Direito e Ética

14
FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Direito e ética: Aristóteles, Hobbes, Kant. São Paulo: Paulus, 2007. Como diz a autora do livro “Direito e Ética – Aristóteles, Hobbes e Kant”, Maria do Carmo B. de Faria: na elaboração do pensamento político ocidental, Aristóteles, Hobbes e Kant se destacam como principais representantes das tradições que se formaram ao longo do tempo e que ainda hoje mantêm em aberto o diálogo sobre questões políticas, éticas e jurídicas que continuam a nos desafiar. Conhecê-los é indispensável a quem pretenda se aprofundar no debate político da atualidade sobre mútuas relações entre justiça, direito e democracia. 1. ARISTÓTELES: A ética em Aristóteles parte do conceito de teleologia, no sentido de que todas as formas existentes tendem a uma finalidade (thélos). Nessa linha, “toda ação e todo propósito visam um bem”, entendendo-se por bem “aquilo a que todas as coisas visam”. Portanto, daí conclui-se que as ações humanas também são sempre voltadas, por meio da razão, a atingir um fim, que é a busca pelo bem supremo (summum bonum). Essa busca, porém, se trata de um bem que deve necessariamente ser considerado em si mesmo. Assim, constitui a vida humana na busca de algo que está no humanamente possível, o que Aristóteles acredita ser a felicidade (eudaimonia), pois a noção de felicidade é criação humana, sendo plenamente alcançável e obtida pela razão teleológica. A razão é a faculdade que distingue os seres humanos dos demais seres vivos. É por meio dela que o indivíduo se guia teleologicamente, como forma de obter o bem supremo, ou seja, a eudaimonía.

Transcript of Direito e Ética

Page 1: Direito e Ética

FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Direito e ética: Aristóteles, Hobbes, Kant. São Paulo: Paulus, 2007.

Como diz a autora do livro “Direito e Ética – Aristóteles, Hobbes e Kant”, Maria do Carmo B. de Faria: na elaboração do pensamento político ocidental, Aristóteles, Hobbes e Kant se destacam como principais representantes das tradições que se formaram ao longo do tempo e que ainda hoje mantêm em aberto o diálogo sobre questões políticas, éticas e jurídicas que continuam a nos desafiar. Conhecê-los é indispensável a quem pretenda se aprofundar no debate político da atualidade sobre mútuas relações entre justiça, direito e democracia. 

1. ARISTÓTELES:

A ética em Aristóteles parte do conceito de teleologia, no sentido de que todas as formas existentes tendem a uma finalidade (thélos). Nessa linha, “toda ação e todo propósito visam um bem”, entendendo-se por bem “aquilo a que todas as coisas visam”.

Portanto, daí conclui-se que as ações humanas também são sempre voltadas, por meio da razão, a atingir um fim, que é a busca pelo bem supremo (summum bonum). Essa busca, porém, se trata de um bem que deve necessariamente ser considerado em si mesmo.

Assim, constitui a vida humana na busca de algo que está no humanamente possível, o que Aristóteles acredita ser a felicidade (eudaimonia), pois a noção de felicidade é criação humana, sendo plenamente alcançável e obtida pela razão teleológica.

A razão é a faculdade que distingue os seres humanos dos demais seres vivos. É por meio dela que o indivíduo se guia teleologicamente, como forma de obter o bem supremo, ou seja, a eudaimonía.

A excelência intelectual se deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (experiência e tempo), enquanto à excelência moral é produto do hábito (ethós). Logo, ninguém é virtuoso por natureza, pois isso é fruto de práticas reiteradas de ações moralmente boas e do consequente desenvolvimento de uma disposição da alma para o agir excelente, e não do aprimoramento das habilidades naturais.

A razão teleológica é que permite ao ser humano guiar-se pelos caminhos do meio, que se encontra entre dois extremos, o do excesso e o da falta, considerados pelo Filósofo como deficiências morais. De maneira equidistante entre os extremos se encontram as virtudes (areté). Cabe à razão discernir e optar pelo meio-termo de forma habitual, que cuja prática contínua e reiterada das virtudes leva à excelência moral, e por conseguinte, se atinge a felicidade.

A justiça, no pensamento aristotélico, é compreendida como uma virtude, e como tal, localiza-se no meio-termo (mesotés). Ela se difere das demais virtudes e se

Page 2: Direito e Ética

coloca em posição superior por ser uma virtude que manifesta na aplicação da excelência moral em relação às outras pessoas, não em relação a si mesmo.

O Filósofo, no Livro V da Ética a Nicômaco, trata da dikayosyne (justiça) e da aidikía (injustiça), dizendo que nas pessoas, a primeira é a “disposição da alma que graças à qual elas dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto”.

A justiça é considerada como a maior das virtudes, pois esta visa o “bem do outro”, relacionando-se com o próximo. Assim, de forma ampla, Aristóteles divide a justiça em duas classes: a justiça universal e a justiça particular.

Aristóteles conclui que o termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que as cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo conforme a lei e correto, e o injusto é o ilegal e iníquo.

Daí se extrai o conceito de justo universal, pois este é o cidadão cumpridor da lei. Trata-se de uma obediência ao nómos, ou seja, ao ordenamento jurídico expresso pelas normas, englobando também os costumes e princípios preponderantes em uma determinada comunidade.

A justiça distributiva é a que se observa na distribuição pela polis, isto é, pelo Estado, de bens, honrarias, cargos, assim como responsabilidades, deveres e impostos. Em suma, a justiça distributiva é um meio termo com quatro termos na relação: dois sujeitos comparados entre si e dois objetos. Será justo, portanto se atingir a finalidade de dar a cada um aquilo que lhe é devido, na medida de seus méritos.

A justiça corretiva se difere da distributiva no sentido de que esta utiliza como critério de justa repartição aos indivíduos os méritos de cada um, enquanto aquela visa o “restabelecimento do equilíbrio rompido entre os particulares: a igualdade aritmética.”.

A aplicação da justiça corretiva fica ao encargo do juiz (dikastés), que é o mediador de todo o processo. O juiz é considerado para Aristóteles, a personificação da justiça, pois, “ir ao juiz é ir à justiça, porque se quer que o juiz seja como se fosse a própria justiça viva (...) é uma pessoa equidistante e, em algumas cidades são chamados de ‘mediadores’, no pressuposto de que, se as pessoas obtêm o meio-termo, elas obtêm o que é justo.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 200).

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente.

A justiça legal tem fundamento na lei, que é definida pela vontade do legislador. Possui força não natural, e é fundada na convenção, pois a vontade do órgão que emana

Page 3: Direito e Ética

o ato legislativo é soberana e pressupõe consenso de todos os súditos; uma vez vigente a lei adquire obrigatoriedade e vincula todos os cidadãos.

A justiça natural, entretanto se consiste no conjunto de todas as regras que encontram aplicação, validade, força e aceitação universais. Assim pode-se definir o justo natural como sendo parte do justo político que encontra respaldo na natureza humana, e não depende do arbítrio volitivo do legislador, sendo por consequência, de caráter universalista.

Portanto, a justiça natural tem uma força que rompe com as barreiras políticas, sendo que transcende a vontade humana e são imutáveis, e tem a mesma forma em todo lugar, “como o fogo que queima aqui e na Pérsia”.

Ao tratar da equidade, Aristóteles a compara com justiça, e conclui que são “a mesma coisa, embora a equidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o equitativo ser justo, mas não justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal”. (ARISTÓTELES, 1996, p. 212)

Na impossibilidade de previsão pelo legislador de todos os casos que poderão surgir na realidade, o aplicador das leis deve se ater às peculiaridades do fato concreto, “dizendo o que o próprio legislador se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão” (ARISTÓTELES, 1996, p. 213).

A obra de Aristóteles voltada para o Estudo da ética centra-se na razão prática como responsável pela realização da forma plena humana, pois, é por meio de reiteradas práticas virtuosas – que se consistem em um meio-termo entre dois extremos – que se atinge a felicidade (eudaimonía), o summum bonum buscado pelas ações humanas, isto é, de todos os bens o maior, cuja finalidade encontra-se em si mesma.

A felicidade, por se tratar de conceito humano, está no plenamente possível, sendo que se é atingida por meio da escolha consciente das virtudes, como oposição entre seus extremos.

A justiça se localiza na seara das virtudes, porém, em posição de destaque visto que é a virtude que se manifesta ao lidar com o outro, e não consigo mesmo (onde Aristóteles afirma não ser possível alguém cometer injustiça contra si mesmo). É o bem do outro, e também é o meio-termo entre dois extremos: o do excesso e o da falta.

Sendo assim, justiça é aquela disposição da alma de dar a cada um o que é seu, na medida de seus méritos, obedecendo ao nómos político, não se apropriando de nada mais e nada menos daquilo que lhe é devido.

Page 4: Direito e Ética

2. HOBBES:

A obra máxima de Thomas Hobbes é o livro chamado Leviatã, em que apresentou suas ideias acerca da natureza humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. Segundo Hobbes, o homem que é mais poderoso do que outro pode aproveitar-se dessa situação para dominar outros e impor os seus desejos, porém esse ciclo não se encerraria, o que acabaria por aniquilar a sociedade em uma guerra desmedida e infindável. Assim, o cidadão para assegurar a sua própria sobrevivência restringe as suas liberdades naturais e passa a viver sob a proteção do Estado e do leviatã. O leviatã é o Estado, na figura do monarca, investido de poder pacificador e autorizado pelos cidadãos.

Nesse sentido, vemos Hobbes dizer que “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de mantê-los em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto.”

Diante dessa vontade de se salvaguardar é que surge o Leviatã, como força de manutenção da ordem social e que exerce o seu poder sobre os seus subalternos. Segundo Hobbes os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Segundo o filósofo, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Neste sentido, critica a livre-interpretação da Bíblia na Reforma Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca.

Segundo Hobbes, a lei é o comando de uma pessoa cuja decisão constitui uma razão suficiente para obedecer-lhe" ("Law is the command of that person, whether man or court, whose precept contains in it the reason of obedience", in De Cive, cap. XIV, art. 1).

Hobbes, no Leviatã (caps. XIV e XV), fala das 19 leis naturais que servem de fundamento à lei positiva, civil ou canônica.

Por fim, Thomas Hobbes resume todas essas leis a uma única Lei - a Lei Evangélica: Não fazer ao próximo aquilo que não queremos que nos seja feito — “Do not that another, which thou wouldest not have to thyself”. Posteriormente, desta frase se extraiu o pensamento de Imanuel Kant, o famoso imperativo categórico, um dos fundamentos da filosofia ética moderna.

Page 5: Direito e Ética

Em o Leviatã, Hobbes entende e apresenta apontamentos com relação aos magistrados, entendendo que o Juiz é o intérprete oficial da lei natural, pois é um poder investido de autoridade concedida pelo poder soberano, ou seja, por extensão é a voz do soberano no caso concreto, vejamos as próprias palavras do autor sobre o assunto: “A interpretação da lei de natureza é a sentença do juiz constituído pela autoridade soberana, para ouvir e determinar as controvérsias que dela dependem, e consiste na aplicação da lei ao caso em questão. Porque no ato de judicatura o juiz não faz mais do que examinar se o pedido de cada uma das partes é compatível com a equidade e a razão natural, sendo portanto sua sentença uma interpretação da lei de natureza, interpretação essa que não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade do soberano, mediante a qual ela se torna uma sentença do soberano, que então se torna lei para as partes em litígio”.

Também no livro Leviatã Hobbes alerta aos Juízes que deve-se analisar as provas, sob pena de haver proferimento de decisões injustas, o que pode ocorrer em casos de precedentes aplicados sem examinar o caso concreto: “Mesmo que a sentença seja justa, os juízes que condenam sem ouvir as provas apresentadas são juízes injustos, e sua presunção é apenas preconceito - o que ninguém deve levar consigo para a sede da justiça, sejam quais forem os julgamentos ou exemplos precedentes que ele pretenda estar seguindo. Há outros casos desta natureza onde os julgamentos foram pervertidos por seguirem precedentes, mas isto é suficiente para mostrar que, embora a sentença do juiz seja lei para as partes litigantes, não é lei para qualquer dos juízes que lhe venham a suceder no cargo”. Dessa forma, deve estar atento às sumulas e precedentes para que não ocorram injustiças e não se analisem por completo as provas do caso.

Thomas Hobbes destaca algumas das qualidades necessárias para um bom juiz: “As coisas que fazem um bom juiz, ou um bom intérprete da lei, são, em primeiro lugar, uma correta compreensão daquela lei principal de natureza a que se chama equidade. A qual não depende da leitura das obras de outros homens, mas apenas da sanidade da própria razão e meditação natural de cada um, e, portanto se deve presumir existir em maior grau nos que têm maior oportunidade e maior inclinação para sobre ela meditarem. Em segundo lugar, o desprezo pelas riquezas desnecessárias e pelas preferências. Em terceiro lugar, ser capaz, no julgamento, de despir-se de todo medo, raiva, ódio, amor e compaixão. Em quarto e último lugar, paciência para ouvir, atenção diligente ao ouvir e memória para reter, digerir e aplicar o que se ouviu.” Apresentando essas qualidades o Juiz será um profissional preparado e ao máximo justo.

Page 6: Direito e Ética

3. KANT:

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.

Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.

Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma "heteronomia", como diz Kant.

Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).

O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibida. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico".

Page 7: Direito e Ética

A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitas as máximas da razão.

Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.

Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e felicidade.

Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes.”.

Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educação que recebeu etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem meia-

Page 8: Direito e Ética

responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue que nenhum pecado poderia ser escusável.

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).

Em sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza não seja talvez não seja apenas o domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.

Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

Page 9: Direito e Ética

UFPI – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍCURSO DE DIREITO - DIURNODISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIAPROFESSOR: JOAQUIM NETO

RESUMO:

Direito e Ética: Aristóteles, Hobbes e Kant

LUCAS LEAL SOUSA

Teresina, 2012