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    ROTEIRO DE CURSO2010.1

    DIREITOS HUMANOSAutores: Paula Spieler, Carolina de Campos Melo e Jos Ricardo Cunha

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    Sumrio

    Direitos Humanos

    APRESENTAO.................................................................................................................................................. 3

    AULA 01: INTRODUO AOS DIREITOS HUMANOS........................................................................................................ 9

    AULA 02: DESENVOLVIMENTO HISTRICO DOS DIREITOS HUMANOS.............................................................................. 15

    AULA 03: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS.............................................................. 19

    AULA 04: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS.............................................................. 29

    AULA 05: OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS E A CONSTITUIO FEDERAL.................................................................. 34

    AULA 06: RGOS DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS.......................................................................................... 42

    AULA 07: SISTEMA GLOBAL: MECANISMOS CONVENCIONAIS E NOCONVENCIONAIS DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS ..... 51

    AULA 08: SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS........................................................................ 64AULA 09: SISTEMA INTERAMERICANO: A COMISSO E A CORTE INTERAMERICANAS DE DIREITOS HUMANOS ............................69

    AULA 10: SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: XIMENES LOPES VS. BRASIL................................................ 76

    AULA 11: DIREITO INTERNACIONAL HUMANITRIO E DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS........................................ 81

    AULA 12: OS DIREITOS CIVIS E POLTICOS: DIREITO VIDA.......................................................................................... 98

    AULA 13: OS DIREITOS CIVIS E POLTICOS: DIREITO LIBERDADE E LIBERDADE DE EXPRESSO ..........................................121

    AULA 14: VIOLNCIA URBANA............................................................................................................................127

    AULA 15: DIREITOS HUMANOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS............................................................................131

    AULA 16: A ESPECIFICAO DO SUJEITO DE DIREITOS. OS DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA DE GNERO....................137

    AULA 17: DIREITOS HUMANOS E A QUESTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE ................................................................143

    AULA 18: OS DIREITOS HUMANOS E A QUESTO RACIAL............................................................................................149

    AULA 19: DIREITOS HUMANOS E A QUESTO INDGENA.............................................................................................157

    AULA 20: DIREITOS HUMANOS E ORIENTAO SEXUAL.............................................................................................162

    AULA 21: TEATRO DO OPRIMIDO......................................................................................................................... 168

    AULA 22: O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA PROMOO E PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS ..........................................172

    AULA 23: DESENVOLVIMENTO E DIREITOS HUMANOS...............................................................................................175

    AULA 24: TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL.........................................................................................................179

    AULA 25: DIREITOS HUMANOS E MEIO AMBIENTE...................................................................................................183

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    APRESENTAO

    MATERIAL DIDTICO

    1. VISO GERAL

    a) Objeto: O curso de direitos humanos tem por objeto a compreen-so da realidade contempornea (ser) por meio do estudo do marconormativo (dever ser) de tais direitos, seja no mbito internacional,seja no nacional.

    Assim, o curso ser organizado em quatro partes:1) Introduo ao Estudo dos Direitos Humanos;2) Proteo Internacional dos Direitos Humanos;3) Aspectos Scio-Jurdicos dos Direitos Humanos; e4) Novos emas e Novos Atores.

    b) Metodologia: Elegeu-se a abordagem crtica como elemento per-meador de todo o curso de Direitos Humanos. Procurou-se assima utilizao de diferentes mtodos que representem um conjunto

    de possibilidades, tendo como ponto comum a efetiva participa-o do aluno. Atividades como role plays, estudos de casos, apre-sentao de seminrios ou mesmo organizao de uma oficinado eatro do Oprimido so sugestes apresentadas como meiosde interatividade dos alunos com o contedo apresentado. Dessaforma, o curso no se apresenta como uma unidade estanque,com contedo engessado no espao e no tempo, mas com afluidez necessria para a adaptao do programa s questes maiscandentes em termos de direitos humanos. Ressalte-se ainda ocarter cooperativo do mtodo que privilegia a interao entrealunos e professores.

    c) Bibliografia: O curso foi montado com base em temas, no em au-tores ou escolas, o que justifica a extenso da leitura indicada. o-davia, tendo em vista a necessidade de se estabelecer uma bibliografiabsica para compor a biblioteca da Escola, foram indicados certos li-vros que permeiam, na medida do possvel, todas as aulas. Sugere-seainda a utilizao de recursos virtuais como fontes de pesquisa, no-tadamente sitesde rgos e organizaes nacionais e internacionais. tambm descrita, em todas as aulas, a legislao vigente - sejam

    os tratados ou normas internas - necessria para a compreenso doassunto abordado.

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    2. OBJETIVOS

    Os principais objetivos do curso so: Apresentar os conceitos fundamentais referentes a direitos humanos; Examinar violaes de direitos humanos; Compreender os sistemas internacional, regional e nacional de prote-

    o dos direitos humanos; Municiar o(a) aluno(a) de instrumentos prticos para a interveno

    no mundo contemporneo.

    O objetivo final do curso, alm de desenvolver a capacidade dos alunos de

    visualizarem o mundo que os circunda com a lente dos direitos humanos, que estes se situem como partes de um processo histrico permeado deavanos e retrocessos.

    3. DO MATERIAL DIDTICO

    O material didtico do curso de Direitos Humanos foi elaborado de maneiraflexvel permitindo tanto ao professor quanto ao aluno a adaptao do programaa questes contemporneas a sua implementao.

    odas as aulas so compostas de duas partes:a) Nota ao Professor: trata-se de um roteiro sugestivo de pontos a serem

    abordados em sala de aula. Por meio de elementos como objetivo di-dtico e objetivo programtico, o(a) professor(a) contar com o apoionecessrio naquilo que considerado de maior relevncia para a com-

    preenso do assunto em pauta.b) Nota ao Aluno: trata-se do contedo mnimo que deve ser apreendido

    como leitura prvia aula. A nota apresenta, ainda, a bibliografiaobrigatria, a legislao a ser consultada e os sites pesquisados.

    Incentiva-se a participao dos alunos em todas as aulas. A contextualizaoda temtica proposta, a postura crtica, o estabelecimento de link com assuntoscorrelatos, entre outros, so posturas a serem incentivadas nos alunos. As aulassero variadas - algumas mais expositivas, outras mais abertas participao e discusso encadeada pelos alunos -, e caber ao professor a responsabilidade deincentivar o debate sobre os assuntos escolhidos.

    Por meio da problematizao, os alunos sero convidados a no eternizar deforma acrtica entendimentos pr-estabelecidos e a desenvolver suas capacidades

    de anlise e de prtica engajada. Nesse sentido, habilidades diversas sero avalia-das mediante a proposio de algumas atividades especficas:

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    Nos role plays, sero apresentados posicionamentos a serem defendidos pelosalunos diante de uma situao hipottica. A atividade pretende incentivar

    o posicionamento crtico, a criatividade e o respeito opinio alheia. No Estudo de Caso, os alunos devero apresentar os principais argumen-

    tos que fizeram do caso um paradigma na compreenso de determinadoassunto. A atividade pretende capacitar os alunos na compreenso de posi-es adversas em tribunais e despert-los para a necessidade de se chegar aum resultado, caracterstica essencial ao direito. importante ressaltar quetal atividade no se restringe anunciao de uma resposta correta, masvisa ainda ao estmulo criatividade acerca de outras respostas possveis.

    Nos seminrios, os alunos devero apresentar um panorama geral so-

    bre e determinada realidade e, por meio de casos concretos, diagnos-ticar as respostas normativas possveis.

    4. DESAFIOS E DIFICULDADES

    A riqueza dos assuntos e a complexidade do que se pretende alcanar como curso de direitos humanos conduz necessidade de um recorte temtico.Nesse sentido, mister a escolha de contedos a serem priorizados em face deoutros, o que no lhes confere papel de maior significado. Ao no encontrar

    determinado tema entre os propostos neste material didtico, o leitor poderconcluir que a sua retirada foi alvo de debate por parte daqueles que contri-buram para a confeco das aulas propostas.

    endo em vista a opo de contemplar temas e no autores, corre-se orisco de certa parcialidade na confeco desse material. Mesmo quando sereferirem a temas considerados clssicos em direitos humanos, qualquertentativa de se apresentar determinado aspecto vir acompanhada por algu-ma perspectiva subjetiva. radutori traditori.

    No obstante a preocupao de se contemplar os temas mais atuais em di-reitos humanos, notadamente na Unidade IV: Novos emas e Novos Atores, acerteza de que a temtica dos direitos humanos conter sempre novos cap-tulos confere ao presente material didtico uma configurao temporal.

    5. FORMAS DE AVALIAO

    Os alunos sero avaliados com base em:a) Participao em aula;b) Atividades especficas: role plays, estudo de caso, seminrios (5,0 pontos);

    c) Avaliao formativa: prova escrita (5,0 pontos);d) Prova final: escrita (10,0 pontos).

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    6. ATIVIDADES COMPLEMENTARES

    a) Atividades em conjunto com outras disciplinas:

    Encontra-se em estudo duas atividades a serem realizadas em conjuntocom as disciplinas de Direito Civil (tpico sugerido: Direitos da Personali-dade) e Direito Constitucional (tpico sugerido: Direitos Fundamentais).

    Aponta-se, desde ento, como indicativo de atividades: 1) escolha de umfilme a ser debatido conjuntamente pelos trs professores; 2) determinaode uma deciso judicial, preferencialmente do Supremo ribunal Federal,que tambm possa ser alvo de discusso conjunta pelos trs professores. Oenvolvimento das demais disciplinas fundamental para demonstrar aos alu-nos como o instrumental que recebem em cada uma das disciplinas torna-seainda mais dinmico ao dialogar com as demais.

    b) Realizao de Palestras:

    As seguintes palestras sero realizadas em data marcada de acordo com adisponibilidade dos convidados e a convenincia da Escola, mantendo, namedida do possvel, a consonncia com as datas propostas no programa:

    a) Tema: A violncia no Rio de Janeiro

    Sugere-se o convite a especialistas como Igncio Cano (Laboratrio deAnlises da Violncia UERJ), Joo Ricardo Dornelles (Ncleo de Direi-tos Humanos do Departamento de Direitos da PUC-Rio), Julita Lengruber(Centro de Estudos de Segurana e Cidadania - CESEC/Universidade Can-dido Mendes/RJ), Marcelo Freixo (Centro de Justia Global), entre outros.

    b) Tema: O papel da sociedade civil na proteo dos direitos humanos

    Sugere-se o convite a movimentos sociais e organizaes no-governamen-tais que trabalhem na Advocacia em Direitos Humanos no mbito nacionale internacional, entre outros: Centro de Justia Global, Center for Justice andInternational Law (CEJIL), Viva-Rio, Instituto Pro-Bono, ortura NuncaMais, Comisso Pastoral da erra (CP), Movimento dos rabalhadores Ru-rais sem erra (MS), Fundao Bento Rubio, Projeto Legal, So Marti-

    nho, FASE, dentre outras.

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    AULAS

    EMENA: A disciplina Direitos Humanos. Polissemia conceitual. Pers-pectiva histrica. Idia de geraes e suas crticas. Principais documentos.Universalidade X Relatividade. Proteo na Constituio de 1988. Proteointernacional. Direito Internacional dos Direitos Humanos: Direitos Huma-nos, Direito Humanitrio e Direito dos Refugiados. Proteo Regional. Di-reitos Civis e Polticos. Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Violncia.Especificao dos sujeitos de direito. Novos atores. Novos temas.

    UNIDADE 1: INTRODUO AO ESTUDO DOS DHS

    1. Introduo aos direitos humanos: fundamentos e gramtica.2. Desenvolvimento histrico dos direitos humanos.3. Universalidade e relatividade cultural dos direitos humanos: role play.4. Universalidade e relatividade cultural dos direitos humanos: conceitos.5. A Constituio Federal e a proteo dos direitos humanos.6. rgos de Proteo dos Direitos Humanos.

    UNIDADE 2: A PROTEO INTERNACIONAL DOS DHS

    7. Sistema global: mecanismos convencionais e extra-convencionaisde proteo aos direitos humanos.

    8. Da regionalizao: introduo aos sistemas europeu, africano eamericano.

    9. Sistema Interamericano: a Comisso e a Corte Interamericanas deDireitos Humanos.

    10. Sistema Interamericano: estudo de caso (El Amparo Vs. Venezuela).11. Direito Humanitrio e Direito dos Refugiados.

    UNIDADE 3: ASPECTOS SCIOJURDICOS DOS DHS

    12. Os direitos civis e polticos: role playreferente ao direito vida.13. Os direitos civis e polticos.14. Violncia urbana.15. Direitos Humanos econmicos, sociais e culturais.16. Especificao do sujeito de direito: os direitos humanos sob a pers-

    pectiva de gnero.17. Direitos Humanos e a questo da criana e do adolescente.

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    18. Direitos Humanos e a questo tnica.19. Direitos Humanos e a questo indgena.

    20. Direitos Humanos e orientao sexual.21. eatro do Oprimido.

    UNIDADE 4: NOVOS TEMAS E NOVOS ATORES

    22. O papel da sociedade civil na proteo dos direitos humanos.23. Desenvolvimento e Direitos Humanos.24. ribunal Penal Internacional.

    25. Direitos Humanos no contexto ps-11 de setembro de 2001.

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    Acesso em: 20 de janeiro de 2010. Dis-1

    ponvel em: http://cinema.terra.com.br/ficha/0,,TIC-OI677-MNfilmes,00.html.

    AULA 01: INTRODUO AOS DIREITOS HUMANOS

    NOTA AO ALUNO

    Para a primeira aula do Curso de Direitos Humanos, o aluno dever as-sistir ao Filme nibus 174 de Jos Padilha e ler os textos abaixo. Por meiode textos extrados de jornais, revistas e artigos de Internet, espera-se umareflexo acerca do seguinte ponto:

    O que existe em comum entre o filme nibus 174 e os textos a seguir?

    NIBUS 174 RELEMBRA TRAGDIA CARIOCA1

    Vencedor do Festival Rio BR deste ano, o documentrio nibus 174, de JosPadilha, mostra a violncia das ruas cariocas retratando um seqestro verdico.

    O filme relata o trgico seqestro de um nibus coletivo que resultou namorte da refm e do seqestrador e foi destaque nos noticirio em 12 de ju-nho de 2000.

    Fizemos questo de manter a fidelidade e a cronologia do episdio. O

    longa comea com o seqestro e a partir dele inserimos depoimentos, expli-cou Padilha em entrevista recente Reuters.

    Nossa preocupao (no filme) no a de apontar culpados nem so-lues, mas gerar discusso sobre o tema. No podemos nos resumir aoato do seqestro, mas (sim avaliar) o que motiva uma sociedade a agirdessa forma.

    Logo no incio, um plano areo mostra o belo percurso do nibus que tra-fegava da Favela da Rocinha, passando pelos cartes postais das praias de SoConrado e Vidigal e pela avenida Niemeyer at chegar ao Jardim Botnico,onde aconteceu a tragdia.

    A partir da, apesar de a histria ser conhecida do pblico, o documen-trio consegue provocar suspense e nostalgia ao utilizar mais de 70 horas deimagens de V, alm de revelar uma extensa pesquisa com jornais, revistas enotcias de rdio sobre o incidente.

    udo isso mesclado ao depoimento do ex-capito do Batalho de Opera-es Especiais Rodrigo Pimentel, que foi afastado da Poltica Militar por ter secolocado contra a ao policial no episdio que terminou com a morte da passa-geira Gesa Firmo Gonalves e de Sandro Nascimento, um dos seqestradores.

    A tragdia, que tirou o romantismo do Dia dos Namorados e durou

    quatro horas, levou a polcia do Rio a ser duramente criticada pela imprensae pela opinio pblica.

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    COSTA, Antnio Luiz Monteiro Coelho2

    da. Revista Isto . 16 de outubro de2000.

    Quando Nascimento resolveu se entregar e saiu do nibus protegido porGesa, um policial, tentando salvar a refm, atirou na direo do seqestra-

    dor. Mas errou o tiro e Nascimento, conforme havia ameaado, atirou contraa passageira. Um outro tiro acertou Nascimento, que morreu por asfixia acaminho do hospital.

    O cuidado do filme em mostrar os dois lados da moeda aparece na entre-vista com a tia de Nascimento. Segundo o relato dela, esse menino de rua viua me ser assassinada a facadas quando tinha nove anos e mais tarde escapoude ser morto da chacina da Candelria uma biografia dura e amarga.

    O vivo de Gesa, Alexandre Magno de Oliveira, fica a cargo de represen-tar sua mulher no filme, enquanto imagens da educadora Damiana Nasci-

    mento, hoje com 42 anos de idade, chocam ao demonstrar a real dimensodo ocorrido ela sofreu um derrame durante o seqestro e no conseguemais falar, sendo capaz de se comunicar apenas por escrito.

    nibus 174, orado em 600 mil reais, mostra quanto o seqestro trauma-tizou os cariocas. O percurso ainda existe, mas o nmero da linha mudou de174 para 158.

    A ESCRAVIDO CHEGA AO TERCEIRO MILNIO2

    Em 14 de agosto, a Justia dos EUA condenou a seis anos e meio de pri-so e indenizao de US$ 110 mil o engenheiro brasileiro Ren Bonetti,naturalizado americano, acusado de manter por 20 anos a empregada do-mstica Hilda Rosa dos Santos como sua escrava. Continua tendo sentidofalar de escravido neste incio do terceiro milnio? Para muitos socilogossrios, que no pretendem de forma alguma esconder e amenizar os fatos,a resposta seria no. Mas este no se refere forma clssica do fenmeno,tal como consta nos livros de histria e de economia poltica - um modode produo tradicional, pr-capitalista, baseada na propriedade privadade uma pessoa, legal e garantida pelo Estado. Porm, numa definio maisampla - escravido como condio em que o trabalhador no recebe remu-nerao e sua vida totalmente controlada por outros - no s comum,como est crescendo.

    Mas essa nova escravido pouco tem a ver com nostalgias e atavismosdo passado pr-abolio. Bonetti no um senhor de engenho alagoano,mas um engenheiro eletrnico paulistano que emigrou para trabalhar namais alta tecnologia: Intelsat, depois Comsat e depois o projeto Sivam.Segundo o socilogo britnico Kevin Bales, que estudou o assunto noBrasil, ailndia, Mauritnia, Paquisto, ndia e Frana, h trs mil escra-

    vas domsticas em Paris e a histria se repete em Londres e Zurique, ondeoficialmente no h escravido h muitos sculos, como em Nova York e

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    Los Angeles, geralmente com meninas compradas e s vezes at adotadasem pases pobres da sia, frica e Amrica Latina. Cerca de um milho

    de meninas com menos de 18 anos trabalha de graa como domstica nasFilipinas. Para Bales, a escravido como a tuberculose: todos pensavamque estava extinta nos pases civilizados e em vias de desaparecimento emtodo o mundo, mas, de repente, novas variedades resistentes a antibiticosaparecem onde menos se espera. (...)

    Muito mais verstil e importante, porm, a nova escravido, formaextrema de superexplorao capitalista, bem inserida no mercado ps-mo-derno e global e inteiramente criada e reproduzida pelas atuais condiesda economia - desemprego tecnolgico, desarticulao das sociedades pr-

    capitalistas e ex-socialistas pela integrao ao mercado mundial, crescimentodas migraes e reduo ao absurdo, devido ao acirramento da concorrn-cia pela globalizao, da remunerao de atividades tradicionais, geralmentetecnologicamente atrasadas.

    No Brasil, um dos casos de nova escravido mais conhecidos o das de-zenas de milhares de trabalhadores (s vezes com suas famlias) aliciados porgatos no interior de Minas e do Nordeste e levados a empreendimentosem locais isolados para viver em condies precrias de habitao, higienee segurana e cumprindo uma jornada que se estende noite adentro, envol-vendo, nas suas diversas etapas, mulheres e crianas. Desconhecendo o valor

    das compras e o mecanismo de clculo da produo, tornam-se devedorespermanentes e trabalham por abrigo e comida. Assim se d boa parte daproduo de carvo vegetal, atividade tradicional deslocada para o Norte eCentro-Oeste pelo esgotamento das matas do Sudeste.

    O aumento da distncia dos centros consumidores (metrpoles, fundi-es, indstria siderrgica) e com o menor preo e aumento da disponibili-dade de combustveis alternativos (carvo mineral, gs natural), a viabilidadedo negcio passou a depender cada vez mais de trabalho gratuito. Quandovoc faz um churrasco, h uma boa probabilidade de estar usando carvoproduzido por trabalho escravo, bem como churrasqueira e talheres fundidoscom o mesmo combustvel. (...)

    rfico sexual. A escravido sexual ainda mais caracterstica do mundops-moderno. Recentemente, a secretria de Estado americana Madeleine

    Albright chamou a ateno para o trfico escravo sexual como um dos empre-endimentos criminosos que mais crescem no mundo. Segundo ela, um mi-lho de mulheres e crianas so vendidas por ano em todo o mundo por umtotal de US$ 6 bilhes. Isto inclui 50 mil nos EUA, mas os grandes mercadospara esse trfico so o Sudeste Asitico (250 mil) e a Europa Oriental (maisde 200 mil). Na ailndia, 35 mil prostitutas, geralmente vendidas muito

    jovens por algo como US$ 2 mil, ganham cada uma cerca de US$ 50 mil porano para seus donos mas nada para si mesmas. O colapso da URSS levou

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    uma enxurrada de mulheres empobrecidas e desesperadas da Europa Orientalpara trabalhar como escrava-prostitutas para o crime organizado nas capitais

    da Europa Ocidental, repetindo a triste odissia das polacas espalhadas pelomundo como conseqncia da derrocada econmica, da guerra e das perse-guies anti-semitas dos anos 1920. (...)

    Em So Paulo. Voltando ao Brasil, h cerca de 100 mil imigrantes bo-livianos que trabalham nas confeces de So Paulo, sobretudo no Brs,Bom Retiro e Pari, costurando roupas vendidas nas melhores butiques epublicitadas pelos mais ousados outdoors ps-modernos. Sua vinda resul-tou da combinao do colapso dos preos das commoditiesnos anos 80 e90, que destruiu a economia mineira boliviana, junto com o acirramento

    da concorrncia no setor txtil resultante da abertura do mercado brasi-leiro s importaes asiticas (cuja produo freqentemente tambm usatrabalho escravo ou semi-escravo). Os gastos da viagem - cerca de US$150 - so pagos pelo empregador, bem como moradia e alimentao, ini-ciando um processo de endividamento e dependncia do qual nem todosconseguem se safar.

    O patro costuma exigir fidelidade de pelo menos um ano e s vezesretm seus passaportes, probe-os de sair rua e fecha-os dentro de casa,vetando visitas de terceiros. Se o trabalhador quer deixar o patro que otrouxe, este o considera um traidor, cobra as despesas da viagem ou o

    ameaa com o fantasma da Polcia Federal. No ponto alto da produo paraas vendas do Natal, de agosto a novembro, o trabalho chega a se estenderpor 15 horas por dia, sete dias por semana. A remunerao pode ser tobaixa quanto R$ 30 a R$ 50 mensais, embora conste que os mais hbeischegam a tirar R$ 400 mensais - ao menos com os patres coreanos, tidoscomo mais generosos que seus concorrentes brasileiros, paraguaios oumesmo bolivianos. Nos EUA, o cinema torna bem conhecida a situaode imigrantes ilegais - mexicanos, chineses e outros - mantidos em condi-es semelhantes em vrios trabalhos agrcolas, industriais e de servios,mas tambm nessa modalidade, o maior foco a sia, onde trabalhadoressuperexplorados fabricam brinquedos, txteis e outros artigos de consumobaratos para todo o mercado global. Um caso notrio o dos pequenosempresrios que no Sudeste Asitico fabricam tnis para a ultramodernaNike, empresa que desde 1997 tem sido forada por uma dura campanhade boicote e denncias a reformular sua poltica de compras para oferecermelhores condies a fornecedores que tratam melhor seus empregados.Segundo Kevin Bales, 27 milhes de pessoas vivem as vrias formas de novaescravido e o nmero est crescendo. Se forem considerados casos que,como o dos bolivianos do Pari ou as trabalhadoras das subcontratadas da

    Nike na Indonsia, poderiam ser chamados de semi-escravido - empregosinformais com remunerao muito baixa, jornadas extremamente longas,

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    Acesso em: 15 de janeiro de3

    2010. Disponvel em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/not icias/story/2005/01/050113_direitoshuma-nosro.shtml.

    sob ameaa de coao fsica ou policial, sem garantias trabalhistas e commoradia e alimentao controladas pelo empregador-, o nmero pode che-

    gar a 200 milhes, bem mais do que a populao inteira do Imprio Roma-no ou de qualquer sociedade escravista do passado. Parece que em vez deuma sociedade de lazer movida pelo trabalho de robs, o sculo 21 veio nostrazer a escravido numa escala que a humanidade jamais conheceu.

    EUA ESTO MINANDO DIREITOS HUMANOS NO MUNDO, DIZ ONG 3

    Violaes dos direitos humanos cometidas pelos Estados Unidos esto mi-

    nando a lei internacional e erodindo o papel do pas no cenrio internacional,

    afirmou a ONG de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.

    Segundo a organizao, os americanos j no podem mais reivindicar queesto defendendo os direitos humanos em outros pases, se eles mesmos estopraticando abusos.

    A ONG cobrou a criao de uma comisso independente nos Estados Uni-dos para examinar o abuso de prisioneiros na priso de Abu Ghraib, no Iraque.

    Na quarta-feira, uma outra entidade, o Worldwatch Institute, havia divul-gado um relatrio que dizia que a chamada guerra contra o terrorismo pode

    estar perpetuando o ciclo de violncia no mundo.

    Credibilidade

    O governo americano est no momento investigando denncias de abusosde prisioneiros no Iraque e tambm na priso da base militar de Guantna-mo, em Cuba.

    A Human Rights Watch diz que os americanos j no podem mais dizerque sua posio moralmente correta e liderar como exemplo.

    A entidade cita as tcnicas de interrogatrio com coero em Guantna-mo e Abu Ghraib como especialmente prejudiciais.

    O grupo, a maior organizao de defesa dos direitos humanos baseada nosEstados Unidos, diz que as aes dos americanos nestas prises tiveram umefeito negativo sobre a credibilidade do pas como um defensor dos direitoshumanos e lder da guerra contra o terrorismo.

    A adoo de interrogatrios com coero parte de um desrespeito maisamplo dos princpios dos direitos humanos em nome do combate ao terroris-mo, disse a ONG.

    A entidade pede que o governo Bush instale uma comisso totalmente in-dependente, no modelo da que investigou os ataques de 11 de setembro, para

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    analisar as denncias de abusos em Abu Ghraib. ambm pede a indicaode um promotor especial para determinar o que houve de errado e levar os

    responsveis Justia.

    MATERIAL DE APOIO

    Textos:

    Leitura obrigatria:

    Leitura acessria:

    DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. So Leopoldo: Unisi-nos, 2009.

    ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.

    BOBBIO, Norberto.A era dos direitos.Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.15-47.

    DORNELLES, Joo Ricardo. O que so direitos humanos?So Paulo: Bra-siliense, 1989.

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    AULA 02: DESENVOLVIMENTO HISTRICO DOS DIREITOSHUMANOS

    NOTA AO ALUNO

    O desenvolvimento dos direitos humanos foi um processo histrico e gra-dativo. Dessa forma, a consagrao dos direitos humanos fruto de mudan-as ocorridas ao longo do tempo em relao estrutura da sociedade, bemcomo de diversas lutas e revolues.

    Mas afinal, quando surgem os direitos humanos? O debate sobre o temaconduz sempre ao limite do surgimento do prprio Direito. No caber aula 02 resolver um embate travado entre pensadores ao longo dos sculos,mas apontar alternativas.

    Alguns autores vem nas primeiras instituies democrticas em Atenas -o princpio da primazia da lei (i.e., do nomos: regra que emana da prudnciae da razo, e no da simples vontade do povo ou dos governantes) e da parti-cipao ativa do cidado nas funes do governo o primrdio dos direitospolticos. Ainda na Idade Antiga, a repblica romana, por sua vez, instituiuum complexo sistema de controles recprocos entre os rgos polticos e umcomplexo mecanismo que visava a proteo dos direitos individuais.

    Convm salientar que na passagem do sculo XI ao sculo XII (i.e., passa-gem da Baixa Idade Mdia para a Alta Idade Mdia) voltava a tomar fora aidia de limitao do poder dos governantes, pressuposto do reconhecimen-to, sculos depois, da consagrao de direitos comuns a todos os indivduos do clero, nobreza e povo. A partir do sculo XI, h um movimento dereconstruo da unidade poltica perdida com o feudalismo. O imperador eo papa disputavam a hegemonia suprema em relao a todo o territrio eu-ropeu, enquanto que os reis at ento considerados nobres reivindicavamos direitos pertencentes nobreza e ao clero. Nesse sentido, a elaborao daCarta Magna, em 1215, foi uma resposta a essa tentativa de reconcentrao

    do poder (limitou a atuao do Estado). Alguns autores tratam esse momen-to como o embrionrio dos direitos humanos. Outros asseveram sua naturezacomo meramente contratual, acordado entre determinados atores sociais ereferentes exclusivamente aos limites do poder real em tributar.

    importante salientar que, durante a Idade Mdia, a noo de direitosubjetivo estava ligada ao conceito de privilgio, uma vez que, at a Revo-luo Francesa, a sociedade europia se organizava em ordens ou esta-mentos. Dessa forma, a Reforma Protestante vista como a passagem dasprerrogativas estamentais para os direitos do homem, uma vez que a ruptura

    da unidade religiosa fez surgir um dos primeiros direitos individuais: o daliberdade de opo religiosa. Dentre as conseqncias da Reforma, destaque-

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    se: a laicizao do Direito Natural a partir de Grcio e o apelo razo comofundamento do Direito.

    Como resultado da difuso do Direito Natural e no contexto das Revo-lues Burguesas, so impostos limites ao poder real por meio da linguagemdos direitos. nesse contexto em que se formulam as primeiras declaraesde Direitos. Destacam-se aqui: na Inglaterra, o Habeas Corpus Act de 1679 e oBill of Rightsde 1689; nos Estados Unidos, a Declarao de Virgnia de 1776;e na Frana, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789,todas inspiradas no direito natural. Os homens so dotados de direitos inatos,cabendo ao poder estatal declar-los, conforme demonstrado a seguir:

    Declarao de Virgnia, 1776 Declarao Universal dos Direitos do Homem e doCidado, 1789

    Fruto da Revoluo Americana visavam restauraros antigos direitos de cidadania tendo em vista osabusos do poder monrquico;

    Fruto da Revoluo Francesa os franceses se viamem uma misso universal de libertao dos povos;

    Marco do nascimento dos direitos humanosna histria;

    Art. XVI: baseado na lio clssica de Montesquieu teoria do governo misto combinada com uma de-clarao de direitos, ambas expressas em um textoescrito (a constituio);

    Reconhecimento da igualdade entre os indivduos

    pela sua prpria natureza e do direito propriedade.

    Consagrao dos princpios iluministas: igualdade,

    liberdade e propriedade.

    importante ressaltar que ambas as Declaraes consagraram os direitoshumanos da primeira gerao, ao passo que os direitos humanos de segundagerao (embora a Constituio francesa de 1791 j estipulasse deveres so-ciais do Estado, no dispunha sobre os direitos correlativos dos cidados) stiveram sua plena afirmao com a elaborao da Constituio mexicana (emdecorrncia da Revoluo Mexicana), em 1917, e da Constituio de Wei-mar em 1919. Entre essas, atende-se para o ponto comum: a insuficinciada absteno estatal como forma de garantia de direitos. Em face de algunsdireitos, como o caso do direito ao trabalho, educao e sade, somentea interveno estatal capaz de garanti-los. J os direitos de terceira geraos foram consagrados aps a Segunda Guerra Mundial, com base na idia deque existem direitos baseados na coletividade, conforme sero estudados aolongo do curso. odavia, a idia de geraes importante como mecanismode compreenso histrica - merece ser criticada desde esse momento, umavez que coloca em cheque a idia contempornea de indivisibilidade e inter-dependncia dos direitos.

    At o presente momento, examinamos a luta por direitos humanos em con-

    textos nacionais. odavia, cabe destaque o momento histrico em que os direitoshumanos foram galgados ao patamar internacional. Por mais que o direito hu-

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    manitrio e a Organizao Internacional do rabalho j indicassem a necessidadede uma proteo de direitos que se sobrepusesse aos ordenamentos internos, as

    atrocidades cometidas durante as Guerras Mundiais, notadamente na Segunda,deixou transparente a necessidade de se estabelecerem marcos inderrogveis dedireitos a serem obedecidos por todos os Estados na concertao estabelecida nops-Guerra. Nesse contexto, a elaborao da Declarao Universal dos DireitosHumanos (DUDH), em 1948, significou um marco da consagrao da univer-salidade dos direitos humanos. anto a DUDH, como o Pacto Internacional deDireitos Civil e Polticos e o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociaise Culturais, ambos de 1966, sero estudados na aula referente ao Sistema Globalde Proteo dos Direitos Humanos. odavia, vale adiantar que a confeco dos

    dois pactos localiza-se em um contexto de Guerra Fria em que os dois blocosdisputavam ideologicamente a concepo de direitos humanos.Por sua vez, o final da dcada de 80 foi marcado pela derrocada do socia-

    lismo real. No decorrer da dcada de 90, ganha fora o discurso de que osdireitos humanos no eram mais discursos dos blocos, mas tema que deveriacompor a agenda global. Foi nesse contexto que se desenvolveram as gran-des conferncias da dcada de 90, destacando-se a Conferncia de Viena de1993, a qual consagrou os paradigmas da universalidade, indivisibilidade einterdependncia dos direitos humanos.

    Diante do exposto, questiona-se: Qual a importncia da Carta Magna

    de 1215? Quais os elementos em comum entre a Declarao de Virgnia e aDeclarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado? O que so gera-es de direitos? Quais foram os precedentes para a consolidao do DireitoInternacional dos Direitos Humanos?

    MATERIAL DE APOIO

    Textos:

    Leitura obrigatria:

    COMPARAO, Fbio Konder.A afirmao histrica dos direitos humanos.So Paulo: Saraiva, 2008. 6a ed. p. 37-68.

    Leitura acessria:

    BUERGENHAL, Tomas. Te Evolving International Human Rights Sys-

    tem. American Society of International Law, v. 100, n. 4, p. 783-807,2006.

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    CANADO RINDADE, Antnio Augusto. Tratado de direito interna-cional dos direitos humanos. Volume I. Porto Alegre: Srgio Antnio

    Fabris, 1997. pp. 31-118.LAFER, Celso. Reconstruo dos direitos humanos um dilogo com o

    pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,2001. pp. 117-145.

    Legislao:

    Constituio Federal de 1988Declarao de Virgnia de 1776Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789

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    AULA 03: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOSDIREITOS HUMANOS

    NOTA AO ALUNO

    O CASO

    Zara, 15 anos, uma das cinco milhes de pessoas muulmanas quevivem na Frana. Sua famlia migrou para o pas no comeo da dcada de1950, antes da independncia de seu pas, o Marrocos. Ela e sua famliaso consideradas muulmanos fundamentalistas, por seguirem todos osensinamentos e tradies da religio islmica. Dessa forma, Zara consi-dera que alguns hbitos j fazem parte de sua identidade cultural, comoo uso de vu na escola e na foto da carteira de identidade, assim como acomemorao do Ramad (perodo no qual os muulmanos ficam um msem jejum). Comemora, tambm, o Primeiro de Moharam (primeiro diado calendrio Islmico) e o Eid-al-Adha (festa do carneiro que comemorao sacrifcio de Abrao).

    Em maro de 2004, a Assemblia Nacional da Frana, com base no prin-cpio da laicidade do Estado, adotou uma lei que proibiu o uso ou porte

    de qualquer smbolo religioso pelos alunos nas escolas pblicas a partir doprximo ano letivo (setembro de 2004). Isto significa que Zara no podermais ir escola usando o vu de acordo com sua religio mulumana, con-forme sempre o fez. Diante disso, seu pai ameaa tir-la da escola caso elano use o vu, uma vez que considera tal medida extremamente ofensiva asua crena religiosa e a sua identidade cultural. Sua me, por sua vez, come-mora, em silncio, a promulgao da referida lei, sonhando para sua filhaum futuro distinto do dela.

    Nesse contexto, Zara encontra-se dividida: por um lado, lamenta talproibio, pois, da maneira como foi criada, a no-utilizao do vu (hiyas)

    violaria os ensinamentos sagrados do Alcoro; por outro lado, e em de-corrncia de seu contato com um mundo no-muulmano, ela admira aliberdade feminina e acredita que poderia ser mais feliz sem as imposiesreligiosas do islamismo. No entanto, Zara, com receio das represlias quepoderia vir a sofrer por parte da comunidade muulmana, em respeito screnas religiosas de sua famlia, e principalmente, com medo das conse-qncias das atitudes de seu pai, resolve usar seu vu no primeiro dia donovo ano letivo. Para sua surpresa, expulsa da escola, com base na lei emvigor. Desconsertada, Zara comea a se aprofundar no assunto, estudando

    as posies a favor e contra a proibio do uso de vu e de qualquer smboloreligioso em escolas pblicas, conforme exposto a seguir:

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    Feministas

    Defendem a igualdade entre os sexos como um dos princpios fundamen-tais da democracia. Nesse sentido, a radicalizao da laicidade tida comouma forma de assegurar a liberdade da mulher e, conseqentemente, a igual-dade entre os sexos. O uso de vu por alunas muulmanas representa umasubmisso da mulher ao homem, tendo em vista no ser pea ornamental eestritamente religiosa.

    Corte Europia de Direitos Humanos

    Defende que a proibio de uso de vus nas escolas pblicas por alunasmuulmanas no viola o direito de liberdade religiosa, bem como umaforma vlida para se combater o fundamentalismo islmico. De acordo coma Corte, tal proibio, por ser necessria para assegurar a separao entreIgreja e Estado, tambm um dos requisitos para se garantir uma sociedadedemocrtica.

    Partido de Justia e Desenvolvimento Islmico

    Defende a identidade cultural e o direito liberdade religiosa. Nessesentido, o uso de vu por alunas muulmanas representa uma cultura mi-lenar, e no uma forma de submisso. rata-se de uma escolha feita pelaaluna a seguir os ensinamentos muulmanos, demonstrando tanto a suadevoo e religiosidade quanto a sua obedincia a valores tradicionais quecompem a cultura. Como exemplo, destaque-se as freiras catlicas que co-brem o corpo inteiro e no so incomodadas pela sociedade. O banimentodo vu confirma que h uma perseguio religiosa aos islmicos desde o 11de setembro de 2001.

    Conselho Superior de Educao

    Defende a laicidade do Estado e o combate ao fundamentalismo religiosocomo forma de melhorar o acesso educao. A utilizao de vu por alunasmuulmanas em escolas pblicas, de quip e da estrela de Davi pelos judeuse da cruz e de crucifixo por catlicos, causa separao e discriminao entreos alunos, uma vez que promove e estimula a segregao das religies. Nessesentido, o Estado tem que banir tal discriminao, tornando a escola em umlocal de aprendizagem e no de conflito.

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    Partido pela liberdade religiosa

    Defende ser a liberdade de escolha religiosa um princpio basilar de qual-quer sociedade democrtica, bem como a liberdade de expresso. Dessa for-ma, a proibio da utilizao de qualquer smbolo religioso por alunos mu-ulmanos, catlicos e judeus atenta contra tais princpios, limitando os atosdos indivduos e, o que pior, determinando suas prprias vestimentas. Aimposio de uma proibio dessa dimenso demonstra o autoritarismo doEstado e a violao do princpio do Estado Democrtico de Direito.

    Questes:

    Em primeiro lugar: O Estado francs agiu de forma correta aoadotar e promulgar a referida lei? Se esse caso ocorresse no Brasil(tendo em vista ser um Estado igualmente democrtico e laico),o Estado brasileiro estaria violando algum princpio fundamentalou direito humano? Utilize a legislao brasileira, os tratadosinternacionais de direitos humanos (dispostos abaixo), bem comoas posies acima mencionadas para responder tais questes.

    MATERIAL DE APOIO

    Legislao:

    Constituio Federal de 1988

    ...Art. 5 odos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza,

    garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabi-lidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade,nos termos seguintes:...VI - inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado olivre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo aoslocais de culto e a suas liturgias;...VIII - ningum ser privado de direitos por motivo de crena religiosa ou de

    convico filosfica ou poltica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigaolegal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestao alternativa, fixada em lei;...

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    X - so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pes-soas, assegurado o direito a indenizao pelo dano material ou moral decor-

    rente de sua violao;...

    Art. 6. So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer,a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, aassistncia aos desamparados, na forma desta Constituio (grifou-se)....

    Art. 205. A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, serpromovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao plenodesenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua

    qualificao para o trabalho....Art. 215. O Estado garantir a todos o pleno exerccio dos direitos culturaise acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar e incentivar a valorizao ea difuso das manifestaes culturais.

    Lei n. 8.313 - Lei Rouanet - de 23 de dezembro de 1991

    Restabelece princpio da lei n 7.505, de 02 de julho de 1986, institui o Programa Na-

    cional de Apoio Cultura PRONAC - e d outras providncias....

    Artigo 39. Constitui crime, punvel com recluso de dois a seis meses e multa devinte por cento do valor do projeto, qualquer discriminao de natureza polticaque atente contra a liberdade de expresso, de atividade intelectual e artstica, deconscincia ou crena, no andamento dos projetos a que se referem esta Lei.

    Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990

    Dispe sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente e d outras providncias.

    Art. 1. Esta Lei dispe sobre a proteo integral criana e ao adolescente.Art. 2. Considera-se criana, para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos deidade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.Pargrafo nico. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente esteEstatuto s pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade....

    Art. 16. O direito liberdade compreende os seguintes aspectos:

    ... III - crena e culto religioso;

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    Declarao Universal dos Direitos Humanos

    Artigo I. odas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Sodotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umas s outras comesprito de fraternidade.

    Artigo II. oda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdadesestabelecidos nesta Declarao, sem distino de qualquer espcie, seja deraa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de outra natureza, ori-gem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condio....

    Artigo XVIII: oda pessoa tem direito liberdade de pensamento, conscinciae religio; este direito inclui a liberdade de mudar de religio ou crena e a liber-dade de manifestar essa religio ou crena, pelo ensino, pela prtica, pelo cultoe pela observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou em particular.

    Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos

    ...Artigo 21. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a

    todos os indivduos que se encontrem em seu territrio e que estejamsujeitos sua jurisdio os direitos reconhecidos no presente Pacto, semdiscriminao alguma por motivo de raa, cor, sexo, lngua, religio,opinio poltica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ousocial, situao.2. Na ausncia de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tor-nar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados-partescomprometem-se a tomar as providncias necessrias, com sitas a adot-las,levando em considerao seus respectivos procedimentos constitucionais e asdisposies do presente Pacto.

    ...Artigo 181. oda pessoa ter direito liberdade de pensamento, de conscincia e dereligio. Esse direito implicar a liberdade de er ou adotar uma religio oucrena de sua escolha e a liberdade de professar sua religio ou crena, indivi-dual ou coletivamente, tanto pblica como privadamente, por meio do culto,da celebrao de ritos, de prticas e do ensino....

    Artigo 27

    Nos estados em que haja minorias tnicas, religiosas ou lingsticas, as pes-soas pertencentes a essas minorias no podero ser privadas do direito de ter,

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    conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua prpria vida cultural,de professar e praticar sua prpria religio e usar sua prpria lngua.

    Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

    ...Artigo 2...2. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a garantir que os direi-tos nele enunciados se exercero sem discriminao alguma por motivo de raa,cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de outra natureza, origem nacionalou social, situao econmica, nascimento ou qualquer outra situao....

    Artigo 131. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa educao. Concordam em que a educao dever visar o pleno desenvolvi-mento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer orespeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam aindaem que a educao dever capacitar todas as pessoas a participar efetivamentede uma sociedade livre, favorecer a compreenso, a tolerncia e a amizade

    entre todas as naes e entre todos os grupos raciais, tnicos ou religiosos epromover as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz.

    Declarao e Programa de Ao de Viena de 1993

    ...5. odos os direitos humanos so universais, indivisveis interdependentes e in-ter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanosde forma global, justa e equitativa, em p de igualdade e com a mesma nfase.

    Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em conside-rao, assim como diversos contextos histricos, culturais e religiosos, deverdos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades funda-mentais, sejam quais forem seus sistemas polticos, econmicos e culturais....18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas so inalienveis e cons-tituem parte integral e indivisvel dos direitos humanos universais. A plenaparticipao das mulheres, em condies de igualdade, na vida poltica, civil,econmica, social e cultural nos nveis nacional, regional e internacional e a

    erradicao de todas as formas de discriminao, com base no sexo, so obje-tivos prioritrios da comunidade internacional.

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    Terra online.4 29.06.2004. Acesso em:15 de janeiro de 2010. Disponvel em:http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI333991-EI312,00.html.

    ...19. Considerando a importncia da promoo e proteo dos direitos das

    pessoas pertencentes a minorias e a contribuio dessa promoo e proteo estabilidade poltica e social dos Estados onde vivem, a Conferncia Mundialsobre os Direitos Humanos reafirma a obrigao dos Estados de garantir apessoas pertencentes a minorias o pleno e efetivo exerccio de todos os direi-tos humanos e liberdades fundamentais, sem qualquer forma de discrimina-o e em plena igualdade perante a lei, em conformidade com a Declaraodas Naes Unidas sobre os Direitos da Pessoa Pertencentes a Minorais Na-cionais, tnicas, Religiosas e Lingisticas.

    As pessoas pertencentes a minorias tm o direito de desfrutar de sua prpria

    cultura, de professar e praticar sua prpria religio e de usar seu prprioidioma privadamente ou em pblico, com toda a liberdade e sem qualquerinterferncia ou forma de discriminao.

    Notcias prvias:

    Corte europia mantm proibio de vu muulmano4

    A proibio do uso de vus pelas alunas muulmanas em escolas pblicas

    no viola o direito de liberdade religiosa e uma forma vlida de combater ofundamentalismo islmico, disse a Corte Europia de Direitos Humanos hoje.Em uma deciso que pode abrir precedentes, a corte com sede em Estrasburgo(Frana) rejeitou a argumentao apresentada por uma estudante turca impe-dida de frequentar a faculdade de medicina da Universidade Istambul porqueo vu usado por ela violava o cdigo de vestimenta da instituio.

    A sentena do tribunal pode ajudar o governo francs a enfrentar os pro-cessos que, segundo se prev, surgiro no pas quando entrar em vigor a leibanindo o uso do vu pelas muulmanas em escolas pblicas. Podem se

    justificar medidas adotadas em universidades para impedir certos movimen-

    tos fundamentalistas religiosos de pressionar estudantes que no praticam areligio em questo ou aqueles adeptos de outras religies, afirmou a corte.

    As proibies impostas em nome da separao entre Igreja e Estado seriamento consideradas necessrias em uma sociedade democrtica, disse o r-go, que parte do Conselho da Europa, integrado pela urquia. O Partidoda Justia e do Desenvolvimento (AKP), atualmente frente do governoturco e que possui razes islmicas, estudou a possibilidade de colocar fim proibio do uso do vu, mas acabou voltando atrs ao se deparar com aoposio dos militares defensores da secularidade do sistema.

    A deciso da Corte Europia tambm pode ter ressonncia em casos naAlemanha, onde professoras muulmanas esto apelando contra leis de vrios

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    ELUF, Luiza Nagib. Folha de S. Paulo.5

    30.12.2003.Luiza Nagib Eluf, 48, pro-curadora de Justia do Ministrio Pblico

    do Estado de So Paulo e autora de A

    Paixo no Banco dos Rus, entre outros

    livros. Foi secretria nacional dos Direi-

    tos da Cidadania do Ministrio da Justia

    (governo Fernando Henrique Cardoso.

    Estados que as impedem de cobrir suas cabeas. No caso decidido nesta se-mana, a ex-estudante de medicina Leyla Sahin foi impedida de realizar uma

    prova porque estava usando um vu. A urquia uma sociedade majoritaria-mente muulmana que introduziu um sistema de governo secular nos anos1920, depois do colapso do Imprio Otomano.

    O vu religioso5

    A imprensa brasileira, principalmente esta Folha, vem noticiando o intensodebate que se instalou na Frana a respeito do uso do vu muulmano por alunasdas escolas pblicas daquele pas. De acordo com uma deciso da Justia em 1989,vus e outros smbolos religiosos so permitidos nas escolas do Estado, desde queno sejam invasivos. Em razo da ampla interpretao que a palavra invasivopermite, vrios conflitos ocorreram entre pais de alunas e diretores de escolas, ha-vendo notcias de algumas expulses em virtude da insistncia no uso do vu.

    A discusso a respeito dos limites das determinaes religiosas de interes-se geral e deve ser acompanhada pelos demais pases laicos em todo o mundo,dentre os quais o Brasil. rata-se de uma polmica que, mais cedo ou maistarde, pode ocorrer entre ns.

    De acordo com dados estimados, existem na Frana 5 milhes de muul-

    manos, a maior comunidade islmica da Europa. No entanto, alm da Fran-a, outros pases do velho continente, como Alemanha, Espanha, Portugal eInglaterra, possuem significativa presena muulmana, decorrente de imigra-es. Essas populaes resistem tenazmente a assimilar os valores ocidentais,isolando-se em suas comunidades. No falta quem atribua aos europeus aincapacidade de acolher, sem preconceito, os imigrantes, mas a intolernciamaior parece no ser dos pases hospedeiros.

    Escudadas em princpios religiosos, as comunidades muulmanas impem smulheres regras extremamente opressivas. Impedem-nas de mostrar qualquer partedo corpo, inclusive o cabelo, por vezes chegando ao absurdo de obrig-las a cobriro rosto todo com o uso da burca, mesmo que com isso elas tenham dificuldadespara enxergar, respirar ou falar. O tal vu no pea ornamental, tampouco estritamente religioso. um uniforme feminino, que estigmatiza a mulher.

    Por essa razo, a revista Elle francesa divulgou um apelo ao presidenteJacques Chirac, assinado por mais de 60 mulheres de destaque, para queapresentasse projeto de lei proibindo o uso de vu por meninas muulmanasnas escolas, tendo em vista tratar-se de um smbolo visvel da submisso damulher. As atrizes Isabelle Adjani e Isabelle Huppert e a designer de modaSonia Rykiel, dentre outras, assinaram o manifesto.

    No se pode confundir convico pessoal com opresso, opo religiosa comimposio de subalternidade.

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    Estado. Disponvel em: http://6

    w w w . e s t a d a o . c o m . b r / n o t i c i a s /internacional,decisao-sobre-crucixo-nega-raizes-da-europa-diz-berlusco-ni,461172,0.htm. Acesso em: 15 de

    janeiro de 2010.

    Uma pesquisa de opinio sobre o assunto foi divulgada recentemente,tendo apurado que 57% dos franceses apiam a proibio do uso do vu

    em escolas e reparties pblicas. Por outro lado, setores das igrejas Catli-ca, Protestante e Ortodoxa opuseram-se proibio, temendo restries quepossam, eventualmente, afet-los tambm.

    O Brasil, assim como a Frana, um Estado em que todas as religies so per-mitidas e respeitadas, sendo que o poder poltico no est vinculado a nenhumadelas. o que nos assegura a Constituio de 1988. Nossa Carta Magna, em seuart. 5, inciso VIII, estabelece que ningum ser privado de direitos por motivosde crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica. O dispositivo, criadopara evitar discriminaes em razo de credo, deve ser aplicado, tambm, para

    evitar violaes de direitos trazidas pelas prprias religies aos seus seguidores.Isso significa que no se pode confundir convico pessoal com opresso, op-o religiosa com imposio de subalternidade. Os usos e costumes de determi-nados grupos sociais foram utilizados, durante muito tempo, para justificar nu-merosas formas de privar as mulheres de seus direitos fundamentais. Hoje, essasdistores encontram-se desmascaradas internacionalmente. anto as alegaesfundamentadas em princpios religiosos quanto as calcadas em hbitos culturaisno podem ser admitidas quando se prestarem a restringir ou eliminar direitos.

    A polmica que se iniciou na Frana com relao ao uso do vu islmico de-monstra que chegou o momento de rever princpios e dogmas religiosos usados

    para tolher as liberdades democrticas de seus seguidores. O vu imposto s mu-ulmanas tem por objetivo impedir que as mulheres se manifestem livremente,como seres humanos. Alm disso, significa que a sexualidade feminina proibi-da e pecaminosa. Diferentemente do que novelas de televiso andaram mos-trando, no h glamour no uso do vu, mas opresso fsica e intelectual. Por essarazo, importante desestimular o seu uso. No se trata, como j se argumen-tou, de associar islamismo com terrorismo, que deve ser extirpado. O problemado vu est essencialmente ligado ao horror s manifestaes do feminino.

    No entanto talvez a melhor forma de diminuir a adeso ao vu no seja aproibio legal nem a expulso da escola de meninas que entendam necessrioadotar a vestimenta de seus ancestrais. A proibio de cobrir a cabea e o corpotornaria o lamentvel vu um smbolo da resistncia cultural e religiosa de umapopulao j segregada, em terra estrangeira. Surtiria, assim, o efeito oposto aodesejado. Fortalecer as mulheres, criando para elas mecanismos de autodefesa e apossibilidade de outra opo de vida, pode ser a melhor sada para esse impasse.

    Deciso sobre crucifixo nega razes da Europa, diz Berlusconi6

    HEN BROWN - O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, disse naquarta-feira que a determinao da Corte Europia de Direitos Humanos de

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    que os crucifixos sejam retirados das salas de aula na Itlia foi uma tentativasem sentido de negar as razes crists da Europa.

    O pas, de maioria catlica romana, reagiu com indignao deciso,anunciada na tera-feira pela corte com sede em Estrasburgo, na Frana, queconsiderou que os crucifixos espalhados nas paredes das escolas italianas po-deriam perturbar crianas que no sejam crists.

    O primeiro-ministro conservador disse a um programa de televiso que asentena era uma tentativa de negar as razes crists da Europa. Isso no aceitvel para ns, italianos, afirmou.

    Berlusconi argumentou que a Itlia tem tantas igrejas que as pessoas ape-nas precisam andar 200 metros para a frente, para trs, para a direita ou para

    a esquerda para encontrar um smbolo da cristandade.Essa uma daquelas decises que com frequncia nos faz duvidar dobom senso da Europa, disse o primeiro-ministro, confirmando que a Itliavai apelar da sentena to logo seu gabinete a avalie, em sua reunio semanal,na sexta-feira.

    O Vaticano expressou choque e tristeza com a determinao da corte,que foi condenada por vrias correntes polticas, em um raro momento deunio entre polticos italianos. Somente alguns partidos de extrema esquerdae grupos atestas apoiaram a deciso da corte.

    Prefeitos de todo o pas disseram que no vo cumprir a sentena. ambm

    houve reaes iradas de redutos catlicos no exterior, como a Polnia. Milha-res de pessoas protestaram em redes de relacionamento social na Internet.

    No terceiro milnio a Europa s est nos deixando abboras do Hallo-ween (o dia das bruxas), ao mesmo tempo em que nos tira nossos smbolosadorados, disse o nmero 2 do Vaticano, cardeal arcicio Bertone.

    A Itlia est envolvida em um acalorado debate sobre como li-dar com uma crescente populao de imigrantes, na maioria muul-mana, e a sentena da corte poderia tornar-se um novo grito de guer-ra para a poltica do governo de represso entrada de mais estrangeiros.

    A parlamentar europeia Mara Bizzotto, da Liga do Norte, partidoque integra a coalizo anti-imigrante do governo de Berlusconi, per-guntou por que a corte europeia tomou medidas contra o crucifixo,mas no baniu smbolos muulmanos como vus, burcas e nijabs.

    A questo foi levada corte por uma italiana, Soile Lautsi, que se queixou porqueseus filhos tinham de assistir s aulas em uma escola pblica com crucifixos em todasas salas, o que a impediria de exercer seu direito de lhes dar uma educao secular.Duas leis italianas da dcada de 1920, quando os fascistas estavam no poder,estabelecem que as escolas tm de colocar os crucifixos nas paredes.

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    DE BARROS FRANCISCO, Rachel Herdy.7

    Dilogo intercultural dos direitos huma-

    nos. Monograa de nal de curso. Cursode Direito da PUC-Rio. 2003. p. 7.

    A Declarao Universal dos Direitos8

    Humanos foi adotada em 10.12.1948,atravs da Resoluo n. 217 A (III), daAssemblia Geral das Naes Unidas.

    Apenas os representantes dos seguin-9

    tes Estados participaram da elaboraoda redao do projeto da DUDH: Bielo-rssia, Estados Unidos, Filipinas, Uniodas Repblicas Soviticas Socialistas,Frana e Panam.

    AULA 04: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOSDIREITOS HUMANOS

    NOTA AO ALUNO

    A concepo histrica e culturalmente construda de direitos humanos con-duz imperatividade de que qualquer tentativa de universalizao seja fruto deum dilogo entre as diferentes culturas, nica maneira das normas universaisserem realmente efetivas. Contudo, como se ver a seguir, este dilogo intercul-tural tem sido limitado tanto no momento da consagrao da universalidadedos direitos humanos como nos debates ocorridos nos foros internacionais.

    O processo de universalizao dos direitos humanos, segundo o projetoproposto pela Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas, entre 1947e 1948, era composto por trs etapas7: (i) elaborao de uma declarao uni-versal; (ii) criao de documentos vinculantes; (iii) adoo de medidas de im-plementao. O intuito era estabelecer uma Carta Internacional de Direitosque, conforme as etapas, compreenderia: (i) a Declarao Universal dos Direi-tos Humanos (DUDH); (ii) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polti-cos e o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais; (iii)o Protocolo Adicional ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos.

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 19488

    consa-grou a universalidade dos direitos humanos e, assim, representou um marcona proteo desses direitos, tendo em vista que dos 58 membros das NaesUnidas na poca, 48 votaram a favor, nenhum contra e oito se abstiveram.No entanto, a efetividade universal de suas normas continua em estgio deimplementao, uma vez que houve um nmero limitado de pases que par-ticiparam de sua elaborao9, bem como pelo fato de no ter havido um con-senso desde o incio em relao s normas que deveriam ser positivadas.

    O debate entre universalismo e relativismo cultural dos direitos humanossempre esteve presente nos foros internacionais. Como exemplo, destaquem-

    se trs: (i) a II Conferncia Mundial de Direitos Humanos de 1993 (Viena);(ii) a Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento de 1994(Cairo); e (iii) a IV Conferncia Mundial sobre a Mulher de 1995 (Beijing).

    Na II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena noano de 1993, acirrou-se o debate entre as delegaes governamentais, em espe-cial aquele travado entre representantes da China e a de Portugal. Por um lado,a delegao da China sustentou ser o conceito de direitos humanos histrico ecultural, produto do desenvolvimento de cada pas. Por outro lado, a delegaoportuguesa alegou ser a universalidade compatvel com a diversidade cultural,

    religiosa e ideolgica, e que o argumento da diversidade no pode ser utilizadopara limitar os direitos humanos. Isto significa que enquanto a delegao portu-

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    DE BARROS FRANCISCO,10 op. cit., p. 15.

    A Conveno sobre os Direitos da11

    Criana foi adotada em 20.11. 1989,atravs da Resoluo 44/25 das NaesUnidas. O artigo 20 dispe que:

    1. Toda criana, temporria ou

    permanentemente privada de seuambiente familiar, ou cujos interessesexijam que no permanea nesse meio,ter direito proteo e assistncia es-peciais do Estado.

    2. Os Estados-partes asseguraro, deacordo com suas leis nacionais, cuida-dos alternativos para essas crianas.

    3. Esses cuidados podero incluir, in-ter alia,a colocao em lares de ado-o, a Kafalahdo direito islmico, aadoo ou, se necessrio, a colocaoem instituies adequadas de prote-o para as crianas. Ao se considerarsolues, prestar-se- a devida ateno

    convenincia de continuidade de edu-cao da criana, bem como origemtnica, religiosa, cultural e lingsticada criana (grifou-se). A tradio isl-mica no permite a adoo, uma vezque a criana muulmana tem o direitoinalienvel de ligao direta com alinhagem paterna. Contudo, de formaexcepcional, permitido que outra fa-mlia assuma a obrigao de cuidar dacriana que no seja de sua linhagem,sendo este instituto denominado kafa-lah, que signica garantia.

    DE BARROS FRANCISCO,12 op. cit., p. 20.

    CANADO TRINDADE, Antonio Augus-13

    to. Tratado de direito internacionalde direitos humanos. Vol. III. PortoAlegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.Captulo XIX. p. 335-336.

    guesa sustenta uma viso liberal, na qual o indivduo pr-social - tem direitosinatos cuja proteo foi transferida para o Estado, a delegao chinesa, de tradi-

    o confucionista, no aceita o indivduo como um ser pr-social e, conseqen-temente, defende que cada cultura deve ter seu prprio entendimento do quesejam direitos humanos, sendo inconcebvel a imposio de valores ocidentaiscomo universais10. Nesse sentido, apesar da Declarao e Programa de Ao deViena, em seu artigo 5, ter confirmado a universalidade dos direitos humanose a obrigao dos Estados em respeit-los e promov-los independentemente deseus sistemas poltico, econmico e cultural, a discusso permanece em aberto,fazendo necessrio a criao de espaos para o dilogo intercultural.

    Em se tratando da Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvi-

    mento de 1994, ocorrida no Cairo, cabe ressaltar que embora tenham surgidodiversas concepes sobre os temas abordados entre as diferentes culturas como,por exemplo, planejamento familiar e direitos reprodutivos prevaleceu em to-dos os casos a posio ocidental. J na IV Conferncia Mundial sobre a Mulherde 1995, realizada em Beijing, foi abordada a validade das prticas culturais ba-seadas na inferioridade da mulher, tendo a Plataforma de Ao de Beijing con-cludo que as prticas que limitam o exerccio dos direitos da mulher no podemser sustentadas em detrimento da universalidade dos direitos humanos. Nessecontexto, verifica-se que em todas as conferncias mundiais tem prevalecido aposio ocidental, no havendo, em geral, espao para um dilogo intercultural.

    Registre-se, como exceo, o exemplo bem sucedido de dilogo intercultural nostrabalhos preparatrios da Conveno sobre os Direitos da Criana, de 1989, doqual resultou um artigo baseado na proposta de pases islmicos: artigo 2011, quefaz referncia expressa Kafalahdo direito islmico12.

    Mas universalismo e relativismo cultural dos direitos humanos so ou nocompatveis? Conforme doutrina de Canado rindade:

    As culturas no so pedras no caminho da universalidade dos direitos huma-

    nos, mas sim elementos essenciais ao alcance desta ltima. A diversidade cultural

    h que ser vista, em perspectiva adequada, como um elemento constitutivo da

    prpria universalidade dos direitos humanos, e no como um obstculo a esta.

    No raro a falta de informao, ou o controle e mesmo o monoplio da in-

    formao por poucos pode gerar dificuldades, esteretipos e preconceitos. No

    certo que as culturas sejam inteiramente impenetrveis ou hermticas. H um

    denominador comum: todas revelam conhecimento da dignidade humana. 13

    Convm, ento, verificar que, embora exista o debate entre universalismoe relativismo cultural dos direitos humanos, na verdade a diversidade culturalno se ope universalidade dos direitos humanos, mas sim a fortalece. Dessaforma, faz-se necessrio a construo de um dilogo intercultural como forma

    de se atingir a universalidade efetiva dos direitos humanos. Para tanto, sugere-seque os discursos fundamentalistas dos direitos humanos - tanto o universalistaquanto o relativista - sejam superados, uma vez que no permitem o dilogo.

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    SANTOS, Boaventura de Sousa. Por14uma concepo multicultural de Direi-tos Humanos. In: SANTOS, Boaventurade Sousa (org.). Reconhecer para li-bertar: os caminhos do cosmopolitis-mo liberal. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 2003. pp. 427-461.

    15 Ibid.., p. 458.

    Destarte, relevante a proposta de dilogo intercultural sugerida por Boaven-tura de Sousa Santos14 a fim de compatibilizar tal embate: a hermenutica diat-

    pica, que tem por premissa a impossibilidade de se compreender claramente asconstrues de uma cultura com base nos topos de outra. rata-se de um mto-do que visa a superar as dificuldades encontradas em um dilogo intercultural.Contudo, tal dilogo somente torna-se possvel se houver uma mudana na con-ceituao de direitos humanos, passando da noo de universalidade imperia-lista, imposta pela globalizao hegemnica, para uma noo de universalidadeconstruda de baixo para cima, o cosmopolitismo. Contudo, h cinco requisitospara que os direitos humanos possam ser teorizados e aplicados como multi-culturais: (i) superao da tenso universalismo-relativismo; (ii) ter em mente

    que, por mais que todas as culturas tenham concepes de dignidade humana,nem todas as percebem em termos de direitos humanos; (iii) constatao dediferentes conceitos de dignidade humana; (iv) percepo da incompletude dasculturas; (v) aproximao das polticas de diferena e de igualdade. De maneirabem resumida, segue, abaixo, o conceito de cada premissa:

    Premissas Conceito

    1. Superao da tenso universalismo-relativismo.

    Ambos os discursos o etnocntrico e aquele que considera asculturas como absolutas e incapazes de questionamento impe-dem o dilogo intercultural.

    2. Considerao de que, por maisque todas as culturas tenham con-cepes de dignidade humana, nemtodas tm a percepo em termosde direitos humanos.

    H diversas verses de dignidade humana em uma cultura. Assim,tem-se que buscar a verso mais aberta, uma vez que esta quemelhor aceitar as particularidades das demais culturas.

    3. Constatao de diferentes concei-tos de dignidade humana.

    O reconhecimento do outro essencial para a construo de umaidentidade multicultural, uma vez que a identidade e compreen-so do ser humano ocorrem em contato dilogo com outro.

    4. Percepo da incompletude dasculturas.

    A percepo da incompletude da cultura gera os sentimentos defrustrao e descontentamento e, conseqentemente, a curio-

    sidade de buscar novas respostas satisfatrias que se traduz nodilogo intercultural. Contudo, a incompletude cultural gera umadicotomia: se uma cultura se considera completa, no estar in-teressada no dilogo; se reconhece sua incompletude, estar su-

    jeita conquista cultural, seja pela absoro, seja por sua destrui-o. A soluo proposta pelo autor optar pelo reconhecimentoda incompletude e pelo dilogo, desde que no signique umaconquista cultural.

    5. Aproximao das polticas de dife-rena e de igualdade.

    Esta premissa pode ser traduzida da seguinte forma: temos o di-reito a ser iguais quando a diferena nos inferioriza; temos o direito

    a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza15

    .15

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    16 Ibid., p. 443.

    Por fim, tem-se que o objetivo da proposta de Boaventura de Sousa San-tos , por meio do dilogo intercultural, transformar a concepo de direitos

    humanos, baseada em um localismo globalizado, em uma abordagem cosmo-polita, a fim de que seja construda uma concepo multicultural dos direitoshumanos que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza comouma constelao de sentidos locais, mutuamente inteligveis, e que se consti-tui em redes de referncias normativas capacitantes 16.

    Aps essa breve exposio do tema, indaga-se: (i) Embora tenha sido re-afirmada a universalidade dos direitos humanos na Declarao e Programade Ao de Viena, sua efetivao ocorre na prtica e de forma igualitria emtodos os pases? Qual a proposta de Boaventura de Sousa Santos para que

    seja construda uma concepo multicultural dos direitos humanos? O quesignifica o reconhecimento da incompletude da cultura? O que represen-tou, em termos de dilogo intercultural, a Conveno sobre os Direitos daCriana, de 1989? Um pas muulmano pode alegar respeito a sua culturacomo forma de se eximir da responsabilidade de garantir e promover os di-reitos das mulheres?

    MATERIAL DE APOIO

    Textos:

    Leitura obrigatria:

    SANOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepo multicultural de Direi-tos Humanos.Revista Lua Nova. n. 39, p. 105-124, 1997.

    Leitura acessria:

    DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Hu-man Rights Quarterly, v. 6, n. 4, p. 400-419, 1984.

    AN-NAIM, Abdullahi Ahmed (ed). Human Rights in Cross-Cultural Pers-pectives. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995.

    BELL, Lynda; NAHAN, Andrew; PELEG, Ian (eds.). Negotiating Cultureand Human Rights. Nova York: Columbia University Press, 2001.

    RINDADE, Antonio Augusto Canado. Tratado de direito internacio-nal de direitos humanos. Vol. III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,2003. Captulo XIX. pp. 301-349.

    ___________. Tratado de direito internacional de direitos humanos. Vol. I.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. Captulo IV. pp. 211-234.

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    Legislao:

    Declarao e Programa de Ao de VienaDeclarao Universal dos Direitos HumanosConveno sobre os Direitos da Criana

    Atividade Complementar:

    Filme: Submisso. Diretor: Teo Van Gogh. Roteirista: Ayaan Hirsi Ali. Du-rao: 10min. Ano: 2004.

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    MELO, Carolina de Campos. O bloco da17

    constitucionalidade e o contexto brasi-leiro. Revista Direito, Estado e Sociedade. No. 15. Departamento de Direito daPontifcia Universidade Catlica do Riode Janeiro. pp. 169-179

    No julgamento do Recurso Extraor-18

    dinrio no. 80.004, o Supremo TribunalFederal considerou: Conveno deGenebra Lei Uniforme sobre Letrasde Cmbio e Notas Promissrias Avalaposto Nota Promissria no registra-da no prazo legal Impossibilidade deser o avalista acionado, mesmo pelasvias ordinrias. Validade do Decreto-lei n. 427, de 22.01.1969. Embora aConveno de Genebra que previu uma

    lei uniforme sobre letras de cmbio enotas promissrias tenha aplicabili-dade no direito interno brasileiro, nose sobrepe ela s leis do Pas, dissodecorrendo a constitucionalidade econseqente validade do Decreto-lein. 427/1969, que institui o registroobrigatrio da Nota Promissria emRepartio Fazendria, sob pena denulidade do ttulo (...).

    Constituio Federal. Artigo 519 o , incisoLXVII: No h priso civil por dvida,salvo a do responsvel pelo inadim-plemento voluntrio e inescusvel deobrigao alimentcia e a do deposit-rio inel.

    Pacto de San Jos da Costa Rica ou20

    Conveno Americana de Direitos Hu-manos.

    AULA 05: OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS E ACONSTITUIO FEDERAL

    NOTA AO ALUNO

    A aula n 05 tem por objeto o estudo do Direito Constitucional Internacio-nal, reconhecido como campo de interao entre as duas reas do direito quebuscam a primazia da pessoa humana. Apresenta-se o estudo da sistemticaconstitucional em adequao ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.

    A redao original da Constituio Federal faz meno expressa pro-moo e proteo dos direitos humanos quando afirma que sua prevalnciaconstitui princpio que rege as relaes internacionais do Estado brasileiro(artigo 4), ou ainda, quando estabelece no artigo 7odo Ato das DisposiesConstitucionais ransitrias (ADC) que o Brasil propugnar pela formaode um ribunal Internacional dos Direitos Humanos.

    odavia, a mais importante referncia do exto de 1988 constitui a se-guinte:

    Art. 5o 2oOs direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem

    outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados

    internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

    al redao revelou-se campo minado ao longo da recente histria cons-titucional. Parece clara a opo do legislador constituinte, ciente de que suaobra resulta em um marco jurdico que se estende no tempo, de registrar noartigo 5o. pargrafo 2oa sua clusula aberta ou clusula de receptividade, aqual garante a possibilidade de extenso do texto constitucional em relao aoutros direitos e garantias que no estejam expressos no artigo 5o. Cabe aqui ainterpretao de que outros direitos e garantias tambm possuam hierarquiaconstitucional, propiciando um verdadeiro bloco da constitucionalidade17.

    odavia, no esta a interpretao promovida pelo Supremo ribunal Federal.

    Em julgados de toda a dcada de 90, o tribunal manteve posio firmada desde197718 de que os tratados possuem statusinfraconstitucional, com equivalncia lei ordinria. al posicionamento conduz ilao de que os tratados de direitoshumanos podem ser objeto de controle de constitucionalidade e de que lei fede-ral pode vir a revogar tratado j incorporado ao ordenamento jurdico interno.

    No julgamento do leading case aps a promulgao da Constituio, oHabeas Corpusn. 72.131/95, o SF reafirmou sua jurisprudncia. Ao apre-ciar o aparente conflito de normas existente entre a Constituio Federal de1988, a qual estabelece a permisso de duas formas de priso civil (deposi-

    trio infiel e devedor de alimentos artigo 5o

    inciso LXVII19

    ), e o Pacto deSan Jos da Costa Rica20, o qual restringe tal permisso apenas ao devedor de

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    Mais recentemente, no julgamento21

    do RE 253.071/GO de 29 de maio de2001, Relator Ministro Moreira Alves,ao tratar novamente da priso do de-positrio inel, o Tribunal manteve oposicionamento ao armar que (...) oPacto de San Jos da Costa Rica, almde no poder contrapor-se permissodo artigo 5o, LXVII, da mesma Consti-tuio, no derrogou, por ser normainfraconstitucional geral, as normasinfraconstitucionais especiais sobrepriso civil do depositrio inel. Esseentendimento voltou a ser rearmado

    recentemente, em 27.05.98, tambmpor deciso do Plenrio, quando dojulgamento do RE 206.482. Dessaorientao divergiu o acrdo recorrido.Inconstitucionalidade da interpretaodada ao artigo 7o, item 7, do Pactode So Jos da Costa Rica no sentidode derrogar o Decreto-Lei 911/69 notocante admissibilidade da prisocivil por indelidade do depositrio emalienao duciria em garantia. deobservar-se, por m, que o pargrafo2odo artigo 5o, da Constituio no seaplica aos tratados internacionais sobredireitos e garantias fundamentais queingressaram em nosso ordenamento

    jurdico aps a promulgao da Consti-tuio de 1988, e isso porque ainda nose admite tratado internacional comfora de emenda constitucional.

    alimentos, estabeleceu a corte que nada interfere na questo do depositrioinfiel em matria de alienao fiduciria o disposto no pargrafo 7 da Con-

    veno de San Jos da Costa Rica. Ainda, no Habeas Corpusn 77.631/98,afirmou que os tratados internacionais no podem transgredir a normativi-dade emergente da Constituio, pois, alm de no disporem de autoridadepara restringir a eficcia jurdica das clusulas constitucionais, no possuemforma para conter ou para delimitar a esfera de abrangncia normativa dospreceitos inscritos no texto da Lei Fundamental.21

    Por sua vez, a Emenda n 45, de 08 de dezembro de 2004, mais conheci-da como Reforma do Poder Judicirio, veio a trazer trs inovaes ao abrigoconstitucional aos direitos humanos: elucidou a possibilidade do statuscons-

    titucional dos tratados de direitos humanos, criou o instituto da federalizaodas graves violaes de direitos humanos e estabeleceu clusula de submisso jurisdio do ribunal Penal Internacional, a ser examinado na aula n 24.

    No tocante ao statusconstitucional, a emenda precisou a hierarquia dostratados de direitos humanos. O novo pargrafo do artigo 5oda ConstituioFederal estabelece, in verbis:

    3o Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que

    forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

    trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas

    constitucionais.

    Cumpre comentar alguns elementos acerca do procedimento de incorporaodos tratados em geral, e diante da emenda, em especial dos tratados de direitoshumanos. O artigo 84, inciso VIII da Constituio Federal confere ao Presiden-te da Repblica a competncia privativa para negociar e celebrar tratados, con-venes e atos internacionais, sujeitos ao referendo do Congresso Nacional. Emregra, tal atribuio exercida pelo ministro das Relaes Exteriores ou pessoadesignada para tal. Ainda, de acordo com o artigo 49, inciso I, de competnciaexclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordose atos internacionais. Assim, caber primeiramente Cmara dos Deputados,sucedida pelo Senado Federal, a aprovao dos tratados. Em ato discricionrio,cabe ao Presidente da Repblica o ato da ratificao, consubstanciado pelo dep-sito no mbito internacional e pela expedio de um decreto no mbito interno,considerado pela jurisprudncia do Supremo ribunal Federal ato fundamentalpara que o tratado possa surtir efeitos no ordenamento jurdico interno.

    Em resumo, os tratados seguem os seguintes passos:

    Negociao e

    Assinatura peloPoder Executivo

    + Aprovao peloPoder Legislativo

    + Raticao peloPoder Executivo

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    Ultrapassada a regra geral para a incorporao dos tratados no ordena-mento jurdico interno, cabe ressaltar que o legislador constituinte de 2004

    deixou transparente a possibilidade de que os tratados venham a ter hierar-quia constitucional caso sejam aprovados com o procedimento reservado semendas constitucionais. Se por um lado no cabe mais dvida acerca dostatus, podemos concluir que a insero de tal norma pode conduzir ilaode que certos tratados tero hierarquia constitucional e outros no, o queseria uma resoluo descabida seja no mbito do Direito Constitucional oudo Direito Internacional.

    Em dezembro de 2008, o Supremo ribunal Federal manifestou novo en-tendimento sobre a incorporao de tratados de direitos humanos, j tendo

    por referncia a nova redao constitucional. Em exame aos Recursos Ex-traordinrios (REs) n 349703 e n466343, estendeu a proibio de prisocivil por dvida (art. 5, inc. LXVII CF) ao caso do depositrio infiel. nocontexto de tais decises que firmou entendimento de que os tratados pos-suem status de supralegalidade. Nesse sentido, apenas os tratados que foremaprovados em conformidade com o pargrafo 3 do art. 5 que adquiremstatus constitucional.

    H outra perspectiva a ser analisada tendo em conta a hierarquia dostratados de direitos humanos. Discute-se a possibilidade de que haja areviso do ordenamento jurdico brasileiro com vistas adequao a uma

    nova norma constitucional. A nica conveno a ser aprovada de acordocom o art. 5, 3 da Constituio Federal foi a Conveno Internacionalde Proteo s Pessoas com Deficincia (Decreto Legislativo n 186/2008)que, portanto, possui status constitucional. Por meio de Argio de Des-cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) movida pela Procurado-ria-Geral da Repblica em 2009, pretende se o pronunciamento do SFno sentido de que a Lei n 8.742/93, denominada Lei da Assistncia So-cial, no teria abrigo constitucional por apresentar um conceito restritivode pessoa com deficincia.

    Saliente-se aqui a outra inovao apresentada pela Reforma do Poder Judi-cirio: a federalizao das violaes de direitos humanos. O artigo 109 passaa contar com a seguinte redao:

    Art. 109. Aos juzes federais compete processar e julgar:

    V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o 5 deste artigo;

    5 Nas hipteses de grave violao de direitos humanos, o Procurador-

    Geral da Repblica, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigaes

    decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil

    seja parte, poder suscitar, perante o Superior ribunal de Justia, em qualquer

    fase do inqurito ou processo, incidente de deslocamento de competncia para

    a Justia Federal. (NR)

  • 5/20/2018 Direitos Humanos - Aluno

    37/188

    DIREITOS HUMANOS

    FGV DIREITO RIO 37

    SCHREIBER, Simone; e COSTA, Fl-22

    vio Dino de Castro e. Federalizaoda competncia para julgamento decrimes contra os direitos humanos. In:Direito Federal: Revista da Associaodos Juzes Federais do Brasil. Ano 21.No. 71. Niteri: Editora Impetus. Julhoa setembro de 2002. p. 253.

    A inovao institucional deve ser entendida sob os seguintes argumentos:

    A) Passo definitivo de enfrentamento impunidade e garantia de proteo vtima:

    O pacto federativo brasileiro, especificamente no tocante repartio das com-petncias entre Poder Judicirio Estadual e Federal, possui no artigo 109 da Cons-tituio referncia fundamental. Os temas ali relacionados so de competnciada justia federal, sendo os demais a grande maioria - considerados reservados justia estadual. al diviso temtica acarreta atribuies distintas tambm paraoutros rgos que atuam perante o Poder Judicirio. Por exemplo, os crimes con-tra a organizao do trabalho, os crimes contra o sistema financeiro e a ordem eco-nmica financeira devero ser investigados pela Polcia Federal, sendo a eventualdenncia apresentada pelo Ministrio Pblico Federal perante a Justia Federal.

    odavia, a omisso ou mau funcionamento das instituies estaduais Po-der Executivo, Ministrio Pblico, Defensoria Pblica, Magistratura diantede um caso concreto conduziram o legislador a estabelecer que em determi-nados casos a competncia dever ser transferida para a Justia Federal deforma a no acarretar uma outra violao de direitos humanos: o direito aum julgamento justo e imparcial e em um prazo razovel. Nesse sentido, odeslocamento de competncias veio a reforar a necessidade de um efetivo

    funcionamento das instituies e a garantir o combate impunidade porparte das instncias federais em casos especficos e, por conseqncia, queseja ampliada a proteo dos direitos humanos.

    B) O federalismo adotado pela Constituio Federal

    A Constituio brasileira estabelece um federalismo de cooperao entre osseus entes Unio Federal, Estados, Municpios e Distrito Federal, o que noexclui um exerccio cooperativo tambm em relao atividade jurisdicional22.

    A federalizao das violaes de direitos humanos no constitui uma novidadenesse sentido. Cabe lembrar que o artigo 109, pargrafo 3, da ConstituioFederal estabelece que, na ausncia de Varas Federais ou rabalhistas, a JustiaEstadual exera suas competncias. No intuito de atender vtima diante de ati-vidade jurisdicional especfica, o Judicirio Estadual acaba por exercer a jurisdi-o sob matria excluda de sua competncia origin