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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Dílson Wrasse Análise reconstitutiva do sentido da dialética em Lev Vigotski DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Dílson Wrasse

Análise reconstitutiva do sentido da dialética em Lev Vigotski

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Dílson Wrasse

Análise reconstitutiva do sentido da dialética em Lev Vigotski

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção de título de Doutor em

Psicologia Social, sob a orientação da

Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia.

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2017

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos

Agradeço aos/às amigos/as do Núcleo de Pesquisa Dialética de Exclusão/Inclusão

Social que me proporcionaram tantas alegrias instigantes para aprender mais.

Agradecimento especial à Elisa que sempre teve a paciência de me ouvir e me

apoiar nesta empreitada. À Flávia, pelas boas conversas.

Agradeço à Professora Bader Sawaia pela coragem e disposição – eu poderia ter

procurado mais para entender melhor.

Aos colegas do Programa de Psicologia Social e em especial ao Tiago que tão

generosa e insistentemente nos ensina a crítica crítica crítica.

Aos professores da banca: Odair Furtado, Luís do Nascimento, Daniele Nunes e

agradecimento especial à professora Maria do Carmo pelos manuscritos.

Ao filósofo Eduardo Gross que tão generosamente se dispôs a se aventurar nesta

área.

Aos meus amigos que me perguntam pelo porquê de tanto esforço para o estudo

neste momento.

A minha irmã Sônia e ao meu cunhado Walmor – vocês são especiais!

À professora Maria Mascarello (in memoriam) um agradecimento pela sua

existência. Depois de uma tese entendi a sua posição de educadora dialética. Foi

uma admiradora de Feuerbach – somente agora entendi a educação pela pedra.

As perguntas não cessam e descobri que é melhor não se ater muito a elas.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela

bolsa concedida e que tornou possível a realização desse sonho.

Aos meus filhos – Gabriela e Frederico - que talvez entendam um dia este esforço.

Nestes tempos, muitas vezes, não estive presente como deveria.

A você que sempre foi companheira e que compreendeu silenciosamente minhas

inquietações, minhas alegrias, minhas dores e meus anseios. Aqui ofereço o que

sou. Seu nome é Regina.

A minha mãe que não entende as razões de um filho que se prende tanto às letras.

Obrigado a todas e todos!

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RESUMO

Este trabalho analisa o conceito de dialética em Lev Semionovich Vigotski (1896-1934), considerando o conjunto de sua obra e os seus fundamentos gnosiológicos e epistemológicos para a construção de uma psicologia dialética.

Para isso, dividimos o trabalho em um capítulo inicial seguido de três partes: no capítulo inicial, enfatizamos especialmente o método hermenêutico a ser utilizado para análise das obras do autor, considerando que a maior parte do acervo continua na língua russa, parcialmente traduzido na língua inglesa e espanhola e uma seleção razoável na língua portuguesa.

Na primeira parte, “O estado da arte da hermenêutica vigotskiana”, apresentamos análises sobre o contexto histórico, a participação intensa do autor com as questões judaicas na Rússia, a biografia, as particularidades das obras e a política de publicização.

Na segunda parte, “As aventuras da Dialética”, discorremos sobre os principais interlocutores filosóficos do autor (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Ilitch Lênin) e o debate sobre a dialética na segunda metade do século XX.

Na terceira parte, apresentamos a análise aprofundada de algumas obras selecionadas e como a lógica dialética e o materialismo histórico dialético se manifestam num processo de amadurecimento especialmente no campo epistemológico.

As disputas entre as gnosiologias idealismo e materialismo qualificam o autor na consolidação de uma psicologia dialética que se dispõe a colaborar com a práxis revolucionária na construção de uma nova sociedade e de um novo ser humano.

Neste trabalho sustentamos a tese de que sem a referência das disputas gnosiológicas e sem os fundamentos do materialismo histórico dialético, Lev Semionovich Vigotski não teria elucidado as limitações metodológicas da psicologia de sua época e nem fundamentado as principais bases metodológicas para compreensão do psiquismo humano.

Palavras-chave: Psicologia Dialética. Vigotski. Materialismo Histórico Dialético

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SUMMARY

The present work analyzes the concept of dialectics at Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) with regard to the body of his work and, on the other hand, his most important theoretical influences in the field of gnoseology and the theory of knowledge, and explains the theoretical foundations for the construction of a dialectical psychology.

Therefore, we subdivide our work into an introductory chapter, followed by three parts: In the first chapter, we particularly emphasize the hermeneutic method used to analyze the works of the author, since the largest part of the collection still exist only in Russian, partly in English and Spanish, and to a lesser extent in Portuguese.

In the first part, "The State of Vigotski´s Hermeneutic Art", we present analyzes of the historical context, the biography, the characteristics of the work and the publicizing policy.

In the second part, "The Adventures of Dialectics", we discuss the most important philosophical conversation partners of the author (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels and Vladimir Ilich Lênin) and the discussion about dialectic in the second half of the twentieth.

The third part presents the detailed analysis of some selected works and shows how the maturation process of the dialectical logic and the historical-dialectical materialism are expressed in the field of epistemology.

The dispute between the two epistemic theories of idealism and materialism qualifies the author in the consolidation of a dialectical psychology, which, together with revolutionary practice, contributes to building a new society and a new human being.

In this work, we support the thesis that Lev Semionovich Vigotski, without referring to the epistemological dispute and without the foundations of historical dialectical materialism, would not have elucidated the methodological limits of contemporary psychology and thus did not create the most important methodological basis for the understanding of the human psyche.

Keywords: Dialectical Psychology. Vigotski. Historical-Dialectical Materialism

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ZUSAMMENFASSUNG

Die vorliegende Arbeit analysiert das Konzept der Dialektik bei Lev Semionovich Vygotsky (1896-1934) im Hinblick auf sein Gesamtwerk und andererseits seine wichtigsten theoretischen Einflüsse auf dem Gebiet der Gnoseologie und der Erkenntnistheorie und erläutert darueberhinaus die theoretischen Grundlagen für die Konstruktion einer dialektischen Psychologie.

Hierzu unterteilen wir unsere Arbeit in ein einfuehrendes Kapitel, gefolgt von drei Teilen: Im ersten Kapitel heben wir besonders die hermeneutische Methode hervor, die zur Analyse der Werke des Autors verwendet wird, da immer noch der groesste Teil der Sammlung ausschliesslichin russischer Sprache vorliegt, nur teilweise auf Englisch und Spanisch und in geringerem Ausmass auf Portugiesisch.

Im ersten Teil, “Die Lage der hermeneutischen Kunst Vigotskis”, stellen wir Analysen ueber den historischen Kontext, die Biografie, die Eigenheiten des Werkes und die Publizierungspolitik.

Im zweiten Teil "Die Abenteuer der Dialektik", eroertern wir die wichtigsten philosophischen Gesprächspartner des Autors (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Luewig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels und Wladimir Iljitsch Lênin) und die Diskussion ueber die Dialektik in der zweiten Hälfte des zwanzigsten Jahrhunderts .

Der dritte Teil stellt die detaillierte Analyse einiger ausgewählter Werke vor und zeigt, wie sich der Reifeprozess der dialektischen Logik und der historisch-dialektische Materialismus im Bereich der Erkenntnistheorie ausdrueckt.

Die Auseinandersetzung mit den beiden Erkenntnistheorien Idealismus und Materialismus qualifiziert den Autor bei der Konsolidierung einer dialektischen Psychologie, die gemeinsam mit der revolutionären Praxis zum Aufbau einer neuen Gesellschaft und eines neuen Menschen beitraegt.

In dieser Arbeit unterstützen wir die These, dass Lev Semionovich Vigotski ohne Bezugnahme auf die erkenntnistheoretischen Auseinandersetzungen und ohne die Grundlagen des historisch-dialektischen Materialismus nicht die methodischen Grenzen der zeitgenoessischen Psychologie aufgeklärt haette und damit auch nicht die wichtigsten methodischen Grundlagen für das Verständnis der menschlichen Psyche geschaffen haette.

Stichworte: Dialektische Psychologie. Vygotsky. Historisch-Dialektischer Materialismus

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КРАТКОЕИЗЛОЖЕНИЕ

В работе анализируется понятие диалектики в понимании Льва Семёновича Выготского (1896 – 1934), ссылаясь на его произведения и на его главные теоретические построения (понятия) в области Гносеологии и Эпистемологии, а также разъясняются теоретические основы построения диалектической психологии.

Для этого мы разделили нашу работу мы на начальную главу и три. последующих части. В начальной главе особенно подчёркивали герменевтический метод, использованный для анализа произведений автора, учитывая то, что большая часть его сочинений доступна только на русском языке, частично на английском и испанском языках и некоторые на португальском языке.

В первой части «Состояние искусства герменевтики Выготского» представляем

анализ исторического контекста, интенсивное участие автора в еврейских

вопросах в России, его биографию, особенности его произведениЙ и политики опубликования. Во второй части “Приключения Диалектики” обсуждаем главных философских собеседников автора (Иммануила Kaнта, Геогрга В. Ф. Гегеля, Людвига Фейербаха, Kарла Маркса, Фридриха Энгельса и Владимира Ильича Ленина) и дискуссию о диалектике во второй половине XX века. В третьей части глубоко анализируем несколько избранных произведениий и показываем как диалектическая логика и диалектический исторический материализм проявляются в процессе созревании Выготского, особенно вэпитемологическоЙ сфере. Споры между гносеалогией, иделизмом и материализмом консолидируют автора с диалектической психологией, которая сотрудничает с революционным праксисом в построении нового общества и нового человека.

В этой работе мы защищаем тезис, что Лев Семёнович Выготский, не ссылаясь на гносеологические споры и на основе Диалектического Материализма, не смог бы ни разъяснить методологических пределов психологии своего времени и ни обосновать главные методологические базы для понимания человеческого психизма.

Ключевые слова: Психология. Диалектика. Выготский. Диалектический материализм.

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“Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto

É que Narciso acha feio o que não é espelho

E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho

Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo

Afasto o que não conheço

E quem vende outro sonho feliz de cidade

Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”

Caetano veloso

Sócrates– Eu também sou muito dado, caro Fedro, a esta

maneira de reduzir e analisar as ideias, pois é o melhor

processo de aprender a falar e a pensar, e sempre que

me convenço de que alguém é capaz de aprender,

simultaneamente, o todo e as partes de um objeto,

decido-me a seguir esse homem como se seguisse as

pegadas de um deus” Em verdade, aos homens que

possuem este talento – se tenho ou não tenho razão ao

dizer isto, o deus o saber! – Sempre os tenho chamado

por ‘dialéticos’.

Platão, FEDRO ou da Beleza.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 23

Capítulo 1: Sobre o Método ..................................................................................... 32

PARTE I – ESTADO DA ARTE DA HERMENÊUTICA VIGOTSKIANA ..................... 46

Capítulo 2: Contexto histórico – Revolução de Outubro de 1917 ......................... 55

Capítulo 3: A questão judaica na Rússia ................................................................ 65

Capítulo 4: Vigotski e seus biógrafos ..................................................................... 80

Capitulo 5: O projeto para publicação das obras completas .............................. 101

Capítulo 6: As obras de L. S. Vigotski e o desafio hermenêutico ....................... 112

Conclusão ............................................................................................................... 127

PARTE II: AS AVENTURAS DA DIALÉTICA........................................................... 131

Capítulo 7: Dialética Transcendental..................................................................... 146

Capítulo 8: Dialética Hegeliana .............................................................................. 153

Capítulo 9: Dialética da Essência Humana ........................................................... 168

Capítulo 10: Dialética Marxiana ............................................................................. 178

Capitulo 11: Dialética da Natureza ......................................................................... 197

Capítulo 12: Dialética da Práxis ............................................................................. 209

Capítulo 13: A Dialética sob crítica ....................................................................... 217

Capítulo 14: Dialética do Esclarecimento ............................................................. 226

Capitulo 15: Dialética da Ontologia do Ser Social ................................................ 234

Capítulo 16: Analética: a superação da dialética? ............................................... 243

Conclusão ............................................................................................................... 248

PARTE III: PSICOLOGIA DIALÉTICA ..................................................................... 257

Capítulo 17: Os Referenciais teóricos e os interlocutores .................................. 262

Capítulo 18: Os primeiros escritos ........................................................................ 270

Capítulo 19: A crise da psicologia ......................................................................... 274

Capítulo 20: Método de Investigação de Vigotski ................................................ 294

Capitulo 21: Psicologia Infantil .............................................................................. 297

Capítulo 22: Desenvolvimento das funções psicológicas superiores ................ 307

Conclusão ............................................................................................................... 329

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 332

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 336

ANEXOS .................................................................................................................. 347

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APRESENTAÇÃO

Sempre atuei na área social com formação de educadores,

especialmente, nas temáticas voltadas para metodologias e sistemas de

planificação e avaliação. Esta tarefa instrumental nos instiga incessantemente

a analisar e a conjugar o que é necessidade, possibilidade e realidade (é o

exercício constante de compreender como se dá a passagem do fenômeno à

essência e a história do desenvolvimento das formações materiais). A inserção

do trabalho social exige do profissional propostas resolutivas no âmbito das

contradições estruturadas no sistema capitalista, portanto, identificar as causas

e os efeitos para compreender como ocorrem as mudanças ou como as coisas

são como são. A falta de moradia ou moradias sem condições adequadas de

habitabilidade em razão da ausência de serviços do Estado, as políticas

educacionais incompatíveis com a realidade, violação de direitos, desemprego

– especialmente de jovens e o envolvimento no mundo do crime –, a solidão

dos idosos, o isolamento humano,... enfim, os problemas sociais que incidem

sobre a conduta dos que estão envolvidos com estas realidades na vida diária.

Estou me referindo à vida diária como a principal referência para materialização

da existência humana. O profissional que atua diretamente com as questões

sociais está envolto com os dilemas e as contradições que a sociedade

enfrenta e é instigado a investigar como os sujeitos assumem condutas,

resistem à opressão e constroem suas referências para sobreviver nestes

contextos de vida. A psicologia social é chamada incessantemente para este

debate, já que esta área do conhecimento define categorias que contribuem

para o entendimento e atuação na área social, tais como: a dialética do

singular-particular-universal, dialética da inclusão e exclusão social, a

correlação da qualidade com a quantidade, causa e efeito, necessidade e

contingência, conteúdo e forma, essência e fenômeno, possibilidade e

realidade (e outras tantas). Considero não ter sentido a psicologia social que

não se implica com a realidade concreta, mais do que isso, que não se

constitua como práxis.

Pelos desafios que eu enfrentava e enfrento, resolvi fazer o doutorado

para me ajudar a encontrar algumas respostas para perguntas difíceis voltadas

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à emancipação humana. Não acho que as respostas estejam na universidade,

mas as boas perguntas.

Na minha dissertação de mestrado, como primeiro passo, atentei-me à

relação intrínseca entre ideologia, gnoseologia, ontologia e epistemologia.

Tendemos a tratar estas separadamente, não por má vontade, mas porque a

totalidade exige um esforço a mais de reflexão. Exige a investigação não

especulativa, mas inserida na realidade, no concreto, no real. Busco respostas

que não estejam apenas no campo do fenômeno ou da aparência, mas ciente

de que estes são os pontos de partida, sobretudo, o que se revela no cotidiano.

Nós construímos nossa própria visão de mundo (Weltanschaung), mas

não o fazemos sozinhos. Conheço a criatividade coletiva, o diálogo e o sentido

mais profundo do logos hieraclitiano, da alétheia parmediana e do conatus

espinosano. O primeiro instiga a ação/reflexão dentro da cidade, o segundo a

coerência do discurso com a realidade e, o terceiro, a potência nas relações. O

sintagma perfeito da criatividade humana: logos-alétheia-conatus.

Reconhecemo-nos com a nossa visão de mundo a nós mesmos porque

a temos e a confrontamos com a dos demais e por esta mesma condição por

meio da qual conhecemos as demais visões de mundo, porque na nossa visão

de mundo em relação a nós mesmos, somos o mesmo que as demais em

relação a nós1. Construímos nossa visão de mundo nas relações e é ela que

nos orienta a tomar as decisões. Entretanto, não criamos algo do nada; do

nada, nada se cria. As gnosiologias já existentes nos cativam e nós as

cativamos. Talvez nos identifiquemos com uma ou com duas, e nos orientemos

sempre com os outros que se esforçam para definição de uma teoria social.

Assim como a ideologia, a gnoseologia se compõe de um conjunto de

abstrações e de nada serviria se não tivesse uma aplicação prática, concreta e

real. Isto exige um posicionamento sobre o lugar em que nos colocamos

(topos), um fundamento sobre nossa teoria e uma proposta para execução, um

método. Estes três aspectos também são exigidos exatamente no momento de

1É uma analogia ao que L. S. Vigotski sempre menciona como um refrão: “Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento através do qual conhecemos os demais, por que nós mesmos em relação a nós mesmos somos o mesmo que os demais em relação a nós” (VIGOTSKI, L. S. A consciência como problema da psicologia do comportamento (2004, p. 82).

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pesquisar. Ao fazer esta afirmação já me entrego quanto à minha concepção

de mundo. Pesquisas podem ser implementadas desconsiderando a dimensão

ideológica, mas o desconsiderar já é uma definição do lugar (topos) em que

nos posicionamos2.

Lev Semionovich Vigotski3 é o autor que considero o mais instigante

para debater a ideologia, gnosiologia e epistemologia por duas razões básicas.

A primeira orienta-nos para enfrentar o ecletismo teórico. São tantos os

caminhos, as posições, os confrontos que nos deparamos no dia a dia. Como

construir uma referência? Não parto do pressuposto de que Vigotski tenha um

modelo padrão, mas viveu uma situação extremamente desafiadora para se

posicionar diante das teorias existentes e sua lógica dialética não o impediu de

fugir dos principais embates teóricos. A segunda razão: a pesquisa pode

contribuir para orientar soluções para os problemas reais da sociedade. Dito de

outra forma, parece até que o pesquisador assume uma posição superior,

como se estivesse num pedestal ou como se fosse um cientista que tem

respostas para tudo. Pelo contrário, é a diminuição da distância entre

pesquisador e pesquisado e pesquisado e pesquisador. Isto significa que a

pesquisa tem um valor real a partir das demandas necessárias da sociedade.

Quero compartilhar uma experiência pessoal com o leitor para deixar

mais claro os motivos desta tese. Numa oportunidade de ir à Alemanha, no

final do ano de 2014 e início de 2015, realizei um projeto de intercâmbio no

qual pude sondar inicialmente as possibilidades de aprofundamento dos

estudos em alguma universidade na Alemanha, visando parcerias de pesquisa

ou então aproximação com um centro de pesquisa ligado à psicologia crítica.

2 É por essa razão que Aristóteles escreveu um livro sobre “tópicos”. A fala sempre é de uma posição, de um lugar. 3Conforme as diferentes referências idiomáticas o nome de Vigotski assume várias versões pelo mundo

afora - Wygotski, Vygotski, Vygotsky, Vuigotskij, Vygotskii, Vygotskij, Vigotski, Vigotsky. Pelo novo acordo ortográfico brasileiro, foram reintroduzidas em nosso alfabeto as letras “K”, “W” e “Y”, as quais haviam sido eliminadas na reforma de 1943. Por esta razão, deduzimos que o nome “ВЫГОТСКИЙ” equivalia rigorosamente à regra de transposição para o português “VIGOTSKI”. Se nossa língua tivesse letras que diferenciassem a vogal “i” breve da “i” longa (no russo ainda tem outras variações) então teríamos as letras correspondentes. Por exemplo, “Ы” corresponderia a “y” e “И” ao “i”. Para complicar, o final do nome tem dois “is” diferenciados “И” e “Й”. O novo acordo ortográfico reincorporou as letras “K”, “W” e “Y”, mas orienta, sempre que possível, usar as correspondentes de nosso vernáculo. O correto, portanto, é usar “VIGOTSKI”. Os tradutores nem sempre respeitam esta regra e assumem simplesmente transposições automáticas da grafia de outras culturas para o Brasil.

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Optei pela Alemanha pela compreensão do alemão, bem como seria

mais próximo da Rússia para acessar as obras originais de Vigotski,

assegurando viabilidade das condições prático-materiais e a possibilidade de

aproximação de dois contextos que, à época, já tiveram importante

interatividade. Estando na Alemanha, foi possível iniciar uma série de contatos

que resultaram num conjunto de perguntas relevantes para a aproximação do

propósito desta tese.

O primeiro contato fiz com um casal de amigos alemães que morou

muitos anos no Brasil e que, atualmente, mora numa pequena cidade perto de

Stuttgart chamada Backnang. Este casal tem muitos contatos com programas

de educação e de assistência social na Alemanha e nunca tinha ouvido falar

em Vigotski. Isto me instigou a pesquisar sobre a recepção das obras de

Vigotski na Alemanha. Devo informar que Vigotski falava e traduzia livros do

alemão para o russo, bem como fazia citações infindáveis de pesquisadores

alemães. Logo percebi que a produção vigotskiana em alemão se restringe

basicamente a duas obras: Pensamento e Linguagem (1934) e Psicologia da

Arte (1925). A edição russa Obras Reunidas, que foi traduzida para o espanhol

e para o inglês, não existe na língua alemã. No tempo da DDR (Deutsche

Democratiche Republik, a Alemanha Oriental, vinculada de 1949 a 1990 à

URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), alguns textos de Vigotski

chegaram a ser traduzidos para o alemão, e, por esta intermediação, chegaram

a ser conhecidos no lado ocidental. Contudo, a academia alemã mostra pouco

interesse pelas obras de Vigotski e George Mead, contemporâneo de Vigotski,

é muito mais referido em artigos científicos4. VEER & VALSINER (2009, p.8)

chamam atenção para “as notáveis semelhanças entre as ideias de Vygotsky e

alguns conceitos importantes de William Stern”5apenas para dar um exemplo.

As citações que Vigotski faz de autores alemães são surpreendentes. Por que

a Alemanha, se comparada aos Estados Unidos da América do Norte, dá

4 Jürgen Habermas, importante filósofo da Alemanha, ajudou a divulgar o pensamento de George Mead na Alemanha. Mead quase nada publicou e o que dispomos de sua teoria foi organizada e repassada pelos seus alunos. 5 William Stern (1871-1938) desenvolveu várias pesquisas recorrendo ao método experimental. Foi idealizador do teste para medição do Quociente Intelectual – QI.

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pouca importância às obras de Vigotski? O casal de amigos instigou-me: “esta

questão é importante, pois algo está velado”.

O segundo contato foi ainda mais instigante. Estive em Köln (Colônia)

visitando também um casal de amigos, sendo ele diretor de cinema e ela

funcionária de uma organização não governamental que atua com a questão

da violência contra as mulheres nos países da África Central e da Ásia. Ele fez

um documentário sobre os marxistas alemães que participaram da revolução

anarquista na Espanha antes da Segunda Guerra Mundial. O documentário é

uma análise dos marxistas ainda vivos sobre a situação da Espanha daquela

época. Este diretor havia entrevistado vários marxistas; um deles, um marxista

muito famoso na Alemanha, Robert Steigewald (1925-2016), o qual já estava

com 92 anos de idade. Tentando me ajudar, ele ofereceu a possibilidade de

intermediar um contato com este professor, com a intenção de que este

pudesse dar uma orientação sobre meus estudos na Alemanha. O contato foi

feito imediatamente por telefone, mas dado seu estado de saúde, não foi

possível conversar naquele momento. Ainda assim enviamos uma mensagem

discorrendo sobre as intenções de estudo, o objeto de pesquisa da minha tese

e a possibilidade de ele me dar uma orientação em relação aos estudos na

Alemanha. Depois de 45 dias, respondeu-nos pedindo desculpas pela demora

e orientando o brasileiro a “comer um livro” para depois poder iniciar um

diálogo. O livro indicado foi De Hegel a Hitler – História e crítica de uma

caricatura, de Domênico Losurdo6, autor italiano (muito conhecido no Brasil).

Esta sugestão me deixou um tanto impressionado e intrigado por ser uma obra

muito recente (não há tradução para o português) e por enfatizar a defesa de

Hegel frente aos ataques dos críticos que surgiram com muita força, depois do

desastre do nazismo. Acusavam Hegel de teórico do Estado nazista e traziam

para a confrontação as críticas também realizadas por Karl Popper (1902-

1994), que instigava nesta mesma direção a continuidade de Hegel a Hitler. Na

6LOSURDO, Domenico. Von Hegel zu Hitler- Geschichte und Kritik eines Zerrbildes. PapyRossa.

Deutschland. A obra mais conhecida no Brasil do autor é “A luta de classes – uma história política e

filosófica” publicada em 2015 pela editora Boitempo (Nesta obra Losurdo traz para o debate a luta de

classes partindo das análises sobre o alto índice de desemprego no início do século XXI e a concentração

de renda do sistema capitalista globalizado).

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visão de Domênico Losurdo, esta reivindicação acaba por reconstruir a história

como mito, porque, ao contrário de Hegel, a ideologia do nazismo estava

fortemente arraigada com “o sangue e o solo”. Do outro lado, os nazistas

rejeitavam Hegel de forma categórica. Um dos exemplos mais notórios é a

declaração de Carl Schmitt (1888-1985)7, jurista alemão especialista em direito

constitucional e internacional, que havia declarado a morte de Hegel na cultura

alemã. A concepção hegeliana não se vincula ao que é defendido como eterna

estabilidade. Losurdo, nesta sua obra, tenta reabilitar Hegel como filósofo que

se insere na tradição do pensamento que busca compreender o mundo e suas

mudanças inevitáveis. Ora, por que Robert Steigewald havia recomendado este

livro para leitura? Este autor para mim era desconhecido e me instigou a

pesquisar um pouco mais sobre os seus livros publicados e logo percebi que se

tratava de um defensor da filosofia dialética e do materialismo histórico. Nesta

pesquisa, um pequeno livro me chamou muito a atenção para Losurdo: Fuga

dalla storia? Il movimento comunista tra autocritica e autofobia, no qual defende

que os comunistas sofrem de “autofobia”, que têm medo de si mesmos e de

sua própria história, como se fosse um problema patológico que deveria ser

enfrentado e urgentemente discutido. Infelizmente, não consegui mais contatos

com Robert Steigewald em razão de seu estado de saúde bastante delicado. O

cineasta amigo logo me fez um alerta: “dialética na Alemanha é assunto de

velho, de alguns velhos!” Não entendi a observação e também não pedi

qualquer esclarecimento, mas mais adiante logo compreenderia suas palavras.

A pergunta que ficou neste momento: por que recuperar Hegel e rediscutir os

aspectos históricos? Como dois marxistas tão eminentes, Losurdo e Steigewald

(como pude verificar depois), recorreram novamente a Hegel? Alguns meses

depois, quando já no Brasil, tive a informação que Steigewald fora um dos

maiores marxistas alemães que confrontaram as ideias da Escola de Frankfurt

e denunciaram o pessimismo que ela carregava8.

O terceiro contato foi em Berlim. De última hora encontrei uma amiga

que estudou psicologia na Universidade Livre de Berlim. Esta psicóloga, que

não fez carreira acadêmica, me deu algumas dicas sobre a psicologia crítica na

7Hoje mais conhecido como “jurista maldito” por ter apoiado e defendido o Estado nazista. 8Robert Steigewald veio a falecer em 30 de junho de 2016 e deixou-me a lembrança de um professor muito acessível e sempre disposto a aprofundar os estudos no materialismo histórico dialético.

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Alemanha. Ela me indicou o Prof.º Morus Markard9. Ela estava visivelmente

animada que alguém do Brasil pudesse estar interessado no tema “dialética”.

Fiz uma pesquisa sobre Markard e encontrei um artigo na famosa revista alemã

Der Spiegel, que entrevistava o referido professor, bem como tratava das

condições atuais da psicologia crítica na Universidade Livre de Berlim. O título

nada animador do artigo: Alt-Linke: Das stille Ende der Revolte (Velhos

Esquerdistas: O final tranquilo/silencioso da revolta). O subtítulo ainda mais

desanimador: Der letzte Professor geht in Pension, mit ihm sein Fach Kritische

Psychologie - an der FU Berlin wird eine Bastion der 68er abgewickelt. Und

niemand trauert, denn in der Wirtschaftskrise steht den Studenten der Sinn

nicht nach links. Ein Abschiedsbesuch (O último professor se aposenta e com

ele sua matéria psicologia crítica - na Universidade Livre de Berlim um bastião

dos anos 68 é liquidado. E ninguém está de luto, pois a crise econômica não

desperta os sentidos à esquerda dos estudantes. Uma visita de despedida)10.

Este artigo relata o desânimo dos alunos para com esta temática e também

que o Prof.º Markard Morus estava em vias de se aposentar. O curso de

Psicologia Crítica a partir do semestre seguinte não seria mais dado na

graduação. Visitei o departamento de psicologia da universidade e me

informaram que este professor havia se transferido para a Universidade de

Constanz, bem ao sul da Alemanha (divisa com a Suíça). É uma nova

universidade alemã e parece que lá ele conseguiu espaço para continuar seus

trabalhos de pesquisa. Começava a me sentir um pouco estranho e a me

9Morus Markard foi seguidor do Prof. Dr. Klaus Holzkamp (1927-1995) um dos organizadores da psicologia crítica da Universidade Livre de Berlin. A psicologia crítica surgiu em 1967 quando eclodiu o movimento estudantil em Berlim (Alemanha) que reivindicava que as ciências deveriam ter uma dedicação mais responsável com a realidade social. O professor Holzkamp (Professor Catedrático de Psicologia da Universidade de Berlim) se propõe a atuar com os estudantes marxistas e criam a Associação de Alunos Liberdade Vermelha a partir de 1969. Este debate todo foi concluído em 1970 com um programa de televisão, mas não atingiu os objetivos esperados. Foi considerado até um fracasso, isto porque ainda se baseava em iniciativas de “boa vontade”. Na visão dos participantes era necessário avançar teoricamente e surgiu aí o questionamento às concepções da psicologia social tradicional. Surge uma psicologia crítica com referenciais marxistas e centrada na epistemologia do sujeito. Em 1983 foi editado uma obra referencial: Lernen: Subjektwissenchaftliche Grundlagung (Aprender: uma abordagem epistemológica do sujeito). Esta abordagem da psicologia levou à criação da Sociedade para Investigação e a Prática da Epistemologia do Sujeito (GSFP) em parceria com a Universidade Livre de Berlim e o acesso às produções teóricas disponíveis no portal eletrônico: www. Kritische-psychologie.de. Em 1997, ainda foi realizado o “Fórum de Psicologia Crítica” com a temática: “Aprender, colóquio Holzkamp”, com a presença de Ole Dreier, Friga Hang, Wolfgang Maier, Morus Markard, Christof Ohm, Ute Osterkamp e Gisela Ulmann. As atividades da sociedade ainda estão funcionando com encontros e publicações anuais. 10 Artigo da jornalista alemã Verena Friederike Hasel em 02.07.2009. Der Spiegel.

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perguntar se de fato este deveria ser meu objeto de pesquisa. Aquela

sensação de estranheza durou pouco pela animação da psicóloga, o café, a

cerveja, a arte e aquele ar cosmopolita de Berlim. Lembrava-me ainda de que,

em meu contexto, no Brasil, nenhum professor com orientação da psicologia

crítica está “pendurando as chuteiras”.

O próximo contato, ainda mais interessante, foi com um dos

professores de economia do Instituto dos Estudos Latino-americanos vinculado

à Universidade Livre de Berlim, considerado “o espaço” da sociologia. Um

amigo de Berlim havia agendado uma reunião com um professor livre-docente

de economia e que talvez pudesse me acompanhar num possível doutorado

sanduíche na Alemanha. Nada melhor! Na reunião, deparei-me com dois

estudantes que haviam concluído recentemente o doutorado em economia com

as respectivas temáticas: investimento em renda variável e o sistema alcooleiro

no Brasil. Havia também um professor espanhol que fazia parte do núcleo de

pesquisa. Este grupo de pesquisa se reúne uma vez por semana sempre no

mesmo horário. As temáticas passavam longe de minhas pretensões e

interesse. Logo no início da conversa, o professor livre-docente fez questão de

dizer que era muito amigo do ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique

Cardoso. Havia um assunto naquele momento pelo qual estava muito

incomodado e coincidia com minha presença. Havia recebido, há pouco tempo,

uma resposta a uma carta enviada diretamente ao Papa Francisco e

respondida por um auxiliar direto. Visivelmente irritado com uma aparente

“leviandade” do Papa que havia expressado extrema preocupação com a

desumanização causada pela visão do livre mercado no planeta (inclusive ficou

registrado em documento). A fala específica do Papa Francisco foi seguida de

uma admoestação de que as pessoas do mercado ficam mais preocupadas

com as especulações e com rendimentos nas aplicações nas bolsas de valores

do que com um pobre abandonado e morto na rua. Exemplificava melhor: “a

notícia no jornal sobre a queda de 1% na bolsa é mais preocupante do que a

notícia de um homem que morre de frio na rua”, e conclui: “esta economia é

que mata”. O professor livre-docente estava estarrecido com o posicionamento

do pontífice, e, mais ainda, com a resposta recebida. Na carta o professor se

intitulava “brasilianista” e profundo conhecedor da realidade brasileira e latino-

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americana, com experiência de 30 anos; pontuou, no grupo, que esta fala do

Papa confundia questões que não tinham nada a ver uma com a outra. Uma,

que o livre mercado possibilitou a tranquilidade e a estabilidade do crescimento

nestes países da América do Sul e Central. Outra, se a violência existe, é

violência extrema, é uma questão específica resultado de uma sociabilidade

sem regra e de um problema que nada tem a ver com o livre mercado. O livre

mercado estável com regras é uma conquista na visão do professor estudioso

da América Latina. Sua decepção era muito grande sobre a forma como o

assunto havia sido tratado pelo Papa e pelos seus auxiliares. A reunião

prosseguiu e pediram-me que falasse de meu projeto de pesquisa. Fiz o relato

e duas reações me chamaram atenção. Primeira, a do professor espanhol, que

aos berros não se convencia das razões de um sul-americano ater-se a um

autor da Rússia. Argumentava que existe tantas barreiras que não consistia

apenas na distância de 12.000 Km. O livre-docente, ao referir-se à dialética,

lembrava que era um costumeiro jargão utilizado na “antiga DDR”. Mas afora

as provocações e os espantos das partes, ficou-me enfaticamente a pergunta

do espanhol: por que precisamos das produções de Vigotski no Brasil? Qual a

principal contribuição de Vigotski para a teoria social e para compreensão da

realidade brasileira? Dependemos ainda das sínteses das pesquisas de quase

um século atrás? A reunião não teve outro assunto exceto meu projeto.

Para concluir, relatarei um encontro que tem apenas um caráter

ilustrativo. Tenho uma amiga que é psicóloga (logoterapeuta) em Nürnberg. É

uma mulher de 76 anos e, todas as vezes que vou à Alemanha, incluo uma

visita a ela pelo prazer de boas e longas conversas. Desta vez não foi

diferente. Ao falar de minha tese, ela queria saber do que exatamente se

tratava. Falei que o tema principal é a dialética. Então, ouvi o seguinte: “meu

filho tentou várias vezes me explicar, mas nunca entendi o que é esta tal da

dialética”. Como responder, como explicar este termo ou como explicar a

concepção dialética? Não poderia explicar pelo sintagma tão costumeiro e

vazio como tese-antítese-síntese ou pelo sintagma mais elaborado

apresentado por Hegel afirmação-negação-negação-da-negação. Tive muita

dificuldade no primeiro dia para formular uma explicação que fosse clara e

objetiva. Também foi assim no segundo dia. Ao sairmos destas diversas

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tentativas sem muito sucesso começamos a conversar sobre a realidade da

Alemanha e sobre a situação dos refugiados iraquianos e afegãos (que ainda

não eram os sírios). Ela reclamou da conivência da comunidade europeia em

facilitar a entrada de refugiados na Alemanha. Além disso, questionava a

capacidade dos fundos previdenciários para sustentar este grande número de

pessoas que chegou e que ainda estava por chegar11. Lembrei-me rapidamente

que este era o momento para trazer a questão dialética, do argumento

dialético. Destaquei que a política alemã recebia estrangeiros com facilidade

porque efetivamente consistia na própria estratégia de se manter como uma

potência econômica mundial. Tudo estava organizado e sendo permitido para

garantir este status quo. É uma contradição, pois, à primeira vista, trata-se de

uma despesa, mas analisando com mais cuidado trata-se, justamente, ao

contrário do que se constata. De um lado, a capacidade de receber refugiados

de diversas nacionalidades permite garantir o caráter de potência global – atrai

para sua geopolítica as melhores formações de outros países; e, de outro lado,

a entrada de estrangeiros possibilitará ampliar seu contingente populacional,

ampliando a massa trabalhadora – garantindo a estabilidade do fundo

previdenciário. No processo de globalização, a Alemanha mantém-se no mais

alto grau de sustentação econômica e uma das principais potências

econômicas. Ao fazer esta defesa, minha amiga ficou muito irritada com esta

conclusão (ou provocação), mas não lhe ocorrera que havíamos feito o

primeiro exercício dialético. E assim seguimos no debate observando as

contradições e tentando sempre olhar para a política atual da Alemanha

partindo do simples para o mais complexo. Ora, é possível uma teoria social

ser expressa sem ser dialética? Teria usado uma argumentação dialética ou

uma análise materialista histórico-dialética? Saí da aldeia de Altdorf (bei

Nürnberg) com a necessidade de entender se é possível simplificar a lógica

dialética ou se a simplificação consiste na sua própria anulação. Haveria uma

educação dialética?

Relatei esses encontros porque possibilitaram trazer algumas

perguntas que no percurso influenciaram o desenvolvimento da pesquisa e que

11 Para deixar mais claro: na época a guerra na Síria não tinha iniciado. Pude constatar vários conjuntos habitacionais que estavam em construção ou então moradias que estavam sendo destinadas, pelos relatos, ainda para os refugiados de guerra do Iraque.

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serão tratadas direta ou indiretamente nessa tese. São perguntas orientadoras

que já foram suscitadas, mas aqui tentamos organizá-las com pretexto

meramente pro-vocativo.

1) A teoria social marxiana está condenada a ser uma teoria dos velhos

e herdeiros do movimento de 68? Antes, porém, desta pergunta mais atual,

elencamos três perguntas fundamentais: i) Em que se distingue a psicologia

vigotskiana de outras psicologias? ii) Qual papel desempenha Hegel na

psicologia vigotskiana? iii) e, por fim, Marx, Engels e Lênin: quais papéis

desempenham na psicologia vigotskiana?

2) Por que Vigotski tem tamanho reconhecimento no Brasil? É por

conta de uma influência das interpretações que os americanos iniciaram ou é

uma influência proveniente dos movimentos populares do Brasil da década de

1980? Como a Escola de São Paulo de Psicologia Social ainda hoje se

reconhece nestas influências?

3) A Psicologia Crítica da Universidade Livre de Berlim tem paralelo

com a Psicologia Sócio-histórica da Escola de São Paulo?

4) E, última pergunta, mas não menos importante: o que é o

materialismo histórico dialético hoje?

Algumas perguntas serão aprofundadas e outras não, devido à

necessidade de delimitação (não trataremos diretamente da pergunta 3). O

pensamento vigotskiano é uma teoria social que começa a ganhar força na

atualidade devido ao acesso mais sistemático por parte de pesquisadores

brasileiros às suas obras originais e às polêmicas em torno de sua teoria estão

longe de chegar ao fim.

Proponho-me a defender a tese de que Vigotski fundamenta suas

pesquisas adotando o materialismo histórico dialético de base marxiana.

Contudo, na história do pensamento dialético, temos12 várias referências que

12 A partir deste momento passo não mais utilizar a primeira pessoa do singular, mas a primeira pessoa do plural.

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na modernidade aparecem em Immanuel Kant (1724-1804) e vão até os

críticos da dialética, na segunda metade de século XX. Nesta trajetória

histórica, nos orientamos pela própria pergunta de Vigotski: “Será que a

matemática, a filosofia, a dialética, as metafísicas significam o mesmo que em

outros tempos?” (VIGOTSKI, 2004, p. 406). Os conceitos estão ligados aos

fatos científicos e têm uma história. As palavras são instrumentos e como tais

também podem cair em desuso ou tornarem-se mais relevantes para uma

teoria. Neste sentido, concordamos com a afirmação de Vigotski: “toda palavra

é uma teoria” (Ibidem, p. 238); e, como um caminho alternativo para

fundamentar a tese, investigaremos como Vigotski incorporou, ao longo de sua

vida, o conceito de dialética.

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INTRODUÇÃO

“Análise reconstitutiva” tem um significado peculiar, isto porque o

adjetivo tem vinculação com a expressão mais usual “reconstituinte”; o

dicionário nos ajuda a esclarecer: “reconstitutivo” é aquilo que “se reconstitui”,

“restabelece as forças físicas”, “torna mais rico”, ”medicamento próprio para

reestabelecer as forças de alguém”13. No nosso caso, para o título desta tese,

pretendemos, a partir de uma perspectiva imanente e objetiva, analisar os

textos de Vigotski (1896-1934) considerando o significado histórico de seu

projeto hermenêutico e, para isso, nos propomos a fazer a análise

reconstitutiva do seu sentido de dialética. Não faremos com base em outras

interpretações, mas a partir deste sentido forte mesmo, de um “medicamento

próprio para reestabelecer as forças” da dialética de Vigotski.

Os textos produzidos por Vigotski traduzem, ao longo dos anos de sua

vida, um espírito investigativo, disciplina, empenho excepcional para realização

das pesquisas na área da psicologia. A negatividade dialética de suas

produções não é explicitada, mas considerando especialmente o ensaio O

significado histórico da crise da psicologia, escrito em 1927, e o Manuscrito de

1929, verifica-se a preocupação de Vigotski com a construção de uma nova

sociedade e com o novo ser humano, e, acima de tudo, com a construção de

uma psicologia que ele denominou de “dialética” (VIGOTSKI, 2013, p. 393). O

nosso trabalho considerou o período intenso de disputas teóricas, políticas e

filosóficas, especialmente, o período de transição da direção no Secretariado

Geral do Partido Comunista da União Soviética, de Vladimir Ilitch Lênin (1918-

1922) para Josef Vissorionovitch Stalin (1922-1953). A síntese dialética de

Vigotski não convinha com o cenário político da época, que iniciava um

movimento contrário ao que fora viabilizado intensivamente no período de

Secretariado Geral de Lênin. Depois de um longo período de ostracismo14,

Vigotski passou a ser reconhecido e suas obras traduzidas para vários idiomas.

13Reconstituinte in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto Editora,

2003-2017. Disponível na Internet:<https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/reconstituinte>. 14 Em 04 de junho de 1936, o Comitê Central do Partido Comunista proibiu as publicações da área da pedologia. Mesmo que em 1956 estas proibições tenham sido revogadas, as obras de Vigotski começaram a ser divulgadas com mais força a partir da década de 1980.

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Na atualidade, várias abordagens se utilizam da ausência da explicitação da

sua síntese dialética, para propagar concepções idealistas e

descontextualizadas da realidade social – destacando-se as tendências

equivocadas de aproximar o pensamento de Vigotski, por exemplo, com os

referenciais de Georg Mead (1863-1931), ou com concepções culturalistas,

cognitivistas 15 , ou, ainda, pragmatistas. Neste sentido, torna-se necessário

recuperar o caminho da dialética desde os filósofos clássicos, como também, e

principalmente, os filósofos da modernidade: Immanuel Kant (1724-1804),

Georg W. F. Hegel (1770-1831), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx

(1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) e

Josef Vissorionovitch Stalin (1870-1924), para evidenciar os fundamentos

dialéticos vigotskianos e sua importância determinante para a Psicologia Sócio-

histórica16, que tem fundamento no materialismo histórico dialético. Além disso,

não temos como escapar da contextualização da dialética realizada por

diversos autores na década de 50/60/70 do século passado (ADORNO &

HORKHEIMER, 2006; BADIOU & ALTHUSSER, 1979; HABERMAS,

1983/2002; LEFEBVRE, 1970; LUKÁCS, 2010/2012/2015; MARCUSE, 1978;

MERLEAU-PONTY, 1980) que de certa forma interferem e contribuem na

compreensão da hermenêutica vigotskiana.

HABERMAS (2002), ao analisar as diferentes correntes filosóficas do

século XX, enfatiza “quatro motivos” que contribuíram para romper com a

tradição: “pensamento pós-metafísico, guinada linguística, modo de situar a

razão e a inversão do primado da teoria frente à prática” (HABERMAS, 2002, p.

14). O autor denomina este movimento de superação como uma verdadeira

guinada no campo do conhecimento. O pensamento pós-metafísico impôs as

premissas do “método científico”; “a filosofia da consciência foi superada pela

15 Kozulin (1990, ps. 86-87) faz menção da afinidade entre Vigotski e Mead quanto “aos enfoques de Vigotski e Mead sobre a questão da linguagem como instrumento de regulação ‘externa’ do comportamento individual”. Esta aproximação também é sustentada por L. Kohlberg, J. Yaeger e E. Hjertholm em “Private Speech, Child Development, vol. 39, 1968, pp. 691-736. Outros autores fazem a mesma defesa: Jaan Valsiner e Renè van der Veer no artigo “On the social nature of human cognition: an analysis of the shared intelectual roots of G. H. Mead and L. Vigotski - Journal for the Theory of Social Behavior, vol. 18, 1988, ps. 117-136. 16 Optamos pelo termo psicologia Sócio-Histórica dentre tantos que são criados com os fundamentos vigotskianos: sócio-cultural, sócio-interacionista, cultural histórica seguindo a premissa de Karl Marx de que “toda ciência é histórica”.

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filosofia da linguagem”; e a razão foi desafiada a entrar na história e “na prática

do mundo da vida”; e, por fim, “a inversão do primado da teoria frente à prática”

consiste na importância das ações. Então, ressalta os pragmatistas Charles

S.Peirce (1839-1914), George Mead(1863-1931) e John Dewey (1859-1952), a

psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget (1896-1980) e a teoria da

linguagem de Vigotski como referência deste último movimento citado (Ibidem,

p. 15). Interessante observar que Habermas identifica Vigotski não no campo

da teoria do desenvolvimento, mas da linguagem. De fato, a primeira obra e a

mais conhecida de todas de Vigotski é Pensamento e Linguagem (1934) e

Habermas certamente teve acesso à edição americana resumida e estilizada e

sem os fundamentos do Materialismo Histórico Dialético do autor.

Nossa pesquisa está focada em Vigotski justamente pela sua

importância para nosso tempo, pela sua importância fundamental na psicologia,

e, especialmente, na psicologia socio-histórica. Diferentemente da visão

pragmatista, nosso autor está voltado para os estudos de uma psicologia que

se pretende, conforme ele mesmo estabelece: “síntese da tese do empirismo –

com a antítese – a reflexologia” (VIGOTSKI, 2004, p. 395). Esta afirmação fora

feita em 1927, quandoVigotski declara que “esta psicologia (...) ainda não

existe; terá de ser criada e não por uma só escola” (Ibidem, p. 417).

Além de Vigotski estar inserido “na crise da psicologia”, também

enfrentava uma crise sobre a concepção do materialismo histórico dialético na

União Soviética. De um lado o embate entre as correntes materialistas e

idealistas, e, de outro, o embate interno entre o materialismo dialético e o

histórico. Na brilhante introdução aOCapital de Marx (1983; vol. I), o estudioso

Jacob Gorender destaca que duas obras aparecerão em 1932 na União

Soviética: Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) e A Ideologia Alemã

(1845/46). Ambas causaram grande impacto quando de sua divulgação. O

Manuscrito, conforme este estudioso marxista, demarca a assimilação de Marx

da Dialética Hegeliana e o início da elaboração ou criação de uma dialética

materialista. E, nA Ideologia Alemã há o rompimento com o pensamento

feuerbachiano e a proclamação da importância de influir na história humana de

tal forma a não se limitar “a interpretar o mundo”, mas em “transformá-lo” (Marx

& Engels, 2007, p. 535).

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Não sabemos se Vigotski chegou a conhecer o famoso Manuscrito

Econômico-Filosófico (1844) de Karl Marx, mas, considerando as citações

diretas, é certo que tinha conhecimentodO Capital (1867), da Contribuição à

Crítica da Economia Política (1859) e do Manifesto Comunista (1848). A partir

das citações também é certo que leu Dialética da Natureza (1925) de Friedrich

Engels e as obras de Lênin, especialmente, Materialismo e Empiriocriticismo

(1908).

Nos textos de Vigotski, encontramos várias citações de Hegel e, muitas

delas, fazendo referência à Ciência da Lógica e à Fenomenologia do Espírito

(1807), que inicialmente tinha outro título: Ciência da Experiência da

Consciência. Argumenta-se que o objetivo da obra de Hegel é a “história

romanceada da consciência” que atravessa vários obstáculos para “alcançar a

universalidade e reconhecer-se como razão que é realidade e realidade que é

razão” (ABBAGNANO, 1984, Vol. IX, p. 92). Para Hegel o “ciclo integral da

fenomenologia” resume-se a uma expressão muito citada: “a consciência

infeliz”. Esta é assim configurada porque não alcançou a sua “totalidade” que

ele denomina “autoconsciência” (Ibidem, p. 85). A consciência infeliz,

alcançando a totalidade, poderia libertar-se em “autoconsciência”. O aspecto

importantíssimo da filosofia de Hegel é que a dialética não é apenas “um

método”, nem apenas “uma lei do desenvolvimento da realidade”. A dialética é

tanto um aspecto como outro, pois lida com as contradições, com as oposições

da razão e ao mesmo tempo concilia estas oposições. Portanto, a dialética de

Hegel é dominada pelas questões do mundo e da razão (Ibidem, p. 86-87). É

comum os textos de Vigotski, em praticamente todas as citações que se

referem a Hegel, trazerem um reforço de Lênin, ou então de Marx e Engels. A

partir de 1930, verificamos que nas citações o nome de Hegel passa a ficar

anônimo, o que demonstra alguns cuidados para não ser excessivamente

repetitivo (VIGOTSKI, 2012a, p. 39; 2012c, p. 71, 72).

Por outro lado, o Materialismo Histórico Dialético é a base filosófica do

marxismo e como tal busca explicações coerentes para os fenômenos da

natureza, da sociedade e do pensamento. O Materialismo Histórico Dialético

tem como categoria a matéria, a consciência e a prática social (CHEPTULIN,

2004) submetida à lei fundamental da dialética: a unidade e a luta dos

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contrários. Vigotski cita Lênin em vários momentos, que define a Matéria

como “uma categoria filosófica para designar a realidade objetiva que é dada

ao homem nas suas sensações, que é copiada, fotografada, refletida pelas

nossas sensações, existindo independentemente delas” (TRIVINHOS, 2009, p.

51). Ou seja, a matéria é eterna e evolutiva e existe fora de nossa consciência.

A consciência é uma propriedade da matéria, a mais altamente organizada que

existe na natureza do cérebro humano. Essa peculiaridade surgiu como

resultado de um longo processo de mudança da matéria. E o trabalho e a

linguagem estão ligados à consciência de refletir sobre a realidade objetiva. O

materialismo entende a prática social como um termo muito amplo. É toda

atividade material, orientada a transformar a natureza e a vida social.

A Psicologia Sócio-Histórica tem como referência o Materialismo

Histórico Dialético, que tem como preceito que a história é feita da ação dos

seres humanos, impelidos por sua vontade, sendo esta a expressão de seus

pensamentos. A ciência é a história e o sujeito é histórico. LANE expressa de

um modo muito mais preciso:

“O indivíduo sujeito da história é constituído de suas relações sociais e é, ao mesmo tempo, passivo e ativo (determinado e determinante). Ser mais ou menos atuante como sujeito da história depende do grau de autonomia e de iniciativa que ele alcança. Assim ele é história na medida em que se insere e se define no conjunto de suas relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas relações; o que implica, necessariamente, atividade prática e inteligência, tão inseparáveis quanto, no nível da sociedade, são inseparáveis a infra e a superestrutura, e cuja unidade é estabelecida por um processo cujo agente exclusivo é a atividade humana em suas diferentes formas” (LANE, S. T. Consciência/alienação: a ideologia no nível individual, 1984, p. 40).

Na Introdução à Crítica da Economia Política (1859), Marx afirma que

“a produção dos indivíduos é determinada socialmente” e “o indivíduo é

resultado histórico e não é uma condição natural dada”, ou seja, numa

sociedade capitalista, as contradições são “escamoteadas” segmentando cada

etapa da produção e alienando o trabalhador da visão da totalidade produtiva.

Ao citar o “método da economia política” dentro de uma perspectiva histórico

dialética, alerta que este método não consiste em “permanecer em abstrações,

mas partir do concreto”. “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas

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determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no

pensamento como processo de síntese e não como ponto de partida” (MARX,

1982, p. 14). É neste contexto que Marx também faz uma importante

declaração: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu

ser social que determina a sua consciência” (MARX, 2015a, p. 49). Aqui, “o seu

ser” identificamos com “o que somos” e “a consciência” com “o que pensamos,

o que queremos”. São as condições materiais que determinam a consciência.

Resumidamente, são estes os preceitos de Marx que subsidiarão os

pensadores e pesquisadores seguidores do Materialismo Histórico Dialético.

A filosofia moderna esteve basicamente dividida entre estas duas

correntes ou duas concepções filosóficas que tratam sobre os modos distintos

pelos quais se dão as relações entre pensamento e realidade material. De um

lado estavam os filósofos idealistas que partiam do pressuposto de que o

pensamento precede a matéria. De outro lado, estavam os materialistas, que

entendiam que a matéria precede ao pensamento. O acirramento entre estas

posições, a tensão entre estas escolas filosóficas esteve muito presente na

psicologia soviética nas primeiras décadas do século XX. Os psicólogos que

mais se identificavam com a Revolução Russa rejeitavam tanto o idealismo

quanto o reducionismo mecanicista (o materialismo vulgar ou mecanicista).

Havia consenso, entretanto, que somente o Materialismo histórico dialético

poderia prover a psicologia materialista em oposição às visões ou concepções

mecanicistas. Vigotski estava no meio destas disputas e sobressaia-se graças

ao seu vasto conhecimento filosófico17.

Nosso interesse não está voltado apenas para os fundamentos

filosóficos, mas analisar os fundamentos da dialética e sua implicação dentro

da psicologia, especialmente, numa visão hermenêutica do pensamento

vigotskiano. Nossa intenção dentro das premissas do materialismo que

17 Conforme LEONTIEV (2013), em janeiro de 1923, foi realizado o I Congresso Nacional de Psiconeurologia em Moscou sobre o tema “Psicologia e Marxismo”. Neste evento concluiu-se como teses: i) o caráter primário da matéria em relação à consciência; ii) a psique como propriedade altamente organizada da matéria; iii) sobre o caráter social da psique do ser humano. Neste congresso, Vigotski não participou, mas sim no segundo, realizado em janeiro de 1924, em Lêningrado. Era necessário fundamentar a psicologia marxista e também uma questão que continua válida até hoje: “qual o lugar da psicologia social dentro do sistema da psicologia marxista?” (LEONTIEV, 2013, ps. 421-422).

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surgiram na modernidade é investigar como o conceito de dialética foi

incorporado na hermenêutica vigotskiana.

Esse trabalho versa sobre a dialética materialista em Vigotski. Em

razão disso, tratamos de enfocar três movimentos de análise em períodos

diferentes da história do pensamento dialético:

i) A tríade Hegel-Feuerbach-Marx/Engels 18 é a nossa referência

principal da filosofia moderna para tratar centralmente da dialética. São os

filósofos mais citados por Vigotski e merecerão nosso esforço maior para

entendimento e estudo (HEGEL, 1976, 2002, 2008, 2010, 2011, 2012;

FEUERBACH, 2007, 2008; MARX &ENGELS, 2007; MARX, 1987, 2009, 2011,

2013, 2013a, 2013b, 2015a, 2015b; ENGELS, 1975, 1977a, 1977b).

ii) Nosso interesse é o desdobramento do Materialismo Histórico

Dialético, os fundamentos da dialética no tempo de Vigotski e as produções

existentes que não poderiam ser desconsideradas para quem atuava na área

da psicologia (LÊNIN, 1977a, 1997b, 1977c, 1982; STALIN, 1945). Marx não

deixou um tratado sobre a dialética como o fez Engels, que a expôs em suas

leis na inconclusa obra Dialética da Natureza.

iii) Na segunda metade do século XX temos vários filósofos e

comentadores sobre a temática “dialética” (ADORNO & HORKHEIMER, 2006;

ALVIM & RIBEIRO, 1975; BADIO & ALTHUSSER, 1975; CHEPTULIN, 2004;

DUSSEL, 1986; HABERMAS, 1983/2002; JAY, 2008; KONDER, 1983; KOSIK,

2011), LEFEBVRE,1970; LUKÁCS, 2010, 2012, 2015; LÖWY, 2008;

MARCUSE, 1978; MERLEAU-PONTY, 1980; SARTRE, 2002; POLITZER,

1963; VÁZQUEZ, 2011) e a maioria são contestadores da ortodoxia soviética.

Estes autores são muitas vezes esquecidos para a análise, mas a assimilação

da dialética desenvolvida por Vigotski também se insere neste contexto

histórico. As obras de Vigotski vêm ao público soviético em 1982 e muitas de

suas questões que ficaram inacabadas retornam com muita força; podem ainda

18 Há autores que não fazem esta simbiose de Marx-Engels (especialmente Lukács) por considerar que, em alguns aspectos muito importantes, Engels cometeu alguns desvios. Contudo, é muito difícil dissociar esta parceria analisando o conjunto da obra.

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ser ampliadas (e serão ampliadas), mas citamos aqui como nossas principais

referências.

Considerando estas referências e estas disputas teóricas em torno da

compreensão e das implicações na realidade social, como situar Vigotski? As

compreensões e implicações são dinâmicas e são respondidas em diferentes

lugares de maneira diferente. Evidentemente que iremos ressaltar primeiro a

hermenêutica vigotskiana dentro de seu contexto histórico e também analisar

as consequências do pensamento dialético na contemporaneidade.

MOLON (2011) chama atenção dos pesquisadores e dos estudiosos

interessados nas obras de Vigotski para a necessidade de “considerar e

contextualizar alguns pontos” especialmente aqueles que procuram

esclarecimentos sobre as bases conceituais e metodológicas.

“A procura da definição de alguns conceitos ou de alguns termos na obra vygotskiana precisa considerar e contextualizar alguns pontos, entre eles: 1) Vygotsky não deixou uma teoria pronta e acabada, e não se sabe se era intenção dele fazê-lo, tendo-se em conta a sua morte prematura; 2) seus constantes e graves problemas de saúde intensificaram sua escrita; 3) o caráter intenso e variado da sua produção mostrava seu trânsito entre diversas áreas do conhecimento, como as ciências humanas, as artes e a literatura; 4) seus interesses abrangiam diferentes campos e temáticas, como os processos de criação artística e estética, porém ele centrou-se na Psicologia; 5) discutiu as mais diversas concepções psicológicas, sendo ainda hoje revolucionária a sua maneira de conceber o fenômeno psicológico ao introduzir a mediação semiótica; 6) suas ideias foram censuradas, alguns textos foram encontrados somente muitos anos após sua morte; 7) não revisou seus escritos; sua obra enfrenta vários problemas de tradução, principalmente os textos que passaram pelo crivo da psicologia norte-americana” (Ibidem, p. 614).

Além destes pontos muito bem estabelecidos, a autora faz mais um

alerta quanto ao processo em construção da teoria de Vigotski. Exemplifica que

alguns conceitos vão sendo desenvolvidos e vão ganhando significados e

sentidos diferentes ao longo da exposição. O caráter de construção e de

desenvolvimento paulatino de seus referenciais é o que nos remete ao caminho

da análise reconstitutiva da dialética em Vigotski. Por outro lado, além da

dificuldade sobre a complexidade da obra de Vigotski e da dificuldade com o

acesso aos originais, também temos a dificuldade “ideológica”. As obras foram

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elaboradas e sistematizadas num período bastante conturbado da Rússia e da

história da psicologia.

Recentemente, várias obras foram publicadas sobre a biografia de

Vigotski e isto se deve ao elevado interesse da comunidade acadêmica de

várias partes do mundo, bem como o recente acesso aos arquivos particulares

da família. Vigotski publicou mais de 200 títulos, o que torna um trabalho

penoso fazer as comparações e análises, já que muitos trabalhos ficaram

inconclusos. Neste sentido, para poder organizar nosso trabalho de

investigação, adotamos o método hermenêutico de profundidade de

THOMPSON (2002), que nos orientou para as análises sócio-históricas das

obras sistematizadas por Vigotski. Temos referenciais de estudos de

manuscritos antigos e considerando que as obras de Vigotski começam a

completar 100 anos é necessário analisar o contexto, as influências, a

disponibilidade de outros referenciais e as relações do autor referido com as

diversas institucionalidades. Aprofundamos os referenciais metodológicos para

o desenvolvimento desta tese, e, por esta razão, definimos um referencial

metodológico onde apresentamos e propomos o caminho que optamos para

fundamentar nossas análises (Capítulo 1).

Este trabalho segue organizado em três partes: I Parte– A vida e obra

de Vigotski (Analisamos aspectos que julgamos fundamentais na formação do

nosso autor em referência até chegarmos ao que hoje podemos chamar o

estado da arte da hermenêutica vigotskiana); II Parte– As aventuras da

Dialética (A dialética é contextualizada dentro da história considerando

especialmente os desafios impostos no século XX); e, III Parte– A concepção

de dialética de Vigotski (Análise de publicações tomando como principais

referências aquelas voltadas para orientar profissionais de campo).

Foi necessário apresentar, em certos momentos, longas citações das

obras de Kant, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels. Naturalmente, as longas

citações tornam a exposição, talvez, cansativa, pesada e não ajudam para dar-

lhe um caráter mais simples, mas não tivemos outra alternativa para que o

raciocínio fosse mais coerente possível com os referidos autores. Nossa

preocupação é ter a devida fundamentação para poder dialogar com um autor

como Vigotski, que faz citações exageradas de diversos autores.

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Capítulo 1: Sobre o Método

"Чтобы идти дальше, надо наметить путь".

ВЫГОТСКИЙ19

Os pesquisadores que estudam as obras de Vigotski têm adotado

como estratégia algumas obras específicas – adotam um recorte analítico para

enfrentar determinadas temáticas tais como: criatividade, imaginação,

atividade, vivência20, personalidade, interesse ou então alguma especificidade

das funções psicológicas superiores: percepção, atenção, memória, formação

de conceito e linguagem. A diversidade de publicações das quais dispomos é

muito ampla e selecionar algumas obras é um recurso necessário, mas sob

qual critério?

Nossa aproximação das obras de Vigotski tem como linha temática a

lógica dialética e o método histórico dialético e, por isso, precisamos fazer

comparações textuais e adotar estratégias de interpretação dos textos.

Optamos por um caminho não muito convencional para esta empreitada.

Adotamos o método “hermenêutico de profundidade” de John Brookshire

Thompson (THOMPSON, 2000) sem desconsiderar nossos fundamentos

teóricos. Há uma razão especial para lidarmos com apenas uma opção

metodológica; é possível dialogar sobre dois temas extremamente ou

igualmente amplos como o da dialética: ideologia e cultura? Em razão da

ideologia as obras de Vigotski foram proibidas, depois recuperadas e

adaptadas e agora comercializadas no mercado editorial que está ávido por

colocá-las para mais consumo. Aguardamos a publicação das obras completas

e estamos atentos para o método hermenêutico que será utilizado para definir

os critérios empregados. Considerando que há interesse muito grande dos

profissionais envolvidos com a área da psicologia e da educação pelos estudos

de nosso autor referencial, a hermenêutica será fundamental e deverá

19 “Para ir mais longe, é preciso um caminho” – Vigotski. 20 Palavra difícil de traduzir para o português: “perejivánie” (Переживание)”. Alguns autores preferem deixá-la no original russo, outros traduzem como vivência ou experiência vivenciada. A polêmica se estabelece porque considera-se a categoria mais importante da hermenêutica vigotskiana, por considerar a afetividade como determinante para a formação do psiquismo humano.

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esclarecer as razões pelas quais estas obras ainda são relevantes, bem como

é uma oportunidade para apresentar como estas produções foram

consideradas durante todo o século XX.

Qual o caminho?

Perguntamos: qual o caminho mais acertado que deveríamos utilizar

para podermos, depois de quase um século, analisar as obras de Vigotski?

Poderíamos tomar como base os próprios referenciais que o autor elaborou e

implementou para fazer suas críticas literárias ou para analisar a relação entre

Pensamento e Linguagem. Os escritos de Vigotski têm valor de pesquisa

engajada em um período no qual a Rússia planejava e estruturava uma nova

sociedade, e homens e mulheres deviam esforçar-se para contribuir com este

objetivo. Nós identificamos esse esforço na própria personalidade de Vigotski,

que lutou e se dedicou à pesquisa e ao ensino até o último dia de sua vida.

Se as obras de Vigotski despertam hoje interesse muito grande é

porque ainda têm um valor significativo como teoria social capaz de

instrumentalizar profissionais da área da educação e da saúde. Evidentemente

que durante o século XX muitas questões avançaram nestas áreas, mas os

referenciais vigotskianos são ainda válidos como subsídios teóricos para

compreendermos a síntese social entre indivíduo e sociedade.

Nós queremos investigar a hermenêutica vigotskiana e isto significa

considerar dois caminhos: i) Vigotski esteve conectado profundamente ao seu

tempo. Além de sempre expor as finalidades e os seus interesses com suas

pesquisas, estas não eram realizadas sem a contextualização a partir do que

outros autores ou pesquisadores já haviam desenvolvido. É impossível

desconsiderar esta premissa ou tentar isolar o pensamento vigotskiano de

outras teorias; ii) Vigotski sofreu influências e influenciou outras teorias durante

a sua vida. Contudo, depois de sua morte prematura (faleceu com 37 anos de

idade), suas obras também sofreram várias formas de interpretação dentro da

URSS, bem como no mundo ocidental capitalista. Costuma-se estigmatizar que

o mundo da URSS se caracterizava pela ortodoxia (o que a partir da década de

30 realmente ocorreu) e o ocidente pela heterodoxia (o que não é correto na

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perspectiva da compreensão ideológica hegemônica). Quando nos referimos à

hermenêutica vigotskiana estamos tratando deste universo que consiste nas

influências sofridas, a capacidade de influenciar outras teorias, o uso da teoria

vigotskiana nas diferentes áreas da ciência e as reinterpretações das suas

obras.

A palavra “hermenêutica” é proveniente do grego e é uma palavra

pouco usada nos dias de hoje21. Em grego, hermenêutica significa “interpretar”

e a palavra remete ao radical que leva o nome do deus Hermes, aquele que

roubou astutamente os bois que pertenciam a outro deus, Apolo. Deixou pistas,

mas estas foram intencionalmente postas para confundir a quem quisesse

desvelar o autor do desafio. As pistas, como dito, eram confusas e não

poderiam servir para incriminar Hermes. Apolo teve que buscar outros recursos

de investigação e não simplesmente seguir aquilo que lhe era tão costumeiro.

O enigma exigia sair do que era simples e adotar a criatividade na

investigação. Poderíamos afirmar que a investigação objetiva não era suficiente

para Apolo, era necessário considerar outras dimensões, e não cessou de

buscar a resposta. O resultado disto tudo é que Apolo conseguiu que Hermes

confessasse o que fez e então tiveram que fazer alguns acordos. Não vamos

aqui relatar mais detalhes desta história. Queremos destacar que a palavra

“hermenêutica” tem esta marca de sua origem mítica, ou seja, o objeto da

interpretação se oculta e, por isso, não é tarefa fácil. Exige reflexão, estudo e

não se pode ficar apenas na dimensão das opiniões. Há de se pensar um

caminho. Além disso, há outro aspecto. As pegadas sempre são os rastros

deixados por alguém e a hermenêutica é justamente saber quem as deixou, por

que estão desta forma, quais as razões de alguém estar naquele lugar que

envolveu as intenções, as ações, o contexto e a história. Para nossa pesquisa,

as pegadas são os textos escritos, os rastros são o conjunto da obra e a

hermenêutica a interpretação da interpretação.

Hermes também era conhecido pelas suas sandálias aladas e ele

precisava demarcar os terrenos para não se perder. Demarcava-os colocando

algumas estacas. Esta é uma outra característica da hermenêutica: há

21 No grego, o verbo hermeneüo significa exprimir o pensamento em palavras.

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necessidade de uma de-marcação, de-limitação do terreno para que possamos

nos orientar. São muitos detalhes e mesmo tendo poderes de um deus, sua

capacidade tinha limites. A hermenêutica está nesta tensão entre o de-marcado

e o não-de-marcado ou entre o de-limitado e o não-de-limitado.

Aristóteles escreveu o livro Peri Hermeneias (Da interpretação) para

definir o “nome” e o “verbo”, em seguida, explicar o que se entende por

“negação”, “afirmação”, “sentença” e “proposição”. O que é algo? É a mesma

pergunta: que é o ser? Cada algo tem um nome e precisa de um verbo para

denominar a ação. Aristóteles apresenta a hermenêutica como uma gramática

e nos aponta que o texto ou o discurso é a matéria-prima para a interpretação.

A interpretação, além de exigir uma gramática, precisa de uma sintaxe – as

relações de concordância, de subordinação e de ordem e uma ordem no texto

ou no discurso. Três perguntas simples: “o que ler?” “como ler?”, e, “em que

ordem ler?” Como responder estas perguntas em se tratando da produção

literária de Vigotski?

Dois polêmicos hermeneutas materialistas: Baruch Espinosa e Karl Marx

A hermenêutica foi o recurso de interpretação da teologia para explicar

quais manuscritos poderiam ser eleitos ou não e receber a unção de sagrado.

Não era possível simplesmente aceitá-los sem estabelecer alguns critérios de

seleção.

No século XVI, na Alemanha, Martin Luther (1483-1546) estudou os

manuscritos que compõem o livro sagrado cristão e justificou exegeticamente

que alguns livros não poderiam ser considerados aptos a permanecerem no

patamar sagrado ou no cânone. Além disso, passagens de alguns livros eram

de origem duvidosa. Não vamos aqui entrar no mérito da polêmica se tinha

razão de reivindicar uma nova forma de interpretação. O que nos importa é que

a interpretação em si ganha legitimidade para confrontação, para desestabilizar

a hegemonia dominante. A interpretação está ligada ao poder e Martin Luther

expunha esta peculiaridade. Temos que lembrar que, neste momento, a

imprensa está se impondo, se estruturando e as obras que estavam sob

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responsabilidade da igreja poderiam ser publicadas. O que poderia ser

publicado? O que poderia vir a ser de conhecimento público? A hermenêutica

teológica inaugura os tribunais de interpretação que depois também serão

referência para a área jurídica.

No século XVII surge um hermeneuta que influirá determinantemente

na forma de fazer as interpretações e as exegeses bíblicas mesmo tendo sido

o mais polêmico e execrado filósofo de sua época. Baruch Espinosa (1632-

1677) com seu Tratado Teológico-Político (1670) defendeu que a filosofia e a

religião deveriam estar separadas. A razão de ser da filosofia não poderia ser

considerada a mesma que a da teologia. O objeto de uma era a razão e de

outra era a fé. Entretanto, a Bíblia é inegavelmente uma fonte de legitimação

do poder e os textos ali são de uma época longínqua, reverenciados nos dias

de hoje. Espinosa alertava para o cuidado de se considerar no presente uma

referência do passado. Mais do que isto, que uma referência do passado

pudesse ter a mesma importância ou valor de aplicação do que fora no

passado. No capítulo VII do Tratado Teológico Político – Da interpretação da

Escritura – Espinosa faz uma contundente declaração:

“Toda a gente diz que a sagrada escritura é a palavra de deus que ensina aos homens a verdadeira beatitude ou caminho da salvação: na prática, porém, o que se verifica é completamente diferente. Não há, com efeito, nada com que o vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver segundo os ensinamentos da sagrada escritura. É ver como andam quase todos fazendo passar por palavra de deus as suas próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupada é em saber como extorquir dos livros sagrados as suas próprias fantasias e arbitrariedades, corroborando-as com a autoridade divina. Nem há mesmo nada que eles façam com menos escrúpulos e com maior temeridade que a interpretação da escritura, ou seja, da mente do espírito santo; e, se alguma coisa nessa tarefa os aflige, não é o receio de atribuir ao Espírito Santo algum erro e afastarem-se do caminho da salvação, mas sim poderem ser apanhados em erro pelos outros e, desse modo, verem a sua própria autoridade calcada aos pés dos adversários e serem alvo de escárnio (2008, p. 114).

Espinosa está instigando o exercício da interpretação e não

simplesmente uma leitura que se adeque às fantasias. Está defendendo e

estabelecendo os parâmetros para uma metodologia exegética para interpretar

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os livros sagrados. Afirma que é necessário elaborar “a história autêntica” dos

livros e para isso sugere um método:

“Muito resumidamente, o método de interpretar a Escritura não difere em nada do método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com ele. Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento de seus autores. Desse modo, quer dizer, se nas interpretações da escritura e na discussão do seu conteúdo não se admitirem outros princípios nem outros dados além dos que se podem extrair dela mesma e da história, estaremos procedendo sem perigo de errar e podemos discutir com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural” (Ibidem, ps. 115-116).

Espinosa sugere, para fazer a interpretação adequada, entender a

história dos livros e de seus autores. Uma “história autêntica” que desvele

alguns aspectos para que se possa ter uma totalidade analítica. Ele resumiu

três aspectos para a interpretação:

1) Analisar a natureza e as propriedades da língua em que foram

escritos os livros para poder compreender os sentidos das fases

naquele contexto científico;

2) Fazer comparações das fases, reuni-las em uma unidade de sentido

e separar as ambiguidades;

3) Investigar a vida do autor do livro e analisar as versões que foram

sistematizadas ao longo do tempo (Ibidem, ps. 117-120).

Espinosa toma este capítulo evocando o método que não pode ser

considerado nada complicado pelos “filósofos argutos”. É um método simples.

Porém, não é tão simples assim aceitá-lo. A premissa “o método não se difere

em nada do método de interpretar a natureza” só é possível acatá-la se deus

não for considerado causa transitiva, ou seja, se deus não é criador de nada.

Os interesses de interpretação vão colidir com o poder de interpretação da

igreja porque não há lugar para um deus que não seja criador. Sem um deus

criador não há adoração e muito menos um povo escolhido para esta

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adoração. Os livros sagrados, na visão da ortodoxia, devem sustentar esta

proposição, caso contrário a institucionalidade perde sentido.

Martin Luther havia criado uma hermenêutica teológica baseada na

ascese dentro do mundo, ou seja, no lugar de uma ascese fora do mundo que

designava esta realidade como passageira e submissa à autoridade da igreja e

aos seus representantes legais e interpretadores inquestionáveis, instituiu-se a

ascese dentro do mundo, que significa colocar a interpretação sob a base da

consciência individual e assim o poder de interpretação foi

desinstitucionalizado. É a célula mater para instaurar o individualismo e o

capitalismo, como bem identificou o sociólogo Max Weber ao analisar com

mais profundidade o Calvinismo. À igreja cabe o papel de promotora e não

mais de interlocutora. Baruch Espinosa radicaliza a força hermenêutica

luterana, isto porque é preciso entender ou conhecer as sagradas escrituras

assim como se conhece a natureza, porque deus é natureza.

Para finalizar, citamos também outro hermeneuta de tradição

talmúdica: Karl Marx. Talvez soe como uma ironia, mas Marx é de família

rabínica e o seu rigor de interpretação demonstra que não fugiu de sua tradição

familiar. A sua hermenêutica também parte do reconhecimento de que o

método deve se ater à natureza. Assim como a hermenêutica Espinosana

ganha radicalidade se comparada à luterana, é em Marx que a radicalidade

Espinosana ganha sua máxima expressão materialista. No segundo posfácio

de O capital, em rara explicitação, Marx expõe seu método hermenêutico:

“(...) deve-se distinguir o modo de exposição segundo sua forma do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori” (MARX, 2013, p. 90).

Marx está deixando bem claro nesta hermenêutica que o fenômeno

aparente não coincide com a essência, mas o fenômeno é o que aparece

primeiro, imediatamente. Se o fenômeno e a essência coincidissem não teria

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sentido a própria interpretação. Então, primeiro aspecto é analisar

incansavelmente as determinações do objeto de tal forma que a essência

possa ser revelada. Contudo, há uma questão determinante que Marx não

dissocia de sua hermenêutica: o fator histórico. A materialidade não está

estática no tempo, está em movimento, portanto, as determinações sendo

históricas elas devem ser analisadas nas relações que são estabelecidas no

contexto. Há uma frase muito significativa que pode dar mais precisão ao que

estamos descrevendo e interpretando: “a produção é a universalidade, a

distribuição e a troca, a particularidade, e o consumo, a singularidade na qual o

todo se unifica” (MARX, 2011, p. 44). Esta frase mencionada por Marx sintetiza

a crítica que faz para outros pesquisadores sobre o modo de produção

capitalista, porque tomavam como real o que era considerado nada mais do

que uma ilusão do próprio capital22. Podemos considerar também que todo

esforço que Engels e Marx fizeram para interpretar a filosofia hegeliana e pós-

hegeliana foi necessária para um autoesclarecimento e um

autorreconhecimento. Se este processo não resultou na publicação no tempo

que achavam que deveria, posteriormente não tinha mais sentido:

“Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto

quanto já havíamos alcançado nosso fim principal, que era nos esclarecer”

(MARX, 2015a, p. 51). Os ratos não fizeram o serviço e os dois volumes que

foram escritos pelos autores resultaram no livro A ideologia Alemã. Uma obra

fundamental para entendermos a síntese de seu pensamento, mais do que isto,

sua trajetória; a partir desta citação, foi necessário mais tempo para fazer

interpretações especialmente de Hegel e de Feuerbach.

Julgamos suficientes os referenciais metodológicos interpretativos de

Espinosa e Marx. Contudo, para analisar as razões de um autor do passado

ganhar tanta relevância, precisamos ampliar este estudo para determinações

do presente numa sociedade de consumo.

Nesta nota sobre o método, antes de qualquer coisa, queremos definir

uma teoria hermenêutica e uma metodologia de investigação hermenêutica.

Como interpretar um autor que interpreta o mundo? Aplicamos seus próprios

22 Não mencionamos aqui a hermenêutica hegeliana, mas esta confrontação será feita mais para frente.

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recursos teóricos e metodológicos? Se assim optarmos, conseguiremos

qualidade nas nossas investigações? Quando investigamos um autor que

produziu há mais de 80 anos tendemos a recorrer às suas obras como se

fossem objetos estacionados no tempo. Lemos os livros, nos identificamos com

muitas questões, o tomamos como referência para nossas vidas porque

oferece algum sentido às perguntas acerca do que estamos fazendo.

Analisamos suas categorias e vemos sentido em muitas questões do nosso dia

a dia. Elaboramos pesquisas e textos tomando como referência um autor ou

autores que vão se consolidando num círculo hermenêutico ao qual nós nos

associamos livremente. Escolhemos comentadores ou interpretadores que

tendem a fortalecer este círculo. Lemos os detratores para nos munir de

argumentos e nos fortalecer nas disputas que possam ocorrer com círculos

hermenêuticos contrários à visão que se defende. As obras de um autor

assumem uma forma simbólica como se fossem obras de arte. Investe-se num

plano editorial que segue regras cientificamente predeterminadas e um plano

de comunicação para colocá-las nas estantes das livrarias. Antes de chegar aí,

há um caminho longo de produção e talvez resultado de disputas para

demarcar o terreno teórico. Às vezes, não há reconhecimento do público

quando os autores ainda estão vivos. Ou, são como obras de arte mal

interpretadas numa época e ganham todo sentido em outros momentos

históricos. Outro fenômeno: as obras podem ser produzidas, mas não são

reconhecidas ou não são compatíveis com uma ideologia política, ou não são

permitidas dentro de uma cultura. Como formas simbólicas expressam a

dinâmica da cultura e em determinados momentos assumem relevância. No

nosso caso, falamos de livros, documentos, manuscritos, cartas e anotações

de reuniões. Estes ganham mais relevância quando a população começa a

reivindicar o acesso à educação e aos programas de alfabetização nem

sempre muito bem vistos pelas elites. Vale lembrar que a população

alfabetizada da Rússia, no início do século XX, compreendia 15% do total. É

apenas um exemplo, mas real naquela época como em muitos outros países.

Nossa realidade hoje é bem diferente, mas não podemos deixar de lado o

reconhecimento dos aparatos tecnológicos para comercialização de livros. Eles

existiam no passado também, mas a realidade virtual de hoje possibilita várias

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formas de acesso. Mesmo assim, os textos continuam sendo as formas

simbólicas que fazem o papel de mediação na cultura. São artefatos ou

ferramentas de mediação da cultura.

Nós destacamos dois grandes hermeneutas não apenas pela

característica talmúdica tão semelhante e nem porque suas obras tenham sido

rechaçadas pela incompatibilidade com os preceitos religiosos e políticos, ou

então com a ideologia dominante. Espinosa e Marx têm uma forte característica

materialista que compactua que a essência envolve necessariamente a

existência, ou seja, “a natureza não pode ser concebida senão como existente”.

Esta é primeira definição da Ética de ESPINOSA (2007, Parte I, prop. 1) e se

confunde com a perspectiva marxiana, “o real é concreto porque é síntese de

múltiplas determinações” (MARX, 2015b, p. 187).

Espinosa, como já foi apresentado, nos orienta no campo exegético.

Seguimos suas orientações, mas como ele mesmo expressou, são simples.

Basta considerar a língua original, fazer comparações buscando unidade de

sentido e separar ambiguidades e identificar a visão de mundo do autor que

escreve. O autor não é um ser isolado ou um objeto que recebe a animação

mágica. Não é um átomo e nem uma tábula rasa. Marx – também nos

referimos a ele – não admitia que alguém pudesse escrever qualquer texto sem

considerar as determinações reais do mundo. Totalmente intransigente com as

concepções meramente interpretativas da realidade sem considerar a validade

prática e sem que estivessem inseridos na prática. Tanto uma abordagem de

um autor como de outro poderia ser suficiente para o nosso intento.

Não podemos apenas considerar nossos dois autores acima, porque

não são suficientes para a especificidade que pretendemos. Nenhum dos dois

talvez imaginaria os níveis aos quais chegamos na atualidade com relação aos

meios de comunicação de massa. É claro que os dois autores nos dão

recursos para fazer análises com consistência sobre a realidade de hoje. Não

estamos nos referindo a isso. Nosso trabalho parte de um acervo produzido no

início do século XX; atualmente, há um interesse muito grande de retomá-lo

devido à importância que teve para instrumentalizar profissionais na área da

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educação e da saúde, num período de transformação da estrutura econômica e

política.

Nós sustentamos que Vigotski tem um fundamento Materialista

Histórico Dialético, mas muitos biógrafos e comentadores retiram esta

gnoseologia da teoria vigotskiana. Não partimos do nada para sustentarmos

nossa defesa, mas é preciso analisar esta pré-interpretação a partir de um

referencial que nos ajude a iluminar esta produção. Os dois hermenêutas

acima citados no ajudam nesta tarefa.

A hermenêutica de Profundidade

A temática da hermenêutica passa também a ser analisada por autores

no século XX associando à análise as transformações sociais, o estudo sobre

culturas e ideologia dentro de sociedades que estão estruturadas pela

influência dos meios de comunicação de massa. Hans-Georg Gadamer (1900-

2002), Martin Heidegger (1889-1976), Theodor Adorno (1903-1969), Max

Hockheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Walter Benjamin

(1892-1940), Paul Ricouer (1913-2005), Jürgen Habermas (1929-...), Karl

Popper (1902-1994) e os mais recentes John B. Thompson (1959-...) e Bruno

Latour (1947-...) são os mais destacados autores que se debruçaram sobre a

relação entre ideologia e cultura. Se fôssemos destacar as análises

desenvolvidas especificamente na área da Sociologia do Conhecimento esta

lista se ampliaria muito mais, mas citamos os principais.

A hermenêutica está constantemente envolta na retórica e na

gramática, porque se referencia na linguagem. GADAMER (1999), aluno de

Matin Heiddeger, considera a linguagem como “meio em que se realiza o

acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa” (Ibidem, p. 560).

Temos uma situação hermenêutica no caso dos textos de Vigotski; são

compreensões entre o que está “fixado demoradamente” e um “parceiro de

conversação hermenêutica”: o intérprete. O texto passa a ser um ponto fixo que

se estabelece não como uma questão única possível, mas está implicado nas

ideias de um intérprete. O texto escrito assume um valor reconhecido que

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quando transmitido “está aí para qualquer presente” (Ibidem, p 568). O que

está escrito aparece como livre do caráter psicológico, considera-se a forma

mais pura. Contudo, o trabalho hermenêutico está aí e tem sua incompletude,

isto porque há muito mais do escrito a ser compreendido. Tal concepção de

Gadamer é o que também Vigotski afirma, ou seja, um texto não pode ser

considerado um resultado do autor porque uma “obra criativa representa um

processo histórico contínuo, onde cada forma tem por base a precedente”

(VIGOTSKI, 2014, p. 32). A síntese de um escrito não é resultado de uma ação

individual, mas sempre “uma colaboração anônima” (Ibidem, p. 33).

Thompson destaca a necessidade, além da hermenêutica, de elencar

dois campos de estudo: a cultura e a ideologia. O conceito de cultura está

também no rol da polissemia, mas para Thompson esta tarefa é de

esclarecimento imprescindível. Desviando das concepções funcionalistas e

descritivistas da cultura encontra em Clifford Geertz (1926-2006) a sua melhor

definição:

“Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças (THOMPSON, 2000, p. 176).

Considera esta definição a mais ampla possível e dentro dela extrai as

“formas simbólicas” que compreende como “expressão do sujeito para

sujeito(s)”. As formas simbólicas são fatores de mediação da cultura. Por

outro lado, dentro da cultura deve-se estudar a ideologia e a função das formas

simbólicas serão melhor compreendidas:

“(...) o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas – que eu chamarei de "relações de dominação", Ideologia, falando de uma maneira mais ampla, é sentido a serviço do poder. Consequentemente, o estudo da ideologia exige que investiguemos as maneiras como o sentido é construído e usado pelas formas simbólicas de vários tipos, desde as falas linguísticas cotidianas até às imagens e aos textos complexos”

(Ibidem, p. 16).

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Na visão de Thompson, cada vez mais as formas simbólicas estão

sendo mediadas por aparatos técnicos e institucionais das indústrias da mídia.

Ao nos referirmos a obras literárias do passado e que assumem valor nos dias

atuais precisamos analisar a relação com a indústria da mídia. Por exemplo, as

obras completas de Vigotski estão sendo preparadas para serem publicadas.

Serão comercializadas pela mídia eletrônica? O que significa a disponibilização

destas obras a partir deste aparato tecnológico?

Thompson sugere uma metodologia hermenêutica que pode ter a

tarefa principal de estudar “a inter-relação entre significado e poder” que nada

mais é que a ideologia. Sugere distinguir três fases analíticas: 1) Análise sócio-

histórica; 2) Análise formal ou discursiva; 3) e a interpretação/reinterpretação.

Discordando rigorosamente das estratégias do positivismo porque “trata os

fenômenos sociais em geral e as formas simbólicas como se fossem objetos

naturais”. Ou seja, o positivismo reside em delimitar unilateralmente a

interpretação apenas no “campo objeto” e não contempla o “campo sujeito”. É

que os sujeitos estão sempre inseridos em tradições históricas e a

hermenêutica não tem como se abster do caráter sócio-histórico.

A primeira fase, portanto, sócio-histórica, deve se ater às “condições

sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas”.

Esta fase é importante porque as formas simbólicas “são fenômenos sociais

contextualizados, são produzidas, circulam e são recebidas dentro de

condições sócio-históricas específicas que podem ser reconstruídas com a

ajuda de métodos empíricos, observacionais e documentários”. A segunda

fase podemos descrever como a "análise formal ou discursiva" que consiste

em estudar as formas simbólicas como construções simbólicas complexas que

apresentam uma estrutura articulada. As formas simbólicas podem exigir

formas diferentes de análise que devem se ater às dinâmicas internas, suas

características estruturais e padrões de relações. Thompson alerta para esta

fase o risco de se perder na análise quando se perde como um fim em si.

“Tomada em si mesma, a análise formal ou discursiva pode tornar-se– em

muitos casos ela se torna – um exercício abstrato, separado das condições

sócio-históricas e despreocupado com o que está expresso pelas formas

simbólicas, cuja estrutura ela procura revelar”. A terceira e última fase do

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referencial da hermenêutica de profundidade é chamado de "interpretação" ou

“reinterpretação”. Esta fase interessa-se pela explicitação criativa do que é dito

ou representado pela forma simbólica. A partir do que foi estudado na primeira

e na segunda fase, buscará a construção sintética (Ibidem, ps. 365-377).

Para concluir, nossa referência para o estudo das obras vigotskianas

tomará como referência metodológica Espinosa, Marx e Thompson.

Entendemos a hermenêutica como o estudo do estado da arte na produção

vigotskiana. Contudo, como destacamos neste referencial metodológico, não

temos condições de considerar o conjunto da obra (isto também seria um

exagero). Selecionamos alguns títulos. Justificamos esta opção partindo do

simples para o complexo para depois fazer o caminho inverso. Nessas obras,

porém, poderíamos tratar de tantos assuntos específicos, mas destacaremos

na teoria vigotskiana o materialismo histórico dialético em geral e a dialética em

particular.

A seguir, definimos três partes o nosso trabalho. Na primeira tratamos

de analisar a vida e a obra de Vigotski; na segunda, o estudo da dialética na

história da filosofia para, no momento seguinte, localizá-la na trajetória de

Vigotski.

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PARTE I – ESTADO DA ARTE DA HERMENÊUTICA VIGOTSKIANA

O desafio hermenêutico para o estudo das obras de Vigotski é

apresentado precisamente por GONZÁLEZ REY (2013, p. 5), a saber:

“A obra de Vigotsky representa um sistema de pensamento, com múltiplos detalhes e desdobramentos difíceis de serem apreciados sem que se acompanhem seus diferentes momentos e contextos. A própria publicação dos textos de Vigotsky na antiga União Soviética foi tardia e fragmentada, e muitos de seus originais não foram publicados até o aparecimento de suas obras escolhidas em russo na década de 1980. A todas as dificuldades anteriores somam-se os diferentes ângulos a partir dos quais o autor é lido por aqueles que mais publicam sobre ele, e as publicações derivadas dessas interpretações são as que passam a ser os textos de referência desse pensamento. A tradução de Vigotsky nos Estados Unidos foi feita do ponto de vista do pragmatismo norte-americano como filosofia de fundo, o que se evidencia pela quantidade de trabalhos voltados a estabelecer analogias entre seu pensamento e os clássicos desse movimento filosófico. Contudo, seus antecedentes filosóficos no marxismo e no pensamento de Spinoza, a influência da psicologia alemã da época sobre sua obra, e os que precederam e seus contemporâneos na época soviética, têm sido pouco estudados e mal elaborados”.

Nosso trabalho não tem a pretensão de englobar todas as obras de

Vigotski – não que não seja possível, mas tal empreitada exigiria a força de

uma linha programática de pesquisa. Nesta parte, apenas tocamos em

questões gerais que envolvem a história da época da Revolução de Outubro de

1917 (porque é um evento determinante na história da Rússia e também para a

história pessoal de Vigotski), a questão judaica, aspectos teóricos apontados

pelos biógrafos mais conhecidos, informações sobre o conjunto da obra de

Vigotski, bem como as principais referências teóricas.

O acesso hoje às obras de Vigotski é muito mais fácil, isto porque

dispomos de 31 títulos na língua portuguesa além de 54 títulos na língua

espanhola, por meio do conjunto de títulos traduzidos das Obras Reunidas do

Russo. De acordo com as pesquisas de VIGODSKAIA & LIFANOVA (1999),

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foram catalogados 275 títulos e a maioria está disponibilizada na língua

russa23.

Quando Vigotski aceitou o trabalho no Instituto de Psicologia, em

Moscou, em 1924, foi a oportunidade única, aquela que ninguém com o perfil

de pesquisador como ele resistiria a dizer “não”. Havia equipe disponível,

campo de trabalho bem definido, interesse pelos resultados na prática, poder

de implementação de programas de alto impacto social, laboratório de

observação, dedicação exclusiva, relação com a universidade e possiblidade

de ampla publicação para orientação à distância. Vigotski casou, abraçou o

desafio e foi para Moscou. Contudo, a doença que havia contraído era o seu

grande obstáculo, mas isso não o impediu de investir na produção e de

trabalhar intensivamente. Sua formação erudita, com capacidade de acessar

publicações internacionais de fala inglesa, francesa e alemã, fez com que

pudesse dialogar e debater questões mais complexas. Sua atuação despontou

tanto que anos posteriores era membro de quatro conselhos editoriais de

revistas, foi presidente da organização VARNITSO24, deputado de um distrito

de Moscou, tornou-se chefe de laboratório psicológico, deu aula na

universidade (VEER &VALSINER, 2009, p. 203). Tudo isso, entretanto,

começou a desmoronar quando, em 1932, o laboratório foi fechado e ele não

viveu depois de 1934 para ver todas as suas obras serem proibidas de

circulação, como as de tantos outros pesquisadores.

Entendemos que o volume de produção realizado em seu nome não

poderia ser um trabalho solitário. São vários os títulos que estavam nos

arquivos da família e ficaram registrados em estenogramas, o que demonstra o

trabalho coletivo para preparar conferências (ou palestras), participar de

debates e sistematizar as sínteses e preparar publicações (artigos e livros).

Não podemos, por outro lado, negar o caráter de liderança de Vigotski e a

capacidade de organizar material sempre para publicação. Notamos,

23 Janeiro de 2017 foi lançado um portal eletrônico no Brasil onde consta a lista completa de todas as obras catalogadas pela pesquisadora LIFANOVA. Constam 275 títulos que disponibilizam quase todas as publicações na língua russa. www.ced-br.net 24 Sigla da “Associação Sindical de Trabalhadores da Ciência e Técnica para a Promoção da Edificação Socialista na URSS”.

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entretanto, que em algum momento ocorreu um rompimento entre os

colaboradores e as obras receberam a autoria única.

No final de 1934 o livro Pensamento e Linguagem é publicado na

Rússia, mas devido ao decreto de 04 de julho de 1936, é proibido de circulação

junto com uma lista de outros livros. É novamente reeditado em 1956, em

conjunto de obras só é publicado na década de 1980. Quais os argumentos

que o establischment utilizava para condenar as obras de Vigotski? O que

tornou possível sua reedição em 1956? E a publicação das obras na década de

1980 tem qual fundamento para serem revalidadas? As obras editadas na

década de 1980 passaram por uma nova censura ou não? As cópias originais

dos diversos manuscritos encontrados nos arquivos da família de Vigotski não

são apresentados eletronicamente e, algumas vezes, quando se tem notícia de

alguém acessar os manuscritos, surgem denúncias de adulteração diretas

(TOASSA G. , 2015 b). O que chamamos atenção aqui, neste momento, é que

as obras proibidas a partir de 1936 tornam-se, na década de 80, relevantes

para publicação. A qualidade dos escritos, a densidade lógica, a

contextualização com a teoria psicológica internacional, a minuciosidade e a

seriedade da pesquisa de Vigotski eram bons instrumentos de divulgação da

própria teoria marxista para o mundo. Este era o papel da Rússia na tensão

com o mundo capitalista. Os manuscritos são fichas simbólicas a serviço do

poder e da ideologia.

GONZALEZ REY (2013) nos chama atenção para a necessidade de

criar programas de pesquisa para investigar “os antecedentes” do pensamento

marxista, espinosano, a psicologia alemã do período que viveu Vigotski e a

psicologia soviética na relação com o pensamento vigotskiano (há muito tempo

também destacada por Leontiev). Sugere fazer análise de produção, análise

formal do conteúdo para então fazer reinterpretações. Este é um trabalho que

está começando em várias universidades, mas não temos informações sobre

esta tendência na Rússia.

A teoria de Vigotski foi identificada no seu tempo e depois de diversas

formas: instrumental, psicologia cultural, psicologia sócio-cultural, psicologia

histórico-cultural, psicologia sócio-histórica, teoria des-cultural ou então teoria

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das formas psicológicas superiores. Estas diferenças mostram duas

abordagens que se separaram ou que se intercruzam. A primeira, em razão

das diferentes concepções psicológicas em que os grupos de pesquisa estão

enraizados e como veem ou se utilizam da teoria vigotskiana; a segunda, em

razão do amplíssimo campo de investigação herdado de Vigotski e a forma

como grupos de pesquisa também dão continuidade ao que ficar inconcluso

nas suas investigações. Este caráter de incompletude do pensamento

vigotskiano se deve, como iremos sempre enfatizar, ao seu período curto de

vida. No momento de sua vida mais produtivo e mais significativo para

responder o conjunto de indagações que realizara na sua última década de

vida não conseguiu o que nós denominaríamos de “síntese”. Longe de

querermos aqui apologizar que a produção de Vigotski não se endereçava para

síntese, muito pelo contrário, dada a sua intenção sempre marcante desta

busca por uma conclusão metateórica que sentimos falta em muitos campos.

Poderíamos declarar a existência de uma escola vigotskiana? Há uma

tendência de personalização por parte da influência ocidental e, porque não

dizer, americanizada de enaltecer a figura da genialidade de Vigotski (de fato

teve muita genialidade e seus contemporâneos reconhecem sua alta

capacidade de síntese), mas seria um contrassenso estudar a vida e a obra de

Vigotski e concluir ou considerar sua genialidade como consequência de um

isolamento monástico. Vigotski foi sempre um articulador e mobilizador de

iniciativas que entrelaçavam a vida real, a teoria e a pesquisa. Ao considerar

sua produção enfatizando apenas as demandas da vida real transformamos

sua teoria num pragmatismo; ou então num idealismo estético; ou então na

área da pesquisa, um metodólogo.

Havia na década de 1920 um grupo muito coeso de pesquisa formado

pela conhecida “troika”: Vigotski (1896 – 1934), Alexander Romanovich Lúria

(1902 – 1977) e Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979). Se observamos o

detalhe da diferença de idade entre estes três pesquisadores, podemos

verificar que tanto Lúria como Leontiev eram muito jovens e Vigotski já vinha de

uma experiência de trabalho educacional e, certamente, esta “troika” só se

formalizou muitos anos depois quando estes dois pesquisadores reconheceram

o que haviam desenvolvido em tão pouco tempo, no período de 1924 até 1931.

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Em 1931 este grupo se desfez. Grupo de pesquisadores que não se constituía

apenas destes três pesquisadores, mas um conjunto significativo de

colaboradores.

Ao descreverem as fases de vida e de produção de Vigotski, vários

biógrafos não se diferem muito entre si e basicamente distinguem três fases:

antes de 1924 (a vida em Gomel e a passagem em Moscou para os seus

estudos universitários); de 1924 até 1931/32 (o trabalho centralizado de

pesquisa dentro do Instituto de Pesquisa em Moscou até os processos de

descentralização e controle); 1931/1932 a 1934 (acirramento do controle

central sobre as pesquisas e a ampliação do campo de pesquisa com

definições de novas abordagens epistemológicas).

Um dos principais biógrafos (e pioneiro) de Vigotski, Alex Kozulin, não

se preocupa em definir uma linha cronológica demarcatória, mas de evidenciar

o quanto o estudo sobre a tragédia shakespeariana, Hamlet – Príncipe da

Dinamarca, foi tão determinante para a formação acadêmica de Vigotski. O

primeiro rascunho deste ensaio já fora escrito no final do ano de 1916, quando

tinha 20 anos de idade. O ensaio sobre Hamlet culmina com o começo da

carreira de Vigotski como escritor humanista. No período de graduação

acadêmica em Moscou Vigotski tinha um mentor literário chamado Yuli

Aichenwald, que exilou-se em 1922 em função de contrariedades políticas da

época. Conforme KOZULIN (1990), este foi um duro golpe para Vigotski, pois

havia criado uma parceria formativa muito estreita e profícua. Aichenwald

escreveu um livro sobre os escritores russos que ficou muito conhecido na

época; nessa obra, criticava duramente a concepção pragmática da literatura

como instrumento de mudança social. Para Aichenwald, o autor é o centro de

uma época histórica e não uma esponja que absorve problemas sociais. Esta

ideia está relacionada com outra, da relação entre a arte e a vida, entra a

palavra e a ação. A arte cria a vida, em lugar de refleti-la. Entendemos que este

mentor foi um escritor que influenciou muito a formação crítica de Vigotski.

VEER & VALSINER (2009) preocupam-se em fazer uma

contextualização das obras de Vigotski, mas não a fazem considerando a

inserção histórico-crítica. Há preocupação em apontar os principais temas com

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os quais Vigotski se envolveu: psicologia pedagógica, defectologia, psicanálise,

crise da psicologia e os fundamentos que eles denominam como “histórico-

cultural”. Dividem-se três fases principais da vida de Vigotski: i) os primeiros

anos em Moscou, de 1924 a 1928; ii) a teoria histórico-cultural, de 1928 a 1932;

iii) Moscou, Kharkov e Leningrado, de 1932 a 1934. Em relação ao período de

1916-1923 os autores constatam que “nenhuma publicação nesse período de

sete anos” (Ibidem, p. 21) fora verificada, o que torna uma tarefa intrigante para

os biógrafos, mas os autores também reconhecem que ainda não haviam sido

devidamente investigadas as fontes disponíveis e que alguns indícios

apontavam para uma outra situação.

GONZÁLEZ REY (2013) distingue três momentos do pensamento

vigotskiano: o primeiro compreende de 1915 e 1928; o segundo momento de

1928 a 1931; e, o terceiro, entre 1928 e 1934 (Ibidem, p. 4). No primeiro

momento, Vigotski vive a tensão na psicologia soviética entre o idealismo e o

materialismo e a gradativa transição do materialismo histórico e dialético, que

passou a ser cada vez mais “dogmático e mecanicista” a ponto de não caber

mais “a dialética como modelo de pensamento” (Ibidem, p. 7). Esta visão

dogmática, determinista e sectarista levou a psicologia soviética “pela

conversão da categoria de reflexo em princípio essencial para a representação

da psique” (Ibidem, p. 7). Conforme GONZALEZ REY, a dialética que não

deveria escapar da análise das contradições entre “as formas de realidade

dentro das quais se desenvolve a experiência de vida do sujeito” e “as formas

subjetivas que se produzem nessa experiência, questão essencial para o tema

da subjetividade, foi deixada de lado” (Ibidem, p. 7) e este caminho

gradativamente foi criando uma política de controle na URSS para definir o que

era correto ou não. O segundo momento GONZALEZ REY denomina de “giro

objetivista de Vigotski” destacando três aspectos: primeiro, em alguns de seus

trabalhos, por exemplo, “História das Funções Psíquicas Superiores”, enfatiza-

se o conceito de “assimilação” que está muito próximo à noção de “reflexo” tão

diferente ao caráter do estudo genético da origem da psique; segundo,

estabelece uma dicotomia entre “o signo como meio de influência sobre os

demais e como meio de influência sobre si mesmo” – visto desta maneira o

signo passa a ser uma “representação instrumental de sua relação com a

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função psíquica”; terceiro, também uma dicotomia ao enfatizar a relação entre

o interno e o externo – afirma que primeiro vem o externo para depois vem o

interno – “rompe com o caráter dialético do desenvolvimento” que estava tão

fortemente presente no primeiro momento analisado. Conforme o autor, neste

momento, Vigotski está muito próximo de Alexei Leontiev e dos teóricos da

atividade” (Ibidem, ps. 85-87). Novas categorias surgem no terceiro período,

por exemplo, a categoria de “sentido” que Vigotski faz um destaque especial

em “Pensamento e Linguagem” – esta categoria integraria uma unidade

dinâmica entre afeto e cognição. Segundo GONZALEZ REY, ao reconhecer um

novo tipo de unidade do sistema psíquico rompe-se com a dicotomia do

individual e do social tão presente na psicologia (ibidem, p. 95). Em outro

momento, ao tratar da personalidade, conforme o autor, Vigotski une

“personalidade à consciência e à espiritualidade” (Ibidem, p. 97).

Del RÍO, numa entrevista concedida a uma revista (REGO & BRAGA,

2013), destaca basicamente duas fases, se assim, de maneira simples,

podemos considerar: a década literária (1914-1924) e a década psicológica

(1924-1934). Semelhante às considerações de KOZULIN (1990) não se

identifica a “década literária” como “heterogênea” ou “irrelevante”, mas

extremamente determinante para os estudos de psicologia que Vigotski irá

desenvolver na década seguinte. Para ÁLVAREZ & Del RÍO (2007) também a

pesquisa sobre a tragédia shakespeariana Hamlet – Príncipe da Dinamarca foi

um ensaio que qualificou os estudos de Vigotski.

“Vigotski encontra em Hamlet também outra coisa: o fato humano ainda é incognoscível, e um grande desafio. E saber para onde a humanidade vai é a grande incógnita da humanidade consciente, aquela pequena parte da humanidade que não pode viver sem se fazer tais perguntas. A maioria das pessoas decide não as fazer e viver o dia a dia, canalizando suas funções superiores a uma consciência, digamos, prática, operatória. Aplicar as capacidades da consciência a tempos e espaços mais amplos leva-nos a formular essas perguntas que se fazia Vigotski, e, ainda hoje, o empenho está condenado ao mistério, ao fato de que você não vai revolvê-las, mas deve chegar aonde puder. É isso o que Vigotski faz a partir de Hamlet: de um lado, ele se depara com o mistério; do outro, impõe-se o desafio de aceitar a missão de ordenar aquilo que conseguir a respeito do assunto. Então, ele está condenado a essa psicologia” (Del RÍO, cit. entrevistadoras REGO & BRAGA, 2013, p. 518).

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YASNITSKY (2011) faz uma defesa não do exclusivismo da

personalidade de Vigotski, mas coloca-o num círculo marcado pelas fortes

inter-relações entre os pesquisadores que começa em 1924 e termina em

1941. Neste período distingue cinco fases do círculo vigotskiano: primeira fase,

1924 - 1927, considera como “pré-história” do círculo vigotskiano marcado pelo

início das atividades no Instituto de Psicologia em Moscou e pelas pesquisas

realizadas no departamento de pesquisa com crianças e adolescentes com

problemas de desenvolvimento mental e motor. Muitos alunos de graduação

são convidados neste momento para participar de programas de pesquisa, mas

ainda não se estabelece um contato estreito com os pesquisadores; segunda

fase, 1927-1931, é a que YASNITSKY denomina de “círculo Lúria-Vigotski” e

contrariando as “narrativas historiográficas” não inclui Alexei Leontiev nessa

fase, em razão das parcerias para publicações muito mais consolidadas entre

Lúria-Vigotski do que com Leontiev (Ibidem, p. 429). No final desta fase,

Vigotski começa a ser severamente criticado pela sua “teoria histórico cultural”,

mas é neste momento que tanto Lúria como Vigotski serão admitidos no curso

de medicina e isso demonstra que há um interesse de concatenar os estudos

psicológicos com a área de neurologia. Várias pesquisas são realizadas nessa

fase que reforça a parceria Lúria-Vigotski sobre vontade, atenção, pensamento

visual, transição da fala externa para interna, afasia, esquizofrenia, histeria,

etc.; na terceira fase, 1931-1934, o grupo de pesquisa se divide entre Moscou,

Kharkov e Leningrado. É quando vários colaboradores se mudam para Kharkov

(capital da Ucrânia) para coordenar pesquisas no setor de psicologia na recém-

criada Academia Psiconeurológica da Ucrânia. Este grupo de Kharkov é

liderado por Leontiev e será conhecido como escola da atividade. Nesse

período, Vigotski se aproximará do Instituto Pedagógico Estatal Herzen de

Leningrado e ali supervisionará El’Konin, M. Levina, Shif, Kornikova, Fradkina e

muitos outros pesquisadores; na quarta fase, 1934-1936, os pesquisadores

mais próximos do círculo de Vigotski ingressam em programas específicos de

pesquisa e migram para diferentes unidades de ensino. Em 1934, Lúria e

Leontiev deixam Kharkov e voltam para Moscou. Lúria, que estava mais

voltado para questões neurológicas, retorna em março de 1934; Leontiev

retorna em outubro para liderar o Departamento de Psicologia Clínica e depois

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tornou-se professor membro do Instituto Comunista para Desenvolvimento do

Conhecimento, sem nunca desvincular-se dos pesquisadores de Kharkov

(Ibidem, p. 438); na quinta fase, 1936 - 1941, se consolida a escola “Vigotski-

Lúria-Leontiev”, na visão de YASNITSKY. Em 1936, por meio de um decreto, a

Pedologia foi proibida na URSS. Em 1937, vários artigos foram publicados

condenando “a pervertida pedologia de Vigotski”. Nessa fase, tanto Lúria como

Leontiev mantiveram-se em silêncio. Contudo, em 1936, apareceu um artigo de

Alexei Leontiev – O ensino sobre o ambiente nos trabalhos pedológicos de

Vigotski (1936-37) – no qual critica a teoria vigotskiana. Segundo YASNITSKY,

vários colaboradores de Vigotski se afastaram de Leontiev como também,

podemos deduzir, mantiveram certos cuidados nas suas pesquisas e

publicações. A partir de 1940, entretanto, Lúria e Leontiev iniciaram uma

parceria que também resultou em várias publicações e o grupo de

pesquisadores tanto de Kharkov como de Leningrado continuou recebendo

supervisão.

Para aprofundarmos nossos estudos em Vigotski, consideramos

necessário, na primeira parte, analisar os aspectos voltados para sua realidade

socio-histórica. No primeiro capítulo, abordamos a hermenêutica de

profundidade de Thompson. Em seguida, consideraremos “as condições

sociais e históricas” (Capítulo 2), as implicações formativas específicas do

autor (capítulo 3), como a obra é compreendida nos dias de hoje pelos

pesquisadores-biógrafos (capítulo 4), também as condições sociais e históricas

de produção, circulação e recepção das obras (capítulo 5), os desafios para

interpretar o cânone vigotskiano (capítulo 6), bem como as questões que

norteiam sua teoria não como um caráter monolítico, mas aberto e vivo. Isto é o

que denominamos “estado da arte da hermenêutica vigotskiana”.

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Capítulo 2: Contexto histórico – Revolução de Outubro de 1917

O século XX realmente foi dos extremos e suas consequências estão

dentro de nós. Para muitos ainda uma marca na vida.

“(...) o Breve Século XX, ou seja, os anos que vão da eclosão da Primeira Guerra Mundial ao colapso da URSS, que, como agora podemos ver retrospectivamente, formam um período histórico coerente já encerrado. Não sabemos o que virá a seguir, nem como será o segundo milênio, embora possamos ter certeza de que ele terá sido moldado pelo Breve Século XX. Contudo, não há como duvidar seriamente de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou. Esta é a informação essencial para os historiadores do século, pois embora eles possam especular sobre o futuro à luz de sua compreensão do passado, seu trabalho não tem nada a ver com palpites em corridas de cavalos. As únicas corridas de cavalos que esses historiadores podem pretender relatar e analisar são as já ganhas ou perdidas. Seja como for, nos últimos trinta ou quarenta anos o desempenho dos adivinhos, fossem quais fossem suas qualificações profissionais como profetas, mostrou-se tão espetacularmente ruim que só governos e institutos de pesquisa econômica ainda têm, ou dizem ter, maior confiança nele. É possível mesmo que depois da Segunda Guerra Mundial esse desempenho tenha piorado” (A Era dos Extremos - O Breve Século XX – 1914-1991; p.15).

Eric Hobsbawm chama atenção para o fato de que, entre 1815 e 1914,

não houve na Europa uma guerra de grandes mobilizações que envolvesse

vários países. Embora tenha ocorrido no extremo oriente, a guerra entre o

Japão e a Rússia não envolveu outras nações e foi rapidamente resolvida com

acordo de paz solicitado por parte da Rússia. Foi uma guerra bem distante da

Europa Ocidental e a mobilização do exército russo para o extremo oriente lhe

custou muito caro e influenciou decisivamente no enfraquecimento da

monarquia. Tudo isso se alterou na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1917,

que envolveu várias nações e obrigou a realização de várias alianças e

estratégias para protelar, entrar ou se retirar deste conflito. Nosso historiador

didaticamente estrutura este século a partir de três momentos: i) Era da

Catástrofe: início da Primeira até o final da Segunda Guerra Mundial; ii)

seguiram-se 25 anos de intenso progresso denominado de Era de Ouro,

caracterizado pelo extraordinário crescimento econômico; iii) Era de Crise –

desmantelamento da URSS e o endividamento dos países do assim

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denominado Terceiro Mundo (HOBSBAWN, 1998, p.15). Alguns historiadores,

depois da queda do Muro de Berlim, pregaram o “fim da história”, mas, como o

próprio Hobsbawn destaca “enquanto houver raça humana haverá história”

(Ibidem, p. 16).

Nosso interesse aqui é localizar o papel da Revolução Russa e os

aspectos centrais referentes ao processo de institucionalização do socialismo

na Rússia, que inicia, como apregoado pelos fundadores do socialismo

científico Karl Marx e Friedrich Engels, com a ditatura do proletariado.

Na teoria marxiana fica claro a organização da sociedade capitalista

sobre uma base econômica e uma superestrutura política, mas os manuais não

foram suficientes para orientar a organização de um Estado Socialista. Além

dos esforços internos necessários para organização institucional foi necessário

também enfrentar as reações externas, alianças burguesas contra a ameaça

da internacionalização do movimento socialista na Europa Ocidental. A

determinante capacidade russa para reagir aos levantes contrarrevolucionários

só foi bem-sucedida porque a Europa Ocidental estava completamente

desgastada com as consequências da Primeira Guerra Mundial.

O estado socialista na Rússia iniciou de fato em 1921, depois de

resolver internamente a guerra civil, quando os levantes contrarrevolucionários

foram reprimidos e os sovietes tomaram o poder estatal, dando início à União

das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Para chegar numa união de repúblicas é preciso destacar rapidamente

as razões que contribuíram para sair de uma estrutura econômica agrária até

transformar-se numa economia socialista com base na planificação estatal. Até

o início do século XX, a Rússia ainda mantinha um império monárquico

absolutista e vários fatos impuseram a abdicação do imperador Nicolau II

(1868-1918) no início de 1917.

Logo instaurou-se um governo transitório de caráter social-democrata

que assumiu o desafio de elaborar uma constituição e implementar modelos

políticos da Europa Ocidental, mas este não se sustentou; em outubro de 1917,

foi deposto e a revolução bolchevique instituiu o poder definitivo dos sovietes.

Neste mesmo momento foi criado um Comitê Central que fora presidido por

Lênin.

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Toda esta dinâmica no ano de 1917, na Rússia, é muito bem

conhecida, mas é necessário apresentar resumidamente as prerrogativas que

corroboraram para que a revolução socialista – que veio sendo forjada desde

1905, quando irrompeu o primeiro levante contra a monarquia – obtivesse

êxito:

1) A construção da cidade de São Petersburgo no século XVIII pelo

imperador Pedro (1682-1721) e projetos executados ao longo do século XVIII

pelos sucessores deixaram marcas profundas de exploração extrema na

sociedade russa, mesmo que mais tarde esta exploração tenha sido abrandada

com a temeridade das revoltas populares à moda da Revolução Francesa

(1789);

2) Durante o século XIX, a Rússia vivia o dilema diante dos

processos de modernização que não ocorriam em seu solo; se comparada com

outras regiões da Europa Ocidental, era extremamente atrasada e rural;

3) A Rússia era predominantemente agrícola com uma estrutura

ainda feudal. A abolição do servo ocorreu tardiamente, em 1860, devido à

pressão dos camponeses que reivindicaram mais autonomia. A abolição foi

aprovada, mas os camponeses foram submetidos a processos de exploração

muito piores que antes;

4) Para garantir a ampla extensão territorial, o Império Russo

precisava investir no seu exército e garantir suas fronteiras. Contudo, os

benefícios para os soldados combatentes não existiam e as compensações por

manter as fronteiras ou por guerras vencidas eram destinadas à nobreza

proprietária de terra;

5) O movimento dos trabalhadores, que ocorreu logo no início do

século XX na Rússia, especialmente coordenado na região de São

Petersburgo, foi determinante para também deixar marcas na sociedade. A

ofensiva da repressão ocorrida em 1905 contra os trabalhadores e contra o

movimento dezembrista (movimento liberal), que reivindicavam maior

participação na administração do estado, à moda da monarquia constitucional

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das nações ocidentais, instigou os trabalhadores a usarem a mesma estratégia

de violência. Outro fato também sempre lembrado: após 1905, o imperador

havia concordado com uma série de reformas, mas, depois de apaziguado os

movimentos, instituiu um estado de terror e perseguições, o que contribuiu para

o acirramento e as confrontações internas.

Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) foi um dos líderes mais influentes da

Revolução Russa e seu período na direção do Secretariado Geral do Partido

Comunista da União Soviética (1922-1924) foi também um dos momentos mais

intensos e ricos para a definição das instituições. Este momento durou até o

início da direção assumida por Josef Vissorionovitch Stalin (1922-1953).

Um dos livros de Lênin no qual podemos constatar sua oposição

radical e contundente ao marxismo que se transformou em social-democracia,

especialmente o da Alemanha, é O Estado e a Revolução -A Doutrina do

Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução. Este livro

foi escrito quando Lênin estava vivendo na clandestinidade (agosto/setembro

de 1917), em razão da perseguição do governo provisório que teve o apoio dos

mencheviques. Esta transição ocorreu de março até outubro, quando

definitivamente os bolcheviques tomaram o poder com a força dos sovietes que

estavam majoritariamente sob comando dos mencheviques e os socialistas

revolucionários. Neste período de autoexílio, estava Lênin preocupado com o

problema do Estado Proletário em caso da tomada do poder. Lênin

considerava as concepções marxistas da Europa Ocidental, e, especialmente

as proclamadas por Karl Kautsky (1854-1938), como deturpações da teoria

marxiana. Estas observações ele já vinha fazendo antes de 1917 e estava

refletindo e escrevendo sobre a teoria do Estado Proletário como uma

realidade objetiva e não como uma suposição especulativa. Podemos perceber

que Lênin escrevia sobre sua práxis política e suas obras derivavam de

reflexões da realidade de sua época. Eram reflexões e decisões que poderiam

ser estudadas por todos, confrontadas e debatidas abertamente. Não se

negava ao debate e fazia isto simultaneamente registrando suas reflexões

sobre a realidade política em geral e sobre as decisões em particular. Lênin era

um dirigente político revolucionário que não deixava a teoria de lado.

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“Uma tentativa de entender Lênin deve partir, forçosamente, do reconhecimento dessa verdade que, por mais conhecida, se costuma esquecer, a saber: que Lênin é acima de tudo um dirigente político revolucionário. Sua personalidade política revolucionária se desdobra ao longo de sua vida nas mais diversas e complexas circunstâncias: no triunfo e na derrota, no avanço e na retirada, na clandestinidade e na legalidade, no interior do país e no exílio, na maré revolucionária e no refluxo. Como organizador e dirigente do partido bolchevique; como estrategista da revolução; como construtor e chefe do primeiro Estado operário, Lênin é acima de tudo um político revolucionário. Em cada momento, em cada uma de suas facetas, domina sua atividade prática objetiva, transformadora e consciente do mundo, isto é, como forma de práxis” (VÁZQUEZ, 2011, p. 177).

Estado e Revolução é um livro que combate o revisionismo como

também problematiza os próximos passos que a revolução deverá tomar

quanto à organização social. É aqui que conseguimos entender a concepção

de Estado que também fora analisada tanto por Hegel como por Marx.

“No domínio da filosofia, o revisionismo caminhava a reboque da “ciência” acadêmica burguesa. Os professores “voltavam a Kant”, e o revisionismo arrastava-se atrás dos neokantianos; os professores repetiam, pela milésima vez, as vulgaridades dos padres contra o materialismo filosófico, e os revisionistas, sorrindo condescendentemente, resmungavam (repetindo palavra por palavra o último Manual que o materialismo havia sido “refutado” há muito tempo). Os professores tratavam Hegel como um “cão morto” e, pregando eles próprios o idealismo, mas um idealismo mil vezes mais mesquinho e banal que o hegeliano, encolhiam desdenhosamente os ombros diante da dialética, e os revisionistas mergulhavam atrás deles no pântano do aviltamento filosófico da ciência, substituindo a “subtil” (e revolucionária) dialética pela “simples” (e tranquila) “evolução”; os professores ganhavam os seus ordenados do Estado acomodando os seus sistemas, tanto os idealistas como os “críticos”, à “filosofia” medieval dominante (isto é, à teologia), e os revisionistas aproximavam-se deles, esforçando-se por fazer da religião “assunto privado”, não em relação ao Estado moderno, mas em relação ao partido da classe de vanguarda (LÊNIN, 1977 c, p. 03).

Lênin condena a perspectiva dos revisionistas porque eles tendiam a

adotar um ecletismo para agradar os detentores do poder. Não se resolvia a

questão do Estado e acabava-se fazendo constantemente concessões de meio

termo. Lênin cita Marx com relação ao que fazer com o Estado: “a ideia de

Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a ‘máquina de

Estado que encontra montada’ e não limitar-se simplesmente à sua conquista”

(Ibidem, p. 55). Assustadora a radicalidade em comparação à docilidade

social-democrata e condenava os revisionistas que faziam adaptações levando

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ao oportunismo, que nada mais era do que fazer também uma adaptação “da

dialética ao ecletismo”, que era o que possibilitava “enganar as massas com

maior facilidade, dá uma satisfação aparente, tem pretensamente em conta

todos os aspectos do processo, todas as tendências do desenvolvimento, todas

as influências contraditórias, etc., mas, na realidade, não dá nenhuma

concepção integral e revolucionária do processo do desenvolvimento social”

(Ibidem, p. 12). Para Lênin era necessário compreender a dialética na política,

na práxis política, para compreender como se dá a “dialética interna do

parlamentarismo e da democracia burguesa” (LÊNIN, 1977c, p. 06).

Karl Marx retirou da revolução de 1848, na Alemanha, suas lições de

política e também sobre o movimento dos interesses da burguesia para

perpetuação do poder. Naquela época, os operários e os camponeses tinham a

possibilidade de tomar o poder do Estado, mas duvidavam da própria

capacidade para tamanho empreendimento revolucionário. Assim como para

Marx a revolução de 1848 foi a realidade para a teorização política, também a

Comuna de Paris (1871) a foi para Lênin, que destinou tempo apropriado para

analisar os detalhes da curta duração de um poder que não conseguiu se

sustentar, mas que foi uma experiência que tentou tomar conta do Estado e

criar uma dinâmica de organização própria da população.

“Mas por que é que o proletariado, não apenas francês, mas de todo o mundo, honra nos militantes da Comuna de Paris os seus precursores? E em que consiste a herança da Comuna?

A Comuna surgiu espontaneamente, ninguém a preparou consciente e organizadamente. A guerra malsucedida com a Alemanha, os sofrimentos durante o cerco, o desemprego entre o proletariado e a ruína da pequena burguesia; a indignação da massa contra as classes superiores e contra as autoridades, que manifestaram uma completa incapacidade, uma efervescência confusa no seio da classe operária, descontente com a sua situação e que aspirava a outro regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia recear pelo destino da república – tudo isto e muito mais, se conjugou para impelir a população de Paris para a revolução de 18 de Março, que colocou inesperadamente o poder nas mãos da guarda nacional, nas mãos da classe operária e da pequena burguesia que se colocou ao seu lado” (LÊNIN, 1977a, p. 02).

Lênin analisa na Comuna de Paris o comportamento da burguesia e

sua relação com o proletariado nos momentos de crise e lhe será útil nos

momentos cruciais da Revolução Socialista na Rússia.

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Voltando para o início do ano de 1917. Vários movimentos contra a

fome, greves e demonstrações de organização e reivindicações de

trabalhadores se alastraram em Petrogrado. Reuniram-se a estes movimentos

os soldados que cuidavam da guarnição da cidade. Sem demora também o

movimento ganhou adesão em Moscou. O exército Russo estava nas fronteiras

com todo seu contingente e o imperador não teve outra alternativa senão

abdicar. Vários centros políticos surgiram neste período para organizar o

Estado e as instituições. A primeira organização política denominava-se Dumas

de Estado, que reuniam políticos representantes das velhas classes

dominantes. Inicialmente, pensou-se numa monarquia constitucional, mas esta

ideia logo foi suprimida. Paralelamente ao poder representado pela Duma,

foram criados os sovietes em Petrogrado que reunia delegados operários muito

influenciados pelos mencheviques e pelos ideais socialistas. Os sovietes

ganharam importância pela capacidade de organização e de capilarização, mas

ainda não se julgavam capazes para coordenar uma organização estatal e

colaboraram para instituir um governo liberal provisório, visando estabelecer

um sistema democrático. Ministros foram instituídos por acordos e um

socialista assumiu a pasta: Alexander Fiodorovitch Kerensky (1881-1970), que

representava as camadas médias e intelectuais.

Em abril de 1917, Lênin retornou do exílio e imediatamente apresentou

uma proposta contundente sem desconsiderar as tensas relações que se

estabeleciam no contexto político. Com as “Teses sobre as tarefas do

proletariado na revolução atual” (mais conhecidas como Teses de abril)

proclamava o firme propósito de não apoiar o governo provisório. Lênin

também refutava as posições dos mencheviques que não investiam ou que

temiam o acirramento da revolução socialista. A posição de Lênin era diferente

das visões ou concepções socialistas dominantes na Europa, que colocavam a

revolução socialista como uma possibilidade longínqua ou intangível e que

aguardavam as contradições naturais do capitalismo.

A guerra mundial ainda continuava e a Rússia estava envolvida com

ela; buscava-se uma proposta de paz com os alemães, mas isto se arrastou

sem uma decisão final. Enquanto isso, internamente, muitos conflitos e

indefinições surgiam sem um encaminhamento. A maioria dos sovietes, por um

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momento, ficou nas mãos dos bolcheviques, mas perdeu esta condição quando

os mencheviques se alinharam com o governo. Os bolcheviques foram

reprimidos e Lev Kamenev (1883-1936), assim como Lênin, voltaram para a

clandestinidade acusados de colaborarem com os alemães.

Lênin apareceu novamente no IV Congresso do Partido Social-

Democrata como firme propósito de tomar o estado e fazer a reestruturação

total. Concluía que enquanto permanecesse apenas nas questões de

representação política não resolvia e não se enfrentava a questão que era

crucial: tomar o poder do Estado. Lênin também reconhecia que a democracia

servia aos interesses da burguesia como também servia como instrumento

para exploração das classes oprimidas. O poder do estado deveria ser tomado

pela classe trabalhadora e não dividido com qualquer outro setor da sociedade.

No final do verão de 1917, os contrarrevolucionários tentaram instaurar

uma ditadura com o intuito de esmagar definitivamente a organização dos

sovietes. A insurreição não deu certo e perdeu drasticamente credibilidade e

força de reação. Os bolcheviques retornaram fortalecidos com o apoio dos

sovietes e com o apoio de unidades militares. Lênin propunha um compromisso

para os mencheviques e socialistas revolucionários: todo poder aos sovietes.

Mas novamente os contrarrevolucionários surgem para obstaculizar o

movimento revolucionário e Lênin instiga uma posição mais à esquerda para

que os sovietes tomassem o poder imediatamente. Nas noites entre 25 e 26 de

outubro de 1917, pontos estratégicos foram ocupados em Moscou e o palácio

do governo foi tomado. Instaurou-se o primeiro passo para a implantação do

socialismo na Rússia e outros desafios surgiriam, já que experiências no

passado mostravam a dificuldade de manter o poder com a classe

trabalhadora.

Lênin assumiu a direção dos bolcheviques e imediatamente decretou a

expropriação das terras dos latifundiários, estatização dos bancos, fábricas e

empresas e o desmantelamento do exército. Com a vitória da revolução

bolchevista cabia agora organizar esta nova sociedade com instituições que

deveriam se diferir radicalmente dos sistemas econômicos capitalistas e os

sistemas políticos liberais burgueses predominantes no ocidente.

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Até 1921, a Rússia não conseguiu estabilidade interna em razão da

guerra civil travada entre o exército vermelho (os revolucionários) e o exército

branco (os contrarrevolucionários). Após 1921, não havia mais resistência

interna e a política liberal dos mencheviques estava totalmente excluída da

revolução socialista.

A Revolução de Outubro de 1917 trouxe o problema do caminho do

poder. Os movimentos socialistas na Europa ocidental fracassaram um a um e

os marxistas revolucionários foram levados ao isolamento. Um outro aspecto

foi que, pela primeira vez, o problema da construção de uma sociedade deixou

de ser abstrato. Esta situação exigira o debate se a Rússia seguiria

movimentos da Europa Ocidental ou, então, assumiria a liderança do

movimento socialista mundial.

Vigotski viveu neste momento na Rússia, e em Moscou. Em 1917

terminou seu curso de Direito e não se tem “nenhum” registro que tenha

participado de qualquer iniciativa, debate ou que tenha sistematizado uma

reflexão política sobre este momento. Temos apenas uma informação de que

Vigotski havia escrito sistematicamente num periódico judaico (Novyj Put) e em

outro (Letopis), criticando a ditadura do proletariado e em razão destes

periódicos terem um perfil social-democrata foram fechados com a

consolidação da revolução (VEER & VALSINER, 2009, p. 21).

É certo que pelo caráter da família de Vigotski, que nesta época residia

em Gomel, Bielorússia, cidade com população majoritariamente de tradição

judaica, não havia um alinhamento com o poder monárquico. O imperador

Nicolau III foi implacável na perseguição contra os judeus na Rússia porque

também sempre desconfiava do interesse das classes ascendentes.

Em 1919, Lênin estava maravilhado com o poder do rádio e começou a

fazer discursos para ampliar seu poder de influência. Num destes momentos

proferiu o seguinte discurso sobre a situação dos judeus na Rússia:

“It is not the Jews who are the enemies of the working people. The enemies of the workers are the capitalists of all countries. Among the Jews there are working people, and they form the majority. They are our brothers, who, like us, are oppressed by capital; they are our comrades in the struggle for socialism. Among the Jews there are kulaks, exploiters and capitalists, just as there are among the

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Russians, and among people of all nations. The capitalists strive to sow and foment hatred between workers of different faiths, different nations and different races. Those who do not work are kept in power by the power and strength of capital. Rich Jews, like rich Russians, and the rich in all countries, are in alliance to oppress, crush, rob and disunite the workers.

Shame on accursed tsarism which tortured and persecuted the Jews. Shame on those who foment hatred towards the Jews, who foment hatred towards other nations.

Long live the fraternal trust and fighting alliance of the workers of all nations in the struggle to overthrow capital” (LÊNIN, V. I. Speeches on gramophone records. Recorded end of March, 1919. Lênin’s Collected Work, 4th, Moscou, 1972, Vol 29, ps. 252 and 253).25

A posição de Lênin diante da comunidade judaica constituía uma

política totalmente inversa da Europa Ocidental e da monarquia russa. Todo

debate sobre a emancipação política transformara-se coerentemente na

integração do povo judaico para a ação conjunta da política de construção da

emancipação humana. Vigotski envolveu-se neste debate intensivamente e

veremos, no próximo capítulo, como este debate, por um lado, passou a não

ter mais sentido, e, por outro lado, forçava para uma unidade política que não

permitia comunidades autônomas como até então muitas delas reivindicavam

diante da monarquia absolutista.

Diante deste turbilhão de acontecimentos políticos, aqui rapidamente

colocados, nos perguntamos: Qual é a posição política de Vigotski neste

momento crucial na Rússia?

25“Não são os judeus que são os inimigos do povo trabalhador. Os inimigos dos trabalhadores

são os capitalistas de todos os países. Entre os judeus, há pessoas trabalhadoras, e eles formam a maioria. Eles são nossos irmãos, que, como nós, são oprimidos pelo capital, pois eles são nossos companheiros na luta pelo socialismo. Entre os judeus há kulaks, exploradores e capitalistas, assim como há entre os russos, e entre os povos de todas as nações. Os capitalistas se esforçam para semear e fomentar o ódio entre trabalhadores de diferentes credos, nações e raças diferentes. Aqueles que não trabalham são mantidos no poder pelo poder e pela força do capital. Judeus ricos, como russos ricos, e os ricos em todos os países, estão em aliança para oprimir, esmagar, roubar e desunir os trabalhadores. Vergonha ao tsarismo amaldiçoado que torturou e perseguiu os judeus. Vergonha para aqueles que fomentam ódio contra os judeus, que fomentam o ódio para com outras nações. Viva a confiança fraterna e a aliança combativa dos trabalhadores de todas as nações na luta para derrubar o capital" (Nossa tradução).

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Capítulo 3: A questão judaica na Rússia

Poucos trabalhos biográficos se atêm criteriosamente ao período que

Vigotski viveu como estudante em Moscou (1914-1917) e ao período

subsequente à Revolução Russa em Gomel (1917-1924). DEL RÍO (cit. REGO

& BRAGA, 2013, p. 517) afirma que este período deve ser conhecido como a

“década literária” de Vigotski (1914-1924). É dentro deste período que fica

evidenciado muito mais o caráter mobilizador e articulador político em defesa

do povo judaico do que um jovem engajado com os movimentos

revolucionários socialistas. Contudo, há tantas maneiras de ser revolucionário.

Se, ao mesmo tempo, definirmos também como revolucionário aquele que

contribui para mudar as estruturas da sociedade podemos apresentar

indubitavelmente Vigotski como muitos daqueles que atuaram no Instituto de

Psicologia em Moscou na década de 1920, mais precisamente, a partir de

janeiro de 1923, quando da realização do Primeiro Congresso Nacional de

Psiconeurologia.

A família de Vigodski26 era simpatizante da revolução? É improvável

que a família burguesa Vigodski se aventurasse no engajamento a um

movimento socialista pela abolição da propriedade privada e pela supressão da

divisão das classes sociais na sociedade. O pai de Vigotski exercia alta função

administrativa em bancos e estabelecimentos comerciais na cidade de Gomel

(Bielorússia) e garantia o ensino tutorial para os seus oito filhos (Vigotski era o

segundo mais velho).

A cidade de Gomel dista 240 km da capital Minsk e está a 600 km a

sudoeste de Moscou, cidade que, no final do século XVIII e início do século

XIX, já despontava como um centro comercial. Sua localização estratégica

possibilitava o amplo comércio com a Europa Ocidental. Chama-nos a atenção

a predominância da comunidade judaica na cidade que fora fundada no início

do século XVI.

Jews had lived in Gomel’ since 1537. The first All-Russian census of 1897 records Gomel’ as a predominantly Jewish city. Of its 37.355

26 Vigotski trocou o nome de família “Vigodski” para “Vigotski. Encontramos em KOZULIN (1990) a justificativa de que o jovem Lev estudou a origem de seu sobrenome no povo “Vigotovo” e decidiu substituir o “d” pelo “t”.

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inhabitants, 20.385 (54.6%) were Jewish (KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT; 2008, p. 17)27.

Em 1903, teve um episódio em Gomel que deve ter marcado

profundamente a infância de Vigotski. Surgiu um movimento para expulsar os

comerciantes judeus da cidade, mas estes conseguiram se organizar, reagir e

neutralizar a intenção dos invasores. Não era tão normal na Rússia os judeus

reagirem ou se organizarem contra os movimentos desta natureza (KOZULIN,

1990), mas como a comunidade judaica de Gomel era muito antiga e era

maioria, impunha-se contra as ameaças externas. Ao mesmo tempo em que

criava um ambiente cooperativo, tendia ao isolamento e se fragilizava diante

das vicissitudes da política externa.

No início do século XX, a cidade de Gomel continuava sendo

predominantemente judaica e com traços conservadores, mas também surgiam

movimentos liberais, movimentos mais incisivos que reivindicavam maior

participação social e até mesmo movimentos que reivindicavam a

transformação das estruturas políticas e econômicas da cidade. A busca pela

emancipação política também passava pelos conflitos internos identitários, isto

porque, de um lado, havia a formação ortodoxa do judaísmo em torno da

espera de um momento de redenção do povo escolhido, o messianismo

judaico, e, de outro, as utopias libertárias adotadas pelos mais jovens que

reivindicavam inserção e transformações estruturais na sociedade. Havia em

Gomel desde grupos ou movimentos ortodoxos – Hasidim– até socialistas

revolucionários com intenções de criar uma república socialista em Israel.

The Jewish community of Gomel’ included all trends of Jewish organization and outlook. The city was a center for the Liubavich Hasidim. There were also Zionist–Socialist Poalei Zion, urging the Jews to go to the Land of Israel to build a socialist society, and their rivals, the Jewish Marxist Social Democratic Bund, who sought to be an integral part of the revolutionary socialist movement of Russia but insisted on carrying their propaganda to Jewish workers in the Yiddish vernacular28 (Ibidem. p. 18).

27 “Judeus viviam em Gomel desde 1537. O primeiro censo geral da Rússia de 1897 registrou Gomel como uma cidade predominantemente judaica. De seus 37.355 habitantes, 20.385 (54.6%) eram judeus.” (Tradução nossa). 28 “A comunidade judaica de Gomel incluiu todas as tendências de organização judaica. A cidade era um

centro para a Liubavich Hasidim. Havia também trabalhadores sionistas socialistas exortando os judeus a irem à Terra de Israel para construir uma sociedade socialista; e seus rivais, o Movimento Marxista

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Havia também uma organização secular não tão importante em Gomel,

mas que trazia em seu nome a herança do pensamento iluminista: Associação

Secular para Esclarecimento dos Judeus. Este movimento ganhou relevância

nos séculos XVIII e XIX com a principal reivindicação da integração dos judeus

na sociedade. Em muitos países era vedado aos judeus a participação política

como também assumirem funções no serviço público – restrições estas muito

mais fortes na Rússia, isto porque eram definidos assentamentos reservados

para os judeus, acesso limitado ao ensino fundamental e universitário e

proibição para atuação profissional fora dos assentamentos. Predominava

nestas comunidades o vernáculo “Iídiche” 29 o que lhes reforçava uma

identidade e, ao mesmo tempo, os isolava. O pai de Vigotski, Semion L’vovich

Vigosdski, foi presidente desta organização em Gomel por muito tempo; fato

pelo qual já podemos deduzir o caráter não ortodoxo da família. Em Gomel,

esta organização foi responsável por manter duas escolas privadas para judeus

(uma para moças e outra para rapazes) e lhes assegurava uma relativa

autonomia. Estas duas escolas inovavam e se diferenciavam de outras

comunidades judaicas porque não adotavam mais o “iídiche”, mas sim o russo

como língua oficial. Podemos concluir que a família Vigotdski também defendia

o acesso de todos à educação e liderava várias iniciativas para integração da

comunidade judaica.

Vigotski ingressou na Universidade Estatal de Moscou em 1914. Na

época universitária de Vigotski, havia na Rússia uma intelligentsia associada à

ideia de classe intelectual que compartilhava valores comuns e que se

constituía num grupo preocupado com as condições sociais, justiça, política, e

formação do povo. Os personagens literários eram considerados por esta

intelligentsia como tipos sociais e psicológicos ideais e o caminho das letras

era uma trajetória desejada pelos intelectuais que desembarcassem em

Moscou em busca de reconhecimento (como também em São Petersburgo).

Social Democrata Judeu, que procurava ser uma parte integrante do movimento socialista revolucionário da Rússia, mas insistiu em levar sua propaganda para trabalhadores judeus no vernáculo iídiche” (Tradução nossa). 29 Língua germânica das comunidades judaicas da Europa Central e oriental baseado na mistura entre alemão, hebraico e eslavo.

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Identifica-se Vigotski justamente como este tipo de intelectual voltado para a

crítica literária, pois prova disso são as inúmeras resenhas e artigos críticos

sobre literatura, teatro e arte que escreveu neste período (KOZULIN, 1990).

VEER & VALSINER (2009) reconhecem o período de 1914 a 1924

como um momento de pouquíssima e significativa produção e que haveria

necessidade de estudar cuidadosamente as razões pelas quais Vigotski

permanecera em relativo silêncio. Alguns autores desconfiam até de um

possível retraimento para compreender melhor os fatos que transcorriam neste

momento de revolução e guerra civil na Rússia. Tanto a afirmação de que

Vigotski tenha produzido muito pouco, quanto a que tenha se retraído por

receio de se posicionar politicamente são completamente descartadas nos dias

hoje. KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT (2008), pesquisadores da Universidade

de Jerusalém, trouxeram informações detalhadas sobre a questão judaica e o

caráter crítico e mobilizador que Vigotski assumira na comunidade de Gomel.

Este trabalho específico dos pesquisadores contribuiu significativamente para

esclarecer o mistério deste período de vida de Vigotski e evidenciar o

engajamento político na defesa dos direitos do povo judaico dentro da

sociedade russa. A situação dos judeus neste período era de abandono

completo porque viviam em regiões fronteiriças disputadas constantemente

entre os países. Os pesquisadores apresentam também três razões

importantes para investigar a influência do judaísmo na vida de Vigotski: i) a

cultura judaica influenciou a sua vida e a sua identidade; ii) as biografias

simplesmente desconsideram a influência do judaísmo; iii) o total

desaparecimento do intenso caráter mobilizatório (creative activity) de Vigotski

com a causa dos judeus pós período revolucionário (Ibidem, p. 15). Os

pesquisadores analisaram mais de 80 artigos que foram publicados neste

período e questionam as razões pelas quais a maioria dos biógrafos deixa

estas informações em segundo plano ou nem mesmo dá-se ao trabalho de

considerá-las como existentes.

Entre 1916 e 1917, ainda como estudante da universidade, Vigotski

também era colaborador técnico da revista Novyi put, com circulação

especialmente entre judeus e que enfatizava os aspectos liberais da sociedade.

Os artigos que foram publicados destacam questões voltadas à tradição da

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cultura judaica e sempre com a preocupação com a situação histórica vivida

pelos judeus no seu tempo. Alguns exemplos de temas abordados nos artigos:

i) questões bem específicas como o significado das datas comemorativas da

cultura judaica confrontando com o calendário russo; ii) um outro artigo

intitulado “linhas de luto”, no qual descreve a importância do nono mês do

calendário da cultura judaica, quando é lembrada a destruição do templo de

Jerusalém e o início da diáspora (70 d.C.) – faz-se uma analogia entre a

diáspora com a queda de Jerusalém e a situação do povo refugiado judeu

fugindo da Primeira Guerra Mundial e as sucessivas tentativas de reconstruir a

vida. A herança de uma cultura que preserva a história e faz questão de

retratar os fatos históricos como rituais para preservação da memória de um

povo; iii) além das questões políticas, também escrevia críticas literárias, por

exemplo, escreveu um artigo homenageando um escritor judeu-russo que na

sua visão teve a coragem de ir contra a tradição judaica expondo suas

questões reais de vida. E, assim, seguem-se outros tantos artigos neste

período, todos retratando a história e a cultura do povo judeu integrando com

as questões reais dentro da sociedade russa e análises literárias.

Em 1921, os direitos dos judeus são declarados iguais a de qualquer

soviético, os apelos de integração perdem sentido, já que a emancipação

política legalmente foi instituída e deixou de ser um problema legal.

Certamente, esta questão diferia completamente da Europa Ocidental e Central

e colocou as comunidades judaicas na Rússia em acirrados debates: fazer

parte ou não de uma revolução que se encaminhava para o socialismo ou

então migrar para um outro país? A luta pela emancipação humana era de

todos e não tinha sentido fazer distinções dentro da revolução e fora dela.

Evidentemente que estamos nos referindo a questões de direito e não as

questões de fato. O que queremos dizer com isto? O preconceito contra os

judeus não desaparece com um decreto, mas, inquestionavelmente, a decisão

política nesta época é muito significativa se compararmos com as políticas

antissemitas extremistas de outros países que passam para o campo da

institucionalização na década de 30.

A crítica literária é uma característica que vai cada vez mais se

consolidando na vida de Vigotski. Nasce das reflexões motivadas pela sua

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análise crítica de Hamlet– Príncipe da Dinamarca (de Shakespeare) desde a

juventude. O caráter desta tragédia motiva uma pergunta determinante que

certamente os judeus se faziam: o que é ser um cidadão russo com tradição

judaica ou o que é ser judeu de tradição dentro da sociedade russa? O povo

judeu, na visão de Vigotski, parecia neste momento como se vivesse uma

“diáspora eterna”, sem serem considerados e nem contemplados como

cidadãos. As críticas com as quais Vigotski se debate na sua realidade é esta

visão que o lado hegemônico muitas vezes adotava do judaísmo como se fosse

uma tribo universal, ou do judaísmo como “o eixo universal da história” e a

rebate, sendo totalmente contrário a esta perspectiva, destacando “que é

justamente o contrário, o povo judeu é dependente da história universal”

(KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT, 2008, p. 26). Os artigos de Vigotski não são

lamentos de uma situação de injustiça, mas uma profunda reflexão sobre as

razões do antissemitismo, portanto, não se atêm a responder as declarações

isoladas, por exemplo, do escritor Dostoievski (1821-1881), que explicitamente

expõe seu antissemitismo na teoria política, mas entender a perspectiva

contraditória das razões pelas quais o antissemitismo se torna preponderante.

É na mobilização em defesa do povo judaico que identificamos a sensibilidade

da análise sociológica de Vigotski. Relatos de um amigo da juventude de

Vigotski em Gomel nos informam sua sistemática participação num clube

criado por ele mesmo para debater temas voltados para a cultura e para a

história do povo judaico. O enfoque teórico hegeliano sobre história era o

preferencial de Vigotski, especialmente, para responder questões voltadas ao

papel dos indivíduos na história das sociedades (KOZULIN, 1990, p. 29).

Quando Vigotski começa a escrever no periódico Letopis não há mais

menções diretas ao judaísmo como acontecera na revista Novyi put. A partir de

então, as reflexões se voltaram para a inclusão real de tantas outras etnias que

se consideravam ainda estrangeiras neste país tão vasto e com tantas

diversidades. Quando são abolidas as limitações cívicas aos judeus,vemos o

entusiasmo com o qual Vigotski saudou as mudanças possíveis a partir

daquele momento. No seu artigo “Avodim Hoinu” escreve “nós éramos

escravos” e saúda o novo momento histórico:

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But today unexpectedly and suddenly it is as though our hands had been freed. We are not yet used to walking freely, speaking freely, our consciousness has not yet digested the transformation that has taken place. As yet, the old-style soul lives on in the old body. This new day has caught us unready. (Vygotsky, 1917a, col. 8)30

Parece que o decreto surpreendeu Vigotski e as comunidades judaicas

e os debates intermináveis não teriam mais sentido entre emancipação política

ou emancipação humana. A situação criada levava necessariamente a uma

decisão política pessoal e exigia uma posição favorável ou não contra a

revolução. Exigia-se uma posição afirmativa ou negativa. “A nossa consciência

ainda não digeriu a transformação” é uma declaração que expressa a

necessidade da reflexão, mas é possível perceber desde então uma mudança

de atitude política muito mais ampla de Vigotski, não mais restrita à tradição e a

um povo.

Vigotski não menciona, como já dissemos, nenhuma experiência sua

sobre qualquer engajamento político revolucionário em Moscou na época de

estudante (1914-1917). E Moscou estava em ebulição. Terminado seus

estudos acadêmicos, em 1917, retorna imediatamente para Gomel, isto porque

sua mãe está doente e precisa de tratamento. A cidade de Gomel, após a

Revolução de Outubro, continua sendo um território de disputas entre as tropas

alemãs, o exército branco (os contrarrevolucionários) e o exército vermelho.

Mesmo com o fim da Primeira Guerra Mundial a cidade foi ocupada pelo

exército alemão, que só foi expulso em janeiro de 1919. Só então a cidade

passa a se organizar e a criar o parlamento local, comitês representativos e o

comitê central dos trabalhadores.

Depois que as tropas alemãs foram expulsas de Gomel, aí sim, vemos

Vigotski recomeçando suas atividades, agora como um profissional formado e

assumindo atividades de professor nas escolas que sua família havia fundado

e que passaram para usufruto público. Além de professor, ajudará na edição

de um jornal local e publicará vários artigos sobre arte, teatro, literatura, etc.,

30“Mas hoje inesperadamente e de repente é como se as nossas mãos tivessem sido libertadas. Nós ainda não estamos acostumados a andar livremente, falar livremente, a nossa consciência ainda não digeriu a transformação que ocorreu. Até agora, a alma do velho estilo vive no velho corpo. Este novo dia nos pegou desprevenidos” (Tradução nossa).

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mas sua atuação se concentrará nas atividades de teatro e ele se tornará o

principal articulador para promover eventos culturais e artísticos na cidade de

Gomel. Este envolvimento também mostra que Vigotski encarou as mudanças

radicais da sociedade russa como uma oportunidade para contribuir com o

desenvolvimento de programas educacionais e artísticos. Em todo o período

que vai do verão de 1917 até o início do ano de 1924, a vida de Vigotski se

resumiu a atividades locais ou, no máximo, em atividades de articulação

cultural e artística em outras cidades próximas. Todo seu tempo estava tomado

com os processos educacionais que o novo sistema político exigia para

transformação da realidade na Rússia. O acesso universal à educação foi uma

determinação central e ao mesmo tempo uma oportunidade para desenvolver

programas educacionais, criar grupos de estudos, promover conferências e

palestras e instaurar laboratórios de observação. Todas as atividades eram

justificadas para construção de uma nova sociedade e de um novo ser

humano. Em janeiro de 1924, quando Vigotski foi proferir suas palestras no II

Congresso de Psiconeurologia, em Leningrado, já estava bem preparado para

os desafios de um trabalho coletivo e para viabilizar linhas programáticas

educacionais na União Soviética, como também problematizar e instigar novos

rumos no campo da psicologia.

Encontramos frequentemente nos textos de Vigotski citações das obras

de Baruch Espinosa (1632-1677), filósofo este com sólida formação em filosofia

clássica, profundo conhecedor das questões filosóficas de seu tempo, quando

predominou a filosofia racionalista, como também tem uma formação teológica

recebida da tradição do judaísmo na Holanda (Amsterdã). Escreveu livros que

desestabilizavam a tradição judaico-cristã e por essa razão foi expulso de sua

comunidade. O pai de Vigotski, numa de suas longas viagens, trouxe de

presente ao filho ainda jovem um exemplar da Ética de Espinosa. É um texto

difícil para um jovem, mas que foi justamente presenteado para desafiá-lo na

interpretação de uma obra “demonstrada segundo a ordem geométrica”. Não

era comum que a ortodoxia da comunidade judaica sugerisse a leitura das

obras deste controverso filósofo, pois eram proibidas, execradas; seu conteúdo

desafiava o pensamento religioso predominante judaico-cristão. A

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contundência pode ser observada no final da primeira parte da Ética, quando

Espinosa ataca os alicerces da tradição:

“(...) todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que deus fez todas as coisas em função do homem e fez o homem, por sua vez, para que este lhe preste culto” (ESPINOSA, 2007, p. 65)

Espinosa ataca as concepções finalistas que a tradição especulativa da

Idade Média sob o predomínio do poder da Igreja adaptou às concepções

aristotélicas. A filosofia espinosana não se fundamenta no finalismo. Contudo,

o presente que o pai trouxera a Vigotski demonstra que, mesmo pertencendo a

uma comunidade tradicional judaica, gostava de propiciar o estudo de forma

aberta e desafiadora – atitude característica de uma pessoa influenciada pelo

espírito iluminista. Pelo que parece, o estudo sobre a filosofia de Espinosa não

ficou restrita a um dos oito filhos de Seminov Vigodski, mas também à filha

Zinaida, que compartilhava com o irmão Lev “o interesse pelos escritos

filosóficos de Espinosa” (VEER & VALSINER, 2009, p. 20). Lev conviveu com

esta irmã filóloga, pois havia morado com ela nos dois últimos anos de estudos

acadêmicos em Moscou.

A produção teórica de Vigotski é muito grande e podemos perceber o

seu caráter racional e disciplinado para todo o trabalho de sistematização

desenvolvido ao longo de sua vida. A tuberculose (doença na época incurável)

contraída de seu irmão mais novo (que logo veio a falecer) e os cuidados com

os problemas de saúde do seu pai e de sua mãe não o impediram de viabilizar

o seu intenso projeto de estudos e de pesquisa. Tudo isso demonstra como

lidava com a vida e como se aproximava da compreensão espinosana de vida;

como ele mesmo menciona numa carta para um amigo: “não se deve se

espantar, nem rir, nem chorar, mas entender” (cit. Ibidem, p. 28). Este caráter

racional é a marca que acompanhará a vida inteira de Vigotski.

Espinosa apresenta, no final da segunda parte da Ética, quatro razões

pelas quais considera útil para vida a sua filosofia: 1) porque nos dá a ideia

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clara e distinta para agir; 2) porque nos ensina como agir diante de situações

que fogem ao nosso controle; 3) porque nos instiga a entender nossos afetos;

4) porque nos remete a viver em liberdade e não na escravidão (ESPINOSA,

2007, p 155-156). Nós interpretamos que esta filosofia e estes preceitos

estavam bem presentes na vida de Vigotski, que os utilizou por toda a sua

curta vida. Ao nos aproximar de Espinosa e do debate que faz na Ética,

perguntamo-nos: Vigotski deixou de lado as tradições religiosas do judaísmo?

É difícil responder esta pergunta, mesmo que tenha se envolvido intensamente

com a situação dos judeus na URSS. A teologia materialista de Espinosa pode

tê-lo influenciado a silenciar-se sobre esse assunto e isto fica marcante num

depoimento de uma de suas filhas, quando relata uma pergunta que fez sobre

a existência ou não de deus, e sua pergunta foi devolvida com outra sobre o

que poderia ser entendido a respeito desse assunto (PRESTES, 2010).

Instigou a sua filha a continuar nas perguntas. Um pequeno exemplo da vida

diária, mas tão característico de Vigotski: instigar a curiosidade e o exercício de

ver uma situação ou um fato nas diferentes perspectivas possíveis.

Há um aspecto não mencionado pelos biógrafos de Vigotski que é a

influência talmúdica nas interpretações de textos. As tantas diferentes citações

de autores, a contextualização dos autores, as diversas citações (dizem que

eram citações de memória, o que traz alguns problemas hoje para a

organização das citações bibliográficas) são heranças da educação fortemente

marcada pela tradição talmúdica da cultura judaica. Esta formação erudita

preparou e facilitou Vigotski a se posicionar nos debates mais controversos.

“His early Jewish Enlightenment education served as the nucleus for a more complex development of personality, striving to attain a universality of humanism. The breadth of his erudition allowed him to enter as an equal into discussions with scholars speaking and writing in various languages. At the same time, throughout all of his pedagogical activity and in his writings, he preaches that humanistic social and political thought recognizes the necessity of cultural integration based on the careful safeguarding and coexistence of different cultures”(KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT; 2008, p.35)31.

31 “Sua educação judaico-iluminista inicial serviu como base para o desenvolvimento de uma personalidade mais complexa, esforçando-se para alcançar a universalidade do humanismo. A amplitude da sua erudição lhe permitiu entrar em iguais condições nos debates com estudiosos falando e escrevendo em vários idiomas. Ao mesmo tempo, ao longo de toda a sua atividade pedagógica e em seus escritos, ele defendia o pensamento social e político humanista reconhecendo a necessidade de integração cultural baseada na garantia do cuidado e da coexistência de diferentes culturas”(Nossa Tradução).

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Nos textos que dispomos de Vigotski e que consta nas Obras

Escolhidas não encontramos qualquer menção sobre a problemática do

judaísmo na Rússia. Identificamos uma única e curta passagem quase no final

do artigo “Sobre sistemas Psicológicos”, que foi escrito em 1930. Nesta

passagem, há uma referência sobre um sociólogo e economista alemão

chamado Werner Sombart (1863-1941), na qual enfatiza que a “diferença

caracterológica essencial e importante na prática na vida social” depende muito

“das relações” que se dispõe. “Às vezes constata-se que algumas pessoas têm

ótima memória, mas não a utilizam como deveria”. Isso poderia ser

compreendido também, “por exemplo, que o caráter burguês é avaro e não há

como modificar dada a natureza biológica do burguês de ser mesquinho e

acumulador”. E destaca, “os traços sociais e de classe formam-se no homem a

partir de sistemas interiorizados, que nada mais são do que os sistemas e

relações sociais entre pessoas transladados para a personalidade” (VIGOTSKI,

2004, p. 133). Vigotski acusa o sociólogo Werner Sombart como aquele que se

fundamenta no caráter meramente biológico ao tratar da personalidade do

burguês como tendo uma tendência genética a ser economicamente

pernicioso. Na época, Sombart havia publicado o livro Os judeus e a vida

econômica (1911), que relaciona a ascensão do capitalismo no norte da

Europa pela determinante presença dos judeus. O sociólogo analisa as

migrações dos judeus entre os séculos XV e XVIII, na Europa, e identifica a

capacidade organizacional de estruturarem e de estabilizarem economias

locais. Isto foi observável quando os judeus migraram das regiões do sul da

Europa (Portugal, Espanha, Itália, sul da França) e partiram para o norte. Ao

serem perseguidos pelas nações católicas foram obrigados a migrarem para o

Norte e com isso desenvolveram e dinamizaram economicamente as nações

do Norte. Sombart, diferentemente de Max Weber (1864-1920), identifica nos

judeus o espírito do capitalismo e não do protestantismo. Esta análise foi

utilizada para justificar o caráter pernicioso do judeu em si e que Vigotski trata

de condenar como uma versão estreita da formação humana. O texto Sobre

Sistemas Psicológicos fora escrito em 1930, mesmo período em que se

acentuava na Europa o antissemitismo e os fundamentos biologicistas da

psicologia. Mas há uma outra questão que a partir de 1930 se acirrou na

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Rússia Soviética. O Instituto de Psicologia onde Vigotski trabalhava desde

1924 também era um reduto de intelectuais socialistas que puderam, no

período de Lênin, debater abertamente e publicar as questões que envolviam a

relação entre teoria, pesquisa, realidade e prática. A premissa fundamental

contra o especulativismo se fundamentava em não meramente compreender a

realidade, mas transformá-la. A partir de 1930, começou a predominar na

Rússia Soviética as políticas funestas e anti-dialéticas, por exemplo, podemos

deduzir que um burguês tem uma determinação genética avara, por analogia, o

judeu também. A resposta de Vigotski é certeira contra as perspectivas

biologicistas, positivistas e higienistas, visto que “os sistemas e as relações

sociais” devem ter uma condição fundamental na formação da personalidade

do sujeito e não o contário, de forma determinista.

Esta pequena referência de Vigotski no texto que nos referimos nos

leva a concluir que há uma preocupação em enfrentar este preconceito, mas,

mais do que isto, de combater as concepções positivistas que começam a se

tornar hegemônicas. É neste momento que reconhecemos a sua capacidade

crítica de apontar contradições. Isso só é possível pelo domínio que Vigotski

tinha da lógica dialética e da compreensão do materialismo histórico.

A partir de 1930, com mais intensidade a desconfiança poderia recair

sobre Vigotski (e também sobre muitos colegas com a mesma origem) e

duplamente, por ser judeu e por ter tido formação erudita burguesa. A dúvida

se de fato teria assumido conscientemente o materialismo como gnosiologia

também vem marcada com este preconceito, mesmo que o fundador do

Materialismo Histórico tenha tido a mesma origem e a mesma característica: o

zelo pela pesquisa, pela elaboração do texto e pelo debate aberto.

Em outro artigo de Vigotski, também raramente citado pelos

comentadores, Fascismo na Psiconeurologia (escrito em 1934), há uma crítica

severa contra a mudança radical que estava ocorrendo na Alemanha com a

psicologia. O artigo é uma resposta imediata contra as visões nacionalistas,

positivistas, arianistas e higienistas que começavam a se alinhar com a política

fascista alemã. A política fascista tomou o estado alemão pelo golpe e criou

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objetivamente um sistema da psicologia baseado em duas premissas: “tipo

nacional” e “voluntarismo diante do líder”.

“(...) os esforços mais extensos para fundar uma psicologia fascista foram tentados por um (...) psicólogo alemão, Erich Jaensch, um cientista de renome mundial, que tem elaborado extensivamente o problema da percepção e da memória do ponto de vista da tipologia eidética e psicológica. Jaensch publicou um tratado especial intitulado A situação e a tarefa da Psicologia - sua Missão no movimento de reforma cultural alemã. Neste livro, Jaensch apresenta o sistema completo da psicologia fascista, um sistema que provavelmente determinará a direção e o destino do ramo da psicologia fascista alemã para um futuro previsível” (VYGOTSKY, 1994, p. 328).

Vigotski denuncia a tendência da psicologia alemã de imiscuir-se ao

movimento nacionalista alemão cuja tendência, na sua visão, está marcada

pela influência do idealismo objetivo burguês. Vigotski não se restringia a Erich

Jaensch, também cita os famosos psicólogos Narsiss Ach (1871-1946) e

Eduard Spranger (1882-1963), autores sucessivamente citados em seus

artigos na década de 1920. A situação da psicologia alemã nesta época,

conforme Vigotski, marca “sem precedente a degeneração extrema e intensa

do pensamento científico burguês”. O artigo ataca diretamente três questões: a

adaptação científica dos psicólogos para os fundamentos místicos: líder, terra e

sangue; a perseguição aos judeus e às políticas antissemitas; e, último, como

já dito, o pensamento idealista realista burguês.

As notas dos editores da publicação onde consta este inédito artigo

(Van der VEER & VALSINER, 1994) suscitam que Vigotski estava, neste

momento, fazendo uma crítica geral aos movimentos totalitários que surgiam

no mundo, e que serviria conscientemente a uma crítica indireta ao sistema

totalitário na Rússia Soviética que estava se iniciando com o domínio do novo

Secretário Geral Joseph Stalin. A análise dos comentadores leva-nos a suscitar

que Vigotski seria um “pesquisador camaleão”, ou seja, a crítica ao “idealismo

objetivo burguês” que ele faz de forma tão veemente consiste sempre num

“fingimento”, uma artificialidade e que resta para ele a genialidade da lógica

dialética. Podemos sim deduzir que o referido artigo é uma condenação à

política fascista e uma atitude que se adianta a qualquer tentativa maliciosa de

alinhar Vigotski ao pan-germanismo burguês, associando suas publicações

“recheadas” de autores da cultura germânica como uma adesão acrítica. Neste

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artigo publicado no último ano de vida de Vigotski, há clareza e perspicácia de

condenar o idealismo realista, ou idealismo objetivo – o que seria isso senão

condenar a forma como o hegelianismo é utilizado pela burguesia para

sustentar-se e que se transforma em política fascista.

Para analisar a perspectiva de Vigotski da questão judaica é

necessário ir mais além das análises realizadas pelos pesquisadores até o

momento. A tendência destes é desconsiderar este aspecto e, realmente,

muitas vezes, até considerá-lo inexistente. Vigotski assimilou a sua condição

no mundo como também o fizeram Gustav Landauer (1870-1919), Martin Buber

(1878-1965), Gershom Scholem (1897-1982), Walter Benjamin (1892-1940),

Ernst Bloch (1885-1977), György Lukács (1885-1971), Franz Rosenzweig

(1886-1929), Erich From (1900-1980), Manes Sperber (1905-1984) (e muitos

outros). O que é comum entre estes autores? Vivem o movimento de libertação

dos judeus e ao mesmo tempo o movimento de libertação dos seres humanos

das amarras do capitalismo. Influenciado por esta dinâmica humanista e até

romântica, Vigotski era um cientista com sensibilidade para considerar a

pertinência existencial e subjetiva associada à necessidade epistêmica

explicativa objetiva. A questão judaica de Vigotski lhe colocou entre o dilema da

imanência e da transcendência, subjetivo e objetivo, coletivo e individual,

material e psíquico, filogenia e ontogenia. A unidade dos contrários foi um

exercício existencial e práxis que o acompanhou durante toda sua vida.

Contudo, há uma questão muito mais complexa a ser desenvolvida que é a

síntese da filosofia positiva de Espinosa e a filosofia negativa de Marx. Nós

sustentamos que esta não é uma procura isolada de Vigotski como cientista

social; é a procura do movimento político que se destacou durante toda a

década de 1920 na Rússia e seu destino, desde a Comuna de Paris (1871),

continua em aberto como um desafio para a civilização humana.

No início da década de 1920, entendemos que Vigotski se deu conta

da dialética materialista histórico dialética marxiana por meio das publicações

de Lênin que interpretou devidamente A questão judaica (1843) de Karl Marx

dentro do movimento revolucionário.

(...) O homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de

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propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial” (MARX, 1991, p. 50).

A força do movimento socialista na Rússia não era simplesmente um

movimento liberal para se libertar politicamente das amarras e da opressão do

tsarismo absolutista. Havia uma luta muito mais ampla que os revolucionários

tentavam implementar sem ter tido referências comprovadas no passado que

tivesse realmente obtido êxito. A emancipação não consistia apenas no campo

da política e haveria de ser mais ampla:

“Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organiza suas ‘forças propres’ como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana” (Ibidem, p. 51).

Nós identificamos a partir da mobilização de Vigotski com o movimento

de defesa dos direitos do povo judeu dois aspectos: primeiro, a compreensão

da dialética materialista histórica como práxis revolucionária; segundo, a

compreensão do projeto de sociedade que estava se iniciando na Rússia sob a

direção de Lênin. Nós sustentamos que Vigotski transformou-se num

revolucionário no campo que poderia ser na compreensão do espírito de

transformação da política que estava sendo forjada na sua época. É o debate

entre a emancipação política e humana dentro do judaísmo e dentro da

sociedade russa que Vigotski forjou sua personalidade e iniciou seus estudos

primeiro na pedagogia como educador/professor e depois na psicologia como

pesquisador. Nós sustentamos e isso desenvolveremos com mais fundamentos

mais para frente: a práxis vigotskiana é de base lininiana.

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Capítulo 4: Vigotski e seus biógrafos32

Dispomos de duas obras biográficas pioneiras para estudar o

pensamento de Vigotski: La psicología de Vygotsky – Biografía de unas ideas

(KOZULIN, 1990) e VYGOTSKY – uma síntese (VEER & VALSINER, 2009). É

muito raro um artigo não fazer referência a estes autores, mas para

compreender o que chamamos de “o estado da arte da hermenêutica

vigotskiana” também é imprescindível a análise de uma terceira obra

recentemente publicada, O pensamento de Vigotsky – Contradições,

Desdobramentos e Desenvolvimento (GONZALEZ REY,2013), que constitui

uma síntese crítica do pensamento vigotskiano, instigando os pesquisadores

nos dias de hoje a investir nas amplas indagações não respondidas por

Vigotski no final de sua vida. As três obras, lado a lado, têm suas

peculiaridades para que possamos conhecer melhor a trajetória dos trabalhos

de Vigotski, mas estas ainda continuam mais mostrando as lacunas do que

propriamente definindo uma diretriz hermenêutica. Um outro aspecto mais

direto e imprescindível de ser analisado é a influência ou a relação com o

materialismo histórico dialético – a vinculação com o marxismo. GONZALEZ

REY destaca este assunto, mas remete esta problemática para os historiadores

sem respondê-la:

“A relação de Vigotsky com o marxismo nunca foi uma relação forçada ou fingida; ao contrário, creio que Marx foi a principal fonte filosófica de seu pensamento, no qual, de forma geral, a dialética foi seu modelo orientador indiscutível. No entanto, o próprio pensamento de Marx, ao se institucionalizar, ganha significados que correspondem mais às interpretações dominantes do espaço político – institucionalização que assume, do que as ideias originais do autor em relação àquela obra. O Marx adotado pela institucionalização política soviética era um Marx “objetivista”, para quem a dialética subordinava-se ao materialismo. Somente a partir dessa interpretação é que se pode utilizar Marx para essa interpretação sociologista da psique. Terá sido Vigotsky, com seu brilhantismo, uma expressão dessa naturalização materialista hegemônica do pensamento de Marx naquele momento de hegemonia stalinista, ou será que o rumo de sua obra, naquele momento, expressa retiradas táticas forçadas pelas circunstâncias, ou ambos esses processos aparecem estreitamente unidos naquelas posições que mudaram de forma radical o rumo de seu pensamento? Esta é uma questão que deixamos e suspenso para os historiadores de sua obra; no entanto ninguém questionou

32 Em anexo apresentamos dados biográficos detalhados de Vigotski, tomando como referência os autores que aqui neste capítulo foram citados dentre outros.

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essa ruptura que aparece em seu livro História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores (...)” (Ibidem, p. 84).

Dizemos que GONZALEZ REY é mais consequente na análise

gnosiológica de Vigotski, que não deixa de lado o marxismo, mas adota a

mesma estratégia quando deixa esta questão para os “historiadores”. Como já

mencionamos este distingue três movimentos sendo que no segundo (1928-

1931) evidencia um “giro objetivista” na produção científica vigotskiana

aproximando-se de Alexei Leontiev. O “giro objetivista” resulta, não

completamente, mas no distanciamento da dialética. GONZALEZ REY não

responde este processo de mudança e permanecemos apenas com a tarefa de

apontar onde estão as lacunas do pensamento vigotskiano, mas não o seu

fundamento teórico que lhe possibilitou chegar até onde chegou. O

apontamento, por sua vez, é a questão central desta tese, que não reside

apenas na pergunta se Vigotski é dialético ou não. Todos os autores afirmam

que é dialético, mas não destacam a gnosiologia e este é um dos maiores

motivos pelos quais Vigotski é, muitas vezes, identificado com tantas diferentes

teorias, mas não aquela que ele menciona tão claramente nas suas obras:

Materialismo Histórico Dialético.

Um grupo de comentadores soviéticos contemporâneos de Vigotski

(LEONTIEV, 2013; 2001; BEIN, E. S.; VLÁSOVA, T. A.; LÉVINA, R. E.;

MORÓZOVA, N. G.; SHIF, Zh.I, 1997; ELKONIN, 2012) foi responsável pela

divulgação e preservação do seu pensamento; chama constantemente a

atenção para a necessidade de se fazer um estudo mais aprofundado sobre a

hermenêutica vigotskiana. Julga que até o momento este trabalho não fora feito

– são comentadores que YASNITSKI (2011) se refere como sendo os mais

próximos ao Círculo de Vigotski e que a partir de 1930 tomaram rumos

diferentes, fato que os levaram a desenvolver pesquisas em campos mais

específicos.

Outro grupo de autores (ALVAREZ & Del RÍO, 1991, 2007; DANIELS,

2011; NEWMAN & HOLZMAN, 2002; YASNITSKY, 2010, 2011, 2012a, 2012b;

YASNITSKY & FERRARI 2008; VEER, 2016) se destaca nos últimos anos

tomando como referência os biógrafos pioneiros, enfatiza algo especial na

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produção teórica vigotskiana considerando as obras disponíveis para análise.

Destacamos deste grupo o conjunto de publicações de ÁLVAREZ &Del RÍO,

editores e coordenadores da tradução das Obras Escojidas do russo para o

espanhol (seis volumes), que traz a contextualização da teoria vigotskiana nos

dias de hoje. As informações biográficas e a análise do pensamento

vigotskiano que Del RÍO nos apresenta por meio de entrevista (REGO &

BRAGA, 2013) também constituem referencial para análise. Evidenciamos

também as pesquisas de YASNITSKY (2011), especialmente, a investigação

sobre o Círculo de Vigotski e ressaltando muito mais um esforço de uma escola

de psicologia do que enaltecendo isoladamente a figura de Vigotski.

Ressaltamos ainda dois trabalhos biográficos caracterizados por

questões bem específicas, mas de grande relevância para entender a vida de

Vigotski. Entendemos que o primeiro foi devidamente enfatizado no capítulo

anterior pelos autores KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT (2008), ao esclarecerem

o período que antecedera a 1924 e o seu engajamento com a questão judaica.

O segundo trabalho consiste no esforço de elaborar um inventário do cânone

vigotskiano realizado com o apoio da filha de Vigotski (Gita), que se constitui

num trabalho que possibilitou integrar os arquivos da família com os

disponíveis e acessíveis ao público (VIGODSKAIA & LIFANOVA, 1999).

Há diversas maneiras de entender o processo de criação de Vigotski

ao longo dos seus anos de pesquisa em Gomel (considerada sua terra natal),

Moscou e Leningrado (hoje São Petersburgo). Iremos citar alguns autores a

seguir para que possamos identificar qual aspecto os biógrafos mais enfatizam

no pensamento e nas obras vigotskianas. Evidentemente que partiremos dos

três autores referenciais fundamentais que citamos acima.

KOZULIN (1990) enfatiza três aspectos importantes no pensamento

vigotskiano: a prática (colocando em evidência o Significado Histórico da Crise

da Psicologia (1927), o método (defendendo a influência hegeliana), e o

movimento literário, no início do século XX, na Rússia (trazendo a estética

como estruturante para a formação do pensamento vigotskiano).

Vigotski tinha muito clara a compreensão sobre a crise da teoria

psicológica na década de 1920 e da necessidade de realizar uma crítica

epistemológica das filosofias de investigação que a própria crise revelou. A

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crise foi desencadeada pelas demandas apresentadas por aqueles que

atuavam na prática. No início do Significado Histórico da Crise da Psicologia,

Vigotski traz até uma expressão bíblica para acentuar o que significava para a

psicologia estas demandas: “a pedra que rejeitaram os construtores, essa veio

a ser a pedra angular” (VIGOTSKI, 2004, p. 203), ou seja, até então se

desconsiderava a prática, mas esta passou a ter importância estruturante,

levando à legitimação da ciência, por meio da comprovação da relevância

social que ela garantia. No tempo pós revolução não havia alternativas, o apelo

era responder às demandas da realidade. Não bastava almejar a mudança da

sociedade – algum resultado que indicasse imediatamente a mudança deveria

mostrar que o caminho do socialismo estava certo. Foi na década de 20 que a

psicologia se fez pela primeira vez consciente dos aspectos práticos

associados com as tarefas e os problemas na área da educação, saúde

mental, jurídica... Seria errôneo, por conseguinte, conceber a psicologia como

aplicação de teorias previamente estabelecidas. KOZULIN enfatiza que

Vigotski inverteu esta relação: a prática seleciona seus próprios princípios

psicológicos e, em última instância, cria sua própria psicologia.

Para compreender os princípios que a realidade estabelece ou

demanda, KOZULIN (1990) também nos chama a atenção para a assimilação

das obras de Hegel que deixou marcas profundas em Vigotski, especialmente

no processo metodológico para resolução de problemas científicos, pois a

distinção entre objetivação e desobjetivação exigia clareza por parte do

pesquisador de sua tarefa, que não deveria consistir simplesmente em aplicar

fórmulas científicas já acabadas a uma situação determinada, mas sim, em

primeiro lugar, se tratava de definir o objeto e propriamente o método de

investigação (Ibidem, p. 29). Segundo KOZULIN, Vigotski sempre parte de um

fato objetivo, por exemplo, as amostras da fala egocêntrica infantil estudadas

por Jean Piaget (1896-1980). A fala egocêntrica constitui-se num exercício que

se inicia por um fator interpsicológico para se tornar intrapsicológico.

Desobjetivar não é esquecer a linguagem egocêntrica ou simplesmente

considerá-la como um fenômeno que desaparece sem implicação real

nenhuma. A desobjetivação revela, por um lado, que a filosofia de fato está por

detrás de qualquer ato científico e, por outro, devolve ao fato a sua condição

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dinâmica original, de onde pode ser reinterpretada. Na essência, a

desobjetivação é a possibilidade de captar o pensamento e a vida em sua

forma dinâmica aberta antes de se converter em coisas. Segundo KOZULIN,

na filosofia de Hegel, o método dialético serve para pôr o manifesto, como o

pensamento que pode se converter em seu oposto para, na continuação,

retornar enriquecido. No curso deste estranhamento, e este retorno às

objetivações do pensamento, chegam a compreender como se fossem

momentos de seu próprio desenvolvimento e negação (Ibidem, p. 34). Mas o

que parece convincente como grande sistema filosófico não tem porque

realizar-se necessária e imediatamente quando se aplica a áreas específicas

da atividade humana. É preciso que o conhecimento reconheça as questões

mais reais, mais cotidianas.

Além da forte influência hegeliana sobre a natureza histórica do ser

humano, KOZULIN destaca que também a visão marxista alimentou a

concepção vigotskiana de que a psicologia é uma ciência do ser humano

histórico e não do ser humano abstrato ou universal. Da mesma forma, tanto

de Hegel como de Marx, a concepção do trabalho na história do ser humano foi

muito bem recebida por Vigotski. A noção de instrumento psicológico funde

suas raízes na ideia hegeliana em que o trabalho, com a transformação do

mundo das coisas, provoca a transformação da consciência humana (Ibidem,

p. 30). Contudo, não vemos a diferença tanto em um como no outro, conforme

exposto por KOZULIN. Evidentemente que tanto um como outro enfatizam a

natureza histórica do ser humano, mas no que se diferenciariam?

A principal contribuição de KOZULIN na interpretação do pensamento

vigotskiano foi localizá-lo no movimento estético literário do início do século XX.

Nos anos de estudante na Universidade de Moscou (1914-1917), para Vigotski

o mundo parecia estar dividido entre os arcaístas (conservadores) e os

inovadores (progressistas). Uma nova escola surgia, a escola de literatura

simbolista, que mais tarde também foi designada de formalista, dentre tantas

concepções. Os descobrimentos e as dúvidas dos formalistas estavam

destinados a converterem-se em uma espécie de “incubadora intelectual para

Vigotski”, pois encontrou amplas indagações na área da estética que também

eram necessárias fazê-las na psicologia. KOZULIN cita um dos líderes do

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movimento formalista, Boris Eichenbaum (1886-1959), que definia

sucintamente seu credo da seguinte maneira: no princípio, para o formalista a

questão não é como estudar a literatura, mas sim qual é realmente o objeto de

estudo literário. Esta postura, conforme KOZULIN, era semelhante à postura de

que Vigotski adotou para estudar o comportamento das crianças ou o

conhecimento dos adultos: definia primeiro o que deveria converter-se em

objeto de investigação psicológica.

Os formalistas também ajudaram a mudar as ideias tradicionais sobre a

forma e o conteúdo na obra de arte. Tudo que o artista considera como

elementos apropriados para sua obra, sejam palavras, sons, imagens, clichês

verbais ou incluindo o desenvolvimento das ideias, constituem-se a forma. Esta

organização é o que denominamos de técnica ou artifícios. Uma das técnicas

mais importantes na prosa é o drama constituído pelas tramas das histórias de

vida e que servem como material: “O drama se define com respeito à história

da mesma maneira que o verso com respeito às palavras que o constituem, e a

melodia com respeito às notas de que consta”. Assim, a indecisão do príncipe

Hamlet não provém de sua debilidade psicológica como ser humano, mas sim,

das leis estruturais inerentes à tragédia de William Shakespeare. Porém,

mesmo que Vigotski reconhecesse a importância da técnica artística como

primeiro passo na análise de uma obra de arte, rechaçava categoricamente

considerá-la também como o último passo. Aqui, Vigotski se deparava com um

dos problemas teóricos cruciais de qualquer investigação psicológica, a saber,

o problema da identificação formal frente à identificação essencial dos

fenômenos comportamentais ou cognitivos. O ponto de partida deste problema

é que o descobrimento de uma semelhança entre os aspectos formais ou

estruturais dos fenômenos não garante sua semelhança essencial. O problema

da relação entre a forma e o material afeta o coração do conceito de

desenvolvimento cultural da mente humana. Em Vigotski, a cultura não só

proporciona um marco estrutural para organizar os impulsos naturais herdados,

mas, mais do que isto, proporciona o material mesmo da conduta humana.

KOZULIN entende que Vigotski pensava que somente mediante um

estudo da interação entre a forma e o material (conteúdo) se poderia superar a

perspectiva dualista e a melhor maneira de entender esta interação é como

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catarse. Este termo era designado por Vigotski como descarga das emoções

que se acumulam em um espectador ou em um leitor afetado por uma obra de

arte. A purificação catártica não só descarrega a tensão como também

transforma os sentimentos humanos. No estudo da catarse, como na relação

com o indivíduo que vive a experiência, é pela propriedade objetiva da obra de

arte que se faz possível a catarse.

Seguindo os formalistas, eles definem que a reunião do material com

aqueles acontecimentos, personagens e circunstâncias humanas proporcionam

a linha argumental básica do relato. O sequenciamento e a organização do

material constituem o drama do relato. O drama é o princípio geral do texto

literário, e a composição dos elementos em um relato literário não deve deter-

se em um simples artifício técnico (Ibidem, p. 52).

Uma vez dado o primeiro passo, e identificadas provisoriamente as

características objetivas de uma obra de arte que evoca sensações estéticas,

há de produzir-se um giro até o estudo do lado subjetivo desta equação. A

forma geral proposta por Vigotski era que “a arte é uma técnica social de

sentimentos”. Esta concepção encaixa muito bem, conforme KOZULIN, com a

teoria que posteriormente desenvolveria Vigotski acerca dos símbolos que

serviriam como barreiras e transformadores dos impulsos naturais humanos. A

arte é, por conseguinte, um dos sistemas de símbolos mais complexos, que

ajuda a transformar os sentimentos originais humanos no que Vigotski

denominou “reação estética”. Conforme KOZULIN, a partir disso, é fácil ver

como este esquema provisório da experiência estética corresponde com a

teoria de Vigotski das ferramentas psicológicas, pois trouxe um paralelismo

entre as ferramentas materiais e as ferramentas psicológicas ou simbólicas que

ajudam a transformar as funções cognitivas naturais em funções culturais. Na

Psicologia da Arte (1925), a primeira obra síntese de Vigotski, sugere-se uma

analogia similar entre as ferramentas materiais e as técnicas semióticas

utilizadas pelo artista:

“A transformação de sentimentos externos a nós ocorre em virtude de um sentimento social que se objetiva, sai do exterior, se materializa e se prende nos objetos externos da arte que se converte em instrumentos da sociedade” (Ibidem, p 55 e 56).

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A análise que Kozulin efetua tomando como referência a teoria

formalista da arte e a influência desta no pensamento vigotskiano é unilateral.

Não analisa, por exemplo, as várias resenhas realizadas por Vigotski na

juventude e nem a confrontação existente com o debate sobre a estética

marxista. Claro que na época que Kozulin escreveu esta obra não se suscitava

que havia estas resenhas, compreensível. Porém, o debate sobre estética foi

muito conflitante na década de 1920. Conforme TROTSKI (1976), em seu

artigo A escola poética formalista e o marxismo, “a escola formalista da arte era

a única teoria na Rússia que se opunha ao marxismo”. Opunha-se porque

admitia que era a forma que determinava o conteúdo, premissa não admissível

para os marxistas porque entendiam residir aí um reducionismo. Contudo,

Trotsky reconhece que os métodos formais são necessários, mas são

insuficientes. Esta análise se estenderia muito, mas o importante é reconhecer

sim que há uma análise sobre o conteúdo e a forma e a unidade destes

contrários, que é “a vivência” que alguns autores se negam a traduzir a palavra

russa equivalente: “perejivanie”. Acentuamos que Kozulin se nega a ampliar a

análise incluindo o marxismo.

É muito mais comum os biógrafos sustentarem a aproximação de

Vigotski com o hegelianismo do que com o marxismo. Evidentemente, tanto a

perspectiva marxista quanto a idealista objetiva adotam a lógica dialética e

reconhecem o real. A questão que as diferencia é utilizar o real para explicar a

ação do Espírito ou utilizar o real para a sua própria transformação. Kozulin

enfatiza o hegelianismo e seu método e simplesmente ignora o que foi

objetivamente escrito por Vigotski e sub-repticiamente coloca o marxismo

dentro das perspectivas mecanicistas ou distanciadas da dialética.

VEER & VALSINER (2009), não difere muito do que Kozulin projetou

para as obras de Vigotski e se preocupam em fazer a contextualização das

obras de Vigotski e apontar os principais temas por ele desenvolvidos ou

parcialmente desenvolvidos: psicologia pedagógica, defectologia, psicanálise,

crise da psicologia, estética e os fundamentos teóricos que eles denominam

como “histórico-cultural”. Notamos que estes biógrafos fazem várias referências

aos estudos de Alex Kozulin, que já havia escrito até então vários artigos e

livros sobre a vida e a obra de Vigotski, como também sobre a psicologia

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soviética: Psychology in Utopia. Toward a Social History of Soviet Psychology

(1984); Georgy Chelpanov and the establishment of the Moscow institute of

psychology (1985); Vygotsky’s Psychology. A biography of Ideas (1990); e The

concept of regression and Vygotskian developmetal theory (1990). VEER &

VALSINER tomam por referência a linha de investigação de Kozulin, mas

ampliam os estudos analisando as diversas influências do conhecimento na

produção teórica de Vigotski. Os autores fazem a aproximação de Vigotski com

a base teórica tanto de Hegel (VEER & VALSINER, 2009, ps. 33, 38, 138)

como também de Espinosa (Ibidem, ps. 20, 28, 384-87). Referem-se ao

materialismo dialético apenas como um método secundário endereçando a

tarefa da defesa da gnosiologia materialista para a ortodoxia marxista ou para

os doutrinadores do partido comunista central. Por outro lado, VEER &

VALSINER enfatizam o início do interesse pela dialética de Vigotski.

“(...) a estética idealista de Vygotsky já era dialética em sua abordagem - e isto não é de surpreender, dado que seu interesse pela filosofia hegeliana remontava a seus dias de Gymnasium. Vygotsky estava descobrindo os lados opostos no mesmo todo e, nesse raciocínio dialético, sua visão de mundo desenvolvimentista foi sendo gradualmente estabelecida” (Ibidem, p. 33)

Foi a compreensão e o impacto marcante dos estudos sobre a tragédia

de Hamlet – Príncipe da Dinamarca de William Shakespeare, ainda em idade

juvenil, que fez Vigotski logo compreender os fundamentos da lógica dialética.

É a arte que joga Vigotski no debate sobre a estética e o qualifica na lógica

dialética. Seguindo a referência de Kozulin, VEER & VALSINER também

chamam a atenção de que Vigotski esforçava-se para fazer a relação da arte

com “a vida em geral” porque entendia que a mesma tinha uma função que ele

denominava de “catártica” para a vida das pessoas como um meio para novas

sínteses psicológicas ou então como possibilidade de reverter ou de superar

uma determinada condição de vida. Para a psicologia, portanto, a arte seria a

chave para compreender dinamicamente o que não se desenvolve na pessoa.

A compreensão clara de Vigotski sobre os problemas entre as

abordagens das escolas psicológicas fez dele uma referência a ponto de ser

convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia, em Moscou, em 1924. Neste

Instituto, pôde ter contato com muitos pesquisadores e, dada sua sólida

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formação investigativa, foi logo indicado para assumir a função diretiva no setor

de estudos sobre crianças com problemas de deficiência neurológica. Nessa

época, Vigotski critica a escola reflexológica, muito em voga então, isto porque

esta simplesmente não considerava o estudo da consciência por defenderem

que não era possível objetivar o subjetivo. Esta premissa foi contestada, pois

se a psicologia não pudesse estudar a consciência reduzir-se-ia à fisiologia.

Não desconsiderava os estudos dos reflexólogos, mas não concordava que

esta abordagem pudesse assumir “uma escola independente dentro da

psicologia” (Ibidem, p. 53) pelo seu caráter reducionista.

Em 1926, a partir dos estudos na área da educação em Gomel,

Vigotski publicou um livro de orientação para os educadores: Psicologia

Pedagógica(1924). VEER & VALSINER afirmam que neste período nosso autor

ainda tinha influências dos referenciais reflexológicos (que também poderiam

ser identificados na abordagem reactológica), por exemplo, para compreender

o comportamento humano, a reação aos estímulos poderia ser observada em

três aspectos: i) “recepção”; ii) “processamento”; e iii) a “resposta ao estímulo”

(Ibidem, p. 63). Contudo, aos poucos vemos ampliando esta referência, mas

sem sair ainda do debate sobre os reflexos, por exemplo, para compreender o

comportamento humano Vigotski sustentava que era necessário considerar (1)

reações inatas, (2) reflexos condicionados, (3) experiência histórica, (4)

experiência social, e (5) experiência duplicada. Esta última, determinante no

ser humano, consistia em estímulos internos oriundos de reações de estímulos

externos – experiência duplicada (VIGOTSKI, 2004, ps. 83-84). Ou seja, aos

poucos, Vigotski foi se diferenciando e se distanciando dos referenciais

reflexológicos e se desafiou a entender e pesquisar uma psicologia que

superasse o caráter dualista.

Quando VERR & VALSINER enfatizam o materialismo histórico

aproximam-no de Kornílov (1879-1957) e sustentam também o quanto este foi

influenciado pelas concepções da especificidade “dialética natural-filosófica” de

Friedrich Engels – que no final da segunda metade da década de 1920 era

muito difundida na União Soviética. Ou seja, notamos que os autores não

colocam Vigotski influenciado diretamente pelo materialismo histórico, mas

essencialmente Kornílov. E mais, afirmam que tanto Kornílov como Vigotski

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buscavam a “síntese hegeliana” e que no caso de Kornílov “usou isso em luta

pela reconstrução da psicologia”, e, no caso de Vigotski, “movia-se em direção

paralela em seus esforços para compreender como os receptores de

mensagens artísticas chegam a novos sentimentos” (Ibidem, p. 138).

Imaginamos o quão surpreso ficaria Kornílov ao saber que sua busca para

definir uma psicologia marxista estivesse fundamentada na procura pela

“síntese hegeliana”. Citamos uma passagem do modo como o processo de

síntese vigotskiana é analisada pelos autores:

“(...) o próprio desenvolvimento de Vygotsky levou-o a ver diferentes tipos de unidades nos fenômenos em que estava interessado. Se, em meados da década de 1920, a unidade seria uma estrutura de reações unidas por um dominante, mais no final de sua vida ele começou a ver o significado das palavras como unidade relevante a de análise. Talvez a discussão bastante ocasional e vaga de Vygotsky sobre a “análise em unidades” que ressurgia em seus escritos e palestras de tempos em tempos seja mais bem compreendida como um recurso retórico, ou seja, um meio para atingir o fim de defender uma posição teórica dinâmica estruturalmente orientada contra os esforços para analisá-la em elementos. Assim fica mais claro o motivo pelo qual Vygotsky não prosseguiu para algum estudo produtivo dessas unidades, mas apenas enfatizou a necessidade desse estudo” (Ibidem, p. 185).

Sobre a continuidade dos estudos fica bem mais evidente nas análises

que veremos mais adiante por parte de GONZALEZ REY, mas os autores aqui

mencionam que nem isso foi plenamente alcançado. Entretanto, insistimos em

chamar a atenção para a continuidade da crítica velada ao materialismo e

como evidenciam o hegelianismo. Como poderíamos falar do marxismo sem o

materialismo histórico dialético? Este parece ser o mistério do idealismo, ou

seja, insere-se a teoria vigotskiana no humanismo real que nada mais é que o

“idealismo especulativo”, porque “no lugar do ser humano real e verdadeiro,

coloca a autoconsciência” ou “o espírito desencarnado” (MARX & ENGELS,

2009, p. 15). Não há nada que possa combater a teoria especulativa que não

seja práxis. Para sermos mais claros, a lógica dialética pode ser esclarecedora

quando aplicada na realidade, mas ao retirar-se dela institui-se como se tudo

resumisse a conceitos. Os biógrafos são capazes de identificar as influências

de Wolfgang Köhler(1866-1948), que resultaram no “método funcional da dupla

estimulação”; de Kurt Lewin(1890-1947) e seus estudos dos processos de

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desenvolvimento, que relacionam a atividade humana com a estrutura deste

campo; de Kurt Goldstein(1878-1965), as pesquisas sobre a fala interior; de

Vladimir Vagner (1849-1934),as comparações ontogênicas com as filogênicas;

de Marx e Engels, a importância da fabricação de instrumentos na história da

humanidade; de Lévy-Bruhl (1857-1939), a crítica à ideia de que a mente

humana é igual em todas as culturas; de Thurnwald(1869-1954), sobre as

pesquisas da mente moderna em comparação com a mente pré-história; de

Ach(1871-1946) e suas pesquisas sobre o desenvolvimento de conceitos; de

Piaget (1896-1980), sobre o estudo da linguagem e do pensamento; de

Espinosa, a perspectiva monista; e tantos outros. Os biógrafos tentam fazer um

mapeamento dos autores com os quais Vigotski trabalha ou defronta-se, mas,

continuamos a insistir, não o fazem localizando uma unidade de sentido

gnosiológica na obra de Vigotski. É como se o esforço de Vigotski em encontrar

uma psicologia dialética de base marxista não constassem nas obras de forma

tão destacada como estão. Quando VEER & VALSINER (2009) analisam o

Significado histórico da crise da Psicologia (1927) reconhecem ali a tentativa de

“integrar as ideias de Marx, Engels e Lênin em seu pensamento”, mas os

autores consideram apenas a crítica às perspectivas marxistas que se

alinhavam ao materialismo mecanicista, cada vez mais distante da dialética.

Não analisam que a crítica que o próprio Vigotski faz, e não buscam entender

se por trás desta crítica há um materialismo histórico dialético diferente ao que

está se tornando hegemônico na URSS.

Na mesma direção, VERR & VALSINER também enfatizam que a

compreensão da teoria da Gestalt auxiliou Vigotski a elaborar um referencial

próprio de metodologia que eles denominam de “histórico-cultural”. Os

gestaltistas eram “antiassocionistas” e “antielementaristas” e esforçavam-se

pela busca da compreensão da totalidade e ao mesmo tempo pela busca de

um método para encontrar uma “unidade estrutural”. Este referencial foi

importante para confrontar as concepções reflexológicas que predominavam na

Rússia, àquela época, que reduziam “os fenômenos a reflexos e seus

agregados” (Ibidem, p. 183). Pela proximidade que Vigotski tinha com Kurt

Lewin (mantinham inclusive intercâmbio de pesquisadores e Vigotski o

classificava como “psicólogo estruturalista”) também puderam compartilhar

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teorias e pesquisas realizadas cada qual na sua realidade. Kurt Lewin estudava

“a potência emociogênica” que servia para ressignificação subjetiva ou

“reorganização cognitiva” de pessoas sob estresse emocional que

estabeleciam “plano de ações”. Lewin via “a unificação dos processos afetivos

com a cognição e a ação” e tal condição estava em sintonia com a visão de

Vigotski, que encontrava na afetividade espinosana a base para fundamentar

seus estudos. Nesta observação dos autores, por sinal muito difundida e não

devidamente assimilada, acerca da influência dos gestaltistas sobre a teoria

vigotskiana, “A unidade de sentido”, “a unidade de análise” ou “a unidade

estrutural” pode até ter uma relação com o que é mais essencial do método

marxiano: “o concreto é síntese de múltiplas determinações”. Contudo, não se

localiza o desenvolvimento dentro de um processo histórico.

Os autores afirmam que Vigotski seguiu a distinção entre “evolução

biológica” e “história humana” baseando-se nas ideias de Marx e

principalmente de Engels. Engels destacava que o uso de instrumentos pelos

seres humanos os diferenciavam fundamentalmente dos animais. Diferenciam-

se por que os seres humanos são ativos e transformadores da natureza. Esta

ideia está muito presente no pensamento de Vigotski. A diferença marcante

nestes estudos é o biológico e o social e compreende-se que Vigotski não

desconsiderou o biológico, mas o desenvolvimento biológico tem uma condição

menos complexa, se assim pode ser dito, do que o desenvolvimento social e

histórico.

O laboratório Psicológico da Academia de Educação Comunista de

Moscou foi fechado em 1932, mas um pouco antes, em 1930, foi criada a

Academia Psiconeurológica Ucraniana, em Kharkov, que convidou muitos dos

pesquisadores de Moscou. Vigotski não quis ir para Kharkov e resolveu

permanecer em Moscou. É a partir deste momento que começam a surgir

conflitos. Conforme VEER & VALSINER (2009), o fechamento da Academia de

Educação também trouxe um conflito que talvez se ampliasse se Vigotski

tivesse vivido mais tempo. Em 1934, A. Leontiev escreveu um artigo que marca

seu distanciamento das ideias de Vigotski. Leontiev, citado pelos biógrafos,

defendia que “os processos de mediação baseiam-se em atividades materiais

sociais e renomeou a teoria histórico-cultural de ‘teoria histórico-social’”

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(Ibidem, p. 316). Leontiev substituiu “a ênfase nos signos como meio de

mediação entre objetos da experiência e funções mentais pela ideia de que a

ação física (trabalho) deve fazer a mediação entre o sujeito e o mundo exterior”

(Ibidem, p. 316). Esta é, de fato, aquela a qual já nos referimos e que foi

denominada de “escola da atividade”, em Kharkov, e liderada por Leontiev.

Contudo, depois de 1941, conforme YASNITSKI (2011), Leontiev como se

aproximam da teoria vigotskiana nas tentativas de recuperação e consolidação

de uma psicologia dialética.

Analisando a perseguição que teve início a partir de 1930, com as

disputas internas na Rússia soviética, a teoria de Vigotski foi identificada como

“psicologia voltada para a cultura” e “suspeita”, citando autores que acusavam

a teoria de Vigotski como “um ecletismo (...) que uniu (...) teoria do

desenvolvimento cultural, behaviorismo e a reactologia com a psicologia da

Gestalt, que é idealista em suas origens” (cit. VEER & VALSINER, p. 331).

Os pesquisadores que estiveram próximos de Vigotski no período de

1931 a 1933 informam uma preocupação com o estudo das emoções. Várias

versões foram elaboradas, mas apenas a primeira parte ficou concluída – faltou

a parte, digamos, mais importante. E, Zenaida Vigotskaja (irmã de Vigotski),

durante a década de 30, ainda se esforçou para que este manuscrito fosse

publicado com o título: Espinosa e sua teoria do afeto – Prolegômenos para

uma psicologia do homem. Este manuscrito só veio a ser conhecido

completamente na década de 1980 com o título: A teoria das emoções -Uma

investigação histórico-psicológica (VEER & VALSINER, p. 377). Neste

manuscrito problematiza-se a afetividade como uma das questões mais

importantes da psicologia, que também fora objeto de estudos de filósofos

como Renè Descartes (1596-1650), Baruch Espinosa (1632-1617), Thomas

Hobbes (1588-1651) e John Locke (1632-1704). O manuscrito seria uma

extensa obra se tivesse sido concluída e o que dispomos é apenas da parte

que problematiza a perspectiva dualista de dois autores que estavam em

evidência para este debate: William James (1842-1910) e Carl Lange (1834-

1900). Os referidos autores postulavam que todas as emoções são

desenvolvidas a partir de reações fisiológicas a estímulos; Vigotski contestava

esta visão por ser uma teoria fundamentada essencialmente na fisiologia e não

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contemplava ou não considerava o aspecto psicológico dos processos

emocionais. Vigotski analisava essa tendência como uma herança do

cartesianismo, dualista, tendendo a dividir os estudos em duas ciências: uma

analisando o corpo e a outra a mente. Para superar a perspectiva dualista

sugere voltar os estudos a Baruch Espinosa. A solução para Vigotski estava na

perspectiva monista espinosana, ou seja, corpo e alma não são separadas,

mas fazem parte de uma mesma substância. Descartes considerava a alma

como sendo uma “existência livre e não-determinada”. VEER & VALSINER

identificam em Vigotski uma concepção “genética desenvolvimentista” que

contraria a de Descartes, que era “dualista”. Ao propor uma solução com

referências espinosanas o trabalho não prosseguiu. Os biógrafos suscitam que

talvez Vigotski não tenha tido uma resposta coerente contra o dualismo de

Descartes (Ibidem, p. 385).

A pergunta que muitas vezes se faz em relação a Vigotski ser ou não

um marxista acabou por criar “algumas confusões” que os biógrafos VEER &

VALSINER consideram como referências “binárias”. Vigotski esteve sempre

acima disso sustentando uma “interdependência intelectual”, já que se

propunha a dialogar com pesquisadores de outros países. Os autores,

reconhecendo a contrariedade ao ecletismo, reconhecendo a interdependência

intelectual e cultural de Vigotski, não identificam uma metateoria, uma

concepção gnosiológica para Vigotski. Referem-se a ele como um autor com

alta capacidade de lidar com a lógica dialética hegeliana, mas não descrevem o

que fundamenta além da lógica. Por exemplo, ao mencionar o distanciamento

de Vigotski com “a ênfase à práxis da escola de Kharkov” leva também a

interpretações binárias. Ou seja, a escola de Kharkov identificada cegamente a

um doutrinarismo marxista e a escola vigotskiana como contrária à práxis. Os

autores claramente enfatizam na biografia de Vigotski “a síntese dialética”

como “um instrumento positivo” na busca pelas unidades de análises;

“consistente perspectiva desenvolvimentista” que não se circunscrevia à

análise ontológica, mas que analisava os fenômenos dentro de um processo de

desenvolvimento; “o método de dupla estimulação”, isto porque não

permaneceu na metodologia tradicional experimental, mas “desenvolveu um

esquema metodológico que introduz o surgimento dinâmico de estruturas

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novas de fenômenos psicológicos”; “posição antirreducionista” para poder

compreender fenômenos psicológicos dentro de uma totalidade com ênfase na

“análise em unidades” (Ibidem, p. 430). Estes destaques constam no “epílogo”

da obra que resume a posição dos autores na relação com o biografado, ou

seja, não tiram a concepção dialética de Vigotski, mas assumem uma posição

de neutralidade que qualifica o debate sobre a inquestionável contribuição de

uma teoria que havia de se colocar de forma positiva, numa sociedade

desafiada a auto-construir-se e a resultar no surgimento de um novo homem e

de uma nova mulher.

GONZÁLEZ REY (2013), ao fazer referência sobre o ambiente

formativo de Vigotski, destaca que o Prêmio Nobel recebido em 1904 por I. P.

Pavlov (1849-1936) já nos indica o quanto a fisiologia foi uma disciplina bem

desenvolvida na Rússia. Em torno de Pavlov se construiu um círculo de

pesquisadores que depois da Revolução de Outubro de 1917 continuou com

muita força, principalmente, ao se juntar com o materialismo mecanicista,

quando tentou-se “apagar a especificidade da psique e, portanto, o

reconhecimento institucional da psicologia” (Ibidem, p. 17). Além de Pavlov,

havia outros pesquisadores renomados: Sechenov (1829-1905), V. M.

Bechterev (1857-1927). Sechenov foi aquele que reconheceu “a atividade”

como base para compreender o psiquismo humano e tal reconhecimento

influirá muito na “psicologia dialética” (Ibidem, p. 12). E Bechterev escreveu um

livro, Psicologia Objetiva, no qual não reconhecia o processo subjetivo, a

psicologia deveria ater-se rigorosamente “a manifestações objetivas”. É

justamente em relação a este ruducionismo que Vigotski irá contestar

rigorosamente.

A questão central no pensamento vigotskiano é que a mente humana

tem uma formação social, mas este social não deve ser compreendido como

supressão do indivíduo ou da singularidade. GONZÁLEZ REY deixa isso muito

claro nesta citação:

“Vigotsky defende que a psique humana é socialmente definida; portanto o estudo do indivíduo é também psicologia social, algo que até hoje a psicologia social não foi capaz de resolver, em parte por não dispor de uma definição ontológica da psique que lhe permita entender a psique individual de modo compatível com esse princípio. É interessante também destacar o modo como Vigotsky

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compreende o social, não como algo externo, empírico, que complementa a atividade individual, mas sim, como a própria organização psíquica do indivíduo; nela está o social, ela é social; a questão aqui é definir como o social aparece nessa forma de organização que, ontologicamente, se diferencia do evento social como evento empírico de relação” (Ibidem, p. 34).

A ênfase colocada por nosso biógrafo está na compreensão sobre o

tema subjetividade e “nos processos psíquicos humanos” que são elaborados

ou definidos dentro de “uma produção simbólica-emocional sobre a experiência

vivida” e que não se resume a uma pessoa, mas amplifica-se a todos os

processos sociais (Ibidem, p. 34). Conforme GONZÁLEZ REY esta condição se

perdeu na URSS quando o estalinismo predominou:

“A falta de desenvolvimento dos aspectos do marxismo associados à subjetividade humana na filosofia marxista soviética manteve a psicologia refém de princípios associados à hegemonia do social e da atividade, impedindo que avançasse na direção de entender a especificidade qualitativa da psique em relação com esses processos. O conceito de psique manteve-se submetido a um princípio determinista mecanicista, quer fisiológico quer social, em relação ao qual a psique não se apresentava em sua especificidade, sendo compreendida somente como o resultado de alguma influência “objetiva”, na garantia de sua objetividade” (Ibidem, p. 35).

Somente na década de 1980, conforme o autor, diversos autores

soviéticos retomam os estudos não apenas de Vigotski, mas de tantos outros

no período em que foram reprimidos e até perseguidos para retornar as

pesquisas que ficaram em aberto.

GONZALEZ REY considera a influência do marxismo “decisiva” para

Vigotski porque possibilitou impor um “pensamento claramente dialético”

(ibidem, p. 37), mas aqui, de forma inversa aos outros biógrafos citados acima,

defende a dialética do marxismo e não do idealismo. O que fica muito

destacado na obra de GONZALEZ REY e todos os outros é que a produção de

Vigotski não teve o seu momento de síntese.

“(...) Vigotsky não conseguiu viver o suficiente para desenvolver as consequências de uma ideia que sempre esteve entre suas inquietações e que nunca concretizou: o sistema psicológico complexo de integração das funções afetivas e cognitivas na

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consciência, que continuava a ser sua referência preferida para indicar o sistema da psique” (Ibidem, p. 99).

VEER & YASNITSKY (2011) apresentam um esboço das influências

teóricas de Vigotski e como elas se integram num sistema que eles denominam

de “abordagem histórico-cultural”:

“Para Vigotski, se podemos nos permitir um ligeiro exagero, teve a ideia de internalização de G. Hegel e Janet (1); o princípio da análise genética de Marx e Blonsky (2), ele encontrou a ideia de uma abordagem unitária nas obras da Gestalt (3); a concepção de sinal como meio ou ferramenta pode ser atribuída a Potebnia (4); a categoria de comunicação foi já dito por Hegel (5); e, a ideia de intelectualização das funções psicológicas pode ser encontrada nas obras de Espinosa (6). Esta não é uma lista completa das obras de Vigotski e não está exatamente na forma como ele conectou todas essas noções separadas em um sistema integrado na sua abordagem histórico-cultural para o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores”.

Este resumo “ligeiro” demonstra o que temos observado na tendência

das leituras e análises do pensamento por parte dos biógrafos: retratam-se as

influências, mas não uma referência gnosiológica principal.

Em um artigo que VEER (2016) escreveu analisando o início da

formação filosófica de Vigotski e a influência do pensamento espinosano, ele

aponta três pensamentos centrais de Espinosa que foram determinantes no

pensamento de Vigotski: o intelectualismo (entendemos aqui sua tendência

cognitivista), o monismo (ou determinismo) e ouso das ferramentas intelectuais.

Tanto Espinosa quanto Vigotski sustentam “o desenvolvimento como processo

de controle gradativo dos processos psicológicos pelo intelecto”. Para VEER há

diferenças entre uma visão e outra sobre este processo de intelectualização.

Espinosa considera, por exemplo, a compreensão das emoções como uma

condição suficiente para o controle por si só; Vigotski reforça muito mais o

papel da fala no desenvolvimento das emoções que estruturam as funções

psicológicas superiores, e isso significa a mesma coisa que dizer da

importância dos aspectos culturais (Ibidem, p. 92).

Na mesma linha que os outros autores, Del RÍO também identifica as

orientações de Vigotski: “uma psicologia com forte orientação materialista e

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hegeliana, e outra com forte raiz literária trágica” Este profundo conhecedor da

obra de Espinosa define o que é cada uma das orientações teóricas de

Vigotski. A primeira refere-se a “compreender e explicar a determinação

histórica e sociocultural da conduta a partir da tradição social e coletiva do

humano” e a segunda a “compreender e explicar a determinação histórica e

sociocultural da conduta pessoal a partir da tradição filosófica e moral da

autodeterminação, no rastro de Espinosa” (cit. REGO & BRAGA, 2013, p. 517).

Del RÍO, tradutor das obras originais russas de Vigotski para o espanhol, tem a

perspicácia de inverter completamente o que os outros biógrafos tendem a

desconsiderar ou a ficar nas circunlocuções. Seria muito diferente se afirmasse

que a orientação fundamental de Vigotski fosse “idealista e marxiana”, mas

esta é a definição ou afirmação mais vergonhosa, e, portanto, melhor é tratar

das influências teóricas em geral. ALVAREZ & Del RÍO (1991) estudam

profundamente a influência da arte na psicologia vigotskiana colocando duas

obras referenciais: a Ética de Espinosa (1677) e Hamlet de Shakespeare

(1603). “Para combinar a procura crítica da ciência e a busca ineludível do

sentido da existência” estas duas obras lançam Vigotski na discussão sobre “o

drama da psicologia e a psicologia do drama” (cit. REGO & BRAGA, 2013, p.

517). Concordamos com Del RÍO quanto a não ser possível retirar Vigotski do

contexto social em que viveu e com todas as contradições da sociedade russa.

“Ele era prisioneiro” destas circunstâncias que não foram outras. “Ele era

voluntariamente prisioneiro”, pois poderia ter escolhido uma outra realidade

para viver mesmo que saibamos que a direção para o ocidente tornava-se cada

vez mais difícil por ser de origem judaica. Contundentemente, Del RÍO afirma

que Vigotski era “revolucionário convicto que acreditava no pensamento

histórico e no pensamento dialético” e “não se deixava arrastar pela

regularidade marxista da linha única” (Ibidem, p. 534). Entendemos que as

análises de Del RÍO enfrentam de fato as contradições do pensamento

vigotskiano, mas, principalmente, não omitem a realidade e as determinações

políticas da URSS.

Na União Soviética, Vigotski tinha reconhecimento muito grande do seu

trabalho na área da psicologia e muitos também o reconheciam como um

pesquisador preocupado com as questões de método e que a partir das leis

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gerais marxistas conseguiu criar uma aplicação concreta. A pergunta principal

de seu tempo era “como se poderia construir a psicologia marxista partindo das

teses gerais do materialismo dialético?” Para LEONTIEV, Vigotski respondeu

essa pergunta recorrendo “aos princípios gerais que constam no Capital de

Karl Marx e que a partir dali desenvolveu a metodologia de uma ciência

concreta” (LEONTIEV, 2014, p. 427). É certo que Vigotski realmente tenha

recorrido constantemente aos referenciais marxianos, mas Engels teve uma

influência significativa com sua Dialética da Natureza. Supõe-se que Vigotski

esteja associado somente à teoria histórico-cultural, mas ele foi muito além

disso. Para compreender as concepções psicológicas que Vigotski concebeu é

preciso entender o esforço que fez para desenvolver princípios metodológicas

de base marxista para aplicação aos problemas concretos (IAROSHEVSKI &

GURGUENIDZE, 2013, p. 451).

Vigotski partia das teorias que existiam no seu tempo e isto é marcante

em todas as suas obras, em todos os seus textos. Sempre começa

confrontando as teorias existentes, uma a uma, e, a partir delas, vai fazendo as

contraposições e mostrando as interpretações equivocadas, fundamentando-se

num materialismo que desvela as contradições com todas as suas facetas.

Para LÚRIA, Vigotski compreendia claramente o que Marx havia sustentado:

“conhecemos somente única ciência, a ciência da história”; ou seja, recorria

sempre às etapas reais do pensamento na formação da pessoa (2001, p. 453).

Vigotski criou uma psicologia científica fundamentada no materialismo

histórico dialético para atuar junto a crianças com comprometimento físico e

mental e crianças e adolescentes com dificuldade devido a problemas sociais e

cognitivos – ele lidava com as crianças e adolescentes considerados “difíceis” e

até hoje sua teoria é ainda muito influente na Rússia (BEIN, E. S.; VLÁSOVA,

T. A.; LÉVINA, R. E.; MORÓZOVA, N. G.; SHIF, Zh.I, 1997, p. 365).

Um dos seus mais conhecidos alunos e que foi um dos responsáveis

pela edição das Obras Reunidas, publicadas em 1982 na URSS, apresenta

uma definição mais detalhada sobre o referencial teórico e metodológico de

Vigotski.

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“Vigotski ha sido ante todo um especialista em el campo de la psicología general, um metodólogo de la psicología. Su vocación científica consistía em la construcción de un sistema para la psicología, cuya base sería el materialismo dialéctico e histórico. Lo histórico y lo sistémico son los princípios básicos de enfoque de Vigotski de la investigación de la realidad psicológica, y particularmente de la conciencia como su forma específicamente humana. Vigotski dominaba el marxismo, su método, em el curso de sus propias investigaciones teóricas y experimentales, ya que utilizaba a menudo los trabajos de los clásicos de marxismo-Lêninismo. Precisamente por esta razón el materialismo histórico y la dialéctica están tan orgánicamente unidos em los trabajos de Vigotski” (ELKONIN, 2012, 387).

Os comentadores soviéticos são enfáticos quanto ao referencial teórico

de Vigotski. Poderíamos supor que esta unanimidade pudesse ser arranjada

por coação ideológica. Um conjunto de publicações foi reunida em 1982,

quando a URSS vivia um processo de expansão de sua influência no mundo.

As obras de Vigotski e de outros autores teriam sido usadas para divulgar uma

concepção progressista da sociedade soviética? Esta é uma questão

embaraçosa, mas ela existe. Contudo, se algum leitor se referir apenas a uma

ou duas obras pode-se até chegar a conclusões rápidas sobre a verdadeira

teoria de Vigotski. No conjunto da obra, é completamente equivocado

menosprezar o papel tão determinante do materialismo histórico dialético de

Vigotski.

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Capitulo 5: O projeto para publicação das obras completas

Em 1982 foi publicado em Moscou os primeiros volumes de um projeto

editorial denominado Obras Reunidas - “СОБРАНИЕ СОЧИНЕНИЙ”33 com

vários textos de Vigotski que compreende 6 volumes, 54 títulos escritos no

período de 1924 a 1934. Foi um trabalho conjunto de recuperação dos textos

de Vigotski; a maior parte estava guardada em arquivos da família em forma de

manuscritos. A edição russa dos volumes ocorreu no período de 1982 a 1984

(Vol.1, 1982; Vol. 2, 1982; Vol. 3, 1983; Vol. 4, 1984; Vol.5, 1983; Vol. 6, 1984).

Rapidamente este conjunto de textos foi traduzido para o inglês bem como

para o espanhol, este último consiste em nosso principal acesso (traduzido

com o título “Obras Escojidas”).

O lançamento das Obras Reunidas significou um marco editorial tanto

para dentro da URSS como para fora. Internamente, foram recuperados os

referenciais teóricos para qualificar as metodologias de pesquisa, bem como

orientar profissionais na área da educação e da psicologia, na atuação com

crianças com comprometimento físico, motor ou neurológico – Vigotski, mesmo

com a proibição de circulação de suas obras no período stalinista, não deixou

posteriormente de ser lembrado e referenciado.

Para publicação das Obras Reunidas na Rússia Soviética é necessário

analisar a composição do conselho de redação que envolveu os colegas de

Vigotski, no período de atuação no Instituto de Psicologia como também a

colaboração da filha de Vigotski: G. L. Vigodskaia. O conselho de redação34

russo, quando publicou o primeiro volume das Obras Reunidas, emitiu uma

nota de esclarecimento bastante curta destacando a dificuldade de sistematizar

e organizar a produção vigotskiana. Para o estudo hermenêutico é

imprescindível destacar nesta nota as justificativas para definir quais obras

deveriam ser selecionadas e publicadas:

33Preferimos a tradução literal Obras Reunidas (СОБРАНИЕ СОЧИНЕНИЙ - sobranie sochinenii) e não “escolhidas” como da tradução espanhola. 34Composto pelo Diretor A. V. Zaporózhets e V.V.Davydov, D.B. Elkon in, M.G. Iaroshevski, V. S. Jelemiéndik, A. N. Leóntiev, A. R. Lúria, A. V. Petrovski, A. A. Smirnov, T. A. Vlásova e G.L. Vygotskaia.

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“Como é lógico, num primeiro momento do trabalho, colocou-se como problema quais obras selecionar e quais seriam os critérios de tal seleção, problema que fez surgir outros em cadeia. O primeiro concernia à identificação das obras de L. S. Vigotski, parte das quais só existia em forma manuscrita. Esse problema foi delegado a uma comissão especial de peritos, criada pelo conselho de redação e adjunta ao mesmo, presidida pelo membro correspondente da Academia de Ciências Pedagógica da URSS, professor. D. B. Elkonin. A comissão estudou toda a herança manuscrita de Vigotski, identificou suas obras e estabeleceu o texto definitivo dos manuscritos que foram reconhecidos como pertencentes a sua pena. Em seguida, quando se conseguiu estabelecer com precisão os limites da herança científica do autor (o que terminou com as inúmeras conjeturas que circulavam sobre a criação de Vigotski, com a tergiversação e a utilização descuidada de seus materiais manuscritos), foi possível iniciar a seleção das obras para a presente edição e a confecção dos volumes” (VIGOTSKI, 2004, ps. 421-22).

O conselho de redação expressou também a decisão de não

intervenção nos textos. Alguns trechos percebemos que se repetem nas

conferências, nos artigos e nos livros, mas os editores russos foram claros em

afirmar que não fariam intervenções mesmo que isso tornasse repetitivo ao

leitor. Este zelo não confere com a posição dos comentadores das obras de

Vigotski no ocidente, pois muitos afirmam existir supressões de nomes e de

alteração dos textos. Citamos diretamente a observação do conselho editorial

realizada no primeiro volume das Obras Reunidas:

“Em primeiro lugar, nos trabalhos de Vigotski abundam as repetições quase textuais, mas mesmo assim não consideramos conveniente reduzi-los nem, em geral, revisá-los. Em segundo lugar, em sua obra dedicada à psicologia científica, que abrange um período de quase dez anos (1924-1934), é bem difícil destacar períodos suficientemente definidos em termos cronológicos. Partindo dessas limitações, abordamos a confecção dos volumes escolhendo o material de forma a oferecer, dentro do possível, uma ideia completa da obra de Vigotski, embora não tenham sido incluídos todos os seus trabalhos. Na organização de cada tomo, seguimos um duplo princípio: o cronológico e o do conteúdo, ao passo que na estruturação da obra de Vigotski nos seis tomos resultantes não partimos do princípio cronológico (ressaltar períodos de tempo acabados), mas do conteúdo (desatar determinadas linhas de conteúdo lógico). Cada volume responde, pois, a uma linha semântica concreta, mas dentro dele o material foi organizado, em geral, segundo o princípio cronológico” (VIGOTSKI, 2004, p. 422).

A organização dos seis volumes respondeu ao que o conselho de

redação denominou de “linha semântica”, a saber: volume I, Método; volume II,

Psicologia Geral; volume III, Desenvolvimento da Consciência; volume IV,

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Pedologia do Adolescente e Psicologia Infantil; volume V, Defectologia; e,

volume VI, Estética (arte).

A edição russa das Obras Reunidas foi traduzida para o inglês e quase

que simultaneamente surgiu a edição espanhola, denominada Obras Escojidas,

no período de 1991 a 2001 (Vol.1, 1991; Vol. 2, 2001; Vol. 3, 1995; Vol. 4,

1996; Vol. 5, 1997; e, Vol. 6 não foi ainda publicada). No primeiro volume, os

diretores espanhóis fazem a apresentação do projeto editorial, bem como dão

explicações sobre a dificuldade de fazer a tradução dada a diferença cultural

linguística e pelo próprio estilo de escrita de Vigotski.

La maneira de escrebir de Vygotski, como es habitual em él, apressurada em muchos casos, condensada casi siempre, plagada de referencias implícitas, no facilita demasiado su interpretación a la hora de transcribir su pensamento: los silencios, lo no explícito, es lo más difícil de traducir. La labor se hace especialmente árdua em aquellos textos em los que Vygotski, como es habitual em él, realiza um ejercicio de oposición dialéctica com el autor o los autores a los que va citando, lo que Bajtin llamaría ‘ventrilocuización’, esto es, poner em las propias palavras el pensamento” (ALVAREZ, 1991, p. XXIV).

A citação acima é trecho da apresentação das Obras Escojidas e

destaca, muitas vezes, que a exposição de Vigotski se parece com uma atitude

de “ventriloquização”35; é uma observação desarrazoada por parte do editorial

espanhol. É verdade que nos textos de Vigotski há sempre um constante

diálogo com vários autores, pois a média de citações é muito alta36. Contudo, a

medida que vamos analisando obra por obra, percebemos que as citações e

problematizações são sempre realizadas com os mesmos autores, o que

facilita a interpretação dos textos e não dificulta. Quando essa leitura não é

realizada considerando os autores citados torna-se de fato muito difícil

compreender a totalidade do texto escrito. Vamos a um exemplo: cita-se com

muita frequência Eduard Spranger (1982-1963), filósofo e psicólogo alemão

35 Não tem palavra equivalente no português, mas o ventríloquo é aquele que fala pelo outro. 36 Apenas como exemplificação: na conferência “Desarrollo de las funciones psíquicas superiores em la

edad de transición” (OBRAS ESCOJIDAS, Vol. 4, p. 48-116), são citados 33 autores: PASHKÓVSKAYA, E.,

MESSER, A., MARX, Karl, GALTON, F.STUMPF, K.MEUMANN, E.UZNADZE, D.AMENT, W.PIAGET, Jean

ROUSSEAU, J., CLEPARÉDE, E.TEM, I., RIBOT, T., LIONTIEV, A. N., SHEIN, A., JOVSKAYA, G., GRAUKOB, G.,

JAENSCH, E., KROH, K., DEUCHLER, G., LAU, E., WERNER, H., WERTHEIMER, M., PIAGET, I., ROSSELLÓ, R.,

BERNS, K., VOGEL, M., ROLOFF, H., SCHÜSLER, G., MONCHAMP, E., MORITZ, E., ENG, H., MÜLLER, G.

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que se desafiou a trabalhar integralmente filosofia, psicologia e ciência

pedagógica. Em 1921, publicou o livro Lebensformen (Formas de Vida), que

distinguia na formação da personalidade as formas teorética, econômica,

estética, social e religiosa. Sua investigação era enfatizada a descobrir a

singularidade dos atos humanos e os fenômenos psíquicos baseando-se na

análise de sentido, ou seja, investigando as necessidades humanas

considerando unidades de análises coerentes com o comportamento humano.

Era radicalmente contra a psicologia empirista e estruturalista, pois entendia

que a psicologia não poderia explicar fenômenos psíquicos pela fisiologia e,

muito menos, pela decomposição destes fenômenos em unidades de

elementos para serem somados. Defendia que eram necessárias para análise

categorias capazes de darem conta de captar fenômenos singulares

conectados com os valores sociais. Mais tarde, este autor foi severamente

criticado por Vigotski por ter submetido a psicologia ao regime fascista

(VYGOTSKY, 1994). Portanto, não acompanhar todo processo de aproximação

deste autor até a sua relação com o fascismo significa não ter a compreensão

da totalidade do texto e compromete a interpretação. Dado o volume tão

grande de citações, a verificação torna-se um exercício tão lento e minucioso,

que pouquíssimos se aventuram a fazer esta análise longitudinal da evolução

do pensamento na relação com alguns autores específicos, principalmente,

autores alemães que, no início do século XX, implementaram vários

laboratórios experimentais e publicaram vários livros que se tornaram

referenciais na psicologia.

No Brasil, a Editora Martins Fontes publicou, em 1996, parcialmente, o

primeiro volume das Obras Reunidas – a primeira e a terceira parte – sob o

título Teoria e Método em Psicologia e constam os seguintes textos: Os

métodos de investigação reflexológicos e psicológicos (1924), Psicologia geral

e experimental (prólogo ao livro de A. F. Lazurski) (1924), A consciência como

problema da psicologia do comportamento (1925), Sobre o artigo de K. Koffka

“A introspecção e o método da psicologia” (1926), O método instrumental em

psicologia (1930), Sobre os sistemas psicológicos (1930), A psique, a

consciência, o inconsciente (1930), Desenvolvimento da memória (prefácio ao

livro de A. N. Leontiev) (1931), O problema da consciência (sem data), A

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psicologia e a teoria da localização das funções psíquicas (1934) e O

significado histórico da crise da psicologia (1927). Esta edição incompleta no

Brasil dificulta o acesso direto bem como cria uma dinâmica que se baseia nas

interpretações das interpretações. As iniciativas de tradução dos outros textos

ocorrem mais por iniciativas isoladas e não há uma proposta editorial

sustentando um programa para publicação das obras completas.

Na década de 1980, tinha-se a informação de que Vigotski havia

publicado aproximadamente 180 títulos (LEONTIEV, 2013)37 baseando-se em

estudos realizados por um de seus alunos (ELKONIN, 1982). Entretanto, nesta

lista ainda não estavam inclusos todos os documentos e outros manuscritos do

arquivo particular de posse da família. A junção de vários arquivos (públicos e

privados) propiciará a edição das obras completas. Zoia Prestes é uma das

pesquisadoras no Brasil que trouxe informações atualizadas sobre as tentativas

de organização e publicação das obras de Vigotski.

“Na União Soviética, os livros editados e lançados, principalmente após a morte de Vigotski, reúnem artigos, textos e aulas proferidas ou discursos em eventos científicos, mas não são livros organizados pelo autor. Daniil Borissovitch Elkonin, aluno e colaborador de Vigotski, empreendeu, à sua época, uma tentativa de organizar a bibliografia das obras do professor, indicando e relacionando cerca de 180 trabalhos. Mas, até hoje, o levantamento apresentado em anexo à biografia escrita por Guita Vigodskaia e Tamara Lifanova (1996) é o mais completo e sistematizado, relacionando 274 títulos. Provavelmente, um dos motivos de divergências entre as duas listas é que na segunda estão indicados até mesmo artigos e textos que ainda permanecem em forma de manuscritos e estão guardados nos arquivos da família ou foram publicados apenas uma vez, à época de Vigotski. Essas divergências nas informações a respeito da produção teórica do pensador também trazem à tona a questão sobre o quanto sua obra ainda precisa ser conhecida. Quem sabe, com a publicação de sua Obra Completa, que está sendo preparada pela família há alguns anos, essas divergências poderão se dissipar. Há, segundo sua neta, Elena Kravtsova, manuscritos que jamais foram publicados e o primeiro volume em russo da coleção deve sair até o final de 2014” (PRESTES, 2014, p.8).

Como Vigotski conseguiu produzir tanto em tão pouco tempo? É

provável que tivesse sempre à disposição bons colaboradores e talento para

37Leontiev menciona neste artigo, citando El’konin, que Vigotski produziu 180 trabalhos dos

quais 135 haviam sido publicados e 45 ainda não.

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coordenar e mobilizar os pesquisadores. Não significa que os grupos de

pesquisa formados tenham tido estabilidade nos seus trabalhos. Além das

diversas universidades criadas para sustentar os planos quinquenais de

desenvolvimento, a universalização do acesso à educação, tanto básica quanto

acadêmica, exigia professores em diversos e também distantes lugares da

União Soviética. As divergências políticas muito próximas ao poder central

(Moscou) levavam também os pesquisadores a buscarem condições que

propiciassem mais segurança e estabilidade, que relativizassem o controle

direto.

YASNITSKY (2011) combate aquela imagem do herói e do gênio que

se faz de Vigotski alertando que é resultado de um trabalho colaborativo de

vários pesquisadores e também resultado de um desafio posto por uma época

“sui generis” na URSS. É evidente que há uma característica especial de

síntese de Vigotski, de organização e sistematicidade de sua produção literária

científica, mas a tendência de colocá-lo como um herói ou como um gênio fora

de um contexto histórico é mais comum e quando isso ocorre as adequações

são todas possíveis.

Os principais colaboradores de Vigotski no Instituto de Psicologia em

Moscou foram Lídia Boznovich (1908-1981), Roza Levina (1908-1989), Natalya

Morozova (1906-1989), Lydia Slavina (1906-1988) e Alexander Zapovozhetz

(1905-1981). Incluímos também nesta equipe Danii Borisovich Elkonin (1904-

1884), mas este estava em Leningrado e veio a ser um colaborador mais tarde.

A lista de colaboradores é ainda bem maior, citamos apenas os principais38.

Além destes, temos dois pesquisadores que viveram muito mais tempo que

Vigotski e que foram responsáveis, na posterioridade, por reconhecer, divulgar

e ampliar o legado de suas pesquisas: Alexander Lúria (1902-1977) e Alexis N.

Leontiev (1903-1979). Lúria foi mais próximo de Vigotski enquanto que

Leontiev sempre mantinha certo distanciamento, mas, depois da morte de

Vigotski, estabeleceu parceria com Lúria e ambos continuaram vários

38 A rede de pesquisadores que envolvia Vygotsky, além dos citados, tinha também a colaboração dos seguintes pesquisadores: Sergei Eisenstein, Nikolai Bernstein, Leonid Zankov, Ivan Solov’ev, Vera Schmidt, Roza Averbukh, Leonid Sakharov, Boris Varshava, Vladimir Kogan, Mark Lebedinskii, Yuliya Kotelova, Vladimir Asnin, Nataliya, Birenbaum, Blyuma Zeigarnik, Nikolai Samukhin, Rakhil’ Boskis, Mariia Pevzner, Zhozefina Shif, Liya Geshelina, M.A. Levina, K.I. Veresotskaia, M.B. Eidinova, Esfir’ Bejn, Filipp Bassin e Piotr Galperin (YASNITSKY, 2010, p. 6).

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programas de pesquisa. Esta rede de pesquisadores orientada para contribuir

para a solução dos problemas sociais e com o desafio de construir uma

psicologia de base marxista conseguiu desenvolver muitos programas de

pesquisa com volume considerado de publicações.

A primeira dificuldade referente à organização (catalogação) das obras

de Vigotski já está superada (iniciado por EL’KONIN e depois finalizado por

VIGOSTSKAIA & LIFANOVA), mas ainda são muitos os obstáculos colocados

que exigem a comparação das publicações em fases diferentes. Outro passo

seria comparar suas publicações com as de Lúria e Leontiev e outros que nós

aqui não nos ativemos, por se tratar de um programa de investigação que

exigiria esforço de muitas frentes de pesquisa.

A lista completa das obras de Vigotski foi publicada em 1995 por

VIGODSKAIA &LIFANOVA (1999) no Jornal de Psicologia da Rússia39, ainda

de pouco conhecimento do público brasileiro, mas já é uma pequena iniciativa

de disponibilizar as obras ao público em geral. Este trabalho, além da relação

dos títulos, a disponibilização das obras em russo e as informações mais

detalhadas sobre a vida de Vigotski, foi importante para auxiliar nas pesquisas

mais aprofundadas e confrontar com as principais análises realizadas até o

momento. É evidente que este inventário possibilita responder perguntas

básicas: quantas obras foram produzidas? Quantas foram publicadas e

quantas ainda continuam em forma de manuscrito? Em que ano foram

redigidas e publicadas? Atualmente, essas perguntas são possíveis de serem

respondidas porque o acervo está organizado e escriturado. Em razão da

elaboração deste inventário está sendo possível definir as diretrizes para

publicação das Obras Completas.

Com a lista completa dos escritos de Vigotski foi possível definir um

programa de publicação das Obras Completas considerando todas as etapas

de sistematização. Ainda não temos informações atuais sobre o cronograma de

lançamento, mas o primeiro volume havia sido previsto para final de 2014 e até

o momento isso não ocorreu. Até agora, a única informação de que dispomos

sobre a edição das Obras Completas refere-se ao trabalho da professora e

39VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. “His life”. School Psychology International, 5 (16), pp. 105-116 [Disponível na internet: http://webpages.charter.net/schmolze1/vygotsky/gita.html].

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pesquisadora Ekaterina Zaverchneva, que apontou várias divergências no texto

da publicação ocorrida na Rússia, em 1982: O Sentido Histórico da Crise da

Psicologia (1927).

“Algumas tentativas de reconstituição dos textos originais estão sendo empreendidas na Rússia. A professora e pesquisadora Ekaterina Zaverchneva teve a oportunidade de trabalhar com os arquivos que estão em poder da família de Vigotski. A sistematização apresentada por ela propõe a publicação dos 15 volumes das Obras completas do pensador e foi elaborada com base no material que já foi publicado e no que está nos arquivos da família. Porém, o trabalho de reconstituição dos textos originais demanda tempo, paciência e dedicação. Zaverchneva apresentou o resultado de um trabalho realizado com o famoso O sentido histórico da crise na psicologia, indicando os trechos que foram suprimidos, as palavras que foram trocadas e/ou retiradas, devolvendo também os sobrenomes citados pelo autor, mas que estavam proibidos (PRESTES, Z. R. 2014, p. 11).

Há uma grande expectativa para o lançamento deste projeto editorial

que deve considerar dois aspectos importantes e necessários: i) que se

consiga chegar mais perto do original e apontar as divergências ocorridas no

decorrer das publicações já realizadas; ii) que se publique tudo o que foi

produzido por Vigotski incluindo cartas, artigos de jornais e produção literária.

Se estes dois aspectos não forem considerados conclusivamente, corre-se o

risco de descrédito no decorrer do tempo. Os constantes comentários sobre

subtrações textuais em razão da censura, no decorrer das publicações das

obras de Vigotski, devem ser agora enfrentadas e explicitadas numa edição

completa. Chamamos atenção para a seriedade exigida para este trabalho

devido à expectativa de que os arquivos venham a ser disponibilizados para

público em geral. Espera-se que os problemas com as divergências textuais

sejam definitivamente explicitadas, caso contrário, estas divergências tendem a

se ampliar em direção a debates técnicos sem fim sobre parágrafos, nomes,

alterações, etc. Num artigo publicado por VEER & YASNITSKY (2011)

Vygotsky in English: What still needs to be done(Vigotski em Inglês: o que

ainda precisa ser feito) chama atenção na história hermenêutica vigotskiana a

necessidade de distinguir as produções de Vigotski em quatro categorias:

manuscritos, artigos, palestras e livros. Na visão deste crítico mistura-se estas

categorias sem respeitar a originalidade ou então sem considerar devidamente

as razões pelas quais se faz estas intervenções nos trabalhos de Vigotski.

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Além disso, há problemas com supressões e adulterações. Tudo isso só será

resolvido com pleno acesso aos textos de Vigotski, fato que, até agora, não

ocorre de forma transparente e aberta. Num outro artigo, YASNITSKY (2012b)

defende, ou melhor, “conclama”, que os pesquisadores envolvidos com as

traduções e o pensamento vigotskiano apoiem a tradução completa das obras

de Vigotski. Argumenta três questões para este esforço: primeiro, as Obras

Reunidas deixaram vários textos de fora e não é possível deixá-los da forma

como estão, incompletos; segundo, uma das obras mais lidas de Vigotski é

Pensamento e Linguagem, mas tem vários problemas de edição. As três

edições russas – 1934, 1956 e 1982 – diferem-se muito entre si; terceiro, há

muitas críticas das obras reunidas relacionadas a adulterações no processo de

compilação dos textos.

VEER & YASNITSKY (2011) também apresentam os problemas com a

edição do livro mais conhecido de Vigotski: Pensamento e Linguagem. Os

autores identificam e elencam a estrutura de organização do livro durante os

anos de pesquisa de Vigotski. Na Tabela 1: Composição de Pensamento e

Linguagem de Vigotski, podemos verificar como cada capítulo foi elaborado, as

respectivas páginas, bem como o período da edição. Podemos notar, por

exemplo, no capítulo 6, a participação de um de seus colaboradores no texto.

Não estamos condenando que determinados textos sejam compilados desta

maneira, mas há necessidade de apresentar as fontes claramente. Como

podemos verificar, esta obra tem inserções de publicações realizadas

anteriormente a 1934 e várias alterações entre o que foi publicado antes e o

que foi publicado posteriormente foram revistas. Este seria o primeiro trabalho

de comparação. Há muitas diferenças entre as três publicações russas, e, só

aí, teríamos um belo trabalho exegético. Os autores que analisam

especificamente a publicação de Pensamento e Linguagem sugerem que as

traduções mais confiáveis são aquelas que se baseiam na edição publicada em

1934.

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Tabela 1: A composição de Pensamento e Linguagem de Vigotski40

Capítulo

Páginas

Data da redação

Fonte

Prefácio

1 a 3

Primavera 1934

cap. 1

4 a 15

Primavera 1934

Cap. 2

16 a 66

Depois de 1932

Vigotski (1932)

Cap. 3

67 a75

Antes de 1929

Vigotski (1929 a)

Cap. 4

76 a 102

Antes 1929

Vigotski (1929 b)

Cap. 5

103 a 162

Antes de 1931

Vigotski (1931)

Cap. 6

163 a 176

Fevereiro de 1934

Shif (1935)

177 a 255

Primavera 1934

256 a 259

Fevereiro de 1934

Shif (1935)

Cap. 7

260 ao fim

Primavera de 1934

Alterações (e adulterações) em textos de Vigotski foram também

apontados por vários outros autores (KOZULIN, 1990; TOASSA, 2015a; 2015b;

GONZÁLEZ REY, 2013; PRESTES & TUNES, 2012; VEER, 2016; VEER &

YASNITSKY, 2011; VEER & VALSINER, 2009; YASNITSKY, 2010; 2011;

2012b) reforçando a necessidade de reanálise, mas, mais do que isso, exigindo

maior transparência e permitindo o acesso dos pesquisadores aos manuscritos,

ao acervo. Ou seja, YASNITSKY (2012b) recomenda começar tudo de novo.

40Tabela reproduzida e comentada do artigo de VEER & YASNITSKY (2011) Vygotsky in English: What

still needs to be done (ps. 475-493).

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Pode-se começar tudo de novo, mas não é possível ignorar os esforços

até agora desenvolvidos para a publicação das Obras Reunidas. Depois da

morte de Vigotski, as obras passam a ser disputadas por perspectivas

filosóficas diferentes.

Guardada as devidas diferenças de cada época e a diferença do

conteúdo, nós temos hoje, de um lado, a psicologia cognitiva que adota uma

postura pragmática ao assimilar as pesquisas de Vigotski e, ao mesmo tempo,

tenta expiá-la do marxismo; de outro lado, temos análises buscando

contextualizá-las dentro das concepções marxistas, mas temem analisar a

totalidade da obra. Dito de outra forma: temos a impressão que, de um lado,

teme-se descobrir um materialismo histórico dialético radical e, por outro, teme-

se descobrir um caráter idealista. Como demarcar um caminho para analisar a

produção teórica de Vigotski? Nós julgamos que esta é uma questão central

que não pode simplesmente ser tratada veladamente.

O desafio para estabelecer o diálogo entre Marx e Espinosa é

defendido por muitos autores importantes nas últimas décadas. Devido às

consequências do que se costumou denominar como Socialismo Real, os

debates buscam aproximar ou criar um marxismo espinosano. Os autores tais

como L. Althusser (1918-1990), G. Deleuze (1925-1995), F. Guattari (1930-

1992) e mais recentemente A. Negri (1933- ...) fazem críticas ao teleologismo

que ainda se vê muito presente em algumas correntes marxistas. A

aproximação da concepção de Espinosa é vista como uma alternativa para um

pensamento que se opõe ao finalismo e ao determinismo. O finalismo é uma

herança religiosa, mística. No início do século XX, Vigotski já propunha

indiretamente fazer esta aproximação com as concepções espinosanas, mas

devido às condições da época não havia espaço para ampliar este debate,

tanto no campo da psicologia como no campo da filosofia política. É por esta

razão que as obras de Vigotski têm uma importância fundamental ainda nos

dias de hoje, pois intentou encontrar uma unidade de análise constitutiva entre

cognição e afetividade. Para os estudos do psiquismo humano trata-se hoje de

um dos maiores desafios.

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Capítulo 6: As obras de L. S. Vigotski e o desafio hermenêutico

Quando a teoria marxista tornava-se mais preocupada com o

progresso e com a supressão às concepções divergentes internas também foi

o momento de condenações das obras de Vigotski. Em 1956, num período de

reposição das forças hegemônicas na URSS, ressurge Pensamento e

Linguagem, que havia sido publicado em 1934. Aproveitou-se o momento para

sua reedição, mas sem desconsiderar as críticas que foram feitas em 1934.

Neste sentido, a edição foi reconsiderada com várias alterações para atender a

ortodoxia marxista. Esta edição de 1956 chegou aos Estados Unidos e também

foi adequada aos preceitos antimarxistas porque, em plena Guerra Fria e com

todos os embates no Leste Europeu, não se admitiria um livro com

fundamentos marxistas em território estadunidense. Essa peculiaridade

comparativa, muitas vezes, não é observada na história hermenêutica

vigotskiana: a censura controlada e visível da URSS e a censura não

controlada e invisível nos EUA. E, desde então, a teoria vigotskiana nos

Estados Unidos carrega a sua dubiedade, isto porque intencionando superar as

obras de Vigotski e alienando-se de seu próprio conteúdo original, ressurge

para impor-se na história. Ressurge com autores atuais destacando o caráter

revolucionário da teoria vigotskiana (NEWMAN & HOLZMAN, 2002) e fazendo

exercício de ater-se aos textos sem intervenções. Mais do que isso, os autores

buscam compreender o dilema da relação indivíduo e o social.

E, para o lado soviético? O que significava recuperar as obras de

Vigotski para a política estatal da URSS? E com que avidez as obras se

espalharam para tantos países? Qual é o desafio que esse autor nos coloca

para os dias de hoje? Quais são as diferenças regionais sobre o uso dos

referenciais teóricos vigotskianos? A receptividade do pensamento vigotskiano

nos Estados Unidos transformou-se numa concepção pragmatista, mas

também serviu de impulso para recuperar o conjunto de textos publicados e

não publicados de Vigotski. A história hermenêutica vigotskiana passa por suas

obras e a forma como cada época as interpreta. A história é feita de seres

humanos reais e forjada nas relações sociais, mas cada época tem suas

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determinações do poder e da ideologia. Um texto, um artigo, um manuscrito

são instrumentos simbólicos do interesse hegemônico ou não.

Mesmo que os escritos de Vigotski tenham sido proibidos de

circulação, durante muito tempo seu pensamento manteve-se vivo em várias

áreas na URSS. Foi por essa razão que os colaboradores de Vigotski, na

década de 1970, investiram num grande projeto de publicação que veio a

público no início da década de 1980, ainda com as marcas da hegemonia

soviética de sua época.

Três obras, quer queira ou não, foram responsáveis pela divulgação do

pensamento vigotskiano. Pensamento e Linguagem chegou aos Estados

Unidos, foi traduzido e publicado uma edição estilizada “adaptada para o

público estadunidense”, em 1962. Depois se seguiram outras publicações

gradativamente: Psicologia da Arte em 1971 e Formação Social da Mente em

1978 (outra versão estilizada aos padrões estadunidenses). Em 1986,

Pensamento e Linguagem é novamente reeditado, mas logo em seguida

aparece também os seis volumes das Obras Reunidas traduzidas do russo

para o inglês. Com as traduções também apareceram pesquisadores das obras

de Vigotski num tempo muito curto, entre o final de 1980 e final da década de

1990. Sete publicações importantes apareceram: 1) The muffled deity of Soviet

psychology (A divindade abafada da Psicologia Soviética) de D. Joravsky

(1989); 2) Vygotsky’s psychology: a biography of ideas (Psicologia de Vigotski:

uma biografia de ideias) de A. Kozulin (1990); 3) Vygotsky and education:

instructional implications and applications of socio-cultural psychology (Vigotski

e educação: implicações instrumentais e aplicações da psicologia

sociocultural), livro organizado por L. Moll (1990); 4) The construction zone:

working for cognitive change in school (A zona de construção: trabalhando para

a mudança cognitiva na escola) de D. Newman, Griffin & Cole (1989); 5)

Rousing minds to life: teaching, learning and schooling in social context

(Despertar as mentes para a vida: ensino, aprendizagem e escolarização no

contexto social) de Tharp, R. G. & Gallimore, R. (1988). 6) Developmental

psychology in the Soviet Union (Psicologia do Desenvolvimento na União

Soviética) de J. Valsiner (1988); e, 7) Understanding Vygotsky - A quest for

synthesis (Compreendendo Vigotski: uma questão de síntese) de Van der Veer

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& Valsiner (1991). Destas publicações percebemos a preocupação em

desvendar o pensamento vigotskiano e também com questões voltadas para o

desempenho escolar ou o desenvolvimento cognitivo. NEWMAN & HOLZMAN

(2002) justificam que o intenso interesse pelas obras de Vigotski nos Estados

Unidos se deu no final da década de oitenta e no decorrer da década de

noventa para responder aos “graves problemas sociais” que se vivia na época.

“A psicologia mais socialmente baseada e socialmente relevante poder

contribuir para aliviar, se não eliminar, os males e a injustiça sociais” (Ibidem, p.

19). As obras de Vigotski são lidas, interpretadas e consideradas para

atividades práticas a partir das concepções de método.

No final da década de 1970, um filósofo britânico chamou atenção para

os trabalhos de Vigotski e que também contribuiu para ampliação do interesse

pelas publicações vigotskianas.

“The beginning of the cult of Vygotsky, which is also referred to as the “Vygotsky boom” (Cole, 2004; Garai and Kocski, 1995), dates back to 1978 when the book Mind in Society (1978) came out under Vygotsky’s name, and noted British and American philosopher Stephen Toulmin published his programmatic book review titled “The Mozart of Psychology” (Toulmin, 1978), where he referred to Lev Vygotsky as the Mozart of psychology, and to his right-hand man and co-worker, Alexander Romanovich Lúria, as Beethoven. Whereas the second part of this comparison was eventually largely forgotten, the association between the genius of Mozart and that of Vygotsky seems to have survived and remains one of the commonplaces of contemporary historiography (or rather “mythology”, as some claim) of Soviet psychology. After the publication of Mind in Society, the celebrated notion of the “zone of proximal development” became perhaps the best-known concept associated with Vygotsky worldwide” (YASNITSKY, 2010, p. 3)41.

41“O início do culto a Vygotsky, também conhecido como "Vygotsky boom" (Cole, 2004, Garai e

Kocski, 1995), começou em 1978, quando o livro Mind in Society (1978) saiu com o nome de Vygotsky e quando o filósofo britânico e americano Stephen Toulmin publicou sua revista programática intitulada "O Mozart da Psicologia" (Toulmin, 1978), onde ele se referiu a Lev Vygotsky como o Mozart da psicologia e o seu braço direito e colega de trabalho, Alexander Romanovich Lúria, como Beethoven. Enquanto que a segunda parte desta comparação foi definitivamente esquecida, a associação entre o gênio de Mozart e a de Vygotsky parece ter sobrevivido e continua a ser um dos lugares-comuns da historiografia contemporânea (ou melhor, "mitologia", como dizem alguns) da psicologia soviética. Após a publicação de Mind in Society, a célebre noção de "zona de desenvolvimento proximal" tornou-se talvez o conceito mais conhecido associado a Vygotsky em todo o mundo” (Nossa tradução).

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115

As primeiras obras de Vigotski que chegaram ao Brasil vieram pela

influência estadunidense, ou seja, as obras com texto reduzido e estilizado.

Mind and Society, em 1978 – traduzido no Brasil com o título Função Social da

Mente – serviu para divulgar rapidamente o pensamento vigotskiano e acabou

sendo referência para muitos psicólogos e pedagogos. Mind and Society,

entretanto, do ponto de vista hermenêutico, é um livro insatisfatório porque

foram inseridas várias fontes adicionais, por exemplo, textos de alunos ou

colaboradores diretos de Vigotski. Não é possível dizer hoje que este texto

pertença a Vigotski, porque não há clareza quanto à origem dos excertos, quais

partes foram deixadas de lado, onde começa o texto do autor e onde começa

dos outros. É uma miscelânea que não podemos considerar como um texto

original (VEER & YASNITSKY, 2011, p. 480). Depois foi publicado Psicologia

da Arte em 1999, Psicologia Pedagógica em 2001; Pensamento e Linguagem

foi traduzido diretamente do russo para o português por Paulo Bezerra com o

título: A construção do pensamento e da linguagem – publicado pela Editora

Martins Fontes, também em 2001. Em 2014, uma obra inédita foi traduzida

direto do russo: Imaginação e criatividade na Infância, traduzido por João

Pedro Fróis e, mais uma vez, publicado pela Editora Martins Fontes.

Em 1984 foi publicado Psicologia Social – o homem em movimento,

livro organizado por Sílvia T. M. Lane e Wanderley Codo, obra que representa

o fundamento e o marco inicial para o desenvolvimento de pesquisas sobre o

desafio de desenvolver uma psicologia brasileira como um movimento de

resistência e crítica ao modelo de dependência. Neste livro organizado por

LANE & CODO, Vigotski é um dos autores referenciais junto com A. Leontiev.

Contudo, o acesso às obras não é realizado pelas traduções estadunidenses,

mas pela influência das obras traduzidas pelos argentinos. Pensamiento y

lenguaje fora traduzido e publicado em 1973, em Buenos Aires, e vemos a

influência de Lane considerando também as produções de A. Leontiev, pois

Actividad, Consciencia y Personalidad havia sido publicado em 1978. LANE

interpretava que a ciência não era neutra e que pactos macroeconômicos

determinavam não só a dependência econômica, mas também a dependência

do conhecimento. Desenvolver uma psicologia latino-americana perpassava

pela necessidade de acessar diretamente as publicações originais de Vigotski.

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116

A repressão ocorrida no Brasil na década de 1970 não permitia acesso livre às

publicações, mas na Argentina vemos que nesta década ainda havia algumas

alternativas para recepcionar as obras de Vigotski. Num artigo recente

publicado em 2014, Protagonistas de la recepción pioneira de la obra de

Vigotsky em nuestro país: entrevista al professor Francisco Berdichevsky

(SULLE, 2014), temos um relato da proximidade que os professores

universitários argentinos conseguiram manter com Leontiev e, mas sem

dissociar do pensamento vigotskiano.

“Yo fui reincorporado en la Universidad de Buenos Aires, al igual que Gervasio Paz, Mimi Langer y muchos otros, que éramos docentes, y luego de la noche de los bastones largos nos echaron… Luego en la época de Cámpora, nos reincorporaron. Y en los años 70, cuando viajo a la URSS como invitado, era otra vez recién docente expulsado de la UBA, otra vez… Ya estaba Ivanissevich. En esa época, en la URSS, Leontiev estaba escribiendo Actividad, Conciencia y Personalidad, él mismo me dio los capítulos para leer, y yo lo traduje, -irmando con un seudónimo, como Mansilla - y con el permiso de Leontiev lo hice publicar aquí (…) Después de la apertura en la URSS, fueron elegidos por unanimidad Leontiev decano y Vicedecano Lúria… Yo con ellos me entendía en francés, porque Lúria hablaba el francés de corrido, como gran parte de la intelectualidad rusa”…“yo llego, y me levanto esa mañana, y veo que me espera Leontiev, a las once de la mañana… Y ahí yo me pregunto: ¿Qué hago yo aquí, con este capo mundial? A las once lo conozco y a los diez minutos ya estábamos hablando normalmente, y al otro día ya me invitó a su casa. Estuvimos estudiando mucho, acerca del problema de que no había una sola orientación, sino varias orientaciones, que interactúan entre sí. Hicimos un intercambio interesante con el enfoque de él de la personalidad. Esas cuestiones están en trabajos y presentaciones en congresos de la época, donde yo hablo de Vigotsky, de Leontiev, ya que siempre me referí a esa escuela… y tanto Leontiev como Lúria todo el tiempo se referían a Vigotsky, las referencias a Vigotsky estaba siempre. Y en el año 78 me invitan otra vez a la URSS, pero no pude ir, porque estaba detenido en la Unidad 9 de la Plata” (SULLEN, 2014, p. .90).

Em 1984, havia um movimento na Argentina organizado para estudar

com maior profundidade as obras de Vigotski e outros psicólogos que eram

identificados muito mais como psicologia soviética. Em 1984, foi realizado um

seminário em Buenos Aires para discutir sobre a Psicologia Soviética.

“En 1984 se dictó en la casa universitaria Aníbal Ponce de Buenos

Aires, el curso “Una aproximación epistemológica a la Psicología” a

cargo de Juan Azcoaga, Mario Golder; Alicia Sirkin y Abel García

Barceló. En el seminario fueron trabajadas, predominantemente, las

teorías de la Psicología soviética y de marxistas europeos como

Lucien Sève y se abordaron aportes de Vigotsky, Lúria, Leontiev,

Galperín, Elkonin y Zinchenko entre otros representantes de la

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academia soviética. Algunos de los seminarios del curso fueron

“Proyecciones del lenguaje interior y teoría del conocimiento” (a cargo

de Juan Azcoaga, dictado el 1/10/1984) (Ibidem, p. 90).

O movimento da psicologia na Argentina, portanto, tinha uma base da

década de 1970 e que contribuiu para que as traduções diretas do russo para o

castelhano fossem realizadas; assim também se conseguiu manter um certo

nível de relação com os integrantes da psicologia soviética. Esta relação

propiciou reconhecer a psicologia soviética não como dissensões, por exemplo,

psicologia da atividade de Leontiev e psicologia das mediações de Vigotski. A

partir da década de 1990, a Argentina foi também contemplada indiretamente

quando as Obras Reunidas começaram a ser editadas na Espanha. Sobre a

diferença entre a recepção da psicologia argentina e a da brasileira é um

campo de pesquisa para ser viabilizado, dado as condições histórico políticas

semelhantes e em função da demanda social também muito parecida entre os

dois países.

Na década de 1970, o Brasil vivia o pior período de repressão da

ditadura militar e não era possível fazer publicações de livros oriundos da

URSS. Na Argentina, houve oscilações que permitiram a entrada de obras

oriundas da URSS e foi por essa razão que o pensamento vigotskiano havia

chegado à Argentina sem os referenciais estadunidenses, diferentemente do

que ocorreu no Brasil.

No Brasil, destacamos três autores atuais que desenvolveram e que

ainda desenvolvem vários programas de pesquisa sobre a psicologia

Vigotskiana: SAWAIA (2007, 2010), GONZÁLEZ REY (2013) e PINO.

Os estudos de SAWAIA42 se aproximam das investigações também

realizadas por ÁLVAREZ & del RÍO (2007) na Espanha ao sustentar a

influência teórica de Vigotski a partir de quatro perspectivas: primeira, a

influência histórica de Hegel contraposta por Marx; segunda, a concepção

ontológica marxiana onde o ser humano é determinado pela história, mas

também a determina; terceira, a influência instigante da literatura ou da arte

42 Bader Burihan Sawaia coordena o Núcleo de estudos sobre a dialética da inclusão e exclusão social na PUC SP.

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(estética) por propiciar a permanente relação com a realidade objetiva e

permitir enxergar as potencialidades humanas; quarta, o fundamento da

filosofia espinosana que considera a afetividade não como um “império dentro

do império”, mas como inerente ao ser humano. Poderíamos afirmar que quatro

obras são norteadoras para a hermenêutica vigotskiana a partir das análises de

SAWAIA: A Ética de Espinosa, Hamlet de Shakespeare, Fenomenologia do

Espírito de Hegel e O Capital de Marx. Elencamos resumidamente os principais

destaques que SAWAIA identifica na teoria espinosana:

1) É antirreducionista porque rompe com a lógica que alimentou o

dualismo clássico da Psicologia como a mente/corpo e razão/emoção

(SAWAIA, 2007, p. 83).

2) É dialética por considerar “o processo de constituição do

psiquismo na materialidade histórica de cada sociedade não implicando perda

de criatividade” (Ibidem, p. 86).

3) É libertadora porque é “expressão da atividade revolucionária” – “

permite ao ser humano libertar-se das leis da natureza e das determinações

sociais” (Ibidem, p. 87).

4) Aplica o método dialético para “compreender os processos de

transformação interna, subterrâneos, mas que têm caráter social, defendendo o

pressuposto de que a vida psíquica é o lugar de luta entre impulsos

contraditórios” (Ibidem, p. 13).

5) Influenciado pelo pensamento espinosano que entende como

“atividade revolucionária prático–crítica”, que se fundamenta no “desejo de

expansão da potência do corpo de agir e da mente de pensar, desejo de

libertar-se das forças criadoras dessa potência” (SAWAIA & MAHEIRE, 2014,

p. 14).

6) É antipositivista porque permite “à psicologia trabalhar com duas

categorias de realidade aparentemente irredutíveis: subjetividade e

objetividade, como unidade de contrários” (Ibidem, p. 1).

7) É monista porque os fenômenos são analisados em sua totalidade

e as partes como constitutivas dele (SAWAIA & SILVA, p. 347).

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8) A ênfase na “positividade da imaginação e emoção” – “enlace

emocional” acentuando que “todo o sentimento é pensado em imagens”

SAWAIA & SILVA (Ibidem, p. 352).

Os destaques das pesquisas realizadas por GONZÁLEZ REY não

diferem das de SAWAIA por concordarem que no final da vida de Vigotski ele

“recupera o tema unidade do cognitivo e do afetivo, e da significação e

irredutibilidade das emoções nas atividades humanas” (2013). Para

GONZALEZ REY a vida curta de Vigotski o impediu de concluir os estudos

sobre duas categorias que introduz a partir da unidade de análise “do cognitivo

e do afetivo”: “sentido” e “situação social”. Pelo fato de não conseguir concluir

estes estudos podemos perceber que não alcançou a elaboração de “um

sistema integrador da cognição e do afeto” (Ibidem, p. 104).

PINO (2000) sustenta que a psicologia vigotskiana se fundamenta e se

estrutura no materialismo histórico dialético e toma a noção de trabalho para

Marx que envolve “três elementos simples”: atividade do ser humano, objeto

sobre o qual ele age e “o meio (instrumento) pelo qual age” (Ibidem, p. 37).

Fica claro para este autor que está no trabalho a especificidade humana e que

a mediação de instrumentos é o que também fundamenta a relação ser

humano e natureza. O trabalho “constitui a condição de humanização do ser

humano e natureza, traduzindo a ‘verdade’, ao mesmo tempo da natureza, pela

ciência, e do homem, pela consciência da sua liberdade” (Ibidem, p. 38). Faz a

defesa de que esta noção do trabalho teve influência em Vigotski, como

também a relação entre filogênese e ontogênese, pois busca a síntese entre

ser humano e sociedade. São duas linhas que podem ser consideradas

diferentes, mas estão imbricadas uma na outra. Poder-se-ia dizer que tanto o

cultural como o natural estão imbricadas uma na outra, como linhas regidas por

leis próprias.

PINO (2000) chama atenção que o processo histórico tem dois

sentidos para Vigotski: um geral e outro restrito. O primeiro, a história “significa

abordagem geral das coisas” como aplicada por Hegel e Marx. Contudo, Marx

inverte o sentido idealista de Hegel em materialista – que passou a ser

chamada materialismo dialético. O autor afirma então que o materialismo

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dialético se baseia numa “totalidade concreta” e que para entendê-la é

necessário distinguir que a natureza pode ter um sentido ontológico (é a

realidade em si) e dialético (é a realidade para si). O segundo, o sentido

restrito, ou seja, a história é história do ser humano. Por exemplo, o modo de

produção não é dado, é criado pelos seres humanos e sustentado por eles. Se

o trabalho é uma questão fundamental e se o modo de produção determina as

condições sociais, então, as relações determinam o modo de ser do ser

humano.

Vigotski atuou em muitas frentes de pesquisa e apresentamos na

Figura 1 as principais áreas que atuou na sua curta carreira de pesquisador:

psicologia (a definição da consciência como sistema na relação entre uma

representação cognitiva-emocional de uma representação como sistema de

funções), pedologia (define as funções psíquicas superiores tendo origem no

social e o processo de desenvolvimento, fundamentando-se primeiro como um

fenômeno interpsicológico para alcançar o fenômeno intrapsicológico) e

neurologia (os estudos da desintegração dos sistemas psicológicos

superiores). Podemos ver áreas de intersecção (A, B e C) na figura, pois

consideramos que cada uma destas corresponde a um campo de pesquisa

com diversos colaboradores. No centro há um espaço que identificamos como

o lugar das obras sínteses, cuja maior parte permaneceu em forma de

manuscritos. Entendemos que após a morte de Vigotski e, simultaneamente, o

fechamento do setor de pedologia, os grupos de pesquisa foram

desmantelados, o que contribuiu, como já dissemos, para a propagação do

caráter independente de Vigotski.

Para que possamos compreender melhor a trajetória das obras de

Vigotski elencamos duas etapas básicas: a primeira consiste na etapa em

Vigotski estava vivo e pôde exigir um estilo de editoração e decidir ou não

pelas publicações expostas no Quadro 1: A fase literária (1914 – 1924) e

psicológica (1924 – 1934) de Vigotski, que apresenta resumidamente estas

informações em duas fases distintas e respectivamente em períodos diferentes.

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Figura 1: Áreas de atuação de Vigotski

Emprestamos a distinção das fases literária e psicológica de Del RÍO

(cit. REGO & BRAGA, 2013, p. 527) que define um primeiro momento (1914-

1917) envolvido nos debates sobre arte, literatura e estética. O encontro com

Hamlet significa encontrar-se com o trágico – “o desafio de compreender a vida

humana como algo visto a partir da consciência, que é consciência da morte”

(Ibidem, p. 518). A psicologia tende a ver somente a vida, mas não entender a

consciência da morte, o incognoscível. Os textos, artigos e livros desta fase

levam esta marca. Primeiro, como “Psicologia do Drama” – compreender o

sentido da vida para o ser humano. Hamlet é a personagem que incorpora

estas perguntas existenciais em busca de sentido. Mais do que isso, como

viver seu personagem. O segundo momento (1917-1924) trata-se, a partir de

suas bases literárias, envolver-se num debate maior que denominamos

“inserção no debate sobre estética”.

No primeiro momento, há uma preocupação com uma obra que se

intitulará Psicologia da Arte e que somente em 1925 será concluída como tese

de doutorado. No segundo momento, são publicados vários artigos que se

misturam no estudo da arte como no estudo sobre a literatura. Qual a razão do

Psicologia da Arte não ter sido publicado na década de 1920 por Vigotski?

PSICOLOGIA

NEUROLOGIAPEDOLOGIA

A C

B

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122

PRESTES & TUNES (2012) sustentam a versão de que Vigotski não estava

satisfeito com o método de análise utilizado. Esta obra só foi publicada na

União Soviética em 1965. Nesta obra, consta em anexo uma relação de 87

títulos que Vigotski escreveu na área de crítica literária. No Brasil, a Psicologia

da Arte foi publicada pela editora Martins Fontes, com tradução de Paulo

Bezerra, em 2001.

A Fase Psicológica também compreende dois períodos. Se antes

inseria-se no debate sobre o drama na psicologia e a estética, agora enfrenta o

grande debate na área da psicologia que se constitui um “drama da psicologia”

(1924-1931): psicologia objetiva versus psicologia subjetiva, psicologia com

consciência versus psicologia sem consciência, psicologia reflexológica versus

psicologia mentalista. Vigotski enfrentou este dilema na psicologia postulando

uma psicologia dialética. Este período inicia em 1924 com vários artigos, como

também inicia-se com a publicação de Psicologia Pedagógica. Na introdução

de Psicologia Pedagógica consta um prefácio elaborado por A. N. Leontiev, no

qual revê o nome da psicologia vigotskiana, ou seja, trocou teoria histórico-

cultural por histórico-social. Em 1934, na revista Sovetskaia psirronevrologia,

volume nº 6, afirma que a teoria vigotskiana deveria ser definida como sócio-

histórica (PRESTES & TUNES, 2012, p. 334). Os comentadores das Obras

Completas de 1982, sem exceção, denominam como teoria sócio-histórica.

Muitos artigos são publicados até 1931, quando, então tem início o

segundo período (1931-1934), ao qual denominamos de “o drama na psicologia”.

É o retorno para a primeira fase, mas significa a síntese de suas análises

quando recupera a unidade cognitivo-afetivo, bem como as emoções estão

concebidas nas atividades. Esse último momento, como já dissemos

anteriormente, está marcado pelas obras sínteses: Psicologia do ator criativo

(1936), Pensamento e Linguagem (1934), Teoria das emoções (1933) e História

do desenvolvimento das funções psíquicas superiores (1931).

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Quadro 1: A fase literária (1914 – 1924) e psicológica (1924 – 1934) de

Vigotski

FASES

PERÍODO NOME CARACTERÍSTICAS

LIT

ER

ÁR

IA

1914-1917

A Psicologia do Drama

Nos anos de formação acadêmica, Vigotski esteve envolvido nos debates sobre as obras de William Shakespeare (comemoração 300 anos de sua morte em 1916). Os estudos aprofundados sobre uma das obras mais famosas de Shakespeare, Hamlet, instigaram Vigotski a entrar no mundo da literatura, teatro estética. O resultado destas reflexões é Psicologia da Arte, tese de doutorado de 1925. O debate em torno da questão judaica e literatura motivam Vigotski a escrever artigos nas revistas: Letopis, Novii Mir e Novaia Jizn.

1917-1924

Inserção no debate

sobre estética

Publica resenhas teatrais e articula as atividades culturais locais. Participa ativamente dos programas educacionais para serem desenvolvidos na cidade de Gomel.

PS

ICO

GIC

A

1924-1931

O Drama da

Psicologia

Desde a participação de Vigotski no II Congresso Nacional de Psiconeurologia realizado em Leningrado, no início do ano de 1924 (6 de janeiro), passando pela experiência no Instituto de Psicologia de Moscou até suas atividades de ensino no Instituto Herzen, em Leningrado, há sempre a manifestação de uma crise na psicologia que deveria ser resolvida. A superação da crise deveria vir com uma nova psicologia que superasse a dicotomia objetividade versus subjetividade. Esta trajetória pode ser analisada em escritos de Vigotski: Os métodos de investigação reflexológico e psicológico (1924), Psicologia Pedagógica (1926), O significado histórico da crise da psicologia (1927) e Manuscrito de 1929. Contudo, em 1931, conclui uma obra síntese que o instigará para várias outras áreas: História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores.

1932-1934

O Drama na

Psicologia

O fechamento do setor de pedologia do Instituto de Psicologia de Moscou, em 1932, não interrompeu os estudos de Vigotski. Neste momento retoma seus estudos sobre a arte e sobre a filosofia espinosana. Não consegue concluir suas obras sínteses deste período: Psicologia da criação do ator (1932), Tratado sobre as emoções – Investigação histórico-psicológica (1933), Pensamento e Linguagem (1934).

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124

Tratamos até o momento como as obras de Vigotski foram elaboradas

ou até mesmo algumas foram publicadas em vida, mas também temos que

analisar como as obras foram consideradas depois de sua morte. No Quadro 2:

O destino dos escritos de Vigotski depois de sua morte, elencamos três fases

distintas: censura, recuperação e crítica. Acerca da primeira, já enfatizamos

sobre os processos de proibição das obras de Vigotski, fato que significa

também a suspenção de circulação das obras da área da pedologia; a

segunda, depois de longa data de ostracismo, num movimento interno de

recuperação das obras de Vigotski, publica-se Pensamento e Linguagem, obra

que consegue romper as barreiras da fronteira da URSS e chegar aos EUA.

No artigo de VIGODSKAIA &LIFANOVA (1999) aparece uma pergunta

provocativa sobre a política de publicação das obras de Vigotski:

“Por que a grande parte das obras de Vigotski ficou sem ser publicada na União Soviética mesmo no período entre a década de 1960 até o início dos anos de 1980?” (Ibidem, p. 10).

É intrigante que as autoras apresentem esta pergunta sem arriscar

nenhuma análise histórica sabendo do interesse internacional sobre o acervo

vigotskiano. Evidentemente, não estamos desconsiderando os relatos já

realizados por diversos autores russos sobre a vida e a obra de Vigotski, mas

não temos um trabalho completo que possa informar qual a importância hoje

para a Rússia, por exemplo, da produção de Vigotski.

A fase de censura tem dois momentos. Primeiro, destacamos “a

consolidação da Psicologia Dialética”, que pode ser entendida como um

momento de responder à ortodoxia marxista e a escola da atividade ganha

relevância. No momento seguinte, há um “silêncio” sobre as obras de Vigotski.

Depois da fase de recuperação das obras que significa a publicação

das Obras Reunidas, entramos na “análise crítica” das obras de Vigotski.

Estudos são realizados por vários pesquisadores num processo ainda

inconcluso para considerar as principais referências de Vigotski.

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Quadro 2: O destino dos escritos de Vigotski depois de sua morte

FASES PERÍODO NOME CARACTERÍSTICAS

CE

NS

UR

A

1934-1941

A consolidação da Psicologia

Dialética

A partir de 1936, as obras de Vigotski são proibidas de circulação como muitas outras obras de outros autores ligados aos estudos da pedologia. Contudo, é neste período que se consolida a aproximação de Lúria e Leontiev. Mais tarde, isso vai significar a recuperação do legado de Vigotski no cenário das pesquisas, tanto na Rússia Soviética como em outros países do ocidente.

1941-1956

Silêncio

Depois de um longo período de ostracismo, uma obra é recuperada e reeditada na Rússia Soviética: Pensamento e Linguagem. Contudo, esta edição sofre alguns ajustes e supressões por parte da censura soviética.

RE

CU

PE

RA

ÇÃ

O

1956-1984

O primeiro sinal de

recuperação

Em 1962, Pensamento e Linguagem é publicado nos EUA e ganha notoriedade devida, mas é uma publicação também com ajustes e supressões da censura livre americana. Mais tarde é lançada A Formação Social da Mente (1978), também uma edição estilizada do pensamento vigotskiano, mas com a mesma atitude de ajustes da edição de Pensamento e Linguagem. No início da década de 1980, a URSS lança um conjunto de títulos (muitos inéditos) do cânone vigotskiano. Foram reunidos 54 títulos em seis volumes.

CR

ÍTIC

A

1984-1991

Recuperação do acervo

Obras reunidas (edição russa) é traduzida para o inglês e para o espanhol, possibilitando o acesso mais amplo do lado ocidental.

1991- ... Disseminação

e análise crítica

Por causa do interesse crescente pelas obras de Vigotski, definiu-se um projeto para publicação de 275 títulos até agora catalogados. O projeto é de 15 volumes, mas até o momento nenhum exemplar foi editado.

Para uma análise investigativa das obras de Vigotski, sugerimos não

começar pelas obras sínteses, mas optar por um caminho mais simples. Não

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significa que os assuntos tratados sejam simples, mas partir das “conferências”

que Vigotski preparava para orientar educadores – as temáticas “psicologia

infantil”, “pedologia do adolescente” – constituem a área principal de pesquisa

junto com a “defectologia”. Estas conferências não são palestras de início de

carreira. Entre as obras sínteses e as conferências, julgamos O Significado

Histórico da Crise da Psicologia como uma obra que marca a reposição

epistemológica na carreira de Vigotski. É uma análise crítica da psicologia que

está em crise e que não se restringe a um problema de definição local. A crise

da psicologia é enquanto ciência. Clama pela criação de uma psicologia geral

para que não se fragmente ainda mais.

O Significado Histórico da Crise da Psicologia é uma obra central e

marca a transição e o início da maturação da teoria vigotskiana. As pesquisas

sobre ensino e aprendizagem já acompanhavam Vigotski desde sua atuação

como professor na cidade de Gomel. Suas pesquisas estavam conectadas com

questões reais da educação da URSS e que demandavam, de fato, estudos

para orientação dos educadores: crianças abandonadas, adolescentes difíceis,

crianças deficientes etc.

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Conclusão

Os estudos sobre as obras de Vigotski geralmente permanecem nas

questões de método, que tomam como referência principal os seguintes textos:

Os métodos de investigação reflexológicos e psicológicos (1926), Psicologia

geral e experimental (Prólogo ao livro de A. F. Lazurski - 1925), A Consciência

como problema da psicologia do comportamento (1925), O método

instrumental em psicologia (1930), Sobre os sistemas psicológicos(1930) e O

significado histórico da crise da psicologia, uma investigação metodológica

(1927). E, se eventualmente não são estes os textos referenciais, estudam-se o

Método de investigação, que consta na História do desenvolvimento das

funções psíquicas superiores (1931) ou então O problema e o método de

investigação, primeiro capítulo do Pensamento e Linguagem (1934). Esta

estratégia de estudos é muito frequente para se aproximar do pensamento

vigotskiano, mas, muitas vezes, leva ao desestímulo quase que completo para

o estudo. A leitura é cansativa em razão do estilo dos escritos e pelas citações

exageradas de autores sem os devidos aprofundamentos. Não estamos

afirmando com isso que os textos de Vigotski não têm a profundidade

necessária, pelo contrário, são densos e pertinentes sobre o estudo do

psiquismo humano. Aqueles que desejam o aprofundamento da teoria

vigotskiana são levados a destinar um tempo muito maior de análise textual

devido à necessidade de verificação das citações para conseguir acompanhar

a trajetória da exposição. O Significado Histórico da Crise da Psicologia, por

exemplo, começa com a frase enigmática e bíblica: “a pedra que rejeitaram os

construtores, essa veio a ser a pedra angular”. E tem mesmo sentido a partir da

décima quarta parte, quando for retomado o que Vigotski coloca logo no início

do texto, sobre a importância daqueles que estão na prática, para pesquisas

que têm importância aos que realmente estão fazendo. O texto poderia

começar com os últimos capítulos. Contudo, é necessário ter muita paciência

para estudar as obras de Vigotski. O significado histórico da crise da psicologia

é um manuscrito que foi descoberto só em 1960 e publicado em 1982.

Portanto, o texto nem estava preparado para publicação. Vigotski era muito

criterioso para fazer as publicações. Afirmam que várias publicações poderiam

em vida serem publicadas, mas devido ao seu grau de exigência não chegaram

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ao estágio final de editoração e também porque não havia chegado naquilo que

GONZALES REY chamou de unidade cognitivo-afetiva. Ao que temos acesso

são muitos manuscritos que foram reunidos por um conselho editorial para

divulgação de suas obras. Isso é ainda muito recente. É melhor que fiquemos

como estão do que fazer como fizeram com a obra Pensamento e Linguagem.

Ao tentarem mudar o estilo, aproveitaram para logo também alterarem

grosseiramente a fonte gnosiológica do autor. De materialista histórico dialético

passou a pragmatista.

A hermenêutica de profundidade nos orientou a tomar cuidado com a

escolha das obras para análise. Pensamos em partir das obras mais famosas:

Psicologia Pedagógica, Pensamento e Linguagem, Psicologia da Arte ou então

História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores, mas

resolvemos deixá-las num segundo plano. Tomamos esta decisão pelo caráter

mesmo do processo de editoração destas obras que não foram possíveis de

serem devidamente acompanhadas a contento pelo autor. Ocaso mais

emblemático é Pensamento e Linguagem, já que foram compilados vários

capítulos numa obra e os capítulos foram elaborados em épocas diferentes.

Depois de analisarmos vários artigos, verificamos que as conferências

que constavam nos textos reunidos sob o título Pedologia do Adolescente e O

Problema da Psicologia Infantil – todos os textos disponibilizados no Volume IV

das Obras Escojidas – possibilitariam melhor condições de estudo e de análise.

São textos com a marca da síntese entre as pesquisas realizadas no Instituto

de Psicologia e as demandas colocadas pela realidade, e foram sistematizados

para orientar quem está na prática. Com a experiência deste caminho de

investigação e análise passamos a recomendá-lo, visto que nos fornece as

questões fundamentais do pensamento vigotskiano. Assim, o caminho

percorrido é de baixo para cima, para depois retornar de cima para baixo. Esta

é uma orientação para o caso específico das produções de Vigotski em razão

da peculiaridade da disposição de suas obras ao público; não significa que seja

uma orientação linear, rígida e determinista. É uma alternativa para

compreender, inclusive, a força do método proposto para realização das

pesquisas, pois, como já dito, partes de questões bem reais da vivência de

crianças e adolescentes. Na verdade, não recomendamos os modelos de

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estudo das obras de Vigotski que começam, geralmente, com as questões de

método ou, então, que se direciona imediatamente para o estudo da obra O

significado histórico da crise da psicologia. O que é surpreendente nas obras

que recomendamos é o estilo, ou seja, a linguagem direta. Entendemos que

esta recomendação vai nos possibilitar chegar mais rapidamente às questões

polêmicas da hermenêutica vigotskiana, cujos esclarecimentos são

fundamentais na atualidade: o reflexo, a consciência, atividade de pensar e de

falar, signos e instrumentos.

Nós adotamos o método hermenêutico de profundidade; é o primeiro

passo que foi considerado para as análises das obras, levando em conta “as

condições sociais e históricas” em que foram elaboradas e publicadas. É por

isso que se optou por analisar as obras de Vigotski dentro de três fases

distintas: a primeira é a fase de aproximação com as temáticas da psicologia; a

segunda, as questões de método; e, a terceira, as obras no tempo de

maturação. É evidente que com a morte prematura de Vigotski (37 anos de

idade), muitas questões ficaram em aberto. A análise sobre esta localização

histórica de suas obras nós apresentamos nessa primeira parte do trabalho.

Contudo, para analisar o conjunto das obras também tivemos que fazer um

exercício exegético minucioso do discurso, contemplando análise formal e

discursiva. Trata-se de avaliar o texto em si e os hermeneutas aos quais

fizemos referência nos ajudaram nesta empreitada. Por fim, a última e terceira

parte desse trabalho está conectada com a segunda parte. Vigotski dialoga

constantemente com Kant, Hegel, Feuerbach, Marx, Engels e Lênin. Exceto

Kant, a todos os outros autores ele faz citações bibliográficas e as faz para

expor os textos desses autores, para fundamentar sua abordagem teórica. A

crítica veemente é contra Kant e, às vezes, com todas as sutilezas necessárias

para camuflá-lo, também a Hegel. A crítica contra Hegel sempre vem

acompanhada com o camarada Lênin. Não é o autor que faz a análise, os

elogios e as críticas, mas Lênin. Portanto, a segunda parte deste trabalho pode

ser entendida como uma ponte para compreender as críticas e a análise de

Vigotski. Sem a compreensão sobre a dialética destes autores fica muito difícil

entender as citações que Vigotski efetua nos seus textos, na exposição de sua

teoria. O que significa que as obras de Vigotski devem ser contextualizadas

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considerando seus interlocutores diretos. É marcante em sua sistematização

que os autores citados acima ganham relevância de texto dos próprios autores,

mas não é o caso dos outros autores ligados diretamente com a temática da

psicologia. São citados, mas não são devidamente explicitados. A lista neste

sentido é muito ampla de autores que frequentemente são citados por Vigotski:

PIAGET, MEUMANN, CLEPARÉDE, TEM, RIBOT, SHEIN, JAENSCH, KROH,

GRAKOB, AMENT, SHÜSLER, SPRANGER, FREUD, STUMPF, BÜHLER,

KOFFER, MORITZ, BERNS, VOGEL, GALTON, JOVSKAIA, RUBINSTEIN,

LEWIN, KOHLER...

Para entender a análise da hermenêutica vigotskiana, usamos uma

metáfora para expressar melhor o que almejamos. Para isso precisamos de

uma imagem de qualquer objeto que se possa colocar de avesso. Esse objeto,

quando o vemos, vemos na sua aparência. Para saber como foi feito é

necessário colocá-lo do avesso. Então, quando vemos os detalhes, podemos

tornar a colocar de avesso para que tenha a sua devida utilidade, para que se

preserve a função do objeto, e, assim temos a noção total do objeto. Contudo,

ao fazermos isso, o objeto não é o mesmo quando o vimos pela primeira vez, e

nem nós somos o que éramos quando vimos o objeto pela primeira vez. É o

que o cantor sabiamente afirmou “avesso do avesso do avesso do avesso”. É

isso que faremos na terceira parte para analisarmos a hermenêutica

vigotskiana e para entender o seu sentido de dialética. Por isso, é fundamental

analisarmos a trajetória dos autores modernos sobre a dialética e compreender

a especificidade gnosiológica vigotskiana; é a parte que nos ateremos a seguir.

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PARTE II: AS AVENTURAS DA DIALÉTICA

O termo “as aventuras da dialética” é uma pro-vocação e um desafio

que nos remete evidentemente ao livro de Maurice Merleau-Ponty com o

mesmo título (MERLEAU-PONTY, 2006). Pro-vocação irônica, isto porque,

além de analisarmos a dialética e suas consequências práticas na segunda

metade do século XX, há uma necessidade de localização deste debate na

história da filosofia e seus reflexos na psicologia. Por outro lado, é desafiador

porque nos remete a analisar também a coerência ou não do materialismo

dialético na história – especialmente quanto ao sonho de construir uma nova

sociedade e um novo ser humano que rompa com as amarras do modo de

produção capitalista e com a ideologia burguesa. O título do livro que aqui

repetimos tem por objetivo recuperar esse debate, por vezes até esquecido,

que tem muitas facetas e muitos meandros divergentes, mais divergentes do

que convergentes. Discorreremos sobre a dialética na modernidade e

desembocaremos na “analética” latino-americana da Filosofia da Libertação de

Enrique Dussel.

É muito comum ouvir de defensores da Psicologia Socio-Histórica a

referência basilar ao materialismo histórico dialético. Mas o que é o

materialismo histórico dialético? A síntese está exposta no próprio nome desta

gnosiologia e para tal é necessário destrinchar seu significado separadamente:

“materialismo”, “história” e “dialética”. E se fôssemos comparar com o

idealismo? Esse campo de estudos torna-se muito amplo, mas sem o qual é

impossível conhecer a teoria vigotskiana. Não temos como simplesmente

menosprezar ou desconsiderar essa base. Para enfrentar esta questão ampla

partimos dos autores que Vigotski constantemente cita em seus escritos e

confrontaremos com a concepção dialética do próprio Vigotski. Os autores que

Vigotski cita são aqueles que tradicionalmente a filosofia marxista cita e se

defronta: Kant, Hegel, Marx & Engels e Lênin. Contudo, para uma análise mais

contemporânea também trouxemos para o debate os filósofos da segunda

metade de século XX que receberam a filosofia marxista como um desafio

prático transformador.

Evidentemente que fazemos escolhas já orientadas por alguns autores

referenciais que estudaram ou que tiveram a dialética como objeto de análise

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(DUSSEL, 1986; KOSIK, 2011; LEFEBVRE, 1970; LLANOS,1988; MARCUSE,

1969; FERNANDES, 2012; PIETTRE, 1963; POLITZER, 2007). Estes autores,

além de auxiliarem no esclarecimento e divulgação das concepções com

fundamento na dialética e no materialismo, também trazem os desafios desta

concepção para os dias de hoje. Na América Latina, tivemos vários autores que

debateram esta temática junto com os movimentos sociais e que resultaram na

consolidação da filosofia, da teologia e da psicologia da libertação, bem como

da educação libertadora. A dialética ganha evidência quando ela fundamenta

teorias sociais e isto de fato surge com muita força a partir da filosofia

hegeliana (MARCUSE, 1969), ou seja, a disputa entre conservação e

transformação é mediada pela história.

Evidenciaremos como esteve Vigotski arraigado ao materialismo

histórico dialético e como a pesquisa fundamentou a sua teoria. Analisaremos a

história gnosiológica vigotskiana no período mais produtivo da vida do autor,

que se vincula aos momentos mais marcantes da história da civilização.

Vigotski não deixou de enfrentar as acirradas disputas de sua época, que se

polarizavam entre o idealismo e o materialismo. Tanto uma gnosiologia quanto

a outra assumem características diferentes em contextos diferentes. Mais

importante é o impacto na psicologia que deveria rapidamente fundamentar-se

e mostrar sua importância num ambiente cada vez mais propenso a

permanecer no âmbito da psicologia objetivista e a desaparecer. De fato, foi o

que ocorreu na URSS após a década de 1930, e colocou em suspenso o

debate em torno da relação indivíduo e sociedade, e, principalmente, a relação

entre o serviço do negativo (movimento imprescindível para a crítica do modo

de produção capitalista com sua ideologia burguesa) e o serviço, se assim

podemos afirmar, do positivo (movimento que se sintetiza como superação do

que deveria ter sido ultrapassado, mas sem deixar de reconhecer que

intrinsicamente esteve num determinado momento histórico carregado do

serviço do negativo).

Para que possamos nos referir ao materialismo histórico dialético que

Vigotski tanto apregoa como sendo sua referência teórica principal, poderíamos

partir imediatamente para as obras de Lênin, seu contemporâneo. Lênin foi um

estudioso cuidadoso das obras de Hegel, Marx e Engels. Vigotski, quando traz

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as questões filosóficas, se ampara nesses autores. Raríssimas vezes

encontramos citações bibliográficas que não sejam desses autores. Na década

de 1930 é muito mais comum e mais intenso. De um lado, Lênin aparece como

uma autoridade que deve ser evocada; mas, por outro lado, identifica-se com

um propósito de uma época e é fiel às implicações de reestruturação

necessárias para superação do modo de produção capitalista. Todas as áreas

científicas deveriam estar a serviço da reestruturação política, econômica e

cultural da URSS. A dialética tem o seu caráter crítico inerente, mas que pode

facilmente cair também no campo da especulação. Neste tempo de Lênin, a

dialética assume um caráter muito mais contundente, isto porque deveria

necessariamente trazer um impacto real de mudança. A população deveria

perceber que as reestruturações estavam sendo realizadas para transformar

radicalmente suas condições de vida. Para entender Lênin temos que voltar a

Marx, mas sem Hegel é quase impossível, e, se retornamos a Hegel, temos

que situar as suas disputas com Kant. E, se Kant é um referencial de estudo

para entender Hegel, temos que analisar como a dialética foi considerada no

período clássico. Estes autores são referências constantes nos textos de

Vigotski e, por esta razão, temos que investigar como são analisados e citados

e que importância assumem na hermenêutica vigotskiana.

Essa tese não está no campo exclusivo da filosofia, mas sem ela nossa

análise fica incompleta. Essa tese está no campo da psicologia social que

permite transitar entre a filosofia e a sociologia porque se atém especialmente

à dialética do singular-particular-geral, que foi, desde a filosofia clássica, um

desafio: o geral existe de forma autônoma e independente do singular ou é o

singular que possui existência real? Vigotski defendeu a criação de uma

psicologia social que ele denominou de “psicologia dialética”, e que essa tarefa

exigia das diversas correntes fazer um esforço para fundamentar o que

também ele constantemente cita no Significado Histórico da Crise da Psicologia

(1927): uma psicologia geral. Essa tarefa não deveria reduzir-se a uma escola,

mas um esforço conjunto que definisse parâmetros referenciais que

legitimassem a psicologia como ciência. Nos dias de hoje, com o debate sobre

a diversidade e o pluralismo, soa até estranho esse apelo. Primeiro, porque se

compreende que a diversidade enriquece e não diminui a qualidade de uma

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ciência; segundo, é questionado o endeusamento da ciência que domina a

natureza e não mede as consequências de suas intenções. São questões que

levantam muitos debates na atualidade. Se simplesmente relevarmos este

debate correremos o risco de vulgarizar a ciência; se abandonarmos os

preceitos da razão, também correremos o risco de adotarmos o irracionalismo

como premissa estruturante. No final da vida, Vigotski pôde ver os rumos da

psicologia única na Alemanha Nazista. A preocupação de Vigotski na Rússia

soviética, no meio das disputas entre a psicologia objetivista e subjetivista, era

encontrar uma centralidade coerente de uma psicologia dialética que

considerasse a práxis revolucionária e a sociedade em transformação. Em

1930, a Rússia continuava com índices de analfabetismo considerados

inadmissíveis para uma revolução socialista, que deveria universalizar o

acesso e preparar a massa proletária a tomar o lugar do senhor.

Nossa investigação sobre o sentido da dialética em Vigotski, torna

imprescindível fazer o caminho que parte dos referenciais clássicos para

chegar em Kant, que é ainda um filósofo que demarca o que é possível

conhecer, até chegar na polêmica entre idealismo e materialismo.

Na atualidade, podemos acessar diversas obras ou fragmentos

originais de pensadores clássicos da Grécia Antiga. Ao nos depararmos com

as obras, por exemplo, de Platão (427-347) – majoritariamente em forma de

diálogos – percebemos o estilo e o valor que se dá ao falar bem. Para falar

bem é preciso um método capaz de auxiliar na elaboração do discurso, mas

muito mais do que isto, é importantíssimo na cultura política grega sustentar

um diálogo (argumentos) diante de outras pessoas. Da raiz da palavra

“dialogar” nasce a expressão dialética. O diálogo tem uma forma e um logos; o

“expressar bem” é fundamental na cultura grega – da palavra logos surgirá a

expressão “lógica” – o “expressar bem” deve ter um sentido real que seja útil

para a cidade – polis.

Aristóteles (384 – 322) é conhecido como aquele filósofo que criou a

“lógica formal” em razão de que tudo tem um conteúdo e uma forma, tudo tem

uma matéria e uma essência (forma). Este é um aspecto da protodialética. Há

outra, tão importante quanto, que é o estudo do ser, e o ser está em movimento

e repouso na visão aristotélica. Alguma coisa é porque está em movimento e

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também chega ao repouso. Da negação ao repouso surge o movimento. Há um

princípio da negação do ser que o faz ser o que é. Aristóteles inferiu que a

substância é matéria e forma. Matéria é potência e a forma é ato – não é

possível separar uma dimensão da outra –, a potência é em ato. A potência

está na matéria e o ato está na forma. Este é o aspecto central da ontologia

aristotélica na versão de que a substância é potência em ato (matéria em

forma). Aristóteles foi a síntese entre Heráclito (535-475) e Parmênides (530-

460). Para Heráclito tudo era devir (ou vir-a-ser) e para Parmênides o devir era

completa ilusão. Nós sustentamos que é necessário assimilar a ontologia e a

lógica aristotélica para compreender a dialética hegeliana e, por consequência,

a dialética marxiana.

Nós concordamos com a tese de Herbert Marcuse de que a teoria

social foi uma nova perspectiva trazida pela filosofia de Hegel (MARCUSE,

1969). Ao considerar a natureza humana e sua história como a realização do

espírito absoluto, o idealismo hegeliano não desconsiderou o real, mas foi

assimilado na sua dialética. A alegoria mais forte que Hegel usou para explicar

sua filosofia é a relação entre o senhor e o escravo, que ele descreveu na

Fenomenologia do Espírito. A relação de dominação só fora antes

explicitamente tratada antes por J. J. Rousseau (1712-1778), influenciando

muito os debates na Revolução Francesa. O idealismo hegeliano não pode ser

desvinculado da Revolução Francesa e toda a teoria do estado como a síntese

e encarnação do Espírito Absoluto.

Nessa parte, envolvemos mais dois pensadores. O primeiro é Ludwig

Feuerbach, aluno de Hegel em Berlim, que com sua análise dialética cria o

inverso do idealismo hegeliano – no lugar do Espírito Absoluto, o ser humano,

real e concreto. O ser humano se aliena projetando tudo o que tem de melhor

para um ser que está fora da realidade, contituindo-se um ser impotente e

miserável, submisso e alheio à realidade. O segundo pensador, Karl Marx,

assimila tanto a dialética de Feuerbach como a de Hegel. Não negará

completamente os dois. Contra Feuerbach dirá que este não considera a noção

de trabalho como acertadamente Hegel havia abordado e que ficou tão bem

expressa na relação alegórica entre o senhor e o escravo. Contra Hegel

utilizará a crítica de Feuerbach, que não considerou o mundo dos seres

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humanos como concreto e real, o que lhe valeu a caricatura que se tornou

conhecida e repetida: a de um pensador que está analisando a realidade de

cabeça para baixo. O que é determinante em Marx é a defesa de que a

realidade pode ser compreendida e transformada. O mundo não precisa mais

de interpretações especulativas que se reduzem ao mundo das ideias, mas

precisa ser transformado. Nas análises sociológicas de Marx, deparamo-nos

com sua crítica contra a sociedade burguesa e o modo de produção capitalista.

O capitalismo foi instituído por uma nova classe social que teve ascensão

concomitante com a Revolução Industrial. A revolução burguesa forjou a

revolução industrial destruindo os resquícios da sociedade feudal na Europa, e,

enquanto forjou esta destruição, a crítica burguesa foi implacável contra a

sociedade e a estrutura feudal. No momento em que conquistou o seu lugar

predominante e hegemônico, a crítica desapareceu. MARX percebe este

movimento da burguesia e, a partir desta crítica, sustenta, junto com ENGELS,

sua teoria revolucionária destacando que a transformação social deveria ser

assumida por um novo sujeito político: a classe proletária (MARX & ENGELS,

2009)

Para instituir uma nova sociedade deveria se pensar também num novo

ser humano – um ser humano dentro de uma sociedade que não havia

referência histórica em que pudesse se basear. Qual a estrutura política mais

adequada para o socialismo? Inicialmente, a estrutura produtiva deveria ser

semelhante à capitalista? Haveria moeda? Os agricultores dentro da estrutura

coletivizada produziriam excedentes? E a estrutura jurídica? Como

implementar políticas sociais? E a educação? Todos deveriam ser

alfabetizados? Todos deveriam ir à escola? Todos deveriam trabalhar? A partir

de qual idade deve-se começar a trabalhar? Quantas horas se deve trabalhar

por dia? E a arte? Quais deveriam ser as teorias? As metodologias? Qual

deveria ser o princípio da produção artística? Enfim, não havia uma só questão

que não fosse desafiadora para ser implementada na nova sociedade. É no

campo da práxis que a dialética ganha sua notoriedade e seu estatuto.

Quando a dialética perde sua condição na práxis transforma-se em

dialética mecanicista (ou vulgar), que reivindica o status do cientificismo das

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ciências naturais e perde o princípio da negação tão requerido e tão caro nas

análises marxianas.

O socialismo soviético significa a melhor resposta que a civilização deu

para a transformação da sociedade capitalista? Esta era e continua sendo uma

questão muito discutida em função do retraimento da URSS e o papel que

exercia no movimento socialista internacional. Depois da Primeira Guerra

Mundial a Europa ainda estava sob impacto da guerra e havia a preocupação

com as outras que poderiam surgir. A Europa continuou sendo palco de

tensões depois da Segunda Guerra Mundial. A disputa armamentista tornou-se

muito acirrada e instaurava-se, assim, a chamada guerra fria, entre um lado

liderado pelos Estados Unidos e outro lado liderado pela Rússia Soviética. O

filósofo Walter Benjamin, que morreu fugindo da guerra em 1940, utiliza uma

imagem metafórica de um anjo que está de costas para o futuro e vendo a

poeira que se ergue do passado contra o presente (a obra de Angelus Novus,

de Paul Klee). A visão é estarrecedora, mas, ao mesmo tempo, há de ter uma

solução para enfrentar esse passado. No passado está a redenção – como que

esperando que a história não seja mais contada por aqueles que venceram. A

crítica de Walter Benjamin é violenta também contra o marxismo vulgar, o

marxismo do progresso, o marxismo da ciência, o marxismo que só enxerga o

futuro como algo determinado a acontecer. O que os diferencia da política que

combatem? Walter Benjamin não vê no socialismo soviético a alternativa para

a humanidade como muitos veem. György Lukacs (1885-1971) tem uma

perspectiva diferente. Em 1921 escrevera História e Consciência de Classe que

critica o materialismo vulgar da social democracia alemã. Lukács condena o

materialismo vulgar pela falta de compreensão da dialética na história

(LUKÁCS, 2010; 2015). Mas nós temos quatro outros autores que são críticos

da dialética marxista e que depois da Segunda Guerra Mundial tornam-se

referência: Herbert Marcuse (1898-1979), Merleau-Ponty (1908-1961), Jean

Paul Sartre (1905-1980) e Karl Popper (1902-1994). Marcuse é um crítico do

sistema capitalista bem ao modo da escola de Frankfurt, mas diferente quando

reivindica a participação na política. Enquanto a escola de Frankfurt se

resguardava numa visão pessimista (coordenada por Adorno & Horkheimer)

demarcando a racionalidade instrumental e o triunfo do positivismo, haveria

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pouco a se esperar ou pelo quê lutar (HORKHEIMER, 2007). Sartre será a

figura inicialmente mais ortodoxa do que os próprios marxistas do Partido

Francês. Escreveu A crítica da Dialética (1960), que ora critica o imobilismo da

esquerda, ora critica seus traços conservadores. Merleau-Ponty vem para

confrontar a visão sartreana da dialética; em 1955, publicou a obra Les

Aventures de la dialectique, que consiste numa crítica sobre o caminho do

marxismo que havia sido adotado desde a Revolução de Outubro de 1917, na

Rússia, até os dilemas da atuação do Partido Comunista Francês. É uma obra

que marca também o rompimento com o Marxismo (MERLEAU-PONTY, 2006).

E, por fim, figura mais conhecida contra a perspectiva do historicismo e da

dialética, Karl Popper, autor de A Miséria do historicismo (1957), criticando

qualquer ciência que pudesse ter como base a história.

Como dissemos inicialmente, essa não é uma tese sobre filosofia, mas

sobre psicologia social. E como tal podemos ser questionados pelo teor tão

intenso da filosofia permeando este trabalho. Mas, como poderíamos nos

abster da dialética e das concepções materialistas histórico-dialéticas sem

recorrer à filosofia? Vigotski jamais se absteve. Não considerou a filosofia como

um fim em si, pelo contrário, o estudo sobre filosofia o tornou mais atento às

diferentes concepções. Em razão de não fugir a esse desafio, se posicionou e

sistematizou tantos textos.

Vigotski conviveu com vários pesquisadores cujo principal objetivo era

encontrar a síntese entre a teoria e a prática. Quando inicia o Significado

Histórico da Crise da Psicologia apresenta uma frase que tem muito sentido

para justamente opor-se às teorias especulativas fortemente reforçadas pela

filosofia burguesa: “a pedra que foi rechaçada será aquela que será usada

como pedra fundamental”. Ou seja, a práxis sempre havia sido rechaçada para

reinar a filosofia especulativa de perspectiva finalista. Podemos notar que

Vigotski faz aqui um papel de intermediação diante de tantos profissionais que

se perguntam, talvez até com medo, acerca do que poderia ser realizado,

daquele momento em diante, de restruturação política e educacional. O que

seria o certo? Partir do real e das questões que precisam ser resolvidas e que

tenham sentido na vida real. Os escritos de Vigotski nascem de uma realidade

bem concreta, de uma questão cotidiana, o que os tornam tão válidos,

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inclusive, para os dias de hoje. Notamos que Vigotski não se voltou tanto para

o campo das ciências sociais, mas para a antropologia social. Podemos

encontrar contrariedades para esta afirmação, mas são poucos textos

referenciais, exceto “a transformação socialista do Homem” (VIGOTSKI, 2004)

que aborda indiretamente as questões sociais de forma mais ampla.

Encontramos algumas passagens quando Vigotski se aventura para o campo

da antropologia, uma perspectiva eurocêntrica, e, por essa razão, as

expedições e pesquisas na Ásia Central foram tão criticadas pelo poder central

(muitas vezes, percebemos que os biógrafos silenciam sobre isso no lugar de

fazer a crítica, mesmo de uma posição que não combinava com as concepções

socialistas). Contudo, Vigotski não considera, ao mencionar os estudos sobre

os sistemas psicológicos, haver diferença no aspecto biológico contrariando

muitas correntes da sua época. Assim como Marx e Engels defenderam uma

teoria própria de economia política da classe trabalhadora contra a perspectiva

burguesa, assim Vigotski e outros colegas sentiram-se desafiados a criar uma

própria psicologia que não se basearia na concepção especulativa; é por essa

razão que a psicologia de base materialista histórico-dialética passou a ser um

programa de pesquisa para sustentar as condições de uma nova sociedade.

O processo que a Rússia viveu de dissolução de uma sociedade

burguesa e a criação de uma sociedade que deveria se estruturar sem classes

e com a propriedade privada abolida exigiam uma prática social e política que

respondesse qualitativa e quantitativamente com resultados de transformação

social. O fato de Vigotski apenas ter enfrentado o início da dissolução de uma

concepção que ficou marcada na década de 1920, na URSS, constitui-se a

dificuldade de viabilizar uma concepção transformadora. Misturaram-se

interesses voltados para o partido e para a burocracia para assegurar o que até

aquele momento havia sido conquistado. Vigotski apreendeu uma forma de

fazer pesquisa que foi também a marca de Marx, Engels e Lênin, porque havia

de se transformar a psicologia num tipo de pesquisa histórica revolucionária,

em sua forma e conteúdo. Em sua forma porque se refere ao real e no

conteúdo porque o desvelamento do real traz um novo conceito, uma nova

palavra que se diferencia do que existia até então. Portando, Vigotski não se

constitui apenas como um pensador divergente, mas estabelece um padrão de

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trabalho científico que aprofunda cada vez mais o significado de suas

descobertas teóricas na psicologia. Entender o Significado Histórico da Crise

da Psicologia consistia não mais voltar-se ao combate à teoria burguesa, esta

estava dominada, talvez não vencida, mas dominada até então. Criar uma

teoria psicológica era o desafio emergente para compreender a condição real

na qual vivem as crianças em situação difícil, jovens no período de transição,

pessoas portadoras de dificuldades físicas e intelectuais, etc. A pesquisa

vigotskiana é interessada porque não exclui o sujeito-pesquisador do âmbito da

história. Eliminou-se, de um golpe, a condição histórica como um aspecto

estático, ou seja, é o rompimento radical com a perspectiva de uma história que

se consagra no passado como um conjunto de documentos reunidos. A

pesquisa vigotskiana quer compreender o significado histórico da psicologia e

suplantar as concepções predominantes, de um lado o empirismo, e, de outro

lado as concepções teóricas ou especulativas (mentalistas, na linguagem da

psicologia). Suplantar a dicotomia entre o objetivo e o subjetivo. Vigotski

projetou a pesquisa histórica sobre a formação do desenvolvimento das

funções psicológicas superiores partindo do presente, analisando o

comportamento de crianças e adolescentes na realidade em si. A história é

processo, mas, no campo da pesquisa, seria mais correto afirmarmos que a

história é o presente em processo. Importante destacar que a história é por um

lado psicologia, e sociologia por outro, mas esta síntese, até hoje, não foi

inteiramente compreendida e aceita.

Em determinado momento das pesquisas, Vigotski enfatiza a não

necessidade de acumular dados e mais dados, mas sim era necessário

encontrar um método que pudesse compreender o comportamento humano

não cindido na sua objetividade e subjetividade. Vigotski reconhece que O

Capital de Karl Marx (e Friedrich Engels) contém a chave da interpretação

histórica da civilização industrial moderna, do modo de produção capitalista e

da condição necessária para superar o estado de alienação. Era justamente

este o grande desafio posto à psicologia e somente no final de sua vida

encontrou algumas respostas para tantas perguntas, para se criar uma

referência para a psicologia. Com frequência, Vigotski dizia que tal como a

economia encontrou a mercadoria como unidade explicativa do modo de

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produção capitalista, assim também a psicologia deveria encontrar esta chave.

Chave é a palavra constante de Vigotski, como sempre, em busca de uma

unidade de análise capaz de desvelar a realidade (ou o concreto).

Semelhantemente ao que foi proposto por Marx, ou seja, ater-se sobre

os fatos, análise causal e os efeitos históricos interdependentes analisando a

dinâmica de um determinado objeto em estudo. Esta contribuição de Marx

favoreceu o estudo sobre a dinâmica das civilizações principalmente nos

momentos de mudança dos modos de produção. Vigotski também observou

essa dinâmica e, por esta razão, compreendeu isso não no aspecto

sociológico, mas psicológico. Para compreender o comportamento humano

dentro de uma totalidade dever-se-ia considerar uma fórmula: experiência

histórica, a experiência social e a experiência duplicada (VIGOTSKI, 2004, p

66). A experiência histórica “baseia-se na utilização muito ampla da experiência

das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que não se transmite de

pais para filhos através do nascimento”; a experiência social é constituída com

outras pessoas, na relação com outras pessoas que se fecham na experiência

particular; e a experiência duplicada, exemplificada como “movimento das

mãos e nas modificações do material, o trabalho repete o que antes havia sido

realizado na mente do trabalhador, como modelo semelhante a esses mesmos

movimentos e a esse mesmo material” (Ibidem, p. 65). Para essa experiência

duplicada, Vigotski se ampara na citação conhecida de Marx, na qual ele afirma

que antes “de um operário executar a construção, projeta-a em seu cérebro”. É

diferente da abelha que não consegue “um resultado que já tinha existência

ideal”; é típica e exclusiva no ser humano. Como já é tão presente nos textos e

ensaios de Vigotski, utilizando-se do potencial da crítica marxista que carrega

inerentemente a explicitação de uma crítica à civilização moderna em geral, e à

sociedade capitalista em particular, seria completamente equivocado, ao mudar

o modo de produção capitalista, adotar a contraposição do que fora superado.

Contudo, esta é uma questão justamente que envolve o debate sobre a

concepção materialista histórico-dialética na segunda metade do século XX: o

desaparecimento da negação da negação, ou seja, o desaparecimento do

papel da negatividade. Sem a negatividade não há o serviço da dialética. O

materialismo histórico dialético estaria condenado a assemelhar-se ao que

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condenava a um modelo involutivo. Por outro lado, o materialismo histórico

dialético é a superação do idealismo objetivo (e se falamos de idealismo

objetivo é porque sua antítese é o idealismo subjetivo, que chega à aberração

de colocar em dúvida a própria existência da matéria). No modo de produção

capitalista, para a burguesia se impor enquanto classe revolucionária, teve que

recorrer à crítica enquanto lutava pelo poder e se impunha como uma nova

ordem civilizatória. A burguesia é uma classe, e para fazer a revolução

instrumentalizou-se da crítica, mas quando obteve o poder afastou-se daquilo

que é aparente, a dominação de classe. A ideologia burguesa é chave para

compreender a dominação e a exploração da classe detentora dos meios de

produção e contra ela o movimento dos trabalhadores deve se ater, combater e

destruir. Em um movimento de transformação social, não se espera que os

trabalhadores, como aqueles explorados, no momento de alcançar o poder,

reproduzam o que destruíram. A dialética passa a ser um instrumento para não

permanecer na mesmice. A transformação não nasce da consciência, nasce da

ação revolucionária. Mas é preciso entender que a burguesia apontou um

radicalismo transformador, o humanismo, quando deixou de voltar-se à mística

e se centrou no que é real e o materialismo filosófico foram os aspectos pelos

quais Marx e Engels fundiram com a ciência, a dialética materialista e as

concepções comunistas com base nos movimentos dos operários. Este é o

cerne da questão para nos perguntarmos sobre a hermenêutica vigotskiana. Na

década de 1920, alguns anos depois da Revolução de Outubro, o processo

revolucionário não se detinha apenas a uma revolução ao modelo da Comuna

de Paris (1871), mas exigia a institucionalização de um processo revolucionário

que se transformava numa revolução social. A sociedade inteira foi incumbida e

conclamada para esta nova institucionalização. Uma classe social que se

incumbia de organizar o poder e as instituições tinha muita autonomia. Ela se

estendia aos cientistas sociais, aos artistas, aos educadores e aos

trabalhadores. Seria completamente inadmissível compreender este processo

senão como criativo, essencialmente criativo. A ciência deveria contribuir e

alargar as possibilidades de compreensão da realidade social e humana para

que a consciência histórica fosse uma compreensão real, para a construção de

uma nova sociedade e para um novo ser humano, como também para que a

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ação coletiva histórica fosse reforçada como coletiva mesmo e não

fragmentada, isolada. A fragmentação e o isolacionismo das forças eram

estratégias da revolução burguesa, era o que consistia na ideologia burguesa

para conceber o engano da impotência humana para qualquer transformação

social. Referimo-nos que “os anos promissores” no campo da pesquisa e

publicações de Vigotski foi o período de 1924 até 1934 como uma condição

somente pessoal deste autor. Este período consiste na ampliação da revolução

social da Rússia Soviética. O apelo ao cientista social era fundamentar o que a

prática social demandava.

Em um dos primeiros manuscritos de Karl Marx, os Manuscritos de

Paris ou os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), podemos verificar a

importância dada ao estudo empírico sobre a economia. É impressionante que

neste estudo há um domínio de um método histórico e social que compreende

o objeto e sua natureza, “como totalidade histórico-social concreta” contrário ao

método hipotético-dedutivo que “facilitava a construção arbitrária e negligente

de tipos ideais; ignorava as condições reais de manifestações dos fatos,

relações e processos econômicos; excluía os aspectos dinâmicos da órbita da

interpretação causa” (FERNANDES, 2012, p. 39). Ao nos depararmos com os

manuscritos, não podemos perceber ainda uma unidade de análise como

veremos mais adiante com O Capital, mas, a partir do método, podemos

verificar o conjunto de categorias que vão surgindo desta investigação:

trabalho, alienação, objetivação, exteriorização, generidade, totalidade,

aparência, essência etc. Marx analisa as contradições quando o trabalhador

cria o produto e este toma o seu lugar (reificação) e o trabalho como exterior ao

trabalhador não lhe pertence (alienação). Mais do que isto, o trabalhador perde

a noção em dupla direção: a noção de si mesmo e a noção de generidade. A

psicologia aqui tem um papel fundamental porque estuda o comportamento

humano e, como tal, a análise crítica que Marx faz coloca as questões centrais

do cotidiano, o que hoje distinguimos com maior clareza ser a relação entre o

trabalho concreto e trabalho abstrato. O trabalho como uma condição social

preponderante na relação entre o ser humano e a natureza e para a

constituição do psiquismo humano. A premissa do trabalho abstrato é

escamotear a contradição e o valor do trabalho concreto para romper com as

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contradições do modo de produção capitalista. Para desvelar esta realidade é

necessário um método. Contudo, “o movimento dialético do pensamento

corresponde ao movimento dialético da realidade”, mas isso não significa que o

primeiro é uma fotografia do segundo. Se fosse meramente um processo

passivo não se obteria na investigação as categorias que “são elaboradas

dialeticamente” e que “retêm as contradições em seu processo de

manifestação real e de desenvolvimento histórico” (Ibidem, p. 27).

Diferentemente de Feuerbach, Marx emprega uma nova modalidade de

aplicação da dialética na investigação empírica e na explicação do homem e da

sociedade, em seu movimento de vir-a-ser histórico (Ibidem, p. 37).

A concepção de Vigotski é dialética, mas também materialista histórico-

dialética por considerar a psicologia como uma ciência histórica. Contudo,

consideramos que a concepção ontológica e epistemológica de Vigotski se

fundamenta numa época e, ao analisarmos as concepções deixadas por Lênin,

Vigotski assimilou essa época, viveu essa época com todos os desafios que a

práxis estabelecia no momento revolucionário; é mais acertado afirmar que sua

gnosiologia se fundamenta e se estrutura, mesmo com todo o fundamento de

base marxista-engeliana, em Lênin, portanto, ela é leninista. Quando Lênin

destaca três eixos gnosiológicas: 1) “as coisas existem independentemente da

nossa consciência”; 2) “não há nem pode haver absolutamente nenhuma

diferença de princípio entre o fenômeno e a coisa em si”; 3) “na teoria do

conhecimento, como em todos os outros domínios da ciência deve-se

raciocinar dialeticamente, isto é, não supor o nosso conhecimento acabado e

imutável, mas analisar de que modo da ignorância nasce o conhecimento”

(LÊNIN, 1982, p. 77). Por isso, não basta afirmar que a base gnosiológica é

materialista histórico-dialética tomando como referência a teoria marxista; há

de se destacar que é fruto de uma época que não conseguiu

hegemonicamente se manter. Ela foi vencida por um marxismo que renunciava

com frequência a mediação. Ao analisarmos Feuerbach e sua defesa da

natureza como primeira, e a ideia como segundo, e daí deduzia a lógica da

natureza, compreendemos a contrariedade de Marx, que não considerava esta

perspectiva tão simples assim. Não deduzimos a lógica da natureza, mas sim

das formas históricas da confrontação com ela. Notemos que o momento

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mediador não foi tão valorizado por Feuerbach, que não considerou

devidamente o trabalho social. Quando a sociedade socialista soviética

começou a dar os primeiros passos para a burocratização (isso foi no início de

de1930) não suportaria a concepção Leninista de Vigotski. A renúncia da

mediação foi determinante em todas as dimensões da ciência. A fórmula que

consta na Ideologia Alemã de que o ser determina a consciência e não o

inverso tornou-se, predominantemente, neste contexto, apenas um cálculo. O

ser pode ser traído pela consciência para que a natureza e a razão apareçam

natural. De maneira parecida, isso vale também para o conceito de

objetividade. O conhecimento é forjado do puro jogo de conceitos pelo fato de

que se suplanta, de novo, na sua relação necessária com a atividade da

espécie. Alcança uma dimensão real, prática. Se dissolve a relação dualista de

pensamento e ser, consciência e natureza. O conceito de trabalho suplanta o

conceito que trabalha. Essa crítica que virá com toda força depois da Segunda

Guerra Mundial não foi vivenciada por Vigotski.

Vigotski desenvolveu uma nova psicologia humana a partir da crítica da

visão kantiana e marxista. A primeira separou o sujeito do objeto e a segunda

tendia para permanecer numa perspectiva objetivista. NEWMAN & HOLZMAN

fazem um apontamento muito significativo sobre o caráter da psicologia

vigotskiana:

“Com Vigotski, tal como Marx, é extremamente tentador tomar as descobertas substantivas como o mais importante, já que elas são pragmaticamente úteis e avassaladoras. Mas fazer isso, acreditamos, é minimizar e, de fato, distorcer a contribuição de Vigotski (e de Marx). Por mais rico que seja o conteúdo de suas descobertas, o valor de seu trabalho reside em seu método – em que os resultados do método e o método mesmo são inseparáveis. Sendo assim, ficar claro que para se beneficiar plenamente do trabalho de Vigotski, os psicólogos contemporâneos teriam de continuar uma tradição cientificamente revolucionária. Em outras palavras, simplesmente aplicar Vigotski não é vigotskiano” (NEWMAN & HOLZMAN, 2002, p. 29)

Concordamos que a perspectiva de Vigotski quanto ao

desenvolvimento é dinâmica e não estática, mas não se resume a uma questão

tão somente metodológica, há fundamentalmente uma gnosiologia que o

sustenta para procurar um método ou definir as diretrizes metodológicas.

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Capítulo 7: Dialética Transcendental

Se Kant denomina a sua dialética de transcendental e a justifica como

uma síntese entre a ontologia e a epistemologia é porque faz uma oposição à

dialética imanente. Veremos neste capítulo como se fundamenta esta dialética

e como Vigotski não concorda com a existência de categorias do pensamento e

a mente como uma fonte de juízos de tipos e naturezas.

O método desenvolvido pelos filósofos antigos para compreender e

apreender as consequências das hipóteses contrárias entre si (tomando

especialmente como referência os Tópicos e a Metafísica de Aristóteles) foi

revista no século XVIII por Kant. Na sua Crítica da Razão Pura (1770), declara

que se pode reconhecer que “a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via

segura, pelo fato de, desde Aristóteles43, não ter dado um passo atrás” (KANT,

1989, p.15 B VIII). A lógica é apenas uma ciência que “expõe minuciosamente

e demonstra rigorosamente as regras formais de todo o pensamento” (Ibidem,

p. 16 B X), é uma formalidade que não pode ser descartada, mas ao ser

utilizada como única referência, sua tendência é permanecer “somente em si” e

não “tratar dos objetos”. Conclui-se então que a lógica é uma “antecâmara das

ciências” porque não chega aos objetos. Pode-se chegar ao objeto de duas

maneiras: “ou pela simples determinação do objeto e de seu conceito ou então

realizando-o” (Ibidem, 16, p. 16, B IX). O primeiro refere-se ao “conhecimento

teórico” e o segundo ao “conhecimento prático” da razão. É preciso, porém,

identificar neste momento o que é o conhecimento puro ou a razão pura que

leva o nome de sua principal obra. No conhecimento precisamos identificar “a

parte pura”, isto é, “aquela em que a razão determina totalmente a priori o seu

objeto” sem qualquer influência de outras fontes. Para Kant “a matemática e a

física são os dois conhecimentos teóricos da razão que devem determinar a

43

No mundo antigo, o paradigma da verdade é a natureza. Desde os pré-socráticos – compreendiam a natureza para

investigar o modelo da política. Não pela questão científica da natureza. Aristóteles dizia que a metafísica é ciência

primeira porque trata do ser ou das questões essenciais do ser humano. O ser é a questão de maior abstração. Tal

lógica é rica em extensão, mas pobre em compreensão. No século XVII, especialmente os empiristas tiram a natureza

como finalidade e desorganizam tudo. Não é mais a natureza, mas o eu cognoscente, epistêmico que começa a ser a

medida das coisas. É clareza e distinção como critério. O que faz Kant é diferente. Ele colocou o homem regulando o

objeto.

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priori o seu objeto, a primeira de uma maneira totalmente pura e a segunda,

pelo menos, parcialmente pura” (Ibidem, p. 16-17, BXI).

Kant faz uma mudança radical na filosofia ao tornar a razão

independente e faz isso elevando-a como uma ciência.

“(...) a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita” (Ibidem, 18, B13).

A compreensão deste caminho fez com que a Física entrasse no

campo da ciência no século XVI, mas a metafísica, a mais antiga das ciências,

“está longe de alcançar” um caminho seguro e, até então, “o seu método tem

sido um mero tateio e, o que é pior, um tateio apenas entre simples conceitos”

(Ibidem, p. 19 B XV). Então, traz um referencial determinante que altera

totalmente o status quo do conhecimento:

“Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados” (Ibidem, p. 19-20, XV - XVII).

Poderíamos entender que a Crítica da Razão Pura tivesse utilidade

apenas negativa, ou seja, apenas para delimitar a razão a não “ultrapassar os

limites da experiência”. De fato, ela é negativa num primeiro instante, mas ao

delimitar negativamente há a possibilidade de ultrapassar justamente os limites,

e, em síntese, sua razão é positiva, pois ao demonstrar sua limitação,

estabelece as prerrogativas para sua ampliação.

Kant pergunta: “de onde vem nosso conhecimento?” O nosso

conhecimento é proveniente de duas fontes das quais, a primeira, consiste na

recepção dos objetos, e a segunda é poder conhecer estes objetos

recepcionados. Na primeira, o objeto nos é dado; pela segunda o objeto é

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pensado. Da primeira surge a intuição e, na segunda, precisamos de conceitos

que constituem elementos fundamentais do conhecimento. Não pode haver

conhecimento sem conceitos. Melhor dizendo, não é possível o conhecimento

se constituir sem conceitos e sem intuição, uma vez que não há conceito sem

correspondência à intuição e nem intuição sem conceito. Esses elementos

podem, de um lado, serem “empíricos”, e, por outro lado, serem “puros”.

Empírico quando a sensação está num dos elementos; puros quando nenhuma

sensação está na representação do objeto. “A sensação pode-se chamar

matéria do conhecimento sensível” (Ibidem, p. B 51 – 57). Então, o que é uma

intuição pura e um conceito puro? A intuição pura é a forma pura do que foi

intuído; o conceito puro é a forma do pensamento de um objeto. “Apenas as

intuições ou conceitos puros são possíveis a priori, os empíricos só a posteriori”

(Ibidem, p. 78 B 75 A 51).

Para deixar claro que no espírito recebe-se a representação dos

objetos, portanto, como é afetado no espírito trata-se da sensibilidade. É a

sensação, matéria do sensível; por outro lado, o entendimento é a capacidade

de “produzir representações”. A sensibilidade recebe representações, o

entendimento produz representações. A este último poder-se-ia ainda

acrescentar a produção da representação sensível. A intuição sempre será

sensível e o entendimento sempre será a capacidade de pensar. Sem intuição

não temos objeto e sem a capacidade de pensar nenhum objeto seria pensado.

E Kant faz uma distinção que refletirá na criação da gnosiologia tendo esta

condição que, de um lado, tem-se a estética que trata das “regras da

sensibilidade”; de outro lado, temos a lógica, referente às “regras do

entendimento”.

A lógica pode ser também distinguida em duas perspectivas: geral e

particular. A lógica de uso geral consiste nas regras do pensamento para

compreender a diversidade de objetos; a particular consiste nas regras do

pensamento para compreender determinadas espécies de objetos. Dentro da

lógica geral, Kant também distingue duas: lógica pura e lógica aplicada. A

lógica pura abstrai-se “de todas as condições empíricas” e “ocupa-se de

princípios puros a priori” (Ibidem, p. 90 A 53). A lógica aplicada refere-se às

“regras do uso do entendimento nas condições empíricas subjetivas que a

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psicologia nos ensina” (Ibidem, p 90 A 53). A lógica geral pura pode se

constituir numa ciência na vida de Kant, que se atém à “simples forma do

pensamento” (Ibidem, p. 90 A 53) e não tem referência “nos princípios

empíricos e nem deve buscar referência na psicologia”. A lógica geral “é uma

doutrina demonstrada e tudo nela tem de ser certo inteiramente a priori”

(Ibidem, p. 91 A 54). A lógica geral não se atém ao objeto, porque “considera

apenas a forma lógica na relação dos conhecimentos entre si” (Ibidem, p. 91 B

80 A 56) e a lógica transcendental atém-se somente ao conhecimento que

“certas representações” são possíveis a priori. As representações aqui tais

como intuições ou conceitos.

Kant sugere mais uma distinção. A lógica geral que se ocupa do

“trabalho formal do entendimento e da razão e apresenta-os como princípios de

todos à apreciação lógica do nosso conhecimento” denomina “lógica analítica”

(Ibidem, p. 94 B 85). Primeiramente, ela assume um caráter negativo, pois

primeiro precisa avaliar as regras para depois descobrir que “em relação ao

objeto contém uma verdade positiva” (Ibidem, p. 94 B 85). Contudo, há uma

tentação de “dar a todos os conhecimentos a forma do entendimento” segundo

um organon que não passam de afirmações e, mesmo que objetivas, são

ilusórias. Esta Kant denomina de dialética. Esta é uma herança dos gregos (da

filosofia clássica) que consistia como uma arte do bem falar e argumentar, mas

consistia também, insiste Kant, numa “lógica da aparência”, “uma arte sofística

de dar um verniz de verdade à ignorância” (Ibidem, p. 95 B 86). A dialética não

passa de um “oco palavreado”. A dialética “não é de modo algum” condizente

“com a dignidade da filosofia” (Ibidem, p. 95 B 86).

O conhecimento nos é dado pela intuição e sem ele não é possível o

conhecimento. A lógica analítica “é uma lógica da verdade” (Ibidem, p. 96 B

86), porque nenhum conhecimento pode contradizê-lo sem que perca, ao

mesmo tempo, todo o conteúdo, isto é, toda a relação a qualquer objeto, e,

portanto, toda a verdade. A dialética é o uso de entendimento puro sem

critérios; é o uso do entendimento ilimitadamente aos objetos. Contudo, a

lógica transcendental, como segunda parte, deverá ser uma crítica à dialética –

à dialética da aparência dialética. Ou seja, Kant, configura a “Dialética

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Transcendental” como crítica para “desmascarar a falsa aparência” da dialética

ou das “ilusões sofísticas” (Ibidem, 96 B 86).

Kant confunde dialética com sofística, mas podemos verificar que dá

uma interpretação para a dialética transcendental como uma dialética da

dialética, ou seja, o exercício de sair das aparências. Quando a dialética se

apresenta como lógica da aparência tem o sentido de negar-se a si mesma – é

negativa e não positiva como a dialética sofística. A dialética transcendental é

sua positividade na sua própria negatividade, o que em Hegel, veremos, será

diferente, isto porque será obtida o positivo pela negação.

A dialética transcendental tem a tarefa de descobrir as aparências para

que não caiamos na negação.

“A dialética transcendental deverá, pois, contentar-se com descobrir a

aparência de juízos transcendentes, evitando ao mesmo tempo que essa aparência nos engane; mas nunca alcançará que essa aparência desapareça (como a aparência lógica) e deixe de ser aparência. Pois trata-se de uma ilusão natural e inevitável, assente, aliás, em princípios subjetivos, que apresenta como objetivos, enquanto a dialética lógica, para resolver os paralogismos, apenas tem de descobrir um erro na aplicação dos princípios, ou uma aparência artificial na sua imitação. Há, pois, uma dialética da razão pura natural e inevitável; não me refiro à dialética em que um principiante se enreda por falta de conhecimentos, ou àquela que qualquer sofista engenhosamente imaginou para confundir gente sensata, mas à que está inseparavelmente ligada à razão humana e que, descoberta embora a ilusão, não deixará de lhe apresentar miragens e lançá-la incessantemente em erros momentâneos, que terão de ser constantemente eliminados” (Ibidem, p. 297-298 B 355 A 209).

É marcante que Kant critica a dialética sofística, mas não retira sua

importância como uma possibilidade crítica pela falsa crítica sofística. O que se

pretende saber não tem validade de conhecimento na dialética sofística porque

é vazio. Esta é a crítica de Kant, mas não é possível simplesmente colocá-la de

lado. É preciso colocá-la no caminho correto.

Quando Vigotski faz menção a Kant, verificamos que não a faz

diretamente, ou seja, em todos os momentos busca apoio das análises e

posições de Lênin (VYGOTSKY, 2012b, p. 110; 2014a, p. 61). A característica

destas referências consiste em dois movimentos: primeiro, utiliza as análises

de Lênin que mencionam o caráter superior da filosofia hegeliana comparada

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com a filosofia kantiana; segundo, não explica com suas próprias palavras, mas

se legitima a partir de Lênin (uma autoridade). A crítica a Kant feita por Lênin

acompanhada pela crítica de Vigotski. As categorias kantianas são colocadas

aprioristicamente, são reificadas e deduzidas. Vigotski cita Lênin; este afirma

que as abstrações científicas refletem a natureza e “el caminho dialéctico del

conocimiento de la verdade, del conocimiento de la realidad objetiva, passa de

la contemplación directa al pensamiento abstracto y de él a la práctica”

(VYGOTSKI, 2012b, p.110). Não se nega a abstração, mas não se permanece

nela. Lênin, por sua vez, ainda traz o sentido da práxis e que não é possível

apartar o concreto do abstrato.

NEWMAN & HOLZMAN (2002) defendem que Piaget, ao tratar das

“origens e o desenvolvimento da inteligência”, baseia-se “nas categorias

sintéticas a priori de Kant”. O reconhecimento de Piaget é justamente o

contrário, ou seja, “que as categorias do conhecimento são construídas” e não

são colocadas aprioristicamente. Contudo, sustentam os autores, Piaget

considera a construção do conhecimento independente do mundo.

A perspectiva kantiana e piagetiana não confere com a de Lênin e a

vigotskiana. As categorias não são colocadas aprioristicamente, mas são

definidas a partir do concreto e isso não significa, repetimos, negar a

abstração. Hegel confrontará a filosofia kantiana e irá defender duas questões:

o concreto não é separado do abstrato e é necessário analisar a condição

dialética, isto significa considerar a história.

Muitas vezes identificamos a concepção piagetiana e vigotskiana ligada

à concepção hegeliana. Mas isso não tem fundamento. Primeiro, destacamos a

relação de Piaget com Kant e sobre a relação da teoria vigotskiana se

aproximar com a hegeliana veremos com mais detalhes no próximo capítulo. É

verdade que tanto Piaget como Vigotski consideram fundamental a interação e

a contradição, mas para esclarecer estas diferenças é necessário entender o

que é contradição e o quanto difere de oposição. Sem dúvida, dialética é a

unidade indissolúvel dos contrários, é o serviço do negativo, como

reiteradamente afirmamos. A contradição de base marxiana não se refere a

superação de dois contrários em uma unidade superior; é antes a inversão da

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dominância de um sobre outro, até que se alcance a extinção de um e a

emancipação de outro. Nesta perspectiva, não se assemelha com a dialética

hegeliana como uma trajetória circular e eterna. Na perspectiva marxiana há

necessariamente uma condição de transformação que tem história e que está

em aberto.

Piaget utiliza o termo “contradição” como uma ação que será realizada

em contraposição a uma outra ação. Uma impede que a outra se realize.

Contudo, esta é a diferença que queríamos destacar – não é contradição, mas

apenas como oposição. Não há serviço do negativo, mas dois movimentos

distintos e opostos. A dialética piagetiana, portanto, não se baseia no

movimento, mas na oposição entre equilíbrio e desequilíbrio.

No segundo capítulo de Pensamento e Linguagem, O problema da

linguagem e o pensamento da criança na teoria de Piaget (VYGOSTSKI,

2014a) identifica-se que o método piagetiano é clínico (Ibidem, p. 29), acumula

dados e, em comparação com a psicologia tradicional, inova ao considerar o

que J.J. Rousseau já dizia: “a criança não é um adulto em miniatura” e muito

menos “la mente del adulto reducida” (ibidem, p. 30). Piaget se fundamenta

empiricamente e evidencia o caráter do desenvolvimento. Piaget tenta fugir do

dualismo tão característico da psicologia “encerrándose en el estrecho círculo

de los hechos empíricos, aparte de los cuales no quiere saber nada” (Ibidem, p.

31). Vigotski acusa Piaget de “no presta suficiente atención al contexto social”

(Ibidem, p. 76) porque justamente não pretende fazer generalizações.

Quando Vigotski trata do desenvolvimento do psiquismo também

considera a explicação genético causal, tal como é proposto por Piaget, mas

vai mais além; por exemplo, quando trata do desenvolvimento das funções

psicológicas superiores, considera não genético, mas apropriado num processo

histórico e acumulado ou determinado pelas relações sociais entre seres

humanos. Esta contradição do genético é o que na dialética denominamos de

negação da negação. O que se sucede, o que se supera não desaparece, mas

ascende como algo novo.

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Capítulo 8: Dialética Hegeliana

Como vimos no capítulo sobre os biógrafos de Vigotski, é muito comum

identificar a concepção vigotskiana tendo como fundamento a filosofia

hegeliana, que tem qualitativamente três categorias estruturantes: totalidade,

contradição e a mediação. Estas categorias são também inerentes à

concepção psicológica vigotskiana. Vamos nos ater neste capítulo

especificamente a esse aspecto. Partimos identificando como tese a filosofia

idealista de Hegel, a antítese, a filosofia sensualista de Feuerbach, para

chegarmos à síntese da filosofia marxista. Num processo histórico filosófico,

nega-se a filosofia idealista, mas como superá-la? O estudo da filosofia

hegeliana é imprescindível e são inúmeras alusões que Vigotski faz a este

filósofo nos seus escritos. Nossa tese reconstitui o sentido de dialética de

Vigotski e ao suscitarmos que sua teoria está ou em Hegel ou em Marx é já um

ponto comum o reconhecimento da sua adoção à lógica e ao método dialético.

A filosofia de Georg W. F. Hegel (1770-1831) é considerada por Karl

Marx como a síntese da filosofia burguesa. É esta filosofia que realizou na

modernidade a ambição da totalidade. Se admitirmos que a totalidade é o

maior interesse da filosofia, de fato o sistema de filosofia criado por Hegel teve

um alcance muito maior do que qualquer outra tentativa anterior. A repercussão

de sua filosofia está muito presente até nos dias atuais, especialmente no

campo das teorias sociais (MARCUSE, 1969).

GADAMER (2000) afirma que “a dialética de Hegel é uma fonte

constante de irritação”, porque está entre “a decepção lógica e o entusiasmo

especulativo” (Ibidem, p. 10). Para este autor, há três elementos essenciais na

dialética de Hegel e que resumem muito bem o seu sentido: i) “o pensar em

algo em si mesmo, para si mesmo”; ii) “enquanto tal o pensamento é um

conjunto necessário de determinações contraditórias”; iii) “a unidade das

determinações contraditórias, enquanto estas são superadas em uma unidade,

tem natureza própria por si mesma” (Ibidem, p. 11).

Para Hegel, o que é verdadeiro é idêntico ao seu conceito, tem dupla

função. Primeiro, é apreensão verdadeira do objeto pelo pensamento; e,

segundo, é referente à realização efetiva da existência concreta. Assim, não

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são meros conceitos (como lógica formal), mas sim modos de ser

compreendidos pelo pensamento. Vamos a um exemplo que é dado por Hegel

na Fenomenologia do Espírito. Se afirmarmos “este homem é um escravo”

evidentemente que o homem será o sujeito e o predicado será que ele é

escravo. Contudo, sendo escravo, continua sendo homem e essencialmente

livre em relação ao predicado. A emissão do juízo não pode ser compreendida

como uma atribuição do predicado a um sujeito imutável, mas dentro de um

processo real. A realidade então aparece como uma realidade dinâmica que só

pode ser compreendida dentro de uma totalidade das relações contraditórias

existentes. Se a realidade existe da forma como é, é em razão de que aquele

estágio alcançou sua existência no modo de verdade. Logo, diferentemente

dos empiristas, a razão não está ligada a um fato ou a um dado, mas sim, a

uma tarefa para efetivamente se realizar. É, no entanto, no processo de

superação da negatividade que o objeto se torna realidade, pois o nascimento

da verdade requer a morte do ser. Para que deixemos isso mais claro

compreendemos que todas as formas são atingidas pelo movimento da razão

que as revoga e altera, até que correspondam aos seus próprios conceitos.

Este movimento da razão correspondidas em conceitos é refletido pelo

pensamento no processo de mediação44 (HEGEL, 2002).

O primeiro título que Hegel dera à sua Fenomenologia do Espírito foi

Ciência experiência da consciência, ressaltando a importância de uma lógica

que oriente “as figuras do sujeito ou da consciência” que estão no mundo

objetivo. Essas figuras têm dois aspectos: primeiro, é histórico porque a

experiência é desenvolvida e reconhecida na cultura como existente e

referendada pela razão; segundo, é dialética, visto que não se trata de história

meramente que relata fatos sequencialmente, mas que congrega

reciprocamente a “certeza do sujeito com a verdade do objeto”. Para superar o

idealismo subjetivo Hegel utiliza a dialética “como movimento da razão que tem

como único interesse suprimir as oposições cristalizadas” (MARCUSE, 1969, p.

79). Contrariamente a este idealismo subjetivo que podemos identificar em

Kant, que trata as oposições isoladamente e são até inconciliáveis, na dialética

hegeliana a reflexão é o instrumento dos opostos, mas eleva-se enquanto

44 Grifo nosso.

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razão. Aqui, a reflexão toma o seu lugar e passa a ser mediadora das

contradições. No início da Fenomenologia do Espírito, Hegel destaca que sua

obra irá se ater ao “devir do saber”. Sobre este aspecto do devir, Kant não se

atém porque o “sujeito e o fenômeno são rigorosamente anistóricos” (VAZ;

2002, p. 14). A filosofia kantiana tem sua importância pelo caminho percorrido –

o entendimento é a certeza sensível do que é agora. É exatamente neste ponto

que a Fenomenologia do Espírito tem o seu valor de superação, razão pela

qual Hegel sustenta o fenômeno não no objeto, mas no saber mesmo do

sujeito. Há um processo e não uma cisão.

VAZ também afirma que na Fenomenologia do Espírito aparecem dois

itinerários a serem considerados: primeiro, consiste que a formação do sujeito

se efetua dialeticamente a partir da experiência da consciência na história. A

Fenomenologia do Espírito como obra, por exemplo, só poderia ter surgido

naquele tempo em razão do surgimento de uma revolução filosófica com Kant

(o sujeito responde unicamente à razão) e a Revolução Francesa, que é uma

revolução acima de tudo política (o cidadão é responsável pelas suas

decisões); o segundo, “o imperativo teórico e prático de igualar o racional e o

real” (Ibidem, p. 16) – esta identidade só ocorre porque é um processo de

reconhecimento da razão que se estabelece historicamente.

Para Hegel, a filosofia que reside essencialmente na universalidade, na

qual, é claro, não há como não estar incluso o particular e o singular – isto

significa que é na própria filosofia que a aparência “no fim e nos resultados se

expressa a Coisa mesma” (HEGEL, 2002, § 1, p. 25). Se não fosse assim não

se expressaria o essencial, mas o inessencial. Por exemplo, se por anatomia

entendemos a área do conhecimento que estuda as partes do corpo – sem

considerar o particular não há como tomar posse da essência. Alguns falam da

impossibilidade das generalizações, mas para a filosofia, como Hegel defende,

seria inconcebível, pois, seria impossível “apreender o verdadeiro” (Ibidem, § 1,

p. 25). Quando retratam generalizações desta forma é porque há dificuldade de

lidar com a diversidade e com a contradição. Atitude comum é refletir como

algo determinante se prendendo ao que ora é falso, ora verdadeiro, dito de

outra forma, refletindo a Coisa mesma rejeitando-a ou aprovando-a. Hegel cita

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muitos exemplos da natureza para explicar melhor a contradição e, ao mesmo

tempo, uma outra categoria para ele muito importante: a totalidade45.

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta: do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-ai da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor; essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de um sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; além disso, a consciência que apreende essa contradição não sabe geralmente libertá-la, ou mantê-la livre – de sua unilateralidade; nem sabe conhecer no que aparece sob a forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamente necessários” (Ibidem, § 2, p. 26).

Hegel afirma que a Fenomenologia do Espírito tem como meta “o saber

efetivo” e não aquilo que se chama “amor ao saber”. Isto significa elevar a

filosofia à condição de ciência. Ao afirmar que “a verdade só no conceito tem

elemento de sua existência” (Ibidem, § 6, p.28) significa que está em oposição

direta à escola empirista inglesa. O esforço é fazer com que os homens voltem

“a dirigir seu olhar para as estrelas e não se contentem com pó e água como os

vermes” (Ibidem, § 8, p. 29). Mesmo sabendo da extensão deste conteúdo,

Hegel está fundamentando que há um novo tempo, mas mais importante é

como este presente se apresenta:

(...) nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de se representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, ese entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo e a criança está nascida. Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo” (Ibidem, § 11, p. 31).

45 Grifo nosso.

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Neste novo mundo o que aparece primeiro é o conceito, mas isso não

se dá no começo. O começo é como um edifício que tem só alicerces – o

conceito é o edifício. A consciência sente falta do aprimoramento do conteúdo

– a consciência fica rememorando “o ser aí anterior”.

“Sem tal aprimoramento carece a ciência da indelebilidade universal; e tem a aparência de ser uma posse esotérica de uns tantos indivíduos. Digo “posse esotérica” porque só é dada no seu conceito, ou só no seu interior; e ‘uns tantos indivíduos’, pois seu aparecimento, sem difusão, torna singular seu ser-aí. Só o que é perfeitamente determinado é ao mesmo tempo exotérico; conceitua, é capaz de ser ensinado a todos e de ser a propriedade de todos”. (Ibidem, § 13, p. 32)

Uma ciência que começa não chega tão logo à perfeição da forma, isso

leva tempo. Fica exposta à resistência de uma ciência anterior, mas se fosse

diferente, não se instituiria dentro do processo de formação cultural. Há sempre

oposição para legitimação de uma corrente científica. No momento em que

Hegel escreve sua Fenomenologia do Espírito há o que ele chama de “nó

górdio” a ser desatado em função de duas correntes que não chegaram a um

consenso.

“Uma corrente insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra despreza, no mínimo, essa inteligibilidade e se arroga a

racionalidade imediata e a divindade (Ibidem, § 14, p. 32).

Uma corrente pode ser até justa, mas se não conseguir legitimidade

dentro da cultura, vamos dizer assim, científica, significa que não atendeu ao

que fora colocado pelo tempo. Quando se utiliza de um método que considera

o conteúdo apenas para ser classificado e fica evidente uma preocupação

somente com a peculiaridade ou a curiosidade que este conteúdo possa trazer;

não é uma preocupação de fato com o novo, mas sempre com aquilo com que

foi adquirido para sofrer a classificação. Ou seja, submete-se a classificação à

ideia absoluta parecendo uma ciência que está já realizada. É uma fórmula

desenvolvida e baseada na repetição e no acúmulo. Não significa que a ideia

não seja verdadeira, mas “fica sempre no seu começo”, ou então, “trata de um

formalismo (...) que atinge apenas a diferença de conteúdo” (Ibidem. § 15, p.

33). Hegel combate e confronta o método especulativo (método que muitas

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vezes também denomina de metafísico) que não desaparecerá como se fosse

num passo de mágica. Ainda persistirá, mas é um método que estabelece

“obstáculos para o conhecimento filosófico”. Não se trata de uma confrontação

do que se instituiu pelo método especulativo e com o reforço das filosofias do

seu tempo, mas vem da própria noção de substância de Aristóteles. Para Hegel

é importante entender no sistema filosófico, onde tudo decorre, o que é a

substância. O verdadeiro não se manifesta “como substância, mas também,

precisamente, como sujeito” (Ibidem. § 17, p. 34). Então, podemos nos

perguntar: o que é substância para Hegel? Ele responde: “é o ser, que na

verdade é sujeito”

“(...) que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é movimento do por-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade registrando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim” (Ibidem. § 18, p. 35).

Ser efetivo (Wirklich) aqui tem sentido de “movimento do por-se-a-si-

mesmo” ou “mediação consigo mesmo do tornar-se outro”. O sujeito é aquele

capaz da reflexão e faz a reflexão deste movimento de reconhecimento do

outro para chegar à sua meta, atualização constante e este é o seu fim.

“O verdadeiro é o todo” (Das Wahre ist). Mas, o que é o todo?

Responde sucintamente: “o todo é somente a essência que se implementa

através de seu desenvolvimento” (Ibidem, § 20, pág. 36). Por essa razão afirma

que o absoluto é resultado, mas este só se apresenta no fim. Só no fim que é

verdade. Mas então o que é essência? É o ser. O que é ser? É sujeito. O que é

sujeito? É o vir-a-ser-a-si-mesmo. É o efetivo que se desenvolve, que é

movimento. Por exemplo, se falamos: o animal. Na sua imediatez nada pode

ser expresso para o que é animal. Contudo, esta palavra pede mais outra e isto

significa que pede a mediação para tornar-se Outro. Pede a sua negatividade.

Tal condição pode causar horror a muitos. Para Hegel este horror surge pela

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“ignorância a respeito da natureza da mediação e do próprio conhecimento

absoluto” (Ibidem, § 21, p. 36), pois a mediação não é outra coisa senão:

“(...)a igualdade-consigo-mesmo semovente, ou a reflexão sobre a si mesmo, o momento do Eu para-si-essente, a negatividade pura ou reduzida à sua pura abstração, o simples vir-a-ser” (Ibidem, § 21, pág. 36)

O retorno do ser que é o retorno a sua simplicidade – é o retorno a sua

imediatez. Nesse processo de ser, que é também sujeito ou o vir-a-ser, a

Reflexão não pode ser desconsiderada ou excluída. Hegel dá um exemplo. Se

tomarmos o embrião do ser humano, ele é simplesmente “em si”, contudo, não

é “para si”. Aqui entendemos que para a reflexão ele utiliza o termo razão,

“desenvolvida – que se fez a si mesma o que é em si – é homem para si; só

essa é a sua efetividade” (§ 21, ps.36-37). Mas é esse resultado como

movimento de algo repousado sem deixar de lado a negação que, ali na

negação, houve um abandono, mas que depois se reconcilia com ela mesma.

O que diferencia este movimento é que a razão age para um fim como

nas concepções aristotélicas. Hegel parece não procrastinar Aristóteles. O

pensamento filosófico da época de Hegel, a razão submetida a uma causa

externa, significava “a exaltação de uma natureza acima do pensamento”.

Significava submeter-se – muito fácil resvalar para o campo da tradição e das

meras justificativas espirituais. O fim imóvel de Aristóteles é a mesma coisa

que o sujeito. Hegel defende que ali há uma negatividade pura.

Para Hegel o espírito é aquele que se sabe, que se se desenvolve

como espírito tal como a ciência. “A ciência é a efetividade do espírito, o reino

que ele para si mesmo constrói em seu próprio elemento” (Ibidem, § 25, p. 39).

A ciência reivindica da “conciência-de-si” que possa viver nela mesma, ou seja,

o indivíduo deve saber da sua certeza imediata como um “ser incondicionado”.

Temos que entender a relação entre a ciência e a cons-ciência.

Para que possamos compreender a noção dialética hegeliana

evidenciamos uma das metáforas mais conhecidas de Hegel: “o senhor e o

escravo” – trata-se da mais importante parábola da filosofia ocidental (VAZ H.

L., 2016). Entraremos na própria parábola do senhor e do escravo. Reflitamos

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apreendendo a ideia posta de Hegel. A parábola é apresentada nos parágrafos

178 a 196 da Filosofia do Espírito (HEGEL, 2002, p. 442). A primeira definição

é muito importante: “A consciência-de-si” é “em si” e “para si” quando e porque

é em si e para si uma Outra; quer dizer, se e como algo conhecido” (Ibidem, p.

442). Se sofremos juntos por que não lutamos juntos? Não é possível que a

consciência-de-si possa ser o que é (em si e para si) sem o reconhecimento de

outra consciência. Nessa tríade há uma dialética, mas antes de esclarecê-la,

vamos distinguir suas partes. O que é consciência-de-si? E consciência para

si? Nos parágrafos anteriores citados da Fenomenologia do Espírito, Hegel

trata destas questões sob o título: “A verdade da certeza de si mesmo”. Hegel

mergulhou na cultura humana para refletir sobre esta cultura que tem,

conforme nosso comentador, uma face dialética “(...) porque a sucessão de

figuras de experiência não obedece à ordem cronológica" (Ibidem, p. 10); não

efetua a separação entre fenômeno e o conhecimento absoluto, dito de outra

forma, da coisa em si. Hegel articula a relação entre o sujeito, que entende, e a

verdade do objeto e coloca a experiência no saber do sujeito. Isso está em

processo contínuo. Em primeiro lugar define-se o “conceito como movimento

do saber” “e o objeto, o saber como unidade tranquila ou como Eu”. Ou seja, o

sujeito é o saber e o predicado o Eu.

“O em-si é a consciência, mas ela é igualmente aquilo para o qual é um Outro (o Em-si): é para a consciência que o em-si do objeto e seu ser-para-um-outro são o mesmo. O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio”.

Hegel sugere o método dialético para sua lógica que “não é nada

distinto de seu objeto e conteúdo em si, a dialética que ele tem nele mesmo

que o move para frente” (Ibidem, p. 34). A dialética não fora agregada à lógica

porque se entendia sua finalidade equivocada e em Hegel ganha maior

importância.

Na filosofia hegeliana a pergunta é o que precede: o mediado ou o

imediato? Para Hegel, ambos os inícios são refutáveis. O princípio é menos um

início subjetivo do que um início objetivo, entretanto, o princípio mesmo é “um

conteúdo de algum modo determinado” (Ibidem, 49) tal como, de fato, é um

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objeto: mesa, cadeira, lápis, etc., da mesma forma a determinação do conteúdo

está na subjetividade – no pensar. Para Hegel é “inobservado” por onde se

inicia, se pelo mediado ou pelo imediato; o problema é método para esta

análise. Na história da filosofia constatamos constantemente esta disputa e

Hegel enfatiza:

“(...) não existe nada, nem no céu, nem na natureza ou no espírito, ou seja, lá onde for, que não contenha imediatamente a imediatidade bem como a mediação, de modo que essas duas determinações se mostram como inseridas e inseparáveis e aquela oposição como algo nulo. Mas do que concerne à discussão científica, em todo enunciado lógico surgem as determinações da imediatidade e da mediação e, portanto, a discussão de sua oposição e sua verdade. Na medida em que essa oposição, na relação com o pensamento, o saber, o conhecimento, alcança a configuração mais concreta do saber imediato e mediado, a natureza do conhecimento em geral é tanto considerada no interior da ciência da lógica bem como recai em sua forma ulterior concreta na ciência do espírito e na fenomenologia do mesmo. Mas, querer saber antes da ciência algo claro sobre o conhecimento significa exigir que ela seja discutida fora da ciência; fora da ciência isso pelo menos não se deixa efetuar de modo cientifico, do qual propriamente aqui se trata (Ibidem, p. 50).

É no lógico que começa e ocorre no pensamento que “é livre por si

mesmo”. Ora, se assim inicia, se assim podemos suscitar um início é o que

Hegel denomina de “saber puro”. Na Fenomenologia do Espírito, obra que trata

da ciência da consciência, pode-se verificar que “a consciência tem como

resultado o conceito da ciência”, que nada mais é que o “saber puro”. Este

saber puro é certeza e é subjetividade que não está “em oposição ao objeto,

mas o tornou algo interior, o sabe como a si mesmo” e que é abandonado

porque está “em oposição ao objeto, é aniquilado, alienou essa subjetividade e

é a unidade com sua alienação” (Ibidem, p. 51-52). O ser, portanto, se inicia

“por meio da mediação” que é ao mesmo tempo a superação de si mesmo”

(Ibidem, p. 52). Contudo, o ser puro é início porque se fosse mediação não

seria ele próprio – é mediado.

O ser é tudo e é a entidade mais universal, isto porque não tem como

determiná-lo. A pergunta tão recorrente “que é ser?” busca compreender o que

existe e porque existe. O conceito de ser precisa do que é distinto entre um ser

determinado e um ser-como-tal. É a linguagem que tem condições de

diferenciar um ser de um ser determinado. Quando afirmamos “a rosa é

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vermelha”, este “é” não mostra ou não designa nada que é real – não tem

como ser um sujeito. “Cada coisa é, mas ser não é uma coisa” (MARCUSE,

1969, p. 128). Ora, se não é alguma coisa então é nada. Portanto, nesta

tentativa de apreender o ser encontramos o nada. O conceito de ser não pode

reduzir-se a nada, mas ser e nada são idênticos. Para Hegel, tudo tem esta

pertinência de ser ao mesmo tempo ser e nada.

“Cada coisa só é na medida em que, a todo momento do seu ser, algo que ainda não é vem a ser, e algo que agora é, passa a não ser. As coisas só são enquanto surgem e desaparecem, ou, o ser deve ser concebido como vir-a-ser. Assim a pertinência do ser e do nada manifesta-se na estrutura de tudo que existe e deve ser guardada em cada categoria lógica. Esta unidade do ser e do nada, que é a verdade original, é, definitivamente, a base e o lamento de tudo o que se segue assim, além do próprio vir a ser, todas as ideias e determinações lógicas. ... e, em resumo, todos os conceitos filosóficos, são exemplos desta unidade” (Ibidem, p. 128).

Esta definição do ser e do nada vai totalmente contra a lógica formal

que predetermina as categorias. A lógica formal aceita o mundo como está e

estabelece algumas regras para poder orientar sua teoria. A lógica dialética

que Hegel aponta, ao contrário, o que é dado não é perene, é mudança

constante, além disso, não se fixa ao que se define pelo exterior, mas o que o

próprio conteúdo manifesta. Deixemos claro que Hegel não está contra as

categorias, mas como definir uma categoria no momento do ser. Hegel passa a

analisar uma das categorias mais tradicionais: a qualidade. Um ente (coisa)

está sempre determinado, é sempre determinado e a qualidade consiste em

um aspecto. Toda qualidade, diz Hegel, é uma negação porque exclui outros

que não o são. Existe uma função de outro e esta é uma totalidade, o ser

verificado ou observador. Esta escrivaninha à nossa frente não é ser-por-si,

mas ser-por-outro. Não há como separá-los. Aqui se revela que a filosofia,

diferente do tradicional, está vinculada com a realidade concreta. A existência

se processa por uma dupla negação. Primeira, nega o outro em que se

transforma; e a segunda é como esta negação primeira é assimilada,

encarnada em si mesma.

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163

A essência apresenta a unidade do ser que é sua identidade construída

ou definida no vir-a-ser. O que quer dizer isto? A unidade contém o seu oposto,

ou seja, sua diferença que na relação constitui-se esta unidade. Todas as

coisas têm inerentemente a contradição, a ponto de poder-se afirmar que todas

as coisas são autocontraditórias, opostas a si mesmas. A contradição é o pilar

do todo movimento. A lógica de Hegel, podemos também deduzir assim,

progride como um princípio ontológico universal que o existente se transforma

no oposto de si, construindo ou definindo a identidade do seu ser na superação

das oposições. Mas esta concepção vem contra o próprio idealismo, vem

contra seus próprios princípios. O materialismo histórico dialético desenvolveu

aquela sua hermenêutica crítica que consiste em afirmar que a negatividade é

a essência da coisa, a contradição é o motor do processo. Mas para Hegel a

contradição não é um fim – a contradição dissolve-se na realidade.

Para compreender a totalidade, Hegel propõe o método dialético que

deve deduzir as determinações concretas para assimilar o desenvolvimento do

real. Estas tantas determinações não podem ficar de fora porque é preciso

aprender a história objetiva do próprio real. Na filosofia dialética, não somos

nós que elencamos os conceitos na sua dimensão subjetiva, nós apenas

reproduzimos. A lógica dialética hegeliana associa ou até identifica a forma e o

conteúdo do pensamento. Ou seja, o conceito é tanto uma forma lógica como é

também realidade existente. É no conceito que se atinge a identidade do

sujeito e do objeto como também do pensamento e da realidade.

Na Ciência da Lógica, Hegel ataca a filosofia especulativa não só na

sua perspectiva epistemológica, mas também ontológica. Na perspectiva

epistemológica, Hegel não aceita esta separação entre pensamento e

realidade. O pensamento é realidade assim como já mencionamos que razão

se identifica com a realidade. Na perspectiva ontológica, o ser se configura

numa dualidade que equivale à submissão ao mundo como ele é e a não

assunção enquanto pensamento para a tarefa de atuar na realidade em

harmonia com a verdade. A dualidade consiste na separação do ser e

pensamento onde o pensamento submete-se ao senso comum. As categorias

da lógica tradicional, portanto, são falsas em razão de não estarem

preocupadas com a realidade em si. O senso comum é participar desta

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falsidade e é a lógica dialética que tem a força para desvelar esta falsidade,

porque tem o seu caráter que Hegel chama de negativo – negar as categorias

estáticas, nega-se o falso do mundo considerado estático, nega-se o falso do

mundo considerado verdadeiro por esta lógica (HEGEL, 1976).

Até aqui chegamos, de forma muito resumida, à exposição sobre a

filosofia hegeliana. No capítulo 4, quando nos referimos aos biógrafos de

Vigotski, destacamos como muitas vezes estes colocam na sua teoria maior

influência em Hegel do que em Marx. Este é um fundamento que nos interessa

e também é fundamental nesta nossa tese, que é a relação intrínseca entre o

idealismo e o materialismo. Ao analisarmos os escritos de Vigotski chama-nos

atenção uma característica marcante. Poderíamos aqui enumerar texto por

texto, mas consideramos desnecessário fazê-lo, dada esta característica ser

tão marcante. Vigotski tem domínio sobre a teoria hegeliana, mas quando a

trata não cita diretamente as obras de Hegel. Faz um caminho pouco usual nos

seus textos. Todas as vezes que cita Hegel, faz com apoio e imediata conexão

com três outros autores: Marx, Engels e Lênin. Estas citações se acentuam

depois de 1930. Por que Vigotski utiliza esta estratégia de redação? A partir de

1930 torna muito mais difícil sustentar uma produção científica como fora nos

tempos de Lênin, mas o que fazer com a teoria marxiana sem Hegel? Vigotski

não abre mão de adotar a reflexão aberta e de acordo com as diretrizes

estabelecidas nos escritos de Lênin, cujas obras completas já tinham sido

publicadas em 1930. Por outro lado, alguns interpretadores de Vigotski tendem

a considerar esta referência das autoridades marxistas (Marx, Engels e Lênin)

como um controle repressivo. Contudo, os três autores (deveríamos

acrescentar também Trotsky)46 são referências para a teoria vigotskiana e isso

é verificável nos seus textos. Gostaríamos de citar três trechos para tornar mais

evidente a quê nos referimos:

Primeiro, no texto História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas

Superiores, capítulo 5: Gêneses das funções psíquicas superiores, ao explicar

que a linguagem exerce função central nas relações sociais e no

46 Em 1933, Leon Trotsky foi deportado e escreveu três livros importantes: Autobiografia (1930), História da Revolução Russa (1930-1932), Revolução permanente (1930) e A revolução traída (1936). Há relatos que Vigotski citou as obras de Trotsky, mas na edição das Obras Reunidas foram todas suprimidas (TOASSA, 2015a, 2015b).

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comportamento cultural da personalidade, afirma que “todo o desenvolvimento

cultural da criança passa por três etapas principais que, seguindo Hegel,

podemos descrever do seguinte modo” (VYGOTSKI, 2012 c). Vigotski então

exemplifica, “a história do desenvolvimento do gesto indicativo” considera como

primeira etapa o gesto da criança “em si”, ou seja, é meramente um movimento

fracassado para um objeto apontando para o que se quer conseguir. Contudo,

quando a mãe atende, se comunica, faz o exercício de também apontar,

conversar, produz-se uma reação: “o gesto indicativo se converte em gesto

para o outro”. As funções do movimento, portanto, vão se modificando.

Primeiro, aponta ao objeto; segundo, dirige-se à outra pessoa; e, terceiro,

estabelece-se uma relação. No final, o gesto com todo o movimento define-se

como um “gesto para si” (Ibidem, p. 148-149). Então, Vigotski passa a citar

uma frase que é muito comum em seus textos para sintetizar “a consciência

para si”: “passamos a ser nós mesmos através dos outros”. Esse texto é de

1931, mas em 1925, no texto A consciência como problema da psicologia do

comportamento e, em outro, Os métodos de investigação reflexológicos e

psicológicos (1924), afirma de forma mais completa: “temos consciência de nós

mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento através do

qual conhecemos os demais, porque nós mesmos em relação a nós mesmos

somos o mesmo que os demais em relação a nós” (VIGOTSKI, 2014, p. 82;

Vigotski, 2013 k, p. 18). Esta noção confere, sim, com a perspectiva hegeliana,

mas também com Marx, para quem a formação da personalidade se dá nas

relações sociais. Vigotski aproveita esta tese para fundamentar outra: “a

natureza psíquica do ser humano vem a ser um conjunto de relações sociais

transladadas ao interior e convertidas em funções da personalidade em forma

de sua estrutura” (VYGOTSKI, 2012c, p. 151). Do ponto vista psicológico e na

história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores há uma

mudança do plano de ação ao plano verbal na idade de transição, mas de

forma alguma a tese de Marx é contestada como fundamento estruturante.

O segundo texto é também constantemente ressaltado por Vigotski e

se sustenta numa citação de Lênin:

“(...) cuando Hegel intenta – as veces incluso con esfuerzo – reducir la actividad racional del hombre a una categoria lógica, al decir que esa atividade es ‘silogismo’, que el sujeto desemperna el papel de un

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certo “membro’ em la ‘figura’ lógica del ‘silogismo’, etc., NO SE TRATA TAN SOLO DE UMA LICENCIA LITERARIA, DE UM JUEGO, POR ELE CONTRARIO, ENCIERRA UMA IDEA PROFUNDA AUTENTICAMENTE MATERIALISTA. DEBEMOS DARLE LA VUELTA: LA ACTIVIDAD PRÁCTICA DEL HOMBRE TUVO QUE HACER REPETIR A SU CONCIENCIA DIFERENTES FIGURAS LÓGICAS MILES DE MILLONES DE VECES PARA QUE ESAS FIGURAS ADQUIEREN EL VALOR DE AXIOMAS ...” (Ibidem, p. 73)47.

Essa citação que Vigotski faz referindo-se a Lênin tem duas questões

para serem esclarecidas. A primeira é que há concordância para o fato de

Hegel não levar esta análise ao campo prático, ou melhor, à práxis; segundo,

Vigotski não entende aqui, e o texto nem leva para esta compreensão, que tal

fenômeno das imagens na consciência não se trata de uma cópia passiva, é

um processo. Contudo, não podemos negar o referencial lógico hegeliano que

precisa ser, conforme Lênin, invertido na perspectiva da práxis. Contudo, aqui

temos que fazer uma observação mais cuidadosa, isto porque Vigotski

distancia-se de Lênin em determinado momento e se aproxima de Hegel em

outro. Mesmo que na sequência afirme que a linguagem costuma não ser

analisada como deveria, ou seja, na idade de transição a linguagem assume

novas formas. A atividade prática do ser humano é duplamente mediada: por

um lado, é mediada pelas ferramentas em sentido literal da palavra, e, por

outro lado, mediada pelas ferramentas em sentido figurado, pelas ferramentas

do pensamento, mediada com auxílio das palavras (Ibidem, p. 165). Notemos

que a atividade também passa a ser o pensamento. Isto, na época de Vigotski,

era completamente inadmissível, pois acabava sendo uma aproximação com

Hegel. Então, voltamos a Kant, isto porque este afirmava não haver

conhecimento sem conceito, assim como não há como separar o objeto do

conceito, afirmava Hegel; e nem poderia subsistir o conceito sem a práxis,

conforme Lênin. O pensamento como atividade na perspectiva vigotskiana não

retira o caráter da ação, pelo contrário, reforça-a.

Terceiro texto: para compreender o método de investigação é proposto

por Vigotski três teses: (1) As semelhanças entre signos e ferramentas que são

atividades mediadoras (o que tem em comum entre signo e ferrramenta é que

exercem uma função mediadora e pode-se considerar, neste sentido, “a

47 Este texto exatamente igual também consta em Desarrollo de las funciones psíquicas superiores em la edade transición (VYGOTSKI, 2012c, p. 162). Grifo do autor.

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mesma categoria”. O emprego de ferramentas e de signos estão subordinados

à atividade cuja categoria mediação é fundamental na sua filosofia, a “atividade

mediadora” permite que os objetos atuem reciprocamente. Vigotski, neste

sentido, aproxima também Marx na compreensão que ele dá para as

ferramentas que leva o ser humano a atuar sobre coisas em função de um

objetivo).

(2) As diferenças entre signo e ferramentas (Há, portanto, uma

diferença “essencialíssima” entre ferramentas e signos. Por meio das

ferramentas o ser humano atua na natureza – “está dirigido para fora, isto

porque forja as mudanças no objeto. Por sua vez, o signo não modifica nada no

“objeto da operação psicológica” – é um meio para atividades no interior do ser

humano que é dirigido “a dominar o próprio ser humano”. Comparativamente,

ambas atividades são diferentes).

(3) A relação psicológica real entre uma e outra atividade (O emprego

das ferramentas dos signos tem o nexo real no desenvolvimento filo-

ontogenético, ou seja, no campo filogenético é possível averiguar os vestígios

deixados pelos seres humanos e no campo ontogenético é possível “observar

experimentalmente” (VYGOTSKI, 2012b, ps. 93-94).

Vigotski tinha pleno domínio da filosofia hegeliana e esse fato podemos

observar nas diversas citações que faz considerando as três categorias que

analisamos: totalidade, mediação e contradição. Assim como Marx, Engels e

Lênin eram estudiosos da filosofia hegeliana, também Vigotski foi. Se tirarmos

ou ignorarmos as citações destes autores citados vamos, sim, nos deparar com

um Vigotski idealista, mas não é isso que vemos nos seus textos. Contudo,

para que possamos aprofundar ainda mais este debate precisamos nos ater ao

grande debate e confrontação que havia na época de Vigotski: Idealismo X

Materialismo.

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Capítulo 9: Dialética da Essência Humana

Para que possamos analisar a perspectiva materialista da filosofia que

se consolida no marxismo é necessário que investiguemos os referenciais de

Fuerbach.

Ludwig Feuerbach (1804-1872) publicou quase que simultaneamente

quatro obras: Crítica da Filosofia Hegeliana (1839), Essência do Cristianismo

(1841), as Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia (1842) e os Princípios

da Filosofia do Futuro (1843). Feuerbach começa criticando a concepção

hegeliana (foi aluno de Hegel na Universidade de Berlim) e apresenta os

fundamentos contraditórios do cristianismo; elabora uma base teórica

provisória; para finalizar, elabora uma obra para indicar o caminho para uma

nova filosofia, uma verdadeira filosofia. Se a crítica é essencialmente uma

crítica da religião é neste campo que Feuerbach permanece, destacando que a

realização da religião exigia a negação dela mesma. Isto significa negar o

caráter transcendente e assumir seu caráter imanente, encarnado nas

questões “terrenas”. Quando propõe uma filosofia do futuro reconhece também

que a filosofia alcançou estágio de maturidade pronto para sustentar as

transformações necessárias e reais, pronta para suportar a sua própria

negação. Lhanos (1988) afirma que “a negação da religião começara com a

transformação hegeliana da teologia em lógica; e se completa com a

transformação, feita por Feuerbach, da lógica em antropologia” (Ibidem, p.

148).

Hoje, Ludwig Feuerbach não é muito lembrado e, quando lembrado, é

em razão da crítica realizada por Marx48 e Engels49. Inicialmente, as obras de

Feuerbach foram importantes para o pensamento de Marx, que o fez

compreender o materialismo e utilizar esta crítica contra o idealismo objetivo

hegeliano. Os sucessores de Hegel se perguntam sobre a realização da

filosofia e pela efetividade da essência humana. A filosofia terá sua negação?

O ser humano conseguirá realizar a sua essência humana? O trabalho

negativo anuncia que a filosofia será superada e a essência humana será

48 Karl Marx escreveu as teses sobre Feuerbach. 49 F. Engels escreveu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.

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sempre perseguida na história. Estas questões marcam o pós-hegelianismo.

Duas tendências nascem a partir do sistema hegeliano:

“(...) a primeira, representada por Feuerbach e Kierkegaard, apreende o indivíduo isolado; a segunda, representada por Marx, apreende as origens do indivíduo no processo de trabalho social e mostra como este processo é a base da libertação do homem” (MARCUSE, 1969, p. 243).

Feuerbach concorda com Hegel que a humanidade atingiu a

maturidade – há maturidade para instituir práticas coletivas que se

fundamentam na razão e na liberdade. Eis o motivo pelo qual é possível pensar

numa filosofia do futuro. “A negação da religião começará com a transformação

da teoria em lógica; e se completa com a transformação, feita por Feuerbach,

da lógica em antropologia” (Ibidem, p. 248). A antropologia é uma filosofia que

visa à emancipação concreta do homem, para tanto evidenciando as condições

e qualidades de uma existência humana efetivamente livre. O erro de Hegel foi

ter se arraigado ao idealismo no momento que poderia buscar uma alternativa

materialista que significaria fazer análises não reduzidas à crítica

simplesmente, mas, ao que Feuerbach denomina de genético-crítica, ou seja,

compreender o objeto, investigar a sua origem e as razões de persistir na

existência. Não se trata de buscar explicações no céu como faz Hegel, mas

buscá-las na Terra. A análise genética é o que hoje consideramos como real,

como concreto.

Feuerbach foi aquele que enfrentou a cultura cristã em todos os seus

aspectos e que recuperou a filosofia espinosana na sua perspectiva

materialista. Na primeira parte da Ética de Espinosa50 (mais precisamente no

apêndice), nos deparamos com suas explicações mais livres, ou seja, não

estão dentro da explicação lógica geométrica. É neste texto que se revela a

crítica de Espinosa contra a teologia finalista e as filosofias que permanecem

sob esta ortodoxia. Todas as justificativas de explicar a razão pelas causas

exteriores, transcendentes, são condenadas. Sua teologia é materialista,

reconhece Feuerbach, porque considera a substância imanente. Consideramos

a base feuerbachiana muito próxima de Espinosa, isto porque há rejeição

determinante às formas religiosas de base sobrenatural que, em última análise,

50 ESPINOSA, Baruch. Ética. Autêntica Editora, São Paulo/SP. 3ª Edição. 2007 (Apêndice: págs. 63-75)

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é supersticiosa51. Ambos enfrentaram a força da cultura judaico-cristã, ambos

tiveram o mesmo fim – Feuerbach afastado definitivamente de qualquer

pretensão para atividade acadêmica quando da repercussão do livro Essência

do Cristianismo; Espinosa afastado da convivência social de sua comunidade

em razão de propagar ideias contrárias à ortodoxia judaico-cristã.

Nas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia temos duas

passagens explícitas que Feuerbach mostra ser um opositor de Hegel. Sua

crítica é em função da dialética hegeliana ao justificar na reconciliação do

Espírito Absoluto com a realidade, mas mais radicalmente, manter a alienação

do ser humano ao colocar o espírito absoluto no lugar da realidade humana. A

filosofia hegeliana continua fortemente vinculada à teologia a ponto de

Feuerbach afirmar categoricamente: “Quem não abandonar a filosofia

hegeliana, não abandona a teologia” (FEUERBACH 2008b, p. 15). Ao mesmo

tempo reconhecer que “a filosofia hegeliana é o último lugar de refúgio, o último

suporte racional da teologia” (Ibidem, p. 15). A negação da teologia chegou no

seu último estágio e para o lugar dela proclama uma filosofia que considere o

ser humano concreto e real. Quais seriam os estágios até se chegar na filosofia

hegeliana? “Espinosa é o verdadeiro criador da moderna filosofia especulativa;

Schelling (1775-1854) é o seu restaurador e Hegel levou-a ao pleno

desenvolvimento” (Ibidem, p. 01). Em Espinosa a substância infinita é a

natureza – a substância tem infinitos atributos, pode-se dizer ainda que “tudo é

infinito”. Para Schelling o finito subsiste como finito para se adequar ao infinito

e se unir ao infinito que é lançado em direção ao infinito sem nunca conseguir

alcançá-lo. Para Hegel, ao contrário, o infinito deve anular o finito,

reconhecendo e realizando a sua própria infinitude (ABBAGNANO, 1991, p. 81,

v. IV).

O debate em torno da relação entre o infinito e o finito é uma das

questões centrais no idealismo alemão. É um debate que já vem do século XVII

e está claramente exposto na Ética de Espinosa. Na primeira parte, ao se

referir a Deus como natureza. Nas definições iniciais, Espinosa primeiro define

o finito como “aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma

51 Superstição entendida por Espinosa é não conhecer Deus, o ser humano e nem conhecer o conhecer.

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natureza” 52 , por exemplo, modos (pensamento e extensão) – que são

singulares e são atributos divinos. O que é deus para Espinosa? “Compreende

um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância eterna e infinita”53. No

cristianismo deus não é natureza, mas é criador. Como criador, não permanece

nos efeitos do que cria. A base da filosofia espinosana combate a filosofia

platônica (o real como abstração) e a filosofia advinda do cristianismo com a

ideia da substância única. Também combate a concepção de Renè Descartes

de uma substância dividida e a concepção que se deve controlar a natureza –

no lugar do controle instiga conhecer a natureza.

O ser humano é um ser natural, real e sensível. Portanto, não pode ser

considerado só pensamento – sua totalidade é o corpo. Mas aqui a noção de

corpo trata da concepção monista e não a tradição dualista que vem desde

Platão, passa por Descartes e se refugia no sistema filosófico de Hegel; trata-

se de conceber o corpo na sua unidade indissociável, ou melhor, o corpo

constitui-se consciência e matéria. Citamos um trecho deveras extenso, mas

vale a pena sua precisão sobre esta questão:

A unidade do pensamento e do ser só tem sentido e verdade, se o homem se conceber como o princípio, o sujeito desta unidade. Só um ser real conhece coisas reais; só onde o pensar não se toma como sujeito para si mesmo, mas predicado de um ser real, é que o pensamento não está também separado do ser. A unidade do pensar e do ser não é, pois, uma unidade formal de modo que ao pensar em si e para si se acrescente o ser como uma determinidade; depende somente do objeto, do conteúdo do pensamento. Daí se segue o imperativo categórico seguinte: não queiras ser filósofo na discriminação quanto ao homem; sê apenas um homem que pensa; não penses como pensador, isto é, numa faculdade arrancada à totalidade do ser humano real e para si isolada; pensa como ser vivo e real, exposto às vagas vivificantes e refrescantes do oceano do mundo; pensa na existência, no mundo como membro do mundo, e não no vazio da abstração como uma mônada isolada, como monarca absoluto, como um deus indiferente e exterior ao mundo – podes, depois, estar certo de que os teus pensamentos são unidades de ser e de pensar (FEUERBACH, 2008, p. 69).

Os comentadores de Feuerbach, que geralmente são de base

marxista, seguem as interpretações de F. Engels (ENGELS, 1977). A crítica,

com fundamento, é a de que Feuerbach não teria contemplado na sua filosofia

52 Espinosa, Ética, I Parte, definição 2. 53 Ibidem, I Parte, definição, 6.

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a condição humana nas suas determinações reais. De fato, não se atém às

determinações sociais a partir da perspectiva de uma sociedade industrial e

toda sua estrutura social e política. Entendemos que a crítica marxista

reconhece esta impossibilidade, pois as filosofias se desenvolvem sob

determinadas condições de cada época. Entretanto, guardada as diferenças de

cada época, Espinosa primeiro e Feuerbach em segundo momento, têm suas

filosofias demandadas pela realidade da época, ou seja, caracterizada pelo

predomínio das instituições religiosas. Claro que Feuerbach está num momento

onde já deveria levar em consideração as consequências da Revolução

Francesa na Europa Ocidental. Para que possamos sustentar esta

argumentação precisamos continuar na citação:

Como é que o pensamento, enquanto atividade de um ser real, não deverá captar as coisas e os seres reais? Só quando se separa o pensamento do homem e se fixa para si mesmo é que surgem as questões penosas, estéreis e, deste ponto de vista, insolúveis: como é que o pensamento acede ao ser e ao objeto? Com efeito, fixado para si mesmo, isto é, posto fora do homem, o pensar encontra-se fora de toda a conexão e relação com o mundo. Elevas-te ao objeto só quando te baixas, até fazeres de ti próprio um objeto de outro. Só pensas porque os teus próprios pensamentos podem ser pensados, e eles só são verdadeiros se superar em aprovada objetividade, se o outro, fora de ti, para o qual eles são objeto, também os reconhecer. Vês só enquanto tu próprio és um ser visível, só sentes, enquanto és igualmente um ser tangível. O mundo encontra-se aberto só para uma cabeça aberta, e as aberturas da cabeça são unicamente os sentidos. Mas o pensamento isolado para si mesmo, em si fechado, o pensamento sem sentidos, sem o homem, fora do homem, é o sujeito absoluto, que não pode nem deve ser o objeto para outrem e, por isso mesmo, não obstante todos os seus esforços, não encontra agora nem nunca uma passagem para o objeto, para o ser; como também uma cabeça, que está separada do tronco, é incapaz de encontrar uma passagem para a apreensão de um objeto, porque lhe faltam os meios de apreensão (FEUERBACH, p. 69-70, § 51).

Feuerbach destaca que “o método da crítica reformadora da filosofia

especulativa em geral” não tem qualquer diferença do método aplicado “da

filosofia da religião”. O que propõe enquanto método para superar a filosofia

especulativa? “Fazer sempre do predicado o sujeito e fazer do sujeito o objeto

e princípio, ou seja, é preciso apenas “inverter a filosofia especulativa de

maneira a termos a verdade desvelada, a verdade pura e nua” (FEUERBACH,

2008b, p. 02). É esta a ruptura que Feuerbach opera na relação com a filosofia

especulativa e a filosofia hegeliana. Para Hegel, para deixar isto bem claro: “o

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pensamento é o ser; – o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado”

(FEUERBACH, 2008a, p. 15).

Para entendermos melhor a relação entre sujeito e predicado devemos

entender primeiro o que o nosso autor define como consciência. Pergunta ele:

“qual a diferença essencial entre o homem e o animal?”. Sempre se responde

que é a consciência. Os animais também têm percepções e sensações que

determinam que também tenham o seu grau de consciência. Mas no sentido

rigoroso há de se ter uma explicação melhor. Para Feuerbach consiste em que

a consciência somente existe “quando para um ser, é objeto o seu gênero, a

sua quididade”. (FEUERBACH, 2007, p. 35). O animal tem esta noção de si

mesmo, mas não a tem como gênero. Esta é uma característica essencial do

ser humano. Como se consegue desenvolver esta noção de gênero? O ser

humano consegue se colocar ao mesmo tempo no lugar de “eu e tu” porque

esta noção é gênero. Contudo, o ser humano nada mais é do que objeto e

toma consciência através do objeto. “A consciência do objeto é a consciência

que o homem tem de si mesmo” (Ibidem, p. 38) e, por essa razão, Feuerbach

considera que a consciência é “ser-objeto-de-si-mesmo”.

O ser, com que a filosofia começa, não se pode separar da consciência nem a consciência se pode separar do ser. Assim como a realidade da sensação é a qualidade e, inversamente, a sensação é a realidade da qualidade, assim também o ser é a realidade da consciência, mas, inversamente, a consciência é a realidade do ser–só a consciência é o ser efetivamente real. A unidade real de espírito e natureza é tão-só a consciência (FEUERBACH, 2008b).

A filosofia para Feuerbach inicia com o ser, mas um ser concreto e não

abstrato. A nova filosofia que é proposta por Feuerbach é uma filosofia da

natureza no seu sentido imanente iniciado por Espinosa. Portanto, não é uma

filosofia que se baseia na natureza como algo inferior, cópia, simulacro (como

Platão), nem reduzido ao eu cogito (Descartes) ou eu entendimento (Kant) e

nem abstrato (Hegel). A natureza assume relevância enquanto assume

importância no homem em si e dentro de sua realidade. A inversão que

Feuerbach faz da filosofia hegeliana coloca-se na tradição materialista em

razão de colocar no centro o ser humano e sua organização social. Hegel

construiu sua teoria sobre a relação do Senhor e do Escravo, por exemplo, sem

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considerar a condição real de exploração em que vivia a sociedade. Sim, tratou

na sua filosofia do aspecto da dominação, mas não tratou das condições reais

de exploração.

E a dialética de Feuerbach é idealista ou materialista? Ele responde

dizendo que não é uma nem outra. Mais importante é reconduzir a essência do

ser humano “à sociedade, ao ser social, comunitas”. Contudo, veremos mais

adiante que a filosofia feuerbachiana tentou converter a teologia hegeliana em

uma antropologia.

Mas a questão que nos interessa aqui e que é destacada por

Feuerbach é que o ser humano projeta em seus deuses os seus sentimentos

mais elevados, ou seja, o que tem de melhor existe em Deus. Deus é tudo o

que o ser humano gostaria de ser, mas não é. Deus torna-se o receptáculo de

todas as coisas boas do ser humano. O ser humano não consegue conceber

um mundo iniciado, há sempre uma finalidade. Contudo, quando estabelece

um criador e remete todas as finalidades a este, não consegue responder de

onde veio este deus.

Abstrair significa pôr a essência da natureza fora da natureza, a essência do homem fora do homem, a essência do pensamento fora do ato de pensar. Ao fundar todo o seu sistema nestes atos de abstração, a filosofia hegeliana alienou o homem de si mesmo. Sem dúvida, identifica de novo o que separa; mas apenas de um modo que comporta novamente a separação e a mediação. À filosofia hegeliana falta a unidade imediata, a certeza imediata, a verdade imediata (Feuerbach, 2008 a, p. 05).

Para Feuerbach a religião é uma forma infantil da humanidade, mas um

dia o ser humano descobrirá que adorou sua própria essência. A religião

deverá ser substituída por uma moral que valorize a vida comunitária.

O homem singular por si não possui em si a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu (FEUERBACH, 2008, 73).

É na vida comunitária que se dá o diálogo e é ali que se institui a

dialética, a verdadeira dialética.

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“A verdadeira dialética não é um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre eu e tu” (Ibidem, p. 73, parágrafo 62, princípios).

A trajetória do pensamento filosófico de Feuerbach é do idealismo para

o materialismo, é gradativa esta aproximação até deflagrar-se uma ruptura total

com o sistema idealista de Hegel. A perspectiva de Feuerbach, diz ele mesmo,

é materialista – “é base em que descansa o edifício do ser e do saber do

homem, mas não é para mim o que é para o filósofo, para o naturalista no

sentido estrito, o que é forçosamente tem que ser e, além disso, sob o ponto de

vista de sua profissão, isto é, o edifício mesmo” (cit. LLANOS, 1988, p. 105).

Engels aqui faz uma crítica, veremos mais adiante em detalhes, que

Feuerbach não considera que o materialismo também é uma gnosiologia que

tem suas fases de desenvolvimento. Feuerbach aqui não percebe que a

materialidade, da mesma forma, também se reveste de história. Ainda está

preso ao materialismo do século XVIII, que era mecanicista, que não consegue

conceber o mundo em desenvolvimento histórico. A referência deste

materialismo em Feuerbach consistia na compreensão de que o movimento

estava na natureza, mas num movimento circular perfeito, logo nunca se movia

do lugar.

Para Feuerbach, a filosofia hegeliana consiste no ápice da filosofia

idealista. Nada mais restaria para frente, exceto estudar o sistema filosófico

hegeliano. A crítica materialista de Feuerbach é a crítica mais consistente antes

de Marx. Mas a sua crítica é baseada nos preceitos hegelianos, ainda tem

traços da filosofia idealista. Hegel não conseguia se desprender das ideias

religiosas e Feuerbach não conseguia se desprender das ideias metafísicas.

Contudo, a crítica mais contundente, e esta partirá de Marx, é de não ter

percebido a inovação da filosofia hegeliana. Não se deveria tratar Hegel como

um “cachorro morto”. Feuerbach não contempla a dialética hegeliana porque

não lhe passa na cabeça convertê-la em dialética materialista. A compreensão

da materialidade era ainda compreendida como um materialismo metafisico.

Em Hegel, e isso é o que chamamos de inovador, há uma interação dialética

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com os fenômenos da natureza e o esforço de entender suas contradições.

Hegel não se abstém do mundo, há objetividade, há história.

Onde Feuerbach irá fundamentar sua filosofia antropológica? A

impressão que se tem é a de que cai no essencialismo platônico, porque cairá

na abstração quando reivindica o amor universal. Ao mesmo tempo em que

reconhece a concreticidade do ser humano, não o reconhece dentro de uma

história. Considera, dito de outra forma, fora da história e fora de suas

determinações reais. Feuerbach efetuara a crítica da imutabilidade idealista,

mas ele também o é quando vê a situação humana como imutável. A filosofia

antropológica de Feuerbach é uma religião aperfeiçoada, sem precisar da

intermediação dos deuses, agora pode-se fazê-la diretamente entre os seres

humanos que estabelecerão uma religião de fraternidade. É neste sentido que

este filósofo acaba perdendo sua riqueza e se torna, diante de Hegel, menor.

Feuerbach enfatiza que a base de materialismo deveria ser sustentada

pela percepção, a sensibilidade (Sinnlichkeit) e a sensação (Empfindung). O

objeto só é possível de ser dado porque passa pelos sentidos. O verdadeiro é

expresso pelos sentidos. Aqui temos a principal discordância de Marx porque

só os sentidos, fazendo o trabalho de assimilação sem considerar a história e o

movimento capaz de sempre mudar o conteúdo. Feuerbach desconsidera

completamente a importância do trabalho que fora considerado por Hegel. É

pelo trabalho que se pode analisar as relações, as mediações e conseguir a

análise a partir de uma totalidade. Feuerbach não! O ser humano era visto

isoladamente – o materialismo perceptivo, se podemos assim chamar, só lhe

possibilitava ver o homem sem as contradições da vida social.

Mesmo Feuerbach tendo compreendido “o núcleo racional da dialética”

como um todo não percebeu o aspecto positivo que a filosofia hegeliana

carregava como também não se atrevia a aplicá-la no materialismo. Não

compreendia basicamente as contradições nos fenômenos da natureza

(LLANOS, 1988, p. 108) e defendia tanto uma filosofia do real como do homem

real e concreto, mas não aplicava a dialética, por exemplo, para compreender o

ser humano no processo histórico ou nas suas condições reais da sua vida

social. Engels, veremos isto com mais atenção no próximo capítulo, afirma que

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Feuerbach pretendia aperfeiçoar a filosofia antropológica como religião,

pretendia acabar com a religião. É claro que Feuerbach é um realista, defende

esta perspectiva no pensamento – mesmo assim – não expressa o que o

homem vive na realidade. Engels dirá que Feuerbach é o último representante

da filosofia clássica alemã.

A filosofia feuerbachiana resgatou a perspectiva do ser humano real e

concreto. Vigotski também se atém a observar o ser humano nas suas

condições reais e concretas, mas é interessante verificar que no último

capítudo de Pensamento e Linguagem ao tratar de um tema tão inconcluso na

teoria de Vigotski, a consciência, apresenta uma citação curta, mas significativa

de Feuerbach:

“La palabra representa en la conciencia, en términos de Feuerbach, lo que es absolutamente imposible para una persona y possible para dos” (Ibidem, p. 346).

Para Vigotski o pensamento e a linguagem são a chave para

compreender a consciência e que se estabelece essencialmente nas relações

humanas. Poderia aludir um outro texto, mas aqui Vigotski não traz o caráter

essencialista de Feuerbach, mas resgata o materialismo antropológico como

MARX & ENGELS fizeram.

Feuerbach permanece hegeliano porque reconhece a unidade da

natureza e não nega os estágios discretos dentro desta unidade. Afirma ainda

que o ser humano se distingue de outros animais só pela consciência; o ser

humano é um animal, mas dotado de consciência. Este é denominado de

materialismo antropológico que foi assumido por MARX & ENGELS com apoio

da lógica ontológica de Hegel – no pensamento de que as mudanças

qualitativas não essenciais podem transformar-se em mudanças qualitativas

essenciais. A citação leva-nos também a concluir que Vigotski está utilizando

uma expressão de Feuerbach para fortalecer a relação da consciência, do

pensamento e da linguagem fundamentada nas relações sociais históricas.

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Capítulo 10: Dialética Marxiana

Para NEWMAN & HOLZMAN (2002) Vigotski foi “um metodólogo

marxista” preocupado em “descobrir o que é a psicologia” considerando as

diferentes abordagens existentes em sua época (Ibidem, p. 23). Se antes de

Marx a filosofia predominante era o idealismo é com ele que a filosofia também

ganha uma nova perspectiva para entender a realidade: o materialismo

histórico dialético.

O materialismo é considerado pouco sério e quando aparece cria

alvoroço. Para depreciá-lo afirma-se ser uma degradação humana porque se

sustenta na afirmação de que o ser humano se reduz à mera imanência,

matéria, natureza e corporeidade. É de se perguntar se o materialismo tem

uma função histórica, um potencial crítico ou um aspecto reprimido da

ilustração. Ouvimos com frequência que o materialista é aquele que tem

interesses cegos ou que utiliza técnicas para o bem próprio sem pensar em

mais ninguém. O idealista, pelo contrário, é identificado como aquele que está

voltado para ideias positivas sobre o futuro. O próprio termo materialismo leva-

nos a um termo bastante controverso: matéria. Alguns tendiam a explicar que o

todo é matéria e movimento. Outra explicação para matéria é tudo que está

fora da consciência em movimento e que a consciência é a matéria mais

evoluída. São afirmações polêmicas, mas a verdade é que o materialismo é a

negação da própria filosofia. Este aspecto nos remete ao materialismo “vulgar”

que não pode desejar-se pelo mero fracasso do pensamento, pois tem algo

inextinguivelmente vulgar no ser humano mesmo: necessidades cotidianas,

enfermidades, velhice e morte, coisas todas absurdas. É neste campo de

absurdidade que também nasce a indignação.

Temos que considerar a problemática do social e do histórico do

materialismo. ALVIM & RIBEIRO (1975) sustentam que o materialismo do

século XVIII nasceu dentro do movimento da ilustração, quando surgiram

várias matrizes em defesa de uma nova classe social: a burguesia. Neste

movimento, por exemplo, a felicidade não é considerada como mera

interioridade, mas como sensível e material.

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Ao que se refere ao materialismo moderno, partindo de Hobbes (1588-

1679) e Locke (1632-1704), desenvolveu um grande papel na pré-histórica da

Revolução Francesa, pois apoiava-se no conceito de matéria e movimento sem

mais a influência filosófica aristotélica. Também foi sob a influência da física

que o movimento passou a significar mudança de lugar quantitativamente

determinado. Reduziu-se ao quantitativo toda riqueza qualitativa do mundo

objetivo, ou seja, a realidade e a quantificação se identificavam. O materialismo

influenciado pela ilustração significa estar a serviço do interesse de uma classe

e foi uma concepção que inovou os métodos de observação e explicação da

natureza.

Quando a burguesia ascendeu ao poder tornou-se conservadora e

carrega, desde então, a dubiedade. Quando lhe interessa cientificamente é

materialista, quando lhe interessa politicamente é idealista (é por essa razão

que a ideologia é sempre ideologia burguesa na visão de Marx & Engels). É

necessário deixar claro que a emancipação de toda uma classe estava

necessariamente unida com a repulsa do pensamento puramente conceitual,

como era dominado pelos escolásticos. Aqui está a origem do empirismo, cuja

atitude e preocupação predominante é a regulação do pensamento. O novo

pensamento burguês é prático.

A maioria dos materialistas nivelou a diferença qualitativa entre o

trabalho conceitual e a percepção sensível, mas outros materialistas

historicamente posteriores, como Marx & Engels, impugnaram isso. Havia de

se chegar a um certo ponto no qual o materialismo deveria explicar como a

matéria chega a pensar. Claro, algumas frases absurdas foram ditas pelos

materialistas tais como, por exemplo, “o pensamento se relaciona com o

cérebro como a bílis com o fígado...”.

A questão fundamental para os materialistas é explicar o que é

natureza. É mais fácil começar afirmando o que não pode reduzir-se como

significado: necessidades sensíveis, a generalização de que tudo é natureza, é

tudo que está fora de nós e que nos condiciona de fora para dentro ou o

gemido da criatura oprimida. Temos dificuldade de dar uma explicação sobre a

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natureza e isso se deve ao que fora muito acentuado pela Escola de Frankfurt,

ou seja, podemos entender, primeiro, que a natureza é vista como limitante

para nós, e, segundo, um desejo de querer libertar a natureza como objeto de

nossa vontade insaciável. São, portanto, duas interpretações sobre a natureza.

Contudo, há um entrelaçamento da espécie com a natureza que, uma vez

deixada no seu curso livre, pode também ser muito ameaçadora para a

civilização. O materialismo histórico dialético encara o idealismo e a concepção

burguesa que entende o mundo objetivo só como uma forma baixa do objeto

observável e dominável, com o qual adota uma atitude contemplativa a respeito

do mundo. Na concepção materialista marxiana assume-se a atividade

humana, a práxis, as lutas sociais como riqueza histórica. O materialismo

histórico dialético se posiciona mais além do dado e o ser humano é poder da

natureza que se contrapõe a outras forças materiais naturais. O aspecto

decisivo em Marx é que ele antecipa idealmente o que depois engendra

realmente. A matéria só existe em suas formas qualitativamente diferentes e

não aparece a matéria como substrato unitário e indiferenciado no que os

homens estiveram imersos passivamente – e a dialética tampouco está

encerrada no objeto como um sarcófago; ela só é real na medida em que os

seres humanos – seres corpóreos, pacientes e combativos – entram como

sujeitos no fundo material do ser.

Natureza e história em Marx não se identificam e tampouco estão

justapostas sem mediação alguma. Por um lado, Marx contesta as hipostasias

do antigo materialismo e supera de vez a determinação da natureza em Hegel,

reduzida à “exterioridade”, mas sem rechaçar por completo ambas as teorias.

Marx foi um estudioso da dialética hegeliana e contrapôs-se

radicalmente a ela sem desconsiderar sua lógica e seu método. Marx não faz

muitas referências sobre o método dialético, encontramos explicitamente uma

obra sobre esta temática escrita pelo seu companheiro de luta, Engels:

Dialética da Natureza.

No segundo posfácio d’O Capital, temos uma breve análise sobre as

críticas recebidas e provenientes de diferentes lugares onde esta obra foi

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publicada; Marx faz sua defesa e ao mesmo tempo expõe os parâmetros do

Método Dialético, destaca que O Capital “foi pouco compreendido” e faz um

balanço das argumentações de seus críticos: i) “trata-se de metafísica”,

enfatiza Eugen De Roberty, discípulo de Auguste Compte; ii) “é método

dedutivo de toda escola inglesa”, acusa o Sr. Sieber; iii) “é método analítico”,

diz Sr. M. Block; iv) “sofística hegeliana”, identificam os resenhistas alemães;

v) “método de investigação estritamente realista”, nomeia um jornal de São

Petersburgo (MARX, 2013, p. 88). Mas um economista russo, Ilarión

Ignátievich Kaufmann, professor da Universidade de São Petersburgo que

melhor compreendeu o método na visão de Marx, resume-o num trecho o que

se tornou nos dias de hoje uma referência estruturante para nossas

pesquisas:

“(...) dever-se-ia distinguir o método de exposição segundo sua forma do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (Ibidem, p. 90).

O método dialético fundamentado por Marx é o oposto de Hegel porque

o ideal não é mais uma mística, mas “o ideal é material, transposto e

traduzido na cabeça do homem” (Ibidem, p. 90). Contudo, todo O Capital é a

aplicação do Método Dialético e quando encontramos a exposição da primeira

parte sobre a mercadoria e as outras partes como investigação do modo de

produção capitalista, identificamos “a mercadoria” como aquela unidade de

síntese que só pode ser encontrada diante de um processo detalhado de

análise, verificação do seu processo de desenvolvimento e seus nexos

internos54.

54KOSIK traz a concepção de método dialético (fazendo referência ao exposto por Karl Marx no

segundo posfácio d’O Capital) destacando, primeiro, o método de investigação que tem “três

graus” a serem considerados: i) detalhada apropriação da matéria, pleno domínio do material

igualmente com seus detalhes históricos; ii) análise do desenvolvimento de cada forma

material; iii) verificação das determinações da unidade das várias formas de desenvolvimento;

segundo, o método de exposição é apresentação do “desenvolvimento da coisa como

transformação necessária do abstrato em concreto” (KOSIK, 2011; Pág. 39).

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Marx também retrata explicitamente sobre o método dialético na

terceira parte de sua Introdução à Crítica da Economia Política – “O Método

da Economia Política”. Cita os economistas do século XVII que sempre

tendiam a iniciar por “uma totalidade viva”, ou seja, faziam questão de fazer

relações desde o mais simples até chegar às mais complexas (do inferior ao

superior). “Este é um método científico correto” afirma Marx. E segue:

“(...) o concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude da apresentação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” (Ibidem, p. 187).

O acesso ao concreto se dá pela mediação do abstrato, ou seja, para

se chegar ao concreto é preciso considerar muitos aspectos que explicam a

realidade, e, este caminho, só o pensamento pode fazer. José Paulo Neto,

numa palestra, tenta resumir a teoria marxiana partindo de uma definição

resumidíssima: “é a reprodução ideal do movimento do objeto real”. Sim,

entendemos que esta é uma definição feliz. Reprodução da ideia não como um

espelho, como uma cópia, mas como exercício de encontrar as determinações

e as relações do objeto real. E é a partir destas determinações que é possível

encontrar as categorias, ou seja, não são definidas aprioristicamente. É uma

perspectiva realista que está bem demarcada na epistemologia marxiana.

O livro Miséria da Filosofia é uma resposta à Filosofia da Miséria de

Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), que destaca a total falta de

compreensão, na visão de Marx, da dialética hegeliana. O que nos interessa

aqui é compreender como Marx utiliza o método absoluto hegeliano contra

seus opositores. Em nenhuma outra obra de Marx o método dialético é tão

longamente apresentado. Numa passagem, de forma mais ampla e até irônica,

Marx critica o método dialético empreendido por Proudhon e faz a seguinte

declaração:

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“Se o inglês transforma os homens em chapéus, o alemão transforma os chapéus em ideias. O inglês é Ricardo, rico banqueiro e distinto economista; o alemão é Hegel, simples professor de filosofia da Universidade de Berlim”(MARX, 2003, p.93).

Marx constata na Inglaterra o avanço inicial da industrialização e a

ampla disponibilidade de mão de obra para o trabalho nas indústrias. No início, o

capitalismo apresenta-se de forma muito desorganizada e com o surgimento da

pobreza extrema. Os trabalhadores produzem chapéus e os chapéus assumem

maior importância do que os próprios trabalhadores. O trabalho vira mercadoria. O

trabalhador vira objeto, cujo valor está abaixo da mercadoria. É este o sentido da

primeira frase. Por outro lado, a filosofia alemã nem sequer se preocupa com o

real, a realidade humana é assimilada não para fazer alguma diferença no mundo,

mas para alimentar o pensamento abstrato sobre a realidade. Os economistas,

num determinado momento, denunciam as contradições do modo de produção

capitalista, mas denunciam enquanto ainda um processo de desestabilização das

relações de classe e, quando isto é definido, a crítica irá desaparecer por parte

dos teóricos burgueses. A resposta de Marx para Proudhon tem este sentido e

expõe sete observações:

i) Marx acusa Proudhon de simplesmente considerar as categorias apenas

como expressão teórica ou como razão pura sem contextualização com

as relações reais em geral, e como o movimento histórico das relações

de produção em particular. Não compreendeu o movimento dialético da

tradição grega tese-antítese-síntese, ou então, não estabelece o objeto

para opor-se e nem sujeito para composição e dá “cambalhotas” para

tentar garantir “posição-oposição-composição” (Ibidem, p. 95). Isto na

filosofia hegeliana está colocada de outra forma: afirmação, negação,

negação-negação. O método que Proudhon não conhece o método

absoluto de Hegel. Este é claramente explicitado por Max, vejamos:

“Que é então método absoluto? A abstração do movimento. Que é abstração do movimento? O movimento no estado abstrato. Que é o movimento no estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Em se pôr, em se opor, em se compor, em se formular como tese, antítese, síntese, ou então, em afirmar, em se negar, em negar a sua negação.

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Como faz a razão para se afirmar, para se apresentar como categoria determinada? É essa a tarefa própria da razão e dos seus apologistas. Mas, uma vez que conseguiu afirmar-se como tese, essa tese, esse pensamento, oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o não. A luta de classes reúne dois elementos antagônicos, encerrados na antítese, constitui o movimento dialético. Tornando-se o sim em não, o não tornando-se sim, o sim tornando-se ao mesmo tempo sim e não, o não tornando-se ao mesmo tempo não e sim, os contrários equilibram-se, neutralizam-se, paralisam-se. A fusão desses dois pensamentos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Esse pensamento novo desenvolve-se ainda em dois pensamentos contraditórios, que se fundem por sua vez numa nova síntese. Deste trabalho de geração nasce um grupo de pensamentos. Esse grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo contraditório. Desses dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo de pensamentos, que é a síntese. Da mesma maneira que do movimento dialético das categorias simples nasce o grupo, do movimento dialético dos grupos nasce a série, e do movimento dialético das séries nasce todo o sistema” (Ibidem, p. 96-97).

A partir deste método absoluto de Hegel se pretende “construir o

mundo pelo movimento do pensamento” e não tem implicações na realidade,

por mais que a partir dela se refira para construir seu sistema filosófico.

ii) Proudhon só enxerga a impessoalidade da humanidade. Vê o que o ser

humano é capaz, mas numa perspectiva determinista e não relaciona

que os seres humanos são responsáveis pela produção. As categorias

surgem ou são apreendidas conhecendo o real – “são produtos

históricos e transitórios” na visão de Marx. O que tem de imutável é só a

certeza de que o movimento existe;

iii) Sobre as relações de produção, Proudhon não diferencia na história

como são engendradas, ou seja, não conclui a análise dialética e

simplesmente permanece em dois movimentos iniciais: tese e antítese;

iv) Não analisa os aspectos contraditórios do sistema econômico, mas

considera que tudo tem dois lados: o bom e o mau;

v) Não há dialética em Proudhon e não chega perto da dialética hegeliana.

Não analisa internamente o modo de produção capitalista e suas

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contradições. Constata os problemas, analisa-os, mas não faz análise

histórica, ou melhor, não contextualiza historicamente levando em conta

a produção e as relações de produção. Os seres humanos são sujeitos

de sua própria história, são “autores do seu próprio drama”, mas

Proudhon abstém-se de analisar os seres humanos nas suas condições

materiais e as causas destas relações de produção que estabelece as

condições materiais numa sociedade que alcança os modos de

produção capitalista;

vi) O que Proudhon desenvolve para compreender a realidade não alcança

a síntese “a antítese é um antídoto”, “a tese torna-se hipótese” (Ibidem,

105);

vii) O cerne equivocado da análise de Proudhon nasce na “escola

filantrópica” que “é a escola humanitária aperfeiçoada” (Ibidem, p. 110).

“A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Nega a necessidade do antagonismo; quer transformar todos os homens em burgueses; quer realizar a teoria na medida em que esta se distingue da prática, e não encerra antagonismo. Não é necessário dizer que, na teoria, é fácil abstrair das contradições que a cada instante se encontram na realidade. Essa teoria transformar-se-ia então na realidade idealizada. Os filantropos querem, portanto, conservar as categorias que exprimem as relações burguesas, sem o antagonismo que as constitui e que não pode ser separado delas. Pensam que combatem seriamente a prática burguesa e são mais burgueses que os outros” (Ibidem, 110-111).

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2009) ou então

conhecidos como Manuscritos de Paris, MARX analisa o trabalho na sociedade

moderna, que se constitui como alienação do ser humano. Observa,

especificamente, o modo de produção capitalista e como consequência a

divisão social do trabalho. O interesse do ser humano não é realizado pelo

trabalho, o trabalho transformou-se em mercadoria. Tudo está submetido às

leis da mercadoria e a finalidade do trabalho social é determinada por elas.

Ora, nestas condições, o ser humano fica subordinado às relações materiais de

produção.

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Qual é o sentido da vida com esta natureza de trabalho? É com esta

pergunta que o marxismo abandona os preceitos dos economistas nacionais.

Não são os seres humanos que estão conduzindo suas vidas, são conduzidos!

O modo de produção capitalista caracteriza-se pela divisão social do trabalho e

por produtos utilitários (valor de uso) que se transformam em mercadoria (valor

de troca). São assim transformados em mercadoria porque são produtos de

trabalho de pessoas isoladas – independentes. O contato entre as produções

independentes somente ocorre no momento da troca, ou seja, no momento

inicial da produção ela é independente e só por meio da troca dos produtos

aparece diretamente o caráter social. Isto significa que o trabalho não aparece

como relações sociais, mas só se efetiva enquanto relações materiais.

A teoria marxista, portanto, não reside – como a economia fez no

tempo de Marx (e continua fazendo isto até hoje porque esta é a essência do

modo de produção capitalista) – em apenas permanecer na naturalização das

relações de trabalho como coisas, mas como relações existenciais entre

pessoas. As relações econômicas só aparecem como objetivas enquanto

produção de mercadorias, e, quando se investiga mais atentamente o real,

pode-se verificar que sua objetividade é meramente aparente e que o modo de

produção capitalista não é uma consequência do acaso, é produto dos seres

humanos reais e concretos. A investigação leva à conclusão que o modo de

produção capitalista também nega completamente a generidade humana.

Quatro questões são determinantes nestes manuscritos e que

podemos assim declarar resumidamente: i) O trabalhador produz um objeto,

mas este toma o seu lugar; ii) O trabalho é exterior ao trabalhador e, por isso,

não pertence ao seu ser, pertence a outro; iii) O trabalhador está alienado do

seu ser genérico – quer dizer que o trabalhador está alienado do outro; iv) O

trabalhador está alienado de si mesmo – de sua própria essência humana

(MARX, 2009, ps. 81-83).

Aqui tocamos nas origens da dialética marxista. A prática social do ser

humano incorpora a negatividade; por exemplo, não se pode negar como fato o

salário, mas é preciso entender que significa uma restrição ao trabalho livre; ou

então, a propriedade privada é inegavelmente um fato, mas é a negação da

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propriedade coletiva. Marx entende que a negação do modo de produção

capitalista é a alienação e a negação da alienação a abolição do trabalho

alienado. O fim em si não é a abolição da propriedade privada, mas a abolição

da alienação.

N’A Ideologia Alemã encontramos um fragmento (I. Feuerbach

Fragmento 2 – De junho a meados de julho de 1846), talvez um dos mais

importantes nessa obra porque resumidamente traz três temas pertinentes na

filosofia marxista: ideologia, história e método (MARX & ENGELS, p. 207).

Marx defende que são os seres humanos produtores de suas

representações, de suas ideias, mas seres humanos que são reais e ativos e

não imaginados. “A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser

consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (Ibidem, p. 94)

e, no caso da ideologia, os homens não podem ser outras coisas senão o que

lhes aparece nas relações materiais. Evidentemente que para o investigador

das questões sociais não se pode partir do que supostamente se imagina, mas

deve-se partir do homem “’de carne e osso” e “a partir de seus processos de

vida real”. Portanto, “é totalmente contrário da filosofia alemã, que desce do

céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu” ou então, dito de forma mais precisa:

“não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a

consciência” (MARX, 2015 b, p. 49).

Analisar as questões sociais não significa estar “isento de

pressupostos”, mas são pressupostos reais de seres humanos que estão

determinados por relações e que podem ser “empiricamente observáveis em

determinadas condições”. Considerado desta forma, a história não é a

justaposição de “fatos mortos” como fazem os “empiristas abstratos” ou então

uma “ação imaginária” como fazem os idealistas. Separar os fatos da vida real

é simplesmente cair em abstrações sem sentido.

“Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar” (Ibidem, p. 95).

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Em O Capital de Marx, a dialética é movimento de sua análise, ou seja,

está presente do início ao fim. Como já nos referimos, no segundo posfácio,

Marx explicita o método dialético, um dos poucos momentos que o faz

diretamente. Sem a compreensão da dialética que está n’O Capital, suas leis,

suas categorias tornam-se incompreensíveis. Logo no primeiro capítulo d’O

Capital, Marx trata da mercadoria e é neste momento, depois de tanta

investigação, que faz a exposição.

Marx faz a seguinte citação: “A riqueza das sociedades onde reina o

modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de

mercadorias’ ” (MARX, O Capital - Crítica da Economia do Capital, 2013), ou

seja, como se fossem isoladas, independentes, ou como não tivessem relação

alguma. Ele continua: a mercadoria tem duas características básicas: i) “a

utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso” (Ibidem, 114) que poderemos

ainda expressar de outra maneira, é a capacidade de satisfazer necessidades;

ii) e, o valor de troca, capacidade de comprar outras mercadorias. A

mercadoria, entendemos então, é a unidade entre o valor de uso e o valor de

troca (M=Vu/Vt).

Não vamos neste momento investigar o valor de uso, mas precisamos

analisar mais de perto o significado do valor de troca na mercadoria. Marx

afirma que “o valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a

proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso

de outro tipo” (Ibidem, p. 114). Portanto, uma mercadoria não tem um valor de

troca, tem vários valores de troca. Como poderíamos representar isso? Da

seguinte forma: 1kg de trigo = 1Kg graxa, 10 m seda, 5 gr ouro.

Podemos afirmar então que uma mercadoria tem tantos valores assim

como existem mercadorias. Esta característica quantitativa é factível de muitas

mudanças que dependem do lugar e do tempo. O valor de troca tem um grau

de variabilidade, ou seja, 1 Kg de trigo não equivale somente para 1 Kg de

graxa, mas 10 m de seda ou 5 gr de ouro. Então, além da variabilidade, o valor

de troca também tem uma característica relativa, isto porque depende de

muitos fatores para se determinar. Ora, se o valor de troca tem este grau de

variabilidade, Marx supõe, num primeiro momento, o seu caráter casual. Na

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investigação, Marx apresenta a primeira síntese: “o valor de troca parece algo

acidental e puramente relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à

mercadoria; portanto, uma contradictio in adjeto [contradição nos próprios

termos]” (Ibidem, p. 114). Isto quer dizer que parece contrassenso que no

interior da mercadoria possamos encontrar algum valor. Se o valor de troca tem

este caráter relativo não há como encontrá-lo numa mercadoria, mas nas

relações entre as mercadorias. Além disso, se o valor de troca fosse casual,

não haveria necessidade de se fazer uma investigação. O que Marx chama de

“contradictio in adjecto” não é uma percepção imediata, um nível aparencial,

uma percepção fenomênica que está apenas no nível inicial de investigação,

mas os fundamentos necessários para revelar o objeto.

A aparente casualidade percebida no valor de troca está fundamentada

na variabilidade especialmente no tempo e no espaço. Entretanto, uma

alternativa seria, num primeiro momento, considerar não no tempo e no

espaço, para verificar se esta casualidade é superada, ou se é possível

encontrar uma explicação científica. Marx busca uma regularidade no valor de

troca. Apresentamos anteriormente, com as determinações do tempo e do

espaço, que uma mercadoria não tem um valor de troca, mas vários valores de

troca (1 Kg de trigo = 1Kg graxa, 10 m seda, 5 gr ouro). No lugar de um valor

de troca colocamos outro e o resultado é o mesmo e concluímos que não há

casualidade entre os valores de troca, mas que são determinados (1 Kg de

graxa = 1 Kg de trigo, 10 m seda, 5 gr ouro).

No mercado, estes valores de troca são todos iguais, ou melhor, os

valores de trocas que são diferentes entre si são iguais. Aqui, Marx encontrou

na investigação a regularidade que precisava para considerar ou para iniciar de

fato a investigação científica. O que determina que todas as quantidades

apresentadas tenham o mesmo valor de troca de 1 Kg de trigo? Há alguma

coisa no interior do 1 Kg de trigo responsável por esta determinação. Para

Marx, é o valor. O valor de troca é o que expressa uma mercadoria, apresenta-

se com suas características fenomênicas do conteúdo da mercadoria.

Encontramos aqui a aplicação do método dialético de Marx com todas as suas

qualidades, começando pelo mais simples e indo para questões mais

complexas. Aqui, entendemos claramente que a teoria marxiana se constitui na

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reprodução ideal do movimento do objeto real. É a partir do objeto real,

observando e analisando suas determinações, que se pode também

compreender que “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas

determinações”.

Marx sempre estava se referindo ao “valor de troca” como uma

característica quantitativa, mas ele identifica “valor” como uma característica

qualitativa. Esta qualidade consiste em intercambiar as mercadorias entre elas.

O valor não aparece, o que aparece é o valor de troca, que é o fenômeno, o

que aparece imediatamente. O valor é algo não naturalizado, porque a

possibilidade de igualar 1 Kg de trigo a 10 m de seda só se efetiva pela

propriedade-valor. É a sociedade mercantilista que estabelece o valor das

coisas. Dissemos sociedade mercantilista porque assim se estruturava

socialmente, mas não significa que seja uma característica eterna. Estamos

nos referindo às bases históricas no período de Marx. O valor tem uma

qualidade histórica-social. O valor é como se fosse uma marca no valor de uso,

é invisível, mas determinantemente presente. Compreendemos assim que valor

não tem uma notoriedade física, mas é real. É real e histórica.

Como a sociedade, que, insistimos e destacamos, está dentro de uma

determinação histórica, coloca esta marca “valor”? Ao estabelecer que 1 kg de

farinha é igual a 1 kg de graxa significa que o trabalho utilizado para cada valor

de uso é igual. Claro que para a produção de 1 kg de farinha e 1 kg de graxa

exigem-se técnicas produtivas diferentes. É o mercado que estabelece esta

igualdade e subtrai estas diferenças. Da mesma forma que foi defendido por

Marx a unidade do valor de uso e do valor de troca na mercadoria, a unidade

do trabalho concreto e do trabalho abstrato é o trabalho mercantil (Trabalho

humano = Tc – trabalho concreto/Ta Trabalho abstrato). É trabalho concreto

porque produz algo e se caracteriza pelas propriedades específicas (valor de

uso). É trabalho abstrato porque é trabalho humano independentemente de

suas diferenças (produz valor). Devemos enfatizar que para Marx o trabalho

abstrato é real e não simples pensamento.

CARONE (1984) resume bem o método que Marx utiliza para desvelar

o concreto partindo do que é aparente, fenomênico:

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“(...) a distinção entre método de pesquisa e método de exposição, ficou-nos claro que sem pesquisa empírica não há exposição teórica, dado que a exposição não é e não pode ser mera construção a priori. É preciso, agora, acrescentar: a pesquisa empírica não é autossuficiente, do ponto de vista da dialética de Marx. Os dados empíricos, por mais rigorosamente que sejam coletados, permanecem presos às ilusões e inversões ideológicas das representações imediatas dos objetos sociais. Eles necessitam, portanto, ser interpretados e convertidos pela mediação teórica, ou seja, os dados imediatos devem ser mediatizados pela teoria.

O método de exposição ou método dialético, embora teórico e racional, não tem qualquer postulado de ordem idealista, na medida em que tem a pesquisa empírica como exigência básica, mas tampouco advoga o princípio empirista da auto-inteligibilidade” (Ibidem, p. 26-27).

É a partir da análise da mercadoria que Marx aprendeu as suas

categorias fundamentais: singular-particular-universal, conteúdo e forma,

trabalho concreto e trabalho abstrato, essência e aparência, riqueza e

mercadoria, valor de uso – valor de troca – valor. Já citamos uma passagem no

início do primeiro capítulo de O Capital quando Marx afirma que no senso

comum a riqueza é compreendida como “um imenso acúmulo de mercadorias”.

A riqueza tem sua história, suas condições peculiares de uma época. Marx está

claramente analisando a sociedade mercantilista no modo de produção

capitalista. Logo, a riqueza é uma categoria, uma categoria geral e a

mercadoria uma categoria particular do capitalismo. Marx, portanto, considera a

riqueza capitalista (Rc) ou a mercadoria (M) unidades contraditórias do valor de

uso (Vu) e valor (V). A riqueza é construída por valores de uso em qualquer

sociedade e em qualquer momento histórico. O valor de uso constitui-se

sempre como conteúdo independentemente da forma social e histórica. Então,

podemos considerar também que a unidade do valor de uso – que é o

conteúdo (C) – e do valor – que é a forma – é a mercadoria.

Da mesma forma podemos identificar que o trabalho mercantil (TM),

que é próprio de uma determinada época do capitalismo, é a unidade

contraditória entre trabalho concreto (TC), que é conteúdo, e o trabalho

abstrato (TA), que é a forma.

No primeiro momento, nós apresentamos que o valor de troca tem uma

característica fenomênica ou aparente que pode nos levar a concluir que o

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valor se constitui como mera casualidade e relatividade. O valor enquanto tal

não se apresenta imediatamente como o valor de troca e somente na análise

pode-se verificar que o valor é o que se constitui como essência, e o valor de

troca como aparência. Concluímos assim que, na aparência, a mercadoria é

unidade de valor de uso e valor de troca; na essência, a mercadoria é a

unidade do valor de uso e o valor.

Esta última distinção é fundamental, pois pode causar muitos

equívocos. Na perspectiva da aparência podemos identificar a relação de

oposição tendo como unidade a mercadoria. O que precisamos é irmos mais

adiante, irmos ao concreto, na essência, para identificar que a mercadoria é a

unidade do valor de uso e valor. É o valor com suas características sociais e

históricas (propriedades) que se torna determinante na análise. Sem a

dialética, não seria possível chegar às conclusões referentes ao objeto real.

Qual a diferença entre a dialética marxista e a dialética hegeliana? A

concepção dialética da realidade de Marx está motivada pela mesma questão

que Hegel aborda: o caráter negativo da realidade. A negatividade é o motor

das contradições e que possibilita ao mundo progredir. Cada singularidade é

envolvida dentro deste processo de contradições, portanto, pode ser analisada

dentre uma totalidade. Marx analisou a economia capitalista e enfatiza que ela

se perpetua diminuindo o trabalho concreto. Afasta-se assim o ser humano de

suas necessidades concretas e as relações entre elas se dão como relações

entre coisas. Para analisar esta realidade deve-se partir do abstrato, abstrato é

a mediação para se poder atingir o conteúdo do real.

Mencionamos que tanto nas concepções dialéticas de Marx como de

Hegel a verdade está na totalidade negativa. Contudo, para cada um, a

dialética é diferente. Para Hegel, a totalidade é a da razão que se identifica

com a realidade histórica. A história se molda pelo pensamento na perspectiva

hegeliana. Há uma questão real inescapável para quem de fato pretende

conhecer o real, a realidade que é a negatividade das relações de classe. O

método dialético necessariamente também é método histórico, pois há várias

formas sociais e históricas de como se constituem as classes sociais em

diferentes modos de produção. Para tal, é preciso diferenciar a base na

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histórica dialética. A negatividade existe, é um estado em uma condição, mas é

a superação pela negação que se torna positivo para novamente constituir-se

em negatividade.

Marx chama de pré-história da humanidade tudo que esteja enraizado

na estrutura de classe e no momento de sua abolição tem início uma nova

história. MARCUSE (1969) afirma que a categoria necessidade é fundamental

na teoria marxiana, mas deve-se ter o cuidado para não cair no determinismo e

nem considerar “os saltos” de uma condição para outra como um passe de

mágica.

“O conceito que liga definitivamente a dialética de Marx à história da sociedade de classes é o conceito de necessidade. As leis dialéticas são leis necessárias; as várias formas de sociedades de classes necessariamente morrem por força de suas contradições internas. As leis do capitalismo trabalham com “férrea necessidade em direção a resultados inevitáveis”. Esta necessidade, porém, não se aplica à transformação positiva da sociedade capitalista. É verdade que Marx admitia que os mesmos mecanismos que produzem a concentração e centralização do capital, também produzem “a socialização do trabalho”. “A produção capitalista gera, com a inexorabilidade de uma lei da Natureza, sua própria negação’, isto é, gera propriedade baseada ‘na cooperação e na posse comum da terra e dos meios de produção” (Ibidem, p. 289).

As contradições do capitalismo levam à superação delas mesmas para

alcançar o socialismo, porque é uma necessidade, mas não sem o pleno

desenvolvimento do indivíduo. A transformação desta sociedade ocorrerá na

Rússia, não nas premissas previstas, e veremos como ela se efetuou e as

novas contradições que surgem a partir do socialismo quando da abolição das

classes sociais, da propriedade privada e do dinheiro.

Fartamente discorremos, na primeira parte dessa tese, acerca do

contexto sócio-histórico da Rússia soviética no tempo de Vigotski. O acesso

que teve às obras de Marx foi restrito, pois estas não estavam tão disponíveis

quanto nos dias de hoje. Muitos apontam que teve acesso ao Manuscritos

Econômico-Filosóficos, já que fora publicado pela primeira vez e 1932 na

Rússia, mas nenhuma citação encontramos em sua obra que possa sustentar

esta hipótese.

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Dois textos encontrados recentemente nos dão a dimensão da busca

de Vigotski por uma unidade de análise que pudesse sintetizar o psiquismo

humano e uma psicologia dialética como se referia: O significado histórico da

crise da psicologia (1927) e o Manuscrito de 1929. Diante de Hegel, Vigotski

sustentava que seu idealismo “pendia sobre a cabeça do materialismo”, ou

seja, ao “separar a verdade metodológica (dialética) da falsidade real” pode-se

concluir que Hegel “caminhava rumo à verdade mancando” (VIGOTSKI, 2003,

p. 267). Até esse momento podemos ver como Vigotski não tem sua definição

metodológica ou gnosiológico clara, mas é a partir desses escritos que

podemos constatar como foi sua busca. Vigotski buscava o que ele mencionou

no texto do Significado histórico da crise da psicologia (1927): “a mercadoria da

psicologia”. No final de sua vida, em alguns fragmentos podemos constatar que

havia desenvolvido essa síntese ao identificar a vivência (termo similar em

português) como sua categoria basilar.

Logo no início do Manuscrito de 1929, Vigotski afirma que a história

pode ser entendida de duas maneiras: primeira, como “uma abordagem

dialética geral das coisas”; segunda, como “história humana” – e complementa

– “a primeira história é dialética; a segunda é materialismo histórico”

(VIGOTSKI, 2000). É com este manuscrito que se coloca em discussão a

diferença básica entre a concepção de materialismo de Marx & Engels (nós

ampliamos esta diferença para outros autores) e outras concepções

materialistas da época de Vigotski. O fundamental estabelecido por Vigotski é

compreender se o materialismo tem o seu caráter histórico ou não; por

exemplo, nesta perspectiva, a concepção de Feuerbach não tem sentido para a

sua época. Logo, é o caráter histórico que define o materialismo e é o caráter

materialista que define a dialética de MARX & ENGELS e como também

premissa que fundamenta a psicologia dialética de Vigotski. Ou seja, sem a

clareza desta diferenciação e desta síntese sua teoria torna-se muito frágil.

No Significado histórico da crise da psicologia (1927) há uma definição

importante na qual Vigotski retoma novamente Marx: “a única ciência é

história”. Sendo assim, podemos concluir que toda ciência é necessariamente

histórica. Contudo, dentro de uma perspectiva materialista isto se refere a

considerar que a história é produto da atividade humana e que não tem um

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caráter especulativo ou que tenha simplesmente um caráter natural das coisas.

A ciência está ligada às condições materiais produtivas de cada época.

Uma referência também sempre importante e nos últimos anos

destacada pelos comentadores do pensamento Vigotski é a noção de Homo

Duplex que também consta no Manuscrito de 1929. Esta noção é muito

frequente na teoria de Vigotski, mas sem esta denominação. Significa que toda

relação social que o ser humano desenvolve nada mais é que a relação social

entre um eu e um outro, ou seja, sua internalização implica em dois numa

unidade, onde o outro ou os outros se nos apresentam como um “não eu”, um

estranho. A subjetividade que encontramos naquilo que sempre é enfocado por

Vigotski, as funções psicológicas, encontra-se na subjetividade humana a

forma de drama (VIGOTSKI, 2000). A psicologia é entendida como drama

exatamente nesta condição ou nessa compreensão de Homo Duplex. É aqui

que está a categoria síntese e unificadora, “a mercadoria” de Marx, para a

psicologia: a vivência (no Brasil, está se colocando literalmente a palavra russa

“perejivanie” para designar seu caráter amplificado).

Na parte que Vigotski trata sobre a Pedologia do Adolescente e

desenvolve o artigo sobre a formação de conceitos na idade de transição. Há

uma diferenciação entre lógica formal e lógica dialética. Afirma que “a

representação formal deforma profundamente a verdadeira natureza do

conceito” (VYGOTSKI, 2012b). Defende que o verdadeiro conceito deve refletir

uma “coisa objetiva na sua complexidade”. Quando se conhece o objeto com

todos os seus nexos e relações é porque alcançamos um conhecimento

totalizante do conceito. Seguindo os preceitos da lógica dialética, o conceito

não reside apenas no universal, mas também no singular e no particular. Eis a

razão da importância das mediações para poder compreender os nexos e

relações que se revelam nas definições do objeto.

“Es mui acertada la comparación que hace Marx entre el papel de la abstración y la fuerza del microscopio. En uma investigación realmente científica tenemos la possibilidade, gracias al concepto, de penetrar a través de la apariencia externa de los fenómenos, a través de la forma de sus manifestaciones, de conocer los ocultos nexos y relaciones que subyacen en la base de los mismos; penetramos em su esencia a semejanza de como se descubre com la ayuda del microscopio la variada y compeja vida, la compleja estrutura interna

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de la célula que, oculta a nuestros ojos, encierra una gota de agua (Ibidem, p. 78).

Na perspectiva marxista e defendida por Vigotski, o fenômeno e a

essência não coincidem. Se assim fosse, não haveria necessidade da ciência.

Uma outra questão que também Vigotski se referencia em Marx: “a consciência

e a vinculação com a linguagem”. Toma cuidado de não utilizar a teoria

marxiana de forma forçada para confirmar esta vinculação. A concepção

teórica de Marx amplia a visão para pesquisa, isto porque o aspecto da

consciência, quando qualifica a linguagem como “consciência prática”, “como

consciência que existe para outras pessoas e, por conseguinte, para si mesmo”

é esta mesma consciência que é forjada na história e que nasce junto com a

linguagem (2012i).

A teoria marxiana inseriu Vigotski no debate sobre as visões objetivistas

e subjetivistas e na polêmica destas concepções dualistas entre o indivíduo e

sociedade (ou entre o indivíduo e o coletivo), o biológico e o cultural, a emoção

e a razão e a objetividade e a subjetividade. O debate em torno da consciência

continua ainda a ser muito debatido. Vigotski defende a noção essencial da

consciência como inserida no campo da reflexão não é um refletir exato da

realidade como uma cópia passiva. A experiência é determinante para a

reflexão. Neste sentido, a relação entre cérebro e consciência significa que há

uma superação do biológico sem nunca poder dissociar-se dele. A consciência

é a capacidade de refletir sobre a realidade, ou melhor, sobre a atividade. É por

essa razão que Vigotski distingue no comportamento três dimensões da

experiência: a histórica, a social e a duplicada. É a experiência que determina

a consciência e não o inverso. Estas dimensões são determinantes para

diferenciar o ser humano do animal. A teoria sócio-histórica vigotskiana se

fundamenta na natureza social da consciência o que explica os processos

psicológicos superiores. Portanto, a consciência constitui-se na capacidade que

o ser humano tem de refletir, melhor dizendo, a atividade reflete-se no ser

humano e este toma consciência da própria atividade. É por isso que para Marx

como também essencialmente para Vigotski a “consciência é atividade de ser”.

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Capitulo 11: Dialética da Natureza

Vimos no capítulo anterior a impossibilidade de separar a teoria

materialista histórico-dialética marxiana da engeliana. A síntese é o próprio

materialismo histórico dialético, mas há comentadores que acentuam as

diferenças ou então acentuam a influência de uma ciência da natureza

defendida por Engels como determinista e que não estaria mais ligada à teoria

marxiana. Vigotski não faz esta diferenciação em momento algum. Os escritos

de Engels reforçam a teoria materialista histórico-dialética. Vigotski leu

Dialética da Natureza de Engels, publicada em 1925 na Rússia soviética, que

teve grande influência nos seus trabalhos de pesquisa. É nesta obra que

Engels define três leis da dialética.

“É, portanto, da história da natureza e da história das sociedades humanas que são abstraídas as leis da dialética. Elas são senão as leis mais gerais destas duas fases do desenvolvimento histórico assim como do próprio pensamento. Reduzem-se essencialmente às três leis seguintes: - a lei da passagem da quantidade à qualidade e inversamente; - a lei da interpenetração dos contrários; a lei da negação da negação (ENGELS, 1975, p. 49).

Logo mais adiante a esta citação, Engels continua afirmando que estas

leis não são diferentes da concepção hegeliana, mas o erro de Hegel é que

não parte “da natureza e da história”. A preocupação de Engels era também

dar o caráter científico para o materialismo e para tal baseava-se nas ciências

naturais. Dois personagens políticos interpretaram também as leis da dialética

e de forma não muito diferente: Lênin e Stalin. Ambos expuseram seus

pensamentos quanto à dialética e não se distanciaram da Dialética da Natureza

de Engels 55 .São contemporâneos de Vigotski e com papel preponderante

também na produção de conhecimento. Este é um assunto sobre o qual os

comentadores não são unânimes, isto porque de um lado Engels está atacando

o misticismo (a superstição na ciência) como Francis Bacon também o fez56;

55Dialética da Natureza foi editado na Rússia pela primeira vez em 1925 e comentadores consideram que foi esta obra de Engels que influenciou os estudos de Vigotski sobre a origem da consciência humana. 56Bacon defendia no seu Novum Organum (1630) que a ciência está submetida a ídolos que “ocupam o intelecto humano” e “obstruem” o caminho para a verdade. Afirma que são quatro os gêneros dos ídolos que fazem esta obstrução na mente humana, a saber: “Ídolos da Tribo”; “Ídolos da Caverna”;

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por outro lado, a preocupação de estabelecer regras extraídas somente das

ciências da natureza, na perspectiva de alguns comentadores, levava mais a

uma doutrina para a análise dos fenômenos quantificáveis do que o da

transformação da sociedade57.

“Para o materialismo, a única realidade é a natureza” disse Engels

(ENGELS, 1977b, p. 87), bem como esta natureza tem uma história (idem, pág.

108). Podemos então afirmar que o materialismo dialético tem como

pressuposto básico a natureza, o pensamento e a história e que estes se

desenvolvem num constante processo de transformação, mesmo quando em

determinadas situações as coisas tenham uma aparência imóvel.

Portanto, se o materialismo dialético tem como pressuposto básico a

natureza e a história em constante processo de transformação das coisas que

muitas vezes aparecem como estáticas, também é necessário considerar que a

filosofia materialista dialética acaba “com o caráter definitivo de todos os

resultados do pensamento e da ação do homem”. Esta é, conforme Engels,

uma premissa herdada de Hegel:

“Em Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem, porém, alcançar jamais com o descobrimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que nada mais reste senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta conquistada. E isso não se passava apenas no terreno da filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e do domínio da atividade prática. Da mesma forma que o conhecimento, também a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um estado perfeito, são coisas

“Ídolos do Foro” e “Ídolos do Teatro” (Aforisma XXXIX). Nos seus primeiros aforismos deixa claro sobre os parâmetros da investigação. O primeiro aforismo: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” é um alerta para a delimitação do conhecimento e também uma crítica aos métodos metafísicos que se utilizam apenas da mente. É preciso instrumentos, métodos; e no aforismo terceiro, afirma também que “a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece”. As ciências até então, conforme Bacon, não fomentavam a descoberta, mas a repetição. Não instigavam para novas descobertas (Aforismo VIII). E qual a razão de não progredir nas descobertas? Ataca Bacon: “Admira-se e exalta-se de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados” (Aforismo (IX). Tudo que está desde então instituído na ciência é uma “inutilidade” (Aforismo XI, XII, XIII). Mas é na indução a esperança para o caráter útil da ciência (Aforismo XIV).

57 Esta crítica foi destaque especialmente por parte de György Lukács.

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que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, todas as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras tantas fases transitórias no processo de desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior. Todas as fases são necessárias, e, portanto, legítimas para a época, para as condições que origina; uma vez, porém, que sugerem condições novas e superiores, amadurecidas pouco em seu próprio seio, elas caducam e perdem sua razão de ser e devem ceder lugar a uma etapa mais alta, a qual, por uma vez também terá um dia de envelhecer e perecer” (Ibidem, p. 83).

Engels não se considerava no mesmo patamar de conhecimento de

Marx, mas foi aquele que, após sua morte, assumiu o seu acervo, e mais,

concluiu as obras que estavam para ser concluídas e que demandaram muito

tempo de pesquisa. O segundo e o terceiro livros de O Capital foram escritos

por Engels e até hoje muito trabalho dão aos exegetas para verificar o que é de

um ou supostamente o que é de outro. Em função da prioridade da conclusão

de O Capital para sua edição, Engels deixou para segundo plano um tratado

sobre dialética - a Dialética da Natureza está incompleta. Em outros textos

podemos analisar sua compreensão e aplicação da dialética. Sua aplicação

esteve marcada nas análises históricas do desenvolvimento do pensamento ou

da sociedade, mas quando foi tratar especificamente do tema, refugiou-se nas

ciências naturais.

De forma determinista faremos referência a alguns textos de Engels

neste momento para tentarmos entender a peculiaridade de seu pensamento –

de sua produção teórica – respeitando a sequência cronológica, a saber: i) Do

socialismo utópico ao socialismo científico (escrito em 1877 e publicado pela

primeira vez em francês, em 1880); ii) Dialética da Natureza (escrito entre 1872

e 1882 e permaneceu em manuscritos – é uma obra inacabada); iii) Ludwig

Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (escrito em 1886 e publicado no

mesmo ano na revista Neue Zeit).

Engels sustentava que o primeiro filósofo a compreender a dialética foi

Aristóteles até culminar em Hegel. O idealismo objetivo propiciou o surgimento

do materialismo, mas este já existia desde os gregos até chegar ao

materialismo do século XVIII na França.

“Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles – Aristóteles –

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chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialética (como, por exemplo, Descartes e Espinosa) caía cada vez mais, sob a influência, principalmente, dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII” (Ibidem, p. 39).

Engels também enfatiza que desde os gregos havia a preocupação de

estudar o movimento das coisas e foi Heráclito o primeiro a admitir que todas

as coisas fluem, não são estáticas. Mas como estudar o movimento das

coisas? Para poder entrar nos detalhes das coisas era necessário investigá-las

isoladamente. Os gregos faziam isto, mas sem considerá-las primariamente.

Conforme Engels, as separações e acumulação de materiais eram realizadas

de forma que poderia se fazer comparações e até mesmo as devidas

classificações. As ciências exatas naturais não eram adotadas pelos gregos e

só vieram a ganhar sentido na metade do século XV na Europa. Os objetos

naturais foram submetidos aos estudos e à pesquisa interna. Eram analisados

os processos isoladamente e não se conservam dentro de uma análise do

todo. Os métodos que foram transportados de Bacon e Locke para a filosofia

culminaram no “método metafisico de especulação” (Ibidem, p. 39).

“Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os

conceitos, são objetos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antítese, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é ou outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese” (Ibidem, p. 39).

É o método dialético que tem condições de considerar as antíteses não

isoladamente, mas na sua dinâmica.

“A natureza é a pedra de toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos oferecem para essa prova um acervo de dados extraordinariamente copiosos e enriquecidos cada dia que passa, demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história” (Ibidem, p. 40).

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É a filosofia alemã moderna que tem o mérito de ter colocado a

dialética e de ter possibilitado conceber o mundo da natureza e da história

como um processo. O idealismo tem o mérito de ter realizado este processo, o

idealismo hegeliano, o idealismo objetivo. O idealismo levou ao surgimento do

materialismo, mas, inicialmente, o materialismo mecanicista. Considerando no

campo social, o materialismo mecanicista ainda estava preso ao naturalismo

sem conseguir constatar as contradições. É com Marx que o materialismo

ganha caráter dialético capaz de desvelar as contradições do modo de

produção capitalista. Engels então enfatiza não somente aqui, mas

constantemente que “o materialismo se converte em uma ciência” (Ibidem, p.

44).

Para Engels, o filósofo materialista Feuerbach marca o definitivo

rompimento com toda a filosofia clássica alemã. Os alemães fizeram uma

revolução filosófica, mas há muita diferença comparada com a revolução

política que a França fez, pois esta enfrentou os poderes constituídos que

ainda sustentavam os últimos resquícios do poder da Idade Média. Os alemães

preferiam filosofar a fazer a revolução.

Assim, quando Hegel surgiu com sua tese tão conhecida “tudo que é

racional é real e tudo que é real é racional” atraiu tantos “governos míopes”. E

para Engels o passivismo da Alemanha justificava tudo que existia como uma

vontade geral. Mas para Hegel não é tão simples assim essa tese, comenta

Engels, que pudesse justificar tudo o que existe pelos governos e pelos seus

súditos. Na doutrina de Hegel, “o atributo da realidade corresponde apenas ao

que, além de existir, é necessário”. O que é necessário para Hegel deve se

manifestar como real, ou seja, os “prussianos tinham o governo que mereciam”.

A realidade para Hegel não se constitui absolutamente num atributo

inerente a uma situação social ou política imutável. Por exemplo, na Revolução

Francesa, o irreal passou a ser a Monarquia e o real a Revolução. Então, num

processo de desenvolvimento, o real passou a ser irreal, perdeu sua

necessidade. Sim, a tese a partir da qual “tudo que é real é racional” como

fundamental traz simultaneamente outra: “tudo o que existe merece perecer”. E

para Hegel este é o caráter revolucionário, pois aquilo que poderia ser

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considerado como definitivo foi relativizado. Neste sentido, com Hegel, a

filosofia não tem mais aquele “caráter dogmático fixo” agora residia “no

processo de desenvolvimento histórico”. Desse modo, aquilo que poderia ser

conquistado era o que poderia ser definido como uma verdade absoluta e nada

poderia ser feito senão contemplar esta verdade. Não só no campo da filosofia,

mas em outros ramos do conhecimento. Ou seja, poderíamos concluir que o

pensamento de Hegel não admitia que se pudesse chegar a algo perfeito

mesmo que o movimento fosse do inferior para o superior. Não há como

chegar no valor absoluto, absoluto é o movimento. O sistema filosófico de

Hegel inicia pelo fim quando o espírito se exterioriza e retorna novamente. Há

um fim na história e se estabelece a contradição do sistema de Hegel, pois

tudo continuará no ponto de vista teórico. Engels então aponta que o sistema

de Hegel é revolucionário por um lado, mas ao mesmo tempo a solução final

torna-se totalmente dócil e justificadora da realidade, portanto, conservadora.

Engels cita a obra de Hegel, Fenomenologia do Espírito, onde há a

preocupação em “demonstrar a existência de um fio condutor do

desenvolvimento”. O sistema criado, como qualquer sistema filosófico,

pretende “superar as contradições”. Superadas estas contradições é possível

então chegar à verdade absoluta, analisa Engels, e que tal deve ser assim sem

que se possa fazer algo.

A concepção hegeliana tomou conta de uma época e dois campos logo

assimilaram o sistema hegeliano: a política e a religião; o seu sistema filosófico

poderia ser aplicado por dois lados extremos: a conservação ou a revolução.

Sem demora os seguidores de Hegel dividiram-se em ala direita e esquerda.

Então surgiu a obra de Feuerbach: “A Essência do Cristianismo”. O

materialismo, comemora Engels, com o pensamento feuerchiano “é restaurado

no seu trono” e todas as criaturas fantásticas foram simplesmente

consideradas como imaginação dos seres humanos. Marx foi um dentre tantos

que se identificou com a concepção feuerbachiana. Mas esta obra de

Feuerbach enaltecia a essência do amor que passou a ser a referência para o

socialismo e isto passou a ser “uma praga” na Alemanha. Feuerbach, com isto,

colocou-se ao lado do sistema de Hegel, justifica Engels.

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Engels defende que a grande questão da filosofia moderna é a relação

entre pensamento e o ser. Desde os tempos remotos, os seres humanos,

intrigados com os sonhos, buscaram explicar que o pensamento não era uma

função do corpo, mas da alma. Esta morava no corpo durante a vida e depois

da morte abandonava-o para viver em outro lugar. Surgiu também a ideia da

imortalidade da alma e muitas fábulas foram criadas, pois não se sabia o que

se poderia dizer sobre a alma depois da morte. Engels explica que esta

abstração também levou a pensar a existência de muitos deuses, mas logo isto

se direcionou para um deus exclusivo e o surgimento das religiões

monoteístas. Impunha-se então uma pergunta: Qual a relação entre espírito ou

natureza (ser ou pensamento)?

Mas esta pergunta levou imediatamente a outra sobre a sua primazia: o

espírito ou a natureza? Duas escolas dividiram-se: uma escola denominada de

idealista, considerando “o caráter primordial do espírito em relação à natureza”;

a outra escola, denominada de materialista, “a natureza constituía-se em

elemento primordial”!

Na relação pensamento e o ser há uma questão a mais a ser

considerada: “Nosso pensamento de fato tem capacidade de conhecer o

mundo?” A maioria dos filósofos respondia que havia identidade entre

pensamento e o ser, e, para Hegel, comenta Engels, esta resposta é dada por

si mesma, isto por que o ser humano “conhece do mundo real e seu conteúdo

conceitual, aquilo que faz do mundo uma realização progressiva da Ideia

Absoluta, antes do mundo e independente dele”. Conforme outro importante

princípio hegeliano, a filosofia deve imediatamente ser aplicada ao mundo

prático. Por outro lado, há um outro grupo de filósofos que nega a possibilidade

de conhecer o mundo que Engels identifica, os famosos filósofos Kant e Hume.

A refutação contundente, segundo Engels, para romper com estas

“manias” filosóficas, “é a prática”. De acordo com Engels, no longo período de

“Descartes a Hegel” e de “Hobbes a Feuerbach” predominava o que ele chama

de “pensamento puro”. Feuerbach é um hegeliano que parte do idealismo para

o materialismo e não admitiu mais nenhuma categoria preexistente. Feuerbach

foi muito profundo na análise do cristianismo, mas fez pouquíssimas menções

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sobre a sociologia ou a teoria social. Não conseguiu sair “do reino das

abstrações”, acusa Engels, mas o seu mérito foi trazer de volta o mundo real –

a natureza e a história – em comparação com a teoria hegeliana. Somente

assim foi possível aplicar esta linha filosófica, conforme Engels, “a todos os

domínios possíveis do conhecimento”.

Os que prolongaram a filosofia hegeliana foram David Strauss (1808-

1874), Marx Stirner (1806-1856), Bruno Bauer (1809-1882) e Ludwig

Feuerbach (1804-1872). Foi este último que fez a crítica mais contundente

contra a filosofia hegeliana, mas, conforme Engels, parou no meio do caminho,

porque “era por baixo materialista e por cima idealista”. Empanturrou-se com

uma “balofa religião do amor”. Mas uma outra filosofia surgiu que, na opinião

de Engels, deu fruto e que está associada ao nome de Karl Marx.

Esta corrente inaugurada por Marx considerava que a filosofia

hegeliana tinha seu lado revolucionário e, além disso, não se poderia deixá-la

simplesmente de lado como o fez Feuerbach. A filosofia hegeliana enfrentou o

método metafísico e este foi seu mérito. Mas enquanto método, conforme

Engels, não tinha nenhum sentido, “era inútil”. Por quê? “Por que em Hegel a

dialética é o autodesenvolvimento do conceito”. Para Engels, este exercício

conceitual não passava de um vai e vem sem fim e sugere colocarmos as

análises na perspectiva materialista e olharmos para os objetos reais. Marx

enfatizou isto de outro modo para mais fácil compreensão utilizando uma

metáfora. A filosofia alemã descia do céu para terra, mas o que se propunha

numa perspectiva materialista é justamente o contrário, o método se propunha

a ir da terra para o céu. Mas o aspecto fundamental aqui, para reforçar esta

compreensão de Engels, é que “a vida determina consciência” e não o inverso

(MARX, 2007, p. 94).

Nesta mesma direção, Engels propunha um método que não seria

aplicado apenas no campo da ciência da natureza, mas também defende sua

aplicação na história da sociedade. A história para ele sempre “orientava-se

sob o império da necessidade, para um objetivo ideal, fixado antecipadamente”.

Engels defende que “a história do desenvolvimento da sociedade é diferente da

história do desenvolvimento da natureza”. Histórica é a história da ação do ser

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humano, pois se excluirmos a ação humana – o que poderia ser dito? Todos os

fenômenos na natureza, mesmo que ocorram por acaso, há uma explicação

porque são “regidos por leis”. Da mesma forma, se aplicado este princípio na

história da sociedade teremos que estabelecer leis para entender a realidade,

mas “leis gerais imanentes”. Mesmo que se tenham os fins, Engels chama

atenção para a dificuldade de realização destes fins. Há muitos desejos na

sociedade, mas “as consequências são diversas” daquelas que são propostas.

Desta forma, “os acontecimentos históricos” também são compreendidos pelo

“acaso”. Mas ali onde reina o acaso há “leis imanentes ocultas” que precisam

ser desvendadas, insiste Engels. O importante é perguntar quais forças

propulsoras agem por de trás desses objetivos e “quais as causas históricas

que, na consciência dos homens, se transformam nesses objetivos”. Não é

possível, portanto, analisar a história sob o ponto de vista singular, mas

analisar no seu conjunto e analisar as transformações históricas.

A dialética da Natureza é uma obra incompleta e nem chegou a ser

preparada para impressão. Engels trabalhou nela durante o período de 1872 a

1882 e só veio a ser publicada em 1925 na URSS (sob coordenação de

Riazanov). O fato de Engels ter se empenhado nesta obra durante quase uma

década, sem ter conseguido terminá-la, demonstra a sua grande preocupação

com a sistematização para esclarecer a aplicação do Método Dialético. Não

havia nenhuma obra de Marx que tivesse diretamente tratado deste assunto.

A concepção de ciência para Engels parece que não estava

direcionada apenas para a análise das transformações sociais. Via-se na

dialética a ciência das leis gerais da transformação, não só vinculada ao

pensamento ou à sociedade, mas também ao mundo exterior. Esta perspectiva

de Engels nós podemos ver também na obra de Lênin, Materialismo e

Empiriocriticismo, onde se reforça a utilidade da dialética para entender a

natureza, ou seja, poderia ser aplicado na física, na astronomia, na geologia,

na química e na biologia. É na parte com o título Natureza Geral da Dialética

como Ciência que encontramos resumidamente as leis da dialética que Engels

enumera e que são referências até nos dias de hoje:

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“As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são elas outras senão as leis mais gerais de ambas essas fases do desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano. Reduzem-se elas, principalmente, a três: 1) A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; 2) A lei da interpenetração dos contrários; 3) A lei da negação da negação” (ENGELS, 1979, p. 34).

Estas leis foram extraídas da lógica de Hegel, mas como Engels

comenta, foram aplicadas equivocadamente por ele, pois não se

fundamentavam na observação, mas como produção do pensamento. Engels

conseguiu apresentar, e parece incompleto ainda, a primeira lei: “Lei da

transformação da quantidade em qualidade e vice-versa”, e no manuscrito

deixado por Engels, não temos o prosseguimento da análise. Na análise sobre

esta lei permanecem os exemplos voltados para ciência natural. Nos

apontamentos de Engels que datam de 1873 e 1882 encontramos o título

Dialética e Ciência. Queremos destacar três passagens: i) existem duas

tendências filosóficas: a metafísica (que lida com as categorias físicas; e a

dialética (lida com categorias fluidas desenvolvidas por Aristóteles e Hegel).

Tratar as categorias estáticas tais como – antecedente e consequente, causa e

efeito, identidade e diferença, essência e aparência – não se sustentam. Estas

categorias são provas de que os polos não são isolados, mas um está presente

no outro. Isto em Hegel aparece de forma “mística” em razão de admitir que

aparecem as categorias antes mesmo de sua existência e a dialética do mundo

real é um reflexo, o que não é correto, o cérebro é reflexo do movimento do

mundo real (Ibidem, p. 127). ii) A maior parte dos pesquisadores ainda

permanece na concepção de que a identidade e a diferença são inconciliáveis

e não conseguem considerar os polos interagindo. É o sentido ainda metafísico

presente nas pesquisas, pois se considera tudo permanente. A ciência da

natureza refuta esta ideia. iii) A lógica de Hegel explica a contraposição com a

“velha lógica” que só tem formalidade, não faz conexões do que é enumerado e

pode chegar a tantas conclusões. A lógica dialética procura fazer as conexões

e subordiná-las entre si “desenvolvendo as formas superiores a partir das mais

inferiores” (Ibidem, p. 182). Cita um exemplo: o atrito produz calor, mas até o

ser humano chegar a esta conclusão não foi de forma imediata. Foi necessária

uma série de acúmulos. Ou seja, o primeiro julgamento que podemos

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considerar como singular é de que um procedimento isolado produz calor; o

segundo julgamento da ordem particular é de que uma forma específica de

movimento mecânico produz calor; por fim, a lei de que um movimento se

transformou em outro passa a ser de ordem universal. É neste sentido que um

exemplo simples na sua origem ganha complexidade e é possível de se fixar

como uma lei, uma lei universal (Ibidem, ps. 182-183).

Podemos então concluir que as determinações do objeto real são

compreendidas, subordinando o superior ao inferior, ou seja, do mais simples

para o mais complexo, no que poderá se configurar nas possibilidades de

generalização.

Três tipos de citações Vigotski faz constantemente a Engels em seus

escritos:

1) não há como negar “as raízes genéticas” do pensamento e da

linguagem nos animais até chegar no intelecto e na linguagem dos seres

humanos e tornando-se cada vez mais distintos. Esta base “evolucionista” é

enfatizada na história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores

que está em relação às funções psicológicas elementares (VIGOSTKI, 2014 a,

p. 113);

2) as ciências naturais exigem um método de pesquisa que deve partir

das hipóteses. Quando se torna impossível a plausibilidade de explicações

sobre velhas hipóteses é necessário elencar novas num campo, quase sempre,

limitado de dados e observações. A acumulação de dados possibilita elaborar

novas leis. Não é possível aguardar que os dados sejam obtidos

espontaneamente – esta atitude não favorece a criação de novas leis

(VIGOTGSKI, 2012);

3) o emprego de ferramentas é uma atividade especificamente humana

e por essa razão é possível transformar a natureza. Ao usar os instrumentos, o

ser humano deixa de se submeter à natureza no seu aspecto apenas exterior

para assumir uma postura de governo sobre o que faz (VYGOTSKI, 2014 a, ps.

61, 85, 86, 93-94, 119).

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A Dialética da Natureza suscitou muitas críticas, as resumimos

rapidamente em duas. Primeira, a ênfase de Engels em transpor as mesmas

regras de análise da ciência natural para análise da história e da sociedade;

segunda, a criação de leis, e, posteriormente as categorias. Ao fazer a defesa

por uma ciência baseada nas ciências da natureza há uma necessidade de

combater o caráter místico do idealismo, mas o rigor das leis possibilitou uma

vertente que se enraizou no fundamentalismo e que rapidamente caiu no

materialismo denominado de mecanicista. Com a definição de leis da dialética,

tende-se a estabelecê-las como referências determinantes.

Mas as polêmicas não param por aí. A questão fundamental é que

Engels refugia-se na ciência natural, na ciência da natureza para explicar os

rumos da sociedade socialista. Nós entendemos que não é a mesma forma

adotada por Marx, que raramente explicitou o método dialético. Nos raros

momentos em que escreveu sobre isso, referiu-se como um caminho para

fundamentar uma teoria social. Entendemos que a teoria engeliana teve um

predomínio no período stalinista da Rússia soviética. Logo no início da

Revolução Socialista e no momento de implementação do socialismo na

Rússia soviética também era notório esta referência em Lênin, mas logo foi

superada por uma perspectiva da práxis. Este caminho que Lênin percorreu

com sua teoria também foi um caminho de Vigotski. No início, foi influenciado

pela hegemonia das concepções objetivistas, reflexológicas, mas podemos

verificar que no final de sua vida Vigotski começou a buscar muito mais a

referência de Lênin tardio.

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Capítulo 12: Dialética da Práxis

Vladimir Ilitch Lênin foi um profundo estudioso das obras de Hegel,

Feuerbach, Marx & Engels. Em 1914, redigiu uma nota biográfica de Marx e

uma exposição sobre o marxismo para o Dicionário Enciclopédico Granata, que

era muito famoso na Rússia. Este artigo foi concluído quando residia em

Berna/Suíça e seu teor é muito preciso com detalhes sobre a vida de Marx.

Nossa preocupação aqui não se aterá à nota biográfica, mas à interpretação

que Lênin faz de Marx neste período de vida, sua interpretação sobre o

marxismo.

Lênin afirma que Marx foi “materialista” e “partidário de Ludwig

Feuerbach”; o único aspecto ao qual não concordava era a sua “falta de

coerência e de universalidade do seu materialismo”. A filosofia de Marx &

Engels é fundamentada na materialidade:

"A unidade do mundo não consiste no seu ser... A unidade real do mundo consiste na sua materialidade e esta última está provada... por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais... O movimento é o modo de existência da matéria. Nunca e em parte alguma houve nem poderá haver matéria sem movimento... Matéria sem movimento é impensável do mesmo modo que movimento sem matéria... Mas, se se pergunta, depois disso, o que são o pensamento e a consciência, e donde provêm, conclui-se que são produtos do cérebro humano e que o próprio homem é um produto da natureza, o qual se desenvolveu no seu ambiente e com ele; daí se compreende por si só que os produtos do cérebro humano que, em última análise, são igualmente produtos da natureza, não estão em contradição, mas sim em correspondência com a restante conexão da natureza” (LÉNINE V. I., KARL MARX - Breve esboço biográfico seguido de um esboço do Marxismo (1914), 1977 b)58

Este materialismo, contudo, não poderia ser comparado com o de

Feuerbach e nem com de outros materialistas identificados por Marx e Engels

como “materialistas vulgares”. Lênin identificava três características:

1 - que este materialismo era "essencialmente mecanicista" e não tomava em conta os progressos mais recentes da química e da biologia (atualmente conviria acrescentar ainda a teoria eléctrica da matéria);

2 - que o velho materialismo não tinha um caráter histórico nem dialético (sendo pelo contrário metafísico, no sentido de antidialético)

58 Cit. LÊNIN da obra de Marx & Engels – Anti-Dühring.

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e não aplicava a concepção do desenvolvimento de forma consequente e sob todos os seus aspectos;

3 - que concebia a "essência humana" como uma abstração e não como o "conjunto de todas as relações sociais" (concretamente determinadas pela história), não fazendo assim mais do que "interpretar" o mundo, enquanto aquilo de que se tratava era de o "transformar", ou, por outras palavras, não compreendia a importância da "atividade revolucionária prática" (LÊNIN, 1977b).

Para Lênin, Marx adaptou e desenvolveu a filosofia de Hegel e salvou a

dialética do descalabro do idealismo. A dialética é tanto o que é compreendido

em Marx como em Hegel, pois a teoria do conhecimento “deve considerar o

seu objeto historicamente, estudando e generalizando a origem e o

desenvolvimento do conhecimento, a passagem do não conhecimento ao

conhecimento” (Ibidem, p. 33). Para Lênin, esta descoberta da concepção

materialista da história nos fenômenos sociais

“(...) eliminou um dos defeitos principais das teorias anteriores, pois

analisava-se a atividade histórica dos homens “sem investigar a origem, sem apreender as leis objetivas que presidem ao desenvolvimento do sistema das relações sociais e sem descobrir as raízes dessas relações no grau de desenvolvimento da produção material” (Ibidem).

Para Lênin, o materialismo dialético é a única filosofia verdadeira das

ciências da natureza e, no capítulo II, quando trata da “teoria do conhecimento

do empiriocriticismo e do materialismo dialético”, cita Engels que coloca como

uma das principais questões da filosofia “a questão da relação do pensamento

com o ser, do espírito com a natureza”. Esta questão divide duas grandes

filosofias, de um lado os materialistas e de outro os idealistas. Mas o desafio

fundamental é outro que Engels aponta em duas perguntas: “que relação existe

entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio

mundo? Podemos nós, nas nossas representações e conceitos sobre o mundo

real, formar um reflexo correto da realidade?” (LÊNIN, 1982, p. 75). Os

idealistas e os materialistas defendem a possibilidade de conhecer o mundo,

mas há filósofos que contestam esta possibilidade, por exemplo, os mais

conhecidos: Hume (1711-1776) e Kant. Lênin afirma que estes nem deveriam

figurar como modernos e que para refutar suas teorias só há uma alternativa: a

práxis (Ibidem, p. 76). No momento que se pode provar que um dado

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fenômeno é produzido por nós mesmos, podendo ser criado a partir de suas

próprias condições e que possam servir aos nossos fins, “acaba-se com a

coisa em si inapreensível” como insistem Hume e Kant. Se esta definição não

tem validade então caímos no relativismo, pois podemos suscitar que tudo o

que é desconhecido é uma coisa em si, totalmente descabido.

Lênin chega então a três “importantes conclusões gnosiológicas”: 1)

“as coisas existem independentemente da nossa consciência”; 2) “não há nem

pode haver absolutamente nenhuma diferença de princípio entre o fenômeno e

a coisa em si”; 3) “na teoria do conhecimento, como em todos os outros

domínios da ciência deve-se raciocinar dialeticamente, isto é, não supor o

nosso conhecimento acabado e imutável, mas analisar de que modo da

ignorância nasce o conhecimento” (Ibidem, p. 77-78). Por mais que soe como

uma ortodoxia esta afirmação de Lênin sobre a dialética: a dialética é para ser

aplicada em todos os domínios da ciência – estamos aqui entendendo que está

se baseando na Dialética da Natureza de Engels para que seja possível aplicar

a dialética como se aplica nas ciências naturais. Deixando esta questão

doutrinal de Lênin de lado e enfatizando que a dialética deve partir de um não

saber para um saber, do simples para o complexo, está considerando que a

ciência não tem limites ou então que não se deve colocar restrições a priori

para a pesquisa. Esta é uma característica fundamental que irá marcar a

década de 20 na URSS sem precedentes. Mas esta condição irá mudar.

Queremos nos estender um pouco mais nos estudos sobre a dialética

em Lênin. Em seus “cadernos filosóficos” (1914-1916) podemos analisar mais

de perto sua concepção dialética. Lênin está confrontando inicialmente aqueles

que usam o marxismo mais para confundir do que para esclarecer. Estes são

os empiriocriticistas – são aqueles que sustentam que a revolução se dará pelo

parlamento. Entre esta discussão ou outras, Lênin está defendendo a filosofia

marxista que está atenta à realidade e está “a serviço de um objetivo político

imediato”. Para finalizar esta parte, iremos nos ater a duas passagens que

constam nos “cadernos filosóficos”. A primeira é extraída da página 349 da

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Ciência da Lógica de Hegel59. Temos que transcrever o texto extraído por Lênin

da Ciência da Lógica para uma análise mais minuciosa.

“(...) assim, o conhecimento avança de conteúdo em conteúdo. Em primeiro lugar, esta progressão é determinada pelo fato de começar por determinações simples, e por as seguintes se tornarem continuamente mais ricas e mais concretas. De fato, o resultado contém o seu princípio, e o seu movimento enriqueceu-o com uma nova determinação. O universal constitui o fundamento; é por isso que não convém encarar a progressão como uma certa passagem de uma coisa à outra. No método absoluto, o conceito conserva-se no seu outro, o universal na sua fragmentação, no juízo e na realidade; ele eleva toda a massa do seu conteúdo adquirido a cada grau da determinação seguinte e, em virtude da sua progressão dialética, não só nada deixa para trás, como arrasta tudo o que adquiriu, enriquece-se e condensa-se em si próprio” (ALVIM & RIBEIRO, 1975)60.

Fazemos a mesma pergunta de Lênin: “Não considero clara esta

distinção; o absoluto não será igual ao concreto?” (Ibidem, p. 99). O que “é” é

concreto para Hegel? Lênin chega a mencionar que Engels estava certo

quando escreveu: “o sistema de Hegel é um materialismo às avessas”. Na

última anotação do caderno sobre a Ciência da Lógica, surpreende-se ao

constatar que “a obra mais idealista de Hegel há menos idealismo, e mais

materialismo”. “É contraditório” afirma ele, “mas é um fato!” (Ibidem, p. 103).

Na segunda passagem de seus Cadernos Filosóficos Lênin sistematiza

16 elementos da dialética. São eles:

1. “Objetividade da análise (a coisa em si mesma); 2. Todo o conjunto das relações múltiplas desta coisa com outras; 3. O desenvolvimento desta coisa, o seu movimento próprio; 4. As tendências internas contraditórias nesta coisa; 5. A coisa como unidade dos contraditórios; 6. O desenvolvimento destas contradições; 7. A unidade da análise e da síntese”;

A dialética poderia se definir como “unidade dos contraditórios” para

captar “o núcleo da dialética”. Contudo, para entender este núcleo é necessário

“explicações e desenvolvimento” que passaremos a destacar:

8. “As relações de cada coisa são não só múltiplas, mas universais; 9. Não só a unidade dos contraditórios, mas as transições de cada determinação;

59 Na edição russa a qual Lênin se refere. 60 ALVIM & RIBEIRO (1975) organizaram textos de Marx, Engels, Lênin e Mao-Tsé-Tung num livro que intitularam: Antologia sobre o materialismo dialético. Os organizadores do livro citam os referidos autores em textos que analisam o materialismo dialético. A presente citação de Hegel foi extraída da pág. 100-101.

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10. Processo infinito de descobertas; 11. Processo infinito de aprofundamento do fenômeno à essência menos profunda

à essência mais profunda; 12. Da coexistência à causalidade e de uma forma conexão e de interdependência

a uma outra; 13. Repetição na fase superior de certos traços da inferior; 14. Aparente retorno do antigo; 15. Luta do conteúdo com a forma e inversamente; 16. Passagem da quantidade à qualidade e vice-versa” (Ibidem, p. 92-93).

Para que não fique a análise dialética com esta complexidade de dados

para serem considerados, identificamos outra passagem bem mais elaborada

para entendermos sua concepção da dialética.

“A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para conhecer realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e ‘mediações’. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas a necessidade de considerar todos os aspectos nos protege de erros e de lapsos. Eis um primeiro ponto. Segundo, a lógica dialética exige que se considere um objeto em seu desenvolvimento, seu ‘movimento próprio’ (como o diz às vezes Hegel), sua transformação. (...) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar na ‘definição’ completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como determinante prático da ligação do objeto com que é necessário ao homem. Quarto: a lógica dialética ensina que ‘não há verdade abstrata’, que ‘a verdade é sempre concreta’” (cit. FERNANDES, 2012, p. 246)61.

Em razão do que aconteceu com a política soviética após a morte de

Lênin, muitos de seus textos foram controlados pela hegemonia stalinista.

Então, por um longo período, subestimou-se o caráter sempre desafiador e

aberto de Lênin. Citamos um autor que analisa esta condição e suas

peculiaridades:

“Buscam subestimar seu aporte teórico, ou esfumá-lo ao reduzir a figura de Lênin à de um homem de ação. É a posição daqueles que pretendem que a teoria, e em particular a filosofia, permaneça “pura”, não contaminada pela política. As intervenções teóricas de Lênin são apresentadas como incursões estranhas ao seu próprio campo de atividade: a política ou, em outros casos, sem nexo interno, vivo com ela. Mas, então, por que esse político prático, revolucionário, teoriza? Apenas – argumenta-se – para justificar uma prática; apenas pragmaticamente. O pragmatismo foi imputado a Lênin de forma infundada a partir dos campos hostis ao marxismo. No entanto, não se reparou suficientemente que uma caracterização semelhante foi feita por quem desempenhou um papel decisivo na codificação das ideias de Lênin como leninismo. Referimo-nos, por certo, a Stalin. Sem dúvida, não foi ele quem viu, em 1924, pouco depois da morte de Lênin, “no sentido prático norte-americano” um dos dois traços – o outro era o impulso revolucionário – característico do estilo leninista? Folga dizer que este ‘sentido prático norte-americano’ é o que

61 LENIN, V. Oeuvres. Vol. 32 (dezembro de 1920/agosto de 1921, p. 94).

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encontra expressão na filosofia burguesa mais distintiva dos Estados Unidos, o pragmatismo, e que nada tem a ver com as ‘teses sobre Feuerbach’ nas quais esse conceito sórdido de prática é expressamente rejeitado” (VAZQUEZ, 2011, p. 178-179).

Para compreendermos a mudança da política soviética basta analisarmos

a obra Sobre o Materialismo Dialético e Histórico, de Josef Stalin, publicada em

1938. O livro tem o estilo de um manual ou de um material doutrinário de

propaganda. Qual a diferença entre materialismo dialético e histórico na versão

stalinista? O materialismo dialético é assim chamado “porque o seu modo de

abordar os fenômenos da natureza, seu método de estudar esses fenômenos e

de concebê-los, é dialético, e sua interpretação dos fenômenos da natureza,

seu modo de focalizá-los, sua teoria é materialista” (STALIN, 1945, p. 01). Já o

materialismo histórico “é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao

estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade, ao estudo desta e

de sua história” (Ibidem, p. 01). ALTHUSSER (2013) declara que este texto de

Stalin “não tem nada de marxismo”, mas concorda com Stalin em retirar da

dialética “a negação da negação” “para salvar a teoria dialética marxiana do

ridículo” 62. Como seria uma dialética sem a negatividade? Não concordamos

com esta interpretação porque a retirada da negatividade é retirar o sentido da

dialética, o serviço do negativo é o que torna possível considerar a unidade dos

contrários. Muitos comentadores recorrem a Althusser para explicar a distinção

entre o materialismo histórico e o dialético, mas não se atentam para esta

questão específica que desqualifica a força da dialética.

O grande debate sobre a teoria marxiana é a relação entre Marx e

Hegel. Qual é a influência de Hegel sobre Marx? Lênin, ao ler a Ciência da

Lógica, de Hegel, percebeu sua importância a ponto de afirmar que Marx seria

incompreensível sem este pré-estudo. Não foi esta a perspectiva de Stalin que

desfigurou a dialética justificando-a sem considerar as mediações para

compreender esta realidade.

Vigotski tem uma mesma atitude na relação com a ciência que teve

Lênin e por isso não o retiramos da condição de uma época. Assim como

muitos foram perseguidos e até assassinados por adotarem uma compreensão

62 MARX, Karl. O Capital, 2013 (Advertência aos leitores do Livro I D’Capital).

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mais aberta do materialismo histórico dialético no período de Stalin, também

Vigotski, no final de sua vida, estava enfrentando problemas com suas

concepções teóricas no campo da psicologia. Lênin enfrenta na sua práxis um

fenômeno constante que poderíamos denominar “indeterminação”, pois se

impunha na dinâmica social a tendência ou para o espontaneísmo ou então

tendências fechadas, deterministas e burocráticas. A política era sempre um

campo aberto e a tendência para predeterminações era um risco que se

identificava com os preceitos deterministas. Nós não temos como subtrair de

Lênin toda sua base materialista com fundamento histórico dialético e, da

mesma forma, se o fizermos com Vigotski transformaremos sua teoria não

numa perspectiva da práxis, mas meramente pragmática. É por essa razão que

defendemos que a gnosiologia de Vigotski é materialista histórico-dialética,

mas, mais do que isso, ela é fruto das condições sociais de um tempo sem a

qual não chegaria na sua síntese teórica. Contudo, o que faremos com esta

teoria hoje, em condições bem diferentes de sua época, é algo muito diverso,

mas as premissas estabelecidas são desafiadoras na psicologia em particular –

e dentro dos dilemas atuais da civilização em geral.

Pode-se recorrer a Marx para compreender a relação entre política e

história que se vincula à dialética como caminho, que está vinculada a um jogo

aberto que lida com as tensões, conflitos, limites, obstáculos para encontrar um

fim – síntese entre o pensamento e o mundo. Encontramos esta reflexão em As

Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty, cujo título nos remete às dimensões

do inesperado, indeterminado – que exige de um ser humano a atitude ativa e

capacidade para se posicionar no mundo e sair do estado de confortabilidade,

ou melhor, de espectador. Nesta perspectiva podemos inserir Lênin nesta

dinâmica por toda história de liderança do Partido Comunista e por ter

empreendido coletivamente as mudanças, e, por isso, entendia que o ser

humano deveria fazer história e não ficar na posição de contemplação, o que

significa participar na reconstrução das estruturas institucionais em prol de um

futuro novo. É a mais esta razão que congregamos Vigotski, que estava muito

conectado ao seu tempo, não no campo da política, mas da psicologia. Embora

não seja possível fazer esta dissociação, é a política que determina a

psicologia e não o inverso. Da mesma forma, não é a economia que determina

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a política, mas o contrário. A teoria vigotskiana foi construída no campo aberto

da dialética e torna-se totalmente anacrônica em um ambiente no qual não se

garanta o compromisso mesmo da dialética. Citemos um exemplo, muitas

vezes utilizado como uma prática diagnóstica para o simples processo de

desenvolvimento cognitivo. A Zona de Desenvolvimento Proximal é uma

alternativa para atuar entre a dimensão real do saber e a dimensão do que não

se sabe. Como definir o que está num campo e noutro? É o que chamamos da

necessidade de por-se entre as contrariedades. Outro exemplo, como definir as

idades na relação com a formação das funções psicológicas superiores sem

considerar o que é possível em determinados momentos da vida de uma

criança ou de um adolescente em ambiente escolar? Definir estaticamente

estágios compromete ou anula a possibilidade de encontrar as determinações

do concreto. Impede a atuação da dialética. É por essas razões que definimos

que o materialismo histórico dialético de Vigotski está enraizado na perspectiva

revolucionária de base leniniana, isto porque é a prática social que determina

quais os problemas devem ser colocados como prioridade nas pesquisas.

Evidentemente que não é possível ignorarmos o que MARX & ENGELS

produziram, mas a articulação política de ambos nunca foi possível encontrar

uma situação favorável para transformar a realidade. Isso foi possível na

Rússia soviética.

Vigotski procurava por meio do método marxiano (e mais elaborado por

Lênin) um caminho para encontrar “a verdadeira ciência da psicologia”, uma

psicologia materialista histórica. Julgava que a obra maior de Marx

representava a síntese do uso materialismo dialético enquanto ciência mais

geral. O materialismo histórico representa a aplicação do materialismo dialético

para análise crítica da economia política. Por outro lado, haveria de ter um

materialismo psicológico que pudesse constituir-se como teoria filosófico-

metodológica de nível intermediário, capaz de fazer a mediação entre o que é

abstrato no materialismo dialético e as questões concretas com as quais a

psicologia se ocupa. É a partir desta mediação que é possível extrair um

conjunto de categorias a partir do concreto, por isso a psicologia dialética de

Vigotski poderia ser chamada também de psicologia concreta.

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Capítulo 13: A Dialética sob crítica

Depois da Segunda Guerra Mundial, a promessa de um sujeito político

carregar exclusivamente a tarefa da transformação social começou a ser

relativizada pelos resultados da organização social e política do bloco da

URSS. Não significa que os debates diminuíram em torno da emancipação

humana, mas ainda havia um espírito apreensivo para entender as causas da

guerra.

No último quartel do século XX as obras de Vigotski começam a ser

divulgadas no ocidente e depois da queda do muro de Berlin (1989) com mais

intensidade. Qual a importância que tem a teoria de Vigotski em contextos

totalmente diferentes do qual fora criada? E o que significa a teoria vigotskiana

hoje na Rússia? A psicologia vigotskiana, no final do século XX, insere-se no

âmbito da psicologia crítica. O que nos chama atenção é que neste período os

marxistas começaram a sair dos referenciais ortodoxos e a enfrentar as

questões mesmas em suas realidades locais ou regionais. Como já havíamos

nos referido anteriormente, no início do século XX, algumas escolas marxistas

abandonaram os fundamentos revolucionários, o que coincidia no abandono da

dialética.

O capitalismo tem os processos de produção fundamentados na

crescente concentração dos expropriadores em razão da crescente

concentração do capital. Esta é sua natureza intrínseca e para transformar este

sistema somente um sujeito histórico seria capaz de se libertar do jugo das leis

que regulam e legitimam a exploração. Este sujeito histórico só poderia ser a

classe proletária. Os revisionistas, pelo contrário, investem e acreditam nas

“leis naturais” para criar as condições adequadas para o salto natural de um

sistema político e econômico para outro. Influenciados pela teoria positivista

que também sustentava a evolução natural da humanidade até alcançar a

sociedade positiva, que seria comandada pelos empresários ou industriais.

Evidente que os revisionistas não almejavam uma sociedade nesta

perspectiva, mas ao negar-se a fazer as análises sobre a origem da exploração

se assemelhou à teoria positivista. Uma parte dos marxistas não concordava

com este desvio revisionista e o considerava antidialético, além disso, tornava-

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se um problema para mobilização internacional dos trabalhadores. Sem a

dialética a teoria crítica assume a neutralidade e a passividade mobilizatória, e

sua teoria passa a ser uma sociologia positivista à moda socialista utópicos.

A teoria e a prática marxista (ou práxis) sem a dialética tornam-se

vazias. O método dialético é que possibilita esclarecer ou elucidar os interesses

oportunistas. Como vimos anteriormente, Lênin foi o maior combatente das

teorias revisionistas e considerava o método dialético a marca do marxismo

revolucionário. Sobre esta questão já tratamos, como já dito, anteriormente,

mas aqui é necessário destacar novamente que Lênin defende “a

predominância absoluta da política sobre a economia”, ou seja, interpretamos

que nada adianta fazer alterações ou transformações infraestruturais sem

colocar a prevalência da superestrutura com suas dimensões políticas e

culturais. O risco de colocar na prevalência uma situação inversa é o risco de

cair no burocratismo. Este foi o debate no qual a dialética esteve envolvida

depois, ou até um pouco antes, da Segunda Guerra Mundial.

O materialismo histórico, ou a ciência histórica, e o materialismo

dialético, ou filosofia marxista. Mas aqui temos um aspecto bastante polêmico

na história do marxismo, isto porque a tradição marxista tem reforçada esta

diferenciação. Contudo, alguns marxistas condenaram esta diferenciação

“reduzindo o marxismo histórico a materialismo dialético, ou de modo inverso, o

materialismo dialético em materialismo histórico”. BADIOU & ALTHUSSER, que

enfrentam esta polêmica na obra Materialismo Histórico e Materialismo

Dialético, afirmam que tal interpretação reside no fato de que a filosofia

marxista não deu a devida “amplitude e do rigor de O Capital” (BADIOU &

ALTHUSSER, 1979; pág. 33). Para os autores “o materialismo histórico tem por

objeto os modos de produção que surgiram e que surgirão na história. Estuda

sua estrutura, sua constituição e as formas de transição que permitem a

passagem de um modo de produção para outro” (Idem, pág. 34). Aqui os

autores estão se fundamentando no que se chama “ciência da totalidade

orgânica” defendida por Marx, ou seja, a formação social está dependente de

um modo de produção determinado. A totalidade está inerente à perspectiva a

ser considerada enquanto existência de uma estrutura econômica

(infraestrutura), uma superestrutura jurídica e uma superestrutura ideológica ou

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cultural. O materialismo histórico tem esta base que estuda a natureza desta

totalidade orgânica e suas articulações. E, se tomarmos como referência o

Capital de Marx, veremos que justamente era esta a sua intenção, mas é uma

obra incompleta – pois não conseguiu tratar sobre o direito, o Estado e a

ideologia do modo de produção capitalista. É necessário, portanto, recorrer às

outras obras publicadas ou deixadas para se fazer a devida interpretação desta

totalidade orgânica. BADIOU & ALTHUSSSER chamam atenção quanto à

intenção de considerar o Materialismo Histórico e simplesmente descartar o

Materialismo Dialético. O risco de cair num historicismo é muito grande e cair

no idealismo hegeliano ao se considerar a ciência marxista uma “expressão do

seu tempo” e não um “conhecimento do seu tempo (Idem; 37). Com isto Marx

criou uma ciência, uma ciência da história, que assume um caráter especial de

“prática científica”.

Seguindo as interpretações de BADIOU & ALTHUSSER, estes alertam

para dificuldade de desenvolver um trabalho de “investigação da filosofia

marxista” considerando que recentemente as obras mais filosóficas foram

descobertas e começaram a ser analisadas pelos marxistas. Os autores

destacam que Marx faz declarações sobre “a negação da filosofia” (Idem; pág.

40). Ou seja, até Feuerbach, a filosofia era mera especulação e que a filosofia

deveria passar deste estado de especulação para um estado mesmo de

“prática concreta”. Sendo assim o materialismo dialético desapareceria e se

confundiria com o materialismo histórico. Mais do que isto, os autores também

destacam que nas obras de Marx é apenas no segundo posfácio dO Capital

que encontraremos uma exposição mais explícita sobre a dialética. As obras de

outros marxistas (Engels e Lenin) são consideradas muito mais como “medidas

defensivas urgentes” e que ficam devendo para a monumental obra de Marx.

Os autores afirmam ainda que com os estudos sobre O Capital é possível

chegar à seguinte conclusão que transcrevemos aqui:

“O Materialismo dialético é uma disciplina teórica distinta do materialismo histórico. A distinção entre estas duas disciplinas repousa na distinção que existe entre seus objetos.

O objeto do materialismo histórico está constituído pelos modos de produção, sua organização, seu funcionamento e suas transformações.

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O objeto do materialismo dialético está constituído pelo que Engels chama “a história do pensamento”, ou o que Lenin denomina “a história da passagem da ignorância ao conhecimento”. Podemos ser mais precisos para designar este objeto como a história da produção de conhecimento enquanto conhecimento, definição que abrange e resume outras possíveis definições: a diferença histórica entre ciência e ideologia, a teoria da história da cientificidade, etc. (Idem, pág. 43).

Para deixar claro sobre a diferença de objeto que distingue estas duas

“disciplinas” os autores esclarecem mais uma vez:

“(...) no materialismo histórico, se refere à teoria da produção do ‘efeito do conhecimento’ por uma prática teórica dada. Se certos termos são comuns em ambas disciplinas, a diferença das práticas intervém nelas diferentemente sob a forma de combinações distintas e como resposta a questões distintas. Logo, o objeto do materialismo dialético é, sem dúvida alguma, diferente do objeto do materialismo histórico” (Ibidem, pág. 44).

Ainda não fica totalmente claro a abordagem que compete ao

Materialismo Dialético e, para isto, seguindo os autores em destaque que

abordam esta diferenciação, é necessário compreender a noção de teoria e

método.

“A teoria, que contém o sistema conceitual teórico no qual se pensa o objeto” e o “método que expressa a relação que mantém a teoria com seu objeto na sua aplicação ao mesmo” (Ibidem, pág. 45).

É necessário fazer esta distinção para não cair no caráter

“metodologista” ou então no empirismo simplesmente. E para concluir esta

distinção é necessário identificar como BADIOU & ALTHUSSER correspondem

a teoria e o método no materialismo dialético. Eles enfatizam que o

materialismo é uma teoria e que a dialética é um método. Contudo, cada um

dos termos está ligado ao outro. Por fim, é necessário deixar claro os princípios

do materialismo, ou seja: “1. A primazia do real sobre seu conhecimento, ou

primazia do ser sobre seu pensamento. 2. A distinção entre o real (o ser) e seu

conhecimento” (Idem; pág. 46). O materialismo dialético só pode produzir

conhecimento, portanto, considerando a história.

MARCUSE escreveu uma obra magnífica, Estado e Revolução (que é

uma de nossas referências principais) para analisar o sistema filosófico

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hegeliano e defende a tese de que é a partir deste sistema filosófico que a

teoria social ganha importância e abrangência. Hegel analisa como o estado e

a sociedade haviam se transformado e como havia se legitimado. Marcuse

(1969) cita:

“Hegel foi o último a interpretar o mundo como razão, a sujeitar a natureza e a história aos critérios do pensamento e da liberdade. Ao mesmo tempo, ele identificou a ordem política e social efetuada pelos homens com a base sobre que se devia realizar a razão. Seu sistema trouxera a filosofia ao limiar da negação da filosofia, constituindo por isso o único elo entre as formas velhas e nova da teoria crítica, entre a filosofia e a teoria social”. (Ibidem, p. 232)

“O método, porém, que funciona neste sistema, tinha alcance muito mais amplo do que os conceitos que produziu. Pela dialética a história fora incorporada ao próprio conteúdo da razão. Hegel demonstrara que os poderes materiais e intelectuais da humanidade haviam se desenvolvido o bastante para convocar a prática social e política e realizar a razão” (Ibidem, p. 232)

Como uma primeira aproximação ao problema, podemos dizer que no sistema de Hegel todas as categorias acabam por se aplicar à ordem existente, enquanto que no sistema de Marx elas se referem à negação desta ordem. Elas visam a uma nova ordem da sociedade. Elas se dirigem essencialmente a uma verdade que está para vir através da abolição da sociedade civil. A teoria de Marx é uma “crítica”, no sentido que todos seus conceitos são uma acusação à totalidade da ordem existente” (Ibidem, p. 236).

Sob estas questões já apontamos detalhadamente nos capítulos

anteriores, mas aqui nos atemos ao que Marcuse analisa na sua obra: Três

detalhes importantes, pequenos, mas importantes: 1) é uma obra com a

seguinte dedicatória: “para Max Horkheimer e o instituto de Psicologia Social”.

Marcuse é um dos membros do Instituto de Psicologia Social (mais conhecido

como Escola de Frankfurt) com todos os problemas de reação com seus

diretores – sua origem teórica encontra-se nesta escola; 2) este livro foi escrito

em 1941 e está se posicionando sobre como o hegelianismo foi utilizado neste

período; 3) escreveu um epílogo em 1954 especialmente para este livro. É

sobre ele que aqui iremos nos ater com mais atenção.

“A derrota do Fascismo e do Nacional-Socialismo não deteve a inclinação para o totalitarismo. A liberdade está em retirada – tanto no domínio do pensamento como no da sociedade. Nem a razão hegeliana, nem a razão marxista se aproximaram da realização; nem o desenvolvimento do Espírito, nem o da Revolução tomaram a forma visada pela teoria dialética. E, contudo, os desvios eram inerentes à estrutura mesma que essa teoria havia revelado – eles não vieram de fora; nem de modo inesperado” (Ibidem, p. 401).

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Está Marcuse constatando desvios dentro da concepção dialética? A

efetivação da razão e a liberdade não se realiza tanto numa perspectiva da

razão hegeliana como marxiana. Por que o homem é escravizado pela sua

própria produtividade? Por que adia sua satisfação? Por que não consegue se

libertar de estruturas de dominação? Conforme Marcuse, “o triunfo do Espírito

abandonava o Estado à realidade” – ou seja, o que havia se realizado no

histórico era o possível de se realizar, mas esta não consistia na “realização

final da razão” (Ibidem, p. 401). Esta permanecia numa possibilidade, numa

abstração onde “Nous” e “Theos” coincidiam. Para Marcuse a filosofia ocidental

resignava-se nesta busca pela Razão e Liberdade na divindade, ou seja, “a

divinização do Espírito implica reconhecimento da sua derrota na realidade”

(Ibidem, 401). Hegel foi o filósofo que se consistiu no último esforço para

relacionar o Espírito com a realidade, mas isso depois se tornou muito difícil, a

negatividade para Hegel é a força inerente para compreender a realidade como

também de alterar a realidade. É o trabalho da negatividade a rejeição do

positivo assim que este se interpõe para barrá-lo. Enquanto a liberdade não for

real, a razão é negação. E, se o poder da razão, em seu aspecto negativo, for

destruído? A lei positiva se instaura e desenvolve toda sua força de realização.

Podemos ver isso no progresso industrial na civilização – e sua teoria

positivista (que não é fortuito assim se denominar!) que se constitui no aparato

teórico para sustentar a eficiência dos controles para reprimir (senão liquidar) a

força do negativo. “A contradição foi absorvida pela afirmação do positivo”

(Ibidem, p. 402), enfatiza Marcuse. Qual seria a função do Espírito hoje, senão

“liquidar o poder da negatividade?”. Será que a “Razão identificou-se com a

realidade?”. Será que nestas condições o Espírito se realizou e não voltou mais

pela efetivação da positividade?

E a razão marxiana? Teria conseguido êxito? Marx cria que a sociedade

capitalista havia se desenvolvido de tal forma que poderia realizar a Razão e a

liberdade, mas deveria negá-la. Nega a sociedade capitalista para alcançar a

Razão e a Liberdade. O socialismo seria a resposta para que pudesse se

garantir o básico para todos os seres humanos e a base vinha do capitalismo –

no acirramento de suas contradições até chegar ao ápice de sua realização e

trazer os elementos para a transformação – não sem a revolução. Mas esta

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transformação, não visão de Marx, se efetivaria com o papel preponderante e

hegemônico da classe proletária. Ou seja, a realização da liberdade. Em um

sentido estrito, comenta Marcuse, “a libertação pressupõe a liberdade: a

primeira só pode ser estabelecida se empreendida e sustentada por indivíduos

livres – livres das necessidades e dos interesses que pertencem à dominação e

à repressão” (Ibidem, p. 403). Mas como enfrentar os interesses? Há aqueles

que não reconhecerão estes preceitos libertários. Levar a dominação e a

repressão à nova sociedade seria inevitável para justamente ter que distinguir

os interesses “verdadeiros” dos “imediatos”. Neste caso, a libertação das

amarras da dominação para obtenção da liberdade tenderia a ser gerenciada

por critérios e os indivíduos transformados em objetos.

Há uma diferença do capitalismo analisado por Marx e aquele que

sobreveio mais tarde. O capitalismo no tempo de Marx era um capitalismo livre

em processo de organização – até alcançar um modelo de “capitalismo

dirigido”. Não significa que Marx não tenha percebido o processo de

transcrição, mas na efetivação deste capitalismo esperava-se a ampliação das

contradições inevitáveis. A solução revolucionária era um desfecho não natural,

mas enfaticamente uma necessidade e não mais uma contingência. Mas o que

nós assistimos na virada do século XIX para o início do século XX foi a

organização cada vez mais eficiente do capitalismo e “a força negativa do

proletariado foi sendo progressivamente reduzida” (Ibidem, p. 404). Os

trabalhadores cada vez mais foram assimilados pela força produtiva

estabelecida. A melhoria das condições de vida havia melhorado e estas

estavam em situações bem diferentes daquelas ampla e minuciosamente

descritas por Karl Marx n’O Capital. Mas a ampliação possibilitou a ampliação

também da exploração para outras partes o que resultou em guerras para

demarcar as regiões disputadas para comercialização de produtos. O

progresso tecnológico ganhou amplitude muito maior do que no século XIX e

na mesma direção as necessidades e as satisfações – aumentando com isso a

repressão e a condição de objetos na sociedade como fora tão bem explicitada

nos manuscritos Econômico-Filosóficos de Karl Marx. A crítica foi suprimida, a

ideologia burguesa torna-se triunfante “e o desenvolvimento da consciência

torna-se uma prerrogativa perigosa de marginais” (Ibidem, p. 405).

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A produção e distribuição de mercadorias propiciaram um grau elevado

de organização administrativa e a burocracia onde predomina a neutralidade da

responsabilidade dentro do sistema tão bem enunciado por Max Weber ao

enfatizar os elevados processos de racionalização e burocratização como se o

ser humano se restringisse cada vez mais dentro de uma “jaula de ferro”.

O crescimento da produtividade do trabalho propiciou a produção em

massa, o consumo em massa e a manipulação em massa. Esta dinâmica

propiciou também a concentração econômica 63 que, associada ao avanço

tecnológico, tornou mais difícil a viabilização das estratégias revolucionárias e

porque não dizer obsoletas.

Ironicamente, a sociedade soviética contribuiu para que o ocidente se

unificasse enquanto sistema capitalista e isolasse as possibilidades de

expansão da revolução bolchevique. Por outro lado, a União Soviética utilizou

ou reproduziu a repressão e perdeu a condição de superação. Competiu com o

mundo ocidental viabilizando programas de industrialização para atingir o

progresso tecnológico.

Marcuse entende que expressões tais como “cultura popular” ou

“democracia de massa” não passam de eufemismos criados pela sociedade

industrial. Esta sociedade “conseguiu controlar sua própria dialética, com base

na sua própria atividade” (Ibidem, p. 407). Tanto o idealismo dialético como o

materialismo dialético não conseguiram dar conta de uma nova razão e nova

libertação. A libertação do indivíduo está ainda no campo da utopia, escreveu

Herbert Marcuse, no epílogo da obra Estado e Revolução (1941). Epílogo este

somente redigido em 1954, quando da sua reedição.

63 No capítulo 24 (A assim chamada acumulação primitiva), Livro I, O Capital, Karl Marx analisa a acumulação primitiva baseada inicialmente na propriedade privada individual e sua negação à propriedade privada capitalista. A acumulação é uma característica inerente do modo de produção capitalista expresso desta forma: “Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores são expropriados”. (MARX, O Capital - Crítica da Economia do Capital, 2013). Pág. 832.

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Vivemos no século XXI com desafios diferentes da época de Vigotski,

mas os desafios tanto da área da psicologia como da educação continuam

ainda muito presentes. Como podemos entender que as relações sociais são

determinantes na formação de um sujeito? Submetidos hoje a um volume

grande de instrumentos, ferramentas, artefatos – que ficam no campo das

mediações – e que são instrumentos de comunicação de massa. Os meios

produtivos se alteraram drasticamente no início do século XXI colocando novos

desafios para libertação e emancipação humana. A teoria vigotskiana não

instiga somente compreender o psiquismo humano a partir das relações

sociais, mas continua dentro da psicologia dialética, já que não conseguiu

concluir sua teoria, o apelo para fundamentar uma unidade de análise que

possibilite potencializar o ser humano na ação. Emprestando os fundamentos

tão importantes de Espinosa e sempre referenciados como um recurso da

razão para compreensão das dimensões do psiquismo humano “padece quem

não age” e a “alegria” está ligada à ação e quem não poder agir está ligado ao

“padecimento”. É por esse sentido que a teoria vigotskiana vai se aproximando,

fora de seu contexto histórico, com a filosofia espinosana.

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Capítulo 14: Dialética do Esclarecimento

Quando os contratualistas do século XVII iniciaram os estudos sobre

a natureza humana (HOBBES, LOCKE, ESPINOSA e mais tarde ROUSSEAU)

a grande questão residia na relação entre natureza e cultura. Sempre foi

polêmico este estudo que trata desta passagem do estado natural para o

estado Cultural. Nos escritos de Vigotski, influenciado também pelos estudos

antropológicos, é um debate central. Um estudo necessário é definir em

Vigotski seu entendimento sobre natureza e cultura, mas, antes disso,

colocaremos uma obra de grande repercussão na última metade do século XX,

que tratou deste assunto e que continua sendo referência para os debates.

Karl Popper (1902-1994) posicionou-se contra a vertente do

historicismo escrevendo o que poderia ser chamado de uma tréplica ao

exposto por Proudhon na Filosofia da Miséria e confrontado por Marx na

Miséria da Filosofia até chegar nas suas conclusões sobre A miséria do

historicismo. Popper afirma que o “historicismo é um método pobre – método

que não produz fruto algum” e “por força estritamente lógica é-nos impossível

predizer o futuro curso da História” (POPPER, p. 5). A refutação ao historicismo

ele resume em “cinco enunciados”: 1) o conhecimento humano tem um

crescimento constante; 2) não é possível “predizer” como o conhecimento

científico será expandido; 3) “não é possível prever o futuro curso da história

humana”; 4) não há como ter uma base sustentável com a predição histórica;

5) os métodos historicistas são um equívoco e tendem a aniquilar-se. As

reformas que ocorreram na área das ciências sociais levaram ao

desenvolvimento de métodos apropriados para que seja possível analisar a

realidade social. No campo da psicologia despontou-se os estudos de Wundt

que instituiu a reforma ampla nesta área com aplicação de métodos objetivos e

foram muito influenciados pelas “escolas positivistas”. Na verdade, Popper está

fazendo críticas às abordagens positivistas que tem como “principal objetivo, o

fazer predição histórica, admitindo que esse objetivo será atingível pela

descoberta dos ritmos ou dos padrões, das leis ou das tendências subjacentes

à evolução da História. Estes métodos são influenciados pelo emprego de

“metodologia naturalista”. Denomina Popper estes historicistas como aqueles

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que defendem certas “uniformidades sociais” e acusa Marx como sendo um

dos principais representantes ao afirmar a tão famosa frase de que os filósofos

se limitam a interpretar o mundo, mas deveriam transformá-lo. Quando as

ciências sociais baseiam-se suas análises em predições sobre eventos

previstos tende a influenciar no “observador previsor”. Ou seja, Popper defende

uma ciência neutra que o pesquisador é imparcial, um observador – o que de

fato é totalmente contrária à corrente marxista. Contudo, Popper está

enfatizando as predições, as previsões sobre o futuro e numa perspectiva

positivista do futuro o marxismo e positivismo almejam um futuro positivo. No

marxismo o comunismo é para todos e no positivismo a sociedade positiva

depende dos indivíduos altamente capazes para alcançar o grau mais elevado

de harmonia. A Escola de Frankfurt também fará muitas críticas ao modelo

positivista, mas não concordará com Popper quanto à visão da neutralidade da

ciência.

No prefácio da segunda edição de Dialética do Esclarecimento

(ADORNO & HORKHEIMER; 1985), em 1969, já haviam decorridos mais de

vinte anos da publicação da primeira edição nos Estados Unidos. São tempos

bem diferentes de uma edição para outra. O livro foi escrito no final dos anos

40 nos Estados Unidos, no período de exílio. Na primeira edição (1947), os

autores alemães perguntavam-se por quais razões “a humanidade, em vez de

entrar em um estado verdadeiramente humano, [estavam] se afundando em

uma nova espécie de barbárie” (Ibidem, p.11). Os autores reconhecem que

havia, naquele momento, uma “confiança excessiva” na capacidade humana de

superar a condição de alienação, mas o que se via era o fracasso das teorias e

as formas pelas quais sobressaiam “as atividades científicas modernas”

marcadas pelas grandes inovações tecnológicas. Os autores escolheram como

única alternativa estabelecerem suas reflexões no campo da sociologia, da

psicologia e da teoria do conhecimento. No prefácio da segunda edição, então

na Alemanha, há uma citação que apresenta uma preocupação diferente da

anterior. É o momento dos acirramentos da guerra fria.

“No período da grande divisão política em dois blocos colossais, objetivamente compelidos a colidirem um com o outro, o horror continuou. Os conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento renovado do totalitarismo não são meros incidentes históricos, assim como tampouco o foi, segundo a Dialética, o fascismo em sua época. O

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pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da

história” (Ibidem; p. 9).

No pós-guerra, a confiança fora recolocada no seu devido lugar e

pôde-se analisar o que a civilização burguesa seria capaz a partir de então.

Qual é o sentido da ciência nesta civilização burguesa? O que se viu na

Primeira Guerra Mundial deixou perplexos nossos autores a ponto de

declararem que a humanidade com seus especialistas levou “à autodestruição

do esclarecimento”, e, consequentemente, negava-se ao pensamento “o último

vestígio de inocência em face dos costumes de uma época” (Ibidem; p. 11). Os

costumes de uma época são construídos sobre os alicerces da opinião pública

que transforma o “pensamento em mercadoria”. Isto na visão dos autores é

uma depravação que precisa ser desnudada pela recusa “da lealdade às

convenções linguísticas e conceituais em vigor”.

Com estas críticas, o Instituto de Pesquisa Social com seus principais

representantes e com sede na Alemanha, em Frankfurt, ganhou notoriedade

após a guerra como um reduto de crítica ao marxismo ortodoxo, embora

continuasse a representar um baluarte em defesa do projeto da “união da teoria

crítica com a prática revolucionária” (JAY, pag. 317). Este projeto na década de

60, entretanto, assumira gradativamente um projeto diferente do que havia sido

proposto ou definido na fundação do instituto. Quando terminou a Segunda

Guerra Mundial, Horkheimer e Adorno continuaram exilados nos Estados

Unidos da América e avaliavam a mudança da realidade social que exigia ou

demandava nova postura teórica.

A redação da Dialética do Esclarecimento já estava nas

preocupações de Horkheimer no início de 1942 e sua publicação só ocorreu

em 1947, mas só veio mesmo a ter ressonância no final da década de 1960. A

crítica desenvolvida pelos autores tornou-se mais radical e quanto mais radical

se propunha, menos havia possibilidade de ser acompanhada por uma práxis

radical.

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A experiência socialista na URSS, para os autores, era desanimadora,

associada ainda ao pessimismo com a classe trabalhadora constituir-se

naquele sonhado papel de sujeito de transformação social, como sujeito

histórico. A classe trabalhadora agora estava integrada à cultura de massa e

aos padrões de bem-estar social. O marxismo ortodoxo defendia que a classe

trabalhadora deveria enfrentar a civilização burguesa, mas esta estava

subjugada de forma muita mais perversa do que antes, se assim é possível de

se expressar e de fazer comparações, estava em situação pior ao período

anterior das guerras mundiais. Saindo desta polaridade analítica de lutas de

classes, mas sem desconsiderá-la, os autores deslocaram as análises

clássicas marxistas para a relação entre o ser humano e a natureza.

Com a derrocada do fascismo, o capitalismo de Estado aparece mais

violento e as mediações típicas da sociedade burguesa dão lugar para “a

vingança da natureza pela crueldade e exploração que o homem ocidental lhe

impusera durante gerações” (Ibidem, p. 321).

Quando Horkheimer assumiu a direção do Instituto de Pesquisa

Social em Frankfurt, antes da II Grande Guerra, havia inaugurado sua gestão

com uma palestra: As origens da filosofia burguesa da história. Já naquele

momento ensaiava as análises sobre a relação entre a perspectiva

renascentista da ciência e da tecnologia com a comunidade política. Como é

sabido, o período Renascentista é reconhecidamente o período de grandes

descobertas científicas que sobrevieram com o objetivo determinante de

conhecer e controlar a natureza. Um exemplo sobre a relação citada é a

produção de Nicolau Maquiavel, umas das primeiras obras políticas, escrita na

modernidade, expõe a natureza do domínio do homem sobre o homem. Ao

defender o papel do príncipe e as diferentes formas de governo defendia o

papel da nobreza para constituição de uma ordem pública. Horkheimer opunha-

se a Maquiavel não sob a perspectiva de que o ser humano não pudesse ser

esclarecido sobre esta separação entre o ser humano e a natureza, mas em

razão da irreversibilidade da natureza de conciliar-se com o ser humano.

Dentro do preceito hegeliano de história, a civilização modificava a civilização e

a própria definição dela se modificava e a história e a natureza se

reconciliavam e não se opunham. Contudo, no século XVII, identificava-se o

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ser humano à natureza e colocava-se ao mesmo tempo o ser humano como

objeto da mesma forma como também a natureza havia sido objetivada pela

ciência da época. Relembremos as referências de Renè Descartes (1596-1650)

que considerava o ser humano uma máquina.

Os autores recorrem à Giambattista Vico (1668-1744) que havia

coordenado a metafísica cartesiana. O ser humano deveria ser compreendido

como aquele que faz história, de outra forma, faz e é feito história. Para os

autores, Vico havia com isto se adiantado ao que o marxismo adotaria com

maior radicalidade: a atividade é a chave para entender o desenvolvimento da

história. Vico não considerava o ser humano e a natureza a mesma coisa.

Fazia a distinção, mas não sobrepunha um ao outro. Horkheimer cita Vico para

criticar veementemente a perspectiva cartesiana ao fazer a separação entre

sujeito e objeto. Para Adorno & Horkheimer, a absolutização desta separação

tinha o interesse de fazer o conhecimento servir ao status quo burguês. Esta

condição foi interrompida por Hegel. O Iluminismo assumiu este caráter e os

autores defendem a necessidade de estudar com mais profundidade a sua

herança. Este estudo não significava recorrer à estrutura material da

sociedade. Ora, partindo desta referência, Marx foi incluso na tradição

iluminista porque enfatizava, na visão dos autores, a centralidade do trabalho.

Isto reduziria o ser humano a um ser laboral e o planeta numa gigantesca

oficina.

O pessimista sociólogo alemão foi referência instigante para os

autores da Dialética do Esclarecimento, isto porque prognosticava, diferente do

otimista Marx, o desencantamento do mundo. A obra dos autores parte desta

síntese de Max Weber, pois trata da racionalização do mundo e os processos

de burocratização. A visão pessimista de Weber consistia na resignação ao

que de fato acontecia no estágio pós-guerra do capitalismo. Adorno &

Horkheimer ainda vislumbravam a possibilidade de interromper esta posição

que Max Weber tão emblematicamente sustentava com a identificação ao

capitalismo como “destruição criadora”. Os autores ainda sustentavam que a

razão como baluarte para conciliar as contradições deste mundo que cindia o

ser o humano e a natureza. A origem está no Iluminismo porque este

movimento da maioridade, assim identificado por Kant, almejava superar as

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concepções mitológicas por aquelas que se orientariam pela razão, mas

conforme Adorno & Horkheimer “foram vítimas de um novo mito”. Esta é a

temática central da Dialética do Esclarecimento. No Iluminismo havia a crença

que deus controlava o mundo e os seres humanos se colocavam inferiores na

análise dos objetos. O que ocorrerá? Espiritualizou-se os objetos e o

capitalismo objetivou o espírito. “O animismo espiritualizou os objetos”, ou seja,

foi estabelecida a conexão entre o interior e o exterior mesmo não tendo

consciência desta conexão. “O industrialismo”, pelo contrário, “objetivou o

espírito”. O pensamento esclarecido considerava o mundo como aquela

concepção de Leibniz, qual seja, um conjunto de mônadas que a partir de si

criava a sua própria representação do mundo.

A filosofia hegeliana ainda preservou “a sensibilidade primitiva” e a

relação entre o sujeito e objeto, mas considerava as mediações. O conceito

para Hegel deveria ser compreendido a partir da compreensão morfológica. Em

alemão conceito é “begriff” (apreender). O sentido é o movimento da apreensão

do conteúdo que tanto poderia ser negativo como positivo. A epistemologia do

Iluminismo substituiu conceitos por fórmulas, fórmulas matemáticas. Para

Adorno & Horkheimer “a repetição estágica do tempo mítico fora preservado”

(p. 236) frustrando a possiblidade dinâmica do desenvolvimento histórico. Os

autores viam um defeito desastroso: a dominação iluminista da natureza sobre

as interações dos homens (p. 236). Os autores entendiam que esta força do

Iluminismo de dominar a natureza também era consequente para elevar a

dominação entre os homens. É a manipulação instrumental que se estabelece

e é levada para as relações humanas. Esta condição consistia numa

oportunidade para o surgimento de estados autoritários modernos.

Todas as mudanças desencadeadas pelo pensamento iluminista

refletiam excepcionalmente na linguagem. Para Adorno & Horkheimer, a

verdadeira filosofia deveria adequar o nome às coisas. Considerando que os

seres humanos não se encontram livres, portanto, não lhes cabe neste

momento as soluções, mas a negação. Os iluministas eliminavam a negação

na linguagem. Fizeram substituindo os conceitos pelas fórmulas. O ser humano

inventou nomes compatíveis com o domínio da natureza. Com a eliminação da

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negação, com a impossibilidade de expressar a negação passou a ser a

expressão instrumental das forças dominantes da sociedade.

Adorno e Horkheimer expõem na Dialética do Esclarecimento o

desenvolvimento do espírito iluminista analisando a indústria cultural e o

antissemitismo e concluem em tom pessimista que o ser humano alienou-se à

natureza dando a impressão de uma condição humana irreversível. Rejeitam

as perspectivas otimistas do cristianismo, idealismo e materialismo histórico,

porque se propõem a negar o existente do que propriamente a efetivação da

transformação da realidade.

Os autores são mais enfáticos quanto ao papel da filosofia, cada vez

mais instrumentalizadora, incapaz de promover qualquer mudança social. Em

Eclipse de Razão Horkheimer faz um alerta:

“A própria teoria filosófica não pode determinar se deve predominar no futuro a tendência barbarizante ou a visão humanística. Contudo, ao fazer justiça aquelas imagens e ideias que em determinadas épocas dominaram a realidade exercendo o papel de absolutas – por exemplo, a ideia de indivíduo tal como predominou na época burguesa – e que foram abandonadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como um corretivo da História, por assim dizer. Assim, os estágios ideológicos do passado não seriam identificados simplesmente à estupidez e à fraude tal como o veredicto estabelecido contra o pensamento medieval pelo Iluminismo Francês. As explicações sociológicas e psicológicas das crenças antigas seriam distintas da condenação e supressão filosóficas das mesmas. Despojadas do poder que tinham em sua situação na época, serviriam para lançar alguma luz sobre o rumo atual da humanidade. Assumindo esta função, a filosofia seria a memória e a consciência da espécie humana, e deste modo ajudaria a evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circulação sem sentido da hora de recreio de um manicômio” (pag. 191. Horkheimer. Elipse da Razão).

A escola de Frankfurt, em 1940, não fora explícita quanto aos

métodos para modificar a sociedade. Era óbvio que havia necessidade de

reconciliação com a natureza, mas sob quais programas ou em quais

condições? A Escola de Frankfurt não queria trazer em evidência a Dialética da

Natureza de Engels. Os autores defendiam que não se tratava de definir se a

natureza era boa ou má, até porque a reconciliação total, no sentido de uma

identidade completa, só poderia resultar no retorno a um “estado de impotência

mediada” (JAY, p. 333).

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“A teoria crítica continuava a enfatizar a não-identidade de um modo que impedia a redução do sujeito ao objeto, e vice-versa. Nesse ponto, seus criadores diferiam de Benjamin e de Ernest Bloch, cuja filosofia da esperança falava da ressurreição de um sujeito natural de uma forma que parecia obliterar a distinção entre sujeito e objeto. A utopia da reconciliação não seria preservada na unidade do objeto e da percepção, mas sim na oposição reflexiva entre eles, afirmaram Horkheimer e Adorno. Em outro ponto, deixaram claro que a memória da natureza, e não a natureza em si, era inimiga da dominação” (Ibidem, p. 333).

Com a leitura dos textos de Vigotski podemos nos atentar à sua

preocupação em mostrar que no ser humano existe reciprocamente

continuidade e ruptura entre o biológico e o cultural. Continuidade porque o

cultural não tem como dissociar-se do biológico; e biológico porque transforma-

se em cultural. Isto não significa que o biológico desaparece, pois sem este não

haveria cultura. Mas o que é cultura para Vigotski? Ele responde muito

suscintamente: cultura é o produto das relações sociais e da atividade social

dos seres humanos. Com isso está destacando duas questões fundamentais:

primeiro, “cultura” é produção humana; segundo, a produção do primeiro

define-se como relações sociais e atividade sociais.

A noção de cultura de Vigotski não foi aceita pela ortodoxia marxista no

início da década de 20. Além do cultural haveria também necessidade de

definir o que é social. Dificilmente encontraremos contrariedades quanto a esta

condição da passagem do biológico para o cultural nos dias de hoje, e com o

reconhecimento da natureza humana, em que Vigotski estabelece a relação

entre as funções psicológicas inferiores (ou elementares) e as funções

psicológicas superiores. O ser humano é obra da cultura e não da natureza e

se a cultura é resultado do ser humano podemos concluir que o que é humano

é da própria criação do ser humano. Por outro lado, se há a especificidade

humana como sua obra, como negar que não seja um resultado da natureza?

Quando Vigotski trata dos instrumentos ou das ferramentas como mediação da

cultura podemos também nos perguntar: até que ponto estas ferramentas são

necessárias? Eis um paradoxo que a Escola de Frankfurt trouxe de forma muito

pessimista para a civilização: a própria natureza se apresenta vingativa contra

o desejo da supremacia humana.

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Capitulo 15: Dialética da Ontologia do Ser Social

Marx deu à dialética sua base real, colocou “em pé”, como também

retirou a crítica da economia política da rigidez fetichista e da estreiteza

abstrata da qual a economia estava sujeita (MÉSZAROS, 2013, p. 62). É sob

esta base que a teoria vigotskiana foi construída que exigia constantemente se

perguntar “o que é ser?” E “quem é o ser?”. Questões estruturantes para a

psicologia e fundamentais para a psicologia dialética. Contudo, estas duas

perguntas não foram explicitamente respondidas por Vigotski, mas isso se deve

ao anti-marxismo que surgiu dentro da própria revolução socialista. György

Lukács lucidamente trata da questão da ontologia do ser social que pode ser,

sua teoria, complemento e reforço para teoria vigotskiana. Nos escritos de

Vigotski é muito comum encontrarmos as reflexões sobre a relação entre

necessidade e liberdade – categorias fundamentais para serem esclarecidas e

elucidadas dentro da psicologia dialética.

A dialética marxista foi um tema sempre presente nas obras de Lukács

e a sua obra mais marcante foi História e Consciência de Classe – Estudos

sobre a dialética marxista, publicada em 1920. Nesta obra Lukács esclarece o

que era o materialismo histórico e o que passou a ser. Escrito logo após a

Revolução de Outubro e motivado com as possibilidades de engajamento

social e mobilização revolucionária envolve-se com o movimento socialista.

História e Consciência de Classe representa o baluarte que veio para distinguir

e colocar definitivamente o movimento da Social Democracia na sua residência

“reformista”. Mas a preocupação de Lukács muito maior é o fortalecimento da

substancialidade do materialismo. O materialismo era um “método científico

para compreender os acontecimentos do passado”, mas permitia também

“visualizar as forças motrizes mais profundas da história”. Esta era uma

condição que transformava a história como ciência e tornava compreensível a

frase de Marx: “nós conhecemos uma única ciência, a ciência da história”.

Lukács, desde que iniciou seus estudos sobre literatura, tinha aversão às

concepções individualistas e sobre esta condição conseguir trazer a forma mais

presente para teoria marxiana a noção de totalidade.

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“O ponto de vista da totalidade não determina, todavia, somente o objeto, determina também o sujeito do conhecimento. A ciência burguesa – de maneira consciente ou inconsciente, ingênua ou sublimada – considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista do indivíduo. E o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a “fatos” desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade. Somente as classes representam esse ponto de vista da totalidade como sujeito na sociedade moderna” (LUKÁCS, 2012, p. 107).

A totalidade sem mediações para Lukács é como “liberdade sem

igualdade”. Totalidade e mediação são duas categorias fundamentais para o

pensamento lukacsiano. As mediações são de tantas maneiras, são totalidades

parciais que estão em interação numa dinâmica geral. Dois extremos podem

ser considerados: i) culto à totalidade como imediaticidade – aqui se constitui a

completa negação das mediações que podem só resultar no mito, como o

exemplo do nazismo; ii) culto da imediaticidade e negação da totalidade –

produz desorientação – nestas condições é fácil aceitar o que é inumano.

Numa passagem que Lukács escreveu no livro chamado As tarefas da

filosofia marxista na nova democracia podemos entender bem a relação entre

totalidade e mediação:

“A concepção materialista dialética da totalidade significa, em primeiro lugar, a unidade concreta das contradições interagentes (...); em segundo lugar, relatividade sistemática de toda totalidade tanto para cima quanto para baixo que significa que toda totalidade é constituída de totalidades subordinadas a ela, e também que a totalidade em questão, é, ao mesmo tempo, sobredeterminada pelas totalidades de complexidade maior; e, em terceiro lugar, a relatividade histórica de toda totalidade, isto é, o caráter de totalidade é mutável, desintegra-se, é limitada a um período histórico concreto e determinado” (cit. MESZÁROS, 2013, p. 58).

A constante preocupação de Lukács com a dialética se deve à sua

contrariedade com a defesa do movimento operário do materialismo

mecanicista; a incompletude das obras de Marx; e, portanto, era necessário

retornar a elas para compreender as questões da dialética e em razão de que a

humanidade corria e corre riscos de autodestruição e a dialética tem a potência

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de denunciar o irracionalismo. Para tanto, depois de ter escrito uma obra

monumental voltada para “estética” e a tendo concluída em 1960, começa

outra obra, mas que não consegue concluir como gostaria: Para uma ontologia

do ser social. Em 1970 conclui, mas não se satisfaz e começa a escrever

Prolegômenos para uma ontologia do Ser Social. Na ontologia, Lukács critica o

neopositivismo, no qual o autor identifica o reino da manipulação. Há uma

perspectiva de homogeneização cada vez mais explícita da vida social,

submetidas aos imperativas do cálculo e da quantificação – opõe-se contra a

captura do ser humano, contra o confisco do ser humano à manipulação.

Lukács, por outro lado, sabia do extremo empobrecimento do pensamento

marxista na época, principalmente aquele fundamentado na época de Stalin na

União Soviética. A ontologia é um esforço de releitura e a densidade e a

substancialidade do pensamento marxista.

O conceito de necessidade foi ponto de partida na Ontologia. Sua

crítica é endereçada a Engels como aquele que interpretou uma perspectiva

logicizante e necessitarista da história. Esta perspectiva foi muito defendida na

II Segunda Internacional e no período stalinista ganhou proporções fora de

controle. Lukács preocupa-se em distinguir o pensamento ontológico de Marx

da interpretação de Engels que para ele estava muito impregnada de logicismo

hegeliano. Acusa Engels como responsável pela deformação máxima que

alcançou o stalinismo.

O texto integral de Para uma Ontologia do Ser Social só apareceu em

1981 e na versão alemã que contém também os Prolegômenos para uma

Ontologia do Ser Social.

Nossa referência é Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social,

que é uma tentativa para expor “em temas mais claros e sintéticos o seu

programa de reconstrução da Ontologia” (TERTULIAN, 2010, p. 386). Foi

concebido para servir de introdução ao texto da Ontologia, mas não alterou

substancialmente o conteúdo anterior.

Lukács vê em Engels aquele que cometeu uma “distorção da relação

entre universal e particular” ou entre necessidade e casualidade. Subestimou a

força da casualidade e elevou “a força impessoal, ou a de um deus

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abscônditus” que nada mais é reminiscência da filosofia hegeliana (Ibidem, p.

389).

Antes de Lukács, um filósofo já fizera oposição direta à ontologia de

Hegel, foi Nicolai Hartmann (1882-1950). Contrapõe-se a Hegel em razão deste

privilegiar o papel da “universal lógica” e “minimizar o peso dos indivíduos e de

suas ações regulares”. Lukacs reprova Engels pela mesma razão, por ter

justamente enfatizado em demasia o universal, fato que o aproxima de Hegel.

Nicolai Hartmann institui a categoria da “necessidade subordinada à

realidade e às determinações inscritas no coração dos fenômenos” (Ibidem, p.

390). Lukács compreende muito bem esta relação entre realidade e

necessidade. Por exemplo, se uma situação reúne certas condições, então, aí,

pode derivar “um caráter necessário e irreversível”.

Na Ontologia do Ser Social, no capítulo dedicado à análise da

concepção histórica em Marx, Lukács insiste em criticar Engels por não ter

esclarecido adequadamente esta questão. Cita uma passagem de Engels em

“Para crítica da economia política” ao afirmar que o método adequado de tratar

a matéria “nada mais é do que o fato histórico, apenas despojado da forma

histórica e dos elementos ocasionais perturbadores”. Como é possível

despojar-se da forma histórica? Engels, como também Hegel, privilegia a

categoria necessidade em demasia e Lukacs tira esta evidência e traz a

categoria “causalidade”. Não que não dê o devido valor à categoria

necessidade, mas não a coloca de tal forma que não haja espaço para aquilo

que não está previsto. Não basta, entretanto, apenas a casualidade, é também

necessário trazer à luz a categoria “possibilidade”. Assim, atacava diretamente

o materialismo mecanicista, o materialismo distorcido como também atacava o

hiperracionalismo.

O ataque de Lukács era direcionado ao neopositivismo que resolviam

os problemas ontológicos recorrendo à metafísica. Com a Ontologia do Ser

Social restabelece-se “a autonomia ontológica do real, a sua totalidade

intensiva e a sua irredutibilidade à pura manipulação” (Ibidem. p. 391-392). Por

outro lado, Lukács também analisa as tendências do marxismo dogmático por

ter enfatizado a categoria necessidade; para enfrentar esta concepção

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enraizada no marxismo propôs as chamadas categorias modais: “necessidade,

possibilidade e causalidade”.

Lukács recupera constantemente o pensamento de Hartmann quando

este se perguntava como seria possível uma ontologia crítica. Buscava esta

resposta em razão da condição humana que se submetia ao confisco da

manipulação; esta preocupação era condizente com as concepções marxianas,

cujas categorias deveriam ser entendidas como “princípios do ser” e não como

“essências do ser”. Hartmann também criticava Kant porque para ele as

categorias assumiram simplesmente “as determinações do intelecto” – a crítica

se asseverava contra os neokantianos que proclamaram “a supressão da coisa

em si”.

Um outro ponto que Lukacs concordava com Nicolai Hartmann era

referente às categorias “teleologia” e “causalidade”. Estas duas categorias são

estruturantes para a compreensão da vida social. No livro de Lukács, O jovem

Hegel, destaca-se o modo como Hegel confrontou as concepções de Hobbes e

Espinosa. Hegel identificou no trabalho, conforme Lukács, o fundamento para a

vida social. É aqui que Hartmann também fundamenta sua crítica. O nexo final

necessariamente é dependente do nexo causal, ou seja, “a posição teleológica

não se realiza a não ser utilizando as cadeias causais” (Ibidem, p. 394).

Lukács coloca no “pôr teleológica” a fonte do fenômeno da vida social e

com isso destaca que na vida da natureza “é dominação pela causalidade

espontânea” enquanto na vida social é constituída através de “atos finalísticos

dos indivíduos” (Ibidem, p. 394).

As posições teleológicas são duplamente condicionadas: i)

autocondicionadas em razão de que a consciência é que põe, “que age

impulsionada pelas necessidades e pelos projetos individuais”; ii)

heterocondicionadas pelas condições objetivas do real. E estas duas posições

teleológicas são de dois tipos: i) aquelas que têm como objeto a natureza em

si; ii) aquelas que têm como objeto a consciência dos outros. Considerando

esta dinâmica complexa das posições teleológicas exclui-se “a concepção

retilínea e monolítica do progresso histórico” (Ibidem, p. 395).

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Devemos distinguir as ações que são realizadas no contexto ao qual

estamos inseridos sob imperativo da coação e as ações que realizamos em

situações contextuais, que possibilitam margem de escolha e de decisões.

Lukács pergunta como poderíamos conceber a relação entre causalidade e

teleologia no interior da vida social? Responde: “os processos sociais ocorrem

porque há atos teleológicas de indivíduos, se pode afirmar que a totalização

destes atos “tem um caráter meramente casual” (Ibidem, p. 396).

A posição de Lukacs novamente se aproxima com a de Nicolai

Hartmann que argumenta que as posições teleológicas dos indivíduos nunca

chegam a exercer coerção absoluta, e isto porque elas só existem quando

põem em movimento alguma cadeia causal, até porque nossas ações nunca

são inteiramente iguais às intenções. Isso ampliado corrobora com esta

perspectiva, portanto, tem caráter causal e não teleológico.

Esta é uma tese geral. Pode-se também distinguir ações diferentes.

Duas, para exemplificar: 1) ações que os indivíduos são conduzidos a agir sob

“imperativo de reprodução econômica que são realizadas para não assumir o

fracasso diante dos outros que também reproduzem esta condição”; 2) ações

que estejam mais distantes da “atividade econômica imediata” – as incertezas

estão mais neste segundo tipo de ações.

As ações que são exigidas pelos imperativos do crescimento

econômico não significam que as personalidades irão se desenvolver

harmoniosamente. Lukács procura justamente no interior da personalidade “os

efeitos do desenvolvimento desigual dos vários complexos sociais” (Ibidem, p.

397).

Lukács enfatiza a análise hegeliana sobre a “consciência infeliz”,

aspecto que é retratado desde a antiguidade tardia. É uma questão que

também os epicuristas e estoicos se ativeram a buscar uma solução. A

dissolução da polis jogou os indivíduos numa existência privada, “sem apoio

para o sentido imanente de sua vida”. É sobre esta consciência cindida que

Hegel se atém no seu sistema filosófico e deixa evidente a separação entre os

planos inessencial e essencial da consciência, que também pode ser melhor

compreensível, entre autoconsciência transformável e intransformável.

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Uma identidade inessencial está submetida a uma vida cotidiana pela

pura particularidade, ou seja, projeta-se a sua essência no irreal, num ser

abstrato, localizado na transcendência. A consciência infeliz está entre a

vontade de liberta-se da procura da essencialidade irreal. É sob esta condição

que aparece a necessidade religiosa que consagra a fuga da “existência

terrestre”. Para sair deste dualismo, Lukács afirma que é preciso des-cobrir, na

imanência da vida cotidiana, as mediações completas que permitem quebrar as

reificações estranhantes e realizar, na efetividade histórica, uma existência

estranhada (Ibidem, p. 399).

A ontologia preconizada por Lukács concebe o ser como interação de

“complexos heterogêneos” em perpétuo movimento de devir caracterizado por

uma mistura de continuidade e descontinuidade que possibilita criar o novo e o

que chama de “irreversibilidade”. Aquilo que já foi conquistado torna-se

irreversível dentro desta oposição continuidade e descontinuidade. A

processualidade do ser implica uma gênese e um devir também de categorias.

Não à moda Kant de gênese de categorias apriori, mas produto da

historicidade do ser. Por exemplo, “a teleologia é uma categoria

eminentemente histórica que se constitui naquela ação de projeção sobre as

coisas e possibilitando cadeias causais objetivas “introduzindo o nexo final”.

Lukács então defende que este processo teleológico coincide com emersão do

trabalho, uma vez que a natureza em si inorgânica e orgânica não conhece

finalismo, mas apenas causalidade.

O fato de que Vigotski não tenha deixado evidente a concepção

ontológica não quer dizer que sua psicologia esteja isenta de fundamentação

ontológica. Vigotski defende a natureza histórica do ser humano destacando a

importância do trabalho como meio que transforma o ser humano biológico em

cultural/social.

Em várias passagens encontramos Vigotski enfrentando o assunto da

relação entre a liberdade e a necessidade. Na maioria das vezes busca

respaldo em MARX & ENGELS. Localizamos uma passagem que se

assemelha muito com todas as outras que consta no texto Desenvolvimento

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das funções psíquicas superiores na idade de transição (capítulo 11)64. Citando

Engels que afirma que foi Hegel aquele que tratou sobre a relação entre

liberdade e necessidade de forma mais correta, isto porque sustentava que “a

liberdade é o conhecimento da necessidade”. A partir de então Vigotski faz,

como sempre em casos com estes, uma citação de MARX & ENGELS que

podemos resumi-la da seguinte forma: a liberdade não é a independências das

leis naturais, mas sim conhecer estas leis e coloca-las a serviço do ser

humano. Mas conhecer as leis naturais não se reduz apenas aos aspectos

exteriores ao ser humano, mas também as leis que dirigem “a existência

corporal e espiritual do próprio ser humano”. E, nesta citação de Engels

conclui: “são duas classes de leis que podemos separar o máximo em nossa

imaginação, mas não na realidade” (Ibidem, p. 199). São duas classes de leis,

ou seja, uma interna e outra externa.

Vigotski utiliza esta passagem citada de Engels para sustentar seu

pensamento conclusivo deste capítulo para compreender a relação entre “livre

arbítrio” e “pensamento em conceitos”. Somente, sustenta ela, por meio do

conceito se pode elevar ao conhecimento da realidade, pois passa “do nível da

vivência para o nível do entendimento das leis. É estranho aqui para um

profundo conhecedor da obra de Espinosa sustentar “o livre arbítrio” como uma

condição que o ser humano se potencializa com ele mesmo e para ele mesmo.

Contudo, aqui Vigotski está sustentando a importância da razão, do

entendimento na relação entre necessidade e liberdade. Mas, voltando a

questão dos conceitos, que neste capítulo é a questão central, Vigotski afirma

que “a necessidade se converte em liberdade através do conceito”. Afirmação

contundente ao desbancar a atividade e que pode criar muitas confusões se

não for devidamente analisada e considerada. Não é possível considerar

necessidade e liberdade como reciprocamente excludentes – a necessidade

não pode ser liberdade, e, a liberdade, não tem a necessidade, mas sim a tem

como superada. Sem o conceito não há como conhecer a necessidade, logo

não há como se alcançar a liberdade. “Unicamente no conceito, e através dele,

adquire o ser humano uma atitude livre ao objeto e a si mesmo” (Ibidem, p.

2000.

64 OBRAS ESCOJIDAS – Vol. IV, ps. 117 a 203.

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Como podemos constatar, Vigotski não enfatizava a categoria

necessidade, mas liberdade que supera necessidade. Neste sentido,

entendemos que a categoria “possibilidade” da qual se refere Lukács está em

sintonia com o entendimento de Vigotski ao tratar do processo de formação de

conceitos dos adolescentes. Quando para o adolescente começa o mundo

aparecer em lugar do entorno da criança há uma superação: não é mais

criança, mas carrega a sua superação. Do mundo da necessidade para o

mundo da liberdade exige a formação categorial dos conceitos. É o que Hegel

definia, afirma Vigotski, primeiro como a coisa em si para depois na superação

tornar-se no processo uma coisa para si.

Lukacs condena a perspectiva que se baseia ou que enfatiza a

necessidade e coloca Engels na mira de suas contundentes críticas. Ao elencar

a categoria possibilidade, casualidade e causalidade está condenando o

referencial determinista do marxismo e, ao mesmo tempo, recuperando o

sentido mais profundo da dialética materialista. Até o final da vida, Vigotski

também estava ainda para este rumo da crítica.

Tanto Lukács quanto Vigotski começaram seus estudos pela arte,

estudando o drama e ambos assumem uma visão crítica dentro da revolução

proletária. A pergunta inicial que colocamos “que é ser?” leva-nos para o

entendimento substantivo, que no caso de Vigotski, sempre manifestou

contrariedade às concepções dualistas ou atomistas. O ser é a substância

única. Quanto a segunda pergunta “quem é o ser?” Vigotski afirmaria que é

aquele que busca compreender as leis da natureza por meio do entendimento.

As duas respostas se aproximam significativamente da filosofia espinosana

também de base materialista.

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Capítulo 16: Analética: a superação da dialética?

Na década de 1980, no final da ditadura militar no Brasil, muitas

concepções tornaram-se conhecidas nas áreas da psicologia, educação,

sociologia e filosofia. O processo de mudança do sistema político propiciou a

diversidade de abordagens críticas para cooperar com as mudanças sociais

que estavam ocorrendo. Em 1984, LANE escreveu um artigo trazendo como

referência principal Leontiev e Vigotski para seu artigo Linguagem, pensamento

e representações sociais onde estes autores concebiam “o ser humano como

manifestação de uma totalidade histórico-social” (LANE, 1984, p. 33). As

abordagens de Leontiev e de Vigotski embasavam uma teoria completamente

diferente que predominava no Brasil sob influência estadunidense de base

pragmatista. Era o momento considerado de libertação dos sistemas políticos

repressores e pela busca de referenciais teóricos que contribuíssem na

compreensão dos problemas sociais que assolavam grande parte da

população. Dentro de tantas manifestações que surgiram em tantos campos,

enfatizamos aqui a filosofia da libertação, tendo como principal representante

Enrique Dussel. Aqui também poderíamos citar o educador Paulo Freire (1921-

1997) com sua obra Pedagogia do Oprimido, mas consideramos para o

objetivo deste trabalho mais conveniente sempre nos orientar com os

representantes principais dos diferentes movimentos filosóficos que tratam

diretamente do tema da dialética.

Dussel resume a dialética europeia como aquela que visa compreender

o ser como uma ontologia da “identidade e da totalidade” que “pensa o outro”,

sugere um “momento antropológico” que não nega a identidade e a totalidade,

mas que se institui como uma “dialética pedagógica da libertação” (DUSSEL,

1986, p 190).

No processo de reconhecimento do outro nos reconhecemos, mas a

superação desta relação de reconhecimento é colonizador-colonizado. Nossa

filosofia latino-americana se estabelece nesta relação e nós entendemos que

por esta razão Dussel declara que nós temos uma “pré-história da filosofia

latino-americana” e ela tem nome: pensamento europeu de Kant, Hegel e

Heidegger. Partem estes do mundo deles, e o nosso seria, nesta relação,

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considerado “inautêntico”. Como partir de nosso mundo? Não tornando

exclusivista o pensamento europeu, mas compreender a relação para superá-

la. O que é o outro para o filósofo europeu? Seria um índio, um africano ou um

asiático? Refere-se “absolutamente outro” sem distinção. Esta dialética é

insuficiente, é preciso ir “mais além, mais acima, vem de um nível mais alto – o

ana-lético”. “O método dialético é o caminho que a totalidade realiza em si

mesma: dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes” (Ibidem, p 196).

O método dialético, seguindo Dussel, está dentro de uma condição que

reconhece só o em si e parte do reconhecimento do outro para poder servir

livremente; este servir é de uma ação justa e livre.

A dialética é a superação de uma condição humana dentro da dimensão

da dominação e a ana-lética estabelece-se nesta relação entre dominação e

colonizador – a superação desta condição irreversivelmente passa pela

dialética e a nega na superação.

“A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dia-lética; tinha, porém, razão Feuerbach ao dizer que ‘a verdadeira dialética’ (há, pois, uma falsa) parte do diálogo do outro e não do “pensador solitário consigo mesmo. A verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dia-lético” (Ibidem, p. 196-197).

A filosofia da libertação “é uma crítica do Deus e do gênero humano”.

Ela é ateísta enquanto a identificação com o Deus burguês, e libertadora

enquanto gênero humano que ganha sua generidade e não a perde como ser

criativo que faz, mas o objeto do seu fazer não toma o seu lugar e nem lhe é

estranho.

Para entender o movimento do método analético que Dussel apresenta é

imprescindível fazer a distinção e reconhecer a relação entre ôntico e

ontológico, o que foi muito utilizado por Kant e Heidegger. O ôntico sempre diz

respeito ao ente, ao fenômeno, ao imanente, aquilo que os sentidos mostram

(explicamos, não nos referindo a esta terminologia na dialética transcendental

de Kant, quando um objeto é recebido, dado ou intuído – é o campo do ente,

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do ôntico). O ôntico é o que todo mundo vê. Ontológico diz respeito ao ser, ao

que está por trás do fenomênico. Quando fazemos uma reflexão ontológica,

somos convidados a sair da reflexão do senso comum.

Dussel faz frequente referência a Heidegger quanto a esta distinção e

este último tem uma passagem mais elaborada que define a diferença entre

ôntico e ontológico:

“Ontológico significa levar a cabo a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, segundo a sua natureza, se encontra em esta história desde o momento em que a suporta segundo o desocultamento do ente de cada momento. De acordo com isto, podemos dizer que a consciência é consciência ôntica na sua representação imediata do ente. Para ela, o ente é o objeto. Mas a representação do objeto representa, de maneira impensada, o objeto enquanto objeto. Já reuniu o objeto na sua objetividade e por isso é consciência ontológica. Mas como não pensa a objetividade como tal e sem embargo, já a representa, a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural ôntico-pre-ontológica é, em estado latente, a diferença entre o onticamente verdadeiro e a verdade ontológica” (HEIDEGGER, Martin. Ciminos del Bosque, 2010, p. 134).

Então, feita a diferença, podemos seguir para o método proposto por

Dussel (DUSSEL, 1986), do movimento ana-lético.

“Em primeiro lugar, o discurso filosófico parte da cotidianidade ôntica e dirige-se dia-lética e ontologicamente para o fundamento” (Ibidem. p. 197).

A este movimento podemos novamente chamar Kant ao mencionar as

fontes do conhecimento exposto na Crítica da Razão Pura, em que um objeto é

dado e ao mesmo tempo pensado. Não há intuição sem conceito e nem

conceito sem intuição que, de um lado, são puros e, de outro, empíricos, o

primeiro é a priori e o segundo ocorre a posteriori. Contudo, Heidegger vai

mais além, o ôntico parte do cotidiano, do imediato e do imanente e se

direciona para a ontológico para alcançar o fundamento.

Em segundo lugar, de-monstra cientificamente (epistemática, apo-diticamente) os entes como possibilidades existenciais. É a filosofia como ciência, relação fundante do ontológico sobre o ôntico (Ibidem. p. 197).

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O ontológico não se restringe ao pensar ou ao falar, pois recorre à

demonstração para explicar que o ente existe. É científico por que de-monstra

sua constituição, ou seja, volta ao ente para revelá-lo.

“Em terceiro lugar, entre os entes há um que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir do fundamento: o “rosto” ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece presente como trans-ontológico ao outro como outro é ana-lética: discurso negativo a partir da totalidade, porque pensa a impossibilidade de pensar o outro positivamente partindo da própria totalidade; discurso positivo da totalidade, quando pensa a possibilidade de interpretar a revelação do outro a partir do outro” (Ibidem, 197-198).

Um dos entes, o ser humano, é irredutível ao fundamento. Este

reconhece a totalidade ontológica do outro como outro e que se estabelece a

analética que está na condição primeira do discurso negativo porque não

consegue reconhecer o outro positivamente.

“A revelação do outro (...) é um quarto movimento, porque a negatividade do outro primeiro questionou o nível ontológico que, agora é criado, com base num novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico descobre-se como não originário, como aberto a partir do ético que se revela depois como o que era antes” (Ibidem, p. 198).

A superação de uma condição de negatividade ganha caráter ontológico

novo, ou seja, a presentidade positiva permanece no reconhecimento do

negativo que passa então ase estabelecer.

Em quinto lugar, o próprio nível ôntico das possibilidades fica julgado e relançado a partir de um fundamento eticamente estabelecido, e estas possibilidades como práxis analética transpassam a ordem ontológica e se adiantam como “serviço” na justiça (Ibidem, p. 198).

O ôntico não fica subjugado ao que Kant estabelecera na relação sujeito

e objeto, separados, mas fica marcado por uma relação ética e aqui recupera-

se o caráter do servir como uma atividade envolvida com a ética e a justiça.

Ao chegar neste método, como superação da dia-lética, Dussel se

pergunta: “A filosofia latino-americana não seria um momento novo e analógico

da história da filosofia humana?”.

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Analógico para Dussel vem de “análogo” e fundamenta seu sentido

também numa palavra hebraica, “Dabar”, que significa “dizer, falar, dialogar e

revelar”. Diferente do grego “logos” – que significa “coletar”, “reunir”, “definir”

(ibidem, p. 199).

A teoria vigotskiana contribuiu ao longo destes anos todos como um

poderoso instrumento contra o positivismo, onde predominava de duas

premissas uma: “o ser humano ou era socialmente determinado ou era causa

de si mesmo” (LANE, 1984, p. 12). É a psicologia como ciência que poderia

fazer a intersecção entre a história do indivíduo e história da sociedade. Na

perspectiva de Dussel, a teoria vigotskiana está dentro da perspectiva europeia

que busca centralidade e legitimação. Basta nos referir aos estudos que

Vigotski fez com os processos de desenvolvimento de aldeias longínquas do

centro político e econômico russo. Foram acusadas de preconceituosas porque

consideravam os aldeões não incapazes, mas inferiores para serem incluídos à

política socialista da época. A teoria vigotskiana é de caráter eurocêntrica, mas

sua concepção não deixa de enfatizar a emancipação humana como um

processo de alcançar a liberdade vencendo as leis naturais como enfatizamos

no capítulo anterior.

Uma outra questão sempre recorrente na teoria vigotskiana: há uma

negatividade em sua teoria? Se nos perguntamos por isso estamos reforçando

imediatamente que há uma positividade. É aqui que o debate entre Dussel e

Vigotski se identifica, pois a “presentidade positiva” é reconhecida com a

negatividade que se estabelecia como uma ordem social superada. Qual é a

negatividade que se estabelecia para um e outro autor? A realidade em que

vivem. No caso, a realidade social de Dussel é muito mais complexa daquela

que Vigotski viveu no período da Revolução Russa. A negatividade da teoria

vigotskiana é a velha psicologia que não viu a superação e até hoje continua

estabelecendo vários desafios teóricos e metodológicos.

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Conclusão

O enfoque heraclitiano é objetivo, reconhecendo o mundo em contínuo

movimento, ou seja, na materialidade do conteúdo em processo encontra a

unidade dos opostos. Heráclito realmente é o criador da dialética em razão de

três questões fundamentais: i) defendia que tudo se estrutura, se fundamenta

em opostos; ii) os opostos são idênticos; iii) a guerra é o que fundamenta a

criação. É a definição mais efetiva, clara, daquilo que mais tarde se defenderá

no marxismo como “contradição: unidade e luta dos contrários”. Esta ideia de

Heráclito tornar-se-á muito estranha para o mundo grego como para a era

medieval cristã, pois a estabilidade deveria predominar sobre o que é instável,

incerto e dinâmico.

Em Parmênides não há dialética, mas há sustentação para uma lógica

formal que não deveria se fundamentar pela dúvida ou pela contradição. Tanto

Platão como Aristóteles sofreram influência de Parmênides, mas cada um deu

uma resposta diferente para esta questão. Instituíram-se duas sínteses que se

afirmaram e que se estabeleceram na tradição. De um lado o idealismo

(Parmênides, Pitágoras e Platão), e, de outro lado, o materialismo (Heráclito,

Demócrito e Anaxágoras).

O platonismo esvaziou da dialética o conteúdo material e a força

dinâmica tão presente em Heráclito. Podemos em síntese destacar dois

momentos da dialética platônica: i) uma dialética ascendente, ou seja, eleva as

ideias até chegar à ideia que se identifica com o sumo Bem. Parte, portanto, do

múltiplo até chegar ao uno com finalidade de encontrar o princípio do princípio;

ii) uma dialética descendente, ou seja, a partir dos princípios reconstruir,

concebe ideias sem recorrer às experiências. Nesta lógica, a dialética assume

também um caráter formal, estável, sem lugar para o de-vir das coisas. Erige-

se uma filosofia baseada no pensamento separado do real como uma ideologia

que privilegia um grupo muito restrito de pessoas, de preferência, filósofos.

A doutrina metafísica de Platão encontra na sua própria época um

opositor à altura e que não aceitou totalmente as suas concepções. Erradicado

num idealismo também, mas de tendência realista, Aristóteles inaugura uma

dialética baseada na oposição entre a matéria e a forma. São opostos, mas

inseparáveis (diferente do que Platão propunha). Não foi só esta dialética que

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Aristóteles nos deixou, mas também a dialética do singular-particular-universal.

Para ele a forma é universal e a matéria particular. A forma é a ideia, a ideia

universal. Não podemos, entretanto, confundir o particular com o

individual/singular. Tendemos a considerar como sinônimos, mas é necessário

destacar que o individual é composto de matéria e forma/do particular e do

universal. O material sempre está em mudança, ou melhor, é forjado a mudar e

a forma é aquela que tende a mudar. Podemos dizer de outra maneira: a forma

tem as qualidades das coisas e a matéria tem condições de suportar aquelas

qualidades. É a forma que dá qualidade para a matéria e esta é sem traços, é

indefinida.

O desafio maior a que Aristóteles se propõe é explicar o movimento e

não pode fazê-lo sem deixar claro a oposição entre potencialidade e

atualidade. Nesta antítese, Aristóteles consegue dar conta do movimento ao

sustentar que não há diferença entre o “não-ser” e o “ser” A potencialidade

toma o lugar de não-ser para a atualização. Não significa um salto do nada

para algo. Identificamos em Hegel a noção de consciência “em si” e “para si”,

esta noção tem origem na filosofia de Aristóteles.

Hegel foi influenciado por alguns filósofos com os quais buscou melhor

entendimento e que acreditamos o influenciaram para a definição de seu

sistema filosófico. Primeiro foi Espinosa com dois princípios: a negação e o

infinito. Para Espinosa, toda determinação era uma negação. Isto até soa como

um contrassenso considerando que a filosofia de Espinosa se fundamenta

numa perspectiva positiva. A negação da qual estamos nos referindo surge da

noção de Espinosa sobre duas proposições: finito e liberdade. “Diz-se finita em

seu gênero aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza”

(ESPINOSA, 2007, p. 107). Determinar alguma coisa é limitá-la. Por exemplo, o

bom significa separá-lo do mal. Ora, afirmar que alguma coisa é significa negar,

ao mesmo tempo, o que ela não é. Outro princípio é a liberdade que Espinosa

afirma que “é livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua

natureza e que por si só é determinada a agir” (Ibidem.p.103). Poder agir e

não-poder. É novamente uma condição determinante que Espinosa destaca

positivamente. Hegel não segue esta mesma direção de Espinosa, inverte-a.

Para Espinosa, afirmar é negar. Para Hegel, o contrário, negar é afirmar. Para

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Hegel a força está na negação, é na negação que está o processo de toda

criação. A negação é inerente ao positivo e para que algo seja é preciso o

serviço do negativo. Dissemos que dois princípios espinosanos influenciaram

Hegel. O primeiro foi a negação, mas também o princípio do infinito teve

impacto muito grande no seu sistema filosófico. A compreensão de infinito em

Espinosa refere-se ao ilimitado e poderíamos deduzir que o infinito então seria

indeterminado. Contudo, partindo da primeira proposição da Ética - “causa sui

compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja

natureza não pode ser concebido senão como existente” (Ibidem. p. 13) – não

podemos concordar que seja indeterminado. A causa sui constitui-se na

substância única “que existe em si mesmo” sem o externo. Dizemos para isso

que é causa imanente. Hegel adotará este princípio para fundamentar a própria

história no seu sistema filosófico.

O segundo filósofo a influenciar Hegel é Kant, que definiu o tempo e o

espaço como elementos da sensação e que são universais e necessários.

Qualquer elemento da sensação é produto de nossa mente. Então, as coisas

em si estão separadas de nossa mente e não são reais. O que é real? Sua

aparência, ou então, o fenômeno. Esta ideia será duramente questionada por

Hegel que não parte para compreender uma causa, mas qual a razão das

coisas. Como as coisas são como são e por que acontecem na história da

forma como são. Portanto, o mais importante, ou a categoria mais importante é

o ser, o conceito de ser. O ser é pressuposto para todas as categorias. Definido

isto, qual seria o método para investigar? Aqui estamos no cerne da questão.

Hegel descobriu que não somente a identidade possibilita a correta

investigação, mas a diferença. A diferença faz parte da identidade. Neste

sentido, chegou à primeira tríade de categorias: o ser, o nada e o devir. O ser

pelo ser é nada. O ser pelo ser é vazio. Então, o ser e o nada equivalem.

Portanto, deduz-se o nada do ser. Este caminho do nada ao ser é o que

denominamos devir. Esta é a assimilação completa já trabalhada em Heráclito,

mas em Heráclito não havia a história contemplada. Mas voltamos à tríade das

categorias que são somente desveladas pelo método dialético. Pela lógica

formal, era inadmissível a identidade e a diferença fazerem parte da mesma

proposição, mas tal lacuna fica resolvida com a terceira categoria que é o devir.

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O devir assume a unidade dos contrários. Muitas vezes chama-se esta tríade

de tese, antítese e síntese. É claro que a razão não pode residir na

contradição, a contradição entre a tese e a antítese deve desembocar numa

síntese.

É muito comum no vocabulário da lógica hegeliana o termo “abstrato” e

“concreto”. O ser e o nada são termos abstratos, mas o devir, a síntese, a

unidade entre o primeiro e segundo termo é o concreto. Outros dois termos é

“imediação” e “mediação”. O termo imediação qualifica a tese; antítese e

síntese estão no campo da mediação. Este movimento, entretanto, quando

alcança a síntese tem a mediação e a imediação nele mesmo. A síntese da

tríade elimina e preserva as diferenças da tese e da antítese.

É a partir das obras de Marx e Engels que teremos os termos

reforçados do materialismo. Hegel afirmava (como também Kant) que haveria

categorias anteriores ao mundo que com Feuerbach esta prescrição cairá por

terra. Contudo, Feuerbach não consegue assumir o materialismo porque sua

referência do materialismo é a referência mecanicista que não concebia o

mundo como processo, como matéria sujeita ao desenvolvimento histórico. O

princípio antropológico de Feuerbach é mais consequente de que Hegel, isto

porque não separa corpo e espírito (o que é muito parecido com a visão

monista de Espinosa). Contudo, este ser humano como corpóreo e sensível

não está considerado nas determinações materiais e sociais. Como Engels

suscitou, Feuerbach foi o último representante da filosofia clássica alemã.

São poucas as referências diretas de Marx sobre a dialética, mas há

uma razão muito simples. A dialética é método e se inspira formalmente na

perspectiva hegeliana, mas radicalmente diferente quanto ao conteúdo ou

então quanto à noção de realidade. Marx não apresenta a formalidade, como o

faz Engels, da dialética, pois parte do que já havia sido prescrito dentro da

tradição filosófica Hegel-Feuerbach. A crítica desferida por Marx contra Hegel é

de que este caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensar, o que

poderia denominar-se “idealidade pura”. E, na mesma direção, a crítica

desferida por Marx contra Feuerbach é que este assume um materialismo que

apenas capta o objeto, a realidade, o sensível, mas ainda sob forma metafísica,

ou seja, ainda como contemplação e não como atividade humana. Mesmo que

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Feuerbach tenha insistentemente se voltado ao real o fez considerando não

como realizado pelo trabalho. Portanto, para Marx é fundamental o método

dialético para conhecer adequadamente o real. E como se faz isto? Marx

afirma que o conhecimento está condicionado à realidade do trabalho e à

materialidade que pode ser analisada a partir de determinações do real. É

destas determinações que acedem as categorias que nada mais são que

categorias que expressam o que é o real, o que é a realidade mesma. Não

passam de representações abstratas que nos permitem fazer a reprodução do

concreto pelo caminho do pensamento. Este é o método correto, este é o

método dialético. Mais uma questão fundamental no método: ao analisar as

determinações do objeto real, os encadeamentos, as relações, pode-se dizer

que há uma “totalidade concreta”, então também pode-se dizer que “o concreto

é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, portanto, é unidade do

diverso”. A totalidade concreta real que é o objeto é a unidade e é pelo

abstrato, mediado pelo abstrato que se chega ao concreto.

A dialética marxiana não foi bem compreendida no final do século XIX

e início do século XX, mas foi retomada determinantemente por Lênin na

Rússia. Lênin retomou a base filosófica marxiana que fora revista ou

naturalizada. O método dialético, como uma totalidade dentro da qual a

negação é também a destruição do que existe, era levado muito a sério por

Lênin. A análise dialética possibilitava para a prática revolucionária as

orientações adequadas e não compreendê-la adequadamente poderia levar a

graves erros políticos. A concepção dialética não pode ser confundida com

naturalização e, muito menos, compreender os aspectos econômicos como

naturais. Mais do que isto, a dialética não deveria ser utilizada com a finalidade

econômica porque isto levaria também a não compreender a totalidade

requerida. Sua defesa não era econômica, mas política. A política deveria

prevalecer sobre o econômico e não subordiná-la. Contudo, Lênin não defendia

uma nova dialética, mas a dialética compreendida como práxis política. Mas

esta práxis teve um resultado. O mundo não ficou na mera interpretação ideal,

houve o desafio de mudar o modo de produção capitalista para um outro.

Todos os fatores que estavam ligados à crítica tiveram que inserir-se na

dimensão da dialética criativa. Havia necessidade de pensar o positivo no lugar

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da crítica. Sobreviveu a crítica negativa? Não sobreviveu e é neste aspecto que

a dialética começou a ser questionada.

No pós-guerra surge um filósofo que ficou mais conhecido pela sua

abordagem existencialista e pelo engajamento social. Sartre aceita

especialmente as críticas efetuadas por Marx contra Hegel. O que nos

interessa é a questão da dialética e como ela será revista neste período.

Referimo-nos anteriormente, com ênfase, à importância tanto para Hegel como

para Marx da categoria totalidade. A dialética prescinde do entendimento do

processo de totalização como a compreensão de um momento histórico, de

uma forma. Sartre defende que a totalidade não tem uma forma acabada, é

sempre aberta, está sempre suspensa. “É totalidade intotalizada”. Para Sartre,

a dialética deve ser compreendida como práxis histórica, mas que nunca

consegue chegar a uma meta cumprida, reivindicando que o movimento do ser

é idêntico do saber. Sartre critica a posição de Engels como uma dialética da

natureza e reconhece a dialética somente como práxis. Para Sartre, o que se

justifica na vida humana e no mundo é a prática, e chama atenção para que a

dialética não seja remetida como se fosse uma lei divina, metafísica, ou seja, a

dialética deve partir da realidade dos indivíduos. A dialética repousa, portanto,

nas práxis de indivíduos. Sartre opta não por uma totalidade fechada, mas uma

totalidade nunca totalizada, totalizando-se. O ser humano deseja estar na

totalidade, mas se frustra quando não participa da totalidade ou quando não

consegue reconhecê-la. O inverso também deve ser mencionado, quando o ser

humano reconhece que alcançou a totalidade e aí permanece cristalizado nas

suas crenças (SARTRE, 2002).

Lukács também insiste na crítica a Engels por ter enfatizado (como

Hegel também o fez) a categoria necessidade e apresenta duas categorias

alternativas para enfrentar as críticas em que o marxismo se transformou com

as consequências na URSS. Haveria de se colocar mais evidência não na

necessidade, mas na categoria possibilidade de tal forma que pudesse trazer a

reflexão no campo das possibilidades.

Nos referimos à dialética e aos seus filósofos. Todos eles europeus.

Nossas análises desembocaram num autor latino-americano que trouxe a

perspectiva ampliada da dialética: Enrique Dussel. Pergunta difícil para se

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chegar a uma conclusão: é uma abordagem idealista ou materialista? Vamos a

uma citação emblemática:

“O filósofo para ser o futuro mestre deve começar por ser o discípulo atual do futuro discípulo. Tudo depende disso. Por isso, essa pedagógica analética (não somente dialética da totalidade ontológica) é da libertação. A libertação é a condição para o mestre ser mestre. Se é um escravo da totalidade fechada, nada pode realmente interpretar. O que lhe permite libertar-se da totalidade para ser a si mesmo é a palavra analética ou magistral do discípulo (seu filho, seu povo, seus alunos: o pobre). Esta palavra analógica abre-lhe a porta da libertação; mostra-lhe qual deve ser seu compromisso pela libertação prática do outro. O filósofo que se compromete com a libertação concreta do outro acede ao mundo novo, onde com-preender o novo momento do ser, a partir do qual ele se liberta como sofista e nasce como filósofo novo, ad-mirado daquilo que venturosamente se desdobra ante seus olhos, histórica e cotidianamente. O mito da caverna de Platão pretendeu dizer isso, mas disse justamente o contrário. O essencial não é o ver, nem é a luz: o real é o amor de justiça e o outro como mistério, como mestre. O supremo não é a contemplação, mas o face-a-face dos que se amam a partir daquele que ama primeiro” (DUSSEL, 1986, 210).

O que difere este pensamento das concepções de amor de

Feuerbach? Não se trata de um autor igualmente “por baixo materialista e por

cima idealista?” Não significa que não se considera o real e o concreto, mas há

uma defesa subjacente ou inerente do cristianismo colonizador culpabilizado

para superar a destruição do povo ameríndio. Sim, precisamos de uma

analética que não se baseia na teoria dialética colonizador-colonizado-

colonizador. Também esta concepção libertadora é “uma balofa religião do

amor”.

Essa parte foi desenvolvida considerando basicamente o que sucedeu

com a dialética, em específico antes da Segunda Guerra Mundial e, em geral,

com o materialismo histórico dialético, antes e depois desse período. Até o

início o final do século XIX, a psicologia era uma área da filosofia e essa

condição ainda persistiu até muito tempo depois. Contudo, no início do século

XX, a psicologia assume um estatuto de ciência e muitas correntes surgem

influenciadas, de um lado, pelo empirismo ou pelo dualismo cartesiano que

considerava “o corpo como uma máquina” e, de outro, pela defesa da

consciência como um fenômeno sem base histórica. Em 1921, Pavel P. Blonski

(1884-1941) escreveu dois livros na URSS: Reforma da Ciência e Ensaio de

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uma psicologia científica, nos quais iniciou a estruturar a psicologia dentro de

bases marxistas. É neste meio que está Vigotski.

Os filósofos modernos abordados nessa parte influenciaram muito

Vigotski em sua produção científica. É por essa razão que autores ou

comentadores das obras de Vigotski acentuam uma vez o vínculo com as

concepções de Kant, outra vez com as de Hegel, Marx, Engels ou, raramente,

com Lênin. É curioso que dois principais comentadores, e até poderíamos

chamar de herdeiros diretos da produção científica de Vigotski, não se atêm em

detalhes a esta questão: Lúria e Leontiev. Podemos entender que os textos de

ambos aos quais nos referimos foram redigidos num momento histórico ainda

bastante acirrado, e a preocupação é garantir que as obras de Vigotski sejam

recuperadas e preservadas para estudos e pesquisas. É muito difícil deixar de

lado as considerações sobre a formação dos conceitos em Kant, mas esta

formação se resumia no sujeito e foi reforçada mais tarde por Hegel. Da

mesma forma, como separar Marx de Hegel? Deparamo-nos frequentemente

com declarações de que o “jovem Marx” era ainda hegeliano. É Lênin a

personalidade mais emblemática, compreendemos que Vigotski também tenha

seguido os mesmos passos com o aprofundamento dos estudos em Engels

para depois, com os aprofundamentos dos estudos em Hegel, aproximar-se

com mais profundidade no entendimento da teoria marxiana. Evidentemente

que temos que considerar duas personalidades em campos bem diferentes de

atuação, mas, enquanto referencial teórico, tenderam a se aproximar das

teorias engelianas inicialmente, para depois se libertarem desta perspectiva

que tanto Marx como Lukács consideram equivocadas em Engels, que se

resume em considerar com mais ênfase o reino da necessidade. É por essa

razão que consideramos que o materialismo histórico dialético de Vigotski tem

suas raízes teóricas dentro das concepções leninianas, para depois confrontá-

las com o seu já conhecido Hegel, que tanto estudara no tempo da juventude

em Gomel.

Chama-nos a atenção a declaração de Leontiev ao fazer uma

apresentação resumida da teoria vigotskiana:

“Através da hipótese do caráter mediado dos processos psíquicos por meio de ‘instrumentos’ peculiares, Vigotski procurava introduzir na

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ciência psicológica as diretrizes da metodologia dialética marxista, não de modo declarativo65, mas materializado em um método. Esta é a principal característica de toda a obra de L. S. Vigotski e é precisamente dela que decorre seu êxito” (LEONTIEV, 2013, p. 444).

Na visão de Leontiev, o que identifica Vigotski é “o método”. O seu

“êxito” está nisso, mas fica subentendido que no campo das diretrizes há um

silêncio por parte de Vigotski. Se comparado com os escritos de Blonsky,

constataremos o contrário; há uma clareza das diretrizes, mas talvez nem tanto

de “método”. Este tipo de declaração leva ao que NEWMAN & HOLZMAN

(2002) evidenciaram em Vigotski: a distinção entre “psicólogo e/ou

metodólogo”, ou seja, significa, em primeiro lugar, que a psicologia tem “seu

objeto estabelecido”; em segundo lugar, pode-se estabelecer parâmetros

metodológicos para compreender a realidade em que se vive e assim contribuir

para resolver as dificuldades ou os problemas da contemporaneidade (Ibidem,

p. 22). A questão que nós problematizamos aqui é a tendência de dicotomizar

Vigotski, ou então, a tendência de fazer o que Leontiev apontou: enfatiza-se o

lado do metodólogo de base materialista histórico-dialética sem lhe dar o

devido crédito quanto a suas bases gnosiológicas. De fato, “a dialética interna”

é um traço característico no método de Vigotski e que fundamenta sua

“psicologia dialética”, mas quando relativizamos o caráter gnosiológico, abrimos

infinitas possibilidades identitárias.

Encerramos aqui, também, a segunda etapa da “análise formal ou

discursiva” do método hermenêutico de profundidade, pois analisamos os

autores citados constantemente nas obras de Vigotski. Depois tentamos inserir

a teoria vigotskiana no contexto das polêmicas após a Segunda Guerra

Mundial. Para que possamos seguir no próximo passo é necessário adentrar

nas obras mesmas de Vigotski, ou seja, partir das questões de suas pesquisas.

Como não é possível contemplar tudo que Vigotski escreveu, destacaremos

dois campos de estudo: a psicologia da infância e da adolescência. Contudo,

não possível fazer isso sem antes localizar Vigotski dentro do movimento da

psicologia. Portanto, como constantemente destaca, a crise da psicologia.

65 Grifo nosso.

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PARTE III: PSICOLOGIA DIALÉTICA

Vigotski foi aquele que estudou a dialética intensivamente a ponto de

podermos afirmar que a dialética estava em Vigotski e não Vigotski na dialética.

Toda a teoria de Vigotski sem a dialética é morta; a lógica dialética, a prática

dialética e a análise dialética são inerentes a Vigotski, mas será um dialeta

idealista ou materialista? Esta pergunta já nos coloca a um passo mais adiante,

isto porque, não se trata de perguntar se é ou não dialético, porque é muito

difícil um texto de Vigotski não conter uma referência da unidade dos

contrários, a unidade de síntese dialética. Podemos verificar isso desde os

primeiros textos de 1924, quando poucas citações se relacionavam ao

marxismo. Entretanto, vimos anteriormente nesse trabalho que tanto a dialética

idealista quanto a materialista assumem peculiaridades em seus

desenvolvimentos. Haveria algum momento na produção de Vigotski em que

ele teria se voltado mais para uma do que para outra? Nosso autor em

referência está conectado totalmente com seu tempo e a brevidade de sua vida

nos furtou dos embates teóricos mais importantes. Se recorremos às

produções deste autor na atualidade é porque este embate e debate não estão

ainda concluídos. Esta tese se coloca dentro deste debate e no intuito de

explicitar como o autor se posicionou no campo das diversas teorias filosóficas.

Todos eles exímios dialetas seguidos de muitos debatedores e detratores que

surgiram na segunda metade do século XX. Na área da Psicologia Social,

estes referenciais se ampliam no momento em que a psicologia deixa de ser

filosofia para ser propriamente uma ciência que não pode simplesmente se

abster da realidade, do real, do mundo objetivo. Como bem nos situou

MARCUSE (1969), as teorias sociais ganham preponderância a partir de Hegel

e se radicalizam em Marx porque há uma implicação necessariamente com a

realidade. Portanto, esta não é uma especificidade dos materialistas e por eles

inaugurada. Esta iniciou com os empiristas, passou pelos sistemas filosóficos

de Kant e Hegel e terminou em Engels com suas leis da dialética. A análise

reconstitutiva do sentido da dialética em Vigotski não se encerra no exercício

da lógica, mas há que inseri-la no debate gnosiológico e, neste sentido,

constantemente nos envolvemos com as diferenças e similitudes entre Hegel e

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Marx. A tese hegeliana do espírito absoluto, a antítese feubachiana do ser

humano real e a síntese marxiana do ser humano concreto e histórico podem

ser consideradas independentemente, mas são na verdade indissociáveis. A

teoria marxiana não poderia chegar à síntese sem esta trajetória.

Como já dito, nos propusemos a investigar a influência do idealismo e do

materialismo dialético nos trabalhos de pesquisa desenvolvidos por Vigotski.

Queremos elucidar a genética da teoria vigotskiana considerando a dialética

hegeliana, o materialismo dialético marxiano-engeliano e o materialismo

histórico leniniano. Este movimento referencial como uma tríade não é por

acaso. Há farta literatura sobre estas distinções. Contudo, não é possível tratá-

las historicamente como momentos estanques, isolá-los como fatos históricos

do passado. Ao nos defrontarmos com as principais biografias de Vigotski, nos

deparamos com considerações que não são unânimes. De um lado, temos

perspectivas bem ortodoxas que afirmam categoricamente que a teoria

vigotskiana está indiscutivelmente referendada no materialismo histórico

dialético, e, por outro lado, encontramos perspectivas heterodoxas que tentam

“arrancar” todas as referências do materialismo histórico dialético. Esta

dicotomia referencial era muito acentuada no período da Guerra Fria, mas na

atualidade as diferenças interpretativas se tornaram mais complexas e mais

diversas.

Se levarmos em consideração que durante a vida nossas concepções

vão se alterando na medida em que vamos acumulando experiências, e vamos

confrontando nossas concepções com a vida prática, percebemos o quão

dinâmico é nossa formação gnosiológica. Nosso autor em evidência, quanto a

isto, tem um caráter muito especial devido à imensa produção de ensaios e

artigos elaborados durante o período histórico que viveu caracterizado pelas

transformações da estrutura política e econômica na Rússia. Sua extensa

produção também se deve à sua posição estratégica de coordenação de vários

grupos de pesquisa na área da pedagogia, em Moscou, de 1924 a 1934,

período marcado também pela pós-revolução e institucionalização da

sociedade socialista. A tarefa da educação e da psicologia era considerada

estratégica, porque a maioria da sociedade russa era analfabeta e havia a

diretriz central de alterar radicalmente esta condição. A educação poderia

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ajudar na criação do novo ser humano e na qualificação da participação política

(para decidir os novos rumos da sociedade), bem como capacitar o trabalhador

para sustentar alternativas de produção coletiva. Era um momento oportuno

para inovações, e, ao mesmo tempo, de disputas acirradas para garantir a

legitimidade de condução de qualquer processo que viesse contribuir para as

transformações necessárias. Vigotski vivia neste momento de tensão e de

disputa para definir uma psicologia geral.

O método histórico dialético de Vigotski é imanente, analítico e sintético

no que se refere ao processo histórico. Assinala sempre uma forma, por

exemplo, imaginação. Mostra a estrutura (a relação entre reprodução e

combinação) e seu funcionamento (associação e dissociação). Ao passar pelo

conteúdo, o que se mantem não é o criativo, mas sem o qual não alcança a

criatividade, portanto, a análise é realizada considerando a história. Mas isso

apenas como um exercício de abstração, pois o é que é criativo hoje

certamente não será amanhã, isto é, passa a denominar como uma

reprodução.

Em muitas passagens dos textos de Vigotski é abordada a diferença

entre a lógica formal e lógica dialética, chamando-nos a atenção para o

processo mesmo da dialética. Se por ventura congelássemos o movimento a

dialética perderia completamente o sentido. Lefebvre menciona que o

“pensamento dialético”, quando “se transforma em linguagem dialética, que

recobre e oculta não somente os conflitos e contradições no real, mas também

sua própria contradição entre si mesmo e o real”, o “pensamento se transforma

no seu contrário”, ou seja, uma “ideologia” (LEFEBVRE, 1970, p. 27). Aqui o

autor está se referindo ao período de Stalin e o que fizeram com o poder da

dialética. Aquela força que deveria ser a combatedora se transforma em força a

ser combatida. Se a dialética de Vigotski fosse diferente, se fosse estabelecida

como “totalidade fechada”, não teria sido proibida no final de sua vida.

O método dialético não pode ser compreendido como se fosse

meramente um fenômeno intelectual ou especulativo, mas é cultural.

Analisarmos a demanda posta a Vigotski em seus trabalhos que traduz que

havia uma conquista no seu contexto e até mesmo na sua época do

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reconhecimento da importância da dialética. Seria reducionismo exacerbado

desconsiderar as questões históricas. Citando novamente Lefebvre – o método

dialético – “veio a pôr ordem, a desobstaculizar e organizar a consciência do

mundo e do ser humano” (Ibidem, p. 51).

O conhecimento é uma condição humana com a qual comumente se

distingue “o que se cohece” e “quem conhece”. De um lado está o objeto e de

outro o sujeito. Contudo, não há como dissociá-los. Ambos fazem parte de um

todo e afirmamos que se trata de uma interação dialética. O conhecimento tem

um aspecto prático (o conhecimento começa com algo que se faz), social (nos

relacionamos e desta relação dependemos para aprimorar nosso

conhecimento) e histórico (conhecimento tem uma condição por se encontrar

onde está). Vigotski é um profundo conhecedor das teorias estéticas e este

conhecimento o possibilitou inicialmente a diferenciar a arte literária e a

diferenciação, dentre tantas, da forma e do conteúdo. É a partir desta

diferenciação que também distingue a lógica dialética da lógica formal e, mais,

um de seus principais trabalhos, a relação entre pensamento e linguagem.

Podemos entender a forma como uma gramática com a função de codificar

uma língua e todos as convencionalidades da escrita. Se nos atemos apenas à

forma, caímos no que se costuma dizer formalismo gramatical. Não basta

escrever dentro das regras gramaticais, mas é necessário ter conteúdo – é

necessário ter o que dizer. Portanto, o conteúdo supera a forma, mas não a

anula. É como a relação entre sujeito e objeto – sem um não haverá o outro.

Não estamos aqui definindo uma identidade, mas considerando uma relação

indissociável. Na mesma direção, a lógica formal é uma lógica da abstração,

porque precisa do conteúdo para se manifestar. Portanto, é sempre incompleta.

Após reduzir-se à forma, o pensamento a supera. São a estas interações que

podemos denominar dialética. Além destas relações citadas, a relação entre o

pensamento e a linguagem não é um processo simples. O que se pode obter

desta relação sempre é conflituoso, pois conseguir assimilar o conteúdo da

vida prática e colocar dentro das formalidades linguísticas é constantemente a

tentativa de superação do conteúdo sobre a forma.

O período histórico em que Vigotski viveu abalou o mundo, isto porque,

pela primeira vez, de forma mais consequente que na Revolução Francesa,

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inverteu-se a condição do poder. Vigotski é também resultado desta

transformação social. Há referenciais teóricos fundamentais para os quais

Vigotski também busca recursos para dialogar com sua equipe de trabalho. O

capítulo 17 consiste na exposição das conclusões sobre o sentido da dialética

para Vigotski.

No capítulo 18, nos ateremos aos escritos iniciais mais direcionados à

crítica aos modelos existentes para construção de uma psicologia dialética.

Esta não era uma tarefa exclusiva de Vigotski, mas de um grupo significativo

que posteriormente passou a ser conhecido como Psicologia Soviética. No

capítulo 19 apresentamos um manuscrito que foi descoberto nos arquivos da

família e que merece uma atenção especial pelos detalhes apontados acerca

da crise da psicologia. Esta crise havia sido apontada desde início dos

trabalhos de Vigotski, mas neste manuscrito ele consegue delimitar o

problema. Também dispomos de um outro Manuscrito elaborado um pouco

mais tarde do que o anterior, chamado Manuscrito de 1929. Os comentadores

argumentam que este, um rascunho, é um esboço de difícil compreensão, mas

que significa o marco para um salto qualitativo para novos fundamentos

teóricos e referenciais de pesquisa. No capítulo 20, apresentamos um resumo

que demarca a nova fase de Vigotski ao definir uma proposta metodológica.

No capítulo 21, conforme já havíamos anunciado na primeira parte deste

trabalho, começamos nossas análises sobre a psicologia infantil. Centramos

nossos estudos no problema da idade, ou seja, no estudo sobre as idades e as

crises que as crianças passam no seu desenvolvimento. Por fim, capítulo 22,

no qual nos ativemos com mais atenção sobre um conjunto de textos da

Pedologia do Adolescente. Investigamos especialmente a questão da crise da

idade de transição que Vigotski considera a principal na formação do psiquismo

humano. É o estudo da história das funções psicológicas superiores e que

abrange as principais categorias analíticas, como também aponta para a

qualidade de sua pesquisa e algumas lacunas.

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Capítulo 17: Os Referenciais teóricos e os interlocutores

Muitos dos textos de Vigotski foram estenografados ou então estavam

guardados em forma de manuscritos e sempre paira uma dúvida se estes

textos que foram tornados públicos na década de 80, na URSS, são de fato a

reprodução fidedigna dos originais. A maioria dos títulos do acervo está

praticamente toda fotocopiada na versão russa e um projeto editorial está em

andamento, como já mencionado na primeira parte deste trabalho, para uma

edição completa contendo inclusive as correspondências e pequenos textos

analíticos sobre literatura.

Pelos textos disponíveis de Vigotski na língua espanhola e portuguesa

podemos ter fartas informações sobre como foi assimilada a dialética no

decorrer de sua vida. A lógica dialética tem esta condição de qualificar as obras

mesmo que estejam num tempo histórico tão distante do nosso. Isto também

significa que avançamos pouco na psicologia dialética, por necessitarmos de

referências de tempos tão longínquos.

Para analisarmos a concepção de dialética de Vigotski devemos

considerar, primeiramente, que ele é dialético, usa a dialética e essa

capacidade não veio com o estudo do marxismo, mas com o estudo de Hegel.

Esta informação os historiadores apresentavam apontando o período em que

Vigotski organizava grupos de estudos na sua cidade, Gomel, quando ainda

era jovem. Mas nós temos uma obra emblemática para destacarmos a dialética

de Vigotski devido ao tempo longo que se ateve a uma obra escrita com

fundamentos da lógica dialética: Hamlet, Príncipe da Dinamarca. A análise que

ele estabelece entre o que é dito e não dito, e entre o aparente e o camuflado,

nesta peça de teatro, torno-o um fascinado pela lógica dialética desde a

juventude. Não apenas a relação de Hamlet consigo mesmo, mas esta relação

indissociável entre o social e o individual, ou então, sob outra perspectiva, o

texto e subtexto ou sentido e significado. A análise da obra desafia a

objetividade dentro da subjetividade que a lógica formal não dá conta. Este

exercício acompanhou Vigotski desde o tempo de escola e o acompanhou na

faculdade, no doutorado (ou mestrado) e voltou no final da vida com muito mais

força para, inclusive, rever seus preceitos epistemológicos. A noção de drama

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que consta no Manuscrito de 1929 é apontado pelos comentadores como a

grande virada epistemológica de Vigotski, que iniciava a saída das concepções

sistêmicas, das localizações das funções psicológicas e iniciava a estudar as

relações sociais e as implicações na formação do sujeito social.

Nós apresentamos na Parte II a concepção dialética dos principais

interlocutores de Vigotski. Não apresentamos em detalhes a dialética de Stalin

porque virou mais objeto de panfletário. Contudo, não devemos esquecer as

aventuras da dialética que desembocou num projeto de sociedade mais voltada

para ideia de progresso do que propriamente para um projeto de emancipação

humana. A que se deve o desvio? Autores chegaram a anunciar como

problema a própria dialética que se constitui muito mais para negar o que está

do que implantar o que deve ser implantado. A concepção da negação da

negação foi rechaçada pelo período stalinista, abençoada por Althusser,

chegou até onde deveria ir. Há necessidade de deixar claro que existe uma

lógica e esta pode ser distinguida entre a formal e a dialética. A lógica formal

não se aplica à realidade e, portanto, nega a história como ciência.

Diferentemente da lógica dialética, na qual a história é imprescindível e

indissociável da condição humana.

No tempo de Vigotski, o embate principal estava entre o idealismo e o

materialismo. Não precisamos distinguir os tipos de idealismo, porque o

referencial, como bem apontou Marx, foi a filosofia de Hegel, que alcançou o

sistema mais completo e sofisticado que se poderia chegar. Este idealismo não

nega a história, mas não a considera como ciência. Por outro lado, temos

materialismos diferentes, que reconhecem a história de formas diferentes.

Assim como alguns comentaristas entendem que há diferença entre o

materialismo de Marx e Engels, da mesma forma, ambos se julgam

materialistas e certamente terão divergências em alguns momentos sobre

aspectos da história. Afirmamos que a história define o materialismo de um e

de outro, e, portanto, a dialética é determinada pela história. Não se pergunta

quem é mais materialista, se Lênin ou Vigotski? Importa saber como atuam na

história, como compreendem e como aplicam as mudanças na realidade

compreendendo a história.

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Vigotski se ampara nas concepções de Marx quando afirma que

“conhecemos tão somente uma única ciência, a ciência da história”. Afirmar

isso exige que definamos o que é história. Sob a perspectiva sociológica Marx

afirma que são os seres humanos quem fazem história, mas não a fazem

segundo a sua livre vontade66; estão inseridos numa história mais ampla que

não se reduz ao passado como algo estático. Todo passado com suas

tradições oprime “o cérebro dos vivos” e recebemos como um apelo para a

transformação da realidade. É importante, entretanto, esclarecer que atividade

não está dissociada da teoria e é melhor falarmos da práxis. A ciência é, neste

sentido, resultado da práxis. Mas o que é a teoria? É fazer o que pensamos. E

o que é atividade? É pensar o que fazemos. E, Lênin, na sua frase tão

conhecida, deixa isso muito evidente – “sem teoria não há revolução” – sem a

práxis não há alteração objetiva da realidade.

Só resta então dizer o que é ciência. Entendemos que a ciência é a

natureza de pensar e intervir na natureza. Quem faz a história é o ser humano

e o ser humano torna-se histórico porque é capaz de reconhecer-se a si

mesmo como reconhecer a história de sua própria generidade. A natureza não

faz história, mas o ser humano, a partir de sua evolução biológica, transformou-

se quando tornou-se “um animal que fabrica instrumentos”, como Marx havia

mencionado e reforçado por Engels quando analisa “o papel desempenhado

pelo trabalho na transição do macaco para o homem”. Vigotski é conhecedor

profundo da obra de Engels A Dialética da Natureza, conforme constatamos

nas frequentes citações realizadas em seus textos. Este conhecimento

contribuiu para elaborar um método para conhecer o comportamento humano

que resulta em dois intrincados processos que são síntese da relação dialética

entre a ontogênese e a filogênese e que correspondem a dois atos: atos

inferiores naturais que estão inseridos na evolução biológica humana e

compartilhados com animais; atos instrumentais artificiais que evoluíram

enquanto história humana. Esta relação dialética possibilitou que Vigotski

desvendasse este processo no psiquismo humano que combina processos

naturais e artificiais. Uma referência bem conhecida quando se estuda a

memória. A ligação de dois estímulos é estabelecida pelo processo direto de

66 Dezoito Brumário, cap. I, Karl Marx.

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reflexo condicionado – que constitui a memória natural, a memória dos animais.

A ligação de dois estímulos estabelecida por um processo que tem um

instrumento (recurso mnemotécnico) como auxílio consiste na memória

artificial, a memória essencialmente humana. Assim como dispomos dos

instrumentos que é um fator externo do ser humano ao usar ferramentas,

também há uma outra relação dialética entre as ferramentas, instrumentos e

signos. A partir dessa base, como nos referimos nos textos analisados

anteriormente, pode-se fazer uma série de pesquisas sobre as funções

psicológicas superiores na relação com as funções primitivas. As pesquisas

sobre esta relação se avolumam em Vigotski sobre os temas mais específicos:

percepção, atenção, formação de conceitos, interesse, memória, linguagem,

pensamento, vontade, consciência e personalidade.

Nos textos analisados sobre a Pedologia do Adolescente verificamos

que em vários momentos Vigotski traz as citações de Hegel através de Lênin

para compreender a lógica dialética em si. A lógica pela lógica é apenas um

exercício mental no qual nós fazemos questão de apontar as condenações

críticas de Kant. Em vários trechos dos textos, nos deparamos com a crítica de

Vigotski a Kant; o faz reduzindo toda a filosofia antes de Hegel como filosofia

da especulação. Kant sugere que o conhecimento deveria regular os objetos e

Vigotski não concordava com essa perspectiva. Se o concreto é síntese de

múltiplas determinações, temos que partir do concreto. Não é ponto de

chegada, é ponto de partida. Esta definição é a base da epistemologia

marxiana e dela Engels e Lênin também não abrem mão. Kant se pergunta: de

onde vem o nosso conhecimento? Ele responde: de duas fontes. A primeira

consiste em recepcionar os objetos; e a segunda é poder conhecer os objetos

recepcionados. Contudo, Kant tem um papel importante na filosofia, isto porque

estabeleceu regras rigorosas para depois intentar descobrir a relação com o

objeto em busca de uma verdade positiva. Kant utiliza-se de uma dialética

inversa daquela que Hegel inaugurará. A dialética transcendental kantiana é

positividade na negatividade. Em Hegel, pelo contrário, o positivo se obtém

pelo negativo. A questão fundamental na perspectiva kantiana é que as

categorias são definidas a priori e isso é completamente inadmissível para

Hegel, Marx, Engels e Lênin.

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O materialismo dialético não é apenas uma teoria, uma gnosiologia

como temos sempre mencionado, mas também tem seu caráter epistemológico

em geral e de método em particular. Na exposição da parte dois apresentamos

detalhadamente o método tanto de Marx como também de Lênin. A

apresentação feita por Marx sobre o método é muito passageira em suas

obras. A preocupação de Marx não era essencialmente epistemológica, mas

ontológica, mas o que fazer quando se está no meio de uma revolução

implementando mudanças estruturais? Lênin expôs muito claramente o caráter

epistemológico com síntese da teoria e da prática. O método exposto nos seus

Cadernos Filosóficos é uma das melhores definições como também prima pelo

detalhe. É um método que nos permite conhecer a realidade, conhecer o real,

como nos fala intensivamente Feurbach, mas este não considerou a história e

nem a dimensão humana do trabalho. E este é ponto central da importância do

método. Conhecer a realidade e considerá-la apenas como realidade e não

transformá-la é apenas especulação. O contrário também é problemático,

aplicar métodos sem teoria cai no mesmo cadafalso metafísico. Considerando

os detalhes apresentados pelo método de Vigotski, sustentamos a tese de que

sua principal base foi o método de Lênin que está exposto nos “Cadernos

Filosóficos”. Ao considerar os detalhes da exposição leniniana e da vigotskiana

vemos a plena sintonia:

“(...) objetividade da análise, todo o conjunto das relações múltiplas desta coisa com outras, o desenvolvimento desta coisa e o seu movimento próprio, as tendências internas contraditórias nesta coisa, a coisa como unidade dos contraditórios, o desenvolvimento destas contradições e a unidade da análise” (LÊNIN, 1977, p. 92-93).

É um equívoco afirmar que Vigotski compreendeu a “unidade de

análise” porque compreendeu o desafio de totalidade dos gestaltistas. Seu

conhecimento sobre a dialética lhe conferia capacidade de dominar muito bem

a relação entre contradição, totalidade e mediação dentro do que se costuma

chamar como escola de psicologia: “psicologia soviética”.

Então, a pergunta clássica quando se discute o sentido da dialética em

Vigotski é: “ele é idealista ou materialista?” A pergunta nos possibilita

responder em duas direções. Uma é simplista e a outra é mais complexa. Seria

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muito simples localizar nos textos as tantas vezes que Vigotski apresenta as

citações contra Hegel com o apoio de seus interlocutores. Retirar esta condição

do texto é desconfigurar e deslegitimar a teoria vigotskiana, exceto se

entendermos que as obras de um autor não devem ser entendidas como

expressão profunda e rigorosa de seu pensamento. O que foi feito com o livro

Pensamento e Linguagem quando foi editado nos EUA é “desconfiguração”.

Nada vai impedir, entretanto, que cognitivistas e pragmatistas (e outros mais)

se apossem das teorias e metodologias vigotskianas. Afirmar que Vigotski não

é materialista histórico dialético é não considerar, repetimos, o texto em si. A

segunda resposta, mais complexa, coloca o debate dentro de uma discussão

muito mais ampla da dialética que foi tão polemizada na segunda metade do

século XX, com a Escola de Frankfurt e com as teorias da Ontologia do Ser

Social de Lukács. A dialética como um referencial criativo ligado ao

materialismo histórico e como um referencial para práxis foi contestada e

defendida como questões relevantes para refletir sobre o caminho ou destino

da civilização humana. É neste período que a teoria vigotskiana ganha

relevância, pois tornou-se umas das raras referências que se manteve às

premissas marxianas e leninianas.

A dialética no tempo de Stalin tem todas as leis que a ortodoxia

pudesse elencar desde que não se debruçasse sobre “a negação da negação”.

Althusser, por exemplo, fez o mesmo com a dialética – suprimiu a negatividade

e defendeu Stalin. O trabalho do negativo é o fundamento do marxismo e da

crítica e este é um ponto frágil na teoria vigotskiana. Esta questão é tão ampla,

tão polêmica, que nas condições em que viveu Vigotski são críticas que

poderiam não ter sentido para o seu momento. Qual seria a negatividade

depois da abolição da propriedade privada, do lucro, dos contratos e do

dinheiro? E, quanto a Lênin, como se comportou com esta questão? É muito

claro para Lênin que a negatividade consistia em lutar contra o capitalismo. E,

comparando com Vigotski, esta é uma fragilidade, uma lacuna por não ter esta

explicitação da negatividade. A negatividade, portanto, olhando no campo da

psicologia, foi confrontar a ontologia da perspectiva da psicologia empiricista,

experimentalista e objetivista que o ser humano se reduzia ao reflexo chegando

ao extremo de não haver diferença entre animais e seres humanos.

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Por que as obras de Vigotski foram proibidas na URSS em 1936? Não

foi em razão da identificação com o idealismo, mas sim por não admitir na

teoria marxiana e leniniana desconsiderar o embate teórico aberto (marca

registrada na época do secretariado de Lênin). Não basta somente conhecer as

leis da relação entre quantidade e qualidade e da contradição sem considerar

as possibilidades de superação. Portanto, Vigotski é sim materialista na

expressão daquilo que Marx havia defendido como crítica da crítica e que foi

tão bem relatada na “Sagrada Família”. A massa é acrítica e os críticos podem

entender e saber o que é melhor para ela. Marx é radicalmente contra esta

concepção que governa já sabendo da condição menor ou impotente do ser

humano. O ser humano, na perspectiva genérica, tem capacidade de

transformar a realidade e não há porque destinar a responsabilidade para que

o outro decida, mas assumir a sua capacidade real de transformar o mundo e

se transformar (MARX & ENGELS, 2009). A crítica marxiana que consta na

obra que Vigotski não conheceu (Sagrada Família) é a mesma crítica radical de

Vigotski, qual seja, a capacidade e potencialidades humanas são capazes de

transformarem o mundo nas condições nas quais se apresenta.

Alguns autores fazem críticas sobre a noção de reflexo de Lênin e que

por sinal são muito próximas das de Vigotski (GONZÁLEZ REY, 2013). A

maneira como Lênin ressalta a condição do objeto e o reflexo na mente

humana é uma forma radical contra as superstições humanas. É a inversão da

lógica. No seu livro Materialismo e Empiriocriticismo é muito mais a apologia

crítica contra a filosofia especulativa e idealistas que tendem a não considerar

a realidade concreta. A noção de reflexo é também uma tendência que envolve

o outro debate: a necessidade e liberdade. Lukács (2010; 2015) contraria a

perspectiva de considerar as variáveis da necessidade como determinantes.

Por exemplo, o socialismo é uma necessidade irreversível, mas os

determinismos de elevar a necessidade a este grau o aproxima à teoria do

positivismo, no seu avesso. Tanto o reflexo como o determinismo da

necessidade levam a menos liberdade humana.

Há uma frase muito presente e constante nos textos de Vigotski que

nós vemos desde o primeiro texto analisado e publicado em 1924:

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“(...) temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo mecanismo, porque somos em relação a nós mesmos o mesmo que os demais em relação a nós. Reconhecemo-nos a nós mesmos somente na medida em que somos outros para nós mesmos, isto é, desde que sejamos capazes de perceber de novo os reflexos próprios como excitantes” VIGOTSKI, 2004, p. 18).

O que os outros são para que possamos ser o que somos pode

reduzir-se apenas a uma noção de reflexo. Esta noção leniana de que o mundo

exterior é refletido pela mente humana, mesmo que se entenda que não é uma

questão automática ou osmótica, é determinista. Esta visão, esta concepção de

ser humano no final da vida de Vigotski vai desaparecendo quando afirma no

Manuscrito de 1929 que “a dinâmica da personalidade é o drama” (VIGOTSKI,

2000).

A dialética vigotskiana alcançou grande impacto a ponto de ressuscitá-

lo com todas as publicações mesmo que tenha sido calado por longos 50 anos.

Ao fazer a transposição das questões do tempo de Vigotski para os dias de

hoje é preciso ser muito criterioso e cuidadoso. O que é inadmissível é retirar a

base ontológica de Vigotski e subtrair de seus textos o que justifica esta opção.

Atitudes como essas falseiam o pensamento do autor como também torna

flexível para interesses dos mais variados.

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Capítulo 18: Os primeiros escritos

Como é sabido, Vigotski participou do II Congresso de Neurologia, no

início do ano de 1924, e nos chama atenção os títulos das palestras que ele

apresentou neste evento: i) Método de investigação reflexológica e psicológica;

ii) Como temos que ensinar psicologia hoje; e, Resultados de um levantamento

sobre o estado de espírito dos alunos nas últimas aulas das escolas de Gomel

em 1923. Não se dispõe dos textos das últimas duas palestras, talvez porque

tenham sido extraviados. Independentemente de não termos o registo destas

palestras, os títulos nos remetem às preocupações de Vigotski no campo do

ensino, para questões reais. Diante de tantos campos de estudo, a decisão de

Vigotski participar especificamente deste congresso demonstra interesse na

organização do ensino da cidade de onde provém e também a intenção de

querer participar deste programa educacional para todos. O único registro da

participação no congresso é o texto que chega até nós sobre as disputas

teóricas e metodológicas, que se resumem em psicologia objetiva e psicologia

subjetiva. Neste escrito, distinto de todos os outros, não há explicitação de

Vigotski acerca do materialismo histórico dialético. Não há também nenhuma

menção sobre a lógica formal, lógica dialética,... enfim, às questões tão

recorrentes e definidas como diretrizes no primeiro congresso. Contudo, já

podemos observar o domínio perspicaz da lógica dialética quando lança uma

afirmação tão arrebatadora: “Ser materialista em fisiologia não é difícil. Mas

provem como sê-lo em psicologia e se não o conseguirem, continuem a ser

idealistas” (VYGOTSKI, 2013 k, p. 19). O debate proposto por Vigotski é sobre

metodologia e ataca a reflexologia. Com isso se pergunta se os reflexologistas

“podem omitir a psique?” “Pavlov diz que sim” (Ibidem, p. 19).

Em 1924, Vigotski também escreveu um prólogo para o livro de A. F.

Lazurski. Esse texto foi elaborado cuidadosamente respeitando a carreira do

psicólogo russo. Verificamos que ele está já consciente de uma tarefa: “revisar

os fundamentos e princípios da psicologia à luz do materialismo dialético “e a

definir parâmetros metodológicos para investigação científica. A fisiologia

utiliza-se de métodos das ciências naturais exatas que alcançaram

indubitavelmente conhecimentos precisos sobre as atividades nervosas

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superiores. Aponta a crise que existe na psicologia que precisa enfrentar

objetivamente a subjetividade, resolver o problema da consciência. Denuncia

que a psicologia desta época não se apresentava como uma psicologia geral e

estava fragmentada. A crise na psicologia consiste também no fato de que

cada corrente vai se arrumando com a solução dos problemas e, no caso da

psicologia empírica, não passa de uma concepção idealista porque permanece

somente na experiência com que julga ser objetiva (VIGOTSKI, 2004, p. 42).

Vigotski menciona no final do prólogo que “não se deve esquecer nem

por um minuto que cada vocábulo da psicologia empírica é um odre velho que

se encherá de vinho novo” (Ibidem. p. 53). A psicologia empírica precisa ser

superada e a tarefa parece ser muito clara para nosso autor.

Notemos que há uma diferença sensível para o texto da palestra

apresentado no congresso e este prólogo. Há mais cuidado, há preocupação

em colocar o materialismo dialético em pauta.

Em 1925, Vigotski publicou A consciência como problema da psicologia

do comportamento, no qual apresenta a dificuldade da literatura até então tratar

da natureza psicológica da consciência. Fazemos questão aqui de enumerar os

problemas mais importantes e relacionados pelo autor:

i) A psicologia não enfrenta “os problemas complexos” e declara não

existir “uma única lei psicológica” que formule os possíveis nexos

entre os fenômenos e que diferenciem o comportamento animal do

comportamento humano;

ii) Não se considera a consciência, portanto, depara-se com uma

psicologia sem consciência;

iii) “A psique e o comportamento são interpretados como dois

fenômenos distintos”. Ou seja, a psique é tratada como um

fenômeno subjetivo e o comportamento como um fenômeno

objetivo;

iv) Considera-se “os processos subjetivos totalmente supérfluos ou

secundários na natureza”;

v) Conclui-se que o “comportamento é uma soma de reflexos”

(VIGOTSKI, 2004, p. 56-60).

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Vigotski defendia que o conceito de reflexo eram “conceitos abstratos”

e que seria muito mais conveniente “estudar o mecanismo, a composição e a

estrutura do comportamento”. E, conclui:

“A psicologia cientifica não deve ignorar os fatos da consciência, mas materializá-los, transcrevê-los para um idioma objetivo que existe na realidade e desmascarar e enterrar para sempre as ficções, fantasmagorias e similares. Sem isso é impossível qualquer trabalho de ensino, de crítica e de investigação” (Ibidem. p. 63).

Em 1930, foi publicada a palestra “Sobre os sistemas psicológicos”

(VIGOTSKI, 2004), na qual apresenta as funções psicológicas superiores e as

primitivas. As funções psicológicas superiores são percepções, pensamentos,

memória, signos, emoções, linguagem (e formação de conceitos). Fazendo

referência como se desenvolve a linguagem nas crianças, Vigotski defende que

a linguagem, primeiro, aparece de “forma coletiva” e depois pessoal. Afirma

contundentemente: “qualquer processo evolutivo é inicialmente social, coletivo

e inter psicológico”.

O desenvolvimento psicológico para Vigotski não poderia ser pensado

como um processo abstrato, descontextualizado, universal: o funcionamento no

que se referem às funções psicológicas superiores, tipicamente humanas,

deveriam basear-se fortemente nos modos culturalmente construídos de

ordenar o real.

Os sistemas simbólicos e, particularmente, a linguagem, exercem um

papel fundamental na comunicação entre os sujeitos e no estabelecimento de

significados compartilhados que permite interpretações dos objetos, eventos e

situações do mundo real.

O surgimento do pensamento verbal e da língua como sistema de

signos é crucial no desenvolvimento da espécie humana, momento mesmo que

o biológico se transforma no histórico e em que emerge a centralidade da

mediação semiótica na construção do psiquismo humano. O surgimento da

língua é atribuído, por Vigotski, à necessidade de intercâmbio dos indivíduos

durante o trabalho, atividade especificamente humana.

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É no texto “Sobre sistemas psicológicos” que Vigotski irá se referir sobre

o método de investigação e o método de exposição de Marx e apresentado no

segundo posfácio de O Capital. Isto comprova que Vigotski tinha consciência

sobre o método como também se preocupava que as publicações se

orientassem pela matriz metodológica marxiana.

Enfatizamos aqui os escritos de Vigotski que ainda não acentuam

objetivamente a crise da psicologia. É claro que em 1924 o problema da

consciência consiste na questão central para diagnosticar esta crise.

Colocamos o texto Sobre sistemas psicológicos ainda sobre uma base inicial. A

partir de 1930, especialmente nos textos sobre “defectologia” será sempre uma

referência que conflui na crise da psicologia.

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Capítulo 19: A crise da psicologia

Em 1927, Vigotski escreve O significado histórico da crise da psicologia

(VIGOSTKI, 2013), que retrata as diferentes correntes existentes na psicologia

naquele momento. Uma grande corrente era influenciada pelas ciências

naturais, pelo positivismo e, a outra, pelas ciências mentais. Dentro da primeira

tendência, para tornar-se uma ciência respeitada, a psicologia deveria provar

seus resultados, explicar processos elementares e quantificar fenômenos

observáveis. Era denominada a psicologia experimental, pois com a

quantificação dos fenômenos, os processos poderiam ser subdivididos em

partes menores para serem mais bem observados. A segunda tendência era

influenciada pela ciência mental, que descrevia as propriedades dos processos

psicológicos superiores, tomando o homem como mente, consciência e

espírito. Esta segunda tendência aproxima a psicologia da filosofia das ciências

humanas, com uma abordagem descritiva, subjetiva e dirigida a fenômenos

globais sem preocupação com a análise desses fenômenos em componentes

mais simples.

Enquanto a psicologia do tipo experimental deixava de abordar as

funções psicológicas mais complexas do ser humano, a psicologia mentalista

não chegava a produzir descrições desses processos complexos em termos

aceitáveis pela ciência.

É neste contexto que surge e o desafio de uma ontologia e uma

epistemologia fundamentadas no materialismo histórico dialético. A abordagem

proposta por Vigotski e seus colaboradores buscava uma síntese para a

psicologia, o ser humano enquanto corpo e mente, enquanto biológico e

cultural, enquanto membro de uma espécie animal e participante de um

processo histórico.

Dentre todos os escritos de Vigotski dos quais dispomos nos dias de

hoje, chama-nos atenção O significado histórico da crise da psicologia – uma

investigação metodológica (1927), pois se utiliza de muitas expressões

diferentes sobre a dialética: “materialismo dialético”, “dialética subjetiva”,

“dialética objetiva”, “Dialética da psicologia”, “Dialética da Ciência Natural”,

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“Dialética da Natureza”, “Dialética do homem”, “Dialética das ideias”, “Dialética

dos fatos”, “antidialética”, “lógica dialética”, “unidade dialética”, “princípios

dialéticos”, “análise dialética”, “concepção dialética”, “pensamento dialético”. É

citada 59 vezes a palavra “dialética”, o que demonstra, se comparado com os

outros ensaios, uma preocupação muito grande em fundamentar uma

psicologia a partir de uma concepção dialética, sem querer atribuir que a

solução da crise na qual a psicologia se encontrava fosse um privilégio apenas

de uma corrente psicológica.

Vigotski concluiu os manuscritos Significado Histórico da Crise da

Psicologia em 1927 e, na Europa Ocidental, simultaneamente, surgiam textos

sobre este mesmo tema. K. Bühler (1879-1963), psicólogo austríaco, muito

citado por Vigotski, um ano depois editou o livro Crise da Psicologia. Os

manuscritos de Vigotski ficaram muitos anos desconhecidos do público

soviético e foram descobertos em 1960. Somente em 1982 foram publicados

pela primeira vez na Rússia e passaram a ser estudados como uma de suas

principais obras.

A crise da psicologia consistia no surgimento de várias escolas que não

conseguiam definir algo em comum que pudesse estruturar uma psicologia

com princípios generalizadores e que sustentasse uma psicologia geral. Desde

1924, que Vigotski vinha apresentando as dificuldades de várias correntes da

psicologia para tratar, por exemplo, da consciência. A maioria dos escritos pós-

1927 fazem constantemente referência à crise da psicologia e os manuscritos

encontrados, depois de tanto tempo, constituem uma referência central tanto

no aspecto epistemológico como ontológico da hermenêutica vigotskiana.

Logo na primeira parte de seu Manuscrito, destaca que “mais vozes”

estão se juntando para reivindicar uma psicologia geral. Esta reivindicação não

parte dos filósofos nem dos psicólogos teóricos, mas daqueles que lidam com

as questões reais, concretas, os psicólogos práticos (psicólogos da psicologia

aplicada, psiquiatras, psicotécnicos). A psicologia como ciência estava

acumulando cada vez mais e mais informações (dados) e, conforme Vigotski,

não levaria a lugar algum. A psicologia naquela época estava numa

encruzilhada, era preciso definir um “método”. (VIGOTSKI, 2004, p. 259).

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Vigotski avalia a crise da psicologia no início do século XX como sendo

um problema da sua atualidade e seu manuscrito é uma crítica metateórica das

perspectivas da psicologia existente. A primeira tarefa a ser empreendida

deveria ser encontrar um lugar para o próprio programa da psicologia. A

segunda, Vigotski estava convicto da impossibilidade de fazer avançar a

psicologia como ciência propositiva sem antes definir sua posição

epistemológica na relação com seu objeto de estudo que pudesse fazer frente

aos seus rivais poderosos, a filosofia e a fisiologia (KOZULIN, 1999, p. 88).

Vigotski apresentava dois enfoques metodológicos alternativos: o enfoque de

cima para baixo e o enfoque debaixo para cima. O de cima para baixo deveria

passar pela explicação do reflexo para explicar a totalidade do comportamento

humano; de baixo para cima, a explicação das funções psicológicas superiores,

portanto mais complexas, até as primitivas. Isto delinearia um caminho até

alcançar os fundamentos para uma psicologia geral futura que não escaparia

de efetuar a crítica metapsicológica das escolas de psicologia existentes, cada

uma pretendendo possuir um sistema explicativo próprio, e que reivindicavam

ser a base da psicologia geral.

Vigotski não concorda que a psicologia geral pudesse ser assumida

pela psicologia teórica (mentalista). Esta é uma disciplina particular tal como

psicologia animal ou então a psicopatologia. Claro que a psicologia até adotava

um papel diretivo, mas tinha limites. Bastava uma alteração numa disciplina

que logo modificavam-se os pontos de partida. Por exemplo, a psicopatologia

conservava o conceito central no inconsciente (são os sistemas S. Freud, A.

Adler, E. Kretschmer). Esta alteração poderia ser vista na própria

psicopatologia, até porque, quando este conceito central perdia sua

determinação, percebia-se que se recorria ao que era revelado nas

“manifestações extremas da patologia”. Isto significa partir da patologia à

normalidade e não o inverso, ou seja, do conceito para o real. “A chave da

psicologia está na patologia”. A natureza interna da patologia está nos fatos

que determinam “a natureza do conhecimento científico sobre esses fatos”

(VIGOTSKI, 2004, p. 260).

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Vigotski identificava dois sistemas (aqui a definição é subentendida

como o campo de orientações), um que partia da pessoa normal como

referência e considerava a pessoa patológica como uma variante, e outro,

partia da pessoa patológica como referência e da pessoa normal como

variante. Vigotski se perguntava como a psicologia geral poderia resolver esta

questão. Esta é sua pergunta inicial.

Além dos dois sistemas acima mencionados havia um terceiro que era

aquele que se baseava na psicologia animal. Vigotski identifica aqui os

behavioristas estadunidenses e os reflexologistas russos. Estes partiam do

reflexo condicionado que é tomado como princípio central. Como era um ramo

da psicologia que se apresentava como protagonista na elaboração de

conceitos fundamentais é ela que se considerava, por mérito, a base – a ela

destinaria o papel da psicologia geral, portanto, por ter esta condição objetiva

do psíquico, era capaz de orientar outras disciplinas da psicologia.

O ponto de vista de I. P. Pavlov sobre o papel da psicologia animal

afirma que os psicólogos que partem do pressuposto da comparação são

aqueles que se apropriam dos conceitos da psicologia animal e pensam na

aplicação, e, por esta razão, “determina a tarefa dos psicólogos”. Ou seja, a

psicologia animal estabelece a infraestrutura e a psicologia a superestrutura

(Ibidem, p. 261). Vigotski até concorda que muitas categorias foram extraídas

da psicologia animal para explicar o comportamento humano, mas não são

suficientes. Da mesma forma, a psicologia subjetiva parte do ser humano como

chave da psicologia dos animais, mas não conseguia inverter este pensamento

porque fazia por analogia. O psiquismo animal “interpretando suas

manifestações por analogia a nós mesmos” (Ibidem, p. 261).

É neste momento que Vigotski traz o método histórico dialético de base

marxiana. Cita a conhecida frase de Marx: “a anatomia do homem é a chave

para a anatomia do macaco”. Conforme Marx, só é possível conhecer alguns

aspectos do desenvolvimento superior nas espécies inferiores em razão de que

uma forma superior já é conhecida.

Há uma referência longa às obras de Marx para fundamentar a

perspectiva vogotskiana referindo-se especificamente às análises sociológicas.

Assim como a economia burguesa constitui-se como uma “organização

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histórica de produção mais desenvolvida e multiforme”, dando-nos a chave

para compreendermos as economias menos desenvolvidas, assim vale para a

psicologia, como bem aplicou Vigotski.

Vigotski analisa a necessidade de as psicologias saírem de seus

domínios. As mudanças ocorrem e devem ser “explicadas tomando uma

metodologia científica sobre uma base histórica”. Estas mudanças podem ser

explicadas considerando três aspectos: i) “o substrato sócio-cultural de uma

época”, como questões atuais e concretas; ii) “as leis e condições gerais do

conhecimento científico” que possam realmente desvelar o concreto e não

simplesmente reunir informações e descrevê-las – explicá-las constitui-se o

fundamental; iii) “com as exigências objetivas que a natureza dos fenômenos

objetos de estudo coloca o conhecimento científico no estágio atual da

investigação”. Ou seja, a realidade objetiva estabelece as exigências e fora

disso não é imprescindível para aquela época (Ibidem, p. 119). Os três

aspectos citados instigam que devemos sempre buscar “a participação dos

fatos objetivos que a ciência estuda”. A ciência tem essa tarefa.

Analisando a evolução de sistemas psicológicos tais como a

reflexologia, a psicanálise, o personalismo e a psicologia da Gestalt, Vigotski

mostrou que em seu desenvolvimento existia um padrão uniforme que

transcorria, desde seu descobrimento inicial, a sua transformação em visões de

mundo que abarcavam o todo.

Pode-se apresentar uma base esquemática com uma linha de

desenvolvimento das ideações explicativas baseadas em estágios. Trata-se de

um processo evolutivo que parte de uma descoberta específica até chegar no

que ele denomina de um estágio de formação ideológica. Detalharemos este

esquema para que possamos ter claro também a noção de ideologia que se

aproxima da concepção de uma “weltanschaung” – a noção de visão de

totalidade. São cinco estágios: primeiro, parte-se de uma descoberta real que

tem capacidade de modificar uma ideia habitual; segundo, a relevância da

descoberta está no reconhecimento e com isso na propagação da influência

destas ideias; terceiro, a ideia é assimilada, reconhecida e passa a assumir um

caráter de disciplina capaz de entrar num nível de confrontação; quarto,

desprende-se dos próprios conceitos iniciais que a ideia possibilitou e

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consegue entrar no estágio de explicação. O quinto, a ideia encontra-se em

toda parte transformando-se em uma ideologia; é o estágio que consiste na

máxima generalização como também de negação.

Num determinado momento se pergunta: “Por que uma ideia deixa de

existir?” Cita uma lei de Engels na qual as ideias se concentram em torno de

dois polos: o idealismo e o materialismo. O que está oculto é desmascarado na

“luta de classes das ideias”. O que não tem mais sentido “desaparece” (Ibidem,

p. 222). Se aparecem é porque se destacam e são descobertas concretas, mas

“tudo isso depende de fatores externos à história da ciência e que a

determinam” (Ibidem. p. 223).

Vigotski identifica na sua época quatro conjuntos de ideias que

alcançaram valoração social devido às descobertas que fizeram. Dada esta

perspectiva vigotskiana, qualquer referência sobre os estágios citados acima,

tem relevância. Os quatro conjuntos de ideais são: Psicanálise (as neuroses

são fenômenos psicológicos determinados pelo inconsciente e o fato de que a

sexualidade é reprimida por não considerá-la ainda aceitável. A psicanálise se

transforma em ideologia e a psicologia, metapsicologia; seu principal

representante é Sigmund Freud); reflexologia (experiência com a salivação

dos cachorros pode verificar a determinação. Outros fenômenos foram

verificados enquanto reflexo e aí surgiu a psicologia animal. Tudo então

passava pelo reflexo. Seus principais representantes são I. P. Pavlov e

Bekhterev); Gestalt (surge pelo estudo dos processos perceptivos da forma e

Vigotski ironicamente afirma: “disse Deus: ‘que seja Gestalt’ e tudo se

transformou em Gestalt” (Ibidem; p. 226)); personalismo (o conceito de

individualidade é predominante e também todas as coisas passam a ser

individualidades, ou partes das individualidades isoladas). Quando estes quatro

conjuntos de ideias devem se referir a categorias baseadas em leis universais

passam a significar a mesma coisa. A psicanálise não consegue explicar as

neuroses histéricas se não for pelo princípio da sexualidade inconsciente, a

reflexologia não envolve a totalidade, a Gestalt procura explicar tudo e não

explica nada e o personalismo não se fundamenta no desenvolvimento da

história. Todas estas abordagens, conforme Vigotski, têm a preocupação de

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encontrar um princípio geral, mas o que realmente fazem é adotar qualquer

ideia, mesmo que seja falsa (Ibidem. p. 228).

Os estágios apresentados por Vigotski para a constituição de uma

ciência foram retomados na segunda metade do século XX e dois metodólogos

(Thomas Kuhn (1922-1996) e Paul Feyerabend (1924-1994) nos chamam

atenção para esta análise. Primeiro, os estágios propostos vão de encontro às

concepções defendidas por Thomas Kuhn (1922-1996) quando publicou sua

obra Estrutura das Revoluções Científicas e criticou a visão de ciência proposta

tanto pelos positivistas lógicos como pelos racionalistas críticos popperianos67,

demonstrando que o estudo da história da ciência dá-se por uns caminhos

diferentes ao que fora proposto por estas escolas. A pergunta de Kuhn era “por

que os cientistas mantêm teorias apesar das discrepâncias, e, tendo aderido a

elas, por que abandonam?” A resposta para esta pergunta se aproxima ao que

Vigotski propôs. As pesquisas não são orientadas apenas por teorias, no

sentido tradicional deste termo, mas são influenciadas por algo mais amplo que

envolvem leis, modelos, analogias, valores, regras, formulações de problemas.

Enfim, são soluções concretas de problemas que determinam ou orientam os

pesquisadores. Outro metodólogo foi Feyerabend, que defendia que as

pesquisas são empreendimentos anárquicos e não acreditava em regras para

valorização das teorias científicas. É claro que este último não combina com

Vigotski. Contudo, citamos este debate que ocorreu com muita intensidade nas

décadas de 1960 e 1970 como reação ao positivismo lógico. O debate proposto

na década de 1920 por Vigotski estava enfrentando a questão central no

campo epistemológico. Tudo poderia justificar tudo, como o caos reconhecido

por Feyerabend, ou então cada um se fechando nos seus paradigmas como

defendido por Kuhn. Para KOZULIN (1990), o que Vigotski apresentava como

alternativa na década de 20 e o que criticava nas abordagens reflexológicas e

behavioristas foi o que realmente se converteu quando a ciência do

comportamento se fundamentou no positivismo.

O reconhecimento dos fatos psicológicos carregados de teoria permitiu a

Vigotski pôr em evidência as limitações de base estritamente empírica. Em

primeiro lugar, Vigotski ressaltou o fato de que historicamente a definição da

67

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psicologia como disciplina empírica aparece de forma negativa, mais que

positiva. O empirismo definia sua psicologia sem alma, quer dizer,

negativamente, como algo que não está baseado num fundamento metafísico.

Nos anos vinte, quando as escolas psicológicas pretendiam pertencer à

corrente empírica, a noção de empirismo se converteu em algo vazio de

conteúdo e enganoso. Obscurecia dramaticamente os diferentes postulados no

empírico no quais as escolas rivais embasavam sua atividade psicológica.

Vigotski assinalava que a psicanálise ao menos reconhecia abertamente seu

componente metapsicológico, as demais escolas se negavam a indagar os

seus fundamentos metapsicológicos, não empíricos. O uso da lógica empirista

e a negativa a reflexionar sobre sua própria posição teórica conduziu a

psicologia a uma situação absurda, quando deveria ter sido definida como uma

ciência natural de fenômenos não naturais. A psicologia empirista pretendia

esconder-se detrás dos fatos, mas cada fato delatava sua base e seu contexto

teórico.

O problema das múltiplas psicologias se resolveu na admissão de todos

aqueles fatos que não encaixavam no esquema do positivismo lógico. Mas,

como acertadamente predisse Vigotski, o culto aos fatos empíricos não liberou

ao neocomportamentalismo a necessidade de desenvolver suas próprias

regras relativas à interpretação dos fatos. Boa parte do trabalho desenvolvido

pelos psicólogos norte-americanos durante os anos 30 e 40 teve mais a ver

com procedimentos científicos de decisão com condutas reais. A estreita

afinidade entre a metodologia neocomportamental e o positivismo lógico fez

com que as transições dos problemas puramente comportamentais às

generalizações filosóficas parecessem bastante naturais. E isso é o que

precisamente Vigotski se referia: o fato empírico sempre é só um ponto de

partida; o princípio geral escondido por trás deste fato poderá inevitavelmente

ser manifesto quando a noção científica se desenvolve passando de seu

princípio empírico a seu final filosófico. A análise detalhada deste processo é

um dos temas centrais da crise da psicologia.

A ideia de Vigotski era que se a psicologia tinha algo a aprender de Marx,

teria que escrever seu próprio O Capital, no mesmo sentido em que O Capital

serviu de metateoria da economia do século XIX. Durante o resto de sua vida,

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Vigotski buscou este novo enfoque metateórico que deveria fundamentar

cientificamente a psicologia, mas não a custa da naturalização da consciência

humana, e com o uso do método marxista não degenerar numa psicologia

marxista ou torná-la mera adaptação.

Se nem o empirismo ateórico nem a psicologia marxista poderiam

proporcionar uma saída à crise, então de onde ela viria? Vigotski respondia:

“pela crise mesma”. Para ele, se deveria retificar a valoração da crise,

passando a considerá-la como um fenômeno positivo no lugar de negativo.

Para compreender a crise como um avanço positivo havia de se descobrir

primeiro a contradição básica – no sentido hegeliano e criativo do termo – que

fundamentasse todos os sintomas da crise.

Segundo Vigotski, atrás da aparente disputa em torno da teoria

psicológica geral dos anos vinte havia duas forças principais: a epistemologia e

a prática. Para compreender a crise era necessário realizar uma crítica

epistemológica das filosofias de investigação fundamentais reveladas pela

crise, e o problema crítico desenvolvido na crise de Vigotski era um primeiro

passo nesta direção. Mas também havia que ter em conta a segunda força

principal – a prática; foi nos anos vinte que a psicologia se fez, pela primeira

vez, totalmente consciente dos aspectos práticos associados às tarefas e

problemas industriais, forenses, educativos e de saúde mental. Vigotski cria

que este encontro com os problemas práticos forçaria a psicologia a revisar

seus próprios princípios seguindo as linhas ditadas pelas exigências da prática.

O horizonte prático ampliaria os horizontes da psicologia e a obrigaria a

encontrar uma nova visão para a grande riqueza dos conhecimentos

psicológicos práticos acumulados durante séculos por diversas áreas da

ciência. Em todas essas áreas da ciência, a tarefa de organizar e controlar a

conduta humana era de capital importância e tinham dado lugar à acumulação

de uma grande quantidade de princípios psicológicos. Haveria que usar

procedimentos analíticos para extrair e identificar esses princípios. Segundo

Vigotski, qualquer situação prática, desde o trabalho no setor produtivo até a

redação de um poema, poderia usar-se como um experimento cultural cujo

cenário são a mente e o comportamento humano. O que em um experimento

real se consegue controlando estímulos e respostas, em um experimento

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cultural desse tipo se conseguiria mediante procedimentos teóricos de análise

e síntese. Seria errôneo, por conseguinte, conceber a psicologia prática como

aplicação de teorias previamente estabelecidas. Haveria que inverter esta

relação: a prática selecionaria seus próprios princípios psicológicos e, em

última instância, criaria sua própria psicologia.

Os componentes prático e epistemológico da crise não deveriam

considerar-se problemas independentes; ambos têm um centro comum: a

filosofia da prática. Vigotski estava convencido de que, ao buscar um método

geral de investigação psicológica, acabaríamos por chegar inevitavelmente ao

problema da prática: “método significa caminho; e o entendemos como meio de

conhecimento; mas um caminho está determinado em todos os seus pontos

pelo destino a que conduz. Por isso, a prática (como meta) reorganiza a

metodologia da ciência em sua totalidade”. O “princípio explicativo”, afirma

Vigotski, exige que saiamos dos limites de uma determinada ciência, ou seja,

devemos analisá-lo não como se fossem estáticos, mas em movimento,

compreendendo o seu caráter de totalidade. A categoria totalidade é

fundamental para compreender uma categoria na sua particularidade e como

se relaciona com outras categorias. A compreensão das categorias leva a

princípios gerais que ele denomina como “essencialmente princípios filosóficos”

(VIGOTSKI, 2004, p. 229).

Qualquer ciência deve chegar num determinado momento e ter clareza

no que consiste em si sua teoria, propor métodos e analisar os fenômenos ou

atos e fundamentar seus próprios conceitos. Vigotski defende duas teses que

estão relacionadas com a ideia e o fato. A primeira refere-se ao conceito.

Qualquer conceito, por mais abstrato que seja, tem seu grau de realidade. A

segunda, contrariamente, todo fato, por mais empírico que seja, não deixa de

ter a abstração. É por essa razão que é possível distinguir “fato real” e “fato

científico” e não os considerar como coincidentes. Sim, a base de qualquer

conceito científico é constituída por fatos, “mas se a ciência só descobrisse

fatos, sem ampliar com isso os limites dos conceitos, nada descobriria de novo;

permaneceria estancada, se limitaria a encontrar a cada vez novos exemplares

dos mesmos conceitos. Todo novo grão de um fato já é uma ampliação do

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conceito” (Ibidem. p. 239). Dito de outra forma, qualquer descoberta da ciência

é uma crítica ao conceito

“Os conceitos são instrumentos da ciência, meios, procedimentos

auxiliares, mas o fim desta, seu objeto, são os fatos” (p. 237). Se os conceitos

são instrumentos eles tendem a se desgastar e cair em desuso. Neste sentido,

os fatos conhecidos podem ser aumentados, mas não o número de conceitos.

Os conceitos nascem nas ciências particulares e a ciência geral estuda estes

conceitos (Ibidem, p. 239), por isso que Vigotski defende que a diferença entre

uma ciência e outra é uma questão de grau (ou quantitativas) e não de

natureza.

“(...) a relação entre a ciência geral e a ciência particular é a mesma que a existente entre a teoria dessa ciência particular e uma série de leis particulares suas. Ou seja, trata-se de uma diferença em função do grau de generalização dos fenômenos a estudar. A ciência geral surge da necessidade de continuar o trabalho das ciências particulares ali onde estas últimas se detêm” (Ibidem, p. 244).

Vigotski cita o suíço Ludwig Binswanger (1881-1966) como

representante desta abordagem idealista kantiana que escrevera um livro com

a mesma problemática que está sendo por ele enfrentada: Introdução ao

problema da Psicologia Geral, que foi publicado em 1922. Neste livro, aponta

suas divergências contra o materialismo na psicologia, especialmente, o

materialismo fundamentado por Sigmund Freud (1856-1939). Binswanger foi

influenciado pelo filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que também era muito

citado e criticado por Vigotski. O elemento mais importante apontado por

Biswanger, herdado de Husserl, foi a noção de intencionalidade, que define a

forma essencial dos processos mentais. Uma definição simples dirá que a

principal característica da consciência é a de ser, sempre, intencional. A

consciência sempre é consciência de alguma coisa: a análise intencional e

descritiva da consciência definirá as relações essenciais entre atos mentais e

mundo externo. Portanto, o objetivo era gerar, com

métodos empíricos (apoiando-se na introspecção pura), um critério-chave que

pudesse caracterizar os fenômenos psíquicos em oposição aos fenômenos

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físicos, distinção cujo objetivo fora legitimar uma ciência psicológica nova, livre

de preconceitos. O método fenomenológico praticado por Binswanger apoiava-

se, portanto, na experiência subjetiva pessoal. Para tanto, era necessário

aproximar-se do paciente tentando manter em suspenso os próprios

pressupostos, buscando mais compreender e descrever os dados da

experiência imediata do que explicar o fenômeno. Vigotski é totalmente contra

esta concepção fenomenológica de Biswanger (que depois irá se aproximar

com a filosofia de Heidegger – tornar-se-ão inclusive amigos) porque é a

recuperação da lógica kantiana reservada apenas ao entendimento, sem

consideração às determinações do fenômeno ou da realidade. É retorno, em

última instância, ao idealismo subjetivo.

Vigotski distingue claramente as abordagens que adotam uma

concepção idealista, ou melhor, uma gnosiologia idealista com uma lógica

formal das ciências. Para estes, os conceitos estão separados dos objetos

reais sem possibilidade de relacioná-los. O saber já tem o conhecimento a

priori, já conhecido. Aplica-se nas ciências, por exemplo, a psicologia, biologia,

física, como é próprio na concepção kantiana. São concepções que admitem

que são os métodos que determinam a realidade, da mesma forma para Kant,

que compreendia “que a razão ditava as leis da natureza” (Ibidem, p. 246). Por

ter leis aprioristas já supõe conhecer a realidade e é possível aplicar “a crítica

da razão científica” em diversas ciências, como a psicologia. São os métodos

que determinam a realidade. Não consideram relevante conhecer as

determinações históricas porque se orientam pela estrutura lógica formal dos

conceitos. Aqui, podemos concluir que a ciência, na perspectiva idealista, está

determinada não pela realidade e nem pela história, mas sim, pelos conceitos

da estrutura lógico formal.

A ciência geral não se sustenta sob a concepção da gnosiologia

idealista com uma lógica formal. Uma perspectiva realista-objetiva, “materialista

em gnosiologia e dialética na lógica” fragiliza por completo a gnosiologia

idealista subjetiva. O materialismo é uma nova abordagem que possibilita

compreender a realidade a partir dela mesma e não a partir dos conceitos

apriorísticos.

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“Esse novo enfoque nos indica que a realidade determina nossa experiência: que a realidade determina o objeto da ciência e de seu método, e que é totalmente impossível estudar os conceitos de qualquer ciência prescindindo das realidades representadas por esses conceitos” (Ibidem, p. 246).

Na perspectiva realista objetiva que tem a gnosiologia materialista e a

lógica dialética parte-se da premissa que a realidade determina nossa

experiência. “É totalmente impossível estudar os conceitos de qualquer ciência

prescindindo das realidades representadas por esses conceitos” (Ibidem. p.

246). Conforme Vigotski, Engels defendia que a metodologia das ciências é

reflexo da metodologia da realidade. Há necessidade de se fazer a distinção

entre a dialética subjetiva e a dialética objetiva da natureza. A dialética

subjetiva é o pensamento dialético e os processos do conhecimento são

reflexos da dialética objetiva. Como investigar a dialética subjetiva? Usando a

dialética objetiva, ou seja, a dialética da natureza. A dialética, citando Engels,

“se concebe com as leis mais gerais do devir” (Ibidem. p. 246). Se a dialética é

a lei mais geral é mister associá-la como uma lógica da psicologia. A crise da

psicologia se dá justamente por não se colocar devidamente a relação entre a

dialética objetiva e subjetiva. É premente instituir uma psicologia geral com

fundamentos conceituais para, o que é mais complicado, buscar alternativas

em outras disciplinas particulares. Vigotski cita a reflexologia que constrói seu

sistema com fundamentos das ciências naturais e, por isso, protesta caso haja

intenção de transpor as leis das ciências naturais para a psicologia. O inverso é

também recorrente, ou seja, a resistência da psicologia subjetiva de aceitar os

fundamentos das ciências naturais, sob arguição de pouca utilidade. As

ciências naturais também podem se cobrir com o véu retrógado (Ibidem, p.

274).

Estamos ainda em torno da questão que Vigotski coloca como

fundamental e estruturante para discutir o significado histórico da psicologia,

qual seja: por que é necessária uma psicologia geral? O momento histórico que

Vigotski está vivendo impõe determinantemente uma psicologia que não esteja

fundamentada numa não-psicologia – uma psicologia subjetiva baseada na

filosofia especulativa que se nega a reconhecer e atuar na realidade. Para a

definição desta ciência geral há de se basear nas ciências particulares que

“tendem a sair dos seus limites” e “a lutar por uma medida comum, para uma

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escala maior”. Diferentemente para a filosofia que vive a “tendência oposta”, ou

seja, “para se aproximar da ciência, é preciso estreitar, reduzir a escala,

concretizar teses” (Ibidem. p. 390). Vigotski expressa uma metáfora muito

pertinente que demonstra o problema para a ciência geral: “não se pode medir

a estatura de uma pessoa em quilômetros, para isso são necessários

centímetros”.

A dificuldade de compreender o problema de que tanto a filosofia como

a ciência particular direcionam-se ou carecem de metodologia para alcançar

uma ciência geral é, até aquele momento, alheia à psicologia marxista. Esta

situação fragiliza a “psicologia marxista”. Faltava metodologia que “é a

alavanca por meio da qual a filosofia dirige a ciência”. Todas as tentativas,

alertava Vigotski, só acentuariam “as construções escolásticas ou verbalistas”

(Ibidem. p. 392). Vigotski sustenta que é necessário fazer o que Engels havia

dito: “não impor à natureza os princípios dialéticos, mas derivá-los dela”. Não

consiste simplesmente de aplicar o materialismo dialético à psicologia, à

história ou à sociologia. Este princípio vai contra aqueles que se adaptam à

teoria do marxismo sem considerar a realidade. Para Vigotski é mais complexo

do que este determinismo acrítico. Assim como para a sociologia é necessária

uma “teoria especial” intermediária, que é o materialismo histórico – “para que

se esclareça o valor concreto das leis abstratas do materialismo dialético para

grupo de fenômenos de que se ocupa” –, também para a psicologia vale a

mesma referência.

“A dialética” contempla “a natureza, o pensamento, a história”. É a

dialética que assume o caráter “universal máximo”. “Essa teoria do marxismo

psicológico ou dialético da psicologia é o que eu considero psicologia geral”

(Ibidem. p. 393). Portanto, a noção aqui de uma psicologia geral não deveria

ser compreendida como uma “centralização do conhecimento”, mas como uma

centralidade que legitima uma determinada ciência.

Vigotski demonstra conhecimento do método dialético que Marx expôs

n’O Capital. Como já dissemos, são poucas as passagens nos escritos de Marx

onde consta o método dialético. O Capital é método dialético mais completo na

relação interdependente entre exposição e investigação. Vigotski, a partir

dessa referência, afirma que para criar teorias intermediárias “é necessário”

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desvendar “a essência dos fenômenos”. Entendemos o que Marx expôs no

segundo posfácio d’O Capital: o concreto é concreto porque é síntese de

múltiplas determinações. Conforme Vigotski, Marx só conseguiu escrever O

Capital porque justamente utilizou “princípios gerais da dialética e sentencia: “a

psicologia precisa de seu O Capital” (Ibidem, p. 393). Precisa tanto encontrar

sua unidade de análise estruturante como também definir um método.

“O que é preciso não são opiniões exatas, mas um método: e não o materialismo dialético, mas o materialismo histórico. O capital deve nos ensinar muito, porque a verdadeira psicologia social começa depois de O capital. (...) tem toda razão quando chama de estrutura escolástica a própria ideia de uma psicologia marxista como síntese da tese – o empirismo – com a antítese – a reflexologia (ibidem, p. 395)”.

No caminho que abordamos no campo da filosofia, cuja trajetória

expositiva veio desde Hegel, passou por Feuerbach e chegou a Marx também

poderemos fazer detalhadamente dentro da trajetória da psicologia com

autores que partiram da base do empirismo, passando pela reflexologia até

chegar numa psicologia que preferimos enfatizar como psicologia dialética.

Contudo, ao afirmarmos “psicologia dialética” podemos dar a entender apenas

como lógica dialética que pode ser tanto idealista e materialista. É evidente que

Vigotski está se referindo ao materialismo a partir do que já foi aqui exposto. É

por essa razão que alguns autores atuais preferem mencionar a “dialética do

concreto” e “psicologia concreta”.

Na época, Vigotski afirmava que qualquer definição ou reconhecimento

de uma psicologia que se autodenominasse como psicologia marxista seriam

equivocados. Não havia ainda uma definição que pudesse receber esta

denominação (por isso, nossa observação acima quanto à discordância da

síntese do empirismo e da reflexologia com a psicologia marxista). Havia

necessidade de compreender a “tarefa histórica” para defini-la como tal. O que

se publicara até aquele momento com a intenção de se autodenominar como

psicologia marxista concluída e definida era falta de seriedade científica. Por

outro lado, a psicologia que se remete aos métodos do marxismo que se

apresentava como psicologia social é, na visão de Vigotski, “o projeto de

síntese entre o marxismo com a psicologia individual na luta de classes”. Mas

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Vigotski também cai numa ortodoxia própria, exigida por sua época, ao afirmar

que a psicologia marxista como “a única psicologia verdadeira com ciência;

outra psicologia afora ela, não pode existir” (Ibidem. p. 415). É a concepção

engeliana da necessidade do socialismo científico que, quer queira ou não, é a

necessidade que vai se impor como uma determinação a partir das

contradições que inevitavelmente irão ocorrer. Contudo, “a nova psicologia não

é tarefa só de uma escola” (Ibidem. p. 417), defendia Vigotski. Fazendo essas

ressalvas sobre o determinismo da época de Vigotski não invalida a questão

fundamental de uma psicologia que não se fundamente em concepções

dualistas.

A sociedade russa, criando sua estrutura social, política e econômica

sob bases ainda não vividas na história da modernidade, tinha força para

considerar o que era assim denominado de pré-história. A nova sociedade

exigia logo um novo ser humano e, com isso, a psicologia encontra um lugar

fundamental.

“Na futura sociedade, a psicologia será, na verdade, a ciência do homem novo. Sem ela, a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. No entanto, essa ciência do homem novo será também psicologia. Para isso já hoje manteremos suas rédeas em nossas mãos. Não é preciso dizer que essa psicologia se parecerá tão pouco com a atual como, conforme Espinosa, a constelação do Cão se parece ao cachorro, animal. Labrador (Ética, teorema 17, Escólio) ” (Ibidem. p. 417).

Vigotski está apontando o significado da crise da psicologia e, quando

utiliza este sujeito, “o significado”, está nos dizendo no próprio termo com o

qual ele tanto trabalhou numa de suas obras mais conhecidas, Pensamento e

Linguagem. O significado da crise é uma manifestação geral que muitos

apontam, mas poucas alternativas são apresentadas para sair do estado de

impotência e encontrar, não um caminho obrigatoriamente que seja comum,

mas uma psicologia geral, uma psicologia que no seu entendimento é uma

psicologia dialética. O sentido que Vigotski dá à dialética nós podemos

acompanhar ao longo de sua ampla produção científica, que sempre esteve

muito conectada com a realidade social.

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Ao apresentar o significado histórico da crise está fazendo um exercício

de analisar as três correntes filosóficas de sua época. Estas correntes

filosóficas estão fundamentadas historicamente e cada qual se utiliza da

dialética com gnosiologias diferentes.

Encontramos no texto três vertentes gnosiológicas. A primeira é a

vertente realista, aquela que sustenta o primado do objeto e, portanto, entende

que a representação que fazemos das coisas está subordinada aos objetos em

si mesmos, ou as coisas em si mesmas, apreendidas pelos sentidos e depois

registradas pelo intelecto de tal modo que o ponto de partida para o

conhecimento é o objeto ou as coisas mesmas. É essa vertente gnosiológica

que Vigotski denomina de gnosiologia materialista. Seus autores referenciais

com os quais dialoga são Feuerbach, Marx, Engels e Lênin (e Espinosa).

A segunda vertente é o idealismo e o idealismo atém-se, pelo contrário,

à primazia do sujeito, da mente, das ideias que constituem um ponto de partida

para a reconstituição de um acordo entre as coisas e a mente, entre objetos e

sujeitos, uma correspondência que se estabelece a partir de uma análise das

ideias que nos faz chegar até certa conformidade entre as ideias e as coisas.

Aqui percebemos que em dado momento Vigotski coloca Kant nesta

abordagem, mas em seguida o conecta com Edmund Husserl. O principal

representante com quem Vigotski dialoga nesta vertente gnosiológica é Hegel.

São duas tendências gnosiológicas que Vigotski coloca em oposição

(não é só Vigotski que coloca em oposição – este é o grande confronto teórico

de sua época), mas também temos que identificar uma terceira vertente como

uma abordagem que tentou sempre se deslocar desta disputa entre o idealismo

e o materialismo. Estamos falando da fenomenologia. São longas as citações e

confrontos de Vigotski contra os fenomenólogos, acusando-os de negarem a

história.

Esta terceira vertente tem como principal representante Edmund

Husserl (1859-1938) e é contra este que Vigotski direciona suas críticas mais

veementes. Husserl procurou uma solução na teoria do conhecimento de meio

termo, que aconteceu no século XVIII, e buscou na filosofia de Kant seu

fundamento para superar este impasse entre o Realismo e o Idealismo,

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redistribuindo as funções do conhecimento e tentando entender qual é o

contributo que o próprio objeto, as próprias coisas dão ao conhecimento e qual

a contribuição que o sujeito ou a mente fornece ao processo de conhecimento.

Portanto, Kant redistribuiu as funções do conhecimento entre sujeito e objeto

deixando assim de privilegiar um ou outro conforme se fazia antes. Esta

solução, aparentemente consistente, institui um meio termo entre o sujeito e as

coisas, e, principalmente, ela configura o conhecimento como um trabalho

conjunto entre as apreensões sensíveis das coisas mesmas e o nosso intelecto

que formaliza ou fornece uma estrutura formal para esta apreensão,

resultando, assim, uma síntese destas duas instâncias que seria então o

próprio conhecimento.

O resultado mais importante vinculado a esta concepção do

conhecimento como síntese entre o elemento objetivo e subjetivo é a

concepção da relatividade do conhecimento e isto se explica sendo o

conhecimento algo que, ao menos formalmente, se estrutura pelo sujeito, por

mecanismos lógicos presentes na mente. O conhecimento se constitui de

forma relativa ao sujeito, tem a ver com o sujeito, e não poderia se constituir

sem a contribuição fundamental do sujeito; a isso Kant chamou de fenômeno

ou a realidade. Não como ela poderia ser em si mesma, nós não sabemos

como ela seria em si, mas tal como aparece a nós, ao sujeito do conhecimento,

uma vez que ela aparece formalmente condicionada por certas estruturas

lógicas da nossa própria mente. Esta estrutura subjetiva que Kant descreve

como sendo funções lógicas do conhecimento, ele chama de elementos

transcendentais do conhecimento, ou seja, são aqueles elementos que estão

antes da experiência; independente da nossa experiência de mundo,

condicionam esta experiência e dão seus fatores de organização. Deriva

principalmente através desta noção o fato de nós podermos reconstruir esta

relação entre sujeito e objeto em termos de uma correlação. Ou seja, não

existe objeto que não esteja comprometido com o sujeito que o conhece ou que

o representa. Por quê? Por que esta representação consiste, sobretudo, no

modo pelo qual estas coisas aparecem a nós de acordo com certas condições

que são nossas, da nossa mente ou subjetivas. Temos, de um lado, o sujeito

do conhecimento, que é apenas uma consciência que apreende o fenômeno,

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ou seja, apreende a realidade como ela própria se constitui. Por outro lado,

temos o objeto, que é nada mais do que este fenômeno aprendido pela

consciência. O que é apreender o objeto ou fenômeno como mecanismo de

conhecimento? Isto depende do modo como entendemos a constituição desta

relação. Se nós concebermos esta apreensão como uma assimilação das

coisas pelo sujeito que as percebe, como se estas coisas se transferissem do

mundo para nós ou para nossa mente, o resultado, se levado até a sua

extrema coerência ou ao seu limite, seria simplesmente o desaparecimento do

objeto ou a sua incorporação total pelo sujeito. Foi Husserl quem detectou nas

teorias do conhecimento que foram criadas a partir de Kant que havia, na visão

dele, um certo desequilíbrio na relação entre sujeito e objeto ou a relação entre

a consciência e as coisas. De tal modo, as coisas acabariam perdendo a sua

realidade, a sua autonomia, neste processo de apreensão. Daí o propósito de

Husserl se constituiu no grande lema de sua época e tornou-se então o lema

da fenomenologia: “é necessário voltar às coisas mesmas”. Portanto, há que

considerar, há que se voltar à importância das coisas para construção do

conhecimento. E esta necessidade de voltar às próprias coisas Husserl a vê a

partir de uma espécie de contaminação das coisas pelo sujeito, quer dizer,

como se o sujeito tivesse um poder sobre as coisas que, no processo de

assimilação, as coisas se adaptariam por tal modo à consciência ou ao sujeito,

que elas não permaneceriam com qualquer realidade própria. Quer dizer que o

sujeito projeta vários componentes, quer de ordem lógica, quer de ordem

psicológica mesmo, social, de seus hábitos, costumes, etc. e toda esta

projeção que nós fazemos no mundo para depois apreendermos um mundo ou

as coisas, contamina o mundo, contamina as coisas de tal modo que nós

acabamos recolhendo do mundo ou das coisas apenas aquilo que lá nós

colocamos. De tal forma que a realidade própria das coisas, na sua

objetividade, acaba ficando muito comprometida com este estilo de

conhecimento, de modo que Husserl vai tentar colocar um estilo de

pensamento em que nossa relação com as coisas se torne mais autêntica,

mais verdadeira, que nós possamos, portanto, recuperar a realidade do mundo

ou a realidade das coisas. Ora, para que isso possa acontecer separa-se,

cuidadosamente, a consciência, como sujeitos de conhecimento, desta carga

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naturalista que costuma estar depositada nela, depois desta separação, pode-

se rearticular o modo pela qual a consciência se vincula às coisas.

Vigotski critica esta terceira vertente gnosiológica quando ela se

fundamenta numa psicologia, uma psicologia descritiva porque faz uma

diferença radical entre a natureza física e a existência psíquica e cita uma frase

de Husserl que entende “a esfera psíquica” não tendo diferença “entre

fenômeno e existência” (Ibidem, p. 377). No materialismo, não se apaga esta

diferença entre “pensamento e realidade”. Para contra-atacar Husserl utiliza-se

de uma citação de Feuerbach e faz uma declaração contundente:

“Comprometo-me a demonstrar diante de todos os filósofos que vocês quiserem – tanto idealistas quanto materialistas – que nisso consiste a essência das divergências entre o idealismo e o materialismo em psicologia, e que somente as fórmulas de Husserl e Feuerbach constituem a solução consequente do problema nos dois sentidos possíveis; que a primeira é a fórmula da fenomenologia e a segunda a da psicologia materialista. E me comprometo, partindo dessa comparação, a cortar a psicologia ainda quente, seccionando-a exatamente em dois corpos estranhos unidos por engano; só isso corresponde à situação objetiva das coisas e todas as discrepâncias, todas as divergências, toda a confusão devem-se unicamente à errônea e pouco clara formulação do problema gnosiológico” (Ibidem. p. 378).

Há um problema que Vigotski identifica: é que, no marxismo, a

gnosiologia no campo da psicologia não havia ainda sido formulada e era

necessário enfrentar as afirmações que não tinham fundamento, tal como “a

relação entre o sujeito e o objeto constitui um problema da consciência (...)”.

Para o idealismo, esta afirmação, esta diferença não existe. Isto precisa ficar

claro, pois temos que optar entre as duas uma: “ou a psique nos é apresentada

diretamente pela introspecção, neste caso nos colocamos ao lado de Husserl;

ou é necessário distinguir nela sujeito e objeto, realidade e pensamento, e

neste caso estamos do lado de Feuerbach” (Ibidem. p. 381). Para reforçar a

visão materialista neste contexto, Vigotski ainda cita Lênin, para quem “o

conceito de matéria... não significa gnosiologicamente nada mais que: uma

realidade que existe independentemente da consciência humana e está

refletida por ela”. Se tanto um aspecto como outro coincidisse, se a essência e

fenômeno coincidissem, se a essência e a forma coincidissem, cita Marx, “toda

ciência seria desnecessária”.

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Capítulo 20: Método de Investigação de Vigotski

Antes de discorremos mais detalhadamente sobre o conteúdo dos

artigos e fazermos um estudo detalhado das abordagens de Vigotski,

chamamos atenção para a constante identificação dos soviéticos de que o

método utilizado por Vigotski é o “método genético experimental”. Este método

vai contra a estratégia que reside nos cortes, proporcionando uma ideia das

mudanças qualitativas, mas que não nos permite conhecer a fundo o

desenvolvimento dos mecanismos internos que governam as etapas de um

desenvolvimento ao outro. Na história do desenvolvimento das funções

psicológicas superiores este método é explicitado em detalhes (Método de

Investigação).

Para Vigotski, a questão de método é fundamental, isto porque até

então os métodos são especulativos, ou então, consideram o objeto

passivamente. “O método... é ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta

e resultado da investigação” e “o método deve ser adequado ao objeto que se

estuda” (VYGOTSKI, 2013, p. 47). As correntes da época reconheciam o

método de estímulo-reação como o único possível para estudar o

comportamento humano e não se contestava esta base. Contudo, acerca da

“psicologia subjetiva empírica” devem ser feitos alguns esclarecimentos. Havia

a compreensão de que o método objetivo não poderia ser aplicado pela

psicologia subjetiva empírica como se o experimento tivesse totalmente

diferenças que não pudessem ser compatíveis. Esta distinção tem origem nas

correntes que se baseiam nas ciências naturais que compreendem a prática

experimental para o caráter apenas reativo da vida psíquica.

Vigotski define o seu método citando longas passagens da Dialética da

Natureza. A primeira citação destaca a existência de um enfoque “naturalista

da psicologia humana” em razão de que, citando Engels diretamente, “a

natureza [que] influi exclusivamente sobre o homem, são as condições

históricas que condicionam em toda parte seu desenvolvimento histórico”

(Ibidem, p. 61). A segunda passagem enfatiza a necessidade de se levantar

hipóteses e a partir destas deve-se observar novos fatos que antes eram

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considerados impossíveis de serem considerados. Então, deve-se recorrer a

explicações de um novo tipo definindo um número limitado de fatos e

observações até que o novo material de observação possa ser depurado,

quando será possível uma determinada lei “com toda sua pureza” (Ibidem. p.

63). E, por fim, Vigotski chama atenção que para muitos interpretar o histórico é

identificar-se com o passado. Pelo contrário, estudar a história é estudar as

formas presentes, isto porque “estudar algo historicamente significa estudá-lo

em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético” (Ibidem. p.

67).

O método de investigação de Vigotski se sustenta com três teses, a

saber:

primeira, refere-se à semelhança e o ponto de contato entre ambas

formas de atividades. Tanto a atividade que emprega ferramentas como a que

emprega signos são subordinadas logicamente a um conceito mais geral que a

atividade mediadora. A atividade mediadora aqui podemos supor como a

unidade de análise. Vigotski afirma que Hegel tinha razão ao atribuir que o

conceito de mediação é a propriedade mais característica da razão;

segunda, a diferença entre o signo e a ferramenta, é que “por meio da

ferramenta o homem influi sobre o objeto de sua atividade, ou seja, a

ferramenta está dirigida de fora: deve provocar um nos outros mudanças no

objeto”. O signo não modifica o objeto de sua atividade da operação

psicológica, “é um meio para sua atividade interior, dirigida a dominar o próprio

ser humano, está direcionada para dentro” (Ibidem. p. 94);

terceira, o domínio da natureza e o domínio do comportamento estão

reciprocamente relacionados, ou seja, o ser humano transformando, a natureza

se transforma.

Vigotski definiu um método que teria plenas condições para analisar,

pesquisar as funções psicológicas superiores. O uso de instrumentos e de

signos é histórico e são criados em diferentes culturas. Os instrumentos

aperfeiçoam as formas de lidar com a natureza e os signos proporcionam

dominar os próprios processos psicológicos e, com isso, melhora-se o

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desempenho. Portanto, a história humana tem esta condição. Por um lado, os

instrumentos vão sendo aperfeiçoados e, por outro, os signos, aperfeiçoando-

se a história do próprio ser humano sobre si mesmo. Esta concepção, de um

lado, justifica os instrumentos, por exemplo, tecnológicos e, por outro, aumenta

a capacidade humana na relação com estes instrumentos. É esta a concepção

que a Escola de Frankfurt vai condenar depois da Segunda Guerra Mundial,

porque ela serve adequadamente para a visão de “progresso”.

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Capitulo 21: Psicologia Infantil

Nós consideramos o manuscrito O significado histórico da crise da

psicologia como uma obra de orientação metodológica, síntese para o

amadurecimento de várias linhas de pesquisa que Vigotski irá coordenar.

Iremos a partir de agora analisar o resultado da pesquisa com a necessidade

de conexão com profissionais que atuam na área da educação e da saúde.

Foram encontrados nos arquivos da família dois conjuntos de material

das Obras Escolhidas, editados pela primeira vez na URSS, em 1982. O

primeiro conjunto de capítulos que deveria compor um livro sobre psicologia

infantil, no qual Vigotski estrava trabalhando no período de 1932 a 1934, mas

que não conseguiu concluir, compreende artigos com os seguintes títulos: O

problema das idades e O primeiro ano. O segundo conjunto de trabalhos são

estenogramas de conferências dadas por Vigotski no Instituto Pedagógico A. I.

Herzen, entre 1933-1934: Crise do primeiro ano de vida, A infância pequena, A

crise dos três anos e a Crise dos sete anos. Acrescentamos também alguns

textos sobre criação e imaginação que fazem parte deste momento.

Até então, Vigotski sempre utilizava as concepções de Lênin para

explicar ou fundamentar a relação entre o mundo objetivo e subjetivo. Nestes

artigos sobre psicologia infantil, não constatamos esta presença de constante

respaldo. Gostaríamos de enfatizar duas questões ao analisarmos esta

coletânea de textos da psicologia infantil, olhando de fora para dentro. Primeira,

a relação que Vigotski começa a estabelecer e dialogar com seus costumeiros

interlocutores parece se diferenciar de outros momentos. Segunda, a

expressão explícita “dialética” passa a dar lugar a uma expressão implícita. A

dialética está assimilada. Os textos que estamos nos referindo de Vigotski

ganham uma certa liberdade de expressão muito contrastante às informações

que dispomos neste período soviético de perseguições e ortodoxia.

Dentro dos textos podemos perceber também duas significativas

mudanças. Primeira, ao tratar das questões sobre as bases que estruturam o

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desenvolvimento da infância pequena há uma questão fundamental que é

apresentada: “a unidade da percepção afetiva”. Para Vigotski cada força

atraente de cada coisa tem sua carga afetiva e é fonte “oculta de atração da

criança”. A unidade sensitiva-motora é típica nesta idade e consiste não na

condição de reflexo primário, mas sim, de uma relação estabelecida por meio

do afeto. É este o caráter justamente afetivo da percepção que origina tal

unidade. Tomar consciência em tenra idade equivale a perceber e elaborar o

percebido com ajuda da atenção, da memória e do pensamento. Estas funções

não funcionam separadamente, mas sim integradas e submetidas à percepção.

A unidade da percepção afetiva para entender esta integração, esta

interrelação, é o que vai se definir como “unidade de análise” (VYGOTSKI,

1996, p. 344). A segunda mudança trata-se das citações de Karl Marx e

podemos verificar isso em três citações: i) No texto “Crise do primeiro ano”, que

é um tanto longo, mas precisamos expô-lo dada a sua pertinência:

“Creo que el desarrollo del niño, analizado desde el punto de vista de las etapas em el desarrollo de la personalidade, desde el punto de vista de las relaciones del niño com el entorno, desde el punto de vista de la atividade fundamental em cada etapa, está vinculado estrechamente com la história del desarrollo de la conciencia infantil. Si quisiera responder formalmente a esta pregunta, citaría la conocida frase de Karl Marx de que ‘la conciencia es la relación com el medio’68. Este totalmente certo que la relación de la personalidade com el medio determina del modo más imediato la estructura de su conciencia; creo, por tanto, que el estudio de las etapas de la edad, de sus formaciones nuevas, desde el punto de vista de la conciencia, nos acerca logicamente a la solución de dicho problem. Hacerlo oferece sustanciales ventajas porque la ciência moderna no sabe todavia estudiar los hechos que carcterizan la conciencia y no quiero cometer el error – al hablar de la relación com el medio, la conciencia, el linguaje – de reducirlo todo al linguaje. Debo partir tanto desde arriba como desde abajo, de sintomas com la dentición, el andar, el linguaje infantil, debo interesarme por los actores principales y secundários de esse drama. Creo que el estúdio de los cambios en la conciencia del niño y el estúdio de su linguaje son, teoricamente, los temas centrales para compreender todos los demás cambios. Comprender la edad teóricamente significa encontrar el cambio en la personalidad del niño en su totalidade, dentro del cual todos sus elementos queden esclarecidos, unos em calidad de premisas, otros como momentos determinados, etc” (VYGOSTKI, 1996b, p. 338).

Esta citação é muito importante de ser evidenciada porque aqui

devemos considerar duas questões: i) A consciência é a relação com o meio

68 Grifo nosso.

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como bem disse Marx, porque somos nossas relações; ii) a relação com o

meio, a consciência e a linguagem é um fato, mas não se deve somente

permanecer no estudo da linguagem como se tudo se reduzisse a ela. Há

vários outros aspectos que devem ser considerados para compreender a

totalidade.

Criação e imaginação

Vigotski define a “atividade criativa” como o que suscita o novo, que

pode ser tanto uma “representação de um objeto do mundo exterior”, quanto

“uma construção da mente ou do sentimento característico do ser humano”

(VIGOTSKI, 2014, p. 1). Define também dois tipos de ação para caracterizar a

atividade criativa: o primeiro tipo é o reprodutivo que está muito ligado aos

recursos obtidos com a memória, portanto, são ações que remetem ao

passado e que se conservam ao se repetir algo já existente. Podemos dizer

que a reprodução consiste na tendência de adaptação e conservação. A

atividade no âmbito reprodutivo não cria nada de novo. Contudo, se o ser

humano se mantivesse apenas nestas condições de conservação e reprodução

não daria o salto qualitativo cultural proporcionado pela visão de futuro ou pela

visão antecipatória sobre o que se pretende fazer. O segundo tipo de ação é a

combinatória ou criadora que instiga para o futuro e possibilita criar algo novo

ou uma imagem nova a partir da base do que é existente. Isso também se

reflete na complexidade plástica do cérebro humano que não se organiza

apenas na dinâmica de conservação, mas desenvolve inerentemente a

capacidade de combinação e criação entre o que se conserva e o que se

adequa a imagem de futuro. A reprodução que é em si só pode alcançar a

criação para si se tiver como mediação a imaginação – fantasia.

É comum designar a imaginação como não tendo nenhum “valor

prático” ou como algo “irreal”, mas, pelo contrário, Vigotski defende que esta

tem uma posição determinante para todas as áreas, especialmente, para a

criação artística. Ou seja, os contrários reprodução-conservação-adaptação e

combinação-transformação-criação podemos concluir que a imaginação exerce

a unidade dos contrários, portanto, não são semelhantes e nem indissociados.

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A imaginação para Vigotski é “um processo de composição” que

carrega “percepções internas e externas que são fundamento da nossa

experiência” (Ibidem, p. 25). Uma criança, por exemplo, vai gradativamente

acumulando material até que toma domínio ou governo sobre si mesmo. As

“percepções internas e externas” auxiliam a criança na construção de suas

fantasias que no início são desenvolvidas intensivamente nas brincadeiras ou

nos jogos. Este processo que Vigotski chama de “composição” é muito intenso

na fase infantil, mas não podemos desconsiderar a mediaticidade que assume

a imaginação no processo criativo. Vigotski concorda com Ribot69 ao afirmar

que “todas as formas da representação criativa contém em si elementos

afetivos” (Ibidem, p. 18).

Num primeiro momento, portanto, transcorre o caráter dissociativo que

“num processo de comparação” são perdidas ou esquecidas na memória.

Alguns aspectos são “subestimados” outros “sobrestimados” de elementos

isolados. Segundo o momento inverte-se para um caráter associativo, ou seja,

as partes isoladas ou independentes são assimiladas, é a “combinação de

imagens isoladas em um sistema” (Ibidem, p. 29). Conclui-se este ciclo de

atividade (dissociativa e associativa) quando “a imaginação se cristalizar em

imagens exteriores” (Ibidem, p. 30). É por essa razão que o ato criativo não é

anônimo, mas é um componente social” (Ibidem, p. 33). Desse modo, reafirma-

se a unidade entre a dissociação e associação como sendo a imaginação.

Identificamos em dois artigos escritos por Vigotski o exercício

constante de evitar a perspectiva dualista dos fenômenos psicológicos. Nas

duas situações, ao colocar a relação entre reprodução e combinação e a

associação e a dissociação, destaca-se a unidade de análise.

69 Muitos autores apontam a influência da teoria das emoções (afetividade) de Espinosa à teoria de Vigotski. Nas citações relacionadas nos textos de Vigotski verificamos a ênfase dada à razão como determinante para controlar as emoções. Não como um “império dentro de um império”, mas inerente à substância única (o corpo) e inerente ao ser humano. Nos textos de 1931, verificamos várias citações que Vigotski faz das teorias de Théodore-Armand Ribot (1839-1916). Cita muitas vezes Ribot, mas sem identificar quais das obras está se referindo. Verificamos que muitas obras deste autor devem ter influenciado nos estudos de Vigotski, por exemplo: Psicologia das Emoções (1887) Psicologia da Atenção (1888), A lógica do sentimento (1900), Problema da psicologia afetiva (1910), As ideias modernas sobre a infância (1911). Os autores que sustentam a influência da teoria da afetividade de Espinosa quase sempre não citam estes estudos, mas partem diretamente a Espinosa.

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Estes artigos demonstram plena sintonia com o método estabelecido

por Lênin e que apresentamos os detalhes no capítulo 12. Dentre todos os

elementos expostos por Lênin sobre a dialética verificamos que Vigotski

acentua constantemente em seus textos quatro deles: 1) “A coisa como

unidade dos contraditórios” (atividade criativa: interna e externa); 2) “O

desenvolvimento [histórico] destas contradições” (associação e dissociação); 3)

“A unidade da análise e da síntese” (Imaginação); e, 4) “A repetição na fase

superior de certos traços da inferior” (Adaptação e Combinação). Foi

necessário reconsiderar o método proposto por MARX & ENGELS para uma

realidade que respondesse questões mais específicas da ciência. Lênin

efetuou isso considerando as transformações necessárias e sem poder ter

referência exceto algumas diretrizes deixadas pela experiência da Comuna de

Paris (1871). É por essa razão que sustentamos a base materialista histórico

dialética de Vigotski em bases leninianas.

O problema da idade

A periodização continua sendo um debate necessário para a

atualidade, não pela sua formalidade, mas pela necessidade de compreender a

psicologia infantil.

No tempo de Vigotski, três correntes teóricas predominavam sobre o

problema da periodização. A primeira defendia o princípio biogenético que

propunha “a existência de um paralelismo rigoroso entre o desenvolvimento da

humanidade e o desenvolvimento da criança” (VYGOTSKI, 2012f, p. 251).

Divide-se a infância em períodos isolados tal como idade pré-escolar, idade

escolar, etc. A segunda corrente elegeu alguns indícios para dividir os

períodos, por exemplo, partindo pela troca de dentição. Divide-se, assim,

infância sem dentes, dentes de leite e os dentes permanentes. A terceira

corrente, a periodização da infância é feita considerando o desenvolvimento

sexual ou então fatores psicológicos tais como atividade lúdica, período dos

jogos, período de maturação do adolescente, etc.

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Vigotski considera três defeitos nestas correntes teóricas: primeiro, os

esquemas são subjetivos e buscam um aspecto objetivo de referência;

segundo, definem um aspecto para valer para todos; terceiro, baseiam-se em

um critério externo e não interno. Se a característica interna e externa

coincidisse não se precisaria nem se valer da investigação – seria supérflua70.

O que impede que se consiga tratar deste assunto da periodização sem que

seja meramente descritiva? A resposta está na ausência de um método

adequado, pois os até então utilizados são “antidialéticos” e “dualistas” (Ibidem,

p. 255).

Onde buscar princípios para fundamentar a periodização? Vigotski

responde a esta questão colocando como central “as mudanças internas do

próprio desenvolvimento” (Ibidem, p. 254). Pode-se destacar basicamente

duas concepções de todas as teorias do desenvolvimento infantil: 1) não surge

nada de novo no desenvolvimento; 2) permanentemente surge algo novo; a

primeira consiste na concepção de que a criança tem todas as suas condições

internas de desenvolvimento; a segunda, a criança vai se desenvolvendo de

acordo com a unidade entre o social e o pessoal (Ibidem, p. 254).

Em algumas idades percebe-se que o desenvolvimento é lento e mais

estável, em outras, surgem crises como se fossem “o término de prolongados

processos de desenvolvimento latente” (Ibidem, p. 255). Não é possível negar

estas peculiaridades no desenvolvimento infantil. Vigotski destaca que até

aquele com “espírito menos dialético reconhece estas características”. Nas

crises são identificadas peculiaridades: difíceis de serem definidas quanto ao

começo e fim; as crianças vivem momentos difíceis; caráter negativo de

desenvolvimento. As crises de três, sete, treze anos são todas consideradas

negativas.

Vigotski utiliza um recurso de lógica dialética para entender as crises

de desenvolvimento infantil como o surgimento do novo significando o

desaparecimento do velho. Contudo, destaca Vigotski, as idades críticas

podem ser consideradas dentro de uma estrutura de formação; pré-crítica,

70 Vigotski cita Marx: se a essência e fenômeno coincidissem a ciência seria desnecessária.

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crítica e pós-crítica (Ibidem, p. 260). Sugere finalmente uma proposta de

periodização, a saber:

“Crisis postnatal; Primer año (dos meses-un año); Crisis de un año; Infancia temprana (un año-tres años); crisis de tres años; edad preescolar (tres años-siete años); crisis de siete años; Edad escolar (ocho años-doce años); crisis de trece años; puberdad (catorce años-dieciocho años); crisis de los diecisiete años (Ibidem. p. 254).

Cada período que Vigotski sugere não pode ser considerado como uma

etapa isolada, mas está integrada. Especialmente por que precisa a conexão

com a situação social.

“La situación social del desarrollo, específica para cada edad, determina, regula estrictamente todo el modo de vida del niño o su existência social. De aqui la segunda cuestión a la que nos enfrentamos em el estúdio de la dinâmica de una edad, es decir, la cuestión del origen o la génesis de sus nuevas formaciones centrales de la edad dada. Uma vez conocida la situación social de desarrollo existente al princpio de uma edad, determinada por las relaciones entre el niño y el médio, debemos esclarecer seguidamente como surgen y se desarrollan em dicha situación social las nuevas formaciones propias de la edad dada. Esas nuevas formaciones, que caracterizan em primer lugar la reestructuración de la personalidad consciente del niño, no son uma premissa, sino el resultado o el produto del desarrollo de la edad. Los câmbios em la consciência del niño se deben a uma forma determinada de su existência social, própria de la edad dada. Por ello las nuevas formaciones maduran siempre a finales de uma edad y no al comienzo” (Ibidem, p. 254)

É a realidade a verdadeira instância de desenvolvimento – a perspectiva

que se estabelece é que o social se transforma no individual; é possível

determinar uma lei:

“Llegamos, por tanto, al esclarecimiento de la ley fundamental de la dinámica de las edades. Según dicha ley, las fuerzas que mueven el desarollo del niño en una u otra edad, acaban por negar y destruir la propia base de desarrollo de toda edad, determinado, con la necesidad interna, el fin de situación social del desarollo, el fin de la etapa dada del desarrollo y el passo siguiente, o al superior período de edad” (Ibidem, p. 265).

Para Vigotski “a chave para todas as questões práticas” é o problema da

idade porque incorre na necessidade de se diagnosticar qual o nível real de

desenvolvimento. Como se define um determinado nível? É uma questão

social! A definição de idade está diretamente relacionada com o nível real de

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desenvolvimento. Não se define pela idade simplesmente cronológica. Assim

seria fácil. E, para saber em que nível uma criança está no desenvolvimento, é

preciso fazer um “diagnóstico de desenvolvimento”.

“Estabelecer el nivel real de deasrrollo es uma tarea esencial e indispensable para la solución de todas las cuestiones prácticas relacionadas com la educación y el aprendizage del niño, com el control del curso normal de su desarrollo físico y mental o el diagnóstico de unas u otras alteraciones em el desarrollo que perturban la trayectoria normal y confieren a todo el proceso carácter atípico, anormal y, a veces, patológico. Por tanto, la determinación del nivel real de desarrollo alcanzado es la tarea principal y básica del diagnóstico del desarrollo” (Ibidem, 265-266).

A segunda etapa de um diagnóstico é verificar ou constatar os

processos de desenvolvimento que não estão maduros, aos quais ele

denominou de Zona de Desenvolvimento Próxima (ZDP). Vigotski define que

tudo o que a criança não consegue fazer sozinha e que precisa de ajuda do

professor ou de outra criança é um processo de “imitação” (Ibidem, p. 268). O

desenvolvimento real é o que já está assimilado, a imitação é um processo

intermediário onde identificamos a ZDP, que se constitui como em vias de

maturação. É por essa razão que não é possível padronizar os processos de

desenvolvimento considerando que uma criança pode ter um desenvolvimento

mais adiantado que o outro, mas, nesta dinâmica, aquele que está mais

adiantado serve para ajudar o outro menos adiantado.

“El valor teórico de ese principio diagnóstico radica en que nos permite penetrar en las conexiones internas dinámico-causales y genéticas que condicionan el proceso del desarrollo mental. Hemos dicho ya que el medio social origina todas las propriedades especificamente humanas de la personalidad que el niño va adquiriendo; es la fuente del desarrollo social del niño que se realiza en el proceso de la interacción real de las formas ‘ideales’ y efectivas” (Ibidem, p. 270).

A investigação para definição do nível real de desenvolvimento em

comparação com o ZDP é denominada por Vigotski de “diagnóstico normativo

da idade”, que tem como propósito desvelar o que ainda não está assimilado

na relação com aquilo que não está assimilado pela criança. Isto é o que se

chama de análise interna, que contrapõe as descrições ou as teorias que aqui

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inicialmente foram postas e contestadas, por adotarem simplesmente

descrições do processo de desenvolvimento infantil.

Vigotski acentua que um diagnóstico deve explicar e também oferecer

prognósticos. Faz uma comparação, por exemplo: se uma criança é levada ao

psicólogo onde a queixa é a dificuldade de aprendizagem, memória e atraso no

desenvolvimento e este simplesmente diagnostica que é retardamento mental,

isso nada, mas nada contribui para criança, pois é exatamente como um

paciente que procura um médico e este confirma, por exemplo, que tem tosse.

Sem a análise, sem a pesquisa, não se consegue estabelecer a validade

prática para o desenvolvimento infantil. O diagnóstico é uma alternativa para

orientação da prática.

Uma coisa é fazer diagnóstico com crianças, por exemplo, em idade

escolar que normalmente estão desenvolvendo suas atividades de

aprendizagem, outra coisa é trabalhar com crianças em situação difícil. Vigotski

escreveu, em 1931, um artigo sobre esta questão: “Diagnóstico del desarrollo y

clínica paidológica de la infancia difícil” (VYGOTSKI, 2012g) onde consta o

processo para definição de um diagnóstico com cinco níveis a serem

considerados, bem como critica os métodos existentes que se caracterizavam

pelo negativismo. Diferentemente do texto anterior, este foi publicado na União

Soviética, em 1936, em forma de folhetos.

Os cinco níveis compreendem no seguinte: 1. Deve-se reunir o maior

número de fenômenos psíquicos bem como não se deve deixar de lado a

colaboração da área da neurologia; 2. Analisar as causas dos sintomas, mas

capazes de revelar o “processo dinâmico determinado”; 3. Identificar no

conjunto de variáveis típicas e reduzi-las a uma determinada situação típica

para identificar e definir “um tipo de personalidade infantil”; 4. Identificar

aquelas causas que realmente estão voltadas para o fenômeno estudado; 5.

Elaborar uma “prognose”, ou seja, tendo-se viabilizada a análise interna e seus

processos de desenvolvimento capaz então de predizer o que poderá

acontecer com o desenvolvimento futuro de uma criança (Ibidem, 330-337).

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“El pedagogo debe saber, cuando recebe una prescripción, contra qué cosa tiene que luchar em el desarrollo del niño, a qué recursos debe apelar para ello y qué efecto se espera de esos recursos. Únicamente, conociendo todo esto, podrá valorar el resultado de su influencia. De lo cotrario, por su indeterminación, la prescripción pedagógica competirá, todavia durante mucho tempo com la prognosis paidológica” (Ibidem, p. 337).

Os diagnósticos propostos por Vigotski e a periodização são

radicalmente opostos e diferentes aos que são propostos por Piaget. A

aplicação da lógica dialética é um método capaz de identificar dinamicamente a

situação das crianças, mas não dentro de uma perspectiva desenvolvimentista

ou etapista.

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Capítulo 22: Desenvolvimento das funções psicológicas superiores

O volume IV das Obras Escolhidas foi publicado em 1982 na URSS e

começou a ser distribuído só recentemente, em 2012. Conforme os

comentadores desta edição, Vigotski publicou diversos manuais para centros

de ensino à distância, entre os anos de 1930 a 1931. Os diversos artigos que

fazem parte desta edição foram fundamentais para o levantamento de

questões a serem desenvolvidas no início da elaboração de obras sínteses, por

exemplo, Pensamento e Linguagem. Não devemos esquecer que, nessa

época, Vigotski é diretor de laboratório e está pesquisando vários casos que

envolvem crianças e adolescentes. Na segunda metade da década de 1920,

surge a preocupação dos educadores com a formação de adolescentes. O

material é escasso ou então com muitas referências estrangeiras. Estes artigos

foram publicados como manuais para orientação de educadores que atuavam

diretamente com adolescentes. É no início de 1930 que identificamos a

preocupação constante de Vigotski com a idade de transição e dispomos para

análise aquilo que será base para elaboração de uma de suas obras mais

completas, o Histórico das Funções Psicológicas Superiores. Estamos

considerando cinco artigos para esta análise, a saber: Desenvolvimento do

interesse na idade de transição, O desenvolvimento do pensamento do

adolescente e A formação de conceitos, desenvolvimento das funções

psíquicas na idade de transição, imaginação e criatividade do adolescente e

Dinâmica e estrutura da personalidade do adolescente. Cinco temas

importantíssimos que foram estudados e sistematizados para a formação dos

educadores e que se constituem nas funções psicológicas superiores:

interesse, pensamento, formação de conceitos, imaginação e personalidade.

Entre 1928 e 1931, Vigotski publicou diversos manuais para orientação

do ensino à distância e entre 1930-1931 publicou Pedologia do Adolescente,

considerado um dos melhores trabalhos de Vigotski. Os textos são claros,

precisos e didáticos como devem ser para educadores que estão longe do

centro educacional de Moscou. Pode ser estranho que partamos destes textos,

mas consideramos estes textos o fundamento da teoria vigotskiana. É bom

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lembrar que a pedologia é um interesse muito presente em sua carreira, que

iniciou em Gomel, na atuação com as escolas locais. Neste trabalho com cinco

capítulos consta o que é central na pedologia do adolescente: o interesse,

desenvolvimento do pensamento e a formação de conceitos, desenvolvimento

das funções psíquicas superiores em idade de transição, imaginação e

criatividade e Dinâmica e Estrutura da personalidade do adolescente.

1. Desenvolvimento do interesse na idade de transição

Vigotski, novamente, busca encontrar “a chave” para compreender a

psicologia das idades, o desenvolvimento psicológico do adolescente. Identifica

uma “estrutura” formada pela relação entre “atrações” e “aspirações” que vão

se modificando em diferentes etapas da vida de uma criança até chegar na

idade de transição. É por essa razão que os psicólogos que estudam “o

desenvolvimento das funções” e “os processos psicológicos” em seus aspectos

formais sem considerar as “forças motrizes” são o que Vigotski denomina de

“antigenético”, ou seja, não consideram a história do desenvolvimento. As

“atrações” são identificadas como “hábitos” de uma criança até confluir

definitivamente na idade de transição. A compreensão sobre esta relação

possibilita diferenciar a percepção da criança de um adulto, caso contrário a

análise se resume a não fazer diferença ou então considerar a criança como

um adulto em miniatura. Estudar o comportamento da criança, portanto, requer

partir do que é real e concreto e não fazer suposições isolando elementos sem

que tenham uma história de desenvolvimento. A passagem da atração para o

interesse trata-se de uma síntese complexa e real (VIGOTSKI, 2012a, p. 43).

No desenvolvimento de atividades educacionais para adolescentes

ouvia-se com muita frequência a queixa dos educadores sobre o desinteresse

dos adolescentes. Alguns mudavam drasticamente de comportamento se

comparados aos anos escolares anteriores. Mas esta queixa não advinha

somente de educadores; era muito comum ouvir as reclamações por parte dos

pais dos adolescentes. Este desinteresse é característico do período de

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transição (e continua sendo uma das questões mais discutidas nos dias de

hoje, nas escolas e nas famílias) e que coincide com a maturação sexual.

Vigotski afirma que o problema do interesse no período de transição é “a chave

para entender todo o desenvolvimento psicológico do adolescente” (Ibidem, p.

11).

Existem forças que Vigotski chama de “motrizes”, responsáveis pela

mudança de comportamento. Para analisar nestas forças as funções e os

processos psicológicos, não basta simplesmente partir pelo aspecto formal ou

então isoladamente, é preciso mesmo analisar as suas relações ou suas

conexões.

Vigotski identifica uma corrente da psicologia que estuda o interesse

das crianças como uma questão tão somente subjetiva, mentalista, um

fenômeno puramente intelectual. E, por outro lado, há também uma outra

corrente que simplesmente explica o interesse sobre uma base biológica.

Assim, a natureza do interesse teria uma natureza objetiva ou subjetiva. Qual

seria afinal seu caráter? Vigotski afirma que esta questão poderia ser

respondida pela dialética hegeliana, supondo o caminho certeiro para alcançar

a resposta que não estava no reconhecimento de um aspecto de interesse,

subjetivo ou objetivo, mas sim no “reconhecimento da unidade complexa e

indivisível de ambas as partes” (Ibidem, p 19-20). Vigotski segue citando o que

Hegel havia dito: Se alguém realiza uma atividade em relação a algum objeto,

este não só se interessa pelo objeto, mas também está incitado por ele. De

acordo com as aspirações e necessidades, o interesse é uma tendência que

incita a atividade” (Ibidem, p. 20). A necessidade existe e os objetos e

processos que estão fora de nós nos levam a agir. Por exemplo, um dia bonito

nos instiga a passear, um chocolate nos provoca o desejo de comê-lo, etc. Os

objetos nos rodeiam e o tempo inteiro estão nos incitando para ação. Portanto,

a psicologia tendia a ver o interesse como uma questão subjetiva ou objetiva,

mas o que precisamente deveria ser considerado é o caráter da dupla

natureza: subjetiva e objetiva71. Mas a resposta sobre o caráter do interesse

assim respondida por Hegel, e que Vigotski associava a esta interpretação,

71 Kurt Lewin (1890-1947) com sua teoria de campo não explica a origem das forças propulsivas das coisas e nem por que os objetos se modificam.

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também aos psicólogos adeptos da corrente estruturalista, tal como Kurt Lewin,

não era suficiente; para ele, tinha um defeito porque não tratam as questões

psicológicas na história.

O caráter incitador das coisas pode nos levar a diferentes formas e nos

remete a um papel ativo e não passivo. Este papel ativo tem vários modos de

se manifestar com relação ao interesse. A teoria estruturalista sobre o interesse

não captava a distinção da diferença entre interesses e necessidades

instintivas. Ou seja, “não toma em consideração a natureza histórico-social dos

interesses humanos” (Ibidem, p. 21). Somente o ser humano no seu processo

de desenvolvimento histórico consegue criar novas forças motrizes

engendrando novas necessidades e são elas próprias que experimentam uma

profunda mudança no desenvolvimento histórico do ser humano.

A teoria estruturalista não reconhece o interesse como um processo de

desenvolvimento histórico, mas como uma categoria natural. Coloca o

interesse como um processo orgânico, de amadurecimento biológico e de

crescimento. Vigotski afirma que os estruturalistas acabam desconsiderando

que as necessidades e interesses constituem-se mais aspectos socioculturais

do que biológicos. Simplifica assim a relação entre o biológico e o complexo

processo de formação superior (Ibidem, p. 21).

Vigotski cita um longo parágrafo de Engels que fala sobre a atração

humana para reforçar seu ponto de vista de que, na idade de transição, não é

possível restringir-se ao biológico. O texto de Engels retrata o significado do

amor sexual do seu tempo com o que era na Idade Média. As necessidades

também têm a forma histórica que torna algo relevante no presente e que não

era no passado. Os interesses e necessidades devem, portanto, serem

estudados na relação entre o filo-ontogenético. É no período de transição que

se pode fazer esta distinção do onto-filogenético, e analisar a relação das

necessidades biológicas e culturais. Os interesses, afirma Vigotski, constituem

um estado especificamente humano que diferencia o homem dos animais”

(Ibidem, p. 22).

No período de transição, se não for diferenciado a mudança do

comportamento, não se entenderá a condição em que vive o adolescente. A

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questão fundamental é saber distinguir os motivos que impulsionam o

pensamento assim como os mecanismos dos processos intelectuais. Sem este

entendimento, também não se explica o estágio mais crítico pelo qual, muitas

vezes, passa o adolescente e que resulta na queda do rendimento escolar. Não

há uma diminuição da capacidade intelectual, mas o que ocorre é uma

mudança de hábito que não condiz mais com o que era em idade escolar.

Podemos então concluir que o interesse na fase de transição consiste na

síntese entre “as necessidades biológicas do organismo e suas necessidades

culturais superiores” (Ibidem, p 24). As funções psicológicas superiores são

compreendidas com toda sua complexidade na fase de transição, por que o

comportamento do adolescente começa a funcionar em um mundo interno e

externo completamente diferente do que era. Isto não significa que não

existiam, mas passam a funcionar de outra forma. Para esta fase, Vigotski usa

uma metáfora para compreender melhor: “a lagarta em crisálida e a crisálida

em borboleta”. Associando à ideia hegeliana de que tudo que nasce merece

perecer. Vigotski afirma: “toda evolución es, al mismo tiempo involución”

(Ibidem, p .25).

Aludindo ao interesse do adolescente, conclui-se, da mesma forma, que

velhas formas desaparecem para dar lugar a novas. Não significa, entretanto,

perder os velhos hábitos adquiridos na infância, mas transformá-los. Os

psicólogos tendem a não considerar o aspecto teórico para entender a idade de

transição. Assim, não veem diferença entre a criança e o adolescente,

permanecem analisando os mesmos mecanismos sem considerar o processo

histórico de formação das funções psíquicas superiores. Não se trata de

enfocar a personalidade do adolescente como um objeto estático, mas como

um processo dinâmico.

Haveria diferença entre o tempo de duração do período de transição do

jovem trabalhador e de um jovem burguês? Não fica claro se Vigotski

concorda, mas aponta uma diferença básica. A primeira fase de transição do

adolescente trabalhador tem igual duração de um adolescente burguês, mas,

às vezes, devido à necessidade do adolescente trabalhador inserir-se no

mercado de trabalho mais cedo, na segunda fase de desenvolvimento o

interesse é mais reduzido, mais inibido.

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Como a nova fase é considerada uma involução pode-se também

considerá-la como negativa; a tendência negativa na personalidade do

adolescente é muito comentada por vários pesquisadores, e acompanhada,

muitas vezes também, pelo desinteresse em relação às atividades escolares. A

razão deste desinteresse reside na ausência de estabilidade dos interesses. O

caráter negativo está associado à maturação sexual também caracterizado

pelo isolamento, atitude hostil, inquietude, etc.

Vigotski concorda que seja uma etapa de negativismo, mas é um

segundo negativismo, pois o primeiro acontece ao redor de três anos de idade

da criança. Em razão desta similitude é que alguns autores tendem apenas a

reafirmar uma etapa para outra sem fazer as devidas diferenciações.

O que é mais comum, como já mencionado anteriormente, é o baixo

rendimento escolar dos adolescentes, em torno da idade de 14 e 15 anos.

Alguns autores afirmam que não se trata também de descenso escolar, mas

até na capacidade de trabalho (talvez aqui mais indicado afirmar nos dias de

hoje: pouca iniciativa!). A maioria dos investigadores permanece reconhecendo

unanimemente a existência da fase negativa.

A atividade laboral é uma das questões centrais no socialismo e, para a

preocupação dos professores e das professoras, por volta dos 16 anos, os

jovens trabalhadores demonstram negativismo ao trabalho. Para alguns

pesquisadores é uma fase passageira e que dura pouco tempo. Alguns

pesquisadores também analisam as diferenças entre meninos e meninas. Nas

meninas, a fase negativa é observada entre os 11 anos e 8 meses até os 13

anos. O fenômeno ocorre neste período e dura 8 a 9 meses. O menino ocorre

mais tarde, entre 14 e 16 anos, sem muita diferença das características

apontadas para as meninas.

Como dito, há uma preocupação com a questão do trabalho e com a

questão do negativismo da fase de transição dos adolescentes. Vigotski cita

uma pesquisa realizada sobre o adolescente soviético. Foram investigados

vários grupos escolares e foram acompanhados 274 alunos na idade entre 11 e

meio aos 16 anos, quando se concluiu o que já fora dito acima, a característica

negativista. O inovador na pesquisa chamou muita atenção: o negativismo ora

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se demonstrava intenso na escola ou então no ambiente familiar. Ou seja, se a

característica se tornava exacerbada na escola não o era na família e se era na

família não o era na escola. Contudo, a maioria dos casos se confirmava o

negativismo na escola. Os investigadores tendem a considerar o adolescente

um negativista em potencial. Vigotski cita um pesquisador especial

(Zagorovski), que desenvolveu pesquisa apontando que 20% dos pesquisados

que coincidiam ser filhos de trabalhadores careciam da fase negativista.

Zagorovski argumenta a perspectiva de tratar o adolescente com ”fórmulas

puramente biológicas” e que o problema do negativismo nas escolas é devido à

ausência de uma pedagogia direcionada para o adolescente. A educação é

realizada como se fosse para crianças de idade escolar, como para crianças

menores, fato que cria um ambiente completamente adverso para o processo

de aprendizagem. Portanto, o que se reforça é o negativismo da reação da

intervenção pedagógica errada e não uma proposta que seja “a favor do

otimismo pedagógico”. Da mesma forma conclui Vigotski:

“A nuestro juicio, la mayoría de los investigadores al señalar correctamente los sintomas que caracterizan el inicio de la maduración sexual cuando describen la fase negativa, simplifican extremadamente el problema, debido a lo cual surge um panorama contractorio de las diversas formas em que se manifiesta el período negativo em distintas condiciones de médio social y educativo” (Ibidem, p. 36).

Vigotski então resume. Não se pode assinalar esta fase como uma

questão meramente biológica. Da mesma forma, não se pode assinalar como

sendo um problema apenas do ambiente social. “O adolescente é um ser

biológico, natural, mas também histórico, social” (Ibidem, p. 36). Nesta etapa, o

adolescente tem sua maturação sexual e sua maturação social da

personalidade. Não deveria ser visto como uma fase homogênea e

caracterizada pela educação padronizada. O interesse é um fator determinante

na formação do adolescente e deveria ser trabalhado de forma criativa e

positiva. A fase de transição poderia ser tomada no seu conjunto, a fase

preparatória (maturação sexual) para entrar numa fase de negação (os

referenciais infantis são negados), para alcançar uma fase positiva (afirmação

de novos comportamentos e consolidação de suas funções psicológicas

intrapsicológicas em relação ao que era antes interpsicológicas). O processo

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de negação e afirmação são momentos internos e imprescindíveis também

para a formação do interesse dos adolescentes. Portanto, podemos dizer que

entre “as atrações” e “as aspirações”, o interesse é uma unidade de análise de

mediação capaz de compreender esta estrutura do desenvolvimento

psicológico, do desenvolvimento nas idades de transição.

2. O desenvolvimento do pensamento e a formação de

conceitos

Esta parte sobre o desenvolvimento e a formação dos conceitos do

adolescente foi escrita em 1931 e é a mais importante aqui a ser abordada.

Esta foi contemplada mais tarde no famoso livro compilado por Vigotski:

Pensamento e Linguagem 72 , mas sua especificidade está marcada pela

preocupação com o ensino e o desenvolvimento.

Na época, nos estudos sobre o desenvolvimento do pensamento na

idade de transição, predominava a concepção de que o pensamento do

adolescente não tinha nada de novo se comparado com o pensamento de uma

criança de três anos de idade. O próprio termo desenvolvimento, nesta

concepção, era equivocado porque o avançar da idade simplesmente

ocasionava maior acumulação quantitativa. O que se reconhecia apenas é que,

na fase de puberdade, o que se tornava mais evidente era a separação do

pensamento abstrato do pensamento visual-direto. Nos adolescentes, o

pensamento estava mais livre da base sensorial e menos concreto como na

fase infantil. Portanto, não se trata de uma alteração nova das operações

intelectuais.

Para Vigotski, esta opinião é “profundamente falsa” (VYGOTSKI,

2012b, p.49) porque apenas considerava centralmente as questões

emocionais. Era a visão tradicional que entendia ser a idade infantil

caracterizada primeiro pelas funções da percepção, memória, intelecto e

atenção e o adolescente caracterizado pelas emoções.

72 O texto na edição espanhola está dividido em 40 partes. Do número 5 – 24 consta como quinto capítulo de Pensamento e Linguagem.

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Vigotski identifica as concepções dualistas e metafísicas da psicologia

que fazem a ruptura entre a evolução das formas e o conteúdo do pensamento.

Isto ocorre porque não encontram a unidade dialética. Os idealistas se calam

diante do tema acerca do desenvolvimento do pensamento na idade de

transição. São capazes de explicar como se alteram os conteúdos do

pensamento do adolescente, mas não explicam e não se preocupam com “as

funções intelectuais, as formas de pensamento, a estrutura e composição de

suas operações intelectuais” (Ibidem, p. 51). Todas estas são consideradas

eternas. Vigotski sugere uma metáfora para esta abordagem tradicional e

idealista sobre a forma e conteúdo do pensamento como um recipiente e o

líquido; o líquido pode se alterar o tempo inteiro, mas a forma está ali estática,

imutável e invariável. Admite-se que na adolescência se passa ao pensamento

lógico-formal, mas é mudança de conteúdo meramente e o que precisa

também ser analisado é a mudança da forma. A velha psicologia não trata

destas relações, mas se encerra no conteúdo.

As funções psíquicas superiores são produto do desenvolvimento

histórico da humanidade, mas também tem sua peculiaridade no

desenvolvimento da ontogenia. Claro que há uma dependência entre os

processos de desenvolvimento orgânico, biológico e das funções psicológicas

superiores e isto significa que há uma relação de dependência, mas,

definitivamente, não pode ser considerada como identidade.

“Em efecto, toda investigación realmente profunda nos enseña a reconocer la unidad e indisolubilidaddd de la forma y el contenido, de la estrutura y la función nos enseña que cada passo nuevo em el desarrollo del contenido del pensamento está inseparablemente unido también com la adquisición de nuevos mecanismos de concucta, com el passo a uma etapa superior de operaciones intelectuales” (VYGOTSKI, 2012, p. 54)

Vigotski aponta defeitos metodológicos nas teorias tradicionais, porque,

de um lado, reconhecem as mudanças que ocorrem no conteúdo do

pensamento do adolescente, mas, por outro lado, negam as evoluções

intelectuais – não conseguem correlacionar as mudanças que ocorrem de

conteúdo com a forma do pensamento e confundem as funções psíquicas

elementares com as superiores. A forma e o conteúdo são tratados

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distintamente e podem ser verificados nas seguintes suposições: quando se

fala de conteúdo do pensamento e de suas mudanças, refere-se ao caráter

histórico sempre em processo e também como resultado do processo de

desenvolvimento cultural; quando se fala das formas de pensamento, refere-se

ao caráter orgânico e adequado ao biológico. Vigotski menciona o “abismo”

existente; afirma que é necessário um método para identificar uma unidade

dialética na dinâmica entre forma e conteúdo do pensamento. A unidade pode

ser a formação de conceitos que “es la clave de todo el problema del desarrollo

del pensamiento” (Ibidem, p.58). Este fenômeno da formação de conceitos é

marcante na idade de transição, na verdade, pouco visível para os

pesquisadores porque se constitui de mudanças internas. Chamaria a atenção

caso estas mudanças não ocorressem internamente; isto significaria que sua

tese poderia ser descartada, e, mais do que isto, caso o método não abarcasse

a unidade dialética entre o conteúdo e a forma do pensamento não seria

possível efetuar uma análise correta.

Vigotski efetivamente utiliza o método dialético destacando que “en

realidad la forma y el contenido del pensamiento son dos momentos de un solo

proceso integral, relacionados interiormente por un nexo esencial, no fortuito”

(Ibidem, p. 59). Surgem novas “atividades intelectuais e conteúdo novo de

pensamento” típico do período de transição por qual passa o adolescente.

Vigotski critica radicalmente as teorias e seus autores que sustentam

que as mudanças já ocorridas com três anos de idade sejam definitivas e não

incorrem em alterações no período de transição. Para chegar às suas

conclusões Vigotski utilizou o método que ele denomina de “método dos cortes

genéticos” (Ibidem, p. 61), que é diferente de um método que considera as

etapas da idade como objetos estáticos ou em repouso e não em processo ou

em movimento. Estudar adotando o método dos cortes genéticos significa

identificar um aspecto e analisar suas determinações. Esta é uma abordagem

que se identifica com o método dialético aplicado ao real, ao concreto.

Os novos conteúdos não são incorporados necessariamente pelo

adolescente, mas experimentam um complexo processo de desenvolvimento; é

por esta ampliação do conhecimento que o adolescente participa da vida

cultural. O jovem participa da produção da vida cultural. O jovem começa a

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participar “da produção social” e vai assimilando “a ideologia social”. Contudo,

Vigotski concorda que a “psicologia de classe” não é compreendida

imediatamente pelos adolescentes, mas “la historia del joven es la historia del

desarrollo intenso y de la formación de la psicologia e ideologia de clases”

(Ibidem, p. 65). Vigotski contesta as correntes soviéticas para as quais a

psicologia de classe se estabelece por via da imitação. Ela se dá num processo

de colaboração com o mundo a partir de atividades de interesse.

Na sociedade soviética, a preocupação estava também com a

formação do pensamento dialético do jovem na relação com o trabalho. Pavel

Blonski (1884-1941) era psicólogo e pedagogo de referência na União

Soviética; além da intenção de criar uma psicologia de base marxista,

coordenava a implementação de escolas de trabalho. Identificava-se na fase de

transição “a insuficiência da dialética do adolescente” e avaliava-se que a

causa estava no caráter instável que vive o adolescente. Vigotski defendia que

a maturação do pensamento dialético atingia pleno desenvolvimento no

momento de transição que tem como questão chave a formação de conceitos.

3. Desenvolvimento das funções psíquicas superiores na idade

de transição

A história do desenvolvimento psíquico na idade de transição está

constituída pelo ascenso das funções de sínteses superiores. Estas sínteses

são independentes. Vigotski afirma que a história do desenvolvimento das

funções psíquicas superiores do adolescente é estritamente hierárquica, ou

seja, as funções psicológicas não podem ser vistas como um tronco onde

crescem vários galhos, por exemplo, as principais funções psicológicas como

atenção, percepção, memória, vontade e pensamento não se desenvolvem

paralelamente.

“No processo de desenvolvimento todas essas funções constituem um complexo sistema hierárquico de onde a função central ou reatora é o desenvolvimento do pensamento, a função da formação de conceitos. Todas as outras funções se unem a essa formação nova, integram com ela uma síntese complexa, se intelectualizam, se reorganizam sobre a base do pensamento em conceitos” (VYGOTSKI, 2012c, p. 119).

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O desenvolvimento do pensamento está integrado à formação de

conceitos. Isso fica mais fácil de ser compreendido se tratarmos de uma função

psicológica, por exemplo, a memória. Considerando que se parte de uma

atividade inferior para superior, é possível, como processo de continuação, pois

uma memória elementar ou mecânica passa para memória lógica; é possível

porque “ambas procedem de uma mesma linha genética” (Ibidem. p. 119). Este

artigo é extremamente relevante porque Vigotski analisa especificamente cada

função psicológica superior. Discorreremos cada função psicológica conforme

se segue:

a) Percepção

É função psicológica que aparece na história do desenvolvimento

psíquico da criança. “A criança começa a perceber antes de saber dirigir a

atenção, memória, pensar”, portanto, é a função mais elementar. Na idade de

transição também se produzem mudanças que se verificam na percepção do

adolescente. A questão da memória, entretanto, é muito mais complexa; na

época, Vigotski identificava várias explicações sobre o desenvolvimento da

memória que não trataremos aqui, mas que eram totalmente desencontradas.

Para análise da história das funções psicológicas superiores, devemos

começar pela percepção de porque esta se desenvolve primeiro na criança.

Antes de saber dirigir a atenção, memorizar e pensar, a criança começa a

perceber. É a função mais elementar e os processos de seu desenvolvimento

são pouco visíveis na observação direta. Vigotski contesta as abordagens que

consideram esta função como existente no bebê e que seu funcionamento

permanece igual na vida adulta – não se desenvolve. A percepção do bebê, na

vida real, é muito diferente se comparada à de um adulto, assim como ocorre

com a memória ou o pensamento. Entre o bebê e o adulto, Vigotski argumenta

que há estágios que devem ser considerados e há grandes mudanças que são

observadas. A maior mudança, a mudança mais complexa ocorre na idade de

transição. É possível perceber desde mudanças primárias até mais complexas.

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A percepção da magnitude dos objetos considerando formas e cores. São

percepções casuais, mas que vão se complexificando com a fusão dos

processos da percepção com a memória. Vigotski dá o exemplo de um lápis

que é afastado e aproximado dos nossos olhos. Este processo de distinção do

tamanho exige que a memória ateste o que é real, mas só é possível com essa

fusão com a percepção. Poderíamos afirmar, quando focamos nosso olhar para

um objeto e não o percebemos simplesmente, mas o recordamos. A síntese

inicial, percepção e memória, é um processo complexo, mas é na idade de

transição que a percepção se une ao pensamento, à linguagem.

“Nestes últimos tempos se tem estudado a complexa influência do processo de linguagem sobre a percepção visual-direta da criança. Resultou que os processos de desenvolvimento da linguagem e do pensamento verbal reelaboram de maneira muito complexa a percepção visual-direta da criança, a estrutura sobre uma nova base; durante a idade de transição, em particular, juntamente com a formação de conceitos se modificam as velhas proporções, a antiga correlação dos momentos visuais-direto e não visual-indireto, concretos e abstratos na esfera da percepção” (Ibidem. p. 121).

Em razão do pensamento, os objetos isolados, que são percebidos,

podem ser relacionados entre si, se regulam, adquirem sentido, passado e

futuro. Por outro lado, a linguagem possibilita compreender o percebido,

permite analisar a realidade e passar da função elementar para superior. “A

percepção desenvolvida pelo adulto recobre a realidade com uma malha de

categorias lógicas”, mas é resultado da mudança que ocorre das funções

psicológicas na idade de transição.

A percepção está muito relacionada com a visão. O que Vigotski nos

chama atenção é que a percepção é um processo de desenvolvimento que vai

gradativamente fazendo a regulação e a correção de todo o conjunto de

impressões externas e internas. Conforme a idade, a criança vai percebendo

as qualidades, relações e ações e estas percepções se desenvolvem no

domínio da linguagem. As percepções fazem esta conexão entre o anterior e

interno. A percepção na relação com a linguagem tem um sentido diferente

para uma criança e para um adolescente.

Vigotski conclui afirmando que a criança, com ajuda das palavras,

conhece as coisas e só com ajuda dos conceitos chega ao conhecimento real e

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racional do objeto. O conhecimento sem considerar a percepção ordenada e a

linguagem é impossível. “A palavra singulariza o objeto do processo integral de

adaptação (...) e o converte em objeto do conhecimento” (Ibidem. p. 26).

b) Memória

Muitos pesquisadores, na época de Vigotski, defendiam que a memória

alcançava seu ápice na idade de 12 anos. Para Vigotski, os pesquisadores se

preocupavam com descrições genéricas. Não mencionavam a transformação

que ocorre no período de transição. É no período de transição que ocorre uma

transformação que identifica como “memória superior” ou “memória lógica” –

“se forma a base da síntese do intelecto e a memória” (Ibidem. p. 127).

É graças ao estudo comparativo que se pode verificar a relação entre

memória e pensamento. Contudo, as psicologias do desenvolvimento da época

não entenderam as alterações nas diversas idades que são produzidas, isto

porque as funções psicológicas eram tomadas isolada e independentemente,

uma ao lado da outra. As funções psíquicas eram consideradas como

trajetórias paralelas e com elementos relativamente independentes.

Vigotski considera que o intelecto de uma criança tem profunda

dependência da sua memória. O pensamento da criança está unido às

recordações. Sem intelecto, ela se apoia principalmente na memória. A

correlação é feita através das imagens e a faculdade intelectual não tem uma

significação unívoca, porque, neste processo interfuncional, irá sofrer a

transformação na idade de transição. Portanto, é uma forma dinâmica este

processo e não estática e a conclusão é que as mudanças das funções

psicológicas superiores se devem à “evolução dos nexos interfuncionais”.

c) Atenção

É outra função psicológica sobre a qual Vigotski denuncia haver

poucas pesquisas. O processo da atenção na idade de transição não é menos

importante e essencial que a percepção e a memória. Como mencionado

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anteriormente, nas descrições analíticas das funções psicológicas superiores,

cada uma delas deve ser considerada dentro de um processo de formação e

de uma síntese superior que interage com uma série de funções mais

elementares. O surgimento de uma nova e complexa comunicação, nova e

complexa estrutura, regulada pelas suas próprias leis especiais, consiste em

um problema a ser considerado pelos pesquisadores. Na formação psicológica,

atenção deve ser considerada dentro desta dinâmica e a maneira mais

adequada é considerá-la nas relações com outras funções psicológicas. Para

Vigotski, a atenção tem uma diferença essencial se comparada com outras

funções. As mudanças não se atêm à estrutura da função elementar, nem

tampouco a aparição de novas propriedades. As mudanças ocorrem nas

relações desta função com as outras. A atenção voluntária é a atenção que

depende do pensamento. É o pensamento que determina o ponto máximo do

desenvolvimento da atenção. Quando, portanto, falamos de atenção voluntária

a distinguimos da involuntária, do natural. Conforme Vigotski “a atenção

voluntária é, ao mesmo tempo, a consequência e a causa da civilização”

(ibidem. p. 138). Em outra passagem, depois de concordar que “o trabalho é

atenção voluntária” tem parentesco psicológico. Assim como existe a

necessidade de trabalhar, a atenção voluntária se converte num fator primordial

de nossa forma de luta pela vida. O trabalho é indissociável da atenção

voluntária e se caracteriza por uma condição de vida mais elevada do ser

humano. Vigotski insiste que o desenvolvimento da atenção está ligado com

outras funções, mas, sobretudo, na sua relação com o pensamento. Associa o

desenvolvimento da atenção na fase de transição com a formação de

conceitos. É o que Vigotski chama de vínculo, a saber:

“(...) por uma parte, a atenção, quando alcança um certo grau de desenvolvimento, constitui, ao igual que em outras funções intelectuais, uma premissa indispensável para o desenvolvimento do pensamento em conceitos e, por outro lado, o passo ao pensamento em conceitos significa que a atenção chega a um estágio superior, que passa a uma forma nova, superior e complexa de atenção voluntária interna” (ibidem. p. 139).

Vigotski propõe um resumo acerca das investigações realizadas sobre

a atenção. O pensamento de uma criança se diferencia por uma atenção

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organizada primitivamente. Sua atenção é dirigida de fora; ela atrai e recusa os

objetos. Diferentemente no adolescente, onde as formas superiores de atenção

são consequências do amadurecimento do pensamento, na mesma etapa de

desenvolvimento da formação de conceitos. De forma geral, poder-se-ia

sustentar que os estágios primeiros correspondem ao domínio externo das

próprias funções psíquicas – memória e atenção – e, o segundo domínio

interno, deste mesmo processo. É isso que diferencia a criança e o

adolescente.

d) Atividade prática, pensamento prático e intelecto ativo

O problema para analisar a função superior, o pensamento, reside em

não considerar o verdadeiro curso do desenvolvimento histórico do

pensamento. A velha psicologia, partindo da auto-observação, considerava o

intelecto prático uma ação racional prática, como continuação dos processos

do pensamento interno. Partia-se da premissa: primeiro o pensamento, depois

a ação! Esta forma de entendimento relegava a atividade racional como um

aspecto que surgia na idade de transição e Vigotski concorda que, de fato, é na

idade de transição que se dá uma transformação.

Vigotski analisa a linguagem não como um produto acessório da

atividade infantil, nem como uma função paralela à ação. A linguagem e ação

são indissociáveis e esta indissociabilidade tem decisiva importância para a

ação como para a linguagem. A primeira relação objetiva que se forma entre

linguagem e pensamento é que a linguagem se converte em um meio do

pensamento, porque reflete a ação intelectual prática que transcorre

objetivamente. A criança vai gradativamente tomando consciência dessa

aproximação que Vigotski denomina de “aproximação sincrética da linguagem

e do pensamento” (Ibidem. p. 157).

Destaca-se dois momentos dentro da história do desenvolvimento das

funções psicológicas superiores, mas especialmente voltado para o

pensamento. Primeiro, esta “aproximação sincrética da linguagem e do

pensamento” da criança não é obra da criança “é construído com ajuda de

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operações lógicas”. A criança não cria uma outra forma de conduta prática

valendo-se da linguagem. Vigotski defende que acontece justamente o

contrário, ou seja, é a própria linguagem que adquire formas lógicas e se

intelectualiza pelo mero fato de refletir e acompanhar as operações práticas

intelectuais da criança. Assim, o pensamento verbal é objetivo para depois ser

subjetivo. Primeiro surge “em si” para depois “para si”.

Quando a linguagem e a ação se aproximam é com a ajuda da criança

que começa a determinar as suas reações e com a verbalização ampliam-se as

possibilidades. Os dois momentos que ora foram mencionados possibilitam

distinguir que a criança primeiro age, e depois pensa; e o adulto primeiro pensa

e depois age.

A tenra infância, portanto, “se caracteriza pela união sincrética da

linguagem social da criança com sua ação. “União sincrética” é o termo que

Vigotski utiliza para descrever o “nó genético” que estabelece pela primeira vez

uma conexão, ainda que no início seja confuso e indeterminado, entre o

pensamento verbal e o prático.

Na idade pré-escolar, a linguagem da criança já adquire uma forma

nova, a linguagem se converteu em linguagem “para si” e este período “se

caracteriza pela união sincrética da linguagem egocêntrica e ação prática

(Ibidem. p. 162). O pensamento verbal ainda é pouco frequente para

comprimento das tarefas e também continua não tendo aquele caráter de

planificação.

Na idade escolar continua estando em poder do sincretismo verbal,

mas a linguagem interna não domina todas as operações práticas.

Somente na idade de transição, no momento em que surge o

pensamento verbal em conceitos “é possível resolver a tarefa verbalmente e

realizá-la na prática: Atividade está submetida a um plano... a uma vontade que

determina como uma lei o modo e o caráter da ação” (Ibidem. p. 162).

O caminho do pensamento se abre através da linguagem

gradativamente e é na idade de transição que há uma transformação. Quando

o adolescente domina seu pensamento em conceitos aparecem as formas

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superiores; entre pensamento e ação se distinguem complexas sínteses. É

neste momento, depois de um longo caminho, que chegamos a questões

cruciais na teoria de Vigotski. Em nenhum momento há citações nestes

trabalhos a Marx e Engels, que são sempre costumeiras. Aqui temos um

diálogo que é estabelecido com Lênin e Hegel.

Vamos às questões do texto para que possamos analisar

adequadamente seu ponto de vista. Nestes textos nem tão trabalhados ou

debatidos, ou não tão famosos. Para Vigotski, a síntese que se chega na idade

de transição em razão de alcançar “o pensamento verbal em conceitos” pode

ser comparada ao “plano filogenético”, ao retratarmos o desenvolvimento do

pensamento humano. Foi Hegel, conforme Vigotski, que se propôs a analisar a

atividade prática do ser humano e o emprego de ferramentas como uma

dedução lógica desta realidade. Então, passa a fazer longas citações das

anotações que Lênin fez ao ler A Lógica de Hegel, enfatizando “as categorias

lógicas” e “a prática humana”. As duas citações são do mesmo teor.

Hegel, citado por Lênin, esforça-se “para fazer coincidir a atividade

humana com categorias lógicas” A atividade passa a ser sempre conclusão.

Esta posição de Hegel deve ser colocada no sentido de que as atividades

humanas devem ser repetidas tantas e tantas vezes até que adquirem

“significado de axiomas”. Este é o aspecto filogenético que Vigotski analisa no

aspecto ontogenético.

A ação forma na linguagem juízos, converte a linguagem em processo

umbilical” e isso pode ser observado nas pesquisas com crianças. A criança

pensa na ação, pois também ao utilizar ferramentas e ao mesmo tempo a

linguagem, não só modifica o pensamento por meio da linguagem, mas novas

formas são utilizadas na medida em que várias consequências, ações são

realizadas – neste sentido, muda a linguagem, estrutura de acordo com o

princípio intelectual. Para Vigotski, o que Lênin tratou do ponto de vista

filogenético referenda-se a linguagem na determinação da consciência às

figuras lógicas, às categorias que são repetidas tantas vezes na prática

humana.

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A psicologia, até então, ao tratar a importância da linguagem para o

pensamento, considerava a linguagem como uma “massa amorfa”. A

linguagem cumpre diversas funções pelo influxo do intelecto prático que forja

no intelecto uma cópia que somente na idade de transição inicia a dirigir por si

mesmo o pensamento. A ação prática é que tem a força para intelectualizar a

linguagem e é nestes termos que entendemos como se transforma o intelecto

prático verbal.

As investigações das quais Vigotski referia-se tratam de verificar como

se chega ao intelecto por meio da linguagem. Neste sentido, para a linguagem

converter-se no caminho desde o intelecto precisa experimentar para si mesmo

a influência formadora do intelecto. O processo de aparição da função

planificadora da linguagem, que antes era reflexa, não é mais que um caso

particular da lei geral da formação dos processos reguladores e da atribuição

de sentido a partir dos processos da percepção.

O reflexo com ajuda da linguagem (a cópia verbal das próprias ações),

os surgimentos das fórmulas da linguagem para ações sucessivas constituem o

fundamento para o desenvolvimento da autoconsciência e dos reguladores dos

mecanismos volitivos superiores. Os mecanismos reguladores do organismo se

baseiam no princípio da autopercepção dos próprios movimentos.

Há uma compreensão sobre reflexo muito importante. Segundo

Vigotski, se estudarmos o reflexo, sem considerá-lo em movimento, apenas

destacando uma ou então outra, por exemplo, a linguagem ou a consciência,

reflete. Em alguns processos reflete objetivamente, neste caso, a linguagem

não pode cumprir nenhuma função essencial, isto porque o reflexo passa a ser

um espelho, não podendo modificar o objeto refletido. Porém, se tomarmos em

movimento ou em desenvolvimento, veremos que, pelo reflexo, os nexos

objetivos e, em particular, o autorreflexo da prática humana no pensamento

verbal do ser humano surge sua autoconsciência e sua possibilidade de dirigir

conscientemente suas ações. Vigotski cita uma frase de Lênin: “a consciência,

em geral, reflete a existência” (Ibidem. p. 164). Esta é uma tese geral de todo

materialismo. Continuando na citação de Vigotski a Lênin: “ao domínio da

natureza que se revela na prática da humanidade, é o resultado do reflexo

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objetivamente fiel dos fenômenos e processo da natureza na mente humana, e

demonstra que esse reflexo (no marco prático) é uma verdade objetiva,

absoluta, eterna” (Ibidem. p. 164).

Vigotski justifica quais as razões de enfatizar com tantos detalhes o

desenvolvimento da atividade prática e cita três momentos:

i) Assim como o próprio Piaget demonstrou, toda idade escolar se

caracteriza pelo que a criança transpõe, desde o plano de ação

ao plano do pensamento verbal, as operações que haviam sido

dominadas anteriormente;

ii) A atividade prática da criança e do adolescente se mediatizam

cada vez mais graças à linguagem e ao que introduzem da

linguagem no processo da atividade prática;

iii) É a estreita conexão existente entre os “nós genéticos” do

pensamento e da atividade prática que se desenvolvem e se

substituem reciprocamente e o desenvolvimento da atividade

laboral do adolescente, que vai amadurecendo para chegar a

dominar as formas superiores do trabalho humano.

No final deste artigo, Vigotski retorna com as anotações que Lênin

efetua sobre a Ciência da Lógica de Hegel. É uma longa citação que faz

referência à formação de conceitos. Lênin reconhece que Hegel analisou com

maior profundidade que Kant e outros, com mais determinação, o reflexo da

dinâmica do mundo objetivo na dinâmica dos conceitos. Da mesma forma que

o valor, a simples troca isolada de uma mercadoria por outra, não está

desvinculado de todas as contradições do capitalismo. A mais simples

generalização, por exemplo, formação de conceitos, significa que o ser humano

vai conhecendo cada vez mais as profundas e objetivas conexões do mundo. É

neste aspecto que Lênin enfatiza que é necessário analisar a lógica de Hegel,

que a formação de conceitos abstratos já inclui a ideia, “a consciência das leis

que regulam as conexões objetivas do mundo”. Para Lênin, isto é absurdo, mas

não é absurdo o estudo da lógica de Hegel para compreender que a formação

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de conceitos é completamente diferente, inversa a que Hegel propõe. Sua

lógica nos serve para invertê-la.

Para Vigotski, “o conceito nos proporciona o primeiro conhecimento da

realidade no verdadeiro sentido dessa palavra, pois pressupõe a regularidade

de fenômenos que se conhece” (Ibidem, p. 198). A regularidade dos

fenômenos acontece no mundo real, não é uma abstração. É por essa razão

que a criança, quando se depara com o conceito, passa de um nível para outro,

passa do nível da vivência ao nível do conhecimento. É por meio do

pensamento em conceitos que definitivamente a personalidade e a concepção

de mundo se desenvolvem na criança.

Vigotski destaca a contribuição que Piaget traz ao defender a tese de

que “a diferença entre o pensamento e o mundo exterior não é algo inato na

criança, é algo que se desenvolve e se constrói” (Ibidem, p. 199). Podemos

observar que a criança, no início de seu desenvolvimento, não faz diferença

entre seu movimento e os movimentos do mundo circundante. Seus

movimentos são os movimentos produzidos pelo mundo. E nos estágios

seguintes de desenvolvimento, vamos percebendo que a criança vai

elaborando novas formas de relação com o mundo. O pensamento é esta

contribuição relacional que se forma, por um lado, pelo “desenvolvimento da

consciência de sua personalidade e de sua unidade, e, por outro lado, pelo

desenvolvimento da consciência da realidade e sua unidade” (Ibidem. p. 199).

Em outras palavras, o pensamento da criança é síntese “da personalidade e

concepção de mundo”. Contudo esta síntese não é possível, esta é a tese

vigotskiana, senão gradativamente até a formação de conceitos, “sem

pensamento em conceitos é impossível a consciência do ser humano” (Ibidem.

p. 199).

Com base numa citação de Engels, Vigotski também traz a relação

entre necessidade e liberdade. Engels concordava com Hegel ao ter exposto

corretamente a relação entre necessidade e liberdade por meio da afirmação,

“a necessidade é cega só porque não é compreendida”. A liberdade não pode

ser compreendida como independente das leis naturais, mas a liberdade está

em conhecê-las para fazê-las atuar “de modo planificado para fins

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determinados”. Engels destaca que isso não vale somente para leis da

natureza exterior, mas também para natureza do próprio ser humano no

aspecto da existência corporal e espiritual.

Baseado nesta definição de Engels, Vigotski conclui que “só o conceito

eleva o conhecimento da realidade”, que possibilita passar das leis da vivência

para as do conhecimento. “A necessidade se converte em liberdade através do

conceito”. (Ibidem. p. 200).

Vigotski está dialogando com Engels e Hegel sobre a relação entre

liberdade e necessidade. Hegel “expressa brilhantemente” que não se deve

considerar reciprocamente excludente a necessidade e a liberdade. A

necessidade não era ainda liberdade, mas a liberdade não tem como

desconsiderar que tem na sua premissa a necessidade que a tem como

superado. E, novamente, Vigotski emenda “sem a função da formação de

conceitos não há conhecimento nem da necessidade e nem da liberdade. É

somente no conceito e através dele que o ser humano assume uma entidade

livre frente ao objeto e o si mesmo.”

Engels afirma que o produto indisponível para o desenvolvimento

histórico é a liberdade, pois no “domínio de nós mesmos e da natureza externa

está baseado o conhecimento das necessidades naturais”. O abandono de um

estado animal para uma condição humana consistia em que cada passo dado

era um ato para liberdade.

Para melhor entender a diferença entre uma criança e um adolescente

Vigotski recorre à tese de Hegel, ou seja, “a coisa em si” e “a coisa para si”.

Todas as coisas existem em si no começo, mas no processo de

desenvolvimento vão se transformando em “coisa para si”. Sem fazer citação

do texto, Vigotski continua citando Hegel: “o ser humano é em si uma criança

cuja tarefa não consiste em permanecer no abstrato e no incompleto ‘em si’,

mas sim em ser também para si, quer dizer, converter-se em um ser livre e

racional” (Ibidem. p. 200). Acriança em si transforma-se em adolescente ser

para si e esta é a questão central para analisar a crise de transição.

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Conclusão

Vigotski tinha amplo conhecimento sobre a psicologia geral e sobre as

diferentes gnosiologias de sua época. Expomos longamente nesta terceira

parte uma fundamentação das concepções de Husserl com as quais sempre

debatia para acusá-la de não considerar os fatores históricos da ciência. Isso

não significa desconsideração pela concepção fenomenológica e Husserl se

debatia para sair também das concepções dualistas. A base que Vigotski tinha

sobre o marxismo-leninismo o qualificou como um especialista em metodologia

em razão de ter organicamente unido o materialismo histórico e dialético em

seus trabalhos de pesquisa.

Vigotski é muito reconhecido no campo da educação e mais

especificamente também reconhecido como um psicólogo da infância. De fato,

se analisarmos tantos textos veremos que o foco é a infância ou a

adolescência. A sua preocupação foi desenvolver investigações sobre a

história do surgimento e desenvolvimento das formas superiores que

caracterizam o ser humano, a atividade da consciência e a descrição das

funções. Vigotski desenvolveu um método que os comentadores russos

identificam como “genético experimental” porque justificam a constante

intenção de encontrar, por meio dos processos investigativos, as leis do

processo do surgimento e desenvolvimento das funções psicológicas. Notamos

nas produções de Vigotski não só o seu caráter analítico, mas a referência

centrada na pesquisa. Mais do que isso, havia um apelo prático trazido pelos

professores que atuavam com crianças e adolescentes na Rússia. Não

podemos esquecer o privilégio de Vigotski de ser chefe do laboratório de

pesquisa do Instituto de Pesquisa em Moscou. Assim como era um privilégio

poder contar com um grupo amplo de colaboradores-pesquisadores havia

também subliminarmente exigências que justificassem todo o investimento da

pesquisa. Ou seja, haveria de ter um resultado concreto na realidade que

estava se transformando na Rússia Soviética. A publicação que analisamos e

detalhamos nesta parte tem, sim, um apelo prático. Em 1931, foi emitido um

decreto para mudança do ensino primário e secundário na Rússia e o maior

desafio continuava sendo, depois de dez anos da Revolução de Outubro, a

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extinção do analfabetismo. Vigotski não estava diretamente ligado ao campo da

educação, mas sim, era responsável pela coordenação dos estudos sobre os

aspectos que afetavam crianças que tinham problemas de desenvolvimento em

razão de diferentes patologias. O termo traduzido do russo para nós parece tão

descabido, “defectologia” como também outro termo “pedologia” (no Brasil

preferimos “pedagogia”).

A preocupação de Vigotski estava centrada nas leis fundamentais do

desenvolvimento psíquico da criança, ou seja, identificar “as forças motrizes” e

“o desenvolvimento da consciência” como “da personalidade”. Destacamos que

Vigotski identificava as “funções psíquicas” como uma determinação social

antes de ser interior, intrapsíquico. As relações sociais têm um caráter

determinante na formação da personalidade, mas não se deveria dissociar

também do caráter biológico. O social é a superação do biológico, mas sem o

qual não se chega ao social.

Vigotski não concluiu seu trabalho sobre o desenvolvimento psíquico e

tentou fazer isso apressadamente nos últimos anos de sua vida. Depois de

quase 100 anos das obras de Vigotski, continua o interesse pelas suas

produções. Não apenas por um aspecto histórico, mas podemos considerar

que elaborou os “prolegômenos” da teoria do desenvolvimento psicológico.

O que Vigotski denomina de “pedologia do adolescente” é também um

estudo sobre o desenvolvimento psíquico do adolescente. Foi escrito em forma

de manual e não há informações sobre as razões de assim ter procedido. É

neste período que estava preparando o texto “História do desenvolvimento das

funções psíquicas superiores” como também “Ferramenta e signo no

desenvolvimento da criança” e que não foram publicados em vida. Talvez aí

Vigotski já receava fazer estas publicações por temer represálias mais duras

daquelas que já começava a receber. Das funções tais como atenção,

percepção, memória e intelecto prático foram destacados o caráter da

mediação. Nos seus estudos sobre o processo de mediação Vigotski enfatiza

constantemente que as funções psicológicas isoladas não têm história e que o

desenvolvimento de cada função está dentro de um todo e como uma função

isolada localiza-se neste sistema. Para analisar o sistema psicológico, Vigotski

investigou três patologias: histeria, afasia e a esquizofrenia. Aqui os estudos se

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fixam na unidade entre o histórico e o sistêmico no processo de

desenvolvimento psíquico.

ELKONIN (2012) afirma que Vigotski trabalhava tendo como referência

“um esquema de análise” que se constitui um método de análise aplicado para

as investigações da psicologia infantil:

“a) determinarel período crítico que inicia la etapa evolutiva, su principal nueva formación; b) investigar el análisis de surgimento y formación de la nueva situación social, de sus contradicciones internas;c) examinar la génesis de la principal nueva formación; yd) analisar la propia nueva formación compuesta por las premisas de la desintegración de la situación social, típica pea esta etapa evolutiva” (Ibidem, p. 406).

Elkonin faz referência a um processo evolutivo que entendemos num

processo de desenvolvimento, por exemplo, da criança, pois está se

investigando as crises que ocorrem em diferentes períodos da vida da criança.

É através deste esquema/método que se consolida a pesquisa de Vigotski na

psicologia infantil. Continuamos sustentando que este referencial que Vigotski

utiliza para fundamentar tanto a psicologia infantil como da adolescência é uma

marca das pesquisas que de certa forma envolvem a própria consolidação da

psicologia soviética. Tanto a lógica dialética confrontada com a lógica formal

como também os fundamentos do materialismo histórico dialético estruturam a

teoria vigotskiana.

No sentido hermenêutico de profundidade, concluímos a etapa de

reinterpretação a partir dos textos diretos de Vigotski. A reinterpretação

consiste neste processo de análise reconstitutiva do sentido da dialética em

Vigotski. Contudo, esta análise consiste mais do que enaltecer o caráter da

lógica dialética de Vigotski, mas inseri-lo no que os seus próprios textos

claramente estabelecem: sua relação com o materialismo histórico dialético. O

caráter interpretativo, portanto, reconhece que as obras do autor correspondem

e coincidem com as inquietações de sua própria vida. As obras literárias se

confundem com a vida de qualquer autor. O problema não é a concepção de

Vigotski, mas os intérpretes. Mesmo que tenhamos na primeira parte nos

delongado com esta questão, nos referenciamos somente nas obras de

Vigotski.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A data de 1989 não é uma data convencional e muito menos qualquer

data. A queda do muro de Berlim marca o fim do socialismo. Apenas alguns

anos depois, vimos Mikhail Gorbachev declarar oficialmente em rede de

televisão o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

LATOUR (2005), no livro Jamais Fomos Modernos, afirma que o ano de 1989

marca um novo momento histórico. Ele afirma que esta data marca o “triunfo do

liberalismo, do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs

esperanças do marxismo” e que isto era um “comunicado glorioso daqueles

que escaparam por pouco do Lêninismo” e ironicamente destaca “estranha

dialética esta que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após haver

ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em grande escala”. Este livro

foi escrito em 1994, pouco depois da queda do muro de Berlim. Para destacá-lo

um pouco mais apresentamos duas de suas questões. Primeira, afirma que “o

recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome do qual a

vanguarda do proletariado reinava, volta a ser um povo”; e “as elites com seus

longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda força para

retomar, nos bancos, nos comércios e nas fábricas seu antigo trabalho de

exploração”. Finaliza, “o ocidente liberal não se contém de tanta alegria”. “Ele

ganhou a guerra fria” (Ibidem, p. 13-14). A modernidade é uma promessa que

critica o passado, é uma crítica das heranças da tradição. Como fazer esta

superação? Então, para completar, Latour nos apresenta paradoxos da

modernidade que estão muito presentes nos dias de hoje. São dois. O primeiro

é o seguinte: de um lado, constatamos que “a natureza não é uma construção

nossa: ela é transcendente e nos ultrapassa” e, de outro lado, “a sociedade é

uma construção nossa: ela é imanente à nossa ação”. De um lado,

constatamos nossa fraqueza diante da natureza, e de outro lado, nos

colocamos como responsáveis pela construção da sociedade. Contudo, vamos

ao segundo paradoxo apresentado pelo autor. De um lado “nós construímos

artificialmente a natureza no laboratório: ela é imanente”; mas, por outro lado,

“não construímos a sociedade, ela é transcendente e nos ultrapassa

infinitamente” (Ibidem. p. 37). Invertem-se as condições quanto ao paradoxo

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anterior. Não nos colocamos como frágeis diante da natureza e buscamos

todos os recursos em laboratórios para descobrir suas leis porque a

consideramos imanente e possível de ser conhecida e dominada. Por outro

lado, considera-se a impossibilidade de construir uma sociedade, de considerá-

la possível de entendimento e de estudo e domínio.

Estes dois paradoxos citados por Latour remetem-nos ao início do

século XX. Remetem-nos para o momento de uma sociedade que conseguiu

construir uma hegemonia social, tomar o poder, dirigir um estado e viabilizar

um projeto político de construir uma nova sociedade, ao mesmo tempo,

tomando como referência o domínio da natureza, poder transformar a

sociedade.

Criar uma psicologia que se diferenciasse das “velhas psicologias” era

uma tarefa tão importante e do tamanho do desafio de criar uma nova

sociedade. O projeto de construção de uma psicologia dialética não era tarefa

de um pesquisador apenas. O trabalho de equipe resultou hoje no que nós

conhecemos como uma escola incumbida de pesquisar e trabalhar com as

questões reais. O reconhecimento dado hoje a Vigotski se deve a sua

capacidade de sistematizar em tempo real. É a pesquisa práxis – a unidade da

teoria e da prática.

A atitude de Vigotski é muito semelhante a de Lênin, que em outra área

foi identificado como aquele que promovia a práxis política. Lênin tinha a

atitude de refletir sobre a prática e assim se abria para a crítica. A realidade

revolucionária possibilitava pessoas com esta natureza.

Neste trabalho não havia interesse de analisar com profundidade estas

diferenças entre Lênin e Vigotski – especialmente no campo epistemológico – o

que pode ser ainda um campo de estudo, de investigação.

Outro campo de estudo, pouco explorado neste trabalho, é a relação

de Vigotski com os psicólogos da Alemanha, Áustria e Suíça (os países de

língua alemã). Este seria um trabalho que exigiria muito tempo de estudo, e

enquanto não se efetua, não se consegue estabelecer concretamente o diálogo

que Vigotski fez com tanta intensidade.

Aqui neste trabalho nos preocupamos com o diálogo nas cercanias do

marxismo e, portanto, na atualidade, exigiria ampliar o debate com outras

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correntes filosóficas atuais. O debate em torno das categorias necessidade e

liberdade remete a Lukács e estabelecer a relação com Vigotski integraria

ontologia e epistemologia. É outro campo de pesquisa em aberto e tocamos de

maneira muito rápida.

Por fim, Vigotski enfatizou no “Significado Histórico da Crise da

Psicologia” (1927) aquela dúvida se deveria a psicologia ser denominada de

marxista ou não. Às vezes, dizia que sim e outras vezes questionava para que

não entrasse neste debate. Era melhor ser reconhecido como marxista pelos

outros. Precisamos hoje de uma psicologia geral? Trabalhamos com a

diversidade e a pluralidade e talvez Vigotski responderia a esta pergunta

destacando a dialética e a história como fatores necessários para análise das

realidades sociais.

Sustentamos que Vigotski esteve dentro do movimento materialista e

isso tem muitas resistências para aceitação, especialmente, em razão da

influência da assimilação deturpada de muitos autores estadunidendenses. De

forma geral estamos inseridos numa hegemonia gnosiológica positivista e esse

é o aspecto central da polêmica com Vigotski. Qual seria a negatividade da

teoria vogotskiana? Nós respondemos que é a negação das teorias objetivistas

e subjetivistas. Ao negar as duas concepções, nega-as apresentando uma

síntese de uma psicologia dialética. Ora, entramos no campo das

confrontações entre Hegel e Marx. O retorno dos marxistas à leitura de Hegel

constitui ainda uma busca para as perguntas que apresentamos como

paradoxos expostos por Latour.

No capítulo no qual retratamos a dialética da práxis trabalhada por

Lênin enfatizou-se “a unidade do mundo”, o real, a materialidade. Para analisar

o real é imprescindível conhecer o processo histórico dos seres humanos, isto

significa investigar a origem e as leis objetivas que são conhecidas no processo

que se dá nas relações sociais. São as definições de Lênin que se alinham

com os referenciais de Vigotski. A referência é de uma época e Lênin foi um

dentre tantos que assumiram o caráter de sistematizar as manifestações do

real no campo da política. Vigotski, com as mesmas características, no campo

da psicologia.

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Utilizamos uma metáfora para expressar melhor. A dialética marxiana é

o alicerce da hermenêutica vigotskiana e a dialética da práxis e Lênin são a

estrutura. A teoria vigotskiana sem o referencial do materialismo histórico

dialético transforma-se numa concepção positivista; sem o materialismo

histórico dialético a teoria vigotskiana não alcançaria o impacto que, até hoje,

nos desafia a continuar as investigações no campo da psicologia social.

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347

ANEXOS

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348

CRONOLOGIA RESUMIDA DE LEV SEMIONOVICH VIGOTSKI73

1896

Lev Semionovich Vigotski é o segundo filho de Semion Ivovitch (1869-1931) e Cecília

Moiseevna (1874-1935), família de oito filhos. Nasceu em 05 de novembro, em Orsha,

Bielorússia.

1897

A família muda-se para Gomel.

O pai de Vigotski, Semion Lvovitch, dirige o departamento de um dos bancos em

Gomel que era uma cidade com maioria formada pela população de judeus.

1909

Em 05 de novembro de 1909 Vigotski fez seu bar mitzvah que é um ritual da tradição

judaica que marca sua assunção para vida adulta

1911

Vigotski entra pela primeira vez em uma escola, pois até então estudara sempre com

tutores particulares.

1913

No final do ano conclui o curso secundário.

1914

Inicia na Universidade Imperial de Moscou o curso de Medicina, mas resolve

imediatamente mudar para o curso de Direito.

Ingressa também na Faculdade de História e Filosofia da Universidade Popular de

Shanyavskii.

Na mesma época, interessa-se por literatura e escreve resenhas de livros dos

escritores-simbolistas russos Andrei Bieli, Viatcheslav Ivanov, Dmitri Merejkovski.

73 Para elaboração deste resumo cronológico consideramos as publicações KOZULIN (1990);

PRESTES (2014), PRESTES & TUNES (2011; 2012); VEER & VALSINER (2009). YASNITSKY (2010,

2011, 2012a, 2012b; YASNITSKY & FERRARI (2008).

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349

1916

Vigotski começa a publicar, nas revistas Letopis, Novii Mir e Novaia Jizn, vários artigos

e resenhas, dedicados à crítica literária (até 1922). Alguns trabalhos foram sobre o

romance de Andrei Belii (Peterburg), sobre o livro de Viatcheslav Ivanov (Borozdi e

meji), sobre a peça de D.Merejkovski (Budet radost), sobre o poema de I.S.Turguenev.

A primeira versão da monografia, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, de

Shakespeare, foi escrita durante as férias de 1915 e a segunda em 1916.

1917

Permanece alguns meses em Kiev em 1917, em plena Guerra Civil, pois resolveu

acompanhar o irmão (doente de tuberculose) e a mãe em viagem à Crimeia para

tratamento.

1918

Tem a primeira crise de tuberculose. Achando que morreria, pediu ao seu amigo

Dobkin para que garantisse a publicação de seus manuscritos.

1919

Em janeiro, Gomel é libertada da ocupação Alemã.

De 1919 até 1921 assume o cargo de diretor do subdepartamento teatro do

Departamento de Instrução do povo. Torna-se um articulador das atividades artísticas

da cidade, especialmente com teatro.

1920

Recebe a confirmação que contraiu tuberculose, doença na época considerada sem

cura.

Morre seu irmão mais novo vítima de tuberculose e um ano depois outro irmão

também falece vítima de Tifo.

Muda seu sobrenome Vigodski para Vigotski.

1922

Publica muitas resenhas teatrais nas páginas dos jornais em Gomel. Exerce o papel

de crítico literário.

Em 30 de dezembro foi fundada a URSS (União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas).

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350

1923

Propõe criar um gabinete de psicologia experimental na Escola Técnica da ciência de

Pedagogia. Nesta escola dá aula de psicologia e lógica.

1924

Participa do II Congresso de Psiconeurologia realizado em Lêningrado.

Convidado por Kornilov a trabalhar no Instituto de Psicologia experimental em Moscou.

Apresenta trabalhos em conferências científicas, tais como: Sobre a natureza

psicológica da consciência, O novo artigo de I. P. Pavlov, Estudos das reações

dominantes, A consciência como problema da psicologia do comportamento, Sobre a

nova escola psicológica de Berlim, entre outros.

Em julho, por recomendação do organizador do Instituto Experimental de Defectologia,

I. I. Daniuchevski, Vigotski foi conduzido ao cargo de diretor do subdepartamento de

educação das crianças com deficiências físicas e retardo mental no Departamento de

Proteção Social e Jurídica de Menores.

Em outubro também é nomeado ao cargo de professor do Instituto de Pedologia e

Defectologia de Moscou para lecionar Introdução à Psicologia. Na mesma época,

começa a lecionar Psicologia na Academia de Educação Comunista (mais tarde,

Instituto Krupskaia);

Inicia também um trabalho de prático de Psicologia Experimental nos Cursos

Superiores de Ciência e Pedagogia;

Acontece o II Congresso sobre a Proteção Social e Jurídica dos menores de idade,

Vigotski apresenta relatório: Sobre a situação atual e as tarefas na área de educação

para as crianças com deficiências físicas.

Elabora trabalhos escritos: Sobre a psicologia e a pedagogia da deficiência infantil e

Os princípios de educação de crianças com deficiências físicas.

Publica, o trabalho: Sobre a psicologia e a pedagogia da deficiência infantil.

No Instituto de Psicologia, aproxima-se de A. N. Leontiev e A. R. Lúria.

Casa-se com Rosa Smerrova.

No final do ano muda-se com sua mulher e vai morar temporariamente no porão do

Instituto de Psicologia Experimental de Moscou (antes conhecido como Instituto de

Psicologia).

Morre Lênin

.

1925

A família de Vigotski (pais e irmãos) mudam-se de Gomel para Moscou durante o

verão (junho, julho e agosto) e reside, por algum tempo, no mesmo quarto.

Escreve “Psicologia da Arte”.

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351

Inicia a organização do Laboratório de Psicologia para Crianças deficientes.

Dá aulas na Primeira Universidade de Moscou (na Faculdade de Ciências Sociais,

orienta a atividade prática na Psicologia);

Escreve artigo Consciência como problema da psicologia do comportamento para o

livro Psicologia e Marxismo.

Aprovado, como representante da URSS, para participar da Conferência Internacional

sobre a Instrução de pessoas surdas-mudas em Londres.

Eleito, juntamente com P. P. Blonski e K. N. Kornilov, como membro da Comissão

Metodológica de Psicologia do Conselho Científico Estatal.

De novembro 1925 até maio de 1926 fica internado numa clínica para tratar dos seus

problemas de saúde.

Escreve Consciência como problema da Psicologia do comportamento.

Defende a dissertação Psicologia da Arte e recebe o título de professor independente.

Escreve o prefácio do livro de Sigmund Freud Além do princípio do prazer.

Dialética da natureza de F. Engels é publicada pela primeira vez na Rússia.

Nasce sua primeira filha em Gomel: Gita.

1926

Foi publicado o livro Psicologia Pedagógica.

Escreve o prefácio do livro de Thorndike Os princípios da instrução com base na

psicologia.

Publica anotações sobre o artigo de Koffka.

Em junho, é declarado inválido devido seus graves problemas de saúde.

1927

Termina o texto O sentido histórico da crise na psicologia, O defeito e a

supercompensação e escreve o prefácio do livro de Leontiev, Desenvolvimento da

Memória que foi publicado somente em 1931.

1928

Escreve sobre a questão da dinâmica do caráter infantil, O método instrumental na

pedologia, O problema do desenvolvimento cultural da criança, Pedologia da idade

escolar.

Estuda A. A. Potiebnia e sua conhecida obra Psicologia e Linguagem.

Apoia o grupo que defendia a reactologia.

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352

1929

Escreve o artigo As raízes genéticas do pensamento e da fala.

Na primavera fez uma conferência na Universidade Estatal na Ásia Média em

Tashkent

1930

Logo no início do ano, é oferecida a Vigotski, Lúria, Leontiev e Lebedinski a

organização do Departamento de Psicologia da Academia de Psiconeurologia da

Ucrânia, em Kharkov.

Escreve vários artigos sobre Pedologia do Adolescente.

Passa por sérias dificuldades financeiras em razão do fechamento e reestruturação de

vários institutos de pesquisa. Por falta de recursos as publicações não são efetivadas.

Nasce sua segunda filha em Moscou: Asya.

1931

Escreve O coletivo com o fator de desenvolvimento da criança anormal.

Em novembro, é nomeado para o cargo de diretor da cátedra de psicologia genética

do Instituto Estatal de formação de quadros do Comissariado do Povo para Saúde da

Ucrânia.

Bananiev inaugura a era na Psicologia soviética de “combinação” dos trabalhos da

Psicologia com a ideologia do regime totalitário.

Junto com Lúria iniciam um estudo sem precedentes sobre as mudanças sociais

rápidas ocorridas na sociedade tradicional da Ásia Central durante sua modernização

após a revolução bolchevique e como estas mudanças afetaram o desenvolvimento

cognitivo de sua população. É realizada uma expedição, mas sem a presença de

Vigotski.

Escreve A história do desenvolvimento das funções psíquicas superiores e O

instrumento e o signo no desenvolvimento da criança.

Ingressa na faculdade de medicina do Instituto de Psiconeurologia de Kharkov.

Em novembro recebe a primeira visita de Kurt Lewin como consequência de muitas

trocas de correspondências.

1932

Publicação do artigo Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia.

Segunda expedição de pesquisa para Ásia Central no verão de 1932 com a presença

de Koffka. Esta pesquisa supervisionada por Vigotski e Lúria começa a receber duras

críticas do poder central e o resultado da pesquisa só veio ao conhecimento em 1970.

Page 353: Dílson Wrasse Análise reconstitutiva do sentido da ...lson Wrasse.pdf · Nada do que não era antes quando não somos mutantes E foste um difícil começo Afasto o que não conheço

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1933

Encontro com Kurt Lewin.

Em 26 de novembro é contratado oficialmente como chefe do Departamento de

Psicologia Clínica de Moscou do recém-reorganizado Instituto de Medicina

Experimental da URSS. É a partir deste momento que retoma com todo ímpeto uma

série de publicações.

Em dezembro, apresenta o relatório Sobre a questão da dinâmica do desenvolvimento

mental da criança normal e da criança anormal.

1934

No início do ano inicia um projeto promissor para elaboração de uma coleção de

Desenvolvimento Mental das crianças no processo educativo.

Os últimos trabalhos de Vigotski são: Os problemas de desenvolvimento e de

desintegração das funções psíquicas superiores e Psicologia e estudo sobre a

localização das funções psíquicas.

Em maio é autorizado ao repouso restrito em sua residência.

Trabalha no Pensamento e Linguagem até poucos dias antes de morrer.

Falece 11 de junho no sanatório. Sepultado em 13 de junho de 1934 no cemitério

Novodevich'e, um cemitério nacional de prestígio para os políticos, líderes militares,

artistas e cientistas. Além disso, o seu cérebro foi armazenado no "Panteão dos

Cérebros" do Instituto de Pesquisas Cerebrais de Moscou.