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do poema nasce o poetacriação literária, trabalho e subjetivação

joão batista ferreira

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prefácio

Ana Magnólia Mendes

a obra Do poema nasce o poeta: criação literária, trabalho e subjetivação é a constatação do trabalho vivo e de toda sua potência para a constituição do sujeito. o autor, um poeta, traduz sua subjetividade em cada uma das palavras usadas, se enuncia e revela o impronunciável. com delicadeza e afeto leva o leitor a uma viagem pelo mundo do trabalho e seus descami-nhos. Retrata a criação literária como trabalho vivo, um encontro possível com o real, mobilizador das pulsões e motivo para ressignificar a angústia, o medo e a insegurança presentes no sofrimento que o real nos impõe.

apresenta e defende a ideia que o referencial teórico da psicodinâ-mica do trabalho permite analisar o fazer literário como manifestação do poder constituinte do trabalho vivo que, ao realizar o encontro com o real, possibilita o processo de constituição do sujeito.

ao longo da leitura, encontra-se uma bela discussão sobre o trabalho de criação literária, as vivências de prazer e sofrimento e as estratégias de mobilização utilizadas neste trabalho, dimensões consideradas centrais para compreender o processo de subjetivação.

Identificam-se pressupostos explícitos e subjacentes que fundamen-tam a ideia do nascimento do poeta a partir do poema. o autor argumenta que o ato de criação possibilita a transformação do mundo e do próprio sujeito; é uma ação que produz reconhecimento social e inscrição na pos-teridade; e questiona a ordem institucional, social e do conhecimento por meio do encontro com o real e com o inesperado. Defende que o fazer artístico é uma manifestação da potência do processo de criação do tra-balho vivo; possibilita a subjetivação, a enunciação do efêmero sentido do trabalho e do existir; e pode ser utilizado como instrumento de crítica aos modelos sociais e ao trabalho alienado. por fim, afirma que o trabalho de criação literária é um modo de buscar e constituir espaços da palavra e da discussão sobre a existência humana e as adversidades do mundo, é uma ação que incorpora o percurso do seu fazer e da constituição do sujeito.

a psicanálise muito contribui com este percurso e encontra-se pre-sente em praticamente todos os capítulos. o autor estabelece uma articu-

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lação entre este referencial e a psicodinâmica do trabalho, aprofundando conceitos e propondo novas formulações, contribuindo assim para fortale-cer este campo de estudos no Brasil.

estas contribuições são fundamentalmente conceituais. o autor trata da subjetivação no trabalho, ao afirmar que “no percurso de pesquisa, foi possível perceber o quanto os escritores também se espantam, ficam fasci-nados e sofrem com o próprio processo de criação literária”.

este enunciado confirma a importância da experiência do real, que coloca o sujeito em ação por permitir a mobilização subjetiva diante do que não pode ser alcançado. assim, emerge o sujeito da falta, do desejo, que busca prazer e reconhecimento, que se mantém mobilizado para buscar o que sabe que não vai encontrar. a incompletude que o real impõe constitui o sujeito que se encontra permanentemente entre o prazer e o sofrimento, a servidão e a emancipação, o trabalho vivo e o trabalho morto, o sujeito que hesita, tem conflitos e se enuncia ao se mobilizar diante desta falta.

nesta direção, o autor ao analisar a situação de trabalho do escritor se depara com uma vivência que se dá com o inesperado e com a dificuldade de simbolização. avança as discussões da psicodinâmica propondo a noção de pré-escrito primário e secundário, distinguindo um ordenamento sim-bólico e outro imaginário. aprofunda os conceitos de ressonância sim-bólica e mobilização subjetiva, propondo um processo de mobilização da ressonância subjetiva, que reafirma a ressonância simbólica como potência da mobilização subjetiva. também traz o termo sabedoria criativa para discutir a inteligência prática. propõe a distinção de dois tipos de saber-fazer: “um instrumental, que opera a partir dos aspectos mais diretamente ligados à organização do trabalho, é formatado pela lógica da otimização de resultados, que pode desconsiderar aspectos éticos e reflexos na saúde das pessoas. o segundo tipo - saber fazer com o real - está relacionado ao trabalho com o inesperado”.

além destas, merece destaque a crítica que o autor faz ao trabalho alie-nado. Futuros estudos sobre a enunciação do sujeito nos diferentes tipos de trabalho como o criativo, mecanicista e burocrático podem contribuir para fortalecer esta crítica e para o aprofundamento e sistematização da teoria do sujeito na psicodinâmica do trabalho.

por fim, o autor diferencia três formas de prazer no trabalho do escri-tor relacionadas ao encontro com o outro, a invenção e ao prazer da disso-nância. “o prazer da dissonância foi identificado na experiência de ruptura

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com as estruturas subjetivas que limitam a autonomia, no fascínio de criar outra linguagem, associado ao prazer da significação. a ressonância com o desejo é potencialmente dissonante das formas estabilizadas de constitui-ção subjetiva, evidenciadas no poder constituído do trabalho morto”.

estas contribuições nos deixam muito gratos ao autor. sua capaci-dade de elaboração, análise e crítica é bem vinda e certamente provocará muitas discussões que ainda precisam ser realizadas pelos pesquisadores em psicodinâmica do trabalho no Brasil. acreditamos que o estudo da mobilização subjetiva deve ser o centro das pesquisas em psicodinâmica do trabalho, vez que mesmo em trabalhos automatizados e precarizados esta mobilização é vivenciada. o trabalhar assume um sentido de estru-turante psíquico para o sujeito. sem esta mobilização, presente no fazer, restará o adoecimento. o real angustia, mas é por meio dele que o sujeito se conecta consigo mesmo e com os outros. negar o real é negar o sujeito. o autor denuncia claramente esta função do real. ao falar do trabalho do escritor, fala de si mesmo, da sua vivência, da sua subjetividade. a obra (in) acabada é a prova da potência do trabalho vivo.

para finalizar, declaro a prazerosa sensação de ler este livro. o impro-nunciável assume um sentido nas palavras do poeta e mobiliza o pensar, e mais, nos faz sentir vivos. os mistérios do trabalho vivo tornam-se visíveis na linguagem do poeta. a angústia diante do real aos poucos se transforma na mobilização que ressignifica o sofrimento e nos move para busca do prazer. o trabalho assume finalmente sua essência e o leitor viaja calma-mente na poesia presente nas palavras do poeta.

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convite ao leitor

Uma das coisas que me encanta em O jogo da amarelinha de Júlio cortázar são suas possibilidades de leitura, indicadas no início do livro com a suges-tão: “À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. o leitor fica convidado a escolher (...)”.

convido você a participar de um jogo semelhante. primeira possibili-dade: seguir do capítulo 1 ao 7. saltar os capítulos não numerados que não aparecem no sumário.

a segunda: ler os capítulos na sequência em que aparecem. Você vai se deparar com uma situação que se esclarecerá ao final do livro.

a terceira: ler os capítulos sem número e depois seguir a sequência numerada.

Boa leitura.

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1. Um sopro de vida

Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o

diga infinitamente e não a compreendemos ou a compreendemos, mas é intraduzível como uma música.

jorge luis borges, O fim

Há uma hora ao cair da tarde em que o trânsito se faz mais intenso. Uma incerta hora em que as sombras aos poucos encobrem os movimentos da rua, das pessoas que voltam para casa depois do trabalho, imersas no rumor de buzinas próximas e distantes, no rumor estridente das motos que deslizam nos corredores estreitos da massa de veículos, por dentro da atmosfera morna e enfumaçada suspensa no ar.

Da janela do apartamento, diante do abismo de ruídos, acompanho o fluxo lento da veia aberta da cidade, do aglomerado que mal sabe de si, entregue à circulação automática de imagens borradas, ao surdo movi-mento dos motores, à indiferença dos rostos anônimos contidos pelos sinais fechados.

a cidade se movimenta. mas parece estagnada sobre si mesma. a cidade interrogada no andar impassível das pessoas. caminham em dire-ção a lugares que parecem não existir. a cidade interrogada na vertigem da fome dos meninos desde sempre estirados na calçada. as ruas interrogadas no estampido próximo-distante das balas perdidas, que vez ou outra atra-vessam céus, estilhaçam vidros e paredes e por breves instantes despertam o medo que vive anestesiado em algum canto obscuro da alma das pessoas.

a cidade moldada por histórias anônimas de trabalhos invisíveis perdidos no tempo. Histórias jamais escritas. Fragmentos de histórias invisíveis que, por insondável desígnio, se misturaram aos fragmentos de pedras, aos muitos caminhões de areia e aos infinitos sacos de cimento. se misturaram às construções que foram ganhando o espaço e aos poucos se

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transformaram na materialidade crua e inerte das paredes, portas, janelas, pisos, soleiras.

no tempo lento de uma composição improvável, as invisíveis histó-rias foram redesenhando a paisagem ocupada por inúmeras casas, depois incontáveis e sombrios edifícios e, mais tarde, por torres espelhadas mini-malistas que, mais do que refletir a paisagem, parecem ofuscá-la.

até o incerto momento em que o aglomerado geométrico e asséptico de paredes desconstruiu a irregularidade sinuosa dos caminhos por den-tro da mata. esquecidos caminhos que sucumbiram ao espesso tecido de asfalto. a lenta composição recortou a paisagem, uma parte silenciosa do mundo que um dia esteve conectada ao sem-fim do mar aberto, uma parte silenciosa do mundo que nem se sabia tão vasto.

me volto para o pequeno espaço do mundo de dentro. na sala do apar-tamento há livros abertos, cadernos com anotações, cópias de textos. Retomo fragmentos de ideias. Releio a frase sublinhada no livro de capa marrom. pressiono as teclas e na tela branca vão se materializando letras, palavras, frases. a escrita incorpora, para além dela mesma, uma claroculta história de suas origens. surge a frase: “eu trabalho com o inesperado”, e o nome da autora: clarice Lispector (1978, p. 14), e o título do livro: Um sopro de vida.

ao longo das leituras para este percurso fui capturado por esta frase-síntese. ao ressaltar a dimensão do inesperado na experiência humana, a frase evidencia o aspecto central do trabalho como fazer da criação. na complexa articulação da experiência do inesperado com o trabalho está uma das chaves deste estudo.

o título do livro (Um sopro de vida) também fornece outro elemento para a articulação conceitual entre subjetividade, trabalho e ação, com a qual procuramos dar forma à experiência de sentir-se vivo. Uma das ações humanas que mais potencializa isso é caracterizada como trabalho vivo, termo cunhado por marx para se referir ao trabalho não-alienado. este aspecto é importante como referência inicial para nosso percurso.

a expressão trabalho vivo é resgatada aqui por sua possibilidade de articulação com o poder constituinte do sujeito. não pretendemos utilizar categorias marxistas relacionadas ao trabalho, mas aspectos que entende-mos próximos do nosso percurso e, sempre que o fizermos, vamos delimi-tar esse uso. assim, o trabalho vivo será entendido, com base na psicodi-nâmica, como a ação de trabalhar que implica o poder de sentir, pensar e inventar, um saber-fazer, como propõe Dejours (2004a).

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em contraponto ao trabalho vivo, marx refere-se ao trabalho morto como reflexo da alienação, que retira do sujeito a possibilidade inventiva, silenciando sua voz. Quando olhamos ao redor, para o tempo que nos foi dado viver, muitas vezes nos deparamos com paisagens humanas imer-sas no silêncio. em contraponto aos exuberantes avanços tecnológicos e à complexa gestão de processos, as paisagens da contemporaneidade e do mundo do trabalho são marcadas pelo sofrimento e por diversas formas de patologias. entre elas, os comportamentos adoecidos que costumam ficar na parte invisível do iceberg organizacional, social e econômico.

Dimensão oculta que configura dinâmicas sociais e econômicas orien-tadas pela racionalidade financeira que exacerba e articula, nem sempre de modo dissimulado, lógicas perversas do tipo os fins justificam os meios e a busca sem limites de ganhos de produtividade – ainda que ao custo da destruição do meio ambiente e da saúde das pessoas. Lógicas que se sobre-põem às iniciativas e discussões que buscam racionalidades fundadas na ética e na política.

nesse contexto, há um caldo fértil para o incremento do individua-lismo, neutralização da mobilização coletiva, utilização de estratégias defensivas como apatia, cegueira e surdez diante das imagens, vozes e afe-tos relacionados ao próprio sofrimento e ao sofrimento dos outros. Um caldo fértil para adoecimentos físicos, psíquicos e das relações sociais e de trabalho, como o crescimento desmesurado das situações de constrangi-mentos, ameaças e desqualificações.

os efeitos desse contexto para a saúde mental – apontados em estudo da organização mundial de saúde e da organização Internacional do trabalho – sinalizam cenários sombrios para os próximos anos, decorren-tes do impacto das novas formas de gestão do trabalho: predomínio das depressões, estresse, ansiedade e outros danos psíquicos (Blanch, 2005).

a eclosão da crise econômica mundial em 2008 representou o agrava-mento dessas adversidades. com a redução dos empregos, a exacerbação do individualismo e a consequente desestruturação da solidariedade, as novas formas de patologias relacionadas ao trabalho são, hoje, patologias da solidão e do silêncio, como a violência psicológica e o assédio moral (Dejours, 2004b; mendes, 2008 e Ferreira, 2009).

Inúmeros filmes abordam questões dessa natureza. o documentário The Corporation (2003) explicita o pragmatismo frio das organizações, mentoras e, ao mesmo tempo, submetidas à lógica de não-admissão das

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responsabilidades pelo sofrimento e o mal infligidos aos trabalhadores e à sociedade. Trabalho Interno (Ferguson, 2010) aborda o poder do sistema financeiro norte-americano e seu papel perverso na crise de 2008. o futu-rista e virtualizado The Matrix (Wachowski, 1999) funciona como metáfora do modelo produtivo que cria uma realidade manipulada e nos induz a acreditar nela (Felluga, 2003). Blade Runner (scott, 1982) e Dogville (trier, 2003) são versões atualizadas das absurdas alegorias kafkianas. Limitam a liberdade, produzem submissão à lógica cega dos ambientes de controle, opressão burocrática, alienação, violência, servidão consentida ou voluntá-ria e uma generalizada deficiência de significado (Heller, 1999). tais ale-gorias projetam nas telas os cenários dos tempos modernos marcados por turbulências nas dimensões sociais, políticas e culturais que incidem sobre o contrato social e as relações de trabalho.

a crescente fragmentação da sociedade, dividida em múltiplos apar-theids econômicos, sociais, políticos e culturais, torna sem sentido a luta pelo bem comum. Desaparece a solidariedade na vida cotidiana. o indi-vidualismo se incorpora à nossa percepção dos fenômenos, conflitos e relações. a violência urbana – e seus derivados nas relações pessoais e de trabalho – são exemplos paradigmáticos dessa turbulência que remete à iminente e imprevisível explosão de conflitos (santos, 1999b).

o trabalho, dessa forma, vai deixando de sustentar a cidadania e vice-versa. perde a função de produtor e produto da subjetividade, reduz-se a um fardo pesado. Vai desaparecendo das referências éticas que sustentam a autonomia e a autoestima. este cenário complexo mostra os desafios imen-sos para a manutenção da saúde mental nas relações sociais e de trabalho na contemporaneidade (Ferreira e mendes, 2003). Isso demanda uma busca permanente para tentar desvelar os processos de alienação que tornam ainda mais fragmentados os sentidos do trabalho e as relações entre as pessoas.

a psicodinâmica busca articular o trabalho e o funcionamento sub-jetivo e intersubjetivo. em sua metodologia, o estatuto da linguagem, do discurso, do texto e das interações com o outro são analisados no reco-nhecimento ou negação da dimensão incompreensível do trabalho e na dinâmica paradoxal de aproximação e tensão do singular com o coletivo.

enfatizar a centralidade do trabalho para o funcionamento psíquico implica considerar a relação entre trabalho e processos de subjetivação. neste sentido, a mediação entre o individual e o social alcança uma enig-mática dimensão psíquica. a experiência do trabalhar assume, assim, ainda

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que sob o signo inexorável da transitoriedade, a “condição transcendental de manifestação absoluta da vida” (Dejours, 2004a, p. 29).

Diante da complexidade do mundo contemporâneo, a reflexão sobre o trabalho como manifestação da vida demanda investigações perma-nentes e maior aprofundamento. na literatura, a maioria dos estudos em psicodinâmica está voltada para trabalhos formais, que envolvem em sua análise a complexidade do mundo das organizações. a escolha do traba-lho de criação literária para este estudo considera também a inexistência de estudos concluídos sobre essa categoria com base na psicodinâmica. e considera, sobretudo, que o trabalho de criação literária, um trabalho artístico, oferece a possibilidade de contato com uma dimensão privile-giada da experiência de trabalho como fazer da criação, parte central do objeto deste percurso.

o fazer literário é uma das mais antigas e conhecidas formas de arte. ao longo da história, a criação de inúmeros autores alcançou espaços cole-tivos para além do seu tempo. o fazer desses escritores mostra o quanto o trabalho não-alienado possibilita a conexão do sujeito com o mundo, a ponto de transcender sua própria existência.

afirmar a vida é um ato ético-político. nesse sentido, menger (2005) refere-se às reflexões de marx sobre o fazer artístico como crítica social, des-critas nos Manuscritos de 1844. a atividade artística, entendida por ele como trabalho, é utilizada para fundamentar a crítica contundente ao trabalho alienado. ao possibilitar maior liberdade de ação, o fazer artístico amplia o poder do trabalho como criação e fator constituinte da condição humana.

marx foi um dos principais teóricos do mundo do trabalho. com a visão de que o ser humano é autor e intérprete de seu destino, produziu as primeiras e significativas análises das consequências do capitalismo para o ser humano, que atualmente denominamos produção da subjetividade. propôs o conceito de alienação, processo no qual o trabalho-mercadoria não possui valor nem sentido. as pessoas não exercem sua liberdade e cria-tividade, o que resulta na falta de sentido que se estende para o mundo.

no livro Retrato do artista enquanto trabalhador, menger (2005) afirma que autores contemporâneos herdeiros do marxismo, como Wright mills ou andré Gorz, identificaram nessa vertente um campo de reflexões sobre a potencialidade do trabalho livre na emancipação das pessoas. na mesma linha, cornelius castoriadis (citado por menger, 2005) identifica na pro-dução do artista e do pesquisador atividades de criação incertas quanto

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aos seus resultados. artistas e pesquisadores frequentemente se deparam com o inusitado, com a fronteira das paisagens perturbadoras que colocam em jogo a predição científica, o conhecimento, a técnica e – em primeira e última instância – os modos de existir e de olhar o mundo.

negri (2002) afirma, com base em marx, que o trabalho vivo é dotado de uma potência constituinte do sujeito, no sentido de que “transforma, antes de tudo a si mesmo” (p. 450). a experiência do inusitado abre espaço para a realização da potência constituinte do trabalho vivo (op. cit.). expe-riência que se defronta cotidianamente com a normalidade e a cultura. a compreensão marxista do trabalho transformou-se no “núcleo central do complexo determinativo que caracteriza as individualidades humanas e de onde se desdobraram todas as suas manifestações” (soares, 2008, p. 491). esse referencial, no entanto, apresentou um quadro relativamente simpli-ficado do psiquismo humano e demandava ampliações. os primeiros a explicitar tais lacunas foram os integrantes da escola de Frankfurt.

a teoria freudiana foi resgatada por esses pensadores como possibi-lidade de expansão do campo de análise da abordagem marxista. ao des-velar a oposição entre desejo e razão, a teoria psicanalítica oferecia uma articulação teórica fundamental para a teoria crítica se debruçar sobre a complexidade da dinâmica social. com essa interlocução, ficou claro para os frankfurtianos que as reflexões sobre a subjetividade não poderiam se desenvolver somente com base em categorias sociais e econômicas. mas também ficou evidente que não se deveria cair na armadilha de descrever a dinâmica social somente em termos psicológicos. essa visão ampliada inaugurou um novo momento das reflexões sobre o processo de subjetiva-ção, que ganharam cada vez mais relevância.

amar e trabalhar – Lieben und arbeiten. a célebre síntese freudiana surgiu como resposta ao questionamento sobre o que uma pessoa normal – complexo ou mesmo impossível conceito – deveria fazer bem. ou estabe-lecer laços e produzir, na formulação de Lacan. tais proposições sintetizam necessidades e gratificações essenciais relacionadas ao amor e ao trabalho. não por acaso, referem-se a dimensões da experiência traduzidas em ver-bos e a ações constitutivas da vida humana.

no livro O mal-estar na cultura (1930/2010), o trabalho é identificado por Freud como a ação humana que mais firmemente nos vincula à rea-lidade. no entanto, a relação com o trabalho é paradoxal, sendo também fonte de conflitos e sofrimento, o que sinaliza a necessidade do desenvol-

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vimento de abordagens teóricas que discutam a dinâmica da subjetivação instaurada nas situações de trabalho.

a criação artística – e de modo especial a criação literária – também foram utilizadas pela psicanálise como referência para a compreensão da ati-vidade psíquica. o processo de criação literária, descrito em Escritores cria-tivos e devaneio (Freud, 1907/1976), foi adotado como modelo para a análise da função do fantasiar na produção da realidade, como mostra Rivera (1995), o que constitui abordagem instigante da construção teórica da psicanálise.

mesmo considerando que as proposições freudianas e as marxistas foram constituídas com base em pressupostos e contextos teóricos diferen-tes, ambas oferecem elementos inovadores e importantes para estudarmos o fazer da criação como dimensão fundamental da potência constituinte do trabalho vivo.

a frase de clarice (“eu trabalho com o inesperado”) é um ponto de partida para refletirmos sobre o fazer literário como trabalho não-alie-nado, como ação humana de criação e transformação do mundo e do próprio sujeito. ação constituída na experiência com o inesperado, com a diversidade-adversidade do encontro com o outro. o trabalho vivo enten-dido como “ato poiético, o momento da potência e a potência da criação” (antunes, 2009, p. 16).

a frase da escritora sintetiza a criação literária como trabalho vivo. com base nela, nos lançamos neste percurso que será atravessado pelas seguintes questões: o fazer literário possibilita reflexões sobre o trabalho como experiência essencial para a criação e a transformação do mundo e do sujeito? o fazer literário pode ser utilizado como referência para uma crítica social e do trabalho?

como indica christophe Dejours (2007a), é no encontro com a expe-riência do inusitado, com o real – entendido como a parte da realidade que resiste à simbolização – que uma momentânea verdade se constitui. tal pers-pectiva aproxima a criação literária da compreensão mais ampla do trabalho como situação que possibilita sentir, pensar e inventar a existência humana.

em nosso percurso a psicodinâmica será utilizada como referencial teórico, abordagem que incorpora aspectos das proposições marxistas e, de modo mais significativo, influências da psicanálise. a psicodinâmica oferece elementos para a investigação do nosso objeto de estudo: o traba-lho de criação literária e seus reflexos nos processos de subjetivação. De modo análogo ao que acontece com a psicanálise, entendemos que o fazer

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da criação literária oferece contribuições para a psicodinâmica que está em contínuo desenvolvimento.

a premissa aqui adotada se distancia das abordagens que identificam a criação artística e a literária como idealização do artista e de seu trabalho, e identifica nestas atividades espaços privilegiados para discutir o traba-lho como produção de sentido. entendemos a criação literária como ação que evidencia a potência constituinte do sujeito pelo trabalho vivo. como desdobramento disso, estudar a criação literária fornece elementos para a discussão das relações entre trabalho, ação, saúde e a teoria do sujeito na psicodinâmica, conforme necessidade identificada por Dejours (2004a).

assim, analisaremos a criação literária como trabalho, buscando construir relações com o processo de subjetivação, com base na psicodinâ-mica. nossos objetivos específicos consistem em caracterizar a situação de trabalho da criação literária; descrever as vivências de prazer e sofrimento dos escritores; identificar o processo de engajamento subjetivo referente à ressonância simbólica, mobilização subjetiva e sabedoria criativa; discutir aspectos do processo de subjetivação dos escritores; e investigar as pos-sibilidades de ampliação do diálogo da psicodinâmica do trabalho com noções psicanalíticas relacionadas ao processo de subjetivação.

para investigar esses aspectos analisamos entrevistas e depoimentos de escritores publicadas no Brasil nos últimos 25 anos. o critério para a escolha desses escritores conjugou dois aspectos: autores que consolida-ram seus trabalhos e foram reconhecidos por sua contribuição no espaço contemporâneo da literatura brasileira, hispano-americana e de outros países; autores que abordaram aspectos do trabalho de criação literária de modo significativo nas entrevistas. suas biografias sucintas estão descritas no final do livro.

neste percurso, abordaremos o trabalho como elemento central da existência humana; vamos caracterizar os sentidos do trabalho no mundo contemporâneo; apresentaremos os conceitos da psicodinâmica com os quais delimitamos a dimensão criadora do trabalho e suas implicações para o processo de subjetivação; discutiremos o fazer literário como traba-lho, buscando interlocuções com a psicanálise; apresentaremos o método utilizado e discutiremos trechos das entrevistas com base nos processos criativos dos escritores, no processo de subjetivação e no referencial da psi-codinâmica e da psicanálise; com a proposição de conceitos que ampliam a compreensão da psicodinâmica e do próprio trabalho de criação literária.

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