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    DIVERSIDADE DOS CARISMAS

    Estudo sobre a mediunidade, dividido em 3 partes: problemas do mdium

    em potencial, animismo (manifestaes do esprito do prprio sensitivo) e

    mediunidade propriamente dita. A abordagem integra teoria e prtica. O

    autor relata um estudo de caso e confronta casos cientificamente

    estudados, citando autores espritas e inclusive no-espritas com o

    objetivo de enriquecer, ilustrar e formular suas hipteses

    Biografia do autor:

    http://www.espiritnet.com.br/Biografias/biohermi.htm

    Obras publicadas:

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Herm%C3%ADnio_Correa_de_Miranda

    (este link tem que ser copiado e colado na barra de endereos)

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    Sumrio INTRODUO .................................................................................................................................... 5

    CAPTULO I - O MDIUM: ECLOSO, DESENVOLVIMENTO E EXERCCIO DE SUAS FACULDADES

    ............................................................................................................................................................ 9

    CAPTULO 2 - MINIBIOGRAFIA ....................................................................................................... 23

    CAPTULO 3- ANIMISMO ................................................................................................................ 88

    CAPTULO 4 - INTERAO ANIMISMO/MEDIUNIDADE .............................................................. 103

    CAPTULO 5 - DESDOBRAMENTO ................................................................................................. 150

    CAPTULO VI - DESDOBRAMENTO COMO PRECONDIO DO TRABALHO MEDINICO ....... 180

    CAPTULO 7 CONDOMINIO ESPIRITUAL .................................................................................... 202

    CAPTULO 8- CLARIVIDNCIA ..................................................................................................... 214

    CAPTULO 9- PSICOMETRIA .......................................................................................................... 241

    CAPTULO 10 DJA VU ............................................................................................................... 267

    CAPTULO 11 - MAU-OLHADO ..................................................................................................... 278

    CAPTULO 12- O FENMENO DE EFEITO FSICO ......................................................................... 289

    CAPTULO 13- MEDIUNIDADE ....................................................................................................... 301

    CAPTULO 14 - AURA .................................................................................................................... 335

    CAPTULO 15 - PSICOFONIA ........................................................................................................ 345

    CAPTULO 16 - SEMIOLOGIA DA COMUNICAO ................................................................... 380

    CAPTULO XVII - CANAIS DE COMUNICAO: CONTRIBUIO DOS AMIGOS ESPIRITUAIS.426

    CAPTULO 18- DESENVOLVIMENTO ............................................................................................. 440

    CAPTULO 19- O MDIUM EM AO .......................................................................................... 456

    CAPTULO 20 - ATIVIDADES PARALELAS E COMPLEMENTARES ................................................. 478

    CAPTULO 21- OS CARISMAS E A CARIDADE ............................................................................. 493

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    INTRODUO

    Trs opes bsicas se colocam diante daquele que se

    prope a escrever um estudo como este acerca da mediunidade:

    1) a abordagem predominantemente terica, como a

    adotada por Allan Kardec em O livro dos mdiuns;

    2) o enfoque experimental caracterizado como depoimento

    pessoal, do qual dispomos de bons exemplos em Recordaes da

    mediunidade e Devassando o invisvel, de Ivonne A. Pereira; e

    3) o tratamento integrado de ambos os aspectos, acoplando

    teoria e prtica, segundo podemos observar em "Recherches sur Ia

    mediumnit e Les apparitions materialises des vivants et des morts", de

    Gabriel Delanne, ou, mais recentemente, nas obras da srie Andr luiz que

    tratam especificamente do problema, como Mecanismos da

    mediunidade e Nos domnios da mediunidade.

    Cada uma dessas opes tem seus mritos e objetivos

    prprios. Para este livro adotamos a terceira delas: um tipo de modelo que

    se revelara satisfatrio em Dilogo com as sombras e em A memria e o

    tempo, onde aspectos tericos ficaram embutidos em narrativas com

    caractersticas de depoimento pessoal.

    Com esse plano em mente, procuramos montar este trabalho

    a partir de trs mdulos distintos, ainda que inseparveis em suas

    implicaes e na interao de suas motivaes.

    1 - O primeiro deles, destinado a documentar problemas

    bsicos que o mdium em potencial, ou j em plena atividade, costuma

    enfrentar;

    2 - o segundo, para estudar mais atentamente aspectos

    particulares do animismo; e, finalmente,

    3 - o terceiro, no qual tomamos para anlise a mediunidade

    em si mesma.

    A distribuio dos fenmenos psquicos em duas categorias -

    animismo e mediunidade - de mera convenincia da metodologia

    expositiva, que no lhe tira a condio de classificao arbitrria. Isso

    porque no h entre as duas categorias absoluta nitidez de fronteiras.

    Ainda que seja, teoricamente, mais freqente o fenmeno anmico puro,

    isto , sem interferncias de entidades desencarnadas, suspeitamos,

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    inferimos ou sabemos que, em larga faixa percentual de eventos, ocorre

    ou pode ocorrer participao de seres desencarnados.

    J o fenmeno medinico no acontece sem o componente

    anmico, que da essncia do processo. Para suas manifestaes, os

    espritos precisam de certa espcie e quantidade de energia de que

    somente o ser encarnado dispe. A comunicao entre as duas faces da

    vida, ou seja, entre espritos (desencarnados) e seres humanos

    (encarnados), transita por uma ponte psquica que tem de apoiar uma

    cabeceira na margem de l do abismo e a outra no lado de c, onde

    vivemos ns.

    Insistimos, pois, em declarar que a classificao simples

    convenincia metodolgica e no deve ser tomada com rigidez

    exclusivista.

    Quanto ao mais, o enfoque fundamental do livro consiste em

    estudar as faculdades do esprito humano em ao, tanto quanto

    possvel, da tica do prprio sensitivo, de vez que ele o laboratrio vivo

    no qual se processam os fenmenos sob exame.

    Estaria equivocada, no obstante, a concluso de que o livro

    se destina somente aos mdiuns em geral, aos dirigentes e aos que militam

    em centros e grupos espritas como participantes de trabalhos medinicos.

    Ao contrrio, o tema de vital importncia para um espectro de pessoas

    muito mais amplo do que poderamos suspeitar primeira vista. que os

    fenmenos da natureza anmica e medinica no ocorrem apenas a

    horas certas, com determinadas pessoas, nos crculos fechados do

    espiritismo prtico, mas a todo momento, por toda parte, com todo

    mundo. No estarei exagerando ao dizer que acontecem com maior

    freqncia na rua, no lar, na escola, no local de trabalho, do que

    propriamente na intimidade dos ncleos espritas. A mediunidade no

    propriedade do espiritismo e, sim, como fenmeno natural, um dos

    mltiplos aspectos da prpria Vida.

    Poucos estudos, em verdade, oferecem to denso contedo

    humano como o da mediunidade. Quer estejamos de um lado ou de

    outro da vida, como encarnados ou desencarnados, ela sempre o

    instrumento de intercmbio instalado estrategicamente entre os dois

    planos da existncia.

    Alto preo em angstias, decepes e desequilbrios

    emocionais e mentais, perfeitamente evitveis, pago a cada instante

    em conseqncia da desoladora ignorncia em torno da problemtica

    da mediunidade fora do contexto doutrinrio do espiritismo. E no poucos

    desajustes srios ocorrem no prprio meio esprita, no qual o

    conhecimento inadequado, insuficiente ou distorcido acaba resultando

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    em problema mais grave do que a ignorncia que busca informar-se de

    maneira correta.

    Seja como for, porm, no h como negar que o maior

    interessado no estudo da mediunidade o prprio mdium. Da o esforo

    em colocar-me, tanto quanto possvel, junto dele. Pretendi ver com os

    olhos dele, sentir com sua sensibilidade, aprender com os fenmenos que

    lhe ocorrem, descobrir com ele os caminhos percorridos e a percorrer. ..

    a nica maneira vlida, no meu entender, de preparar-se algum para

    ajudar, com observaes prticas e tericas, Outros mdiuns em

    potencial na difcil escalada, visando ao exerccio adequado de suas

    faculdades.

    A mediunidade no doena, nem indcio de desajuste

    mental ou emocional - uma afinao especial de sensibilidade. Como

    na msica, somente funciona de maneira satisfatria o instrumento que

    no apresenta rachaduras, cordas arrebentadas, desafinadas ou

    qualidade duvidosa.

    No nada fcil pessoa que descobre em si os primeiros

    sinais de mediunidade encontrar acesso ao territrio onde suas faculdades

    possam ser entendidas, identificadas, treinadas e, finalmente, praticadas

    com proveito para todos. O mdium precisa de recolhimento para o

    exerccio de suas atividades, mas no deve ser um trabalhador solitrio.

    Ele necessita de todo um sistema de apoio logstico, de uma estrutura que

    lhe proporcione as condies mnimas que seu trabalho exige.

    Pea decisiva nesse contexto o grupo incumbido de

    trabalhar mais diretamente junto dele. Exige-se dessas pessoas no

    apenas um bom preparo doutrinrio e experincia, como outros atributos,

    de maturidade e sensibilidade, que lhes permitam posicionar-se como

    amigos e companheiros de trabalho e no como chefes, mestres, gurus ou

    proprietrios do mdium. E que no se deixem fascinar pela eventual

    espetaculosidade dos fenmenos ou pelo teor de 'revelaes' de

    autenticidade duvidosa, ao gosto de alguns companheiros

    desencarnados. Isto quer dizer que no apenas o instrumento tem de estar

    afinado e em bom estado, mas harmonicamente integrado na orquestra

    em que atua.

    Sou grato mdium cujo nome escondi sob o pseudnimo de

    Regina, pelo rico material que generosamente colocou minha

    disposio, e pela sua insistncia comigo em escrever mais este trabalho

    que, pensava eu, no estaria na minha programao (Estava!). Sem o

    toque pessoal que suas vivncias emprestaram ao nosso estudo, o livro

    teria recado facilmente na aridez da teorizao especulativa.

    Tal gratido estende-se aos inmeros autores consultados no

    processo de concepo e elaborao deste trabalho, a partir de O livro

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    dos mdiuns, de Allan Kardec, generosa e fecunda matriz de tudo quanto

    se tem feito no estudo criterioso das complexidades do tema. Constam da

    bibliografia aqueles que mais contriburam para reduzir espaos na minha

    ignorncia, iluminando e ampliando faixas no territrio explorado.

    Devo agradecer tambm aos autores dos quais me senti

    impelido a discordar, nesse ou naquele aspecto. Eles costumam ter

    importante contribuio a oferecer, de vez que at mesmo a divergncia

    pode ser criativa, no sentido de que tem algo a ensinar-nos quanto

    melhor definio de conceitos que, de outra forma, talvez

    permanecessem vagos ou ignorados por ns.

    Cabe, finalmente, uma palavra de gratido aos amigos

    espirituais que, no seu modo discreto, silencioso, amoroso e competente,

    sempre acompanham todo o difcil processo de elaborao dos meus

    (meus?) escritos, desde a germinao da idia original at o

    aparecimento do livro nos catlogos, vitrines, estantes e, finalmente, em

    suas mos, leitor, pois este o destino deles.

    Em Dilogo com as sombras, examinamos o problema da

    doutrinao; em A memria e o tempo, abordamos o da regresso de

    memria; em Diversidade dos carismas, o tema amediunidade. No

    estarei recorrendo falsa modstia se confessar, humildemente, que

    somente percebi que havia escrito uma trilogia aps contempl-la pronta,

    na perspectiva que a objetividade ento me concedeu.

    Se as observaes e experincias contidas nestas pginas

    forem de utilidade a algum, sentir-me-ei encorajado a me apresentar,

    um dia, aos meus queridos mentores como aquele obreiro - de que falou

    Paulo a Timteo (II Timteo 2,15) - que no "tem de que se envergonhar"

    do trabalho realizado. O leitor prestou ateno? O severo apstolo dos

    gentios entende que j estaremos bem se nossa modesta obra, seja ela

    qual for, no nos causar vexames. Quanto ao orgulho, nem pensar... Afinal

    de contas, orgulhar-se de qu?

    Hermnio C. Miranda

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    CAPTULO I - O MDIUM: ECLOSO, DESENVOLVIMENTO E EXERCCIO DE

    SUAS FACULDADES

    1. LONGA E OBSTINADA VIGLIA

    No dava mais para esperar. Sucediam-se as perplexidades e

    a moa estava ficando confusa no meio de todos aqueles estranhos

    fenmenos que ocorriam com ela e sua volta. Sabia, agora, que o

    espiritismo tinha um nome adequado para isso: mediunidade. Ela era,

    portanto, uma pessoa dotada de faculdades medinicas. Vira isso em um

    livro bsico e elementar que lera de um s flego. E da? Que caminho

    escolher entre as diversas alternativas? A quem recorrer? Com quem se

    esclarecer e se orientar? Como aprender a se utilizar corretamente

    daquele potencial que no conseguia entender ou controlar?

    Uma crnica de jornal, que lera ainda h pouco, dizia

    maravilhas de um grupo-padro medinico que funcionava sob

    responsabilidade de respeitvel instituio. Estava ali a sua oportunidade,

    pensou. Recortou a crnica, disposta a falar pessoalmente com o seu

    autor. A providncia inicial, portanto, consistia em localiz-lo, ligou para a

    instituio, to animada pela esperana quanto ingnua e inexperiente. A

    pergunta foi direta e objetiva: o que era necessrio fazer para qualificar-se

    como freqentadora do grupo? A resposta foi educada, mas firme: o

    grupo era fechado e seleto. No admitia ningum, a no ser por escolha

    e convite, mediante critrios inquestionveis. Alm disso, informou a voz ao

    telefone, o grupo era interditado s mulheres. S homens poderiam

    freqent-lo.

    No pouco que lera sobre a doutrina esprita, nada encontrara

    que distinguisse o trabalho dos que se encarnam como homens daqueles

    que optam pela encarnao feminina. Alis, o termo esprita, escolhido

    para identificar o adepto do espiritismo, a partir de termo semelhante na

    lngua francesa (spirite), o que se chama um adjetivo de duplo gnero,

    ou seja, tanto serve para emprego feminino quanto masculino. Diz-se que

    uma senhora esprita da mesma forma que um homem esprita.

    O substantivo esprito, por sua vez, no tem feminino. Seja

    homem ou mulher, o termo que identifica o ser o mesmo - esprito. No

    existe esprito para seres masculinos e esprita para seres femininos, mesmo

    porque, segundo consta nas obras bsicas, o esprito no tem sexo.

    Entendiam os dirigentes do grupo, ou a tradio ali adotada,

    no se sabe por que razes, que a bisonha postulante era uma esprita

    (feminino) e no devia freqentar reunies abertas apenas aos espritas

    masculinos.

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    Enfim, no lhe cabia discutir o critrio. E nem adiantaria faz-

    lo. Deviam ter suas razes para assim proceder. O outro obstculo que

    interditava sua admisso no grupo era compreensvel, embora, em sua

    inexperincia, ela no o tenha considerado impeditivo. O trabalho

    medinico srio exige, de fato, ambientes reservados, severos padres de

    disciplina, afinidades entre seus diversos membros, assiduidade e inmeros

    outros componentes, como tivemos oportunidade de estudar em Dilogo

    com as sombras, no qual o assunto tratado de maneira especfica.

    Em suma: a moa no podia ser admitida no grupo-padro

    por duas indiscutveis razes. Restava-lhe apelar para a ltima alternativa:

    como falar com o autor da crnica que tantas esperanas suscitara em

    seu esprito?

    Isto era mais fcil. ( Ou no era? ) Ele costumava freqentar as

    reunies de carter administrativo, aos sbados. A que horas? Tinha por

    hbito chegar mais cedo, bem antes da hora marcada para a reunio,

    programada para o incio da tarde.

    Eis porque naquele sbado, pela manh, a moa partiu do

    bairro distante rumo instituio. Tinha de falar pessoalmente com aquela

    pessoa que encarnava, agora, suas esperanas de encontrar um rumo

    que lhe permitisse ordenar o verdadeiro emaranhado de dificuldades em

    que se metera em conseqncia de toda a fenomenologia que a

    inquietava e comeava a assust-la.

    Chegou s dez horas da manh, subiu as escadas,

    apresentou-se, fez perguntas, exps suas intenes e pretenses. E ficou

    ali, sentada, aguardando o cronista salvador que, infelizmente, no

    compareceu reunio do dia.

    Voltou a fazer perguntas. Queria saber, agora, a quem

    deveria dirigir-se para obter as informaes de que tanto necessitava para

    dar um rumo certo sua vida. Sugeriram-lhe que falasse com o dirigente

    da instituio.

    Nova espera.

    A essa altura eram duas horas da tarde.

    Finalmente chegou o dirigente, acompanhado de um grupo.

    Ela se levantou e pediu ao informante de sempre para indicar a pessoa, e

    abordou-a. Nova decepo. Lamentavelmente, disse ele, no poderia

    atend-la no momento, pois j estava atrasado para a reunio.

    Concordaria em falar com ela depois de terminada a reunio? Isto sim,

    era possvel, arrematou ele, subindo as escadas que levavam,

    provavelmente, sala de reunies.

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    Havia agora duas necessidades pessoais a atender: a fome

    espiritual e a material. Uma podia esperar um pouco mais; a outra, no. A

    moa desceu, foi rua, fez um lanche e voltou sua viglia, disposta a

    no arredar p dali sem ter falado com algum acerca de seus anseios

    espirituais.

    A reunio s terminou s seis horas. O dirigente no escondeu

    sua surpresa ao encontrar a moa ainda ali, esperando pacientemente.

    Imaginara, portanto, que sua atitude inicial a levaria ao

    desencorajamento. Levou -a para uma sala, onde sentaram -se, e ela

    exps suas aspiraes. Ele escreveu uma pequena apresentao dirigida

    ao presidente de um centro esprita de sua confiana.

    A essa altura, j anoitecia e a moa precisava voltar para

    casa.

    2. PRIMEIROS PASSOS

    No alcanara, certo, nenhum dos seus propsitos iniciais,

    mas, ao cabo de um dia inteiro de expectativa e obstinao, conseguira,

    pelo menos, sair dali com um tmido raio de esperana materializado na

    carta que, como chave mgica, deveria abrir uma porta e pela qual ela

    esperava penetrar naquele universo diferente e um tanto secreto, onde

    suas faculdades seriam, afinal, cultivadas e postas a servio de uma causa

    nobre.

    Na segunda-feira seguinte, noitinha, partiu em busca do

    endereo indicado. Entregou a carta ao seu destinatrio, que a leu e

    mandou-a sentar-se e assistir aos trabalhos da noite, que alis no eram

    de natureza medinica, mas uma palestra a ser proferida por um homem

    que ela conhecia apenas de nome.

    Muitos problemas teria ali, na difcil fase de adaptao que se

    seguiria, mas isto ainda era futuro, impenetrvel at mesmo s suas

    faculdades premonitrias.

    Aquela noite, contudo, ficou marca da para sempre em sua

    memria por um verdadeiro sismo emocional, que a colocaria em estado

    de intensa agitao ntima e lhe deixaria uma seqela de muitos conflitos.

    que, no orador da noite, ela identificou a figura central de suas vidncias

    e sonhos, durante os quais cenas emocionantes eram revividas com toda

    a intensa carga emocional que nelas se depositara. Era ele o homem

    amado do passado, companheiro de muitas vidas, de felicidade,

    algumas, de frustraes e de tormentos, outras.

    Naquela altura, porm, estava de partida para os Estados

    Unidos, para onde seguiu, pouco depois, em viagem de estudos. Somente

    ao retornar, meses depois, voltou a procurar o centro que lhe fora

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    indicado sob circunstncias to complexas para ser orientada no trabalho

    que esperava realizar.

    Longe de ter chegado ao termo das suas dificuldades - disto

    ela saberia mais tarde -, elas apenas comeavam. Se lhe fora exigida uma

    cota to elevada de tenacidade e deciso apenas para que lhe

    indicassem um caminho, seria agora necessrio acrescentar pacincia e

    at humilde resignao sua obstinao em servir da maneira adequada

    causa que desejava adotar.

    certo que o centro, ao qual fora encaminhada, dispunha de

    boa estrutura administrativa, desempenhava importantes tarefas de

    natureza social, doutrinria e medinica. E como era de se esperar,

    desenvolvera severos padres de disciplina e de metodologia para cada

    setor de atividade, o que perfeitamente compreensvel e at desejvel.

    Como realizar um trabalho srio numa comunidade movimentada e bem

    freqentada sem regimentos adequados e normas apropriadas de

    procedimento? Cada um tem de saber o que deve fazer e precisa dar

    conta da parte que lhe toca no conjunto.

    O problema que a tarefa medinica tem peculiaridades

    que no se deixam enquadrar na rigidez de certos esquemas inibidores.

    Claro que seu exerccio precisa obedecer a uma disciplina operacional

    suficientemente severa para coibir desvios e ficar ao abrigo de influncias

    negativas prprias do mdium ou provocadas por terceiros. Mesmo nos

    limites de tal rigidez, necessrio deixar algum espao para que cada

    mdium possa movimentar seus recursos e faculdades pessoais, bem

    como expressar, de maneira adequada, a personalidade do eventual

    comunicante desencarnado.

    Sob esse aspecto, quase se poderia dizer que no h

    mediunidade e sim mdiuns.

    A mediunidade a expresso da sensibilidade do mdium,

    seu instrumento de trabalho, e, como faculdade humana, guarda

    caractersticas pessoais, como o modo de caminhar, o tom da voz, a

    impresso digital, o feitio e ordenao da letra, o temperamento de cada

    um. Precisa ser disciplinada sem ser deformada, respeitando-se o contexto

    da personalidade humana no qual ela ocorre. desastroso tentar impor

    condies inaceitveis s suas manifestaes.

    Esse equvoco de abordagem ocorre com grande parte dos

    cientistas que em suas pesquisas procuram impor fenomenologia

    psquica em geral, e mediunidade em particular, padres e

    metodologia de trabalho totalmente inadequados, que na maioria das

    vezes frustram o processo de observao e produzem resultados

    insatisfatrios. Quem se dispe a trabalhar com fenmenos produzidos

    pelo psiquismo humano deve se preparar para respeitar as regras do jogo,

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    decidindo, antes, que tipo de metodologia aplicvel ao estudo que

    pretende realizar. Se no existe, precisar cri-la; e antes de experimentar

    os fenmenos em si, testar a prpria metodologia desenvolvida para a

    pesquisa. Isso porque se torna imperioso deixar espao e condies para

    que o fenmeno se produza to espontaneamente quanto possvel, ainda

    que sob condies de controle observacional. O cientista, tanto quanto o

    dirigente de trabalhos medinicos, deve ser um bom observador, dotado

    de esprito crtico alertado, e ter o bom senso de interferir o mnimo possvel

    - apenas o suficiente para ordenar a sequncia de tarefas e coordenar as

    atividades que se desenrolam sob suas vistas. Deve, portanto, ser um

    observador participante, certo, mas nunca inibidor, pois ele est ali

    precisamente para fazer com que as coisas aconteam e no para

    impedi-las ou for-las a ocorrerem da maneira exata pela qual ele

    entende que devam ocorrer.

    No muito diferente desta a maneira de pensar de Andr

    luiz, expressa em Evoluo em dois Mundos, (Xavier, Francisco C./luiz,

    Andr 1973) onde se l:

    Eminentes fisiologistas e pesquisadores de laboratrio

    procuraram fixar mediunidades e mdiuns a nomenclaturas e conceitos

    de cincia metapsquica; entretanto o problema, como todos os

    problemas humanos, mais profundo, porque a mediunidade jaz adstrita

    prpria vida, no existindo, por isso mesmo, dois mdiuns iguais, no

    obstante a semelhana no campo das impresses ..., logo a seguir,

    adverte Andr luiz que at mesmo 'espiritualistas distintos', que se julgam

    autorizados a apelar para os riscos da mediunidade - a fim de impedir-lhe

    a ecloso e, por conseguinte, os servios que pode prestar - esto sendo

    influenciados por via medinica, traduzindo "interpretaes particulares de

    inteligncias desencarnadas que os assistem". Ou seja, esto atuando

    como inconscientes joguetes de vontades estranhas sua.

    Os mdiuns so sensveis no apenas aos seres

    desencarnados, mas tambm s presses e sentimentos, mesmo no-

    expressos, das pessoas encarnadas que os cercam durante o trabalho.

    Harry Boddington (The University of spiritualism), ao qual estaremos

    recorrendo com alguma freqncia neste estudo, acha at que os

    mdiuns so mais sensveis s presses dos encarnados do que s dos

    desencarnados.

    "Extrema elasticidade" - escreve o competente autor ingls -

    "deve ser adotada na aplicao de todas as teorias relativas aos

    fenmenos psquicos."

    Isto no quer dizer, obviamente, que o mdium possa e deva

    fazer ou permitir que se faa com ele tudo o que vier sua cabea ou

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    do manifestante, mas preciso garantir condio suficiente para que o

    fenmeno ocorra dentro da dinmica que lhe prpria.

    Esse princpio vlido para qualquer grupamento de pessoas,

    at mesmo quando reunidas para finalidades meramente sociais ou de

    trabalho material, estudo, debates, ou o que seja. Pessoas agressivas,

    amarguradas, mal-humoradas, pouco educadas causam transtornos em

    qualquer reunio, o que no ocorre quando os componentes de um

    grupo se harmonizam, respeitam-se mutuamente e debatem os problemas

    com serenidade e bom senso, ainda que divergindo neste ou naquele

    aspecto.

    3 . PASSIVIDADE

    No caso do centro, no qual a moa tentava integrar-se para

    participar das tarefas coletivas ali desenvolvidas, havia um rgido padro

    de comportamento medinico. Nada da elasticidade recomendada por

    Boddington e que constitui um dos prprios ingredientes do fenmeno

    medinico em si, de vez que cada mdium tem suas peculiaridades,

    precisamente por ser uma personalidade autnoma. Sem nenhuma

    experincia de trabalho em conjunto, a nossa jovem entrou assim para um

    grupo no qual predominavam muitas 'regras' inibidoras.

    Nas sesses ditas de desobsesso, exigia o padro ali adotado

    que ela 'desse passividade' exatamente como os demais mdiuns

    treinados pela casa: imvel, olhos fechados, mos juntas e abandonadas

    tranqilamente sobre a mesa. Nenhum gesto era permitido durante a

    manifestao, nenhuma palavra em tom mais alto, nenhuma forma de

    movimentao do corpo, dos membros ou da cabea.

    Acontece que a mediunidade da nossa jovem tinha seus

    mtodos operacionais prprios, o que vale dizer: eram diferentes dos que

    ali se praticavam. Embora disciplinada, sem manifestaes ruidosas ou

    palavras descontroladas, ela gesticulava moderadamente e mantinha os

    olhos abertos, dando enfim expresso e naturalidade s suas

    manifestaes.

    Agia acertadamente a meu ver, permitindo que o esprito

    manifestante pudesse expressar-se convenientemente, dizer enfim ao que

    veio e expor sua situao a fim de que pudesse ser atendido ou, pelo

    menos, compreendido nos seus propsitos. Se ele vinha indignado por

    alguma razo - e isto quase que a norma em trabalhos dessa natureza -,

    como obrig-lo a falar serenamente, com a voz educada, em tom frio e

    controlado? Somos ns, encarnados, capazes de tal proeza? No

    elevamos a voz e mudamos de tom nos momentos de irritao e

    impacincia? Como exigir procedimento diferente do manifestante e do

    mdium? Afinal de contas, se a manifestao ficar contida na rigidez de

    tais parmetros, acaba inibida e se torna inexpressiva, quando no

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    15

    inautntica, de to deformada. Em tais situaes, como se o mdium

    ficasse na posio de mero assistente de uma cena de exaltao e a

    descrevesse friamente, em voz montona e emocionalmente distante dos

    problemas que lhe so trazidos. preciso considerar, no entanto, que ali

    est uma pessoa angustiada por presses ntimas das mais graves e

    aflitivas, muitas vezes em real estado de desespero, que vem em busca de

    socorro para seus problemas, ainda que no o admita conscientemente.

    No uma vaga e despersonalizada entidade, uma simples abstrao,

    mas um esprito que se manifesta. um ser humano, vivo, sofrido,

    desarvorado, que est precisando falar com algum que o oua, que

    sinta seu problema pessoal, que o ajude a sair da crise em que mergulhou,

    que partilhe com ele suas dores, que lhe proporcione, por alguns

    momentos, o abrigo de um corao fraterno. O mdium frio e com todos

    os seus freios aplicados manifestao no consegue transmitir a

    angstia que vai naquela alma. um bloco de gelo atravs do qual no

    circulam as emoes do manifestante, a pungncia de seu apelo, a nsia

    que ele experimenta em busca de amor e compreenso. Nenhum

    problema maior, naquele instante, para o manifestante do que o seu,

    nenhuma dor mais aguda do que a sua. Dizamos h pouco que a

    mdium permitia que o manifestante se expressasse a seu modo, mas, a

    rigor, ela simplesmente no sabia trabalhar de outra maneira. A entidade

    parecia assumir seus comandos mentais e utilizar-se, com naturalidade, de

    seu corpo fsico. Se havia alguma ao inibidora ou controladora da parte

    da mdium, era em nvel de conscincia extrafsica. E, certamente, era

    isso que se dava, pois nunca houve qualquer distrbio ou excesso nas

    manifestaes que ocorriam por sua intermediao.

    No entanto, o dirigente exigia que o mdium transmitisse tudo

    na rgida postura de um rob, que leva a palavra de um lado para outro,

    mas no admite que se filtrem, tambm, as emoes que elas contm e

    que as impulsionam.

    Quando isso ocorre, o que chega ao dirigente ou doutrinador

    no aquilo que partiu do manifestante e, sim, a verso pasteurizada e

    impessoal que o mdium lhe transmitiu, como se fosse um mero (e infiel)

    telefone. O esprito nem consegue sentir, no ser que utiliza como

    instrumento, um pouco de empatia, de solidariedade, de fraternidade, de

    emoo participante, de calor humano.

    nisso que resulta a excessiva e to decantada passividade ...

    E para esse tipo de passividade nossa jovem no estava

    preparada. Da os problemas com os mtodos da casa e, obviamente,

    com os dirigentes do trabalho.

    4. IDENTIFICAES INDESEJVEIS

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    16

    Mas havia outros aspectos, como o da psicografia, por

    exemplo. No somente ali, mas em outros grupos que ela iria freqentar

    mais tarde.

    Logo nos primeiros tempos de trabalho no centro, ela

    comeou a receber textos psicografados. Sem imaginar que aquilo

    pudesse criar-lhe alguma dificuldade - a regra no era precisamente a de

    'dar passividade'? -, o esprito encerrava as mensagens com sua

    assinatura, procedimento naturalssimo e rotineiro. O problema que

    surgiam nomes considerados como verdadeiros Tabus, tidos como

    privativos, exclusivos de determinados mdiuns, como se fossem

    propriedades de tais mdiuns. S atravs de determinados medianeiros,

    mensagens de certos espritos eram confiveis e aceitveis.

    Tal procedimento choca-se, alis, com a prtica adotada e

    preconizada pelo codificador, que exatamente nos pontos mais delicados

    e controversos gostava de testar a informao dos espritos com diferentes

    mdiuns. Vemos em O evangelho segundo o espiritismo e em Obras

    pstumas mensagens do prprio mentor do espiritismo, o Esprito de

    Verdade, produzidas por diferentes mdiuns, em locais tambm diversos.

    Ali naquele centro, contudo, era um deus-nos-acuda quando

    o manifestante encerrava sua pgina com certos nomes-tabus, com os

    quais nem a jovem mdium estava familiarizada, como Bezerra de

    Menezes, Auta de Souza e outros. Novata no movimento esprita, ela no

    tinha a menor idia do que representavam tais nomes. Bastava-lhe saber

    que as mensagens estavam corretamente formuladas, do ponto de vista

    doutrinrio, e eram acatadas com agrado pelos seus ouvintes e leitores,

    depois de recebidas nas reunies pblicas. Passavam at pela crtica

    atenta dos dirigentes do grupo, que nada tinham a objetar nelas quanto

    ao contedo ou forma. O nico problema era mesmo o de que ela "no

    podia, como mdium iniciante", receber mensagens assinadas por

    entidades que lhe eram desconhecidas, mas consideradas importantes

    demais para a insignificncia da jovem mdium.

    E isso em nada contribua para torn-la mais confiante. Pelo

    contrrio, ia ficando cada vez mais confusa e insegura, cultivando

    inibies de difcil erradicao que, por pouco, no paralisam sua

    florescente mediunidade. Ante esses inesperados problemas, ela ficava

    sem saber como proceder nas situaes medinicas de que participava.

    Como fazer, por exemplo, para que o esprito no assinasse a

    comunicao?

    5. COMPORTAMENTO PADRONIZADO

    Enquanto isso, agravava-se tambm, a presso do grupo

    sobre suas manifestaes psicofnicas, chamadas de incorporao. Sua

    mediunidade operava por desdobramento - ela se via fora do corpo

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    17

    fsico; o manifestante aproximava-se e assumia seus controles mentais, sem

    tumultos ou excessos. Eram normais as manifestaes, sem gritos, sem

    palavras inconvenientes, sem atitudes de agressividade ou descontrole. A

    entidade conseguia, contudo, expressar adequadamente sua

    personalidade e seus conflitos, modulando a voz segundo suas emoes,

    e gesticulando moderadamente e com naturalidade. O problema, porm,

    que elas no 'aceitavam' prontamente a 'doutrinao' dos dirigentes

    incumbidos de lhes falarem. No se sujeitavam passivamente esperada

    obedincia e concordncia. Elas discordavam, contestavam,

    expressavam suas prprias idias e pontos de vista, bem como a

    intensidade de suas emoes e convices.

    Isso era desastroso para a pobre e aturdida mdium.

    Terminadas as reunies, ela era chamada parte para nova sesso de

    'doutrinao', dessa vez dirigida especificamente mdium. Coisas como

    estas: se o mdium no rouco ou gago, o esprito no pode falar com

    voz rouca ou gaguejar; se o mdium mulher, no se admite que o

    esprito fale com voz grave de homem. E nada de gestos ou

    movimentao do corpo, dos membros ou da cabea. E nada de olhos

    abertos. E no podia ela permitir que o tom de voz se elevasse e que a

    entidade 'respondesse' ao doutrina dor, com sua cota de contestao.

    Mas, senhor, o esprito no estava ali precisamente para ser tratado,

    entendido, compreendido e, se possvel, convencido a mudar de rumo?

    Se ele se comportasse dentro dos padres rgidos da casa, aceitasse

    prontamente os argumentos ou as imposies dos dirigentes, concordasse

    com tudo e se portasse como um cavalheiro ou uma dama de esmerada

    educao, ento que viera fazer ali?

    A moa ia ficando cada vez mais confusa e insegura.

    Perguntava o que fazer para evitar que as coisas ocorressem daquela

    maneira, indesejvel segundo os padres ali vigentes, mas a nica

    'orientao' recebida consistia em dizer que "assim no pode ser", estava

    encerrada a conversa !

    Ademais, a pessoa que lhe fazia tais advertncias e lhe

    transmitia tais 'instrues' tambm funcionava como mdium.

    Obviamente, sua experincia medinica era diferente da dela, pois, como

    vimos, a mediunidade, mesmo dentro da mesma chave classificatria,

    tem seus matizes e peculiaridades individuais. O instrutor, no caso,

    desejava o impraticvel, seno impossvel, ou seja, padronizar todas as

    manifestaes medinicas pela sua, que operava de maneira consciente,

    sem o que costumamos chamar de incorporao. Em outras palavras, ele

    no sentia em toda a sua plenitude, a presena do manifestante e nem se

    entregava a este para que o prprio esprito operasse seus dispositivos

    medinicos, como no caso da moa. No que as manifestaes por seu

    intermdio ficassem automaticamente sob suspeio, mas eram

    diferentes, caractersticas de sua personalidade medinica.

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    18

    6. INSEGURANA

    medida que se elevavam os ndices de presso sobre ela,

    aumentava proporcionalmente sua insegurana. No exerccio da

    psicografia, tentava conscientemente ou inconscientemente bloquear as

    assinaturas, o que parece ter conseguido. Ou as prprias entidades

    resolveram deixar de assinar para no lhe criar dificuldades? O certo

    que as mensagens continuavam a vir, com textos aceitveis,

    doutrinariamente boas, e sempre filtradas no crivo da crtica, como

    convm, alis, mas sem assinaturas comprometedoras.

    Contudo, medida que a mensagem ia chegando ao fim - a

    mdium mantinha-se em estado semiconsciente -, era sempre um

    momento de tenso e expectativa. Ela ficava nervosa, o corao

    acelerado, preocupada, com medo do nome que pudesse ser grafado.

    Nos trabalhos de psicofonia, ia para a mesa medinica

    literalmente aterrada, com receio do que a entidade manifestante

    pudesse dizer ou fazer. Evidentemente que essas emoes, temores e

    angstias criavam um clima psicolgico negativo e inadequado s

    manifestaes, o que contribua para agravar as tenses e a insegurana

    da mdium. Mas, o que fazer? Como mudar a situao para a qual ela

    no via remdios e no recebia instrues precisas de quem estava

    incumbido de orient-la? Pois no procurara integrar-se no movimento

    esprita precisamente para entender o que se passava com ela e como

    canalizar suas faculdades para a tarefa do bem? Ser que estava sendo

    rejeitada pelas estruturas do espiritismo e no admitia essa difcil e

    incompreensvel realidade? Afinal de contas, desde que buscara o

    primeiro contato com o movimento entrara em zona de turbulncia. E

    continuava a voar em agitadas camadas atmosfricas, pondo em risco a

    nave e sua nica tripulante. Ningum vinha dizer-lhe como controlar a

    instrumentao que havia sido colocada sua disposio. Tinha,

    obviamente, uma tarefa ali, mas como lev-la a bom termo se continuava

    como que perdida, voando sem rumo, sem saber o que fazer ou, pelo

    menos, como aterrissar? O teto era baixo, o vo cego e os horizontes

    pareciam impenetrveis e ameaadores nas suas escuras tonalidades.

    Longe de perceber qualquer sada para a luz, ela sentia que

    voava para o centro de uma tormenta maior ainda do que aquela da

    qual estava tentando escapar. que os problemas e dificuldades com os

    dirigentes do grupo agravavam-se com a passagem das semanas. Se

    antes os fenmenos eram incompreensveis, passaram a ser traumticos.

    Ela sentia-se desequilibrada, emocionalmente instvel, temendo a prpria

    mediunidade, o que suscitou nela um mecanismo bloqueador. Criou-se,

    com isso, um crculo vicioso. Quanto maior seu esforo em conter as

    manifestaes em busca do padro medinico predominante, mais as

    coisas se complicavam e mais duvidosa parecia sua mediunidade aos

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    19

    que a policiavam de perto. Entendiam mesmo que suas faculdades

    traziam vcios de origem, de difcil correo quela altura. Ao contrrio da

    maioria dos mdiuns da casa, que ali mesmo haviam seguido um plano

    de 'desenvolvimento' segundo os padres locais, a moa era mdium

    espontneo, que se aproximara do grupo j pronta para o trabalho, com

    algum conhecimento doutrinrio - e continuava a estudar assiduamente a

    doutrina - e com experincia de anos de convivncia com extensa faixa

    de fenmenos. A mediunidade era, a seu ver, uma faculdade natural,

    espontnea, sem artifcios ou temores. Uma funo psicossomtica como

    respirar, ver, falar, metabolizar os alimentos e assim por diante. Desenvolver

    o qu? Modificar onde e por qu? E como? Pois no consistia o exerccio

    da mediunidade em deix-la funcionar, com as precaues necessrias,

    claro, mas permitir a ecloso do fenmeno? A crtica, o exame atento, o

    debate, o aperfeioamento viriam logo aps o trabalho. Esse trabalho

    educativo, no entanto, precisava ser conduzido com serenidade,

    compreenso, sensibilidade e tato. Em qualquer atividade humana a

    crtica desejvel, mas precisa ser inteligente, construtiva, sensata.

    Isso ali no acontecia. Portanto, no houve condio de dar

    continuidade ao trabalho a que ela se propunha. E, novamente, sentiu-se

    ela desamparada e confusa ...

    7 . Novos RUMOS E ESPERANAS

    No se perdera, contudo, a confiana nos seres espirituais,

    que aprendera a respeitar e a considerar como verdadeiros amigos. Se os

    encarnados no estavam conseguindo ajud-la, por que no recorrer aos

    desencarnados?

    Lembrou-se do dr. Bezerra de Menezes, um dos nomes que lhe

    causara inesperadas (e, certamente, involuntrias) dificuldades, quando

    comeou a surgir nas comunicaes que ela psicografava. Seu nome era

    tabu para ela, naquele contexto, mas no o esprito generoso que estava

    ao alcance de sua mente. Decidiu, portanto, 'conversar' com ele na

    intimidade do recolhimennto, como sugeriu o Cristo. Estava precisando de

    socorro, e com urgncia, pois j sua mediunidade ameaava estiolar-se

    completamente, na sufocao das presses que no entendia e no via

    como contornar.

    Enquanto orava e pedia ao dr. Bezerra que lhe mostrasse um

    caminho, surgiu em sua tela mental, num fenmeno de vidncia com o

    qual estava familiarizada, a imagem de uma pessoa qual ela deveria

    procurar para expor seus problemas, pedir orientao e esclarecimento.

    Foi recebida com dignidade, ouvida com ateno e teve

    oportunidade de expor com franqueza seus problemas e dificuldades.

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

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    Saiu desse primeiro encontro mais tranqilizada e com novas

    esperanas, esperanas, que alis, se confirmaram depois, em novos

    contatos para debate e busca de solues. Conseguiu reordenar suas

    idias e emoes, em clima de franqueza, lealdade e respeito.

    No devido tempo, organizou-se um novo e reduzido grupo. Ela

    foi convidada e aceitou o encargo de colocar sua mediunidade a servio

    dessa tarefa que iria prolongar-se por mais de uma dcada de fecundos

    resultados e muitas alegrias.

    Coube a mim, modesto escriba, relatar no apenas a histria

    pessoal dessa moa, nas suas experimentaes com a mediunidade, mas,

    principalmente, aproveitar o arcabouo da histria para fazer os encaixes

    doutrinrios e as observaes que nos parecerem oportunas.

    nosso desejo e esperana que o relato que se segue,

    rigorosamente calcado numa realidade e que assume a responsvel

    postura de um depoimento vivo, possa servir de inspirao e ajuda a

    todos quantos se interessam fenomenologia medinica e anmica.

    Pela sua relevante importncia no processo mesmo da

    utilizao racional e proveitosa da mediunidade, destacamos, de incio, o

    ponto crtico das primeiras tarefas em grupos nem sempre com preparo

    adequado para receber os aspirantes ao nobre trabalho medinico.

    Ao discorrer sobre a crtica ao trabalho medinico, escreve

    Boddington:

    A anlise ( ... ) essencial, mas tem de ser conduzida com

    tato; do contrrio, poderemos sufocar, logo de incio, a prpria faculdade

    que estamos desejosos de examinar. Essa a maior dificuldade. A mais

    leve sugesto de fraude, consciente ou inconsciente, suficiente para

    fazer recuar muitas almas sensveis, na fase inicial do desenvolvimento e,

    at mesmo, liquidar (a faculdade) para sempre. (Boddington, Harry, 1949).

    Encontramos advertncias semelhantes em outros autores

    especializados. Colin Wilson, na obra The psychic detectives, por exemplo,

    citando Hudson, adverte que as faculdades medinicas - ele prefere

    caracteriz-las como "poderes psquicos":

    ... freqentemente evaporam-se, quando confrontadas com o

    ceticismo. A mente subjetiva intensamente sugestionvel da porque a

    mera insinuao de fraude leva -a a uma catstrofe nervosa. (Wilson,

    Colin, 1984).

    8. O MDIUM E O DIRIGENTE

    Que os mdiuns so pessoas de sensibilidade mais aguada ,

    sabemos todos. Ou no seriam mdiuns. E, por isso mesmo, mais sensveis

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    21

    tambm crtica, especialmente quando injusta, grosseira ou mal

    formulada. imperioso, contudo, distinguir entre sensibilidade e melindre.

    O mdium responsvel e interessado em dar o melhor de si mesmo

    tarefa que abraou no apenas aceita a crtica construtiva e leal, como a

    procura, desejoso de aperfeioar seu desempenho medinico. Melindres

    ficam com os que no admitem a menor observao, a no ser o elogio,

    o endeusamento, como se fossem infalveis instrumentos dos mais elevados

    manifestantes. Vai uma diferena muito grande entre a anlise crtica

    construtiva do trabalho realizado e a implicncia, a intolerncia, a

    estreiteza de vistas e at o cime.

    O dirigente equilibrado, sensato, experiente e seguro dos

    aspectos tericos e prticos da mediunidade saber sempre distinguir

    com clareza entre o mdium que est necessitando de reparos e

    pequenas ou grandes correes, daquele que ouve, em atitude de

    aparente humildade, mas no aceita qualquer reparo, por achar-se

    envolvido em uma atmosfera de auto-suficincia e infabilidade que lhe

    ser fatal, mais cedo ou mais tarde.

    extremamente delicada a posio do dirigente responsvel,

    nesse terreno. Tem ele de exercer toda sua ateno e bom senso tanto

    para evitar que se perca ou se iniba um mdium que, a despeito de

    pequenos (ou maiores) equvocos, tem condies de tornar-se eficiente

    trabalhador, e para auxiliar aquele que pode, igualmente, perder-se pela

    vaidade se o dirigente no tiver habilidade suficiente ou conhecimento

    para convenc-lo dos seus equvocos. Convm reconhecer, ainda, que

    h casos realmente 'irrecuperveis' de mdiuns iniciantes, ou mais

    experientes, que se deixam envolver pela perniciosa convico da

    infabilidade. Cabe, a, ao dirigente, admitir humildemente que no tem

    condies de modificar o quadro. No lhe resta alternativa seno a que

    costumam adotar os prprios espritos orientadores, ou seja, a de

    abandonar o mdium assim contaminado pela vaidade aos seus prprios

    recursos. No h como violentar seu livre-arbtrio nem como impedir que

    ele assuma as responsabilidades pelo que fizer de si mesmo e das

    faculdades que tenha recebido como instrumento de trabalho, a servio

    do prximo.

    Seja como for, os primeiros contatos de um mdium iniciante,

    ou no qual a mediunidade acaba de ser 'diagnosticada', so altamente

    crticos, nessa hora que muito se define do futuro. Se for acolhido com a

    necessria compreenso e adequadamente orientado e instrudo, poder

    chegar a ser excelente colaborador na tarefa para a qual,

    evidentemente, veio preparado. Se mal recebido, tratado com

    condescendente superioridade, aspereza, incompreenso e intolerncia,

    ante as peculiaridades de suas faculdades, grande a responsabilidade

    daqueles que no souberam ou no quiseram estender a mo, no

    momento oportuno, ao que vem precisamente para ser ajudado a servir.

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    22

    No caso da moa de que trata este livro, pudemos observar

    claramente que foi custa de impressionante obstinao e humildade

    que ela conseguiu vencer as barreiras iniciais da rejeio. A reao

    normal e esperada, numa pessoa tratada da maneira como ela o foi, seria

    a do desencanto, da decepo, do abandono puro e simples da tarefa,

    o que seria deveras lamentvel no apenas para ela como para todos

    aqueles aos quais ela viria contribuir para que fossem ajudados ao longo

    dos anos em que, afinal, conseguisse exercer, com equilbrio e

    competncia, suas variadas faculdades.

    Isto nos leva a pensar com uma ponta de angstia na

    quantidade de pessoas programadas para o exerccio da mediunidade,

    com responsabilidades e compromissos muito srios nessa rea to crtica,

    que no conseguem vencer as primeiras dificuldades, derrotadas pelo

    desencanto com as pessoas que deveriam estar preparadas para ajud-

    las e encaminh-las ao trabalho to necessrio quanto redentor.

    Isso sem contar os que nem sequer procuram os centros e os

    grupos por inmeras e complexas motivaes pessoais injustificveis:

    temor, preguia, orgulho, ignorncia, indiferena ou vaidade.

    Pelo menos os que buscam o caminho certo, desejosos de

    aprender e servir, que sejam recebidos com dignidade, com pacincia,

    com amor. preciso ouvi-los com ateno, aconselh-los com serenidade

    e competncia, ajud-los fraternalmente.

    nessa fase inicial que se estabelece a diferena entre um

    mdium equilibrado e devotado sua tarefa e aquele que recua,

    desencanta-se, perde-se no emaranhado de suas decepes e nas

    complexidades de fenmenos que no entende, entregando-se ao

    exerccio desordenado de suas faculdades ou sufocando-as no

    nascedouro, com imprevisveis prejuzos para si mesmo e para os outros.

    Vimos, h pouco, no entanto, que este livro um relato de

    uma histria pessoal, cuja estrutura set aproveitada para um estudo

    informal da mediunidade. Precisamos, portanto, comear pelo princpio.

    o que faremos a seguir.

    Hermnio C. Miranda

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    23

    CAPTULO 2 - MINIBIOGRAFIA

    1. INTRODUO

    Antes de prosseguir, cumpre-me informar o leitor de que foi

    necessrio, por bvias razes, preservar certas identificaes que nada

    acrescentariam ao relato, bem como evitar informaes que resultassem

    em constrangimento ou mesmo conflito com as pessoas envolvidas.

    Estamos empenhados na elaborao de uma obra construtiva e nunca

    na inglria tarefa da demolio.

    Decidimos atribuir jovem referida no captulo inicial o nome

    de Regina, pseudnimo que j havia sido por mim utilizado em A memria

    e o tempo. O leitor encontrar nessa obra um relato sumrio de suas

    experincias e de alguns dos fenmenos com ela ocorridos que dizem

    respeito ao aspecto especfico da memria nas suas interaes com o

    tempo. Para facilitar as coisas, faremos aqui um resumo, diramos

    biogrfico, de Regina.

    Ela dotada de uma memria realmente assombrosa, pois se

    recorda com nitidez de seu batismo, com apenas algumas semanas de

    vida na carne. J ali estava seu esprito perfeitamente lcido, consciente

    da cena que se desenrolava sua volta: as pessoas, o ambiente e sua

    participao na mesma. Desagradava -lhe sua incapacidade para

    controlar o frgil e inseguro corpo fsico, com o qual no conseguia ficar

    suficientemente ereta no colo da madrinha.

    Mais desagradvel ainda foi o choque da gua fria,

    derramada sobre sua cabea. O pior, contudo, fora o gosto horrvel do sal

    e a repugnante sensao dos dedos do sacerdote forando a introduo

    da substncia em sua boca. Com seis meses de idade, foi levada a uma

    dessas quermesses paroquiais do interior. Ao passar, no colo da irm, por

    uma barraquinha, viu uma linda bola colorida e desejou t-la. Sem saber

    ainda como formalizar o desejo em palavras, estendeu as mos, tentando

    agarrar a bola. Tudo em vo, pois a irm mais velha no percebeu o

    gesto nem a frustrao da criana.

    A memria ia mais longe e mais fundo ainda, porque, desde a

    primeira infncia, comeou a exibir, em verdadeiros espetculos de video-

    tape, imagens estranhas que s muito mais tarde iria saber tratarem-se de

    ocorrncias de vidas suas anteriores.

    Nascera em extrema pobreza, na zona rural do interior do

    estado do Rio de Janeiro. Fora a ltima dos doze filhos do casal, dos quais

    apenas seis sobreviveram.

    Embora tivesse as alegrias normais da infncia pobre, mas no

    miservel, no se sentia feliz. Muito cedo comeou a viver duas vidas

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    paralelas: uma, na casinha singela, de piso de terra batida e paredes de

    pau a pique; a outra, num mundo to real quanto aquele, em luxuosos e

    amplos ambientes, ricamente decorados e mobiliados, forrados de

    tapetes e revestidos de cortinas imponentes, nas quais predominavam os

    tons vermelhos e ouro, na imponncia do veludo que descia das alturas

    at o assoalho. Em vez das majestosas camas daquele 'outro universo'

    paralelo, ela dormia sobre duas tbuas de madeira apoiadas em rsticos

    cavaletes, com uma esteira por cima - trabalho caseiro de seu pai.

    Outras coisas incompreensveis eram a pele escura e o cabelo

    caractersticos dos mulatos (o pai era branco, alfabetizado; a me, negra

    e analfabeta). E apesar de tudo isso ela sabia, com toda a convico,

    que era branca. Com freqncia, tentava raspar a pele do brao com as

    unhas em busca da cor branca que tinha de estar ali, em algum lugar.

    Quando corria pelos campos, sentia a cabeleira farta, ondulada, macia e

    sedosa, saltando em torno dos ombros. Se a buscava, porm, com as

    mos para acarici-la ou ajeit-la, dava apenas com o cabelo spero,

    curto e rijo. Afinal de contas, o que acontecera aos seus cabelos e sua

    pele? Por que estava ali a esquisita cabeleira que no era,

    definitivamente, a sua? Onde estaria seu bonito e farto cabelo?

    Criada no catolicismo pela me devota, rezava com todo o

    fervor infantil a Nossa Senhora das Graas, pedindo o milagre da

    recuperao de seus belos cabelos longos e da sua pele alva de outrora.

    Adormecia cheia de esperanas, ainda enxugando as ltimas lgrimas.

    Mas tudo em vo! Pela manh, procurava com as mos ansiosas os

    cabelos derramados sobre o travesseiro e no os encontrava ... e a pele

    continuava escura, como sempre, e nada conseguiu clare-la.

    Sobrava-lhe tempo para tais especulaes e vidncias, pois

    ainda no comeara a freqentar a escola.

    Alm do mais, sentia terrvel falta de sua me. Ou seja, tinha

    me, como todo mundo, mas sabia que aquela no era a sua. Sua me

    de verdade era diferente. Essa que ali estava e cuidava dela e que os

    outros diziam ser sua me era boa, por certo, amava-a no seu jeito rude,

    mas era uma estranha. E, alm de tudo, era negra. A me verdadeira era

    branca, carinhosa, beijava-a com freqncia e a pegava no colo. Aquela

    ali no fazia nada disso.

    Por isso tinha inexplicveis angstias, chorava sem motivo

    aparente, sofria de indefinidas saudades, vagas, incompreensveis. Onde

    estaria sua gente: seus pais, seus amigos, a casa rica, a famlia, enfim?

    As dificuldades maiores eram com a me, em quem s

    conseguia ver uma estranha mulher rude e sofrida, negra, a qual no se

    sentia inclinada a amar. Com o pai, relacionava-se melhor; mas tambm

    ele no era de muitos carinhos, embora lhe dedicasse mais ateno que

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    a me. s vezes, a colocava no colo para faz-la adormecer, e ela, por

    sua vez, chegava a fingir-se sonolenta somente para ganhar alguns

    momentos de aconchego. Eram muitas as suas carncias, a nsia de

    afeto, de ateno, de amor ... como se estivesse habituada a outra

    espcie de relacionamento, o que lhe davam ali era muito pouco para

    preencher seu imenso vazio interior. sua maneira, eram pessoas boas e

    dedicadas, nos limites de suas modestas possibilidades e recursos

    emocionais, mas ela no os via como pais e irmos de verdade, no eram

    sua famlia, nem aquela era sua casa.

    Por tudo isso, e mais, pela tendncia introverso, refugiava-

    se na solido e soltava as asas da imaginao. Conversava com invisveis

    personagens de suas vises. Os que assistiam quilo apenas concluam

    que ela estava falando sozinha, coisa no muito rara em crianas de sua

    idade - quatro a seis anos.

    Alis, foi a pelos seis anos que lhe morreu o pai. Diz ela que

    gostava muito dele, e acrescenta significativamente: "Ele era branco."

    Como se a cor tivesse algo a ver com sua preferncia ... sofreu muito com

    a sua inesperada partida. Alm do mais, naquela mesma noite, depois do

    enterro, ela o viu. Ele mostrava-se aflito e lhe dizia que no estava morto e

    que havia sido enterrado vivo. Provavelmente no percebera ainda que

    se encontrava em uma condio diferente e ao presenciar o

    sepultamento do corpo, concluiu que havia sido enterrado com vida. A

    menina ficou muito angustiada, principalmente porque no conseguiu

    convencer ningum a mandar desenterrar o pai, que estaria vivo embaixo

    da terra. Disseram-lhe que era um sonho, apenas um sonho sem p nem

    cabea.

    Seguiu-se um perodo ainda mais difcil em sua curta

    existncia. No s ele provia a maior parte dos recursos materiais de

    sustentao da casa, como era a nica pessoa a ter certa compreenso

    e pacincia com suas fantasias infantis. Inclusive a de Papai Noel! Embora

    risse dela, ela sempre colocou seus humildes sapatinhos no lugar prprio, e

    era certo encontrar neles algum presentinho singelo, na manh do natal.

    Nunca soube, contudo, que fim levara seu brinquedo

    preferido: um ursinho de pelcia marrom, com olhos de contas vermelhas.

    Por certo, ficara perdido em alguma esquina do passado remoto, quando

    fora rica, bela e feliz em algum ponto deste imenso mundo.

    2. ALUCINAES?

    Algum tempo aps a morte do pai, a famlia mudou -se para

    um centro maior. Regina, mais crescida, continuava uma criana triste,

    muito triste. Entraram num perodo de srias privaes, agravadas nela

    pela sensao de exlio, de desajuste e de incompreenso. Era como se,

    adormecida branca, linda, rica e feliz, acordasse de repente ali naquele

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    mundo estranho, numa casa feia e pequena, cercada de gente

    desconhecida e, pior de tudo, num corpo que definitivamente no era o

    seu.

    As dificuldades se acentuaram com a adolescncia,

    especialmente o desajuste com a famlia. No encontrava em seus

    parentes ressonncia alguma para seus anseios sociais e emocionais. No

    se importavam com o arranjo da casa, o cuidado com os mveis e

    objetos, mesmo pobres. Ela ansiava pelo requinte. Queria a mesa bem

    posta e forrada com toalhas de imaculado linho, os alimentos em

    travessas apropriadas e, se possvel, algum para servir.

    Problemas suscitados pelos preconceitos raciais tambm se

    intensificavam. Embora ainda inconformada, fora forada a aceitar sua

    pele e cabelos tal como eram. No havia como mudar a situao. Eram

    fatos consumados, produzidos por motivaes desconhecidas e

    misteriosas, mas imutveis. No admitia, contudo, ser cortejada por um

    rapaz de cor. Decidira jamais casar-se para no passar adiante a herana

    gentica, que considerava um verdadeiro estigma. A cor era como que a

    marca visvel de uma vergonha, que cumpria sufocar e esquecer.

    Longe de atenuar os problemas, a adolescncia os agravou.

    O universo em paralelo tinha agora personagens to vivos quanto

    qualquer outro de carne e osso. Sem saber ao certo o que se passava

    com ela, a menina romntica vivia em toda a sua intensidade uma novela

    de amor e devotamento. O objeto de sua ternura era um homem que

    tambm a amava e a cercava de cuidados e atenes carinhosas, em

    admirvel identidade de propsitos e entendimento. Ela via nele um ser

    ideal e maravilhoso, o companheiro perfeito. Era compreensvel que, em

    confronto com a spera existncia que levava no mundo material, aquela

    outra face da realidade fosse a mais atraente. Para l, onde quer que se

    situasse aquele universo paralelo, ela fugia com freqncia, para escapar

    s angstias e presses do 'outro'. Ali era querida, tinha o conforto de uma

    existncia protegida, na qual nada lhe faltava, nem mesmo (e

    principalmente) o amor.

    Quando as dificuldades pareciam insuperveis deste lado, ela

    emigrava para o outro, em busca da felicidade que l estava sua

    espera. Para isso bastava imobilizar-se, em estado de relaxamento, num

    mvel que lhe oferecesse um mnimo de comodidade, e soltar a

    imaginao. E assim passavam-se as horas, num estado de inao e

    desligamento. Um experimentado psiquiatra talvez diagnosticasse aquilo

    como crise de catatonia.

    A vida seguia seu curso em toda a sua intensidade no universo

    interior.

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    Agora, no eram apenas as vises de ambientes estticos

    fixados em fotografias mentais, como na infncia. Havia movimento, cor,

    som, dilogos com outros seres. As cenas se projetavam, ntidas e reais,

    como numa tela de cinema a exibir um filme emocionante, no qual a

    mocinha ao mesmo tempo personagem e espectadora. To reais que

    ela perdia a noo de tempo e espao e envolvia-se em conversas com

    aquelas personagens que ali estavam, sua volta, como qualquer ser

    vivo.

    Cada vez mais ela se entregava quela realidade e rejeitava

    a outra. Ali, era intensamente feliz, tinha seu marido, filhos, uma famlia

    com a qual convivia.

    As tarefas do dia eram desempenhadas como que em estado

    sonamblico, mas com impacincia, na ansiosa expectativa das horas de

    recolhimento, quando pudesse ir para casa e entregar-se aos seus sonhos.

    Se ela dispusesse de tempo livre e dinheiro farto,

    provavelmente teria comeado a via dolorosa dos consultrios, em busca

    de psiquiatras, analistas e psiclogos das mais variadas tendncias e

    doutrinas. Teria ficado coberta de rtulos mais ou menos cabalsticos e

    estaria saturada de drogas, provavelmente internada em alguma clnica

    elegante.

    Ficaria eu profundamente desapontado se o que se vai ler a

    seguir fosse tomado como crtica injusta ou ataque s nobres profisses

    que se interessam pelo sofrimento alheio. Desejo limitar-me a observaes

    em torno de uma realidade incontestvel. Sem apontar o dedo acusador

    para nenhum mdico, psiquiatra, analista, ou psiclogo, que conceitos e

    que teorizaes tm suas respectivas cincias, na abordagem de um caso

    como o de Regina? Os mesmos de sempre. Primeiro rtulo: sofria de

    alucinaes visuais e auditivas. Quanto ao processo de fuga da realidade,

    de que maneira poderia ser catalogado? Esquizofrenia? Catatonia?

    Psicose manaco-depressiva? Autismo? Simples neurastenia? Ou mera

    hipocondria? E as neuroses? Quantas delas? E complexos? Quais? Pelo

    menos um aspecto qualquer analista poderia identificar com facilidade:

    sua bvia preferncia pelo pai com a respectiva indiferena ou rejeio

    pela me caracterizariam o complexo freudiano de Eletra. Certamente

    que haveria outros: o de inferioridade (a no aceitao da cor da pele e

    do aspecto dos cabelos); de superioridade (a rejeio de namorados de

    cor) e outros.

    Mediunidade nascente? Animismo? Nem pensar ...

    Em verdade, ela acabou mesmo encaminhada a um analista.

    Saberia mais tarde que ele era esprita e at mdium. E competente, alis.

    No obstante, via sua cliente como um caso clnico mais do que como

    um Ser humano confuso que busca sadas para seus conflitos interiores e

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    seus choques com a realidade objetiva. Embora de formao esprita, ou

    tendo pelo menos uma boa noo dos aspectos doutrinrios do

    espiritismo, tratou a jovem com os rgidos e clssicos recursos de sua

    formao profissional, ou seja, sem utilizar-se dos conhecimentos de que

    dispunha acerca do dualismo corpo/esprito do ser humano encarnado.

    Era, portanto, um analista que tambm era esprita, mas no um analista-

    esprita. Provavelmente entendia o espiritismo como mera teoria do

    conhecimento, um elemento a mais no quadro geral da sua cultura, mas

    que nada tinha a ver com o exerccio de sua profisso. possvel que

    atuasse como esprita - e at mdium - nas demais situaes da

    existncia, no porm como analista. No h como critic-lo ou censur-

    lo, pois nem sabemos das razes que o levaram a essa postura. Merece

    todo o respeito pelas opes e procedimento. Somente agora, enquanto

    escrevemos este relato, alguns psiclogos, analistas e psiquiatras de

    vanguarda comeam a utilizar-se de metodologia teraputica mais

    adequada, enriquecida pela valiosa contribuio de importantes

    postulados espritas como sobrevivncia e reencarnao.

    A expresso postulados espritas ficou a colocada por mera

    convenincia expositiva, pois na realidade o espiritismo jamais se

    considerou 'proprietrio' ou mesmo criador desses conceitos. A doutrina os

    adotou como princpios bsicos, necessrios ao entendimento de

    aspectos ainda mal-compreendidos da vida e que eles iluminam e

    explicam com clareza. O ponto a considerar aqui o seguinte: o

    postulado A ou B verdadeiro ou no? Podemos, com este ou aquele,

    explicar racionalmente aspectos ainda obscuros da psicologia humana?

    Se so verdadeiros, no pertencem a ningum e, sim, a todos. Isso quer

    dizer que conceitos como reencarnao e sobrevivncia do esprito um

    dia estaro sendo lidos tanto nos Evangelhos, onde alis se encontram h

    quase dois milnios - e j se encontravam em outros documentos de

    conotao religiosa anterior, como em tratados de medicina, psicologia,

    biologia, sociologia, antropologia, de cincia enfim, alm de compor

    tambm a estrutura bsica dos estudos filosficos. pelo menos na filosofia

    ningum estar inovando, porque era exatamente assim que pensava

    Scrates, h mais de vinte e quatro sculos. E no me consta que ele fosse

    um dbil mental.

    Precisamos, contudo, ver como foi a experincia de Regina

    com seu analista.

    3. PSICANLISE

    Sem entender o que se passava com ela prpria e at mesmo

    temerosa de que tudo degenerasse numa crise geral de alienao, ela

    resolveu buscar ajuda de quem estaria profissionalmente preparado para

    estudar sua problemtica, explic-la e proporcionar-lhe orientao

    confivel. que, a essa altura, as fugas estavam se tornando cada vez

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

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    mais freqentes e mais longas e, por contraste e consequncia, o mundo

    material cada vez mais spero, difcil e insuportvel. Ela precisava

    trabalhar e tinha elevadas aspiraes a realizar, como a de estudar at o

    limite extremo de suas possibilidades para conseguir um tipo de vida pelo

    menos tolervel; um acordo entre suas aspiraes e aquilo que a vida lhe

    poderia dar.

    No tardou muito o desencanto com a metodologia

    teraputica do analista. Em vez de uma discusso objetiva e racional de

    seus problemas, ele usava o jargo tpico de sua formao e uma

    terminologia que servia apenas para rotular os fenmenos e no para

    explic-los e corrigir os desvios da emoo que Regina apresentava.

    Falava-lhe em alucinaes visuais e auditivas e em processos de fuga,

    com tendncias autistas; abordava o problema das neuroses da maneira

    habitual e, pior que isso, prescrevia-lhe drogas para relaxar, dormir,

    combater a inexplicvel rejeio pelo alimento e coisas dessa natureza.

    Em paralelo com os antidistnicos, prosseguia a busca dos 'traumas' de

    infncia. A questo, contudo, que os tais traumas, que certamente

    existiam, no estavam guardadinhos espera da anlise, no mbito de

    uma vida que mal excedia duas dcadas. Eles vinham de longe, muito

    longe, no tempo e no espao.

    Regina foi dotada, desde a mais tenra idade, daquilo que

    Joan Grant, escritora inglesa, chama de far memory (memria remota).

    Ao contrrio da maioria que esquece - a memria uma 'coisa' com a

    qual a gente esquece -, suas lembranas do passado varavam as

    camadas do tempo, escapavam pelas frinchas dos cofres secretos de sua

    intimidade e se apresentavam dramatizadas, vivas, dotadas de

    movimento, cor, som e emoo sua aturdida vidncia.

    No caberia aqui uma contestao formal doutrina

    freudiana de um passado traumtico, nem a de que existe ntida

    possibilidade de ajustar as emoes em tumulto ou, pelo menos, aliviar os

    conflitos ntimos quando os traumas so identificados, debatidos e

    racionalizados. No que isto seja uma panacia capaz de solucionar

    qualquer distrbio da mente, claro, mas porque realmente no passado

    que se encontram os conflitos que hoje emergem como neuroses e

    psicoses de variada conotao e terminologia. No h o que discordar

    do eminente professor vienense na formulao desses conceitos vlidos.

    Pelo contrrio, o que se prope que sejam ampliados no tempo a fim de

    que possam alcanar no apenas os possveis traumas infantis de uma

    existncia, mas tambm os mais remotos, de antigas vivncias alhures.

    Interferindo nesse jogo de emoes em tumulto, havia, ainda,

    o complicador adicional da mediunidade que nem o analista nem ela

    estavam levando em conta. Ela, porque no sabia; ele, porque no

    queria. Grande parte daquela fenomenologia era certamente de origem

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

    30

    anmica, ou seja, gerada pelo psiquismo da prpria Regina como

    resultante da manipulao (voluntria ou involuntria) de seu

    inconsciente, onde se agitavam memrias de muitas vidas que lutavam

    por emergir e expressar-se. Sem dvida, porm, participava daquilo tudo

    um componente medinico, pois mediunidade e animismo so

    fenmenos conjugados e complementares. Isso porque os espritos

    desencarnados produzem fenmenos, utilizando-se de recursos anmicos

    do mdium. Ou, para dizer as coisas de outra maneira: o fenmeno resulta

    de uma ao conjugada entre dois espritos - um encarnado e outro

    desencarnado.

    Mas isto fica para discusso em outro ponto deste livro. Por

    ora, basta dizer que, embora o analista no ignorasse tais aspectos, pela

    sua formao doutrinria esprita - no sabemos em que nvel e

    profundidade -, devia saber que havia ali fenmenos anmicos e

    fenmenos medinicos ou espritas. Mantinha, contudo, sua postura

    tcnica, e encaminhava suas concluses avaliadoras para o terreno rido,

    mas 'cientfico' e 'seguro', da psicanliise ortodoxa e catalogava os

    episdios como produtos do inconsciente da moa. E da? - perguntava-

    se ela. Como resolver aqueles conflitos, ainda que admitida a tese

    consagrada pelo terapeuta? Estaria ela irremediavelmente condenada a

    um progressivo agravamento de sua condio a ponto de tornar-se uma

    alienada?

    Aps dois anos de assdua freqncia ao consultrio do

    analista, a situao continuava a mesma. Os fenmenos se produziam

    com crescente intensidade e freqncia e ela prosseguia vivendo duas

    realidades, sendo que cada vez mais na realidade II, a subjetiva, a ntima,

    alienante, em vez da realidade I, a objetiva e penosa, do mundo material.

    A certa altura, ela concluiu que estava indo sem rumo a lugar

    nenhum e resolveu interromper o tratamento e suspender a ingesto de

    drogas. Durante esses dois anos de ansiada busca, jamais o analista

    (esprita, repetimos) mencionou de leve conceitos doutrinrios ou

    terminologia esprita, como mediunidade, animismo, reencarnao, causa

    e efeito e outros. Manteve-se rigorosamente dentro da rea profissional,

    limitado instrumentao do seu aprendizado acadmico, sem mesmo

    tentar introduzir qualquer noo doutrinria, ainda que como simples

    hiptese exploratria de trabalho.

    Dois ou trs episdios curiosos e reveladores merecem

    destaque no relato desta experincia de Regina com o analista.

    Percebeu ela, ao cabo de algum tempo, que ele comeou a

    demonstrar profundo interesse pela variada fenomenologia que ela

    apresentava. Chegou mesmo realizao de algumas experimentaes,

    como, por exemplo, comunicar-se com ela telepaticamente, funcionando

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

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    ele como emitente e ela como receptora. O sistema funcionou. Bastava

    que ele se concentrasse, desejando que ela lhe falasse ao telefone que,

    onde quer que se encontrasse, ela procurava um aparelho e ligava para

    ele, perguntando se ele a havia chamado, o que ele confirmava. De

    outras vezes, mesmo sem ser dia de consulta, ele propunha

    telepaticamente que ela fosse ao consultrio, e ela comparecia, movida

    pelo impulso de ir.

    Talvez estimulado por essa receptividade da parte dela, tenha

    ele decidido experimentar tambm com a hipnose, de modo a penetrar

    mais profundamente no seu psiquismo. Parece que pretendia lev-la a

    uma regresso de memria com a inteno de explorar suas vivncias

    infantis ou, quem sabe, saltar a barreira e aprofundar-se na memria

    integral, onde se acham protegidos pelo inconsciente os arquivos secretos

    das vidas anteriores.

    Paradoxalmente, ela no se revelou um bom sujet, como seria

    de se esperar: tentaram o procedimento vrias vezes, sem xito.

    Certo dia, porm, quando comeava j a mergulhar na zona

    crepuscular da hipnose, ela viu a porta do consultrio 'abrir-se' e entrar um

    esprito. Era uma mulher de estatura mediana, vestida como enfermeira ou

    mdica, cabelos curtos cuidadosamente penteados Romeu.

    Aproximou-se, postou-se direita de Regina e lhe disse que estava ali para

    impedir que ela fosse hipnotizada, pois no lhe convinha submeter-se ao

    procedimento. Prontamente ela ficou em estado de alerta. Fora-se a

    sonolncia que prenunciava o mergulho nos estados mais profundos da

    hipnose. Como o mdico insistisse nos comandos, ela informou-lhe de que

    ele no conseguiria hipnotiz-la. Ante seu desejo de saber das razes,

    uma vez que ele usava o procedimento com regularidade (e xito) com

    vrios pacientes, ela contou o que presenciava. Estava ali, sua direita,

    uma senhora para impedi-lo. Dizia-lhe, ainda, que o mtodo no convinha

    a Regina e que ela se recusasse terminantemente a submeter-se

    experincia. Por certo que haveria boas razes para isso, ainda que

    ignoradas.

    O analista ficou desapontado e na maior frustrao. No se

    sabe se props algum termo cientfico para mais aquela 'alucinao'.

    Certa vez, ela lhe disse que, embora referindo-se

    freqentemente a uma irm, ele era filho nico, o que ele, admirado,

    confirmou. Seus pais haviam criado como filha uma prima dele que fora

    para sua casa ainda infante. A estava, pois, sua irm (de criao).

    De outra vez, ela lhe falou sobre um acidente grave que ele

    sofrera quando ainda criana, tambm confirmado. Como Regina sabia

    disso? Provavelmente era informada durante seus freqentes

    desdobramentos.

  • Diversidade dos Carismas - Teoria e Prtica da Mediunidad - Herminio C. Miranda

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    Tais 'revelaes' emergiam espontneas e sem artificialismos

    ou 'montagens' especiais para impressionar. Nem era inteno de Regina

    impression-lo com fatos inslitos. Os fenmenos fluam, to autnticos

    como inesperados, e sem demonstraes espetaculares ou transes. Eram

    mencionados no decorrer da conversa, de passagem, como simples

    comentrio sem maiores conseqncias.

    Da, provavelmente, seu propsito de estudar mais a fundo

    aquele curioso psiquismo que guardava tantos segredos e mistrios.

    Regina decidiu, por esse tempo, que ali no havia nada do

    que ela buscava, ou seja, explicaes que a ajudassem a entender e

    eventualmente resolver seus conflitos emocionais.

    Foi nessa fase que dois episdios da maior repercusso

    ocorreram na sua vida: a descoberta do espiritismo e o reencontro com a

    personagem central das suas vidncias, que o analista preferira considerar

    alucinaes ou fantasias subliminares.

    o que veremos a seguir.

    4. O REENCONTRO

    A evidncia de que o mtodo psicanaltico falhara com ela

    na tentativa de reordenar suas emoes causou-lhe decepo e

    angstia. Onde buscar, ento, o socorro de que tanto necessitava?

    A situao agravou-se substancialmente a partir da

    identificao do homem que desempenhava to importante papel nos

    seus sonhos. bem verdade que ela sempre soube que ele era uma

    pessoa real e concreta e que, portanto, existia em algum lugar sua

    espera. De repente viu-se diante dele, ao vivo, atropelada pelas

    emoes. Alm do mais, se nutrira propsitos de uma eventual unio, logo

    verificou essa impossibilidade, pois ele j assumira compromissos de famlia.

    O impacto desse encontro foi to dramtico que ela ficou

    dois dias recolhida, com febre. Parece ter experimentado ali uma

    regresso espontnea de memria provocada pela presena fsica dele.

    Ou uma espcie de psicometria? Talvez. O certo que esse reencontro

    inesperado - e do qual ele no tomara conhecimento - acabou por abrir

    de vez as janelas atravs das quais ela, at ento, havia contemplado

    cenas esparsas, como que observadas pelas frestas entreabertas. Alm do

    esposo, via agora dois filhos e, em vez de mera observadora que assiste

    ao espetculo da objetivao da memria, ela vivia de novo os episdios

    da vida domstica com suas mincias, alegrias e ternuras.

    Contemplava as crianas com os mesmos olhos e o mesmo

    corao de me e de tudo participava com as emoes frescas e vivas,

    como se aquilo fosse presente. E era.

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    33

    L fora daquele mundo ideal e feliz, contudo, permanecia

    sua espera a dura realidade das lutas, da pobreza, do desconforto, das

    humilhaes e da solido. Era difcil conciliar as duas faces dissonantes da

    mesma realidade total. Muitas vezes desejou adormecer naquele sonho

    para nunca mais despertar.

    Mais grave que isso que, quanto mais se refugiava nas vises

    de uma perdida felicidade no tempo e no espao, mais se afastava da

    realidade I, como um barco que, solto das amarras, distancia-se das

    praias onde se chocava com as rochas. Por um imperceptvel mas

    crescente processo de envolvimento, comeou a ser dominada pelas

    vises. J no mais as convocava ao sabor de sua vontade e de suas

    disponibilidades de tempo; elas ocorriam, agora, sua revelia, impondo-

    se por si mesmas. Tinha, s vezes, a impresso de ser duas pessoas distintas.

    Uma, a personalidade que vivia aquela histria, tinha um lar, marido e

    filhos; era branca, bonita, adornada por vasta cabeleira sedosa,

    inteligente e imensamente feliz. A outra l estava, inarredvel, sua

    espera, cada vez que ela retornava da realidade II; era feia, estranha e -

    segundo ela - tambm burra, alm de infeliz. Um verdadeiro estorvo. No

    fosse aquela mulher to desagradvel, talvez ela pudesse viver, na sua

    plenitude, a vida do sonho.

    5. TERAPIA DA CONVERSA

    Foi quando comeou a temer pelo seu futuro. J

    experimentava certa dificuldade em deixar o mundo paralelo para

    enfrentar os compromissos, carncias e frustraes deste. Era preciso

    encontrar ajuda competente e com urgncia, enquanto ainda estava

    lcida e podia distinguir uma realidade da outra. Sentia, contudo, que no

    contexto da psicanlise clssica no teria muita chance de encontrar o

    socorro de que tanto necessitava, pois sua experincia anterior fora uma

    decepo, como vimos.

    Recorreu aos amigos espirituais, no caso ao dr. Bezerra de

    Menezes, com o qual, diz ela, "no tinha nenhuma intimidade"! Pedia-lhe

    que a "ajudasse, em nome de uma pessoa que sabia ser muito amiga

    dele".

    Foi, assim, um fenmeno medinico que a encaminhou a

    algum que procurava ajudar companheiros em dificuldade, no com

    teorias esdrxulas e rtulos eruditos, mas com os singelos postulados da

    doutrina dos espritos e os conceitos fundamentais dos ensinamentos do

    Cristo.

    Ao fim de algum tempo, breve - no mais que algumas

    semanas -, Regina comeou a aceitar a vida, ou melhor, aquela parte da

    vida que estamos chamando de realidade I, o mundo objetivo com todos

    os seus problemas e complexidades. Foi convencida de que no havia

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    duas personalidades nela, apenas uma individualidade em conflito

    consigo mesma. Aquela outra mulher que ela rejeitava era ela mesma,

    vista de um ngulo diferente. Se na tica de uma existncia

    contemplamos a ns mesmos vivendo outra vida (passada ou futura),

    estamos sujeitos a esse baralhamento do senso de perspectiva e

    identidade. Em outras palavras: se, regredido a uma vida passada,

    contemplo a presente, testemunho coisas de difcil assimilao como se

    estivesse anacronicamente mergulhado num futuro incompreensvel.

    Isto no mera teorizao. Foi exatamente assim que

    aconteceu com um jovem oficial do exrcito americano, acantonado na

    Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, conforme j narrei em A

    memria e o tempo. o que conta Hugh Lynn Cayce, filho do famoso

    sensitivo americano Edgar Cayce, testemunha ocular do fenmeno. Por

    regresso da memria, via hipnose, levaram o homem a uma vida anterior

    na qual ele era um modesto professor do interior dos Estados Unidos, h

    cerca de um sculo. Em seguida, despertaram-no sem os cuidados

    devidos e o oficial conservou sua memria anterior, com total excluso da

    atual. Via-se ali, de maneira incompreensvel para ele, cercado de gente

    desconhecida que o chamava de um nome que no era o seu. Ele por

    sua vez no se reconhecia naquele ambiente, naquela personalidade e

    indumentria. Quem era ele, afinal? Onde estava? O que acontecera

    com sua vida? Sua cidadezinha, sua famlia, seus amigos, seus alunos? Ali

    estava, pois, na incongruente situao de uma pessoa que, de um

    passado mais ou menos remoto, contempla uma existncia que ainda

    no aconteceu ...

    Com Regina, a situao era comparvel, embora no

    idntica. Duas memrias diferentes, ou melhor, dois segmentos diferentes

    das suas memrias disputavam-lhe a ateno: a de uma remota

    existncia feliz e a de uma vida amargurada e cercada por limitaes

    constrangedoras. Ao regressar das vidncias da antiga existncia, trazia

    ainda as lembranas e o agitar das emoes que l experimentava.

    Nesse estado de esprito, estranhava aquele ser que era ela mesma, mas

    que teimava em considerar como se fosse outra pessoa.

    Seu novo interlocutor era apenas um conselheiro com o qual

    discutia seus problemas, mas no um terapeuta ou um analista. Dizia-lhe

    que ela precisava aceitar como expresso de si mesma aquele ser que

    ela, cada vez mais, ia se habituando a tratar na terceira pessoa: ao se

    referir a si mesma, no dizia eu, dizia ela. Suas chamadas alucinaes,

    acrescentava o conselheiro, no passavam de vidncias ou

    revivescncias de uma vida anterior que, por alguma razo

    desconhecida, estavam emergindo das profundidades da memria.

    Havia, contudo, uma vida pela frente para ser vivida em toda a sua

    intensidade, com todos os seus problemas e, certamente, com o valioso

    potencial de acertos e conquistas, se tudo fosse feito da maneira

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    adequada. Nas passadas existncias nada era possvel mudar, ou melhor,

    desfazer, mas na atual tinha de aproveitar as oportunidades para refazer o

    que no fizera bem feito ou com acerto. Talvez as vidncias tivessem por

    finalidade mostrar-lhe uma felicidade perdida, mas reconquistvel, um

    modelo