Dissertação Notre Dame

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Dissertação Academica sobre o organum de notre dame.

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    ALFREDO VOTTA JUNIOR

    A MSICA TINTINABULAR DE ARVO PRT

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obteno do ttulo de Mestre em Msica rea de concentrao: Processos Criativos.

    Orientadora: Prof. Dr. Denise Hortncia Lopes Garcia

    Trabalho realizado com o auxlio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, FAPESP

    CAMPINAS

    2009

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: Arvo Prt's tintinnabuli music. Palavras-chave em ingls (Keywords): Tintinnabuli ; Minimalism ; Medieval music ; Contemporary music ; 20th century music ; Neotonalism. Titulao: Mestre em Msica.

    Banca examinadora:

    Prof. Dra. Denise Hortncia Lopes Garcia.

    Prof. Dr. Leonardo Adriano Viegas Aldrovandi.

    Prof. Dr. Jnatas Manzolli.

    Prof. Dr. Jos Augusto Mannis.

    Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa.

    Data da Defesa: 23-09-2009

    Programa de Ps-Graduao: Msica.

    Votta Junior, Alfredo. V941m A msica tintinabular de Arvo Prt. / Alfredo Votta Junior.

    Campinas, SP: [s.n.], 2009.

    Orientador: Prof. Dra. Denise Hortncia Lopes Garcia.

    Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Artes.

    1. Tintinnabuli. 2. Minimalismo. 3. Msica medieval. 4. Msica contempornea. 5. Msica do sculo XX. 6. Neotonalismo. I. Garcia, Denise Hortncia Lopes. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

    (em/ia)

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    Meus agradecimentos so uma dedicatria. No h como agradecer sem dedicar, j que cada nome ao qual agradeo desempenha papel muito importante na minha vida e neste trabalho. Este trabalho naturalmente lhes pertence.

    A cada leitor que encontrar utilidade nestas pginas vai dedicado este trabalho.

    A Cristo, ontem e hoje, Princpio e Fim, Alfa e mega; a Ele o tempo e a eternidade, a glria e o poder pelos sculos sem fim.

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    AGRADECIMENTOS

    A Denise Garcia, por pacincia, orientao e amizade desde 1999.

    A Mikhail Malt, por seu encorajamento desde 1990.

    A Dantas Neves Rampin, Frederico Jos Ferreira, Bernardo Gomes de Barros, Joo Reynaldo de Paiva Costa, Ellen Guilhen, Clara Cendon Finotti, Ceclia Regina Borges Rocha, Roberta Maria Massagli, Guilhermina Maria Lopes de Carvalho, Valrio Fiel da Costa, Tnia Mello Neiva, Antonio Celso Ribeiro, Ross Carey, Paulette Schwarz, Dora Fraiman Blatyta, Eduardo Cceres, Jeff Ostrowski, Kyle Gann, Henrique Iwao, Mrio del Nunzio, Alexandre Porres, Nayr Effenberger Guelli, Maurcio Martinazzo, Jan Szot, Madrigal Cantabilis, Madrigal Incantus, Quarteto Quintessentia, Slvio Ferraz, Edmundo Hora, Leonardo Aldrovandi, Alexandre Pascoal, Israel Laurindo, Guilherme Rebecchi, Jean-Pierre Caron, Cludia Guedes, Luiz Eduardo Casteles.

    queles que contriburam com minha formao musical sem saber, vivos e mortos: compositores, especialmente Arvo Prt, autores de livros sobre msica e intrpretes.

    FAPESP, por seu apoio.

    UNICAMP e seu Instituto de Artes.

    A todos os meus familiares vivos, especialmente meus pais Alfredo Votta e Nadia Maria de Alcantara Lopes Votta e minha irm Ana Luiza Votta Colombo , e todos os meus antepassados j falecidos.

    A Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

    A Todos os Santos e Anjos e Santssima Virgem, que por mim incessantemente rogam.

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    RESUMO

    O compositor estoniano Arvo Prt, nascido em 1935 e radicado na Alemanha desde os anos 1980, tem sido objeto de ateno do mundo musical por sua peculiar linguagem modal baseada na tcnica tintinnabuli, formulada e nomeada pelo prprio Prt. Esta tcnica se baseia na ideia de utilizao exclusiva das trs notas de uma trade em ao menos uma das vozes da textura musical. Esta tcnica tem sido utilizada por Prt desde meados dos anos 1970. Sua obra apresenta tambm numerosas afinidades com a msica medieval, arte estudada por Prt nos anos de interrupo de seu trabalho composicional que se prolongaram de 1968 at 1976. O canto gregoriano ocupou lugar de destaque nestes estudos, sendo por esta razo importante para a compreenso de sua obra. So apontados tambm, por inmeras fontes (trabalhos acadmicos, encartes de gravaes e textos crticos jornalsticos), vnculos da obra de Prt com o minimalismo, que se manifestam sobretudo no ideal de stasis, nos processos aditivos e nos ciclos. As tcnicas desenvolvidas por Prt, bem como aquelas que se podem relacionar a ele, so frtil campo para a formulao de novas ideias composicionais e mesmo para o reencontro com ideias antigas que podem fertilizar a expresso musical atual.

    Palavras-chave: tintinnabuli; minimalismo; msica medieval; msica contempornea; msica do sculo XX; neotonalismo; nova simplicidade.

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    ABSTRACT

    Estonian composer Arvo Prt, born in 1935 and living in Germany since the 1980s, has been the object of close attention by the musical world due to his peculiar modal language based on his own tintinnabuli technique. This technique builds upon the exclusive use of the three notes of a triad in at least one of the voices of a given musical texture. Prt has been using this method since the mid-seventies. His work displays great affinity with medieval music as well. The music of the Middle Ages was studied by Prt during his period of compositional silence from 1968 to 1976. Since that includes especially Gregorian chant, this genre is crucial for proper understanding of Prt's work. Numerous sources (academic papers, recordings' booklets and press writings) have also pointed resemblance of Prt's compositions with minimalism chiefly due to the ideal of stasis, additive processes and cycles. Prt-developed and -related techniques are a fertile environment for the creation of new compositional ideas and a new approach towards ancient ideas as a means to contribute with current musical expression.

    Key words: tintinnabuli; minimalism; medieval music; contemporary music; 20th century music; neotonalism; new simplicity.

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    SUMRIO

    INTRODUO 1 1 A TCNICA TINTINABULAR 9 1.1. Introduo 9 1.2. O que significa tintinnabuli? 10 1.3. A tcnica tintinabular 11 1.3.1. A voz-T 11 1.3.2. A voz-M 13 1.4. A tcnica tintinabular na obra de Arvo Prt 15 1.5. Conseqncias verticais 33 1.6. Composio da voz-M em msica instrumental 34 1.7. Concluso 38

    2 PRT E A MSICA ANTIGA 41 2.1. Introduo 41 2.2. O diatonismo 42 2.3. Os modos eclesisticos 43 2.4. O canto gregoriano 58 2.5. O ritmo do canto gregoriano 71 2.6. A msica instrumental de Prt 75 2.7. Organum 78 2.8. A Escola de Notre Dame 86 2.9. Notre Dame e o ritmo em Prt 87 2.10. Notre Dame e as notas longas 103 2.11. Hoqueto 106 2.12. Liturgia 110

    3 PRT E O MINIMALISMO 115 3.1. Introduo 115 3.2. Drone 118 3.3. Drones na msica de Prt 130 3.4. Processos aditivos 130 3.5. Processos aditivos na msica de Prt 142 3.6. Tabula Rasa 146 3.6.1. Silentium 146 3.6.2. Ludus 168

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    4 ALM-PRT 177 4.1. Introduo 177 4.2. Exerccios 178 4.3. Salve Regina 183 4.4. Per noctes 192 4.5. Ao Anjo da Guarda lef 203 4.6. Liturgia n1 206 4.7. Liturgia n2 224 4.8. Liturgia n3 237 4.9. Catopsilia florella 254 4.10. Sonata Iesu Dulcis Memoria 259 4.11. Concluso 265 CONCLUSO 267

    BIBLIOGRAFIA 271

    ANEXOS 277 Anexo I. partitura completa de Salve Regina, op.25 (Alfredo Votta Jr) 277 Anexo II. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para vozes e instrumentos (Alfredo Votta Jr)

    283

    Anexo III. partitura completa de Per Noctes, op.26. partitura para quarteto de flautas doces (Alfredo Votta Jr)

    291

    Anexo IV. partitura completa de lef, de Ao Anjo da Guarda, op.43 n1 (Alfredo Votta Jr)

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    Anexo V traduo de Tentativas ingratas de uma definio de minimalismo (Kyle Gann)

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    Introduo

    Localizada s margens do Mar Bltico, a Estnia um dos pases de menor populao da Europa: 1,3 milho de pessoas vivem num territrio equivalente a 18% do Estado de So Paulo. Vizinha da Finlndia, tem com este pas aspectos tnicos e lingsticos comuns, por sua origem fino-grica. O complicado idioma estoniano uma das poucas lnguas europias cuja origem no indo-europia. Governado no passado por povos diversos como dinamarqueses, alemes, suecos e russos, este pas obteve sua independncia em 1918. Logo em 1940 foi ocupado pelos soviticos, e em 1941 pelos nazistas. De 1944 a 1991 permaneceu novamente sob domnio sovitico, declarando ento, a 20 de Agosto de 1991, sua independncia que perdura at nossos dias. neste pas que nasceu, em 11 de Setembro de 1935, na cidade de Paide, a 80 quilmetros da capital Tallinn, o compositor Arvo Prt1. Aos 7 ou 8 anos de idade Arvo comeou a estudar msica, e no muito tempo mais tarde sua famlia adquiriu um piano de cauda russo em que somente os registros extremos funcionavam bem. Assim, logo sua imaginao foi estimulada criao de msica possvel dentro destas limitaes. Desenvolveu logo gosto pelo rdio, que ouvia com muita freqncia, especialmente as transmisses da rdio finlandesa que se podia captar em sua cidade. Seu instrumento era o piano. Estudou tambm obo e percusso, alm de se dedicar, j, composio, em sua adolescncia. Em 1953 Prt tinha dezoito anos de idade e morreu o lder sovitico Josef Stlin, o que indicou uma era de abertura (que no se concretizou to fortemente como muitos gostariam). Nas artes, o realismo socialista continuou como diretriz oficial do governo comunista da URSS. No ano seguinte, Prt ingressou na Escola Mdia de Msica de Tallinn, mas poucos meses depois o curso foi interrompido por dois anos de servio militar obrigatrio, durante o qual tocou obo e percusso numa orquestra militar. Foi um perodo

    1 Pronuncia-se arvo prt.

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    de muito sofrimento para o compositor, que teve mesmo sua sade prejudicada, levando anos para se recuperar.

    Terminado o servio militar, Prt foi admitido, em 1957, a estudar no Conservatrio de Tallinn, em que eram lecionadas no apenas disciplinas musicais, mas tambm Histria do Partido Comunista e Economia Poltica. Seu professor de composio era Heino Heller (1887-1970), destacada figura musical estoniana que estudara com Glazunov no Conservatrio de So Petersburgo. Heller foi professor de vrios compositores estonianos e, no obstante tendncias pessoais conservadoras, estimulava seus alunos a conhecer e experimentar novas idias que com dificuldade chegavam Estnia vindas do Ocidente entre elas, o dodecafonismo, que Prt estudou nos livros de Kenek e Eimert. Algumas poucas obras de Webern, Nono e Boulez eram conhecidas no pas por meio de partituras e fitas cassete ilegais.

    Nos anos subseqentes Prt se tornou engenheiro de gravao da rdio estoniana e compositor de msica para cinema estima-se por volta de cinqenta o nmero de filmes para os quais comps. Atualmente, porm, o compositor no d importncia ao trabalho realizado nessa poca. Ao mesmo tempo, Arvo Prt desenvolvia o seu trabalho pessoal de composio. Suas primeiras obras publicadas so as duas Sonatinas (1958-1959) e a Partita (1958) para piano solo, de forte influncia neoclssica. Tambm em 1959 comps a cantata Meie aed (nosso jardim), para coro infantil e orquestra. Trata-se de uma obra com finalidades muito prticas, em linguagem politicamente apropriada; mesmo assim, muitos no deixam de lhe perceber as boas qualidades de escrita. Este tipo de cantata era escrito por muitos compositores da poca, que as chamavam de cantatas do imperador (Kaiserkantaten, em alemo, keisrikantaadid, em estoniano); eram obras compostas para servir a propsitos do governo. O musiclogo estoniano Merike Vaitmaa explica que uma cantata do imperador era uma espcie de indulgncia: tendo-a escrito, o compositor podia escrever em paz o que queria 2.

    2 Vaitamaa apud Hillier (2003), p. 30.

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    Em 1960-1961, antes de uma nova cantata (Maailma samm), Prt escreveu Nekrolog, para orquestra. Trata-se da primeira composio dodecafnica de um compositor estoniano. O uso da tcnica serial lhe valeu crticas por sua aproximao com o formalismo ocidental. Tais crticas provinham sobretudo dos congressos de compositores soviticos, que se reuniam periodicamente para discutir msica e definir o que era adequado e inadequado dentro da ideologia do governo da URSS. Embora o segundo congresso de compositores (1957) tenha aberto algumas portas que, por exemplo, aboliram a proibio da msica de Schoenberg e Webern, o terceiro congresso (1962) condenou o dodecafonismo. Prt continuou a escrever msica serial e introduziu tambm procedimentos de colagem em suas obras. Nesta poca temos suas duas primeiras sinfonias (1963 e 1966); Collage sur Bach (1964), para orquestra de cordas com obo, cravo e piano, em que Prt pe lado a lado trades, serialismo e uma Sarabanda de Bach orquestrada em sua forma original e depois em clusters; Diagrams (1964), para piano, obra dodecafnia de partitura colorida; Pro et contra (1966), para violoncelo e orquestra, que enuncia em seu incio uma triunfante trade de r maior e logo em seguida uma imensa exploso aleatria, fazendo ouvir tambm, em seu segundo movimento e no fim do terceiro, cadncias tipicamente barrocas fora de contexto. Em 1968 uma obra intitulada Credo, no obstante seu ttulo religioso, aproveitou-se de uma falha da censura para ser apresentada, o que causou grande polmica. Escrita para orquestra, coro e piano, sua linguagem vanguardista de dodecafonismo e colagem ( longamente citado o primeiro preldio do Cravo Bem Temperado de J. S. Bach) no foi um problema to grande quanto a explcita declarao religiosa de seu ttulo. Embora no utilize o texto litrgico do Credo da Missa, afirma enfaticamente Credo in Iesum Christum (creio em Jesus Cristo) e cita algumas passagens dos Evangelhos. Credo viria a ser a ltima obra desta poca que foi a primeira fase da vida composicional de Arvo Prt. Logo se instalou no compositor uma crise artstica e espiritual. Ele nada escreveria at 1976 com exceo da Terceira Sinfonia e da cantata Laul Armastatule, esta retirada de seu catlogo. A Terceira Sinfonia uma composio transicional, por razes que havemos de entender mais adiante.

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    Paul Hillier transcreve em seu livro um trecho de uma entrevista concedida por Prt rdio estoniana nesse mesmo ano de 1968:

    No tenho certeza de que possa haver progresso na arte. Progresso est presente na cincia. Todo mundo entende o que progresso significa na tecnologia militar. A arte apresenta uma situao mais complexa... muitos objetos artsticos do passado parecem mais contemporneos do que a nossa arte atual. Como possvel explicar isto? No que o gnio tenha conseguido ver duzentos anos frente. Creio em que a modernidade da msica de Bach no v desaparecer por mais duzentos anos, e talvez nunca desaparea... a razo no simplesmente que talvez seja melhor que msica contempornea... o segredo de sua contemporaneidade reside na questo: quo completamente o autor-compositor percebeu no apenas seu prprio presente, mas a totalidade da vida, suas alegrias, preocupaes e mistrios?... como se nos fosse dado um problema para resolver, um nmero (UM, por exemplo), terrivelmente complexo quando dividido em fraes. Encontrar uma soluo um longo processo e requer intensa concentrao; mas a sabedoria est na reduo. Se agora concebvel que diferentes fraes (pocas, vidas) estejam unidas por uma nica soluo (UM), ento esse UM algo mais que a soluo de uma nica frao. Ele a soluo correta para todos os problemas, todas as fraes (pocas, vidas) e sempre foi. Ento as fronteiras de uma nica frao o confinam demais e ele se perpetua sempre... sempre a obra mais contempornea aquela em que h uma soluo mais clara e mais correta (UM). A arte tem que lidar com questes eternas, no apenas com os assuntos de hoje. Em todo caso, se quisermos chegar essncia de uma obra musical, no importa qual, no podemos deixar de lado o processo de reduo. Em outras palavras, temos que jogar fora nosso lastro eras, estilos, formas, orquestrao, harmonia, polifonia para alcanar uma nica voz, suas entonaes. Somente a que ficamos cara a cara [com a questo]: isto verdade ou falsidade?3

    Apesar de termos nestas declaraes algumas idias caractersticas do seu trabalho posterior (como a importncia do nmero 1), no podemos deixar de identificar nelas um momento de mais perguntas do que de respostas. Assim, este silncio composicional se

    3 Vaitmaa apud Hillier (2002), p.65.

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    prolongou at 1976, quando Prt retornou escrita com o uso de uma nova tcnica que desenvolveu. Durante esse perodo o compositor se dedicou ao estudo da msica antiga, sobretudo do canto gregoriano, por meio do qual procurou aprender a escrever uma nica linha de msica, isto , monodias. Numerosos cadernos foram preenchidos naqueles anos. Podemos v-los no filme de Dorian Supin 24 Preludes for a Fugue: Prt os retira do armrio em que esto guardados; podemos ver que so numerosos; e ele se pe mesmo a tocar ao piano e cantar uma das melodias que escreveu. Alm do cantocho Prt estudou tambm polifonia, como a escola de Notre Dame, a Ars Nova e Machaut, e msica posterior como os polifonistas flamengos, Palestrina e

    Victoria. Copiou manualmente grande quantidade dessa msica Na poca essa msica antiga comeava a ter mais destaque na Unio Sovitica, sendo naquele pas at ento muito pouco conhecida. Concertos de grupos ocidentais ajudaram no despertar desse interesse, e surgiram grupos locais como o Hortus Musicus. Fundado em 1972 por Andres Mustonen, este grupo estoniano foi o primeiro a apresentar publicamente as primeiras obras da nova fase de Prt, iniciada em 1976. Sendo a Terceira Sinfonia (1971), como afirmamos, uma obra transicional, ela se aproveita das pesquisas de msica antiga e se desenvolve numa linguagem modal, com inflexes meldicas de canto gregoriano; marcante nela a presena da cadncia de Landini, tpica de Machaut e outros compositores de sua poca; ritmicamente, entretanto, de mtrica toda regular. Em meio aos estudos de msica antiga e exerccios composicionais, Prt comps, em 1976, uma pequena pea para piano intitulada Fr Alina (para Alina). Esta composio utiliza pela primeira vez uma nova tcnica chamada tintinnabuli. Esta palavra significa, em latim, pequenos sinos, e ser neste trabalho chamada tambm tcnica tintinabular. Esta tcnica, em sua forma bsica, se refere escrita de msica a duas vozes. Uma das vozes circula por todos os graus de uma escala diatnica, enquanto a outra faz ouvir somente as notas da trade principal do modo. As notas da trade a cada momento so escolhidas por meio de uma relao especfica com a respectiva nota da melodia. Esta

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    relao pode se apresentar em vrias configuraes, e ser explicada no primeiro captulo deste trabalho, que se ocupa precisamente da tcnica tintinabular. Temos, portanto, que o universo harmnico de Prt agora modal, inteiramente diatnico, em flagrante contraste com o atonalismo de sua fase encerrada em 1968 (apesar da presena da trade em certas obras, oriunda ou no de colagens). A simplicidade textural de suas obras passa tambm a chamar a ateno, sendo freqentemente a duas vozes, especialmente nas primeiras composies tintinabulares ( o caso de Fr Alina); entretanto, mesmo nas obras com mais vozes, freqente a adoo de uma escrita simples nota-contra-nota (Fr Alina, Missa Syllabica, When Sarah was ninety years old, An den Wassern zu Babel saen wir und weinten). Prt conta que esta mudana estilstica causou perplexidade entre vrios de seus colegas que tanto haviam lutado pela aceitao de seu uso de tcnicas como o dodecafonismo. Assim, os anos de 1976 a 1978 assistiram ao nascimento de numerosas obras com o uso da nova tcnica. O seu catlogo conta precisamente doze composies nesses anos, alm de uma obra ainda no tintinabular, mas prxima disso (When Sarah was ninety years old) e Kui Bach oleks mesilasi pidanud... (se Bach tivesse sido um criador de abelhas, conhecida tambm com o ttulo alemo Wenn Bach Bienen gezchtet htte e ingls If Bach had been a bee-keeper), que mistura a tcnica tintinabular com cromatismos, inclusive o motivo B-A-C-H (si bemol l d si). Arvo Prt continua at o presente momento nesta fase composicional. Prosseguiu no

    uso da tcnica tintinabular em todas as suas obras, procurando usar suas vrias possibilidades. O uso de textos em diferentes lnguas, nas suas obras vocais, um dos fatores que o levam a criar novas maneiras de escrever a voz meldica de suas composies (at o momento escreveu obras em latim, eslavnico, estoniano, ingls, alemo, italiano, francs e espanhol). Faltaria, no ensejo desta introduo, uma breve explicao biogrfica. Mesmo nesta nova fase, no fim dos anos 70, a msica de Prt continuou tendo problemas com as autoridades, chegando mesmo a ser proibido de fazer algumas viagens com fins musicais, sendo uma delas Finlndia (um curtssimo trajeto feito de balsa).

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    Sendo Nora Prt, a esposa do compositor, de origem judaica, obtiveram em 1980 vistos para deixar a URSS com destino a Israel, como muitos na poca. Uma vez fora da URSS, alguns escolhiam outros destinos como a Europa e os Estados Unidos. Assim aconteceu com o compositor. Em Viena foi surpreendido na chegada por um representante da Universal Edition, que o acolheu na cidade (segundo Hillier, com a ajuda do compositor russo Alfred Schnittke). O casal Prt e seus dois filhos adquiriram nacionalidade austraca e, no ano seguinte, mudaram-se para Berlim, onde continuam a viver hoje.

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    Captulo 1

    A tcnica tintinabular

    1.1. Introduo

    Arvo Prt chegou tcnica tintinabular por meio dos exerccios que realizou nos anos de interregno criativo. O ano de 1976 assistiu composio da primeira pea a usar a nova tcnica, Fr Alina (em estoniano Aliinale, em portugus Para Alina), para piano solo. No mesmo ano havia sido escrita Modus (mais tarde rebatizada Sarah was ninety years old), que, embora no use o novo procedimento, aproxima-se dele.

    Podemos verificar, no filme de Dorian Supin, que Fr Alina se encontra nos cadernos de exerccios de Prt, sendo um fruto natural desses estudos. No deixa de chamar a ateno o fato de que uma nova tcnica seja anunciada com uma pea de to pequenas propores e to grande simplicidade. Obras maiores e mais complexas viriam, sem dvida; mas esta pequena composio ficou realmente marcada por este uso novo das sete notas da escala diatnica que viria a caracterizar a msica de Prt a partir de ento.

    A Fr Alina seguiu-se uma exploso criativa com Trivium (para rgo), Pari Intervallo (para grupo instrumental), An den Wassern zu Babel saen wir und weinten (para quatro vozes e rgo); em 1977 Arbos (para grupo de cmera), Cantate Domino (para coro a quatro vozes e grupo instrumental ou rgo), Fratres (originalmente para orquestra de cordas e percusso, com inmeras verses nos anos subseqentes), Missa Syllabica (para coro a quatro vozes e rgo), Variationen zur Gesundung von Arinuschka (para piano solo), Tabula Rasa (para dois violinos, orquestra de cordas e piano preparado), Cantus in memoriam Benjamin Britten (para orquestra de cordas e sino) e Summa (para orquestra de cordas).

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    1.2. O que significa tintinnabuli?

    Paul Hillier informa que o nome tintinnabuli foi dado a esta tcnica depois que ela j havia sido criada e utilizada por Prt.4 Ademais, comenta sua origem:

    O significado preciso de tintinnabulum dado no Oxford Dictionary of English Etimology como pequeno sino tilintante. A origem onomatopica da palavra atestada por Santo Isidoro de Sevilha em seu Etymologiarum (ca. 630 d.C.), havendo mais tarde (ca. 800) um relato de um tintinnabulum que produzia um som jubiloso como se houvesse sido tocado por um anjo.5

    O mesmo autor esclarece que tintinnabulum se distingue de campana em que este segundo nome designa sinos grandes, cujo nome deriva de Campania, regio italiana prxima a Npoles notvel por seu trabalho com bronze.6

    O dicionrio Houaiss mostra que na lngua portuguesa existem algumas palavras estreitamente derivadas de tintinnabulum. Tintinbulo campainha, sineta; tintinabular significa soar ou fazer soar (campainha, sineta etc.); tintinabulante aquilo que tintinabula7.

    Dado o uso da palavra tintinnabuli, em todas as publicaes sobre a msica de Prt (de livros e escritos acadmicos a encartes de CDs e trabalhos jornalsticos), independentemente da lngua; dada sua origem latina e a facilidade com que se adapta lngua portuguesa (dando mesmo origem a palavras dicionarizadas), neste trabalho proponho que esta tcnica seja chamada, neste idioma, de tcnica tintinabular.

    4 HILLIER (2002), p.97.

    5 HILLIER (2002), p.19.

    6 HILLIER (2002), p.19.

    7 HOUAISS (2001), p.2721.

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    Alternativamente pode ser usada a prpria palavra latina tintinnabuli, como recurso para evitar repeties num texto. Outras opes secundrias so tcnica tintinabulante e tintinabulao.

    Prt continuou a se servir da tcnica tintinabular em todas as suas obras a partir de 1976. A partir de agora procuro explicar o funcionamento dessa tcnica, primeiro de maneira terica, e em seguida com exemplos concretos trazidos da obra do compositor.

    1.3. A tcnica tintinabular

    A tcnica tintinabular se refere maneira pela qual as notas de uma determinada melodia se relacionam a outra voz que faz ouvir somente as notas componentes de uma trade. Adoto, para fins de explicao da tcnica e de anlise de obras que dela fazem uso, a terminologia proposta por Hillier: voz da melodia principal d-se o nome de voz M, e, voz que apenas usa a trade, voz T8.

    1.3.1. A voz T

    A voz M composta antes da voz T, que lhe subordinada. Aquela , na obra de Prt, escrita segundo princpios que podem variar; em obras vocais h sempre uma relao estreita com o texto e seu nmero de slabas (ou nmero de slabas de cada palavra); em obras instrumentais costuma ser um princpio puramente musical ligado aos graus da escala. Mais adiante isto ser abordado.

    Os exemplos a seguir usam como voz M uma escala ascendente de l elio. importante lembrar que a tcnica segue sendo a mesma quando se usa o modo jnio. Estes

    8 HILLIER (2002), p.93. Originalmente Hillier pensa em M como inicial de melody, em ingls, que

    funciona tambm para o portugus por ser melodia. O mesmo para T de triad (trade), que segundo o prprio Hillier tambm pode ser T de tintinnabuli.

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    dois modos so os mais usados na obra da segunda fase de Prt, com certa predominncia do elio.

    Tem-se, ento, que a voz T faz ouvir sempre a nota da trade mais prxima da nota ouvida na voz M. Neste primeiro exemplo a voz T mais aguda que a voz M, no que Hillier chama primeira posio superior.

    Primeira posio porque se trata da nota mais prxima; superior porque se trata da nota acima.

    Figura 1. Voz M com Voz T na primeira posio superior

    Assim fica a primeira posio inferior, em que a voz T usa a nota da trade mais prxima em direo ao grave.

    Figura 2. Voz M com Voz T na primeira posio inferior

    Na chamada segunda posio a voz T usa a segunda nota mais prxima: em direo ao agudo, na posio superior; em direo ao grave, na posio inferior.

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    Figura 3. Voz M com Voz T na segunda posio superior

    Figura 4. Voz M com Voz T na segunda posio inferior

    Existe ainda a posio alternante, que, como diz o nome, alterna entre superior e inferior.

    Figura 5. Voz M com Voz T na posio alternante

    1.3.2. A voz M

    A composio da voz M se d de diversas maneiras nas composies de Arvo Prt. Como j referido anteriormente, ela pode se dar por critrios musicais abstratos, sobretudo nas peas instrumentais, e por critrios ligados ao texto, nas obras vocais.

    Veremos ento alguns desses procedimentos, que costumam encerrar em si certo rigor. A emblemtica pea Fr Alina, primeira a usar a nova tcnica, uma exceo: sua voz M foi composta livremente. No a analisamos neste primeiro captulo, reservando-a para a introduo de certas relaes importantes que faremos no segundo captulo.

  • 14

    Ao abordar a composio da voz M Hillier nos mostra quatro modos meldicos ligados a uma mesma escala (que em nossos exemplos ser, novamente, l elio). O centro do modo a nota l. Os modos estruturam-se, portanto, desta forma:

    Modo 1 ascendente, partindo do centro;

    Modo 2 descendente, partindo do centro;

    Modo 3 descendente, em direo ao centro;

    Modo 4 ascendente, em direo ao centro.

    Figura 6. Os modos tintinabulares segundo Hillier

    Hillier alude ao fato de que a palavra modo tem sido utilizada com vrios significados, rtmicos e meldicos, e que aplic-lo neste caso no far mal!9. Sem dvida uma terminologia adequada, e a que utilizamos neste trabalho. Para evitar equvocos, chamaremos estes modos de modos tintinabulares; desta forma, no os confundiremos com os modos eclesisticos nem com os modos rtmicos, que abordaremos no segundo captulo.

    A respeito desta sistematizao e criao de uma terminologia (voz-M, voz-T, modo 1, modo 2 etc.) Hillier presta um importante esclarecimento:

    A necessidade de criar este pequeno vocabulrio tcnico surge no de uma possvel complexidade da questo, mas do propsito prtico de evitar a repetio de enfadonhas descries de procedimentos musicais, bastante simples em si mesmos, mas para os quais [ainda] no temos uma terminologia prpria.10

    9 HILLIER (2002), p.95.

    10 HILLIER (2002), p.96.

  • 15

    Em outras palavras, um exemplo: certamente muito mais conveniente dizermos apenas modo 1 do que pentacorde ascendente a partir do primeiro grau.

    1.4. A tcnica tintinabular na obra de Arvo Prt

    A partir de agora examinaremos como esses procedimentos ocorrem concretamente nas composies de Prt. Primeiramente tomaremos a Missa Syllabica, de 1977, revisada em 1996.

    Com exceo do Sanctus, toda a obra foi composta na escala de r elio (ou r menor natural). Os modos tintinabulares, portanto, so os seguintes:

    Figura 7. Os modos tintinabulares em r elio (da Missa Syllabica)

    Examinemos o seu Kyrie. O Kyrie faz parte do Ato Penitencial da Santa Missa, e se situa pouco depois do seu incio, tanto no rito tridentino do papa S. Pio V quanto no novo rito romano do papa Paulo VI. Sua estrutura tripartite, com trs invocaes: Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison. Tradicionalmente cada invocao repetida trs vezes, e assim tambm na pea. O texto Kyrie eleison assim musicado, partida:

    Figura 8. Incio do Kyrie da Missa Syllabica

  • 16

    Nota-se portanto o uso do chamado modo tintinabular 3, descendente em direo ao centro do modo. Por ter trs slabas, a palavra Kyrie usa apenas as ltimas trs notas; por ter quatro slabas, eleison faz uso das ltimas quatro. O diagrama abaixo mostra o modo 3 e explicita a escolha das notas conforme as slabas.

    Figura 9. Escolha das notas para o Kyrie da Missa Syllabica

    Quanto voz T, tocada pelo rgo, trata-se aqui da posio alternante, sendo a primeira nota da voz T mais grave; no segundo Kyrie eleison, a nota mais aguda; no terceiro, a mais grave novamente. Temos, portanto, uma forma a-b-a.

    Abaixo, a seo seguinte, Christe eleison, executada trs vezes da mesma maneira, dando-nos uma forma c-c-c.

    Figura 10. Incio da seo Christe eleison do Kyrie da Missa Syllabica

    Na voz T continuamos com a posio alternante; na voz M agora o modo 4:

    Figura 11. Escolha das notas para a seo Christe eleison do Kyrie da Missa Syllabica

  • 17

    V-se, portanto, o uso do modo 3 e do modo 4, precisamente os que partem de outros pontos e se encaminham para a nota central do modo. Em outras palavras, uma inverso: Kyrie eleison se dirige ao centro vindo do agudo; Christe eleison se dirige ao centro vindo do grave.

    Voltamos agora ao Kyrie eleison. Ele retoma as mesmas frases das trs primeiras invocaes; porm, no temos o mesmo a-b-a do incio, e sim b-a-b.

    O uso da posio alternante, na tcnica tintinabular, tem um interesse especial por causar cruzamento de vozes. Na posio superior, a voz-M ser sempre mais aguda, e, na posio inferior, ser sempre mais grave. Na posio alternante ocorre um revezamento, e

    as vozes M e T se alternam como voz mais aguda. Se o ouvido capta as notas mais agudas da textura com certo destaque, temos um resultado que no est escrito explicitamente na partitura.

    o caso deste Kyrie. Vejamos abaixo as suas linhas, agora quebradas: a voz mais aguda de cada momento est na pauta superior; a mais grave, na inferior.

  • 18

    Figura 12. Kyrie da Missa Syllabica.

    notas mais agudas e mais graves em linhas separadas

    Na primeira frase (e tambm terceira), vemos que a voz superior (que ouvimos, mas no est escrita como tal) acaba fazendo ouvir, ela tambm, somente as notas da trade. Na segunda frase ouvimos uma idia ascendente (primeiro completa: mi-f-sol-l; depois incompleta: mi-f) ligada ao modo 1, no usado diretamente na composio desta pea, mas presente nesta deduo que fazemos.

    O Gloria da Missa Syllabica usa sempre duas vozes (sem contar a voz-T tocada pelo rgo), alternando entre contraltos com tenores e sopranos com baixos. Cada voz usa sempre o mesmo modo e o mesmo princpio na construo de sua msica em relao ao texto.

    Figura 13. Incio do Gloria da Missa Syllabica

    No incio Prt utiliza os contraltos com tenores. Contraltos usam o modo 1, e os tenores o modo 2.

  • 19

    No caso dos contraltos, a ltima slaba de cada palavra sempre atribuda quinta nota do modo (l), fazendo com que cada palavra comece numa nota diferente, conforme seu nmero de slabas.

    Figura 14. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

    Quanto aos tenores, temos o oposto: todas as palavras comeam na mesma nota (r), a primeira do modo.

    Figura 15. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

    A sobreposio de duas maneiras diferentes de musicar as palavras (primeira nota na primeira slaba, e ltima nota na ltima slaba) aumenta o nmero de resultados possveis da escrita contrapontstica. O exemplo a seguir esclarece este fato.

  • 20

    Figura 16. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

    Na letra A temos os dois modos sobrepostos e, a seguir, palavras do Gloria (de uma a cinco slabas) conforme musicadas por Prt: contralto no modo 1, ltima slaba para ltima nota; tenor no modo 2, primeira slaba para primeira nota.

    A letra B mostra as possibilidades dessa sobreposio. Como o contralto pode comear a palavra em qualquer nota, de acordo com o nmero de slabas, e o tenor comea sempre com a primeira, a nota r do tenor pode aparecer em combinao com qualquer das notas do modo 1 do contralto. Isto tambm facilmente observvel na letra A do mesmo exemplo, olhando-se a primeira nota de cada palavra: temos ali todas estas cinco combinaes. Considerando, em seguida cada nota do modo do tenor, chegamos a quinze combinaes possveis.

    Se Prt houvesse escrito as vozes partindo sempre da mesma nota, fosse a primeira do modo, ou a quinta, o nmero de possibilidades no seria quinze, mas apenas cinco. O

    exemplo a seguir considera este tipo de escrita.

    Figura 17. Escolha das notas no Gloria da Missa Syllabica

    Nem mesmo necessrio acrescentarmos uma letra B, como no exemplo anterior a

    este ltimo, porque todas as possibilidades j esto enumeradas tanto na sobreposio dos modos do primeiro compasso como no final, na palavra unigenite. Aqui fiz todas as palavras comearem pela primeira nota de cada modo. Se partisse da quinta nota, os resultados seriam exatamente os mesmos.

  • 21

    Prt parte de notas diferentes de modo consciente. Existe ainda outro fator que contribui para a variedade: a voz-T. O compositor escolheu a posio alternante, o que significa que para uma mesma nota sempre h duas possibilidades, como vimos: a nota tridica superior e a nota tridica inferior.

    As duas possibilidades da posio alternante, multiplicadas pela quinze combinaes do modo 1 e do modo 2 partindo de notas diferentes (quinta e primeira, respectivamente), nos d um conjunto de trinta acordes. Sendo quatro repetidos (marcados com a letra r), temos vinte e seis acordes diferentes.

    O exemplo a seguir lista todos esses acordes. Primeiro aparecem os acordes montados com uma voz-T acima da linha do soprano (superior); no segundo sistema, aqueles obtidos com uma voz-T abaixo da linha do soprano (inferior).

    Figura 18. Possibilidades de acordes tintinabulares

  • 22

    Atentemos para o fato de que, como natural da escrita tintinabular, todos os acordes contm pelo menos uma nota da trade principal (de r menor: r-f-l). A maioria contm mesmo duas notas tridicas. E existem tambm acordes em que todas as notas so tridicas.

    Restrinjo-me aqui s escolhas de Prt para o Gloria. Se atribusse ainda uma voz-T ao tenor, a princpio seria multiplicado por dois este nmero de trinta acordes, resultando sessenta; entretanto, haveria numerosos acordes repetidos. Mesmo assim, seriam estendidas as possibilidades, e teramos neste caso acordes de quatro notas.

    Naturalmente Prt no seleciona acordes entre os disponveis nesse campo. Sua escrita contrapontstica, como j se pde compreender. O quadro de acordes que mostrei acima serve ao propsito de compreender as possibilidades. Vejamos agora como soa o incio do Gloria:

    Figura 19. Incio do Gloria da Missa Syllabica

    Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus bonae voluntatis11: eis o texto desta primeira seo confiada aos contraltos e tenores. Na seqncia entram os sopranos e baixos.

    Figura 20. Laudamus te, benedicimus te do Gloria da Missa Syllabica

    11

    Glria a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por ele amados. Bonae voluntatis, traduzido em portugus como por ele amados, literalmente de boa vontade.

  • 23

    Lembremo-nos de que no Kyrie a primeira seo se encaminhava para o centro do modo elio em sentido descendente, vindo do agudo; e a segunda em sentido ascendente, vindo do grave. Prt utiliza a mesma idia aqui. A linha do soprano desce em direo quinta do modo elio (l) nesta segunda seo; anteriormente, a linha do contralto ascendia em direo mesma nota.

    O mesmo tipo de inverso encontramos na linha do baixo. Esta voz realiza movimentos ascendentes partindo do centro do modo elio (r). O tenor, na primeira seo, movimentos descendentes a partir da mesma nota.

    Assim Prt comps todo este Gloria. Falta-nos apenas ver a distribuio das vozes para cada parte do texto:

    Texto Vozes

    Gloria in excelsis Deo

    et in terra pax hominibus bonae voluntatis.

    Contralto e Tenor

    Laudamus te. Benedicimus te.

    Adoramus te. Glorificamus te.

    Soprano e Baixo

    Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam. Contralto e Tenor

    Domine Deus, Rex caelestis, Deus Pater omnipotens. Soprano e Baixo

    Domine Fili unigenite, Jesu Christe. Contralto e Baixo

    Dominus Deus, Agnus Dei, Filius Patris, Soprano e Baixo

    Qui tollis peccata mundi, miserere nobis. Contralto e Tenor

  • 24

    Qui tollis peccata mundi,

    suscipe deprecationem nostram.

    Soprano e Baixo

    Qui sedes ad dexteram Dei Patris, miserere nobis. Contralto e Tenor

    Quoniam tu solus sanctus,

    tu solus Dominus, tu solus Altissimus, Jesu Christe.

    Soprano e Baixo

    Cum Sancto Spiritu, in gloria Dei Patris. Contralto e Tenor

    Amen. Todas as vozes

    Somente o Amen que conclui o texto escrito para as quatro vozes. Tambm aqui aplicado o mesmo princpio usado desde o incio do Gloria, considerando que a palavra Amen tem duas slabas. Prt segue sua regra fielmente, mesmo que o acorde final contenha notas alheias trade principal no caso, mi e d. Ocorre tambm que a nota principal da escala da pea, r, est ausente deste ltimo acorde.

    Figura 21. Final do Gloria da Missa Syllabica

  • 25

    Sigamos agora com a abordagem do Credo, o terceiro movimento da composio. da tradio do rito romano que suas primeiras palavras sejam ditas ou cantadas pelo sacerdote, e a continuao fique a cargo dos fiis ou do coro. Prt faz uso de um expediente parecido, confiando esta primeira frase aos baixos, somente: Credo in unum Deum12. A partir da frase seguinte Prt compe a pea sempre a duas vozes, exatamente como no Gloria; mas os pares desta vez so diferentes: a alternncia ocorre entre as vozes femininas e as vozes masculinas.

    O mesmo sistema adotado para a linha dos tenores vale para a linha dos sopranos. A mesma relao ocorre entre a linha dos baixos e a dos contraltos. As vozes agudas sempre partem da quinta nota da escala elia (l), na primeira slaba de cada palavra. As vozes graves sempre chegam na primeira nota da mesma escala (r), na ltima slaba de cada palavra.

    No Gloria vimos que, embora cantassem duas vozes, o rgo executava uma voz-T ligada voz-M mais aguda, somente. No Credo Prt d a cada uma das duas vozes a sua respectiva voz-T, ambas executadas pelo rgo, sempre na posio alternante.

    Desta vez, sim, podemos considerar um quadro de acordes a quatro vozes semelhante ao que montamos na anlise do Gloria. So sessenta acordes, dos quais dez se repetem: cinqenta acordes diferentes.

    Eis um guia para o prximo exemplo (figura 22), que mostra os sessenta acordes:

    Letra A: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T tambm na posio superior.

    Letra B: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T tambm na posio inferior.

    12

    Creio em um Deus, literalmente; Creio em um s Deus, na verso portuguesa do Credo Niceno-Constantinopolitano.

  • 26

    Letra C: voz aguda com voz-T na posio superior e voz grave com voz-T na posio inferior.

    Letra D: voz aguda com voz-T na posio inferior e voz grave com voz-T na posio superior.

    Prxima pgina: Figura 22. Possibilidades de acordes tintinabulares

  • 27

  • 28

    Pgina anterior: Figura 22. Possibilidades de acordes tintinabulares

    Assim como no Gloria, Prt faz as quatro vozes cantarem juntas o Amen que conclui o Credo. Mais uma vez a fidelidade ao processo de atribuio de notas s slabas faz com que haja uma nota no tridica no acorde final (si bemol no tenor e no soprano), e que esteja ausente a tera (f). Devido posio alternante da voz-T, a nota mais grave o quinto grau da escala.

    Figura 23. Final do Credo da Missa Syllabica

    Uma peculiaridade do Credo, dentro desta Missa, o uso de bordes, notas graves longas sustentadas em certos trechos. No aparecem nos outros movimentos. A partitura traz uma diviso do Credo em dezoito sees (indicada nos nmeros de ensaio). As sees indicam a mudana das vozes que cantam o texto. Considerando que Prt usa os bordes nas sees 5, 6, 11, 12 e 17, fica perceptvel um padro: 4-2-4-2-4-2, que 4 indica quatro compassos sem uso do pedal do rgo, e 2 indica dois compassos com uso do pedal do rgo:

  • 29

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

    Sem pedal Pedal Sem pedal Pedal Sem pedal Pedal

    O compasso 18 o Amen, em que o pedal do rgo toca uma nota para cada slaba, junto com o coro. Em todos os outros momentos que o pedal toca, para realizar um bordo, seja no primeiro grau da escala, seja no quinto.

    O quarto movimento da Missa o Sanctus, uma jubilosa aclamao a Deus cantada pelo coro ou fiis em unio com os anjos e santos, como anuncia a orao que o precede, chamada Prefcio. Na Missa Syllabica o nico movimento que no foi composto em r elio, e sim em f jnio ou f maior, na msica tonal, relativa de r menor que se identifica com o r elio, em sua forma natural. Alm disto, pela primeira vez na composio, as quatro vozes cantam juntas todo um movimento. O organista toca com as duas mos e tambm com o pedal, embora este esteja ausente de algumas passagens.

    Tambm pela primeira vez na obra Prt faz todas as vozes obedecerem ao mesmo princpio de chegar ao primeiro grau da escala (f) na ltima slaba de cada nota, seja ascendendo (soprano e tenor, em oitavas), seja descendo (contralto e baixo, tambm em oitavas). A mo direita do organista executa a voz-T prpria do soprano (e tenor), e a mo esquerda a voz-T prpria do baixo (e contralto). A mo esquerda quase sempre secundada pelos pedais, e as vozes-T, novamente, se encontram na posio alternante.

    O Agnus Dei volta escala de r elio e deixa silenciosos sopranos e baixos. Apenas cinco notas so usadas pelos contraltos e tenores: contraltos chegam quinta (l) na ltima slaba de cada palavra, e tenores chegam ao primeiro grau (r) tambm na ltima slaba. Com tal procedimento so possveis apenas trs combinaes: a quinta r-l, a tera mi-sol e um unssono em f ainda, claro, sem contar possveis vozes-T.

  • 30

    Figura 24. Combinaes de notas no Agnus Dei da Missa Syllabica

    Em certa semelhana com o texto do Kyrie, o texto do Agnus Dei tambm apresenta uma estrutura em trs partes, suplicando ao Cordeiro de Deus o perdo dos pecados e, na terceira invocao, que seja concedida paz. Prt escreve as trs partes de modo igual para as vozes-M (contralto e tenor), diferenciando em cada uma delas a voz-T, conforme indicado a seguir:

  • 31

    Texto13 Voz-T

    Agnus Dei,

    qui tollis peccata mundi: miserere nobis.

    Posio alternante

    em relao ao contralto

    Agnus Dei,

    qui tollis peccata mundi: miserere nobis.

    Posio alternante em relao ao tenor

    Agnus Dei,

    qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem.

    Duas vozes-T:

    uma para o contralto, outra para o tenor

    Abaixo, um quadro completo de possibilidades de acordes segundo o mtodo especfico usado por Arvo Prt no Agnus Dei da Missa Syllabica. Para melhor compreend-lo, segue sua explicao:

    Letra A: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada voz aguda na posio superior

    Letra B: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada voz aguda na posio inferior

    Letra C: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada voz grave na posio superior

    Letra D: acordes de trs notas, com a sobreposio dos modos e uma voz-T aplicada voz grave na posio inferior

    13

    Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: tende piedade de ns. Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo: dai-nos a paz.

  • 32

    Letra E: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos e vozes-T aplicadas a ambas as vozes, ambas na posio superior

    Letra F: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos e vozes-T aplicadas a ambas as vozes, ambas na posio inferior

    Letra G: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio superior para a voz aguda e voz-T na posio inferior para a voz grave

    Letra H: acordes de quatro notas, com a sobreposio dos modos; voz-T na posio inferior para a voz aguda e voz-T na posio superior para a voz grave

    Figura 25. Possibilidades de acordes tintinabulares no Agnus Dei da Missa Syllabica

    O sexto movimento da Missa Syllabica o Ite missa est. Trata-se da despedida ao final da missa, que, como informa Paul Hillier, no costuma fazer parte de missas polifnicas desde o sculo XIV14. Seu texto consiste unicamente da frase Ite, missa est (Ide, a missa terminou) seguida da resposta Deo gratias (Graas a Deus). Prt usa todas as vozes, rgo e pedais do rgo neste movimento. As vozes se encaminham, sem exceo, para o primeiro grau da escala (movimento ascendente no soprano e no tenor, descendente no contralto e no baixo).

    14

    HILLIER (2002), p.110. O Ite missa est est sempre presente na Liturgia, mas Hillier se refere a uma pea musical especfica para ele.

  • 33

    1.5. Conseqncias verticais

    A tcnica tintinabular se nos revela uma tcnica contrapontstica, um mtodo de escrever nota contra nota. Entretanto, como se pde perceber pela sua descrio efetuada mais acima, ela no leva em conta a idia de consonncia e dissonncia tal como no contraponto tradicional. So comuns os choques de segundas ou nonas, inclusive menores; e nada mais distante da tcnica tintinabular do que resolv-las da maneira que se fazia no contraponto antigo.

    Portanto, o que ouvimos verticalmente resultado da sobreposio de vrias linhas horizontais. Quando muitas vozes esto envolvidas na msica, muito possvel que ouamos acordes bastante distantes do que se esperaria de uma tonalidade tradicional. Isto nos leva concluso de que Prt no pode ser simplesmente um neotonal, j que tonalidade implica em funes, e aqui j no as temos. possvel uma ampla variedade de acordes que poderiam chegar at mesmo a conter todas as sete notas da escala diatnica.

    Os acordes abaixo foram extrados da obra Cantus in memoriam Benjamin Britten, para orquestra de cordas e sino. Alguns contm cinco notas, mas a maioria contm seis, das quais trs so, naturalmente, a trade de l menor, do l elio em que a pea est escrita. Os nmeros se referem ao compasso em que cada acorde se encontra.

    Figura 26. Acordes de Cantus in memoriam Benjamin Britten

    No segundo acorde do compasso 36, ali colocado entre parnteses por ser ouvido bem de passagem, temos praticamente um cluster: d-r-mi-f.

  • 34

    Esta liberdade com o material diatnico havia sido prenunciada numa pequena composio para coro a quatro vozes chamada Solfeggio, de 1964 (pertencente, portanto, primeira fase da obra de Prt). Assim como grande parte das obras tintinabulares, foi escrita com rigor quanto seqncia das notas, que sempre a da escala diatnica de d a si, de uma maneira que poderia at mesmo ser considerada serial. No h, entretanto, preocupao em relao a consonncia do modo entendido tradicionalmente, ouvindo-se acordes com todo tipo de intervalo possvel dentro de uma escala diatnica. Solfeggio ser abordada brevemente, mas de modo mais claro, no segundo captulo deste trabalho.

    1.6. Composio da voz-M em msica instrumental

    Em seguida examinaremos um pouco a obra An den Wassern zu Babel saen wir und weinten (s margens das guas da Babilnia sentvamo-nos e chorvamos), verso que principia o Salmo 136 (137). Trata-se de um salmo sobre o exlio hebraico na Babilnia:

    s margens dos rios da Babilnia, nos assentvamos chorando, lembrando-nos de Sio

    Nos salgueiros daquela terra, pendurvamos, ento, as nossas harpas,

    porque aqueles que nos tinham deportado pediam-nos um cntico (...)

    Se eu me esquecer de ti, Jerusalm, que a minha mo direita se paralise!15

    15

    BBLIA, pp.768-769

  • 35

    A obra, contudo, no tem o salmo como texto. Seu primeiro ttulo havia sido In Spe, provavelmente para ocultar sua inteno religiosa (o mesmo havia ocorrido com Sarah was ninety years old, anteriormente chamada Modus). As vozes cantam apenas vogais, e o texto sobre o qual a pea foi construda (embora no seja cantado) o mesmo do Kyrie da Missa. Veremos novamente uma pea vocal por seu modo diferente de construir a voz M, independente do texto.

    Nesta obra cada linha de msica numerada, como um substituto para a numerao de compassos nos quais ela no dividida.

    Linha Vogal Palavra

    1 i Kyrie

    2 i Kyrie

    3 e Kyrie

    4 e eleison

    5 e eleison

    6 o eleison

    A seguir temos tambm as vogais de Christe eleison e novamente Kyrie eleison.

    As sees referentes a Kyrie e Christe so cantadas por uma nica voz para cada vogal, cada uma a seu tempo. No primeiro i, por exemplo, cantam os tenores, em seguida os sopranos, em seguida os baixos. Somente as sees da palavra eleison fazem uso da voz T, seja no rgo, seja nas prprias vozes, e sempre na posio alternante.

  • 36

    Examinemos portanto as frases musicais encontradas nesta pea e como elas foram construdas.

    Figura 27. Incio de An den Wassern zu Babel saen wir un weinten

    Este o incio da composio, cantado pelo tenor. V-se aqui o uso do modo 3, isto , o modo descendente em direo ao centro do modo. Em cada uma das pequenas frases principia-se com uma nota cada vez mais grave (marcada com a cruz), passando-se ento a um movimento descendente desde a nota mais aguda (mi) at chegar na nota marcada com cruz. Substituindo as notas por letras, teramos:

    a bab cabc dabcd eabcde

    Mais adiante na obra os baixos cantam as mesmas frases, mas desta vez invertidas, isto , no chamado modo 1:

    Figura 28. Linha dos baixos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten

    Eis agora outra frase encontrada na obra, calcada na idia de espelhamento:

    Figura 29. Linha dos sopranos de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten

  • 37

    Os nmeros foram acrescentados com o fim de tornar mais explcito o espelhamento. Pensar deste modo nos autorizado pelo prprio Prt, que utiliza este sistema para explicar a jovens de uma orquestra, no documentrio de Dorian Supin, como se desenvolve a melodia da obra Fratres16.

    Frases semelhantes, um pouco mais desenvolvidas, surgem depois:

    Figura 30. Frases de An den Wassern zu Babel saen wir und weinten

    Esta idia de espelhamento tambm clara na parte dos violoncelos no segundo movimento, Silentium, de Tabula Rasa. Ocorre um crescimento gradual, sempre em movimentos alternadamente ascendentes e descendentes:

    Figura 31. Linha dos violoncelos no incio de Silentium,

    segundo movimento de Tabula Rasa 16

    24 Preludes for a Fugue filme documentrio que encabea a bibliografia neste trabalho. Encontrvel em DVD, foi escrito e dirigido por Dorian Supin. Este vdeo mostra depoimentos e cenas de Arvo Prt.

  • 38

    O arco continua crescendo de modo que, em determinado momento, parte desta linha tocada pelos contrabaixos, por extrapolar a extenso dos violoncelos no grave.

    A inconvenincia de nos limitarmos, neste primeiro captulo, a uma simples descrio da tcnica tintinabular sem exemplos nos leva a esboar esta anlise da Tabula Rasa. No terceiro captulo iremos alm do esboo, desvendando em maior grau de detalhe a composio desta obra.

    1.7. Concluso

    Certamente muito cedo, neste ponto, para quase qualquer tipo de concluso. Alm disto, no s a tcnica tintinabular consideravelmente simples como nosso intento, neste primeiro captulo do trabalho, foi o de a apresentar, somente.

    Desta forma, uma verdadeira concluso se d com a compreenso desta tcnica pelo leitor, a qual esperamos ter alcanado; e com o prosseguimento das anlises, que elucidaro em que contexto Prt utiliza sua tcnica em suas obras. Deixamos nossa sugesto de que o leitor experimente por si a tcnica, no papel e ao piano ou outro instrumento. Asseguramos

    que esta prtica ser muito til em todos os momentos do trabalho.

  • 40

    Captulo 2

    Prt e a Msica Antiga

    2.1.Introduo No ano de 1976 ocorreu o incio de uma nova fase na vida composicional de Arvo Prt. Nos anos anteriores o compositor se entregara a estudos da msica medieval e a exerccios de composio de monodias. Que existe na msica medieval que chamou a ateno do compositor que estudamos? Paul Hillier comenta:

    Prt diz que foi o esprito da msica antiga que lhe interessou, muito mais do que os procedimentos tcnicos pela qual ela realizada. O que esse esprito? E em que medida ele pode ser separado da tcnica? Em seu tempo de estudante, as lies de contraponto de Prt incluram msica de Palestrina, mas era um Palestrina reduzido a exemplos de livro-texto, dissociado de experincias vivas da msica e de seu aspecto espiritual, e tudo aquilo lhe dizia muito pouco. Mais tarde ele retornou quela msica (...)17

    Hillier certamente tem por base a entrevista concedida por Prt a Jamie McCarthy, na qual o prprio compositor reconhece no significar muito a simples meno a essa

    influncia do esprito da msica antiga18. Mesmo assim, refora seu maior interesse nesse aspecto um tanto intangvel do que na mecnica da polifonia. Isto procede, pois Prt criou a sua prpria mecnica polifnica, isto , a tcnica tintinabular. Mesmo assim, existem parentescos suficientes entre sua msica e a msica medieval para que nos detenhamos neste assunto e o examinemos com cuidado. o que fazemos neste segundo captulo.

    2.2.O diatonismo

    17

    HILLIER (2002), p.78. 18

    McCARTHY (1989).

  • 41

    A primeira semelhana que se percebe entre a msica de Arvo Prt e a msica medieval o seu absoluto diatonismo. Vejamos a definio do adjetivo diatnico:

    Baseado ou derivado de uma oitava de sete notas numa configurao particular, em oposio escala cromtica e outras formas de escala. Diz-se que uma escala de sete notas diatnica quando a sua oitava preenchida por cinco tons e dois semitons, sendo que os semitons fiquem to separados quanto possvel, como na escala maior (T-T-S-T-T-T-S). A escala menor natural e os modos eclesisticos tambm so diatnicos. (do Grove on-line: diatonic)

    Falamos, claro, da fase tintinabular da obra de Prt, a partir de 1976. Entretanto, este diatonismo prenunciado por uma composio de 1964 intitulada Solfeggio, para coro misto a quatro vozes. Ela faz uso exclusivo das notas brancas, sem acidentes, da escala diatnica. Est ausente, porm, qualquer tipo de encadeamento harmnico que faa lembrar a msica tonal. Mesmo o seu modalismo particular. Isto se deve ao uso serial da escala: a seqncia das notas, horizontalmente, a mesma da escala: d, r, mi, f, sol, l, si, d. Seguem os onze primeiros compassos da obra (as duraes foram um pouco simplificadas):

    Figura 32. Incio de Solfeggio

    A cada compasso surgem duas notas: compasso 1, d-r; compasso 2, mi-f; compasso 3, sol-l; compasso 4, si-d; compasso 5, r-mi; e assim por diante, at o fim: a seqncia das notas a mesma em toda a pea, cuja durao, segundo a partitura, de cinco a seis minutos.

    Solfeggio demonstra o gosto de Prt pelo diatonismo j em sua primeira fase. Entretanto, no se trata de uma obra de transio, pois nos anos subseqentes ainda seriam escritas vrias composies de serialismo e colagem (Segunda Sinfonia, Pro et contra, Collage sur B-A-C-H e Credo).

  • 42

    2.3.Os modos eclesisticos Como a msica medieval diretamente baseada nos modos eclesisticos, citados pelo verbete do Grove, temos que rigorosamente diatnica, mesmo quando surgem, mais tarde, algumas alteraes cromticas. O sistema modal eclesistico compreende oito modos. Quatro so chamados autnticos, iniciando nas notas r, mi, f e sol. Os outros quatro so chamados plagais, e comeam uma quarta abaixo dos respectivos autnticos.

    Figura 33. Sistema modal eclesistico

    A figura acima nos informa as escalas dos modos. Sabemos que a idia de escala se refere ao tesouro19 de notas da qual faz uso uma determinada msica; e que a idia de modo se refere aos magnetismos internos de uma dada escala. Por esta razo, vemos que, embora suas escalas sejam nominalmente as mesmas, os modos drico (modo 1) e hipomixoldio (modo 8) no so os mesmos, porque suas notas mais importantes so diferentes. Isto afeta

    19

    Utilizamos a palavra tesouro conforme o sentido da origem desta palavra, a palavra latina thesaurus: tesouro, bens, haveres, teres, proviso de toda sorte, locam em que se acumulam os bens materiais e no-materiais, depsito de conhecimentos, de acordo com HOUAISS (1999).

  • 43

    diretamente a estrutura meldica das monodias compostas sobre eles, e de maneira to clara que perfeitamente possvel distingui-las quanto origem modal. As referidas notas mais importantes so a final (marcada no diagrama com a letra F) e a dominante (marcada no diagrama com a letra D). A nota final, evidentemente, a nota na qual terminam as melodias baseadas num determinado modo. Para entender a dominante necessrio deixarmos totalmente de lado a noo de dominante tal como a aprendemos na msica tonal. Dominante vem do verbo dominar, e percebemos que a nota qual se atribui esta nomenclatura tem grande presena nas melodias de um dado modo, sendo repetida e ornamentada de vrias maneiras. muito clara a presena da nota dominante nas frmulas meldicas a que chamamos tons salmdicos. Os tons salmdicos so maneiras de cantar salmos em certos momentos especficos da Liturgia. Apresentam uma frmula de entonao (para o incio de uma estrofe), uma frmula de terminao (para o fim de uma estrofe), frmulas de mediao (para o fim de versos individuais) e, de modo marcante, notas repetidas para a maior parte das slabas do texto. Vejamos abaixo os tons salmdicos correspondentes a cada modo. Acrescenta-se a eles um tonus peregrinus.

    Prxima pgina: figura 34. Frmulas salmdicas eclesisticas para cada modo e tonus peregrinus

  • 44

  • 45

    Pgina anterior: figura 34. Frmulas salmdicas eclesisticas para cada modo e tonus peregrinus

    Na Liturgia estes tons salmdicos so usados na recitao dos salmos da Liturgia das Horas (o Ofcio Divino20). Na Missa, so empregados nos versos intercalados entre as repeties da antfona de Introito e de Comunho e tambm no Salmo Responsorial21.

    Detenhamo-nos brevemente na tabela dos tons de recitao. Observe-se que cada um deles se divide em trs partes. Cada uma aplicada a um verso, quando se tem uma diviso do salmo em partes de trs versos. Quando a diviso em partes de dois versos, o que mais comum, usam-se a primeira e a terceira frases.

    As notas escritas em branco so chamadas tenor. O tenor utilizado para a maior parte das slabas de um dado salmo.

    A primeira frase se compe de uma entonao (as primeiras notas), seguida pelo tenor. Depois do tenor temos mais algumas notas, uma delas marcada por um acento. Este acento marca a ltima slaba tnica do verso. Desta forma, as primeiras notas so dadas s primeiras slabas, as ltimas notas s ltimas slabas, e o tenor a nota usada para todas as outras slabas, formando assim uma melodia de recitao com muitas notas repetidas o estilo da salmodia.

    A segunda frase usada para um segundo verso, e a terceira para um terceiro verso. As notas depois do tenor da terceira frase so chamadas de terminao. Eis a seguir um exemplo de salmodia22 no primeiro tom: 20

    O Ofcio Divino a orao oficial da Igreja Catlica Romana. So sete funes dirias: Ofcio das Leituras (a qualquer hora do dia), Laudes (incio da manh), Tera (9 horas), Sexta (12 horas), Noa (15 horas), Vsperas (fim da tarde ou comeo da noite) e Completas (ltima orao do dia, antes do sono). Tal a estrutura de acordo com a reforma litrgica aprovada pelo papa Paulo VI. Anteriormente existia um ofcio chamado Matinas, substitudo depois pelo Ofcio das Leituras. Em todas estas oraes se faz uso de salmos (trs em cada ofcio, com exceo das Completas, com um ou dois), tradicionalmente recitados com estes tons salmdicos que abordamos. 21

    O Salmo Responsorial se encontra depois da primeira leitura do rito da Missa. seguido pela segunda leitura ou pelo Evangelho e seu respectivo Aleluia, conforme a liturgia do dia. Antes da reforma litrgica do papa Paulo VI no se tinha o Salmo Responsorial, e sim o Gradual que continua, a propsito, sendo uma alternativa mesmo no rito novo, e consta do Graduale Romanum, o livro de canto gregoriano para a Missa publicado pelos monges de Solesmes. O Gradual, porm, uma melodia inteiramente composta, e no uma frmula de recitao.

  • 46

    Figura 35. Cantilao salmdica no primeiro tom

    A presena de notas repetidas confere ao canto dos salmos um carter mais recitativo do que propriamente meldico. Algumas partes da Missa recitadas pelo sacerdote tm, em livros de canto, melodias que seguem essa idia. Eis um exemplo23:

    Figura 36. Recitao do convite penitncia antes do Kyrie na liturgia da Missa

    Existem tambm frmulas meldicas precisas para o canto das leituras; h melodias especficas para a profecia, a epstola e o Evangelho. So dadas inflexes meldicas para o fim das frases de acordo com a pontuao: ponto final, dois pontos, ponto de interrogao. Este exemplo se refere recitao de uma epstola24:

    22

    O texto um trecho do Salmo 4, usado nas Completas de Sbado. Tremei, mas sem pecar; / refleti em vossos coraes, / quando estiverdes em vossos leitos, e calai. 23

    Irmos, reconheamos nossos pecados para que sejamos capazes de celebrar dignamente estes santos mistrios. introduo do sacerdote ao Ato Penitencial da Missa. 24

    O texto diz: Leitura da Carta de So Paulo Apstolo aos Romanos

  • 47

    Figura 37. Anncio recitado de leitura bblica na liturgia da Missa

    Na obra de Arvo Prt no incomum encontramos o uso de notas repetidas de maneira semelhante dos tons de recitao salmdica. As primeiras composies do estilo tintinabular no traziam esta caracterstica, mas peas posteriores a adotaram com interessante resultado. No coincidentemente vrias das obras que apresentam este aspecto so composies corais escritas sobre textos em ingls. Este idioma apresenta um grande nmero de palavras de uma nica slaba. Se ainda for seguido o processo de utilizar a escala de acordo com o nmero de slabas, temos de fato muitas repeties, j que os monosslabos so maioria. Isto no tira das obras o seu carter de recitao salmdica, pois o resultado musical audvel desta, como daquelas, claramente aparentado. O primeiro exemplo a pea And one of the Pharisees..., para trs vozes a cappella (contratenor ou contralto, tenor e baixo), escrita em 1992. O texto do Evangelho segundo So Lucas, captulo 7, versculos de 36 a 50: Um fariseu convidou Jesus a ir comer com ele. Jesus entrou na casa dele e ps-se mesa.(...)25 A escala utilizada por Prt nesta obra de carter oriental. Trata-se da escala menor harmnica com o quarto grau elevado em um semitom.

    Figura 38. Escala com segundas aumentadas utilizada em And one of the Phrarisees...

    25

    BBLIA, p. 1356.

  • 48

    A seguir vemos as trs primeiras frases da pea. Esto aqui transcritas apenas as vozes-M de cada momento. A todo instante, nestas frases, as vozes restantes fazem ouvir vozes-T.

    Figura 39. Primeiras frases de And one of the Pharisees...

    Podemos perceber a adeso fiel ao nmero de slabas das palavras na escolha das notas. Como espervamos, predominam as palavras monossilbicas. Desta forma, destacam-se as que possuem duas ou mais slabas porque, quando aparecem, ocorre uma mudana na melodia. Na primeira frase isto ocorre nas palavras Pharisees e desired, esta logo em seguida quela. Na primeira, o movimento descendente; na segunda, ascendente; fica clara a alternncia destes movimentos como critrio para as inflexes meldicas dos polisslabos. A nota diversa da repetida surge sempre na slaba tnica da palavra em questo, razo pela qual os movimentos ascendentes ou descendentes continuam na palavra seguinte em alguns casos.

    O uso da slaba tnica na escolha das notas aproxima esta tcnica composicional do pensamento da salmodia. Teremos mais tarde a oportunidade de ver que Prt se vale deste recurso na composio de peas escritas sobre textos em outros idiomas tambm.

  • 49

    Figura 40. Escolha das notas em And one of the Phrarisees

    A letra A se refere primeira frase, conduzida pelo contratenor. O centro si (indicado no incio) e as palavras com mais de uma slaba esto em seguida. A letra B se refere segunda frase, esta conduzida pelo tenor, centrado em sol. As palavras so into e Pharisees, a primeira descendente e a segunda ascendente. A terceira frase (letra C) dividida entre as trs vozes. Behold, no baixo, tem a ltima slaba como tnica, de modo que o a seguinte levado em conta: movimento descendente. Woman, no tenor, tem movimento ascendente. City e sinner esto na parte do contratenor, novamente alternando: descendente e ascendente. Este princpio utilizado consistentemente at o fim da composio. Entretanto, em alguns momentos utiliza uma outra tcnica para obter suas frmulas de recitao. Trata-se das palavras proferidas pelos personagens envolvidos: Simo, cujas falas so musicadas para solo de contratenor, e Jesus, cujas falas foram confiadas ao baixo. Existe ainda uma pergunta [W]ho is this that forgiveth sins also?26 feita pelos convivas; sendo uma pessoa plural esta frase foi musicada para as trs vozes em seus respectivos registros agudos, as notas mais altas utilizadas na pea. No final as palavras de Jesus [T]hy faith hath saved thee; go in peace27 so excepcionalmente entregues s trs vozes, que cantam a nota em

    mi em trs oitavas diferentes: um recurso tmbrico que poderamos considerar uma nica grande voz. Observemos, ento, como Prt comps sua msica para as falas do dilogo. Lembremo-nos da escala utilizada por ele nesta obra. Isolando seu pentacorde inicial, temos os chamados modos 1 e 3, conforme a sistematizao, por Hillier, da tcnica tintinabular.

    26

    Quem este que tambm perdoa pecados? 27

    Tua f te salvou; vai em paz.

  • 50

    Esta seqncia de notas, usada por Prt em tantas obras, usada na estruturao de uma frmula de recitao salmdica especfica de And one of the pharisees....

    Figura 41. Modos tintinabulares 1 e 3 na escala de segundas aumentadas

    A nota reiterada sol, razo pela qual foi escrita entre parnteses do exemplo acima. As outras notas emergem nos momentos em que se tem a slaba tnica de uma palavra com duas ou mais slabas. E sua apario ocorre na ordem no exemplo anterior. Reproduzimos abaixo as notas do primeiro solo de contratenor (em cujo texto os fariseus censuram Jesus por se permitir ser tocado por uma pecadora). Com asterisco foram marcadas as notas atribudas s slabas tnicas dos no-monosslabos. A primeira l sustenido; em movimento ascendente, chega-se ao si; aps o que s se pode descer, tendo-se ento l sustenido, f sustenido (o prprio sol, da recitao, omitido) e mi.

    Figura 42. Solo de contratenor de And one of the Pharisees

    Assim foram escritos os trs solos de contratenor. Os solos de baixo, em nmero de cinco, tm os trs primeiros compostos na fidelidade ao mesmo princpio. O quinto, um momento especialmente belo da composio, central neste texto sagrado, quando Jesus diz teus pecados so perdoados: uma escala descendente, em notas longas, de grande fora expressiva e beleza reforada pelas propriedades peculiares do modo.

    Figura 43. Solo de baixo de And one of the Phrarisees

  • 51

    O quarto solo de baixo se divide em duas partes no que concerne ao mtodo composicional. A primeira escrita de acordo com o princpio descrito anteriormente; desta vez, porm, a nota central, repetida, deslocada ascendentemente: no comeo mi, depois sol, e finalmente si.

    A segunda, centrada em si, no usa repeties de notas maneira salmdica; ela circula em graus conjuntos sobre seu eixo. A figura 44 mostra as notas (sem duraes) deste trecho. No primeiro arco, uma segunda acima e abaixo do eixo em si (do e l#); no segundo, uma tera (r# e sol); no terceiro, uma quarta (mi e f#). No quarto, h novamente uma contrao: o intervalo de tera (r# e sol); no quinto e ltimo arco, retorna-se ao intervalo de segunda (d e l#).

  • 52

    Figura 44. Notas circulando ao redor de um eixo na composio de um solo em And one of the Pharisees

    Na tabela a seguir, uma descrio completa do funcionamento das vozes em And one of the Pharisees.... A sigla pi significa posio inferior e ps posio superior. Os nmeros 1 e 2 indicam respectivamente primeira posio e segunda posio.

    Compasso Voz M Vozes-T

    1 Contratenor Tenor (1pi)

    Baixo (2pi)

    2-3 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    4-5 Baixo Contratenor (1ps)

    Tenor (2ps)

    6 Tenor Contratenor (2ps)

    Baixo (2pi)

    7 Contratenor Tenor (2pi)

    Baixo (1pi)

    8 Tenor Contratenor (2ps)

    Baixo (2pi)

    9 Baixo Contratenor (1ps)

  • 53

    Tenor (2ps)

    10 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    11-12 Contratenor Tenor (1pi)

    Baixo (2pi)

    13 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    14 Baixo Contratenor (1pi)

    Tenor (2ps)

    15 Tenor Contratenor (2ps)

    Baixo (2pi)

    16 Contratenor Tenor (2pi)

    Baixo (1pi)

    17-20 Contratenor solo -

    21 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    22-23 Baixo solo -

    24 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    25-26 Contratenor solo -

    27-34 Baixo solo -

    35 Tenor Contratenor (2ps)

    Baixo (2pi)

  • 54

    36-37 Contratenor solo -

    38 Contratenor Tenor (2pi)

    Baixo (1pi)

    39 Baixo solo -

    40 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    41 Baixo Contratenor (2ps)

    Tenor (1ps)

    42-57 Baixo solo -

    58 Tenor Contratenor (2ps)

    Baixo (2pi)

    59 Baixo solo -

    60 Contratenor Tenor (2pi)

    Baixo (1pi)

    61 Tenor e Baixo Contratenor (1ps em relao ao Tenor)

    62 Tenor Contratenor (1ps)

    Baixo (1pi)

    63-64 (oitavas na nota mi)

    -

    Cinco anos depois de And one of the Pharisees... Prt comps Tribute to Caesar (1997) sobre o conhecido texto do Evangelho segundo So Mateus em que Jesus ordena dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus28. Escrita para coro misto a quatro

    28

    Mt 22, 15-22

  • 55

    vozes, a composio usa a escala de l menor em suas verses harmnica, meldica e natural diferenciando-se assim das obras tintinabulares dos primeiros anos, que preferiam o modo elio (escala menor natural). Esta obra tambm baseia seu desenvolvimento meldico sobre o nmero de slabas das palavras, assim como a posio das slabas tnicas. O estilo salmdico usado consistentemente na obra, principalmente no incio. Eis a parte dos tenores nos compassos 4-6:

    Figura 45. Parte dos tenores de Tribute to Caesar

    Entre outras composies que fazem uso de notas repetidas esto The woman with the alabaster box e Triodion (ambas para coro a quatro vozes, de 1997 e 1998 respectivamente) e The beatitudes (para coro e rgo, de 1990-1). The woman with the alabaster box (A mulher com a caixa de alabastro) pe em msica o texto bblico Mt 26, 6-13. Trata-se de outra narrativa do episdio da mulher que unge Jesus com perfumes. Vimos esta histria no texto de So Lucas cujo texto foi usado em And one of the Pharisees.... Triodion, cujo ttulo significa trs odes, utiliza um texto litrgico da Igreja Ortodoxa em ingls. Uma introduo, cujo texto o do Sinal da Cruz29, precede a Ode I, musicado num tom salmdico similar ao usado por Prt na pea que analisamos anteriormente. A Ode I se dirige a Jesus, a Ode II Virgem Maria e a Ode III a So Nicolau. Finaliza a pea, tambm em tom salmdico, uma coda cujo texto o Gloria Patri, como se o chama na liturgia romana, mas aqui em ingls30.

    29

    Em nome do Pai, e do Filho e do Esprito Santo. Amm em ingls: In the name of the Father, and of the Son, and of the Holy Spirit. Amen 30

    Glria ao Pai, e ao Filho e ao Esprito Santo. Como era no princpio, agora e sempre, e pelos sculos dos sculos. Amm em ingls: Glory to the Father, and to the Son, and to the Holy Spirit, both now, and ever and unto ages of ages. Amen

  • 56

    The beatitudes (As bem-aventuranas) pe em msica um dos textos religiosos mais conhecidos que existem (Mt 5, 3-11)31. As bem-aventuranas fazem parte do Sermo da Montanha. Este texto inteiramente proferido por Jesus, e em sua composio Prt atribui todo o texto a todas as vozes, que cantam sempre juntas. As notas mais longas so dadas slaba tnica das palavras com mais de uma slaba. s vozes-M (contraltos e baixos), em estilo de tom salmdico, correspondem vozes-T (sopranos e tenores) sempre na posio alternada. Embora inicie e termine em f elio, a harmonia da pea modula permanentemente.

    Cabe aqui, ainda, refletirmos um pouco a respeito do parentesco e da diferena entre as notas repetidas dos tons salmdicos gregorianos e as notas repetidas das composies de Arvo Prt.

    Na recitao litrgica as notas repetidas tm certa fluncia no que se refere ao seu andamento. As notas diferentes (entonao, terminao etc.) tendem a ser ligeiramente valorizadas, tendo durao um pouco maior, sem que, contudo, isto prejudique a compreenso da maior poro de texto musicada com as notas reiteradas, o tenor. J nas composies de Prt estas notas repetidas so mais lentas. A atmosfera, mais solene e hiertica. Se nos basearmos nas composies citadas aqui (And one of the Pharisees..., The woman with the alabaster box e The beatitudes), isto faz perfeito sentido. O texto destas composies no provm do Livro dos Salmos, e sim dos Evangelhos. Os textos evanglicos tm, na Liturgia, um grau de solenidade maior do que qualquer outra leitura extrada das Sagradas Escrituras; indcio disto que na Missa eles somente podem ser lidos ou cantados por um ministro que tenha recebido o sacramento da Ordem, isto : um dicono ou sacerdote. certo que estas peas, como vrias outras de Prt, no obstante seus textos religiosos, no se destinam Liturgia. Entretanto, mesmo fora do contexto litrgico clara a diferena entre um texto dos Evangelhos e um Salmo. Os salmos so poemas endereados

    31

    Bem-aventurados os que tm um corao de pobre, porque deles o Reino dos cus! Bem-aventurados os que choram, porque sero consolados! Bem-aventurados os mansos, porque possuiro a terra!(...)

  • 57

    a Deus; louvam, agradecem, lamentam, suplicam. Os Evangelhos so palavras do prprio Jesus Cristo, Deus feito homem na Terra, e relatos de sua vida.

    2.4. O canto gregoriano Os tons salmdicos so o primeiro elemento de um gnero musical com o qual comparamos a msica de Arvo Prt neste trabalho: o canto gregoriano. Eles so, como vimos, frmulas meldicas de recitao. Examinaremos agora as prprias melodias gregorianas compostas. Elas tambm mostraro alguns parentescos com certas opes do compositor estoniano.

    Ao papa So Gregrio Magno (ca.540-604, papa a partir de 590), Doutor da Igreja e figura fundamental na Histria da Igreja Catlica, atribuda tradicionalmente a organizao do cantocho da Igreja Romana32. Algumas provas a favor dessa tradio tm sido apresentadas por estudiosos do assunto.33 O canto gregoriano tomou desde cedo este nome para no mais o perder. A voz , para Prt, o principal instrumento musical. Ao examinarmos a histria da msica ocidental, no incomum tomar como incio o canto gregoriano e em seguida a polifonia, colocando a voz como centro e origem, com a msica instrumental surgindo de modo mais autnomo consideravelmente mais tarde. O estudo do contraponto convencionou chamar vozes s linhas de que se compe a textura polifnica, e esta tradio se manteve mesmo quando j se pensava em instrumentos. Assim tambm Hillier (seguido por este trabalho) utiliza a denominao voz para falar de cada linha composta segundo a tcnica tintinabular, sem que faa diferena ser executada por canto ou instrumento.

    Se Prt tomou como base o canto gregoriano para aprender a escrever uma nica linha de msica, esta base foi vocal. Assim j nos localizamos no universo da msica cantada, o que implica em certas caractersticas. Uma das primeiras que se apresentam a 32

    HUDDLESTON in Catholic Encyclopaedia verbete St. Gregory I (The Great) - http://www.newadvent.org/cathen/06780a.htm 33

    BEWERUNG in Catholic Encyclopaedia verbete Gregorian Chant - http://www.newadvent.org/cathen/06779a.htm

  • 58

    tessitura. O cantocho, de modo geral, no costuma exceder uma oitava, talvez uma nona. Certas melodias mais antigas chegam a se limitar a uma sexta34. Verificamos assim que a maioria das linhas meldicas de Prt se restringe a uma pequena faixa de notas. Como pudemos observar no captulo dedicado tcnica tintinabular, na Missa Syllabica cada uma das vozes-M no chega a fazer uso de todas as sete notas da escala num mesmo movimento, at porque no existem nos textos palavras com sete slabas. A voz M na msica de Arvo Prt costuma se restringir a graus conjuntos. Neste aspecto encontramos uma forte influncia do canto gregoriano, cujas progresses meldicas so fundamentalmente calcadas em movimentos de segunda. de observar que, embora isto tenha vindo a Prt diretamente do canto gregoriano, outros cantos litrgicos tambm se desenvolvem dessa maneira. Os saltos costumam ser compensados, ou melhor: a faixa de notas que, por causa de um salto, deixou de ser ouvida, costuma ser preenchida nos instantes seguintes da melodia. Esses preenchimentos tambm ocorrem na melodia de Fr Alina, na qual podemos ouvir diversos saltos. Vemos aqui uma atitude fundamentalmente diferente em relao ao salto daquela que se encontra em certos outros tipos de msica. Em diversos compositores do sculo XX os saltos tm um aspecto tmbrico, ao colocar lado a lado notas de registros diferentes de um instrumento (ou de instrumentos diferentes); noutros casos, os saltos so mesmo meldicos, ainda que grandes (nona, dcima, etc.). Anton von Webern um compositor em cuja msica se pode verificar a presena de ambas as situaes. Prt se interessa pela idia de melodia em que predominem, como j afirmado, os graus conjuntos. Assim, volta-se para o cantocho da Igreja Romana. Antes de examinarmos os graus conjuntos de Prt, olharemos melodias gregorianas.

    34

    HOPPIN (1978), p. 66.

  • 59

    Figura 46. Antfona Hodie Christus natus est II Vsperas do Natal

    Esta melodia est no modo 1, drico autntico. O d grave prximo do fim, antes de alleluia, no suficiente para classificar este modo como plagal; seriam necessrias no s mais notas graves, mas tambm uma outra estrutura modal, que privilegiaria outras notas que no as enfatizadas nesta antfona. Como se pode observar na tabela dos modos eclesisticos, o modo drico tem r como final e l como dominante, enquanto o modo hipodrico tem o mesmo r como final, mas, como dominante, a nota f. Os nicos intervalos presentes nesta composio so o grau conjunto e a tera precisamente os intervalos mais utilizados no cantocho.35 Hoppin (1978) ainda observa:

    em meio ao repertrio, a predominncia de movimento por grau conjunto com ocasionais saltos de tera produz uma suavidade e uniformidade que aumentam o efeito dos intervalos meldicos maiores. (p.75)

    Hodie Christus natus est se nos revela, se a observarmos de perto, uma elaborao de um simples tom salmdico. Com elaborao queremos dizer, de fato, ornamentao. Esta ornamentao foi realizada pelo compositor de maneira hbil a ponto de manter o tom salmdico reconhecvel; entretanto, se a ouvirmos com o Magnificat cantado em seguida, nesse mesmo modo, no existir um simples efeito de ouvir duas vezes a mesma coisa.

    35

    HOPPIN (1978), p.75.

  • 60

    Preservou-se a unidade e se obteve a variedade com o uso de uma s fonte meldica. Esta fonte no apenas escalar; modal, no sentido que, alm de termos uma escala especfica, temos tambm um comportamento, uma maneira, um caminho que as notas, de modo geral, percorrem, a que se somam possibilidades de desvios e atalhos individuais que no afetam a essncia do modo. A figura a seguir demonstra a relao entre este antfona (na pauta superior) e o tom salmdico (cujas notas integrantes aparecem na pauta inferior).

    Figura 47. Anlise por graus conjuntos da antfona Hodie Christus natus est

    Nas notas da melodia a partir da slaba a da palavra Gloria temos uma ornamentao da nota r num movimento escalar que usa os modos tintinabulares 1 e 3; respectivamente um movimento ascendente at l (dominante do modo) e o retorno descendente at a nota principal.

    O canto gregoriano apresenta trs possibilidades no que se refere associao de notas e slabas. Quando a melodia atribui uma nota para cada slaba, dizemos que

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    silbica. Quando atribui algumas notas para cada slaba, dizemos que neumtica. E se atribui muitas notas para cada slaba, usamos o termo melismtica.

    Eis abaixo a primeira estrofe de um hino cantado na orao das Completas, da Liturgia das Horas, no Tempo Pascal. Os hinos so, de modo geral, exemplos de peas silbicas (alguns mais elaborados chegam a ser neumticos). Neste caso, algumas poucas slabas chegam a ser cantadas em duas notas.

    Figura 48. Hino Iesu redemptor saeculi

    Como se pode ver a linha superior traz a melodia gregoriana, e a inferior uma sua anlise meldica, igual quela que fizemos anteriormente para a antfona Hodie Christus natus est. Nela observamos a estrutura por graus conjuntos. importante ressaltar que este diagrama no pretende reduzir a melodia a uma sua possvel essncia. Seu nico propsito demonstrar que existe nela um pensamento de graus conjuntos que auxilia na composio e d ao canto a suavidade que estes intervalos costumam propiciar. As notas que a melodia tem a mais em relao ao diagrama escrito abaixo no so ornamentais e, mesmo que o fossem, seriam sua parte integrante indissocivel. O significado e a essncia da melodia s esto presentes na prpria melodia, que no se pode substituir por nada.

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    Em suas composies vocais Prt demonstra preferncia pelo silbico. Todavia, no podemos deixar de nos aproximar de uma melodia gregoriana mais floreada para observar nela tambm seus graus conjuntos e estrutura modal. A primeira a seguir Petite et accipietis, comunho para a Quinta-feira da Primeira Semana da Quaresma. Seu texto36 provm de Lc 11, 9-10 e de Mt 7, 7-8; 10, 1. Seu modo o drico autntico, e so usadas somente as cinco notas de r a l (juntando-se em alguns momentos o d grave). Vemos claramente sua macroestrutura em duas partes, em que a segunda uma variao da primeira, adaptada ao texto.

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    Pedi, e dar-se-vos-; buscai, e achareis. Batei e vos ser aberto. Todo aquele que pede, recebe. Quem busca, acha.

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    Figura 49 Anlise da antfona Petite et accipietis continua na prxima pgina

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    continuao e final da Figura 49 Anlise da antfona Petite et accipietis

    A melodia original est aqui escrita na primeira linha. A segunda linha (anlise I) traz uma anlise da construo por graus conjuntos tal qual foi feita acima para Iesu redemptor saeculi e Hodie Christus. Os graus conjuntos so tudo o que procuramos demonstrar nesta primeira anlise; no propomos compreender longas seqncias de notas como elaboraes de uma nica nota. Alm disto, reparamos tambm que, alm do grau conjunto, somente a tera ocorre nesta composio. A linha da anlise II intervm um pouco mais na melodia e a reescreve de modo silbico. Foram consideradas todas as notas atribudas a cada slaba e, dentre delas, foi escolhida somente uma de maneira a criar uma melodia nova que procedesse completamente por graus conjuntos. Em certos casos mais de uma soluo seria possvel, o que faz desta anlise um trabalho composicional. O critrio para escolha das notas, aqui, foi o de aproximar o resultado com uma voz-M maneira de Arvo Prt, nos passos da Missa Syllabica; todas as frases comeam ou terminam com a primeira nota do modo, r37. De fato, o que obtivemos aqui, embora nos traga reminiscncias de canto gregoriano (sua origem, afinal), j soa como outra msica. Su