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Flavia Bahia Martins
O Direito Fundamental Sade
no Brasil sob a Perspectiva do
Pensamento Constitucional
Contemporneo
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada como requisitoparcial para obteno do ttulo de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Direito daPUC-Rio.
Orientadora: Maria Celina B. de Moraes
Rio de Janeiro,
Junho de 2008
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Flavia Bahia Martins
O Direito Fundamental Sade noBrasil sob a Perspectiva doPensamento ConstitucionalContemporneo
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito do Departamento deDireito da PUC-Rio como parte dos requisitosparciais para a obteno do ttulo de Mestreem Direito.
Prof. Maria Celina B. de Moraes
OrientadorDepartamento de Direito PUC-Rio
Prof. Eduardo Ribeiro MoreiraCo-orientador
UERJ
Prof. Caitlin Sampaio Mulhol landUERJ
Prof. Antonio Cavalcanti MaiaDepartamento de Direito PUC-Rio
Prof. Nizar MessariVice-Decano de Ps-Graduao do Centro de
Cincias Sociais PUC-Rio
Rio de Janeiro, 25 de junho de 2008.
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Todos os direitos reservados. proibida areproduo total ou parcial do trabalho semautorizao da universidade, do autor e doorientador.
Flvia Bahia Martins
Graduou-se em Direito na UniversidadeCatlica do Salvador em 2001. Professora deDireito Constitucional da Academia doConcurso Publico e Professora de DireitoConstitucional do Curso Iuris
Ficha catalogrfica
CDD: 340
Martins, Flavia Bahia
O Direito Fundamental Sade noBrasil sob a Perspectiva do PensamentoConstitucional Contemporneo / FlaviaBahia Martins; orientadora: Maria CelinaBodin de Moraes. Co-orientador: EduardoRibeiro Moreira Rio de Janeiro: PUC,Departamento de Direito, 2008.
150f..: 29,7 cm
1. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio deJaneiro, Departamento de Direito.
Inclui referncias bibliogrficas.
1. Direito Teses. 2. DireitosSociais. 3. Direito Sade; 4. Direito
Constitucional. 5. princpiosconstitucionais. 6. Filosofia do Direito. 7.Neoconstitucionalismo I. Moraes, MariaCelina Bodin de. II. Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio de Janeiro. Departamentode Direito. III. Ttulo.
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minha querida av Margarida,
Que ilumina a minha vida,
Ainda que me olhando das estrelas...
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Agradecimentos
Tenho tanto a agradecer, que difcil at comear...
s duas razes de minha vida: minha me Maria Lcia, pelo amor incondicional e minha irm Andrea, pela presena de luz em minha existncia.
minha tia Anglica, pelo exemplo de luta e pela inspirao desse projeto. Dalva e a Tita, pelo carinho com que sempre aqueceram o meu caminho. Carole a Renatinha, famlia querida, por toda a torcida. Glaucinha, meu anjo daguarda, sem a qual, minha vida acadmica no teria sequer iniciado.
A todos os professores do curso de Ps-Graduao em Teoria do Estado e DireitoConstitucional da PUC-Rio, pelo incentivo pesquisa e por toda a dedicao.Meus especiais agradecimentos ao professor Antnio Cavalcanti Maia, por teraberto os meus horizontes, possibilitando a escolha do tema ora apresentado. Aosqueridos professores Anna Lcia de Lyra Tavares e a Carlos Plastino, pelas aulasinspiradoras que influenciaram na elaborao do presente trabalho e se encontram,de uma maneira ou de outra, aqui presentes.
minha orientadora, Maria Celina Bodin, pela confiana, pelas aulas instigadorase pelo apoio, minha admirao e carinhoso agradecimento.
Ao meu amigo e co-orientador, Eduardo Moreira, pelo exemplo de perseverana,pelo carinho e por toda a dedicao na concretizao deste trabalho.
Aos funcionrios da secretaria do departamento da PUC-Rio, Anderson eCarmem, pelo afeto e ateno inesgotveis.
Aos meus queridos colegas de mestrado, pelos debates engrandecedores e, emespecial, Teresa e Vivian, pela presena e pela amizade.
CAPES e PUC-Rio, pelos auxlios concedidos, essenciais para a realizao
dessa dissertao.
Aos meus amados familiares e amigos, pelo colorido que emprestam minhavida.
Bel e Juju, pelas colaboraes valiosas que tornam mais fceis os meus dias.
Aos meus alunos, fonte inesgotvel de inspirao, alegria da minha vida, serei aeles eternamente grata!
A Deus, por todos os motivos.
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Resumo
Martins, Flavia Bahia. Moraes, Maria Celina Bodin de. O DireitoFundamental Sade no Brasil sob a perspectiva do pensamento
constitucional contemporneo. Rio de Janeiro, 2008. ???p Dissertao deMestrado Departamento de Direito, Pontifcia Universidade Catlica doRio de Janeiro.
A sociedade brasileira assiste com perplexidade e indignao o descuido
do Poder Pblico com o direito mais precioso que o da sade. A vida humana,
razo de ser do Estado, enfrenta desrespeitos dirios com as filas nos hospitais, a
falta de medicamentos, de leitos, de mdicos e enfermeiros, enquanto o direito
descansa, em seus cmodos preceitos tericos clssicos que no atendem aosreclamos de uma sociedade que precisa de solues urgentes. Levando em
considerao este cenrio de sofrimento, cada vez mais vital a anlise do Direito
com base em pressupostos filosficos e crticos. Decerto, no se pode mais
compreender o conhecimento jurdico pautado em critrios unidimensionais, que
vislumbrem apenas as contribuies tericas e/ou prticas desta rea de saber. A
abertura das Constituies aos princpios, a realidade da ponderao, a pretenso
de correo, a argumentao jurdica, alinhados constitucionalizao do Direitoe ao reforo da jurisdio constitucional, apresentam um ordenamento jurdico
mais arrojado e preparado para concretizar a vontade da Constituio e da
sociedade brasileira. Com isso, o objetivo deste trabalho pretende trazer inovaes
para a efetivao do direito sade por meio dos postulados defendidos pelo
pensamento constitucional contemporneo que entendemos ser mais progressista
e, para tanto, adotamos como referncia terica o neoconstitucionalismo proposto
por Alfonso Figueroa, bem como as demais contribuies valiosas dos principais
tericos crticos atuais.
Palavras-chave
Direitos Sociais, Direito Sade, Direito Constitucional, princpios
constitucionais, Filosofia do Direito, Neoconstitucionalismo.
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Abstract
Martins, Flavia Bahia. Moraes, Maria Celina Bodin de The fundamentalright to health in Brazil in light of the contemporary constitutional
line of thought. Rio de Janeiro, junho de 2008. ???p. Dissertao deMestrado Departamento de Direito, Pontifcia Universidade Catlica doRio de Janeiro.
The Brazilian society observes with perplexity and indignation the
recklessness of the government with societys most precious right public health.
Human life the governments main concern is disrespected on a daily basis by
the long cues in public hospitals, lack of medication, beds, doctors and nurses.
Meanwhile, the right to public health lies still on one of its founding principles
and does not meet the urgent needs of the people. Taking into consideration this
suffering scenario, it is increasingly vital to analyze the Law with basis on the
philosophical and critical premises. Surely, one cannot understand legal
knowledge as set in a single dimensional criterion that only takes into
consideration the theoretical and/or practical contributions of this area of
knowledge. The inclusion of principles, pondering, intention of correction, legal
argumentation in the Constitution aligned to the constitutionalization of the Law
and of the strengthening of the constitutional jurisdiction, present a bolder legal
system duly prepared to materialize the will of the Constitution and that of
Brazilian society. All in all, the main goal of this study is to bring innovative ideas
to the concretion of the right to health through the postulates which are defined as
contemporary constitutional thinking. These thoughts are known to be more
progressive and for this reason we end up using Alfonsos Figueroas
neoconstitutionalism proposal as a theoretical reference, as well as further
valuable contributions of main and most recent theoretical critics.
Keywords
Social rights, Right to health, constitutional right,constitutional principles,
legal philosophy, Neoconstitutionalism.
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Sumrio
1. Introduo 10
2. O Pensamento Constitucional Contemporneo 13
2.1. A crise do positivismo o rito de passagem ps-positivista
a chegada ao neoconstitucionalismo? 13
2.2. A Teoria dos Princpios, a ponderao e a necessria
releitura da teoria das fontes. 21
2.3. A constitucionalizao do ordenamento jurdico e o
neoconstitucionalismo. 33
2.3.1. A rigidez constitucional 36
2.3.2. A garantia jurisdicional da Constituio 36
2.3.3. A fora vinculante do texto constitucional 38
2.3.4. A sobreinterpretao 39
2.3.5. A interpretao conforme a Constituio 40
2.3.6. Influncia da constituio sobre as relaes polticas 41
2.4. A Crtica ao neoconstitucionalismo: governo de juzes? 45
2.4.1. Social 47
2.4.2. Tcnica 50
2.4.3. Administrativa 51
2.4.4. Poltica 53
3. O Direito Fundamental Sade 55
3.1. Direitos Humanos, Dignidade da Pessoa Humana e
Cidadania. 55
3.2. As geraes de direitos fundamentais, seu desservio aos
direitos sociais e o equilbrio existencial 64
3.3. Informaes sobre a sade no Brasil: amparo legal,
princpios informadores do Sistema nico de Sade e dados
estatsticos. 72
3.3.1. Definies e escoro histrico sobre a sade 72
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3.3.2. Natureza jurdica do direito sade e avano legislativo
no Brasil 75
3.3.3. Dos princpios norteadores do SUS 82
3.3.4. Dados estatsticos: o Brasil de muitos Brasis uma
triste realidade 85
3.4. O controle judicial das polticas pblicas luz dos
postulados neoconstitucionalistas. 89
4. O direito fundamental sade no Brasil sob a perspectiva
do pensamento constitucional contemporneo 101
4.1. O Neoconstitucionalismo est comprometido com a fora
vinculante das normas constitucionais. Eficcia Direta do direito
sade. 101
4.2. Densidade normativa de todas as normas constitucionais.
Fim das normas programticas. Carter jurdico do direito
sade. 104
4.3. Princpios da nova interpretao constitucional que tutelam
o direito sade. 106
4.4. Vinculao de todos os poderes na implementao da sade.
O reforo jurisdio constitucional associada teoria da
argumentao. Controle Judicial do Oramento. 109
5. Concluso 117
6. Referncias bibliogrficas 120
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Introduo
O pensamento constitucional contemporneo que d ttulo ao nosso
trabalho no algo j definido e sentenciado. Pelo contrrio, est em processo de
construo e de reconstruo. Representa, na realidade, um momento de
redefinies positivas dentro de Estados Constitucionais, impulsionado pela
globalizao, pela internacionalizao dos direitos humanos e pela fora irradiante
que passa a ter a Constituio nesse novo contexto. Como referencial desse
momento de efervescncia acadmica, escolhemos o neoconstitucionalismo como
o pensamento constitucional contemporneo para ser a linha terica mestra de
nossas singelas pretenses de lastrear uma maior efetividade ao direito sade no
Brasil.
A proposta desse trabalho no que tange ao neoconstitucionalismo
apresentar algumas de suas premissas informadoras que nascem da
constitucionalizao do ordenamento jurdico, sem pretenso de esgotar o assunto,
que ainda est em processo de construo. Posicionamo-nos peloneoconstitucionalismo como teoria de direito, tese defendida, entre outros
renomados doutrinadores, por Alfonso Figueroa. Separamos alguns dos
postulados mais importantes da teoria neoconstitucionalista em subsees
diferenciadas para evitar o excesso de informaes em um nico eixo do trabalho.
Para finalidade de desenvolvimento da seo 2, intitulada de
Pensamento constitucional contemporneo, iniciamos na subseo 2.1 breve
anlise sobre o positivismo (e suas vertentes exclusivo e inclusivo), o mundo ps-guerra e o reencontro do direito com a dignidade da pessoa humana. O enfoque
crtico centralizar suas atenes no positivismo exclusivo defendido, entre
outros, por Hans Kelsen. Abordaremos sinteticamente o que chamamos de rito
de passagem ps-positivista e apresentaremos o pensamento terico
contemporneo neoconstitucionalista adotado neste trabalho, que desenvolvido
com mais detalhes nas subsees posteriores.
Em seguida, realizamos um estudo sobre a importncia da releitura daclssica teoria das fontes, que com a sua diferenciao de graus entre a aplicao
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dos preceitos precisa ser analisada luz do Estado Constitucional de Direito,
que essencialmente principiolgico. Para tanto, apresentamos a abertura das
normas constitucionais aos princpios, trazida por Ronald Dworkin, bem como o
mtodo de ponderao dos conflitos, que tratado juntamente com os princpios
da proporcionalidade e da razoabilidade. Tambm reforamos a importncia do
papel da doutrina nesse novo momento do Estado Constitucional de Direito, pois,
sem a sua valiosa colaborao, a evoluo no poder ocorrer.
Na subseo 2.3 tratamos do processo de constitucionalizao do
ordenamento jurdico ps Segunda Grande Guerra, pressuposto terico principal
para o advento do neoconstitucionalismo. Nessa vertente, destacamos que o
Estado Constitucional de Direito chegou tardiamente ao Brasil em razo dos anosde ditadura, mas que luz das caractersticas do constitucionalismo apresentadas
por Riccardo Guastini, conseguimos inserir o pas nesse novo momento do direito.
A partir da, focalizamos a posio do neoconstitucionalismo como nova teoria do
direito, com as colaboraes de Alfonso Figueroa e demais filsofos crticos
contemporneos.
Em subseo seguinte, apresentamos uma tentativa de soluo para
minimizar a principal crtica dispensada ao neoconstitucionalismo pelosacadmicos sobre o suposto decisionismo judicial trazido pelo reforo jurisdio
constitucional, que inegavelmente forte postulado defendido pela nova linha
terica. Reunimos a anunciada proposta em quatro categorias distintas: social,
tcnica, administrativa e poltica.
Para efeito de desenvolvimento na seo 3, acerca do direito
fundamental sade pblica no Brasil, realizamos, na primeira subseo que o
acompanha, simplificada abordagem histrica sobre os direitos humanos, adignidade da pessoa humana e a sua relao com a cidadania. Traamos um
paralelo entre o cidado de J. J. Rousseau e o cidado brasileiro, apresentando o
quadro da inconclusa cidadania brasileira.
Na subseo 3.2 analisamos o desservio que a diviso dos direitos
fundamentais em geraes propiciou aos direitos sociais, resultando, entre outras
conseqncias, na sua estigmatizao como norma de eficcia programtica.
luz, mais uma vez, da dignidade da pessoa humana, tambm tratamos do princpio
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do mnimo existencial, que recebe aqui a sugesto de ser denominado de
equilbrio existencial.
Na subseo seguinte trouxemos informaes sobre a sade no Brasil
e demais destaques sobre o seu amparo legal na Constituio e nas normasinfraconstitucionais. So analisados os princpios informadores do Sistema nico
de Sade (SUS) e apresentados demais dados estatsticos relacionados
complexidade do tema.
As polticas pblicas so analisadas na subseo 3.4 sob olhar crtico
do neoconstitucionalismo. Para tanto, sero desenvolvidos alguns dos postulados
defendidos por essa teoria/ideologia progressista, tais como o reforo jurisdio
constitucional e a argumentao jurdica, que, alinhadas tcnica da ponderao,so ferramentas importantes de defesa do controle judicial das polticas pblicas
no que tange ao direito sade.
Ao final, numa perspectiva talvez ousada, mas, sobretudo, otimista,
defendemos que o direito sade pode ser mais bem tutelado e efetivado no
Brasil sob o signo do neoconstitucionalismo. Ressaltamos algumas das valiosas
ferramentas presentes nesse pensamento constitucional contemporneo que
poderiam auxiliar aos juzes constitucionais (doravante citados como os membrosda corte constitucional brasileira e demais participantes da organizao judiciria
do pas) e ao poder pblico em geral, na tarefa complexa, porm possvel, de
oferecer uma vida mais digna ao povo brasileiro, com uma sade de qualidade.
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O Pensamento Consti tucional Contemporneo
2.1
A cr ise do positiv ismo o ri to de passagem ps-positivista a
chegada do neoconstitucionalismo?
Nesta subseo, faremos uma breve anlise sobre o positivismo (e
suas vertentes exclusivo e inclusivo), o mundo ps-guerra e o reencontro do
direito com a dignidade da pessoa humana. O enfoque crtico centralizar suas
atenes no positivismo exclusivo defendido, entre outros, por Hans Kelsen.
Abordaremos o que chamamos de rito de passagem ps-positivista e
apresentaremos o pensamento terico contemporneo neoconstitucionalista
adotado neste trabalho, que ser desenvolvido tambm nas subsees seguintes.
Da mesma maneira que Immanuel Kant tratou de estabelecer de forma
racional as condies de possibilidades das cincias fsicas, Hans Kelsen se
empenhou em fixar por meio da chamada norma fundamental as condies
formais e necessrias do conhecimento jurdico, dirigido ao pensamento dentico
das normas positivas. No incio do sculo XX, o jurista austraco relata em sua
famosa obra Teoria Pura do Direito,1uma concepo de cincia jurdica com a
qual se pretendia finalmente ter alcanado, no direito, os ideais de toda a cincia:
objetividade e exatido.
Visando esse objetivo, Kelsen props como regra metodolgica
principal a extrao de qualquer contedo valorativo da norma, com a finalidade
de garantir autonomia cientfica para a disciplina jurdica, que, segundo ele, vinha
sendo, ao longo dos anos, deturpada pelos estudos sociolgicos, filosficos e
polticos. Ao propor a reduo do direito ao que est positivado (normatizado),
seu limite ao que est ordenado e tendo a lei como principal elemento vlido, o
jurista apregoava que dentro da ordem normativa fechada no existiria espao
para se discutir a injustia das normas, pois, como podemos deduzir dos seus
princpios, o problema da injustia no seria nem jurdico.
1. KELSEN, 1996.
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A preocupao de Kelsen estava voltada para o objeto da cincia
jurdica. Por intermdio da norma fundamental seriam proporcionadas as
propriedades definidoras desse objeto. Com isso, o seu campo temtico estaria
separado e bem definido em relao s demais cincias naturais e normativas. No
se detecta claramente em sua obra grande interesse pelo conceito de direito, mas
percebe-se a especificao de um campo temtico homogneo e especfico para a
cincia do direito. De acordo com o pensador, uma cincia jurdica em sentido
estrito proporcionaria um ponto de vista exclusivamente jurdico sobre o direito,
ou seja, deveria ser tratada como uma cincia normativa do direito.
Em sua obra clssica,2afirma a diferena que entende ser cartesiana
entre direito e cincia jurdica, defendendo que a distino revela-se no fato deque as proposies normativas formuladas pela cincia jurdica, que descrevem o
Direito e que no atribuem a ningum quaisquer deveres ou direitos, podem ser
verdicas ou inverdicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela
autoridade jurdica e que atribuem deveres e direitos aos sujeitos jurdicos no
so verdicas ou inverdicas, mas vlidas ou invlidas. E ainda complementa
dizendo que tal como tambm os fatos da ordem do ser no so quer verdicos,
quer inverdicos, mas apenas existem ou no existem, somente as afirmaes
sobre esses fatos podem ser verdicas ou inverdicas.
Sendo o direito positivo, pode este ser moral ou imoral,
independentemente do que se considere mais justo ou socialmente adequado.
Assim, ainda que determinada norma contrarie um preceito de justia, esta
permanece repleta de validade jurdica. O direito positivo , pois, o direito
inserido pelo ente legiferante, dotado de validade e legitimidade, por obedecer a
formalismos pertencentes a um determinado sistema jurdico.
Partindo desse ponto de vista, o jurista chega concluso de que o
direito uma ordem da conduta humana, um sistema fechado de normas. Como
ordem normativa, o direito procura dar lugar a um determinado comportamento
humano, associando a ausncia desse comportamento a um ato de fora
socialmente organizado. A temos a diferena, para Kelsen, entre o direito e outros
sistemas de normas: a reao violao do dever-ser mediante um ato de fora
2. KELSEN, 1996.
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socialmente organizado, de uma maneira centralizada como nos Estados
modernos, ou descentralizada como sucedia nas ordens jurdicas primitivas. A
realidade, para o doutrinador, reveste-se de um aspecto puramente jurdico quando
uma norma empresta significado jurdico a essa realidade, de modo que esta possa
ser interpretada de acordo com aquela. O direito , ento, a norma, e s a norma,
pois esta a nica capaz de emprestar um significado que possa ser qualificado de
jurdico aos atos humanos. Desse modo afirma Kelsen:
Assim como a lei natural uma afirmao ou enunciado descritivo danatureza, e no o objeto a descrever, assim tambm a lei jurdica umenunciado ou afirmao descritiva do Direito, a saber, da proposio jurdicaformulada pela cincia do Direito, e no o objeto a descrever, isto o Direito,a norma jurdica. Esta - se bem que quando tem carter geral seja designada
como lei - no uma lei, no algo que, por qualquer espcie de analogiacom a lei natural, possa ser designado como lei. Ela no , com efeito, umenunciado pelo qual se descreve uma ligao de fatos, uma conexofuncional. No sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o qualse prescreve algo e, assim, se cria a ligao entre fatos, a conexo funcionalque descrita pela proposio jurdica, como lei jurdica (Kelsen, 1996, p. 9).
O princpio vertebral da teoria kelseniana utiliza a regra metodolgica
denominada por Luis Alberto Warat3de imanncia significativa, ou seja, ficaria
excludo do mbito das significaes jurdicas qualquer dado que no pudesse ser
derivado diretamente das normas positivas vlidas, extraindo-se delas qualquer
contaminao axiolgica.
A teoria waratiana4destaca que nas idias de Kelsen est presente uma
clausura do sistema, ficando excludo do mbito das significaes jurdicas
qualquer dado que no pudesse ser diretamente derivado das normas positivas
vlidas e especialmente, os sentidos evocados a partir das prticas polticas e
ideolgicas, as concepes sobre a justia e as doutrinas do direito natural.
O eminente jurista Castanheira A. Neves5 tambm se insurge contra
alguns critrios da opo metodolgica defendida por Kelsen. Para Castanheira, o
jurista se desinteressou do normativo jurdico material para se ocupar apenas da
formal analtica de uma pura teoria sobre o direito, pois para o jurista austraco
tudo o que no fosse essa teortica analtica estaria inquinado de um ideolgico
3
. WARAT, 1995.4.WARAT, 1983.5.NEVES, 1995.
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interesse poltico, j legitimante, j combatendo o poder, mas sempre em vista do
poder.
Por sua vez, numa crtica ao positivismo kelseniano, Roberto Lyra6
defende que a cincia jurdica, com o apoio da sociologia e da filosofia jurdica,precisa voltar-se tambm para a anlise histrica dos processos sociais em busca
daqueles critrios de atualizao dos padres de justia (finalidades ticas) e de
legitimidade (mecanismos razoveis de deciso e de aplicao do direito).
Com linha parecida de raciocnio, em sua obra La Institucionalizacin
de la Justicia,7Robert Alexy enfatiza que com a tese da separabilidade defendida
por Kelsen, nega-se que exista uma conexo necessria entre o que manda o
direito e o que exige a moral e a justia e isso gera uma srie de conseqnciassociais.
O renomado jurista positivista, cujos postulados so trazidos para
anlise, sustentaria o modelo denominado de positivismo exclusivo (duro,
tradicional), tambm presente nos escritos de Norberto Bobbio8e de Joseph Raz,9
um dos principais expoentes dessa linha de pensamento.
Herbert Hart,10em seupostscriptno qual rebateu as crticas recebidas
por Ronald Dworkin sobre a sua clssica obra O Conceito de Direito se
posicionou no sentido de que mesmo se as leis fossem redigidas de modo a
resolverem antecipadamente todas as questes possveis, a adoo de tais leis
entraria em coliso com outros objetivos que o direito deve acarinhar.Nesse breve
relato, segundo a teoria e prtica contemporneas, o direito no se resume lei,
pois inclui a presena de princpios e valores morais, ticos. Com a abertura a
fatos sociais, possvel da perceber o nascimento de um positivismo moderado
ou inclusivo (soft).
cio Otto Duarte11 observa que se para os positivistas jurdicos
exclusivos os critrios morais de legalidade no pertencem ao sistema jurdico
6.Paradigma jurdico e senso comum: para uma crtica da dogmtica jurdica, ver LYRA, 1986.7.ALEXY, 2005.8.BOBBIO, 2008.9.RAZ, 2001. Segundo o autor, o direito surge das fontes jurdicas e a sua existncia e contedo
podem identificar-se por referncia unicamente a fatos sociais, sem recurso avaliativo algum.10. HART, 2005, p. 313.11. DUARTE, 2007 p. 48-49.
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porque a regra de conhecimento determinada exclusivamente por fontes sociais
de modo distinto, os positivistas inclusivos sustentam que se a moralidade
ou no uma condio de legalidade em um sistema jurdico particular, depende de
uma regra social ou convencional, isto , da regra de reconhecimento.12
Poderamos concluir, sem esgotar o tema, por no ser a proposta
principal desse trabalho, que a diferena mais importante entre o clssico
positivismo (ou exclusivo, forte) e o positivismo moderado (inclusivo, soft)seria
que o primeiro apregoa a separao cartesiana entre o direito e a moral e o
segundo, mais brando, reconhece a existncia contingente da moral, dos
princpios, mas no os vincula validez da norma, alm do que, a subsuno
continua sendo a regra principal da lgica jurdica, como no positivismo clssico.No se pode deixar de lado no processo de produo da significao
jurdica o papel do saber jurdico, dos valores sociais e econmicos predominantes
na sociedade de sua poca. No podemos mais fazer um corte sem piedade nas
significaes jurdicas produzidas pelo cientista jurdico e pelo operador do
direito, haja vista o carter cada vez mais mutvel do ordenamento jurdico. O
juiz, na funo de aplicador da lei, no se limita a aplic-la, ele d norma uma
significao jurdica. Da mesma forma que os acadmicos nas diversas escolas dedireito do pas no se limitam a ler o enunciado da norma, mas tambm constroem
novas e importantes significaes.
O truculento desrespeito aos direitos fundamentais e a descartabilidade
da pessoa humana verificada durante as grandes guerras mundiais precisou ganhar
uma nova pgina na histria e com isso, no processo de reconstruo da dignidade
esquecida, os direitos humanos surgiram como paradigma e referencial tico a
orientar a ordem internacional contempornea. Nos dizeres de Flvia Piovesan,13
se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o ps-guerra
deveria significar sua reconstruo.
Aps os tristes episdios das grandes guerras, os ordenamentos
jurdicos mundiais precisaram passar por um importante processo de
constitucionalizao e de resgate de valores esquecidos durante os perodos
12
. Nessa parte final, DUARTE (2007) faz referncia a Coleman, The Practice of Principle, 2001p. 108.13.PIOVESAN, 2006, p. 28.
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tirnicos. Em razo disso, o debate sobre os direitos fundamentais na modernidade
vem merecendo cada vez maior destaque. So vrios os estudos, bem como a
intensa discusso, no meio jurdico e social, nacional e internacional, sobre esse
assunto to importante e crucial para a sociedade contempornea.
De acordo com Lus. M. Cruz,14 com o fim da Segunda Guerra
Mundial se abriu na Europa Ocidental um modelo de Estado Constitucional que
concebe a Constituio como uma norma que incorpora um denso contedo
normativo, composto de valores, princpios, direitos fundamentais e diretrizes aos
poderes pblicos.
Consagrado como valor jurdico universal, principalmente aps a
Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, a dignidade da pessoahumana15 entendida como o atributo imanente ao ser humano para exerccio da
liberdade e de direitos como garantia de uma existncia plena e saudvel passou
a ter amparo como um objetivo e uma necessidade de toda humanidade,
vinculando governos, instituies e, principalmente, indivduos. Unidade mais
fundamental de valor do sistema jurdico, esse princpio universal funciona como
paradigma, fundamento, limite e desiderato de um ordenamento jurdico, de um
Estado e de uma sociedade, aos quais confere legitimidade.No h dvidas de que quando o ncleo do sistema jurdico passa a
ser: a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a prevalncia dos direitos
humanos, a funo social da propriedade e do contrato, imperioso que se
abandone o mito racionalista de que tudo pode ser explicado pela lei.
O critrio de validez e o discurso de conhecimento organizado a partir
do princpio de imputao no domnio do dever-ser propiciam um conhecimento
do direito positivo, porm no solucionam os problemas centrais do conhecimento
operativo, da interpretao e aplicao da lei. Por isso, a anlise crtica do direito
vai tomando forma em grande parte devido sua necessidade de surgir como uma
proposta inovadora dos valores epistemolgicos que regulam o processo de
constituio das verdades jurdicas consagradas.
14. CRUZ, 200515.O tema ser discutido em seo especfica.
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E nesse momento que nasce o que chamamos de rito de passagem,
o ps-positivismo, amparado pelas valiosas colaboraes de Ronald Dworkin e
Robert Alexy sobre a abertura das Constituies aos princpios, que recebero
uma ateno especial nesse trabalho em subseo especfica.
Denominamos rito de passagem porque entendemos que o ps-
positivismo nunca se solidificou como uma nova teoria ou ideologia. Foi um
momento de redefinio de valores, necessrio e exigido pelo mundo ps-guerra.
Na opinio de Antnio Cavalcanti Maia,16Albert Calsamiglia desenvolveu aguda
anlise utilizando o termo ps-positivismo, trazendo referncias ao assunto em
diversos artigos, que poderia ser concluda (no encerrando o debate sobre o
assunto) da seguinte maneira: ps-positivismo = superao do positivismo porprincpios + constitucionalizao do direito.
Paulo Bonavides, para quem a teoria dos princpios se converteu no
corao das Constituies,17 um dos expoentes do rito de passagem ps-
positivista no Brasil. Segundo o jurista, as Constituies promulgadas nas ltimas
dcadas do sculo XX acentuaram a hegemonia axiolgica dos princpios, que
foram convertidos em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifcio
jurdico dos novos sistemas constitucionais.Lus Roberto Barroso,18tambm nessa linha de raciocnio, afirma que
a marca do ps-positivismo seria a ascenso de valores, o reconhecimento da
normatividade dos princpios e a essencialidade dos direitos fundamentais. A
discusso sobre a tica analisada juntamente com o direito e os princpios, e o
procedimento da ponderao utilizado com as novas tcnicas de interpretao
constitucional. Segundo o autor, o ps-positivismo representaria a virada
kantiana,19
com a Constituio sendo encarada como um sistema aberto de regrase princpios, no qual as idias de justia e de realizao dos direitos fundamentais
desempenham papel central.
A abertura das Constituies a princpios e valores, como j
acentuamos, assim captada por Canotilho: O direito do Estado de Direito do
16.MAIA, 2006, p. 405.17.
BONAVIDES, 2006.18. BARROSO, 2001, p. 5-37.19. Para Kant, o Estado tem como meio e fim o ser humano.
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sculo XIX e da primeira metade do sculo XX o direito das regras e dos
Cdigos: o direito do Estado Constitucional Democrtico e de Direito leva a srio
os princpios, um direito de princpios.20
Com o processo de constitucionalizao do ordenamento jurdico, odebate hodierno do direito proclama uma universalidade maior para a
compreenso do fenmeno jurdico, mais preocupado com a moral e com a tica
do que to-somente com a letra da lei. E o aparecimento desse verdadeiro Estado
Constitucional de Direito fez nascer, no incio do sculo XXI, um dos
pensamentos contemporneos que ganha fora diria como proposta de teoria de
direito inovadora, o neoconstitucionalismo.
Miguel Carbonnel, organizador do primeiro trabalho apresentado sob osigno do termo neoconstitucionalismo(s),21no prefcio da referida obra, apresenta
que a realidade constitucional aps a Segunda Guerra Mundial, evidenciada
principalmente pelas Constituies da Itlia (1947), Alemanha (1949), Portugal
(1976) e Espanha (1978), tem evoludo em muitos sentidos.
Numa posio poca ainda tmida sobre o assunto, o jurista mexicano
apontava para a formao de um Estado (neo) constitucional, que permitiria o
nascimento de mais de um (neo) constitucionalismo. Anunciava que as aplicaesprticas e tericas sobre o assunto ainda estariam por vir, mas que j se poderiam
observar alguns aspectos comumente presentes nesse novo momento do
constitucionalismo, como por exemplo: a tcnica de ponderao de bens
constitucionais e a forte influncia judicial que estaria presente em todos os
postulados neoconstitucionalistas.
Em palestra recente no Rio de Janeiro,22 o pensador apresentou o
neoconstitucionalismo como sendo o conjunto de trs postulados, organizados em
um Estado Constitucional em perfeito funcionamento. Segundo o jurista
mexicano, seriam essas as premissas: i) ideologia que tenta explicar o surgimento
de novos textos constitucionais ps Segunda Guerra Mundial; ii) novas prticas
20.CANOTILHO, 1999.21. Apresentada sob o signo plural, diante das vrias dimenses que o assunto agrega. VerCARBONNEL, 2003.22
. II Congresso Internacional de Direitos Sociais da Procuradoria do Municpio do Rio de Janeiro,realizado no auditrio do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, entre os dias 12 a 14 de novembrode 2007.
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jurisdicionais, com a utilizao da ponderao, proporcionalidade e maximizao
dos efeitos normativos; e iii) teoria jurdica nova que influi nos julgamentos.
As contribuies apresentadas por diversos juristas de renome23 no
trabalho de estria do neoconstitucionalismo ganharam valiosas contribuies dospensadores crticos da atualidade, o que deu ensejo a um segundo trabalho,
organizado sob o ttulo de Teora del neoconstitucionalismo, tambm sob a
coordenao de Miguel Carbonnel.
As obras citadas e algumas outras (estamos tratando de uma teoria
nova, que no conta, portanto, com um vasto arcabouo literrio disposio) que
colaboram para a solidificao do neoconstitucionalismo e sua afirmao como
teoria do direito progressista servem de referncia para as prximas subseesdeste trabalho.
2.2
A teoria dos pr incp ios, a ponderao e a necessria releitura da
teoria das fontes
O principal objetivo desta subseo realizar uma sntese sobre aimportncia da releitura da clssica teoria das fontes, que com a sua
diferenciao de graus entre a aplicao dos preceitos precisa ser analisada luz
do Estado Constitucional de Direito, que essencialmente principiolgico. Para
tanto, apresentamos a abertura das normas constitucionais aos princpios, bem
como o mtodo de ponderao dos conflitos, que tratado juntamente com os
princpios da proporcionalidade e da razoabilidade. Tambm reforamos a
importncia da doutrina nesse novo momento do Estado Constitucional deDireito, pois, sem a sua valiosa colaborao, a evoluo no poderia ocorrer.
Logo aps a Primeira Guerra Mundial, as Constituies comearam a
adotar em seus textos os chamados direitos sociais, inspirados na idia de Estado
Social, e os homens passaram a exigir determinadas prestaes, tais como:
educao, sade, trabalho, assistncia e previdncia. Com o fim da Segunda
Guerra Mundial, os textos das Constituies modernas (os mais relevantes para
23. Luigi Ferrajoli, Robert Alexy, Ricardo Guastini, Luis Pietro Sanchs, dentre outros expoentesda rea jurdica e filosfica.
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esse trabalho) tambm defenderam a tutela aos chamados direitos difusos e o
novo jogo de valores socioculturais apontaram, diante desse novo cenrio, os
princpios frente s regras especficas, como se observa principalmente das
Constituies da Itlia (1947), Alemanha (1949), Portugal (1976), Espanha (1978)
e da brasileira de 1988.
Expresses como dignidade da pessoa humana, prevalncia dos
direitos humanos, funo social da propriedade, valores sociais do trabalho,
boa-f, solidariedade e tantas outras, associadas ao carter compromissrio e
diretivo das Constituies modernas, ficam sem sentido algum como j dissemos,
se analisadas a partir das regras traadas pela racionalidade do positivismo
jurdico. O mito cartesiano clssico de que tudo pode ser explicado pela lei perdeo seu valor diante da nova realidade constitucional.
Ressaltemos que no mrito do neoconstitucionalismo a descoberta
dos princpios, pois eles sempre desempenharam papel importante na orientao
das decises judiciais, com seus fundamentos axiolgicos, valorativos, ticos e
morais, funcionando como verdadeiros guias condutores do dia-a-dia do aplicador
do direito. Tampouco aqui se pretende asseverar que o positivismo nega a
existncia dos princpios. Mas imperioso salientar que foi sob a gide do EstadoConstitucional de Direito que os princpios deixaram o papel de coadjuvantes das
regras para serem os protagonistas nesse novo momento da histria do direito.
Hodiernamente, como nos ensina Canotilho,24embora tanto o princpio
como a regra sejam espcies de norma o princpio se diferencia da regra porque,
em livre resumo, o princpio tem um maior grau de abstrao, porque traz sempre
um carter de fundamentalidade dentro do sistema e um compromisso maior com
a idia de justia e, enfim, porque o princpio o prprio fundamento da regra,sendo esta um desdobramento casustico daquele. A abertura das Constituies
aos princpios assim captada pelo jurista portugus O direito do Estado de
Direito do sculo XIX e da primeira metade do sculo XX o direito das regras e
dos Cdigos: o direito do Estado Constitucional Democrtico e de Direito leva a
srio os princpios, um direito de princpios.25
24. CANOTILHO, 1999, p. 1.085 e seguintes.25. CANOTILHO, 1999, p.1085 e seguintes..
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Tendo em vista que a condensao axiolgica dos princpios dificulta a
sua traduo em regras que os esgotem, os princpios passaram a fulgurantes
pilares no ordenamento jurdico, como preceitua Eduardo Slerca26 e nesse
contexto que nasce tambm uma nova perspectiva sobre os direitos fundamentais,
to alicerados e protegidos pelos princpios.
Um dos expoentes dessa importante teoria de princpios Ronald
Dworkin, que em sua obra Levando os Direitos Srio,27 contribuiu para essa
abertura do ordenamento jurdico, colaborando para o nascimento do Estado
Constitucional de Direito, bem marcado pela beleza dos princpios,
proporcionando uma verdadeira revoluo na clssica teoria das normas de cunho
positivista.O jurista anglo-saxo comea a sua anlise sobre o importante tema,
definindo o esqueleto principal das proposies positivistas, catalogando-as, em
sntese, da seguinte forma: i) o direito de uma comunidade um conjunto de
regras especiais utilizado direta ou indiretamente pela comunidade com o
propsito de determinar qual comportamento deve ser punido ou coagido pelo
poder pblico; ii) o conjunto dessas regras jurdicas coextensivo com o
direito, de modo que se o caso de alguma pessoa no estiver claramente cobertopor uma regra dessas, ento esse caso no pode ser decidido mediante a
aplicao do direito; iii) dizer que algum tem uma obrigao jurdica dizer
que seu caso se enquadra em uma regra jurdica vlida que exige que esse algum
faa ou se abstenha de fazer alguma coisa.28
Em seus escritos, Dworkin frisa que o soberano no pode antecipar
todas as contingncias sociais por meio de um sistema de ordens, algumas de suas
proposies sero inevitavelmente vagas ou pouco claras e o postulado i) resta,desta forma, fragilizado. Em contrapartida, se no h regra clara protegendo o
direito do indivduo, abre-se passagem para uma ampla discricionariedade judicial
para criar novas ordens e o primado ii) tambm fica prejudicado. No item final,
significaria dizer que na ausncia de tal regra jurdica vlida no existiria
obrigao jurdica, ento, ao decidir uma matria controversa, exercendo a sua
26
.SLERCA, 2002.27. DWORKIN, 2002.28. DWORKIN, 2002, p. 27-28.
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discrio, o juiz no estaria fazendo valer um direito jurdico correspondente a
essa matria?
Essas e outras crticas so lanadas por Dworkin para chegar ao que
ele mesmo denominou de ataque geral contra o positivismo29
e revela que a suaestratgia de combate se inicia em torno do fato de que, quando os juristas
raciocinam ou debatem a respeito de obrigaes jurdicas, eles recorrem a
ferramentas que no funcionam como regras, mas operam de maneira diferente,
como princpios, polticas e outros tipos de padres, batizados em sentido
genrico como princpios. Nesse sentido, reitera que uma das diferenas entre
princpios e regras seria de natureza lgica. Os dois padres apontariam para
decises particulares acerca da obrigao jurdica em circunstncias especficas,mas distinguem-se quanto natureza da orientao que oferecem. As regras
seriam aplicadas maneira do tudo-ou-nada, pois, presentes os fatos que uma
regra estipula, ento ou a regra vlida, e nesse caso a resposta que ela fornece
deve ser aceita, ou no vlida, e neste caso em nada contribui para a deciso.
Os princpios tambm possuem uma dimenso que as regras no
retratam: a dimenso do peso e da importncia. Quando os princpios se
intercruzam (como por exemplo, a liberdade de imprensa e a intimidade), ointrprete dever levar em considerao a fora relativa de cada um. Em
contrapartida, nas palavras de Dworkin, funcionalmente:
(...) uma regra jurdica pode ser mais importante do que outra porquedesempenha um papel maior ou mais importante na regulao docomportamento. Mas no podemos deixar de dizer que uma regra maisimportante que outra quando parte do mesmo sistema de regras, de tal modoque se duas regras esto em conflito, uma suplanta a outra em virtude de suaimportncia ser maior (Dworkin, 2002, p. 43).
Acrescentaramos ainda que, embora os princpios e as regras devam
atender igualmente aos ideais de justia, os princpios esto mais prximos dessa
finalidade do que as regras, em razo de seu alto contedo axiolgico e moral e,
ademais, constituem, em nossa opinio, a prpria ratio das normas jurdicas.
29. DWORKIN, 2002, p. 35.
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Essa distino entre regras e princpios, lembra-nos Lnio Streck,30
no pode significar que as regras sejam uma espcie de renegao do passado e de
seus fracassos, tampouco que os princpios traduzam o ideal da boa norma.
Regras e princpios so textos de onde se extraem normas e as primeiras, que so
produzidas democraticamente, podem e devem unidas aos princpios, traduzir a
institucionalizao da moral no direito.
No reencontro entre direito e moral, proclamado pela teoria
neoconstitucionalista, os princpios ganham destaque na ponderao dos conflitos
dos direitos fundamentais e ainda, segundo Alexy,31na pretenso de correo, que
substitui a pretenso de verdade de cunho positivista.
Quando h aparente coliso entre dois direitos constitucionaisigualmente valiosos, impe-se o mtodo da ponderao, ou balanceamento
(balancing ad hoc), uma das mais augustas e elaboradas tcnicas do direito
constitucional. Para Canotilho,32 a ponderao a forma caracterstica de
alocao do direito sempre que estejam em causa normas que revistam a natureza
de princpios.
A ponderao um modelo de verificao e tipicizao da ordenao
de bens em conflitos concretos. No de modo algum um modelo de aberturapara uma justia casustica, ou de sentimentos. Precisamente por isso que o
mtodo de balancingno dispensa uma cuidadosa topografiado conflito e nem
umajustificaoda soluo do conflito atravs da ponderao.
Segundo o jurista portugus, quando que, afinal, se impe a
ponderao para obter uma soluo dos conflitos de bens constitucionais? Os
pressupostos bsicos so os seguintes: i) em primeiro lugar, a existncia de, pelo
menos, dois bens ou direitos reentrantes no mbito de proteo de duas normas
jurdicas que, tendo em conta as circunstncias do caso, no podem ser
realizadas em todas as suas potencialidades; ii) a inexistncia de regras abstratas
de prevalncia, pois neste caso o conflito deve ser resolvido segundo o
balanceamento abstrato feito pela norma constitucional; e iii) finalmente,
indispensvel que a justificao e motivao da regra de prevalncia parcial
30
. STRECK, 2008.31. ALEXY, 2005.32. CANOTILHO, 1999, p. 1.109 e seguintes.
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assente na ponderao, devendo ter-se em conta, sobretudo, os princpios
constitucionais da igualdade e da justia, da segurana jurdica.33
Na ponderao entre conflitos de direitos fundamentais, os princpios
da razoabilidade e da proporcionalidade tm sido muito utilizados por nossosjuzes constitucionais, no raro como expresses sinnimas, ou ainda como
gnero e espcie. Despertam polmicas pela alta carga de subjetividade que, em
nossa opinio, o neoconstitucionalismo pode ajudar a resolver tendo como critrio
de destaque, uma argumentao jurdica mais acirrada.
O princpio da razoabilidade encontra guarida no direito norte-
americano, principalmente na 5 e na 14 Emendas. A 5 Emenda faz parte do Bill
of Rights norte-americano, adicionado Constituio Federal em 1789, quedispunha (no tocante ao nosso estudo) que nenhuma pessoa poderia ser privada de
sua vida, liberdade ou propriedade sem o due process of law. Enquanto que a 14
Emenda foi inserida com o intuito de estender a garantia do due process of law
aos ex-escravos, aps a Guerra Civil, e ao direito dos Estados federados;
acrescentando, no entanto, o primado do tratamento igualitrio pela lei, tambm
para o direito federal. importante destacar que a clusula do due process of law
(que deve ser entendida nos seus contornos processual e substantivo) deve seraplicada como meio de interpretao jurisprudencial da Suprema Corte norte-
americana e que passou de uma simples garantia processual, para o controle de
mrito das decises estatais.
Em suma, a noo de razoabilidade guarda afinidade com a idia de
equilbrio, moderao e harmonia. Busca aquilo que atende ao senso comum, aos
valores vigentes em dado momento. Em ltima anlise, pretende alcanar a
justia, carregando, portanto, forte elemento subjetivo e abstrato.
A proporcionalidade, por sua vez, posterior razoabilidade norte-
americana e foi desenvolvida, a partir da dcada de 1950, pelo Tribunal
Constitucional Alemo. A Corte a elaborou como um mtodo de interpretao e
aplicao dos direitos fundamentais, empregada particularmente nos casos em que
um ato estatal, destinado a promover a realizao de um direito fundamental ou de
33. CANOTILHO, 1999, p. 1.109 e seguintes.
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um interesse coletivo, implicasse a restrio de um direito fundamental. na
Alemanha que o princpio da proporcionalidade ganha razes mais profundas.
De acordo com a doutrina alem defendida por Alexy, ela seria
composta por trs sub-regras: a adequao, a necessidadee aproporcionalidadeem sentido estrito. Adequada seria a medida capaz de fomentar, e no
obrigatoriamente atingir determinado fim; necessria, aquela que, quando
comparada a outras to eficazes quanto, restringisse em menor escala o direito
fundamental violado; e proporcional em sentido estrito, a medida que promovesse
a realizao de um direito fundamental mais importante do que o que com ele
colide.
Sob a influncia do direito germnico, a proporcionalidade passou aser utilizada por diversos pases, entre eles Portugal, onde foi incorporada ao
conceito de razoabilidade, proveniente do direito anglo-saxo, atravs do qual se
examina a compatibilidade entre os meios e os fins, No direito lusitano, o
princpio da proporcionalidade em sentido amplo, tambm conhecido como
princpio da proibio de excesso, foi erigido dignidade de princpio
constitucional, consagrando-se, no art. 18, do Texto Magno de 1976, que dispe:
a lei s pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casosexpressamente previstos na Constituio, devendo as restries limitar-se ao
necessrio para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
Na Frana, o princpio da proporcionalidade compreendido apenas
no mbito da jurisdio administrativa, manifestando-se toda via a partir do
denominado pouvoir descritionnaire (poder discricionrio), que limitado pelo
dtournement du pouvoir (desvio de poder); na Sua, ele definidosumariamente apenas como a necessidade de se respeitar uma relao entre os
meios empregados para tomar uma medida e atingir o fim procurado;34na Itlia,
segundo Suzana de Toledo Barros,35a Corte Constitucional vem controlando de
forma rigorosa se os limites aos direitos esculpidos na Constituio, estabelecidos
pela lei, so razoveis em face dos princpios consagrados na Carta. Segundo a
autora, os juristas italianos j falam em idoneit, necessit e proporzionalit del
34. SLERCA, 2002.35. TOLEDO BARROS, 2003. p. 52-53.
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prouvedimento, sem contudo apresentarem um estudo sistemtico sobre o tema,
que ainda se ressente da falta de unanimidade nas tcnicas e terminologias
utilizadas.
Atualmente, alguns doutrinadores, como Paulo Bonavides,36
entendemque a razoabilidade ou proporcionalidade poderiam ser extradas implicitamente
do art. 5, 2, da Carta Magna, que dispe: Os direitos e garantias expressos
nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do
Brasil seja parte.
Entendemos, entretanto, que no atual artigo 5, LIV e LV, da
Constituio Brasileira, a previso do princpio da razoabilidade do direito norte-americano disposta expressamente. Com a clusula do due process of law,
entendida no seu duplo aspecto material e processual encontramos um
decisivo obstculo edio de atos normativos revestidos de contedo arbitrrio
ou irrazovel e um importante fundamento para a ponderao dos conflitos de
interesses e controle de constitucionalidade.
A utilizao dos dois princpios tambm desperta crticas na doutrina
brasileira, como a que faz Lus Virglio Afonso da Silva:37
A invocao da proporcionalidade , no raramente, um mero recurso a umtopos, com carter meramente retrico e no sistemtico. Em inmerasdecises, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva,recorre-se frmula a luz do princpio da proporcionalidade ou darazoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional. (...) No feitanenhuma referncia a algum processo racional e estruturado de controle daproporcionalidade do ato questionado, nem mesmo um real cotejo entre osfins almejados e os meios utilizados (Afonso da Silva, 2002).
Como j expusemos, face insuficincia dos critrios tradicionais de
soluo de antinomias, a ponderao de interesses emerge como importante
ferramenta para a soluo de colises entre os vrios princpios existentes na
ordem jurdica. Entretanto, entendemos que a falta de critrios tcnicos para a sua
aplicao deve ser colocada na ordem do dia nas discusses dos tribunais
brasileiros. A sua utilizao com prudncia, verificadas as hipteses
36. BONAVIDES, 2006, p. 352-355.37. AFONSO DA SILVA, 2002, p. 23-50.
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casuisticamente, pode representar importante ferramenta de controle no Brasil,
funcionando como limite aos desmandos do Executivo e do Legislativo e garantia
das liberdades individuais. Por outro lado, a utilizao fluida dos princpios pode
resumir a justia razoabilidade (ou no!) da deciso do caso concreto, ferindo
um princpio importante do Estado Constitucional de Direito: o da segurana das
relaes jurdicas.
Nesse cenrio, o neoconstitucionalismo pode colaborar para a
diminuio dos desmandos das decises judiciais com a tese de uma
argumentao jurdica mais organizada, oferecendo ao pas contornos mais
tcnicos para a soluo dos conflitos, como analisado em seo especfica.
Feitas essas consideraes, passamos anlise das fontes do direito.
O problema das fontes jurdicas uma questo que pertence cincia
do direito em geral e, por isso, so estudadas pela teoria geral do direito. A
palavra fonte deriva do latim fons, fontis e esta de fundo dare, significando
derramar. Da porque podemos considerar as fontes do direito como o lugar onde
nasce ou brota a norma jurdica. Nesse sentido, Agustn A. Gordilho38distingue as
fontes em formais e materiais. As primeiras seriam aquelas que diretamente
passam a constituir o direito aplicado e as segundas as que promovem ouoriginam, em sentido sociopoltico, as primeiras. Em conseqncia, a
Constituio, as leis, os regulamentos e a jurisprudncia seriam fontes em sentido
formal e os fatos sociais, a doutrina e os costumes, em sentido material.
Manuel Maria Diez39 complementa dizendo que embora as fontes
sejam comuns a todo o ordenamento jurdico, assumem, em alguns ramos do
direito, importncias distintas. O autor ainda apresenta a posio de outros
doutrinadores, como Linares Quintana, para quem a fonte seria os modos ou as
formas mediante os quais o Estado realiza o direito na funo da regra jurdica
para aplic-la; Sayagus Laso, que defende que as fontes so os elementos
formais ou no formais, dos quais surgem as normas de direito; e Garrido Falla,
que entende que as fontes so os atos, fatos de produo normativa que produzem
38. GORDILHO, 1974, v. I.39. DIEZ, 1990.
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proposies que determinado ordenamento jurdico qualifica como norma
jurdica.
Na clssica teoria das fontes positivista, o direito seria um conjunto de
regras especialmente elaboradas pelo Parlamento e selecionadas para a finalidadede regerem a ordem pblica. Seriam comandos objetivos aplicados mediante
subsuno. E foi sob o primado da lei como regra que o positivismo
influenciou no Brasil a criao do art. 4, da Lei de Introduo ao Cdigo Civil.40
O dispositivo seleciona, como fonte primria do ordenamento jurdico, a lei e, em
sua omisso, a analogia, os costumes e os princpios gerais do direito.
Como o neoconstitucionalismo pretende defender o direito como uma
cincia prtica, destinada a resolver problemas sociais e a transformar os direitos(e o direito) a partir da Constituio, indispensvel uma releitura dessas
disposies, como bem leciona Pietro Sanchs:
(...) o neoconstitucionalismo requer uma nova teoria das fontes afastada dolegalismo, uma nova teoria da norma que d entrada ao problema dosprincpios e uma reforada teoria da interpretao, nem puramentemecanicista, nem puramente descricional, em que os riscos que comporta ainterpretao constitucional possam ser conjugados por um sistema plausvelde argumentao jurdica (Sanchs, 2003, p. 158).
O novo paradigma do direito neoconstitucional supera a clssica viso
positivista do direito enquanto sistema de regras, a partir dos princpios que
passam a representar uma efetiva possibilidade de resgate do mundo prtico.
Nesse dilogo aberto, no h espao para a aplicao detalhada de fontes
catalogadas por ordem de importncia como preleciona a Lei de Introduo ao
Cdigo Civil (LICC). Com a fora irradiante, ou nas palavras de Guastin, com a
fora invasora da Constituio, h uma necessria releitura das fontes jurdicas
luz do prelecionado pelas prprias normas constitucionais que, como j
analisamos, abriram-se para um sistema de regras e princpios.
O costume, de acordo com Mauel Maria Diez,41 fonte no escrita
que resulta no apenas de uma expressa manifestao de vontade da coletividade
organizada, mas sim de um comportamento uniforme e constante praticado com a
40
. Art. 4, da LICC: Quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, oscostumes e os princpios gerais do Direito.41. DIEZ, 1990.
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convico com que se responde a uma obrigao jurdica. Deriva da repetio de
fatos materiais em um determinado sentido, acompanhado daqueles elementos
psicolgicos que consistem em considerar obrigatrio tal comportamento frente
ao ordenamento jurdico.
A fonte costumeira indubitavelmente influenciou a formao do
direito nas sociedades primitivas e no Brasil teve grande importncia,
principalmente como fonte do direito empresarial, que se formou mediante a
realidade das trocas e escambos, por exemplo. Entretanto, com a complexidade da
vida moderna, difcil observar o costume como fonte imediata de direito. claro
que a repetio dos fatos elemento transformador do direito. Alis, bem
pertinente a insero da conhecida observao de Konrad Hesse de que na vidada coletividade h realidades que se encontram em contradio com a
Constituio, mas que essas realidades no devem ser consideradas como
insignificantes pelo intrprete da Constituio. O importante, em face delas,
fazer tudo aquilo que seja necessrio para impedir o nascimento da realidade
inconstitucional ou para por essa realidade, novamente, em concordncia com a
Constituio e tambm muito lcida, mas a influncia dos costumes ir justificar
que, mediante os princpios constitucionais, decises judiciais sejam tomadas, ou,
por fora da mutao constitucional, determinem uma nova posio
jurisprudencial.
A doutrina, no citada como fonte no referido dispositivo, ganha papel
de muito destaque no Estado Constitucional de Direito. Sem as valiosas
contribuies de juristas e acadmicos na construo desse novo momento da
histria, esvaziaramos as decises judiciais, que cada vez mais buscam em seus
fundamentos amparo nos estudos realizados por profissionais especializados nessa
rea do saber (que por amor pesquisa, mesmo no recebendo muitas vezes a
justa remunerao, no se desviam de seus propsitos). Na tarefa rdua e muitas
vezes solitria do estudo acadmico, a contribuio da pesquisa fonte das mais
aprimoradas para a transformao do direito e da sociedade. Inmeras teorias e
conceitos que hoje esto presentes no ordenamento jurdico foram produto do
estudo rigoroso dos transformadores do direito.
imperioso destacar que o prprio positivismo jurdico teve umagrande importncia na evoluo do papel da doutrina como fonte do direito (ainda
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que no formalmente citada na Lei de Introduo). Na ausncia da lei como
soluo imediata para a aplicao da subsuno, os intrpretes sempre buscaram
amparo nos livros, artigos jurdicos, dissertaes e teses, que, filhos da pesquisa,
contriburam para a abertura dos horizontes jurdicos. Sem falar que a partir da
crtica ao positivismo jurdico que nasce esse novo momento neoconstitucional,
com a colaborao imprescindvel da doutrina nacional e estrangeira.
No toa que aplicadores e operadores do direito retornam com
cada vez mais freqncia s universidades com o objetivo de renovarem as suas
certezas jurdicas, muitas vezes ultrapassadas e perdidas em um direito que no
est mais na ordem do dia. Mestrados e doutorados refinam o conhecimento
jurdico e, das salas de aula, debates e produes cientficas trazem importantescontribuies para o amadurecimento do saber. A Filosofia do direito e os
postulados filosficos gerais so aliados tambm muito importantes nesse
momento de transformao do raciocnio jurdico.
A prpria Lei das Diretrizes e Bases da Educao42exige, desde 1996,
que o corpo de profissionais nas universidades seja formado por pesquisadores e
estudiosos, primando por maior excelncia no ensino e contribuindo,
conseqentemente, para a evoluo da doutrina.Com o reforo da jurisdio constitucional, a uniformizao da
jurisprudncia presente nas smulas vinculantes, o instituto da repercusso geral
para admissibilidade do recurso extraordinrio e os efeitos vinculantes das
decises nas aes do controle concentrado de constitucionalidade tambm
apontaram para a importncia da jurisprudncia nesse novo contexto de reviso
das fontes. So aparatos jurdicos modernos que inegavelmente possuem maior
destaque do que os costumes e a analogia.
Os princpios gerais do direito no foram de modo algum substitudos,
mas devem conviver harmoniosamente com os princpios constitucionais,
42.ALei 9.394/1996 assim dispe: (...)Art. 52. As universidades so instituies pluridisciplinares de formao dos quadros profissionaisde nvel superior, de pesquisa, de extenso e de domnio e cultivo do saber humano, que secaracterizam por:I - produo intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemtico dos temas e problemasmais relevantes, tanto do ponto de vista cientfico e cultural, quanto regional e nacional;
II - um tero do corpo docente, pelo menos, com titulao acadmica de mestrado ou doutorado;III - um tero do corpo docente em regime de tempo integral.
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explcitos e implcitos, e caso sejam colocados em conflito, a ponderao dever,
com equilbrio, harmoniz-los.
O neoconstitucionalismo no defende, por certo, a existncia de grau
de importncia entre as fontes, ou mesmo que uma fonte deva ter prevalnciahierrquica sobre a outra. A Constituio, que a fonte primeira e o oxignio de
todo o ordenamento jurdico, a preocupao principal dessa nova teoria do
direito, que prima pelo destaque aos princpios, que no podem mais serem
reduzidos a fontes tercirias do sistema normativo.
2.3
A constitucional izao do ordenamento jurd ico e o
neoconstitucionalismo
As mudanas acontecem em nossas vidas todos os dias, algumas por
ns planejadas, a maioria nem tanto. A velocidade dos acontecimentos s vezes
no nos permite refletir que o mundo energia, transformao. Aspolis, civitas e
landers foram transformadas em grandes metrpoles, que em nada lembram os
tempos de uma sociedade primitiva. Fomos lua, luta, vivemos no Brasil da
monarquia e repblica, anos de ditadura e de pseudo-democracias. Essa foratransformadora toma conta tambm do direito e o obriga constantemente a rever
as suas certezas, estimula-o a enfrentar novos desafios, acalora debates, sempre
procurando se aprimorar, mas sem pretenso de verdade, e sim na busca de um
ideal ainda mais caro, a justia.
O pensamento constitucional contemporneo que d ttulo ao nosso
trabalho, como j dissemos, no algo j definido, sentenciado, pelo contrrio,
est em processo de construo e de reconstruo. Representa, na realidade, ummomento de completas redefinies positivas dentro de Estados Constitucionais,
impulsionado pela globalizao, pela internacionalizao dos direitos humanos e
pela fora irradiante que passa a ter a Constituio nesse novo contexto.
Em verdade, so muitos os pensamentos constitucionais
contemporneos; a efervescncia jurdica toma conta da comunidade acadmica e
nos brinda com grandes debates e posies. E assim deve continuar por muito
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tempo. A tese do garantismo de Ferrajoli43, o positivismo inclusivo de Hart, o ps-
positivismo de Calsamiglia, so algumas das manifestaes contemporneas da
maneira de pensar o direito. E justamente em considerao s diversas maneiras
de interpretar o constitucionalismo contemporneo que optamos pelo ttulo
Pensamento constitucional contemporneo, e no neoconstitucionalismo, em que
pese a opo clara pela teoria neoconstitucionalista como melhor proposta da
atualidade como defesa de efetivao do direito sade.
A avalanche de transformaes vivenciadas pela sociedade aps a
Segunda Guerra marcou para sempre o direito e, principalmente, o seu crebro
mais atuante: o homem.
Na Europa, a reorganizao do ordenamento jurdico, aconteceu maisrapidamente do que no Brasil. As Constituies italiana (1947), alem (1949),
portuguesa (1976) e espanhola (1978) apresentaram modelos de Constituies
abertas, destacadas pelo brilhantismo de seus princpios, permitindo uma
verdadeira constitucionalizao do ordenamento jurdico, que segundo Riccardo
Guastini44 significa um processo de transformao de um ordenamento jurdico
que resultaria, ao final, com a sua impregnao de normas constitucionais, ou,
como nas prprias palavras do jurista italiano: na prpria invaso da Constituio!Ainda com espeque na opinio de Guastini,45existiriam condies a
ser preenchidas para que um ordenamento jurdico seja considerado
constitucionalizado, quais sejam: i) a existncia de uma constituio rgida
(altervel mediante procedimento legislativo especial); ii) a garantia jurisdicional
da Constituio (um controle efetivo de constitucionalidade das leis); iii) a fora
vinculante do texto constitucional (com a mxima efetividade de suas normas); iv)
a sobreinterpretao (uma interpretao constitucional mais aprimorada); v) aaplicao direta de suas normas (derivada da combinao da fora vinculante e da
sobreinterpretao); vi) a interpretao conforme a Constituio (tcnica de
interpretao que possibilita a manuteno da norma infraconstitucional no
ordenamento jurdico se interpretada de maneira harmoniosa com a Constituio);
43que mereceria uma anlise terica mais apurada, quem sabe em outro trabalho44. GUASTINI, 2003, p.154.45. GUASTINI, 2003.
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e a vii) influncia da constituio sobre as relaes polticas (que ensejaria numa
postura mais ativa do judicirio na concretizao da vontade da Constituio).
Alessandro Pace46 acrescenta que o constitucionalismo implica uma
organizao metodolgica necessria para evitar as possveis arbitrariedades dequalquer uma das manifestaes do poder. O professor italiano ressalta que
preciso controlar as imunidades dos chefes de Estado e dos membros do
Parlamento, as funes do Tribunal Constitucional, sem perder de vista a
eficincia dos poderes pblicos, evitando sempre que a necessria
discricionariedade (que deve estar limitada, ao menos numa pespectiva finalista)
no redunde nunca em arbitrariedade.
Salientamos, igualmente, que o processo de constitucionalizao doordenamento jurdico constri uma inegvel relao constitutiva entre a
Constituio e os direitos fundamentais, que no se resolve apenas pela
constatao de que os direitos esto protegidos materialmente na Constituio,
mas sobretudo que a Constituio se configura como uma verdadeira tcnica de
proteo dos direitos fundamentais, dando-lhes uma naturazamais normativa e
concreta.47
Antes de analisarmos o processo de constitucionalizao doordenamento jurdico brasileiro, importante asseverar que, por conta dos anos de
retrocesso poltico, social e constitucional vivenciados pelo pas durante os 21
anos de ditadura militar, ele se manifestou muito tempo depois do processo
europeu. Como afirma Clmerson Merlin Clve,48quando a Constituio de 1988
foi promulgada a experincia jurdica brasileira ainda era prisioneira do
positivismo, no existindo no pas um arsenal terico, um corpo de categorias
funcionais e operacionais que pudessem dar conta da nova realidadeconstitucional.
46. PACE, Disponvel em: http://www.ugr.es/~redce/. ltimo acesso em: 15/5/2008.47. DATENA, Disponvel em: http://www.ugr.es/~redce/. ltimo acesso em: 15/5/2008.48. CLVE, Texto resultante da degravao de conferncia proferida no XVIII CongressoBrasileiro de Direito Tributrio, promovido pelo Instituto Geraldo Ataliba Idepe, sem data.
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A seguir, identificamos em breves anotaes, as caractersticas que
apresentam o processo de constitucionalizao do ordenamento jurdico brasileiro
de 1988, luz das lies de Guastin.
2.3.1
A r ig idez const itucional
O art. 60 da Constituio Federal conhecido por ser o ncleo da
rigidez constitucional, pois l est o processo legislativo diferenciado que dever
ser adotado pelo legislador para o processo formal de reforma constitucional. O
referido dispositivo traz uma srie de limitaes de ordens materiais, formais e
circunstanciais que devem ser observadas para a alterao do texto constitucional.A par do processo rigoroso de alterao, nosso jovem texto j foi
aoitado com 5649(cinqenta e seis) emendas constitucionais e 6 (seis) emendas
de reviso, e a foroso lembrar que rigidez no sinnimo de estabilidade. De
qualquer sorte, a rigidez interfere na hierarquia das leis, apresentando a
Constituio no topo formal da estrutura normativa do pas.
2.3.2
A garantia jur isdicional da Const itu io
Ao ser o parmetro do controle de constitucionalidade, a Constituio
rechaa de todo o ordenamento jurdico normas que no estejam em harmonia
com seu contedo. Isso significa tambm expulsar normas que sejam contrrias
aos direitos fundamentais, garantindo-lhes a primazia sobre as demais
codificaes infraconstitucionais.
Neste mister, o controle de constitucionalidade no Brasil ganhou
inegvel reforo na Constituio de 1988. O sistema difuso, com base norte-
americana, e presente no ordenamento jurdico brasileiro desde a Constituio de
1891, hoje se associa a um sistema de controle concentrado de constitucionalidade
que em 1988 recebeu mais trs importantes aes, a saber: ao direta de
inconstitucionalidade por omisso (art.103, 2); ao declaratria de
constitucionalidade (art. 102, I, a, introduzida por meio da EC 3/93) e a
49. At 2/6/2008, data de entrega deste trabalho.
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argio de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, 1), que, em
conjunto com a ao direta de inconstitucionalidade (presente no ordenamento
jurdico desde a EC 16/1965), formam o arcabouo principal de proteo
constitucional no controle abstrato das leis e asseguram a supremacia da
Constituio.
Ressalte-se ainda que a Constituio de 1988 ampliou
significativamente o rol dos legitimados ativos para a propositura das aes
diretas, em que pese a auto-restrio do STF na exigncia de pertinncia temtica
para os legitimados ativos que no so considerados universais (os do art. 103,
IV, V e IX). Alm do que, a EC 45/2004 atribuiu efeitos vinculantes s decises
de mrito de ao direta de inconstitucionalidade (art. 102, 2).Em sede de ao direta de inconstitucionalidade por omisso,
recentemente, abandonando a posio no-concretista geral50 adotada
praticamente por duas dcadas, o STF decidiu51 pela fixao de prazo de 18
(dezoito) meses para que o Congresso Nacional elabore a lei complementar
federal anunciada pelo art. 18, 4 para cuidar da regularizao da situao da
criao dos municpios brasileiros.
50. Que, em resumo, impedia o juiz de editar norma faltante decidindo a questo sobre a omissolegislativa e tambm de determinar prazo para o legislador elaborar a norma faltante, em nome daharmonia e separao entre os poderes (art. 2, CF).51. O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente pedido formulado em ao direta deinconstitucionalidade por omisso ajuizada pela Assemblia Legislativa do Estado de MatoGrosso, para reconhecer a mora do Congresso Nacional em elaborar a lei complementar federal aque se refere o 4 do art. 18 da CF, na redao dada pela EC 15/96, e, por maioria, estabeleceu oprazo de 18 meses para que este adote todas as providncias legislativas ao cumprimento da
referida norma constitucional. Inicialmente, o Tribunal, por maioria, rejeitou a preliminar deilegitimidade ativa do Presidente da Assemblia Legislativa do Estado de Mato Grosso.Salientando-se a indefinio existente na Constituio quanto aos legitimados para propor a aodireta de inconstitucionalidade por omisso, considerou-se ser inevitvel, com base no princpio dehermenutica, que recomenda a adoo da interpretao que assegure maior eficcia possvel norma constitucional, que os entes e rgos legitimados a propor a ao direta contra atonormativo possam instaurar o controle abstrato da omisso. Acrescentou-se que as alegaes deirregularidade formal da representao da Assemblia, decorrente de no haver nos autosdeliberao da Mesa, dando-lhe poder para ajuizar a ao, entrariam em choque com a presunode legitimidade que acompanha a iniciativa, devendo, entre forma e substncia, preferir-se estasempre que, na dvida entre ambas, seja o meio adequado para atingir a finalidade do institutojurdico. Vencidos, no ponto, os Ministros Marco Aurlio e Seplveda Pertence que acolhiam apreliminar, ao fundamento de que apenas a Mesa da Assemblia Legislativa estaria legitimada a
propor a ao, tendo em conta o disposto no art. 103, IV, da CF, e a inexistncia de comprovaonos autos de deliberao prvia da Mesa no sentido do ajuizamento da ao.ADI 3.682/MT, relatorMinistro Gilmar Mendes, 9/5/2007 (ADI 3.682).
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2.3.3
A fora v inculante do texto const itucional
Esta caracterstica assegura que todas as normas constitucionais so
plenamente aplicveis e obrigam os seus destinatrios e o poder pblico. a
vinculao do Poder legislativo, Executivo e Judicirio misso de concretizar
todas as normas constitucionais, mesmo as classicamente denominadas como
programticas como sempre foi taxada proteo ao direito sade.
A ductilidade constitucional, na expresso de Zabrebelsky,52
representada pela abertura constitucional aos princpios e valores, que formam a
base essencial da Constituio moderna, influenciada pelas teorias de Dworkin,
Alexy, Canotilho, Paulo Bonavides e de tantos outros doutrinadores, reestruturou
o olhar de todos sobre a Constituio. Neste contexto, ela deixa de ser analisada
sob o prisma estritamente formal, como norma que reuniria apenas os preceitos
caracterizadores do Estado (normas de organizao do Estado, separao de
poderes, repartio de competncias etc), para se expandir para todo o
ordenamento jurdico.
Essa fora vinculante da Constituio se irradia para os demais ramos
do direito e a constitucionalizao marca presena importante na ordem jurdica
privada. Nesse sentido, Maria Celina Bodin53contextualiza que os princpios da
igualdade, da integridade fsica e moral, da liberdade e da solidariedade social ou
familiar, que se encontram previstos na Constituio Federal, servem para
redimensionar o conceito de dano moral.
Em que pese a nova proposta interpretativa constitucional no
pretender diminuir o espao do direito privado, fato que o altera
qualitativamente, potencializando-o mediante a funcionalizao de seus
postulados luz dos princpios fundamentais,54entre eles, a dignidade da pessoa
humana, valor axiolgico que ao ser alado expressamente ao ambiente
constitucional de 1988 props uma verdadeira reviravolta no ordenamento
jurdico.
52
. ZABREBESLKY, 1995, p.14.53. BODIN DE MORAES, 2007.54. TEPEDINO, 2007.
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2.3.4
A sobreinterpretao
Ao lado dos clssicos mtodos de interpretao constitucional da
escola de Savigny do sculo XIX (gramatical, lgico, sistemtico e, histrico,
principalmente), a nova interpretao constitucional assenta-se num modelo de
princpios que, mediante o mtodo da ponderao (analisado em subseo
especfica) visa assegurar uma efetividade maior e realizao do texto
constitucional.
Por meio de uma interpretao constitucional mais qualificada, os
juzes constitucionais permitem que se extraiam da Constituio solues
jurdicas idneas para resolver os inmeros conflitos apresentados pela sociedade.
Os princpios da unidade constitucional, da concordncia prtica, da correo
funcional, da razoabilidade e da proporcionalidade so expoentes importantes no
constitucionalismo brasileiro e presentes em vrias decises do STF55 sobre o
prprio direito sade.
Com os postulados da nova argumentao jurdica, os direitos
fundamentais recebem destaque quando, ao lado da perspectiva tridimensional
norma, fato social e valor surge a discusso axiolgica e crtica para solucionar
os conflitos por meio da argumentao.
Como j explicitado, entendemos que a caracterstica da aplicao
direta de suas normas derivada da combinao da fora vinculante e da
sobreinterpretao constitucional, alm da necessria difuso da cultura jurdica
constitucional pelo pas, modificando o padro clssico que sempre associou a
funo da Constituio como fonte de limitao de poder poltico estatal, por isso
a deciso de no abrir tpico especfico para tratar do assunto.
55Que sero analisadas em subseo especfica
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2.3.5
A interpretao conforme a Constituio
Em nome do princpio da presuno de constitucionalidade das leis, a
favor da legitimidade do trabalho conjunto (em regra) realizado pelo Legislativo e
o Executivo, a Lei 9.868/1999 agasalhou em seu art. 28, o princpio da
interpretao conforme a Constituio em sede de julgamento de ao direta de
inconstitucionalidade e tambm na ao declaratria de constitucionalidade.
Impe o postulado que haja por parte do intrprete uma postura de preservao do
sistema normativo, tendo em vista o impacto que causa a todos a invalidao de
uma norma jurdica.
Como bem assevera Guastini56, no existe um texto normativo que
possua apenas um significado (ou pelo menos, dificilmente no h, ponderamos),
ou seja, possvel que uma norma seja susceptvel de duas interpretaes, uma
que contradiz a norma constitucional e a outra, por sua vez, completamente
compatvel com a Constituio. Em sua tarefa diria de eleger a interpretao
correta da norma em nome da supremacia constitucional, o juiz poder optar pela
preservao da lei no ordenamento jurdico, desde que seja interpretada em
harmonia ao texto constitucional.
2.3.6
Influncia da constituio sobre as relaes polticas
Esse sem dvidas o aspecto mais desafiador da constitucionalizao
do ordenamento jurdico, principalmente em face de uma Constituio dirigente
como a nossa. Estabelecer os limites de atuao do Judicirio, os parmetros deconteno de excessos, o que verdadeiramente ambiente de discricionariedade
administrativa e legislativa, tarefa das mais desafiadoras trazidas pelo Estado
Constitucional de Direito.
Como leciona Eduardo Moreira,57o controle das polticas pblicas a
materializao da invaso da Constituio na implementao e execuo das
56. GUASTINI, 2003.57. MOREIRA, 2008, p. 135-136.
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polticas pblicas; direito e foras do Estado precisam andar mais juntos no Brasil.
Diante da relevncia do tema, no toa, reservamos duas subsees para
tratarmos do assunto.58
Com a exposio anterior, apresentamos o primeiro passo na anlisedo tema, qual seja: a constitucionalizao, ainda que tardiamente, chegou ao
ordenamento jurdico brasileiro. Poderamos defender que a constitucionalizao
foi pressuposto determinante para o nascimento e desenvolvimento da
configurao terica do neoconstitucionalismo, ou seja, sem as suas premissas no
se pode sustentar a existncia dos novos desafios trazidos pelo
neoconstitucionalismo. Em resumo, o novo constitucionalismo impulsionou de
maneira determinante o neoconstitucionalismo, mas com ele no se confunde.Poderamos asseverar ainda que o neoconstitucionalismo, por no ser
modelo terico genrico, no poderia estar presente em todos os pases de
organizao constitucional, mas apenas naqueles que esto com os seus Estados
Constitucionais em perfeito (ou quase isso) funcionamento, em regra, pases
democrticos do Ocidente.
Como falamos de um modelo terico novo, sabemos que no h
tambm um significado unvoco ao termo neoconstitucionalismo. Podemos dizerque os estudos desenvolvidos no sentido de categorizar ou determinar aspectos
que permitiriam a diviso do neoconstitucionalismo em linhas terico-filosficas
distintas ainda esto em processo de construo. De qualquer sorte, a ttulo de
exemplificao, mencionamos algumas dessas tentativas de categorizaes.
Susana Pozzolo, citando T. Mazzarese,59 apresenta o
neoconstitucionalismo sob dois ngulos: primeiramente, em seu sentido terico, o
neoconstitucionalismo seria um modelo descritivo do direito do Estado
Constitucional que se caracteriza pela negativa da tese juspositivista de separao
entre direito e moral. Numa segunda anlise, o neoconstitucionalismo, no sentido
axiolgico-normativo, teria preocupao com o direito real, o ideal jurdico
concreto a ser perseguido por meio de uma proteo evolutiva dentro do modelo
de Estado Constitucional de Direito.
58
. O controle judicial das polticas pblicas luz dos postulados neoconstitucionalistas. e ACrtica ao neoconstitucionalismo: governo de juzes?59. MAZZARESE, 2001 p. 188 e 189.
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Tambm seria possvel distinguir o neoconstitucionalismo em terico
e total. Nesse sentido, Eduardo Moreira60 (neoconstitucionalista total, por certo)
afirma que para os defensores da linha terica, entre os quais cita Lus Pietro
Sanchs e Lus Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo estabelece o Direito
Constitucional como o centro de ordenamento jurdico e da teoria do direito,
afirmando-se como antipositivista e antijusnaturalista. Os adeptos ao
neoconstitucionalismo total entre os quais Eduardo indica Alfonso Figueroa,
Sastre Ariza e Antnio Cavalcanti Maia aceitam as premissas do
neoconstitucionalismo terico, mas inovam na defesa pela conexo entre o direito
constitucional e a filosofia do direito, apresentando a moral de maneira sofisticada
pela pretenso de correo.
Paolo Comanducci,61 numa tentativa de instituir uma classificao
entre o que denomina de formas do neoconstitucionalismo, distinguiu-o sob
uma concepo tripartida, a saber: neoconstitucionalismo ideolgico,
metodolgico e terico, em seguida explicados.
Apresentado como uma ideologia (o que no discordamos
completamente), o neoconstitucionalismo avanaria quanto ao novo
constitucionalismo porque teria como primeiro objetivo o de garantir aconcretizao dos direitos fundamentais. Ademais, no se limitaria a descrever
apenas o processo de constitucionalizao, mas tambm a propugnar para a sua
defesa e ampliao. Como elemento frgil desse modelo neoconstitucional,
destacamos que no oferece premissas tericas para a sua consolidao. No plano
das idias, o neoconstitucionalismo no passaria de um projeto audacioso, sem
ferramentas para a concretizao, o que no o caso.
O neoconstitucionalismo metodolgico considera que os princpiosconstitucionais fazem uma ponte entre o direito e a moral62 e seria estruturado
pela premissa de que qualquer deciso jurdica estaria justificada se derivasse em
ltima instncia de uma norma moral. Nesse sentido, Comanducci apresenta
crticas coerentes sobre que tipos de normas morais poderiam justificar
validamente uma deciso judicial: moral objetiva verdadeira (presente no
60
. MOREIRA, 2008, p. 48-51.61. COMMANDUCCI, 2003.62. COMMANDUCCI, 2003.
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ordenamento jurdico); moral objetiva racional (aceita por todos); moral
subjetivamente escolhida (pelo juiz, numa posio interna e individual); e, ainda,
moral intersubjetivamente aceita (o juiz seria, neste caso, socilogo da moral
positiva). Em rebate ao neoconstitucionalismo que chama de metodolgico, o
renomado jurista ressalta que no h homogeneidade moral na sociedade e
tambm que as normas morais compartilhadas por todos j seriam incorporadas ao
ordenamento jurdico como regras ou princpios e no dependeriam dessa ponte
de ligao para serem aplicadas.
Para configurar o neoconstitucionalismo sob a perspectiva d