioamento da presente pesquisa.

    Aos demais professores do Programa do Mestrado em Cincias da Religio da PUC Minas, especialmente ao Prof. Dr. Flvio Augusto Senra Ribeiro, pelo significativo trabalho frente Coordenao do PPGCR e pela amizade e constante incentivo com os quais me brindou,

    Aos funcionrios do Programa do Mestrado em Cincias da Religio da PUC Minas pela presteza e ajuda.

    Aos colegas e amigos do Curso de Mestrado em Cincias da Religio da PUC Minas pela oportunidade de aprendizado e crescimento conjunto.

  • O ser o mal, no porque finito, mas porque sem limites. (LVINAS, 2009, p.29)

    A teologia comea para mim no rosto do prximo. A divindade de Deus atua no humano. Deus desce no do outro. (LVINAS, 1994a, p.179)

  • RESUMO

    O propsito desta pesquisa o estudo da questo de Deus e do problema do mal no pensamento de Emmanuel Lvinas, temas que perpassam, direta ou indiretamente, todo o itinerrio filosfico do autor. O filsofo lituano atribuiu nova dimenso ao problema do mal, caracterizando-o como excesso e no como ausncia de ser. Tal reestruturao est coadunada rigorosa crtica ao modelo ontolgico, presente em sua obra. A sada da ontologia engendrada atravs da ideia do Infinito, inspirada em Descartes, com forte influncia da concepo platnica do Bem alm das essncias. Na busca do sentido do humano, Lvinas concedeu precedncia ordem do Bem, instncia anterior ao ser e ao saber, estabelecendo, desta forma, a tica como filosofia primeira. A tica a tica sob a qual se estabeleceu a abordagem de Deus em seu pensamento, que priorizou a investigao acerca das circunstncias nas quais Deus nos vem a ideia como palavra significante. O estudo realizado pretende apontar a reflexo levinasiana como uma importante contribuio s questes filosficas contemporneas, notadamente suposta contradio proporcionada pela existncia do mal no mundo, justaposta imagem de um Deus infinitamente bom e todo poderoso, paradoxo que constitui um perene desafio filosofia e teologia.

    Palavras-chave: Alteridade. Deus. tica. Lvinas. Mal. Ontologia. Responsabilidade.

  • RSUM

    Le propos de cette recherche est ltude de la question de Dieu et du problme du mal chez Emanuel Lvinas, qui, directement ou indirectement parsme tout litinraire philosophique de cet auteur. Le philosophe lituanien a attribu une nouvelle dimension la question du mal, le caractrisant comme un excs et non comme une absence dtre. Telle restructuration est troitement lie la rigoureuse critique du modle ontologique prsente dans son uvre. Le renoncement lontologie est engendr par lide de lInfini, inspire de Descartes, et aussi sous forte influence de la conception platonique du Bien au-del de lessence. Dans la qute de sens de lhumain, Lvinas donne la priorit lordre du Bien, instance antrieure ltre et au savoir, en tablissant ainsi, lthique comme philosophie premire. Lthique est tantt loptique travers laquelle lapproche de Dieu sest tablie dans sa pense, tantt ce qui oriente son investigation propos des circonstances dans lesquelles Dieu nous vient lide comme un mot significatif. Lobjectif de cette tude est de souligner limportance de la contribution apporte par la rflexion lvinasienne sur les questions philosophiques contemporaines, notamment celle de la suppose contradiction apporte par lexistence du mal dans le monde et juxtapose limage dun Dieu infiniment bon et tout puissant ; paradoxe qui constitue lun des enjeux permanent de la philosophie et de la thologie.

    Mots-cl : Altrit. Dieu. thique. Lvinas. Mal. Ontologie. Responsabilit.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    AE - Autrement qutre ou au-del de lessence AV - Lau-del du verset:lectures et discours talmudiques DE - Da evaso

    DEHH- Descobrindo a existncia com Husserl e Heidegger DL - Difficile libert: Essais sur le jadasme DMT - Deus, a morte e o tempo

    DSS - Do sagrado ao santo: cinco novas interpretaes talmdicas DVI- De Deus que vem idia EE - Da existncia ao existente

    EI - tica e infinito HH- Humanismo do outro homem HS - Hors sujet. QRPH - Quelques rflexions sur la philosophie de lhitlrisme SMB - Sur Maurice Blanchot TA- Le temps et lautre TI - Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade TIn - Transcendncia e inteligibilidade TIPH - Thorie de lintuition dans la phnomnologie de Husserl

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................... 11

    2 A GNESE DO PENSAMENTO DE EMAMNUEL LVINAS .................................... 18 2.1 Conjuntura histrica e aspectos pr-filosficos ............................................................. 20 2.1.1 A vida sob o signo da guerra ........................................................................................ 20 2.1.2 A via filosfica atravs da literatura ............................................................................ 24 2.1.3 O judasmo hermenutico ............................................................................................. 28 2.2 A formao filosfica ........................................................................................................ 34 2.2.1 Os primeiros passos em Estrasburgo ........................................................................... 35 2.2.1.1 Henri Bergson e a durao ........................................................................................ 35 2.2.1.2 Durkheim metafsico .................................................................................................. 38 2.2.2 O encontro com Husserl e Heidegger ............................................................................ 39 2.2.2.1 O mtodo fenomenolgico de Husserl ....................................................................... 39 2.2.2.2 Heidegger: a ontologia fundamental ......................................................................... 45

    3 O PROBLEMA DO MAL ................................................................................................... 52 3.1 A filosofia do hitlerismo ................................................................................................... 53 3.1.1 Liberdade alm do fatalismo do tempo .......................................................................... 54 3.1.2 A hegemonia do biolgico e a identificao do mal elementar .................................... 55 3.2 O mal como excesso de ser ............................................................................................... 57 3.2.1 A nusea .......................................................................................................................... 61 3.2.2 O horror da noite ............................................................................................................ 63 3.2.3 O surgimento do existente .............................................................................................. 68 3.2.3.1 A hipstase .................................................................................................................. 68 3.2.3.2 A solido do existente ................................................................................................. 70 3.2.3.3 A morte, o feminino e a paternidade ........................................................................ 72 3.2.4 A perseverana do ser ..................................................................................................... 74 3.3 O crepsculo da teodiceia e sofrimento pelo outro ........................................................ 76 3.3.1 A falta de sentido do sofrimento ..................................................................................... 77 3.3.2 O excesso de mal e a transcendncia ............................................................................. 82

    4 A QUESTO DE DEUS NO PENSAMENTO DE LVINAS ........................................ 88 4.1 O infinito tico ................................................................................................................... 89 4.1.1 Deus nos domnios do ser ............................................................................................... 89 4.1.2 A herana platnica: o Bem para-alm das essncias .................................................. 93 4.1.3 Descartes como referncia inicial .................................................................................. 95 4.2 O rosto do Outro ............................................................................................................... 99 4.2.1 A natureza no tematizvel do rosto ............................................................................ 100 4.2.2 O rosto como apelo tico............................................................................................... 102 4.2.3 Deus como vestgio no rosto do Outro ......................................................................... 104 4.3 Narrar Deus de outro modo que ser ............................................................................. 105 4.3.1 Murmrios diante do Inefvel ..................................................................................... 106 4.3.2 O Dizer no redutvel ao Dito ....................................................................................... 108 4.3.3 Deus como palavra ....................................................................................................... 110

  • 5 CONCLUSO .................................................................................................................... 114 5.1 Alm da teodiceia ............................................................................................................ 114 5.2 Reinaugurao do pensamento ..................................................................................... 116

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 120

  • 11

    1 INTRODUO

    O enigma do mal provoca incessante inquietude em nossa sociedade, sendo uma questo largamente debatida no transcurso da histria do pensamento humano: Que a filosofia e a teologia consideram o mal como um desafio sem igual, os maiores pensadores, em uma ou outra disciplina, concordam em confess-lo, por vezes com grande alarde. (RICOEUR,1988, p.21). A amplitude do problema agravada pelo carter polmico que o acompanha, pois alm de um incompreensvel, o mal , antes de tudo, um inaceitvel: O mal sem dvida a coisa no mundo que mais nos revolta unanimemente (DIERICKX, 1998, p.1, traduo nossa)1.

    O sculo passado assistiu a uma profuso de acontecimentos que se esquivaram de qualquer explicao racional, pois os terrveis episdios que nele se sucederam mostraram a ocorrncia de um mal desprovido de finalidades, motivaes ou de sentimentos, um mal cultivado unicamente pelo mal, sendo, neste sentido, particularmente representativo o horror vivenciado nos campos de extermnio, durante a Segunda Grande Guerra. Tal natureza do mal fugiu s formulaes racionais, que se mostraram dbeis frente tentativa de explic-lo.

    Mas, se o clculo racional fracassou ao ensaiar a elucidao de tais acontecimentos, seu maior fator de descrdito pode ser tributado impossibilidade de evit-los, demonstrando, de forma cabal, que a simples utilizao da razo no implica, necessariamente, em um bem para gnero humano. A razo humana pde ser empregada na produo de monstruosidades como Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, dentre outras.

    O excesso do mal sobrevindo no deixou inclume o conceito de Deus desenvolvido e justificado pela razo. Se referindo natureza do mal ocorrido em Hiroshima e Auschwitz, Fackehheim nos expe a uma intrigante questo:

    Aps esses terrveis acontecimentos, instalados no corao do mundo moderno, esclarecido e tecnolgico, podemos crer ainda no Deus que o progresso necessrio ou no Deus que manifesta sua potncia sob a forma de uma providncia que dirige o curso das coisas? (FACKENHEIM, 1986, p.31, traduo nossa)2

    Os funestos acontecimentos citados provocaram discusses sobre a natureza inconcilivel de um mal hiperblico justaposto representao de um Deus todo poderoso e infinitamente bom. Tais questionamentos no so exclusivos da contemporaneidade, pois, no

    1 Le mal est sans doute la chose au monde qui nous rvolte le plus unanimement.

    2 Aprs ces terribles vnements , survenus au coeur du monde moderne, clair et technologique, peut-on

    croire encore au Dieu que est le progrs ncessaire ou au Dieu qui manifeste sa puissance sous la forme dune providence qui dirige le cours des choses?

  • 12

    Perodo Helenstico, os epicuristas j refletiam sobre esse aparente antagonismo. Trata-se de um problema amplamente debatido pela filosofia e pela teologia, sem que, no entanto, se tenha chegado a uma resposta que satisfizesse plenamente, caracterizando a referida questo como um desafio inesgotvel ao intelecto humano.

    Na esfera religiosa, o escndalo do mal se apresenta como um importante obstculo na crena em Deus. De acordo com a representao que se tenha Dele, cada lgrima inocente derramada pode ser considerada como uma refutao Sua existncia, pois pensar que Deus pode eliminar tais mazelas e no o faz, equivale a pensar que Ele no totalmente bom. Por outro lado, pensar que Deus bom, que quer apenas o bem para os homens, no eliminando o mal por incapacidade, resulta em pens-lo como desprovido de onipotncia. As duas hipteses colidem com o conceito de Deus que persistiu em nossa civilizao. Tal quadro nos sugere a seguinte reflexo: Como, ento, redimensionar a narrativa de Deus, frente existncia do mal?

    Para abordar a delicada questo, buscamos o auxlio no pensamento de Emmanuel Lvinas. Nascido na Litunia, tendo migrado ainda jovem para a Frana, Lvinas um dos filsofos mais instigantes da contemporaneidade que, alm de ter sido o introdutor da fenomenologia de Husserl no cenrio francs, autor de uma extensa obra filosfica, portadora de uma perspectiva mpar no cenrio da filosofia ocidental. O pensamento do filsofo lituano se desenvolveu numa tenso permanente entre a sabedoria judaica e o lgos grego:

    Emmanuel Levinas3 foi um filsofo que concebeu a filosofia como inspirao e testemunho proftico. Seu pensamento se desenvolveu a partir de um dilogo que ele estabeleceu entre o modo de pensar de um judeu nmade e a filosofia ocidental, entre a sabedoria do Povo do livro e a que teve sua origem na Grcia. (MELO, 2003, p.20).

    Lvinas o filsofo que pensou a tica como prima philosophia: Sim, a tica antes e alm da ontologia, do Estado ou da poltica, mas a tica tambm alm da tica. (DERRIDA, 1997, p. 15, traduo nossa)4. Na concepo levinasiana, a tica que estrutura nosso arcabouo gnosiolgico e no o contrrio, sendo a tica portadora de uma racionalidade prpria, desvinculada das pr-determinaes e para alm das vicissitudes da ontologia:

    3 Em relao ao nome prprio Lvinas, observamos duas formas de grafia: Lvinas e Levinas (tanto nas

    obras prprias, como nas tradues e obras sobre o filsofo, em francs e em portugus). Optamos por utilizar a forma Lvinas em nossa escrita e nas referncias bibliogrficas, mas mantivemos a grafia Levinas, conforme sua origem, nas citaes.

    4 Oui, lthique avant et au-del de lontologie, de ltat ou de la politique, mais lthique aussi au-del de

    lthique.

  • 13

    Lvinas no um moralista: ele no analisa as conseqncias (sic) ticas da metafsica, mas identifica na tica o prprio lugar da verdade metafsica. (PAIVA, 2000, p. 214).

    A alterao paradigmtica trazida pelo pensamento de Lvinas propiciou novas perspectivas em relao ao problema do mal e questo de Deus, temas que mereceram do filsofo uma constante ateno.

    Lvinas viveu sob o estigma do terror, vivenciando as duas Grandes Guerras Mundiais, vendo de perto os absurdos de uma lgica totalizante que institucionalizou a violncia. Seu pensamento se desenvolveu no ncleo de uma poca particularmente abundante em tristes acontecimentos, nos quais o mal e o sofrimento humano alcanaram patamares alarmantes. Tais eventos o marcaram de tal forma, que Chalier, em Ontologie et mal, se arriscou a afirmar que a principal fora motriz da filosofia de Lvinas no se encontra, como de habitual, no espanto diante do mundo, mas no excesso de terror vivenciado:

    [...] que se trata para ele de filosofar com esse > como pulmo da reflexo. dizer ainda que o filsofo assombrado pela Catstrofe aborda a histria e as exigncias do pensamento com esse luto irrepresentvel guisa de primeira certeza. (CHALIER, 1993b, p. 64, traduo nossa.)5

    A abordagem levinasiana em relao ao mal se empenhou na fuga de uma perspectiva dual, que considera bem e mal como princpios necessrios e opostos. Nessa tica, o mal no aparece como um problema filosfico, passvel de uma soluo racional, mas como um aspecto a ser combatido e superado, sendo tal elaborao conjecturada a partir da precedncia concedida ao Outro

    Em relao abordagem de Deus, o pensamento de Lvinas tornou-se uma referncia no cenrio contemporneo. Seu pensamento se desenvolveu atravs de uma contundente crtica onto-teo-logia, que, segundo o filsofo, reduz a excepcional figura de Deus a um objeto dentre os demais. A abordagem levinasiana da palavra Deus no se d dentro de uma esfera determinativa, caminhando em direo anlise das circunstncias nas quais tal palavra adquire sua significncia.

    Portanto, o tema proposto para o desenvolvimento desta dissertao a anlise da questo de Deus e do problema do mal no pensamento de Emmanuel Lvinas, que avaliamos como especialmente relevante na abordagem do suposto paradoxo formado pela existncia do mal, em contraposio a um conceito de Deus absoluto, onipotente e infinitamente bom,

    5 [...] cest quil sagit pour lui de philosopher avec ce > comme poumon de la rflexion.

    Cest dire encore que le philosophe hant par la Catastrophe aborde lhistoire et les exigences de la pense avec ce deuil irreprsentable en guise de premire certitude.

  • 14

    engendrado no relacionamento do cristianismo com a metafsica grega, prevalente em nossa cultura.

    Consideramos a presente anlise importante no contexto atual, no qual se verifica uma ampliao do interesse sobre Deus, tanto o pensamento filosfico como no panorama cultural, acompanhada de uma renovao do clamor religioso, manifesto sob novas, variadas e, s vezes, indefinidas formas.

    Mesmo contrariando o prognstico de alguns importantes pensadores, como Nietzsche e Marx, que prenunciaram um horizonte ps-metafsico e ps-religioso, a questo do Sagrado continua mantendo a sua fora e a sua atualidade, pois o ser humano se caracteriza pela busca incessante de um sentido para a realidade imprevisvel e misteriosa a qual ele se encontra exposto em sua vivncia.

    A experincia humana se concretiza diante do mistrio existente no mundo. Mistrio que desperta o sentimento do incompreensvel e do inapreensvel. A palavra Deus busca exprimir o inexprimvel, descrever o indescritvel: Experimentar Deus tirar o mistrio do universo do anonimato e conferir-lhe um nome, o de nossa reverncia e de nosso afeto. (BOFF, 2002, p.156). Dessa forma, o caminho pela busca da significao de sua existncia parece colocar o homem frente ao enigma de Deus, fazendo com que as duas questes estejam continuamente interligadas. Tal cenrio traz consigo o desafio da elaborao de uma narrativa de Deus compatvel ao contexto ps-moderno, seara na qual julgamos de grande valia a contribuio de Emmanuel Lvinas.

    O presente trabalho est inserido na rea de concentrao de estudos relativos Religio e Cultura, da qual faz parte a linha de pesquisa desenvolvida nesta investigao, Razo, Religio e Contemporaneidade6, que caracterizada pelo questionamento e anlise dos pontos de integrao e de confronto entre os domnios da razo e da religio, nos tempos atuais. O estudo das relaes entre razo e religio pode se beneficiar, consideravelmente, com as elaboraes levinasianas, que abordam diversos aspectos fundamentais ao tema, dentre eles: o discurso religioso; a questo tica; a nfase exacerbada conferida ao modelo ontolgico dentro do mbito religioso, tanto no transcurso histrico ocidental, como no contexto contemporneo; a violncia conceitual existente em determinadas caracterizaes discursivas sobre Deus e, finalmente, a racionalizao do mal, que acarreta como consequncia a sua banalizao.

    Entretanto, se o objetivo principal desta pesquisa examinar o problema do mal e a questo de Deus atravs do pensamento de Emmanuel Lvinas, nossa iniciativa possui,

    6 Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio - PUC Minas

  • 15

    tambm, o desiderato de examinar a filosofia de Lvinas a partir dos dois temas citados. Trata-se de uma tarefa de considervel tamanho, tendo em vista a extenso e a profundidade filosfica contidas na obra de Emmanuel Lvinas. O percurso a ser transposto, desde as experincias pr-filosficas de Lvinas, at a intuio de uma nova inteligibilidade da palavra Deus, passando pela abordagem do enigma do mal instaurada dentro de uma esfera tica, compreende praticamente todos os escritos do autor.

    O procedimento metodolgico da presente dissertao alicerou-se no exame e na reflexo, acerca das questes abordadas, a partir dos textos de Emmanuel Lvinas. Recorremos, tambm, anlise das obras bibliogrficas selecionadas sobre o pensamento do autor, que nos proporcionaram um aprofundamento na pesquisa e nos propiciaram importantes elucidaes. Buscamos, ainda, apoio em outros autores que, ao precederem Lvinas no estudo sobre o problema do mal e a questo de Deus, formaram um solo fecundo, herdado e problematizado pela reflexo levinasiana.

    Frente amplitude da filosofia de Lvinas, qualquer esquema adotado na sua abordagem corre o risco de ser insuficiente e redutor. No obstante essa constatao, na busca pela compreenso do pensamento levinasiano, optamos por conduzir a investigao atravs de trs captulos distintos, embora interligados entre si.

    No primeiro captulo, buscamos uma aproximao com o pensamento do autor, atravs da apresentao dos estmulos pr-filosficos e do principiar da filosofia de Emmanuel Lvinas, procurando a correspondncia desses estmulos com o pensamento desenvolvido pelo filsofo, especialmente em relao aos temas de nossa investigao. Nesse captulo, abordamos o contexto histrico vivenciado; a proximidade de Lvinas com os grandes autores da literatura; a experincia fundadora do judasmo e a iniciao filosfica de Lvinas em Estrasburgo, prosseguida dos estudos fenomenolgicos em Friburgo. Nesse captulo, utilizamos, preponderantemente, as entrevistas concedidas por Emmanuel Lvinas (France Guwy; Franois Poiri; Michal de Saint-Cheron; Philippe Nemo; Salomon Malka etc.) e obras sobre outros filsofos (Descobrindo a existncia com Husserl e Heidegger; Sur Maurice Blanchot e Thorie de lintuition dans la phnomnologie de Husserl)7, sendo, tambm, empregados os escritos relativos ao judasmo e interpretaes talmdicas (A lheure

    7 Em relao s obras de Lvinas, preferimos trabalhar com as tradues em portugus, devido boa qualidade

    das mesmas, sendo utilizado o prprio texto em francs em relao s obras que ainda no foram traduzidas em lngua ptria, ou para obras esgotadas (que no foram encontradas). As tradues em lngua espanhola serviram como suporte. Nas referncias indicamos todas as obras utilizadas (portugus, francs e espanhol). No corpo do texto, os ttulos das obras de Lvinas foram escritos no idioma utilizado, em portugus ou francs, de acordo com o caso.

  • 16

    des nations; Difficile libert; Do sagrado ao santo; Lau-del du verset: lectures et discours talmudiques; Quatre lectures talmudiques e Novas interpretaes talmdicas).

    No segundo captulo, abordamos o enigma do mal no pensamento levinasiano. Nele apresentamos a intuio que considerou a filosofia do hitlerismo como portadora de um mal elementar; tratamos da concepo que avalia o mal como um excesso de ser, surgindo da a necessidade de uma evaso, que ser embaraada pela insistncia na permanncia, pelo conatus essendi e buscamos nos artigos Sofrimento intil e Transcendncia e mal a estruturao da questo do mal na filosofia de Lvinas. Nesse captulo, nossa ateno situou-se, principalmente, nos escritos pessoais de Lvinas, com nfase nas seguintes obras: Da evaso; Da existncia ao existente; Entre ns; Le temps et lautre; Quelques rflexions sur la philosophie de lhitlrisme e Totalidade e infinito.

    O terceiro captulo foi consagrado questo de Deus na filosofia de Emmanuel Lvinas. Nele, abordamos a postura crtica de Lvinas em relao aos discursos sobre Deus, elaborados no mbito filosfico e a alternativa, por ele concebida, em relao significncia da palavra Deus fora dos domnios do ser, partindo da ideia de Infinito elaborada por Ren Descartes, sendo intensamente influenciada pela noo platnica do Bem alm das essncias; buscamos a compreenso da noo de rosto no pensamento levinasiano, pressuposto fundamental na relao com o prximo e examinamos a narrativa de Deus para alm das essncias, atravs da questo da linguagem no pensamento de Lvinas, assinalada pela distino entre o Dito, relativo ao contexto lingustico e ontolgico, e o Dizer, concernente a uma perspectiva tica, diacrnica, prpria de uma significao originria. Nesse captulo, privilegiamos a leitura dos seguintes escritos: Autrement qutre: ou au-del de lessence; De Deus que vem a idia; Deus a morte e o tempo; Transcendncia e inteligibilidade e Totalidade e infinito.

    Nas consideraes finais do trabalho retomamos alguns dos principais pontos de anlise, buscando conjeturar sobre as implicaes filosficas do pensamento de Lvinas no contexto atual.

    A filosofia de Emmanuel Lvinas assemelha-se a um rio caudaloso repleto de afluentes. As guas lmpidas da nascente se veem acrescentadas de contedos durante seu trajeto, chegando foz com caractersticas novas. Certas noes aparecem em praticamente todos os momentos do percurso filosfico de Lvinas, porm com amplitude e densidade peculiares. Assim sendo, a sinalizao das obras referenciais de cada captulo no tem um carter determinativo, pois as intuies filosficas levinasianas formam um todo, que no se deixa decompor de maneira impune. Em conjunto anlise das obras citadas, em relao a

  • 17

    cada captulo, foi necessrio o estudo de outras obras do autor e do auxlio dos que, antes de ns, buscaram a interpretao de seu pensamento.

    Constitui-se, tambm, inteno deste trabalho tornar menos espinhoso o ingresso ao pensamento levinasiano. A filosofia de Lvinas no uma filosofia de princpios ltimos e definitivos. Ao contrrio, o pensamento de Lvinas se estabelece como um convite permanente reestruturao do pensamento. Pensar a partir da alteridade pensar respeitando a diferena, significando um importante deslocamento na fonte originria do sentido. Trata-se de um pensamento instigante e provocador, em relao ao qual o leitor geralmente se posicionar contra ou a favor, mas, dificilmente, de forma indiferente.

  • 18

    2 A GNESE DO PENSAMENTO DE EMAMNUEL LVINAS

    Para adentrarmos no pensamento de um filsofo, julgamos necessria uma investigao dos aspectos constitutivos inerentes a esse pensamento, pois o pensar humano o resultado de um arcabouo arquitetado por variados estmulos, sendo eles de ordem tanto pessoal quanto conjuntural.

    Consideramos que a formao do sentido de uma reflexo no se d numa perspectiva que isola o pensador das circunstncias nas quais ele se situa. Portanto, ao debruarmo-nos sobre a obra de um filsofo, devemos levar em conta o homem que est por trs dessa obra, tentando percorrer o caminho por ele cursado, ou seja, devemos caminhar com ele, pois: Caminhar - com condio fundamental para penetrar no horizonte do outro, no obstante o pr-estabelecido de nossa cultura, do nosso modo de pensar, do nosso jeito de filosofar, das nossas convices. (PAIVA, 1998, p.10).

    A filosofia resultante da interao do filsofo com seu meio, atravs dos encontros e dos desencontros, de toda ordem, proporcionados pela vida. Conforme Lvinas, em EI, comea-se a pensar [...] provavelmente com traumas ou tacteios (sic) a que nem sequer se capaz de dar uma forma verbal: uma separao, uma cena de violncia, uma brusca conscincia da monotonia do tempo (LVINAS, 2007, p. 11). O pensar est intimamente ligado s experincias vividas, portanto, os aspectos biogrficos e as inspiraes que tiveram uma ntima ligao com a formulao de uma filosofia devem ser considerados em sua compreenso.

    Alm das vivncias, um pensamento filosfico se nutre do dilogo com outros pensamentos, pois, se at o prprio pensar um dilogo da alma consigo prpria, conforme nos ensina Plato8, o desenvolvimento de um projeto filosfico necessita do dilogo com outros filsofos, sejam eles contemporneos ou do passado, buscando novas significaes e novos caminhos, adequados aos desafios de sua poca. Em razo disso, supomos que, para afrontarmos o pensamento de um filsofo, seja altamente recomendvel um exame de seus interlocutores e de suas principais influncias.

    Tanto as vivncias como o debate com outros filsofos esto inseridos em uma realidade espao-temporal. O pensamento filosfico carrega consigo alta carga de historicidade, sendo, portanto, a dimenso histrica um ponto fundamental para a

    8 Conforme as palavras de Scrates em Teeteto (189e-190a): [...] assim que imagino a alma no ato de pensar:

    formula uma espcie de dilogo para si mesma com perguntas e respostas, ora para afirmar ora para negar (PLATO, l988, p. 68).

  • 19

    compreenso de um filsofo. A percepo do significado de um pensamento deve conter, metodologicamente, a anlise do contexto histrico no qual ele foi formulado.

    A filosofia encontra-se investida do duplo e paradoxal papel de ser produtora e, ao mesmo tempo, de ser produto da histria. Mesmo nos pensadores considerados como pilares da filosofia e da cultura ocidental, cujas ideias transpuseram os limites temporais, podemos verificar o estigma, s vezes sutil, outras vezes nem tanto, de seu prprio tempo.

    Para citarmos apenas dois exemplos, recordemos de Plato e Descartes. Plato desenvolveu seu pensamento numa Atenas em marcha para a decadncia, pouco antes da derrocada final frente Macednia, contexto marcado pela mudana e por uma crise institucional, de fundamentos e de valores, propiciando um pensamento voltado para os aspectos perenes na excelncia humana, na moral, na sociedade, na natureza e na poltica.

    A filosofia de Ren Descartes alvoreceu marcada pela transformao provocada pelo desenvolvimento cientfico e cultural de sua poca, fazendo oposio ao saber medieval, ento prevalente. Tal contexto favoreceu a inaugurao da modernidade filosfica, atravs do cogito cartesiano.

    A atividade filosfica dos dois pensadores citados desenvolveu-se numa conjuntura de crise, com o surgimento de demandas que requereram deles um pensamento dotado do dinamismo capaz de superar a estagnao, indo em direo a novas alternativas.

    Lvinas, da mesma forma, viveu uma poca decisiva da humanidade, numa zona fronteiria de mudana, entre o crepsculo de um tempo e o abrolhar de outro. Ao considerarmos a trajetria de vida pouco convencional de Emmanuel Lvinas, podemos perceber o frtil terreno pr-filosfico, a partir do qual ele desenvolveu seu pensamento.

    Este captulo uma primeira aproximao com o pensamento de Lvinas, abordando os elementos a priori da sua filosofia, considerando-a como um todo engendrado a partir de dimenses constitutivas.

    Buscaremos entrar em contato com os elementos pr-filosficos e os estmulos

    filosficos iniciais, que promoveram a formao do pensamento levinasiano. Destacaremos o contato com as grandes obras da literatura, o contexto histrico, o judasmo e as influncias filosficas, buscando a articulao desses dados com o pensamento filosfico construdo pelo autor, e em especial, quando for o caso, com os aspectos relacionados ao problema do mal e questo de Deus, temas principais da presente pesquisa. Trata-se de um estudo introdutrio, que precede as reflexes desenvolvidas nas obras de cunho pessoal do autor, que se iniciam de maneira efetiva em DE.

  • 20

    2.1 Conjuntura histrica e aspectos pr-filosficos

    A presente seo tem como objetivo investigar os fatores que contriburam na formao do pensamento de Emmanuel Lvinas, buscando uma conexo entre os dados biogrficos apresentados e o horizonte filosfico projetado por esses elementos. Sero abordados os estmulos pr-filosficos abrangendo o perodo da infncia do filsofo, em Kovno, at o seu contato com a filosofia propriamente dita em Estrasburgo. Alm disso, ressaltaremos o contexto histrico no qual o filsofo lituano viveu e desenvolveu seu pensamento, conjuntura essa marcada pelo signo da crise, transcorrida sob o peso de uma guerra avassaladora, quando a necessidade de repensar o humano se tornou imperativa.

    2.1.1 A vida sob o signo da guerra

    Emmanuel Lvinas nasceu no ano de 1906, em Kovno9, cidade da Litunia, pas situado no Leste europeu. A parte da infncia de Lvinas vivida em Kovno deixou boas lembranas no filsofo, apesar de ter sido desenvolvida sob um regime czarista, no qual [...] os judeus no eram cidados ou eram cidados de segunda zona [...] (POIRI, 2007, p.53), mas, como observa Bucks: O anti-semitismo (sic) parecia mais moderado na Litunia que em outras partes da Europa. (BUCKS, 1997, p.18).

    A infncia de Lvinas encurtada pela ecloso da Primeira Grande Guerra Mundial, em 1914, conflito que daria incio ao ocaso da hegemonia europeia no contexto mundial. Com a guerra, a famlia de Lvinas emigrou para [...] a cidade de Kharkov, na Ucrnia, onde os refugiados se instalaram (POIRI, 2007, p.52), e onde Lvinas viveu at 1920.

    Lvinas entrou para o liceu com a idade de onze anos, [...] preparado s por aulas particulares. (POIRI, 2007, p.56). Num regime czarista, a admisso de um judeu no liceu de Kharkov, que ocorria segundo cotas limitadas, era um grande feito, digno de ser celebrado.

    Em 1917, ainda uma criana com onze anos, Lvinas, viu de perto o desmoronamento do regime czarista, de acordo com as limitaes impostas pela pouca idade. Apesar das inquietaes que a revoluo russa despertava em sua famlia, Lvinas no permaneceu [...] indiferente s tentaes da revoluo leninista, ao novo mundo que estava por vir (POIRI, 2007, p.57), embora sem um maior comprometimento. Na volta Litunia, em 1920, onde permaneceu at 1923, Lvinas experimentou a sensao [...] de que algo de importante estava faltando [...], (POIRI, 2007, p.57), que a Histria se desenvolvia sem ele na Rssia.

    9 Cidade que hoje tem o nome de Kaunas.

  • 21

    Entretanto, o desenvolvimento da Histria no estava circunscrito Rssia. Tratava-se de uma nova ordem a ser estabelecida no mundo, da qual a Rssia era parte integrante. A Primeira Grande Guerra, que terminou em 1918, produziu efeitos nefastos, como bem observado por Crouzet:

    Os impressionantes efeitos alinhados pelo servio militar obrigatrio, tornado realmente universal, a subverso das condies de vida que afeta todas as classes da sociedade e todos os pases da terra, a amplitude das perdas humanas e das imensas destruies de riquezas, que atingem os vencedores quase tanto quanto os vencidos, fizeram com que a guerra deixasse de ser, na vida dos povos, um episdio de que podem se refazer rapidamente, para tomar o carter de uma catstrofe nacional irremedivel. (CROUZET, 1996, p.21).

    A guerra, que se desenvolveu de 1914 a 1918, deixou marcas profundas e o perodo que se seguiu foi transformado na preparao do novo conflito que recomeou em 1939. Para Lvinas: a guerra de catorze jamais teria fim; a revoluo e os distrbios ps-revolucionrios, a guerra civil, tudo isso se funde com a guerra de 1914. (POIRI, 2007, p.52).

    O mundo, debilitado pelo colapso econmico ps-guerra e pelo ressentimento dos derrotados da primeira guerra, assistiu [...] ascenso de partidos polticos radicais dedicados destruio do sistema existente (JORDAN; WIEST, 2008, p.09), dentre eles o Partido Nacional Socialista Alemo dos Trabalhadores (NSDAP), mais conhecido como partido nazista, tendo como lder Adolf Hitler, que seria o protagonista da Segunda Guerra Mundial.

    Adolf Hitler foi o mentor maior da poltica expansionista alem, que desembocou na Segunda Grande Guerra Mundial. Os princpios ideolgicos do nazismo foram estabelecidos com base no pressuposto da superioridade germnica, que contemplava o extermnio sistemtico de inimigos e correlatos. O genocdio tinha lugar privilegiado nos campos de concentrao, onde foram exterminados milhes de vtimas, que viviam submetidas a um tratamento absolutamente desumano. Crouzet nos traa um panorama da crueldade exercida nos campos da morte:

    Este morticnio metdico processava-se nos campos de concentrao; uma dezena de milhes de vtimas a passaram, a maioria dos quais desapareceu, sobretudo durante os ltimos meses da guerra maro e abril de 1945 quando chacinas e evacuaes em massa, em condies de crueldade aterradoras, foram organizadas em quase em toda parte. Submetidos a uma escravido absoluta, no dispondo de qualquer recurso contra os caprichos e as violncias dos Kapos - chefes de grupos recrutados, na maior parte, entre os condenados comuns alemes, que procuravam avilt-los e maltrat-los por todos os meios possveis - mal alimentados, mal vestidos, sujeitos a uma disciplina brutal, obrigados a trabalhos duros e malsos em construes ou fbricas, os detentos morrem de inanio ou vtimas de violncia; os

  • 22

    doentes ou aleijados so condenados cmara de gs e ao forno crematrio onde somem sem deixar rastro. (CROUZET, 1996, p. 97).

    Lvinas participou ativamente da Segunda Grande Guerra como soldado francs10, atuando como intrprete de russo e alemo. Em pouco tempo, Lvinas se tornou prisioneiro [...] em Rennes com o 10 exrcito que recuava [...]. (POIRI, 2007, p. 74). Depois de alguns meses como prisioneiro na Frana, ele foi transferido para um campo de prisioneiros, nas proximidades de Hannover, norte da Alemanha, onde, permaneceu [...] durante quatro anos. (RIBEIRO JNIOR, 2005, p.37). No campo de prisioneiros, Lvinas foi apartado dos demais franceses, sendo integrado a outros judeus, mas, em condio especial, beneficiados pelas [...] disposies da conveno de Genebra que protegia o prisioneiro. (POIRI, 2007, p. 74).

    O campo de prisioneiros, Stammlager, se diferenciava dos campos de concentrao, pois no havia a tortura e o extermnio, mas trabalho forado. No campo de prisioneiros, as notcias sobre os horrores nos campos da morte no eram conhecidas em sua totalidade. Lvinas recorda que: Tudo o que nossas famlias tinham vivido no era conhecido. Todos os horrores dos campos, inimaginveis. (POIRI, 2007, p.77). Mas, se Lvinas teve sua vida preservada, sua famlia, que ainda residia na Litunia, no teve a mesma sorte, foi presa e quase toda massacrada na ocupao nazista (COSTA, 2000, p. 40), sendo excees a sua mulher e sua filha, que se encontravam na Frana, salvas pela interferncia do amigo Maurice Blanchot e pelo auxlio de [...] um monastrio de So Vicente de Paula nas cercanias de Orlans. (POIRI, 2007, p.75).

    A vida de Lvinas foi profundamente afetada pelos terrveis acontecimentos das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a ponto de ele colocar, posteriormente, a seguinte questo: Minha vida ter-se-ia ela passado entre o hitlerismo incessantemente pressentido e o hitlerismo se recusando a todo esquecimento? (POIRI, 2007, p.73).

    O pensamento levinasiano ser todo ele transpassado pela marca dos horrores praticados ao outro homem. Amostra disso a dedicatria da obra AE:

    Em memria dos seres mais prximos entre os seis milhes de assassinados pelos nacional-socialistas, ao lado dos milhes e milhes de humanos de todas as confisses e todas as naes, vtimas do mesmo dio do outro homem, do mesmo antissemitismo. (LVINAS, 1978, p.05, traduo nossa)11.

    10 Depois de concluir sua tese, Lvinas solicita e obtm a nacionalidade francesa. (POIRI, 2007, p. 71)

    11 A la mmoire des tres les plus proches parmi les six millions dassassins par les nationaux-socialistes,

    ct des millions et des millions dhumains de toutes confessions et de toutes nations, victimes de la mme haine de lautre homme, du mme antismitisme.

  • 23

    O acontecimento excepcional da Segunda Grande Guerra, que transformou o Holocausto do povo judeu na prpria alegoria do mal, apontou a falncia de um modelo que permitiu a catstrofe e a barbrie, que consentiu o mal pelo mal. Tal advento trouxe consigo a urgncia de se repensar o sentido do humano, impulsionando Lvinas busca de um novo alicerce para o humanismo, sendo essa nova base considerada a partir da tica: Para Emmanuel Lvinas [...] a construo da paz assim, por constitutivo, a instaurao do tico como base mais profunda de toda e qualquer ao humana. (SOUZA, 2003, p.240). E como substrato maior da tica Lvinas entender a primazia concedida ao outro homem: O nico valor absoluto a possibilidade humana de dar, em relao a si, prioridade ao outro. (LVINAS, 2004b, p.150).

    Auschwitz foi alvo de reflexes e discusses sobre as relaes entre os homens, tornando-se um smbolo da degradao mxima a qual se pde chegar e ponto de referncia ao qual uma realidade verdadeiramente humana no admite retorno. O horror ocorrido em Auschwitz tambm colocou em questo determinada representao de Deus cultivada em nossa cultura. Tal representao, que considera o Criador como responsvel direto pelo alvio das dores oriundas da existncia humana, decorrente do clculo racional de Deus, concebido no relacionamento direto do cristianismo com a metafsica grega. Lvinas dir o seguinte sobre Auschwitz:

    A desproporo entre o sofrimento e toda a teodicia (sic) mostra-se em Auschwitz com uma clareza que ofusca os olhos. Sua possibilidade pe em questo a f tradicional-multimilenar. A palavra de Nietzsche sobre a morte de Deus no tomava, nos campos de extermnio, a significao de um fato quase emprico?(LVINAS, 2004b, p.136, grifo nosso).

    O termo teodiceia utilizado por Lvinas formado pelas palavras gregas thes (Deus) e dik (justia). A palavra atribuda a Leibniz, sendo parte integrante do ttulo de sua obra: Ensaios de teodicia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, de 1710. O termo teodiceia definido no Dicionrio de Filosofia de Cambridge da seguinte forma: Defesa da justia ou bondade de Deus em face das dvidas ou objees decorrentes dos fenmenos do mal no mundo (aqui mal se refere a maus estados de coisas de qualquer tipo). (AUDI, 2006, p.902).

    O questionamento do clculo racional de Deus e da teodiceia levar Lvinas a se distanciar da objetivao lgica, buscando a tematizao de Deus em outra perspectiva, de outra maneira, como veremos mais a frente.

  • 24

    Entretanto, se o contexto histrico importante na definio do pensamento levinasiano, tal pensamento no se restringe a uma postura reativa a esse contexto, como bem observa Sebbah:

    A obra de Lvinas no se reduz a uma reao ao horror nazista, uma meditao a respeito desse horror, por mais necessria que esta possa ser; mas, por se tratar de uma grande obra, ela sabe valorizar o sentido e a falncia do sentido no plano mesmo da tessitura dos acontecimentos histricos. (SEBBAH, 2009, p.24).

    Aliados ao contexto histrico, outros fatores tero importante papel na formao intelectual e filosfica de Emmanuel Lvinas, conforme veremos a seguir.

    2.1.2 A via filosfica atravs da literatura

    A biografia de Lvinas conta com uma peculiaridade de efetiva importncia: seu pai era proprietrio de uma livraria na cidade de Kovno. Em razo disso, bem cedo, Lvinas teve contato com os clssicos da literatura russa: [...] Pushkin, Lermontov, Gogol, Turguenev (sic), Dostoiesvsky (sic) e Tolstoi [...]. (LVINAS, 2007, p.12).

    Com o regresso da famlia Litunia, aps o trmino da primeira guerra mundial, Lvinas voltou aos estudos no liceu de Kovno, dirigido pelo professor Schawbe. Nesse liceu Lvinas estudou a literatura russa com os seus referenciais existenciais e filosficos e fez o bacharelado. (MELO, 2003, p.13). Junto aos clssicos russos, Lvinas leu [...] tambm, os grandes escritores da Europa Ocidental, e, principalmente, Shakespeare, muito admirado no Hamlet, Macbeth e Rei Lear. (LVINAS, 2007, p. 12). Sobre Shakespeare, Lvinas dir, em TA, a contundente frase: Mas me parece s vezes que toda filosofia s uma meditao sobre Shakespeare. (LVINAS, 2009, p.60, traduo nossa)12.

    Ao lado dos clssicos da literatura russa e de Shakespeare, Lvinas se enveredou na leitura de Molire, Cervantes, Dante e, tambm, de Goethe, cuja obra Fausto, o professor Schawbe recomendava que fosse lida numa atmosfera de 40 graus de febre. (CHALIER, 1993a, p.17).

    O contato com a literatura teve um papel decisivo na formao intelectual e humana de Lvinas. Discorrendo sobre os choques iniciais que desencadeiam a formao do pensamento, Lvinas afirmar, em EI, que:

    12 Mais il me semble parfois que toute la philosophie nest quune mditation de Shakespeare.

  • 25

    com a leitura de livros - no necessariamente filosficos - que estes choques iniciais se transformam em perguntas e problemas, do que pensar. O papel das literaturas nacionais pode aqui ser importante. No que se aprendam palavras, mas vive-se , que, precisamente, no utpica. Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referncia do humano ao livro que se toma como fonte de informaes, ou como , para aprender, como um manual, quando , na verdade uma modalidade do nosso ser. (LVINAS, 2007, p.11).

    Lvinas tributar o direcionamento de seu pensar filosofia, principalmente, ao contato que teve com a literatura russa, na qual destacar: [...] Pschkin, Lermontov e Dostoivski, sobretudo Dostoivski. (POIRI, 2007, p.58). Segundo Lvinas, o romance russo permeado pela preocupao com os aspectos fundamentais da existncia humana, so: Livros percorridos pela inquietude, pelo essencial, a inquietude religiosa, mas legvel como busca de um sentido da vida. (POIRI, 2007, p.58). Nesses romances o amor abordado numa dimenso transcendente. Lvinas destaca que o amor-sentimento encontrado na literatura foi o elemento motivador de suas [...] primeiras tentaes filosficas. (POIRI, 2007, p.58).

    Alm do papel formador e direcionador, a literatura teve, tambm, a funo de fornecer subsdios para a reflexo do filsofo lituano. Na obra de Lvinas, podemos verificar vrias inspiraes e exemplificaes oriundas do mbito literrio. guisa de ilustrao, podemos citar algumas interaes da filosofia de Lvinas com a literatura e a poesia: Em DVI, a imagem de Harpagon, personagem do livro O Avarento de Molire, gritando ladro, utilizada por Lvinas como aluso reivindicao de justia em causa prpria efetuada pelas ideologias (LVINAS, 2008a, p.26); Em EE, Lvinas identificar a evaso sem itinerrios, buscada e desejada em contraposio ao cansao oriundo da existncia, evaso dos verdadeiros viajantes de Baudelaire(LVINAS, 1998a, p.25); Lvinas citar Rimbaud, em HH, destacando nele a utilizao de contedos sonoros aparentemente sem sentido, como as vogais, mas que na realidade esto prenhes de uma significao a ser alcanada pelo conjunto da frase ou do texto (LVINAS, 1993b, p.23). A Rimbaud caber, tambm, a abertura da obra TI, atravs do seguinte verso: A verdadeira vida est ausente, ao qual Lvinas acrescentar: Mas ns estamos no mundo (LVINAS, 2008b, p.19). Outras interaes poderiam ser citadas, mas destacaremos de forma especial Dostoivski e Shakespeare, pela importncia que tiveram na formao de Lvinas.

    Iniciaremos com Dostoivski, que exerceu uma influncia acentuada em Lvinas. Na obra Os Irmos Karamzov (cujo enredo gira em torno dos conflitos de uma famlia envolta numa trama que culmina com o assassinato do pai) podemos verificar uma passagem de grande significao na filosofia levinasiana: [...] cada um de ns culpado diante de todos

  • 26

    por tudo e eu mais do que os outros.(DOSTOIVSKI, 1995, p.212). Tal frase ser utilizada inmeras vezes por Lvinas, simbolizando a responsabilidade irrecusvel pelo outro, conforme abaixo exemplificado:

    A responsabilidade o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, no posso recusar. Este encargo uma suprema dignidade do nico. Eu, no intercambivel, sou eu na medida em que sou responsvel. Posso substituir a todos, mas ningum pode substituir-me. Tal minha identidade inalienvel de sujeito. precisamente neste sentido que Dostoievsky afirma: . (LVINAS, 2007, p.84).

    Em Os Irmos Karamzov podemos verificar, tambm, a tematizao do problema do mal: No livro V, nos deparamos com um dilogo inquietante entre dois dos irmos Karamzov, Iv e Alicha, no qual o primeiro relata ao segundo o martrio de uma menina de cinco anos, que era torturada pelos pais, supostamente honrados, bem educados e de boa posio social. A aflio sofrida foi assim descrita por Iv Karamzov:

    Portanto, aqueles pais instrudos praticavam muitas sevcias na pobre menininha. Aoitavam-na, espezinhavam-na sem razo, seu corpo vivia coberto de equimoses. Imaginaram por fim um refinamento de crueldade: pelas noites glaciais, no inverno, encerravam a menina na privada, sob o pretexto de que ela no pedia a tempo, noite, para ir ali (como se, naquela idade, uma criana que dorme profundamente pudesse sempre pedir a tempo). Esfregavam-lhe os prprios excrementos na cara, e sua me, sua prpria me obrigava-a a com-los! E essa me dormia tranqila (sic), insensvel aos gritos da pobre criana fechada naquele lugar repugnante!Vs tu daqui aquele pequeno ser, no compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escurido, bater com seus pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lgrimas inocentes, chamando o bom Deus em seu socorro? (DOSTOIVSKI, 1995, p.181).

    Um pouco adiante, no mesmo dilogo, Iv Karamzov discorre sobre o momento do juzo final, quando cu e terra se encontraro sob o signo da harmonia divina, sendo nesse momento, explicadas as injustias, os sofrimentos e as mazelas vividas, incluindo, obviamente, o martrio acima descrito. A harmonia e a explicao divina so rejeitadas pelo personagem, da seguinte forma:

    Enquanto ainda tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que no vale ela uma lgrima de criana, daquela pequenina vtima que batia no peito e rezava ao bom Deus, no seu canto infecto; no as vale, porque aquelas lgrimas no foram redimidas. Enquanto assim for, no se poder falar de harmonia. (DOSTOIVSKI, 1995, p.183).

    Dos trechos extrados da magistral obra de Dostoivski podemos inferir a existncia de pelo menos duas desconcertantes perguntas latentes: Qual a razo da passividade divina diante do mal? Onde est Deus que no escuta as preces daquela criana?

  • 27

    So perguntas inquietantes que colocam em questo o excesso de sofrimento no mundo e determinada representao de Deus desenvolvida em nossa cultura ocidental, conduzindo-nos ao tema do mal. Iv Karamzov recusa a justificao que considera a dor, o sofrimento e a injustia sofridos neste mundo como partes integrantes de uma harmonia superior, divina, a ser conhecida por ns numa outra vida e num mundo transcendente.

    Essa recusa em colocar a questo do mal numa perspectiva dualista, num plano transcendente, est presente em Lvinas, que insere o problema do mal no campo da justia e da tica: Quando falo de justia, introduzo a idia (sic) da luta com o mal, separo-me da idia (sic) de no-resistncia (sic) ao mal. (LVINAS, 2004b, p.145).

    Lvinas criticar, tambm, a representao de Deus calcada na tradio helnica, pois, segundo ele, tal representao, oriunda da objetivao racional, est confinada em uma estruturao humana, limitada insuficiente adequao sujeito-objeto. Na obra levinasiana, a abordagem de Deus dar nfase Sua manifestao, em detrimento definio de uma essncia. Uma noo no totalizante de Deus ser tramada a partir da tica.

    Assim como Dostoivski, Shakespeare tambm forneceu importante substrato ao pensamento de Lvinas, que o citar em diversos momentos de sua obra. No Prlogo do livro HH (LVINAS, 1993b, p.11) pode ser verificada a citao Eu morreria de piedade se visse outra pessoa nesse estado, trecho contido na cena VII do ato IV da pea Rei Lear. Tal citao se coaduna com o pensamento levinasiano, que v a fraternidade como parte integrante da condio humana. O pensamento de Lvinas leva em conta o traumatismo ocasionado pela presena e pelo sofrimento de Outrem, acarretando ao Eu uma responsabilidade imperativa, advinda da condio de indigncia do prximo, da sua penria, traduzida na nudez de seu rosto, pura significao sem contexto, que faz o Eu de refm. Em Lvinas, a condio de penria do Outro um ditame imperativo de justia. Nesse sentido, podemos verificar na mesma pea, Ato III, cena IV, uma passagem de grande significao, onde o Rei Lear, no limite entre a loucura e a lucidez, confessa seu descaso com os desprovidos e descobre no temor pelos outros e na substituio, o pressuposto para um cu mais justo:

    Pobres desgraados nus, onde quer que se encontrem sofrendo o assalto desta tempestade impiedosa, com as cabeas descobertas e os corpos esfaimados, cobertos de andrajos feitos de buracos, como se defendem de uma intemprie assim? Oh! Eu me preocupei bem pouco com vocs! Pompa do mundo, este o teu remdio; expe-te a ti mesmo no lugar dos desgraados, e logo aprenders a lhes dar o teu suprfluo, mostrando um cu mais justo. (SHAKESPEARE, 2009, p.77, grifo nosso).

  • 28

    Lvinas se valer, tambm, de Shakespeare para explicitar o horror da noite, o horror do existir bruto, da existncia sem existente:

    Os espectros, os fantasmas, as feiticeiras no so somente o tributo de Shakespeare a seu tempo ou o vestgio dos materiais utilizados; eles permitem mover-se constantemente nesse limite do ser e do nada, onde o ser se insinua no prprio nada, como as bolhas da terra(the Eart hath bubbles). Hamlet recua diante do no ser porque pressente nele o retorno do ser (to dye, to sleep, to sleep, perchance to Dreame). Em Macbeth, a apario do espectro de Banco constitui igualmente uma experincia decisiva do sem sada da existncia, do seu retorno fantasmtico atravs das fissuras por onde havia sido expulso. (LVINAS, 1998a, p.72).

    Outros pontos de relao entre a literatura e o pensamento levinasiano seriam passveis de destaque; entretanto, trazer baila todos esses pontos fugiria ao objetivo do presente trabalho. Nossa inteno se restringiu exemplificao da estreita relao de Lvinas com os livros e do reflexo dessa relao no pensamento filosfico por ele desenvolvido.

    Mas, se os livros foram uma relevante experincia pr-filosfica, o livro dos livros, a Bblia, livro no qual [...] se dizem as coisas primeiras, as que se deviam dizer para que a vida humana tenha um sentido [...] (LVINAS, 2007, p.12), tem um carter fundante no pensamento de Lvinas, juntamente, com outros textos judaicos. da influncia advinda do judasmo que trataremos a seguir.

    2.1.3 O judasmo hermenutico

    O judasmo foi uma inspirao perene na trajetria intelectual de Emmanuel Lvinas. O contato de Lvinas com os preceitos do judasmo inicia-se muito cedo, na Litunia, atravs das leituras hebraicas. Tais leituras no foram jamais abandonadas no transcorrer de sua vida, embora, naturalmente, Lvinas tenha dedicado a elas um menor tempo de sua ateno durante o perodo de estudos em Estrasburgo. O retorno com maior intensidade aos estudos judaicos se deu em perodo de frias na Litunia, quando o interesse sobre o tema foi renovado. Entretanto, um aprofundamento mais significativo na tradio judaica ocorreu atravs do encontro com [...] algumas pessoas excepcionais dotadas de altssima cultura hebraica [...] (POIRI, 2007, p.70), suscitando um envolvimento mais direto de Lvinas com tal tradio.

    Tiveram um especial papel no pensamento de Lvinas figuras exponenciais do judasmo como: Franz Rosenzweig13, filsofo alemo, autor de A estrela da redeno (1921)

    13 [...] foi no contato com o pensamento do filsofo judeu F. Rosenzweig, por meio de sua obra Der Stern der

    Erlsung, que Lvinas chegou a dar passos decisivos na direo de uma filosofia como religio ou tica, sem que isto corresponda a uma filosofia religiosa, ou a uma filosofia da religio (RIBEIRO JNIOR, 2005, p.34).

  • 29

    e Martin Buber, pensador nascido em Viena, autor da obra Eu e tu (1923), com o qual Lvinas partilharia um mesmo solo de reflexes, no que diz respeito s relaes intersubjetivas, embora Lvinas trilhasse caminhos diferentes, em razo de considerar a assimetria da relao Eu - Tu, ao contrrio de Buber, que pensou tal relao em um contexto de reciprocidade.

    Outros dois importantes encontros, depois da guerra, marcariam de forma profunda a perspectiva levinasiana: o Doutor Henri Nerson, nas palavras de Lvinas [...] um homem extraordinrio pela altitude de seu pensamento e por sua elevao moral (POIRI, 2007, p.118), e, atravs deste, M. Chouchani, grande conhecedor dos textos judaicos, homem dotado de um extraordinrio poder dialtico e interpretativo, que marcou profundamente a hermenutica de Lvinas.

    A trajetria de Lvinas no caminho do judasmo inicia-se na infncia, quando a estrutura de Kovno, cidade natal de Lvinas, era fracionada em duas partes: havia a cidade velha e a cidade nova. (POIRI, 2007, p.52). Na cidade velha predominava o ambiente judeu, com vrias sinagogas e lugares de estudo, tradio comum na Litunia, [...] onde o judasmo conheceu seu mais alto desenvolvimento espiritual: o nvel do estudo talmdico era muito elevado, e havia toda uma vida baseada nesse estudo e vivida como estudo. (POIRI, 2007, p.53).

    O judasmo da Litunia [...] herdeiro do grande talmudista e grande mstico Gaon de Vilna (1720-1797) [...]. (SEBBAH, 2009, p.163-164). Gaon de Vilna, ou Elias Ben Salomo, uma das figuras mais destacadas da histria do judasmo, tendo exercido forte autoridade rabnica no Leste europeu. Ele era conhecido pelo seu intelecto e pela capacidade quase que sobre-humana de estudar. Seu principal foco de estudo era a Torah, tendo analisado os textos rabnicos sob uma perspectiva cientfica, [...] dando solues a problemas que havia sculos desafiavam os estudiosos. (RABINOWICZ, 1990 p.69-70). Ele foi o maior opositor do hassidismo14.

    O judasmo praticado pela famlia de Lvinas e que predominava em Kovno era o Mitnagdim15, judasmo influenciado por Gaon de Vilna e que se caracteriza pelo cunho predominantemente hermenutico, em oposio ao hassidismo16, marcado pelo carter mstico e por vigoroso apelo emocional. No hassidismo o [...] misticismo era colocado acima do

    14 Movimento religioso e social fundado por Israel Baal Shem Tov (1699-1761), na Volnia e Podlia. A base

    filosfica do hassidismo a Cabal, conforme fora exposta por Isaac Lria; porm, enquanto a Cabal se preocupa principalmente com consideraes cosmolgicas, o hassidismo (exceto, possivelmente, o ramo Habad) voltava-se essencialmente para a moralidade e a religio. (SCHLESINGER; PORTO, 1995, p.1240).

    15 Tambm utilizado o termo Misnagdim, ambos significando oponentes.

    16 Verificamos as duas grafias para a palavra: hassidismo (termo utilizado por Ribeiro Jnior, Schlesinger,

    Sebbah, etc.) e chassidismo (termo utilizado por Bucks, Rabinowicz, etc.), ambos exprimindo o sentido de piedoso.

  • 30

    ritual e do estudo do Talmud. (RIBEIRO JNIOR, 2005, p.28). Segundo Lvinas, o judasmo desenvolvido em Kovno [...] se prendia dialtica do pensamento rabnico por meio dos comentrios que se desenrolam ao redor do Talmud e no Talmud. (POIRI, 2007, 53).

    Ser um judeu na Litunia, no perodo de juventude de Lvinas, correspondia a ter o judasmo como questo central, ditando, de forma natural, o tom e o ritmo da vida. Nesse ambiente, Lvinas apresentava maior inclinao pelos livros que pelo chamado mstico do judasmo, considerando a Bblia [...] o livro por excelncia. (LVINAS, 2007, p.11). Lvinas teve acesso Bblia desde os seis anos de idade, estudando-a em conjunto com o hebraico.

    A leitura da Bblia hebraica17 foi matria prima na formao do pensamento levinasiano, sendo um de seus fatores determinantes, conforme relato do prprio Lvinas:

    [...] A leitura da Bblia fez parte, para mim, das experincias fundadoras. Ela desempenhou, portanto, um papel essencial - e, em grande parte, sem que eu o saiba - na minha maneira de pensar filosoficamente, isto , de pensar dirigindo-se a todos os homens. (LVINAS, 2007, p. 13-14, grifo nosso).

    A passagem acima grifada, extrada da famosa entrevista concedida por Lvinas a Philippe Nemo, nos d pistas sobre o sentido do judasmo na obra de Lvinas. A inspirao judaica existente na filosofia de Lvinas pode ser traduzida como uma viso aberta ao mundo, voltada ao universal, no estando de forma alguma restrita a um nacionalismo, ou aprisionada a uma limitao religiosa ou tnica.

    Nesse sentido, podemos entender a relao entre judasmo e filosofia em Lvinas. A tentativa de classificar Lvinas como um pensador judeu18, estando tal expresso enquadrada em um contexto redutor, ou seja, [...] quando se entende por isso algum que ousa fazer aproximaes entre conceitos baseados unicamente sobre a tradio e os textos religiosos sem dar-se ao trabalho de passar pela crtica filosfica (POIRI, 2007, p.102), rechaada pelo filsofo.

    Avaliamos como grave erro de omisso a desconsiderao da inspirao judaica no pensamento de Lvinas, constituindo-se um equvoco igualmente perigoso a restrio da filosofia levinasiana ao horizonte do judasmo. Nem a Bblia e nem o Talmude foram utilizados como fundamentos ou argumentos irrefutveis para a sustentao das posies

    17 A Bblia hebraica, chamada Tor, e o judasmo so duas realidades que podem ser distinguidas, mas no

    separadas. (BUCKS, 1997, p.37). 18

    Designao atribuda a Lvinas, especialmente pelo filsofo francs Jean Franois Lyotard. (SEBBAH, 2009, p.153).

  • 31

    filosficas de Lvinas. A sabedoria existente na Bblia se constituiu em inspirao e em elemento de anlise, em funo da carga tica e humana nela contida, ou como elemento elucidativo das reflexes engendradas a partir desse horizonte:

    Uma verdade filosfica no pode se basear na autoridade do versculo. preciso que o versculo seja fenomenologicamente justificado. Mas o versculo pode permitir a busca de uma razo. Eis em qual sentido a expresso voc filsofo judeu me agrada. Ela me irrita quando h a insinuao de que eu provo pelo versculo, quando por vezes eu procuro pela sabedoria antiga e ilustro por esse versculo, sim, mas eu no provo pelo versculo. (POIRI, 2007, p.103).

    Na tradio judaica, a sabedoria existente na Bblia encontra sua significao mais profunda quando exposta ao crivo hermenutico do Talmude19, que consiste na compilao e transcrio dos ensinamentos orais dos antigos sbios judeus, comentando e desenvolvendo os preceitos da Tor. Melo explicita o horizonte de significao contido no Talmude:

    O Talmude divulga um ensinamento sempre novo, confrontando-o com o mundo e revelando-se somente queles que sabem descobrir, sob o aparente anacronismo das discusses rabnicas, a presena de um pensamento eterno que, conseqentemente (sic), incide sobre os problemas contemporneos. (MELO, 2003, p. 166).

    Ribeiro Jnior destaca o entrelaamento existente entre os escritos filosficos de Lvinas e a carga axiolgica contida no Talmude, da seguinte forma:

    A tradio talmdica como Torah oral se erige como horizonte a partir do qual o filsofo propugna a antropologia do homem messias do outro homem. A novidade dessa antropologia no vem das religies reveladas, mas da lei revelada de que porta-voz o Talmud. A antropologia tica do homem bblico permite compreender que, no fundo, o horizonte bblico dos escritos filosficos do autor plasmado em dilogo com a sabedoria tica dos talmudistas. (RIBEIRO JNIOR, 2005, p.56-57).

    O judasmo todo ele impregnado pela noo de justia social, expressa na responsabilidade pessoal de cada indivduo, pelo seu prximo e pela sociedade como um todo20.

    A matriz judaica presente em Lvinas impulsionar seu pensamento atravs de uma vertente predominantemente tica, pois o judeu vive sua religio antes de tudo como tica: o outro, especialmente o pobre dependente, nos obriga a fazer-lhe justia (BUCKS, 1997, p.56). Em DL, Lvinas destacar o carter tico e relacional contido nos ensinamentos bblicos da seguinte forma:

    19 O Talmude propriamente dito foi redigido no sculo V de nossa era; ele constitui uma sntese racional de

    tradies, costumes e leis que, aos poucos, tinham se formado no seio do povo judeu. Deste ponto de vista, trata-se de um esforo de clarificao e classificao. (SEBBAH, 2009, p.164).

    20 [...] no h para os judeus distino entre conscincia social e conscincia religiosa. (ROTMAN, 2006,

    p.226).

  • 32

    Que a relao com o divino atravessa a relao com os homens e coincide com a justia social, eis todo o esprito da Bblia judia. Moiss e os profetas no se preocupam com a imortalidade da alma, mas com o pobre, com a viva, com o rfo e com o estrangeiro. (LVINAS, 2010, p.40, traduo nossa)21.

    A tica ser um ponto chave na tematizao de Deus no pensamento levinasiano:

    A relao moral rene ento ao mesmo tempo a conscincia de si e a conscincia de Deus. A tica no o corolrio da viso de Deus, ela esta viso mesma. A tica uma tica. De sorte que tudo o que eu sei de Deus e tudo o que eu posso entender de Sua palavra e dizer a Ele razoavelmente deve encontrar uma expresso tica. (LVINAS, 2010, p.37, traduo nossa)22.

    A passagem acima, contida no ensaio Une religion dadultes (texto integrante do livro DL), evoca a necessidade da contextualizao de Deus como palavra a partir das relaes ticas, ou seja, a partir da realizao da justia ao prximo. Tal postura se contrape a uma noo totalizante do Infinito, rejeitando a reduo de Deus a uma mera sntese.

    A relutncia na conceituao de Deus est presente no judasmo desde os seus primrdios. Amostra disso o impronuncivel tetragrama sagrado YHWH atravs do qual Deus era representado. Os israelitas no ousavam nomear a Deus, como indicativo de respeito, chamando-o apenas de Senhor, Adonai, conforme nos ensina Konings:

    Conta-nos o livro do xodo que, sob a proteo de Deus e a liderana de Moiss, os filhos de Israel saram do Egito atravessando um brao de mar, no qual pereceu o exrcito do Fara. Na travessia do deserto do Sinai, Deus se revelou a eles como seu novo Soberano, oferecendo-lhes uma Aliana e dando-lhes uma Lei. Eram agora o povo peculiar do Deus nico, cujo nome era representado por quatro letras hebraicas, YHWH, o tetragrama sagrado. A pronncia deve ter soado Iahu ou Iahw (em hebraico, w = u), mas eles no pronunciavam o nome de Deus como faziam os outros povos, que queriam manipular Deus por seu nome. Eles o chamavam de Adonai, o Senhor. (KONINGS, 2002, p.22).

    O caminho trilhado por Lvinas no o da investigao lingustica acerca dos significados possveis da palavra Deus, antes, ele vai procura do que torna possvel o sentido, a significncia prvia a toda significao (PIVATTO, 2002, p. 196), ou seja, Lvinas busca o sentido de Deus a partir das relaes ticas, que compem a estrutura originria da realidade humana, pois a relao tica se torna o lugar onde se faz a experincia de Deus, que no se pode demonstrar dentro de um sistema cognoscitivo, porque est alm, mas que se mostra e se revela na solicitude e amor para com o Outro. (PAIVA, 2000, p.227).

    21 Que le rapport avec le divin traverse le rapport avec les hommes et concide avec la justice sociale, voil tout

    lesprit de la Bible juive. Mose et les prophtes ne se soucient pas de limmortalit de lme, mais du pauvre, de la veuve, de lorphelin et de ltranger.

    22 La relation morale runit donc la fois la conscience de Dieu.Lthique nest pas le corollaire de la vision de

    Dieu, elle est cette vision mme. Lthique est une optique. De sorte que tout ce que je sais de Dieu et tout ce que je peux entendre de Sa parole et Lui dire raisonnablement doit trouver une expression thique.

  • 33

    A questo tica, tambm, ser um referencial em relao abordagem do mal no pensamento levinasiano. Nesse sentido, consideramos importante destacar a noo judaica de eleio, noo que est diretamente relacionada com a responsabilidade pelo outro, definida da seguinte forma por Melo: A eleio o ato mesmo do Outro, que me pe na no-condio (sic) de refm e que me concerne sem que eu possa me opor ao seu apelo. Sou convocado a fazer com ele uma aliana e a permanecer vigilante, responsvel por esse ato, a obedecer. (MELO, 2003, p.177-178).

    Para Lvinas, tal qual o judasmo lhe transmitiu, a eleio designa o Eu sendo investido, pelo Bem, com a atribuio da responsabilidade pelos outros (CALIN; SEBBAH, 2002, p.17). Na viso de Lvinas a eleio no um privilgio, antes se configura como um encargo, como uma responsabilidade:

    A eleio do povo judeu uma crena religiosa, porm, at no plano tradicional, no filosfico, necessrio precisar que isto sempre foi considerado como uma sobrecarga de responsabilidade, e como uma sobrecarga de responsabilidade exigida a si bem mais do que aos outros. (POIRI, 2007, p.107).

    Lvinas entender a responsabilidade pelo Outro como o prprio fundamento da subjetividade. Segundo o filsofo, a subjetividade constitui-se ao se assumir tal responsabilidade. Responsabilidade que no cessa e perante a qual o Eu insubstituvel:

    De facto (sic), trata-se de afirmar a prpria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto , a partir da posio ou da deposio do eu soberano na conscincia de si, deposio que precisamente a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade o que me incumbe e que, humanamente, no posso recusar. Este encargo uma suprema dignidade do nico. Eu no intercambivel, sou eu apenas na medida em que sou responsvel. (LVINAS, 2007, p.84, grifo nosso).

    Se o assumir a responsabilidade em relao a outrem est ligado prpria ordem do Bem, para Lvinas a recusa dessa responsabilidade, o fato de deixar essa ateno prvia desviar do rosto do outro homem, o mal. (POIRI, 2007, p.94). Ou seja, o escndalo do mal, que se apresenta em diferentes formas, tem suas razes no excesso de centralidade do Eu, negligenciando, voluntariamente, sua responsabilidade para com o Outro e para com a sociedade, impedindo, dessa maneira, a efetivao da justia e da tica.

    Contudo, acreditamos que a identificao do mal como a recusa diante da responsabilidade pelo outro, antes de ser a tentativa de uma definio, constitui-se como abertura de uma possibilidade de nos defrontarmos com o problema do mal existente no mundo, assunto que ser abordado e desenvolvido no captulo seguinte.

  • 34

    A tradio bblica e talmdica, na qual de fundamental importncia a noo de responsabilidade, ter uma importncia decisiva no pensamento de Lvinas, nele inspirando uma postura de insurgncia em relao ao papel de precedncia que o Eu ocupa na filosofia ocidental, pois para o filsofo lituano a Bblia representa: [...] a prioridade do outro em relao a mim. em outrem que sempre vejo a viva e rfo. Outrem sempre tem precedncia. A isto chamei, em linguagem grega, dissimetria da relao interpessoal. (LVINAS, 2008a, p.129). Para Lvinas, o judasmo est situado em uma perspectiva tica que transcende as particularidades subjetivas ou coletivas: A ideia forte do judasmo consiste em transfigurar o egocentrismo ou o egosmo individual, ou nacional, em vocao da conscincia moral. (LVINAS, 1994a, p.161, traduo nossa)23.

    A inspirao na Bblia hebraica deixar no pensamento de Lvinas [...] a marca de uma filosofia que compreender a si mesma como o longo caminho de um xodo [...]. (MORO, 1982, p.2, traduo nossa)24. O longo caminho do Ser em direo ao Outro, descrito por Moro, passar por inicialmente por Estrasburgo, atravs do contato com o pensamento filosfico e em especial com a fenomenologia de Husserl e Heidegger, como veremos a seguir.

    2.2 A formao filosfica

    Ao pretendermos transcorrer, mesmo que de forma breve, o itinerrio rumo formao e consolidao do pensamento filosfico de Emmanuel Lvinas, devemos levar em conta, de incio, que um caminho formado por, pelo menos, dois aspectos: o cho que est sendo pisado e a viso do restante do caminho que se tem a cumprir. Em razo disso, ao tentarmos reconstruir, passo a passo, a difcil e complexa trajetria do filsofo lituano, atravs das variadas influncias filosficas por ele recepcionadas, buscaremos estabelecer, na medida do possvel, conexes entre esses estmulos e as direes s quais teria sido impelido o pensamento Levinasiano.

    23 Lide forte du judasme consiste transfigurer lgocentrisme ou lgosme individuel ou national, en

    vocation de la conscience morale. 24

    [...] la marca de una filosofa que se comprender a s misma como el largo camino de un xodo [...].

  • 35

    2.2.1 Os primeiros passos em Estrasburgo

    Estrasburgo, que em 1919 volta a fazer parte do territrio francs aps longo perodo de ocupao alem, foi a cidade escolhida por Lvinas para os seus estudos universitrios A escolha foi motivada pela atrativa e propagada riqueza cultural francesa, e tambm por ser Estrasburgo a cidade francesa mais prxima da Litunia.

    O primeiro ano de estudo em Estrasburgo25, 1923, foi dedicado ao latim, findo o qual Lvinas inicia os estudos em filosofia, iniciao que se d sob a orientao dos professores Maurice Pradines, Charles Blondel, Maurice Halbawachs e Henri Carteron26, considerados por Lvinas como [...] os verdadeiros homens, os inolvidveis! (POIRI, 2007, p.59).

    Uma das lembranas mais fortes que Lvinas guardou de seus primeiros estudos em Estrasburgo foi o caso Dreyfus, analisado pelo Professor Maurice Pradines, que apresentou o caso [...] como exemplo do tico vencedor do poltico. (POIRI, 2007, p.59). Alfred Dreyfus foi um oficial judeu do exrcito francs, condenado injustamente por traio, tendo o caso mobilizado vrios intelectuais franceses que saram em sua defesa, notadamente mile Zola: Velhos judeus com suas barbas que jamais haviam visto uma letra latina em suas vidas falavam de Zola como de um santo! (POIRI,2007, p.59). Anos mais tarde o processo foi revisto, com a absolvio de Dreyfus.

    Mas, em Estrasburgo, nos anos 20, a ateno dos estudantes era dispensada, principalmente, a Bergson e a Durkheim: Eram eles que citvamos, a eles nos opunhamos.

    Tinham sido incontestavelmente os professores de nossos mestres. (LVINAS, 2007,p.15).

    2.2.1.1 Henri Bergson e a durao

    Nesses primeiros anos de estudos, a inovao no campo filosfico estava vinculada s reflexes promovidas pelo filsofo francs Henri Bergson27, ganhador do prmio Nobel de literatura em 1928. Tais reflexes constituam a [...] moda intelectual da poca [...]. (HUTCHENS, 2007, p.19). Uma das intuies bergsonianas que impressionou Lvinas, de sobremaneira, foi a durao. Tal concepo contrape o tempo da mecnica, o tempo dos

    25 Um aspecto importante a ser destacado no perodo de Estrasburgo, paralelo aos estudos, o encontro com o

    Maurice Blanchot, com o qual Lvinas desenvolveu uma profunda amizade, marcada pela admirao recproca e por afinidades no pensamento.

    26 [...] Maurice Pradines, em filosofia geral, Henri Carteron, em filosofia antiga, Charles Blondel, em psicologia

    e Maurice Halbwachs, em sociologia. (MELO, 2003, p.13). 27

    Filsofo, nascido em Paris, em 1859, no seio de uma famlia judaica. Sua filosofia se configurou em um ponto de referncia do pensamento francs no final do sculo dezenove e nas primeiras dcadas do sculo vinte.

  • 36

    relgios, ao tempo da experincia vivida, contexto no qual a conscincia apreende o tempo como durao e no, apenas, como instantaneidade. Na obra O pensamento e o movente: ensaios e conferncias, Bergson afirma que o tempo da experincia concreta vivido em conjunto com a memria do passado:

    A durao interior a vida contnua de uma memria que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem incessantemente crescente do passado, seja, de forma mais provvel, porque testemunha, por sua contnua mudana de qualidade, a carga sempre mais pesada que arrastamos atrs de ns medida que envelhecemos mais. Sem essa sobrevivncia do passado no presente, no haveria durao, mas apenas instantaneidade. (BERGSON, 2006, p.207-208).

    Lvinas definir mais tarde a durao, em DMT, da seguinte forma:

    O tempo originrio chama-se durao, devir em que cada instante carrega todo o passado e est prenhe de todo o porvir. A durao vivida atravs de uma descida em si. Cada instante est a, nada definitivo, porque cada instante refaz o passado. (LVINAS, 2003b, p. 77).

    O pensamento de Bergson, atravs da reflexo da durao, permitiu a compreenso de uma realidade fluida, em que tudo contnuo, colocando em questo o determinismo e a estagnao da substncia, privilegiando o movimento e a novidade: [...] a durao criao. (LVINAS, 2009, p.72, traduo nossa)28.

    Com Bergson, ocorre uma ruptura paradigmtica em relao ao tempo que, para Lvinas, deixa de ser [...] uma eternidade que se quebrou, ou a falha do eterno, sempre referindo-se ao slido, mas, pelo contrrio, o prprio acontecimento do infinito em ns, a prpria excelncia do bem. (POIRI, 2007, p.62). O pensamento bergsoniano propicia a abertura de novo mbito na problematizao da noo do ser. Segundo Lvinas, [...] foi Bergson quem nos ensinou a espiritualidade do novo, o libertado do fenmeno para um . (LVINAS, 2007, p.16).

    Para Lvinas, em que pesem as profundas diferenas que as afastam, a concepo da temporalidade finita do Dasein de Heidegger tributria significao bergsoniana do tempo (LVINAS, 2007, p.16). As contribuies de Bergson no se restringem ao pensamento de Heidegger, alcanando toda a filosofia fenomenolgica e a filosofia existencialista, conforme a seguinte elaborao de Lvinas em DEHH:

    28 [] la dure est cration.

  • 37

    Bergson j possui, sob a noo de vida ou de durao, a noo de uma existncia que nos parece decalcada da transitividade do pensamento e que, segundo ns, constitui o grande contributo da filosofia fenomenolgica e existencialista, no sentido amplo do termo, para a filosofia. (LVINAS, 1997a, p.124).

    O pensamento levinasiano, tambm, apresenta marcas produzidas pelas influncias das intuies de Bergson, pois se desenvolveu em um contexto de questionamento do ser e em uma perspectiva diacrnica, se distanciando da forma sincrnica caracterstica da sntese racional. Costa destaca que:

    A concepo bergsoniana do tempo como durao e seu questionamento da noo do ser influenciam na formulao de algumas categorias fundantes da tica de Lvinas: tempo como diacronia e meta-fsica (sic) como diferentemente de ser, de no-ser (sic) e de saber. (COSTA, 2000, p.36).

    Nesse sentido, destacamos a afirmao de Lvinas, em entrevista a Saint-Cheron, considerando a percepo bergsoniana do tempo inserida no domnio da relao com o Outro, entendendo-a como uma categoria afeita ao prprio mbito espiritual: O tempo, em Bergson, o real que perdeu seu carter perecvel para se tornar esprito. A temporalidade afinal de contas amor do outro. A durao bergsoniana a dimenso na qual se aloja a aproximao do outro. A teologia a base da durao. (SAINT-CHERON, 2006, p.38, traduo nossa)29.

    No que se refere questo de Deus, em As duas fontes da moral e da religio, livro de 1932, Bergson identificar o tema de Deus atividade criadora. No mbito da religio, Bergson enfatizar a experincia dos grandes msticos (So Francisco de Assis, Teresa de vila, etc.), caracterizada pela transposio dos limites da materialidade, atravs da identificao com o prprio impulso vital criador: Aos nossos olhos, o desfecho do misticismo uma tomada de contacto (sic) e, por conseguinte, uma coincidncia parcial com o esforo criador que a vida manifesta. Este esforo de Deus, se no for o prprio Deus. (BERGSON, 2005, p.187).

    Na obra DE, Lvinas, sem mencionar diretamente Bergson, distinguir na identificao de Deus como Criador a tentativa de ultrapassamento do ser, mas tal tentativa ser por ele criticada, em razo da manuteno da questo ainda na esfera do ser:

    O impulso para o Criador traduzia uma sada mais alm do ser. Mas a filosofia ora aplicava a Deus a categoria de ser ora o encarava enquanto Criador; como se se pudesse ultrapassar o ser aproximando-se de uma actividade (sic) ou imitando uma obra que consiste precisamente em a chegar. O romantismo da actividade (sic) criadora est animado duma necessidade profunda de sair do ser, mas manifesta

    29 Le temps chez Bergson, c'est le rel que a perdu son caractre prissable pour devenir esprit. La temporalit

    en fin de compte est amour d' autrui.La dure bergsonienne, cest la dimension dans laquelle se loge lapproche dautrui.La thologie est la base de la dure.

  • 38

    apesar de tudo a conotao sua essncia criada e os seus olhos esto fixos no ser. (LVINAS, 2001a, p.84).

    Na tematizao de Deus, Lvinas percorrer um vis distinto do caminho bergsoniano, buscando a significao de Deus fora da ontologia, fora dos domnios do ser.

    2.2.1.2 Durkheim metafsico

    Outro pensador que desperta o interesse de Lvinas, nos primeiros anos de Estrasburgo, Durkheim, pensador francs, considerado um dos pais da sociologia moderna, juntamente com Marx e Weber. Durkheim alterou a perspectiva do pensamento sociolgico atravs da definio e do tratamento cientfico destinado aos fatos sociais, inaugurando, dessa forma, um novo modelo de sociologia, [...] partindo da idia-fora (sic) de que o social no se reduz soma das psicologias individuais. (LVINAS, 2007, p. 15). Segundo Durkheim, os fatos sociais [...] consistem em modos de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivduo e dotados de um poder de coero em virtude do qual se lhe impem. (DURKHEIM, 1960, p.3). Para Lvinas, o pensamento de Durkheim adquire um status metafsico com: A idia (sic) de que o social a prpria ordem do esprito, nova intriga no ser acima do psiquismo animal e humano [...]. (LVINAS, 2007, p.15). Lvinas marcado pelo pensamento de Durkheim, que considera em determinado sentido [...] uma teoria dos nveis do ser; da irredutibilidade dos nveis entre si [...]. (LVINAS, 2007, p.15).

    Se as teorias de Durkheim influenciaram o jovem Lvinas, na obra EE, Lvinas avaliar criticamente a noo de sagrado engendrada por Durkheim, destacando nela a permanncia da insuficiente relao sujeito-objeto: Se em Durkheim o sagrado sobressai ao profano (pelos sentimentos que ele provoca), esses sentimentos permanecem os de um sujeito diante de um objeto. (LVINAS, 1998a, p.70). A posio de Durkheim, identificando Deus na impessoalidade do sagrado nas religies primitivas ser contestada por Lvinas da seguinte forma: A impessoalidade do sagrado nas religies primitivas - que, para Durkheim o Deus ainda impessoal, de onde sair um dia o Deus das religies evoludas - descreve, muito ao contrrio, um mundo onde nada prepara a apario de um Deus. (LVINAS, 1998a, p.71).

    Na impessoalidade Lvinas identificar a noo do h, a existncia sem existente, noo que, ao contrrio de nos encaminhar ao sagrado, nos [...] reconduz ausncia de Deus, ausncia de todo ente. (LVINAS, 1998a, p.71).

    Alguns aspectos do pensamento de Durkheim, como a teoria dos nveis do ser (que em determinado sentido, Lvinas identificava em Durkheim), alcanariam, segundo Lvinas:

  • 39

    o seu sentido no contexto husserliano e heideggeriano (LVINAS, 2007, p.15), contexto que ser examinado a seguir.

    2.2.2 O encontro com Husserl e Heidegger

    A aventura fenomenolgica foi um caminho incontornvel (POIRI, 2007, p.62) no pensamento de Lvinas. Ao trmino de seus estudos, Lvinas encontra em Husserl [...] o sentido concreto da prpria possibilidade de sem, no seu conjunto, ficar fechado num sistema de dogmas, mas ao mesmo tempo sem correr o risco de avanar por intuies caticas. (LVINAS, 2007, p. 17).

    A descoberta de Husserl se d atravs da leitura de Recherches logiques, livro indicado pela jovem colega de Estrasburgo, Gabrielle Peiffer, com a qual Lvinas compartilharia, anos mais tarde, a traduo do alemo para o francs de Mditations cartsiennes, obra de autoria de Husserl, publicada pela Editora Armand Colin, em 1931.

    O aprofundamento no estudo das teorias fenomenolgicas tem seu incio em 1927, atravs das aulas de [...] Jean Hring, ex-aluno de Husserl e pesquisador da Universidade de Estrasburgo [...]. (Ribeiro Jnior, 2005, p.31). A abertura de novos horizontes ao pensamento, contida nas ideias do filsofo alemo, leva Lvinas a eleger a filosofia de Husserl como a matriz terica em seus estudos de doutorado.

    Nos anos de 1927 e 1928, Lvinas frequentar os cursos de Husserl e Heidegger, na cidade alem de Friburgo-Braisgau30. Na busca pela fenomenologia de Husserl, Lvinas colocado, tambm, diante de Heidegger e da sua obra Ser e Tempo, obra que lhe causa profundo impacto: [...] tive a impresso de que fui at Husserl e descobri Heidegger. (POIRI, 2007, p.64). O encontro com as anlises de Heidegger influenciou e direcionou a recepo levinasiana no que diz respeito fenomenologia de Husserl.

    2.2.2.1 O mtodo fenomenolgico de Husserl

    No regresso a Estrasburgo, Lvinas publica em 1929, aos 22 anos de idade, na Revue philosophique de la France et de ltranger, seu primeiro artigo sobre Husserl: Sur les ideen de M.E. Husserl. A tese de doutorado de Lvinas, em filosofia, defendida e publicada em 1930: Thorie de lintuition dans la phnomnologie de Husserl. A proposta de Lvinas era [...] estudar e expor a filosofia de Husserl como se estuda e expe uma filosofia vivente.

    30 Em alemo: Fre