Direito a Saúde - Artigo Martins

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Trata do direito a saúde no sistema prisional

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  • ResumoEste trabalho tem por objetivo analisar a efetivao do direito sade das pessoas em privao de liber-dade, por meio de grupos focais realizados com trs grupos focais com sujeitos envolvidos no contexto carcerrio: pessoas presas, agentes penitencirios e profissionais de sade de uma unidade prisional masculina em Ribeiro das Neves (MG). As discus-ses foram gravadas, transcritas e submetidas a anlise de discurso. O direito sade, compreendido como acesso integral a servios de sade de qualida-de, questionado enquanto fenmeno real, uma vez que, estando os servios pblicos sucateados, esse acesso est restrito a quem pode pagar. O descaso do Estado em relao ao direito sade das pessoas pre-sas justificado pela funo disciplinar da priso. As precrias condies de trabalho e o julgamento moral sobre a conduta do preso indicam uma recusa em reconhecer a legitimidade de seu direito sade. Ainda que as leis brasileiras afirmem sade como direito de todos e dever do Estado, constata-se a no realizao desse direito tanto para as pessoas presas como para os profissionais que atuam no presdio. Palavras-chave: Direito Sade; Prises; Violncia; Condies de Trabalho.

    lida Lcia Carvalho MartinsMestre em Sade Pblica. Especialista em Polticas e Gesto da Sade da Secretaria de Estado de Sade de Minas Gerais.E-mail: [email protected]

    Luciana Gomes Martins Enfermeira. E-mail: [email protected]

    Andra Maria SilveiraDoutora em Sociologia Poltica. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Medicina. Departamento de Medicina Preventiva e Social.E-mail: [email protected]

    Elza Machado de MeloDoutora em Sade na Comunidade. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Medicina. Departamento de Medicina Preventiva e Social.E-mail: [email protected]

    CorrespondnciaElida Lcia Carvalho MartinsRua Messias Coutinho, 272, CEP 31580-400, Belo Horizonte, MG, Brasil.

    O contraditrio direito sade de pessoas em privao de liberdade: o caso de uma unidade prisional de Minas GeraisThe contradictory right to health of people deprived of liberty: the case of a prison in Minas Gerais, Brazil

    1222 Sade Soc. So Paulo, v.23, n.4, p.1222-1234, 2014 DOI 10.1590/S0104-12902014000400009

  • AbstractThis paper aims to analyze the realization of the right to health of people deprived of liberty, by me-ans of focus groups conducted with three subjects involved in the prison context: imprisoned people, prison officers, and health professionals in a male prison in Ribeiro das Neves, Minas Gerais, Brazil. The discussions were recorded, transcribed, and underwent discourse analysis. The right to health, understood as full access to good-quality health ser-vices, is put into question as an actual phenomenon, since, considering that public services are scrapped, this access is restricted to those who can pay for it. State neglect with regard to the right to health of imprisoned people is justified by the disciplinary role played by prison. Poor working conditions and moral judgment on the prisoners behavior indicate a refusal to recognize the legitimacy of his right to health. Although the Brazilian laws claim that health is a right of all and a duty of the State, we find out the lack of realization of this right both for imprisoned people and for the professionals working in the prison.Keywords: Right to Health; Prisons; Violence; Working Conditions.

    IntroduoO aumento da populao carcerria uma reali-dade nos pases industrializados ou em processo de industrializao (Walmsley, 2009). Em 2008, a populao mundial foi estimada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) em 6,75 bilhes de pessoas, das quais 9,8 milhes encontram-se presas, signifi-cando uma taxa de encarceramento mundial de 145 por 100.000 habitantes. O Brasil possui a maior populao carcerria da Amrica Latina (Walmsley, 2009). Em dezembro de 2012, eram 548.003 presos em 1.881 estabelecimentos penais (incluindo os que esto sob custdia da polcia civil)1, com uma taxa de encarceramento de 287,31 por 100.000 habitantes (Brasil, 2012). Nos ltimos cinco anos, em Minas Gerais, houve um aumento de 89,8% da populao carcerria (Conselho Nacional de Justia, 2010) e, em dezembro de 2012, a taxa de encarceramento re-gistrada no Estado foi de 263,32/100.000 habitantes (Brasil, 2010a).

    As precrias condies do sistema penitencirio brasileiro so bem conhecidas: superlotao, con-dies sanitrias rudimentares, alimentao insu-ficiente, ausncia de assistncia mdica, jurdica, educacional e profissional. Tem-se, ainda, constante violncia entre os presos e entre esses e o Estado, representado por policiais e agentes penitencirios (Brasil, 2000, Mesquita Neto e Alves, 2007; CEJIL, 2007; Diuana e col., 2008). Tudo isso, somado ao uso de drogas e ao sedentarismo, torna a priso um local de grande risco para a sade (Assis, 2007).

    A despeito das penas de carter cruel terem sido vedadas pela Constituio Federal em vigncia (Brasil, 1988) e a pena de priso se restringir perda da liberdade, no de outros direitos fundamentais (Brasil, 1988), h no sistema prisional riscos ligados integridade fsica, falta de infraestrutura e s doenas infectocontagiosas, alm de uma desva-lorizao do preso e de suas queixas apresentadas inicialmente aos agentes penitencirios. Estes fa-zem uma avaliao informal do caso e decidem, com

    1 A Polcia Judiciria responsvel por realizar investigaes, colher provas por meio do inqurito policial e entregar ao Ministrio Pblico, que proceder a acusao do acusado. A Polcia Judiciria nos mbitos estaduais e municipais exercida pela Polcia Civil, no mbito federal pela Polcia Federal. A custdia dos presos legalmente exercida pelos agentes penitencirios, quando esto em prises. Porm, foi atribudo, sem qualquer amparo legal (Borges Netto e Silva, 2007), Polcia Judiciria o poder de custdia dos presos que esto em priso preventiva ou at mesmo aqueles com sentena transitado em julgado. Por isso, as delegacias da Polcia Judiciria so usadas tambm como carceragem. Tal custdia exercida pelo controle dos carcereiros policiais, que so funcionrios da Polcia Judiciria.

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  • base em critrios pessoais, o encaminhamento ou no do preso ao servio mdico, resultando em um controle do acesso aos servios de sade. Segundo Diuana e colaboradores (2008), a produo de aes de sade hierarquizadas e focadas na doena indica a resistncia por parte dos agentes penitencirios, da administrao penitenciria e da sociedade civil em considerar a sade como um direito do preso.

    Marco legalO direito sade da populao em privao de liber-dade foi normatizado na legislao brasileira pela Lei de Execuo Penal (LEP) n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Brasil, 1984), que dispe sobre as condies de cumprimento das sentenas criminais e sobre as condies para proporcionar a integrao social do condenado e do internado. Segundo a LEP (Brasil, 1984), a assistncia sade um direito das pesso-as em privao de liberdade, tem carter curativo e preventivo e compreende o atendimento mdico, farmacutico e odontolgico. Alm disso, a norma legal determina que o acesso a servios de sade de unidade prisional equipada ocorrer mediante auto-rizao da direo do estabelecimento (Brasil, 1984).

    Nesse cenrio, no mero acaso a institucio-nalizao do Plano Nacional de Sade no Sistema Penitencirio (PNSSP) pela Portaria Interministerial n. 1.777, dos ministrios da Sade e da Justia, de 9 de setembro de 2003, na qual se prev a necessida-de de organizao de aes e servios de sade no sistema penitencirio orientados pelos princpios e diretrizes do Sistema nico de Sade (SUS) (Brasil, 2003). O PNSSP guiado pela lgica da ateno bsica e define a corresponsabilidade das trs esfe-ras de governo pela gesto das aes e dos servios de sade no sistema penitencirio (Brasil, 2010b).

    O plano define como prioridades da poltica: reforma e equipagem das unidades prisionais; organizao do sistema de informao de sade; implantao de aes de promoo da sade; imple-mentao de medidas de proteo especficas para hepatites, tuberculose, hansenase, diabetes, hiper-tenso, DST/aids e agravos psicossociais decorren-tes do confinamento; distribuio de preservativos e insumos para a reduo de danos associados ao uso de drogas; garantia de acesso aos demais nveis de

    ateno sade, por meio das referncias, includas na Programao Pactuada Integrada (PPI) estadual.

    O presente trabalho prope-se a compreender e discutir a efetivao do direito sade das pessoas em privao de liberdade como disposto nas legis-laes que o regulamentam.

    Percurso metodolgicoTrata-se de estudo qualitativo sobre o direito sade das pessoas em privao de liberdade, realizado no ano de 2011 em um presdio destinado populao carcerria masculina, situado no municpio de Ri-beiro das Neves, MG.

    Participaram do estudo: pessoas em privao de liberdade, agentes penitencirios e profissionais de sade da unidade prisional. Aos grupos propusemos a discusso sobre o que era o direito sade, como ele se realizava na unidade prisional e quais os prin-cipais determinantes para se concretizar o direito sade na unidade. Todos os participantes da pes-quisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O trabalho foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG), n. CAAE - 0323.0.203.000-11.

    Os dados foram coletados por meio de grupos focais, realizados na prpria unidade prisional. A escolha dessa tcnica fundamentou-se na sua po-tencialidade de se explorar e aprofundar os concei-tos, interesses, preocupaes e percepes comuns e conflituosas que emergem da interao social (Gaskell, 2008): O grupo focal um ambiente mais natural e holstico em que os participantes levam em considerao os pontos de vistas dos outros na formulao de suas respostas e comentam suas prprias experincias e as dos outros (p. 76). Alm disso, esse tipo de procedimento metodolgico, dada sua natureza interativa (Whestphal e col., 1996; Gatti, 2005; Gaskell, 2008), contribuiu para quebrar o constrangimento prprio do cenrio de estudo e, ainda, propiciou um espao no vigiado para a ob-teno dos dados. A formao dos grupos foi feita a partir de um processo de negociao envolvendo a Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais (SEDS/MG) e o diretor geral e os diretores de ressocializao e de segurana do presdio. Foram realizados trs grupos focais, assim organizados:

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  • Grupos focais com as pessoas em privao de liberdade GF1

    Em virtude das dificuldades logsticas para se agru-par presos de diferentes pavilhes e de se fazer um convite aberto a todos os detentos, uma vez que o trnsito dos internos obedece a protocolos esta-belecidos, foram includos na pesquisa os presos que estudam. Esse grupo pr-formado, mas no selecionado, pela administrao do presdio, uma vez que a inscrio na escola realizada a pedido do detento. A pesquisa se limitou aos presos do ensino fundamental, nico nvel de escolarizao para o qual existem turmas regulares. Foi permitida a entrada em apenas dois pavilhes do presdio, obe-decendo s normas e direo do estabelecimento, o que reduziu as possibilidades de seleo e amostra.

    Os encontros foram realizados nas salas de aula, que se localizam dentro do pavilho, sem a presena de agentes penitencirios, profissionais de sade, professores ou qualquer outro funcionrio do presdio. A utilizao desse espao contou com a autorizao previa da SEDS/MG e da direo da escola do presdio. Foram formados dois grupos, um em cada pavilho, um com oito participantes e outro com onze. A realizao do grupo focal foi precedida de um encontro, no qual as pessoas em privao de liberdade foram convidadas a participar e os pesquisadores explicaram os objetivos do estudo e o mtodo a ser utilizado.

    Foram realizados quatro encontros, com durao mdia de uma hora, previamente acordados com os sujeitos, durante os quais foram realizadas din-micas e conversaes entre os participantes com o objetivo de facilitar a interao entre os partici-pantes e os moderadores. Para iniciar a discusso sobre direito sade foi exibido o filme Um ato de coragem, de Nick Cassavetes.

    Grupo focal com agentes penitencirios GF2

    O recrutamento de agentes penitencirios para a pesquisa no foi uma tarefa fcil, pelo fato de eles no poderem abandonar os postos de trabalho nem continuar no presdio aps o trmino do planto. Para contornar essa limitao, foram escolhidos os agentes de trnsito interno que tm a responsabi-lidade de fazer o deslocamento dos detentos entre a cela e as demais dependncias da unidade, tarefa

    que poderia ser coberta por outros agentes peni-tencirios, caso necessrio. No incio houve certa resistncia, mas ao final do primeiro encontro, com as explicaes dadas, formou-se um grupo com seis agentes penitencirios.

    Foram realizados quatro encontros, com durao mdia de uma hora cada, previamente acordados com os sujeitos, seguindo a mesma metodologia adotada para os grupos focais com as pessoas pri-vadas de liberdade.

    Grupo focal com profissionais de sade GF3

    Os profissionais de sade foram reunidos nas de-pendncias do Ncleo de Atendimento Sade da unidade prisional para a explicao da pesquisa. Em virtude da rotina de trabalho, dividida em plantes, e da dificuldade de se interromper o atendimento aos presos, os grupos foram formados com os profissio-nais que estavam em escala conjunta de planto, a cada quinze dias.

    Apesar de a literatura recomendar o mnimo de seis participantes (Gatti, 2005), esse grupo foi realizado com cinco integrantes, para no se invia-bilizar a pesquisa. Foram realizados dois encontros, com durao mdia de duas horas. Para o grupo dos profissionais de sade no foi possvel a realizao da dinmica e exibio do filme, uma vez que a cada encontro os atendimentos de sade eram interrom-pidos, sendo necessrio que o tempo concedido fosse usado apenas para a discusso.

    Os grupos foram conduzidos por duas pesquisa-doras: uma atuando como moderadora, outra como observadora. A moderadora teve papel de estimular a participao de todos distribuir a fala para que ningum a monopolizasse e promover o debate pontuando os consensos e as divergncias entre as falas e colocando em pauta questes suscitadas pela discusso. A observadora auxiliou anotando os comportamentos, expresses, falas e a dinmica do grupo. Esses papis foram desempenhados pela pri-meira e segunda autora deste artigo, respectivamen-te. Os encontros foram suficientes para obteno de material necessrio para compreenso e saturao das opinies sobre o problema.

    As discusses foram registradas por meio de um gravador digital e, posteriormente, transcritas. Aps a transcrio, os discursos de cada grupo focal foram analisados por meio da anlise de discurso (Gill,

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  • 2008) e triangulados, com intuito de avaliar o objeto desta pesquisa luz do encontro das percepes dos trs atores inseridos na mesma realidade, superando a dicotomia entre o subjetivo e o objetivo (Minayo, 2010). Portanto, os resultados apresentados so as percepes comuns aos trs grupos focais.

    Resultados e discussoA sade e o direito sade

    As falas dos profissionais de sade do presdio mostram sintonia com o princpio da integralidade (Buss, 2000; Mattos, 2006; Paim, 2008):

    Segundo a Organizao Mundial, sade o bem--estar fsico, mental, social e no s a ausncia da doena, n? Ento, tudo engloba o ser humano, completo (GF3)

    O mesmo ocorre com as pessoas presas, para as quais a sade liberdade: [...] liberdade pra mim sade [...]; respeito pelo outro: [...] comea pelo respeito ao prximo, porque se voc falar da sade, questo de mal tratar, no ter respeito com voc, no te ver como um ser humano [...]; trabalho: [...] se eu tiv trabaiando l honestamente, eu v t de bem com a vida [...]; e local onde se vive: [...] uma casa, piscina, uma rvore, um canteirozinho de rosas, cu e as andorinhas voando [...](GF1).

    Para os agentes penitencirios, tudo isso e mais as condies de trabalho:

    Voc no sabe onde voc vai apoiar, onde voc vai segurar, a voc se abala. Voc no tem suporte suficiente pra t fazendo qualquer coisa, abala mentalmente [...] todos os acessos aqui compli-cado, tanto pra gente quanto pro preso. Voc no sabe como fazer nada, voc tem dificuldade pra fazer qualquer outra coisa, voc no t seguro de nada que voc faz. E acaba abalando mentalmente, fisicamente, voc fica nervoso, mas tem que ficar calado em diversas situaes. Muitas vezes, no pode dar sua opinio sobre o que t certo e o que t errado. E isso vai te abalando, vai desmoronando aos poucos. At que voc chega e basicamente no sabe quem voc mais [...] A voc vai s abaixando, abaixando, abaixando e fala: acabou. (GF2)

    Os entrevistados compreendem a sade, tambm, como um direito e assim o definem:

    Direito sade quando a pessoa t passando mal e precisa ser atendido. A pessoa t precisando, t passando mal, precisa ser atendido. Se oc pre-cisa de medicamento, de operao, de atendimento mdico, do que precisar, entendeu? (GF1)

    Conceito prximo ao formulado por Pinheiro e colaboradores (2010):

    [...] o direito sade ter acesso universal aos

    cuidados em sade, com recursos necessrios

    para prov-los, sendo oferecidos por servios de

    qualidade, nos quais as prticas culturais so con-

    sideradas, e a educao e informao sejam meios

    de sua produo e reproduo social (p. 17).

    Essa compreenso , de acordo com Bodstein (2003), necessria para que o direito sade seja prtica social inerente condio humana concre-tizada no cotidiano da vida das pessoas. Para todos os entrevistados, esse direito est ligado condio de cidado:

    o direito que eu tenho como cidad de ser atendi-da [...] com um atendimento digno, com qualidade. Porque a pessoa, provavelmente, quando procura um atendimento, ela t debilitada, n? (GF3)

    O direito sade est intimamente ligado a uma condio de cidadania ativa, ou seja, uma constante luta contra qualquer constrangimento que impea o seu exerccio (Nogueira e Pires, 2004, p. 755), e no pode ser resumido formalizao em leis sem a sua concretizao no cotidiano das pessoas. Para os autores necessrio considerar o direito sade no plano poltico como uma instncia de luta coletiva para que sejam deslocados do plano meramente formal e no histrico. Segundo Dallari (1988), a efetividade desse direito se dar de acordo com o grau de desenvolvimento socioeconmico e cultural do Estado e conforme a participao dos indivduos no processo.

    A universalidade do direito sade: formal ou real?

    A efetividade do direito, como estabelecido no or-denamento jurdico brasileiro, questionada pelos sujeitos desta pesquisa: A constituio fala tambm que sade um direito de todos, n? S que na prtica esse direito restrito, n? Muito restrito [...] (GF3). Eles separam o direito sade enquanto norma, expressa em leis, do direito enquanto fenmeno real.

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  • Quando se referem ao direito sade como universal referem-se ao que a norma determina; entretanto apontam que sua efetividade e seu usufruto no so para todas as pessoas. H um paradoxo apresentado entre a norma e a realidade.

    Pachukanis (1988) atenta-nos a perceber que a distncia entre Dever Ser e Ser cria uma barreira intransponvel para compreenso e a efetivao do direito, uma postura de manuteno do status quo. Para ele, o direito que se encerra em uma hierarquia de normas, dentro dos limites da categoria eterna do Dever Ser, sem contato com o fenmeno, o Ser, nada mais do que a mscara que encobre as lutas de classe e as relaes de poder. Como argumenta Merhy (2012), no de hoje que no Brasil algumas vidas valem mais que outras e algumas pessoas pos-suem mais direitos que outras. Segundo esse autor, desde a Constituio de 1988 houve uma reverso da aposta inicial do Sistema nico de Sade, tanto no sentido organizacional quanto no sentido dire-tivo, regulatrio, avaliativo, financeiro e do prprio processo de cuidado em sade. Para Merhy, o SUS exerce funo suplementar ao setor privado, quando deveria ser o contrrio. Assim tambm descrevem os entrevistados desta pesquisa.

    Poucas oportunidades, s vezes a gente v pelo Sistema nico de Sade. O atendimento, como demorado, poucas vagas pra muita gente (GF3)

    De um modo geral, todos apontam o descaso do Estado com a poltica de sade pblica por res-ponder a interesses no prioritrios da sociedade, sendo, antes, interesses particulares que deslocam a estruturao dos servios pblicos de sade para segundo plano:

    Eles t preocupado com a Copa do Mundo no Brasil, com o campo, no quer saber de sade, no. Quantos bilhes eles to dando pro futebol? No to preocupando nem com um milho pra sade (GF1)

    O Estado para Marx e Engels produto da con-tradio da sociedade dividida por antagonismos irreconciliveis entre as classes econmicas, em funo das relaes de produo, para a qual se faz necessrio um poder aparentemente acima e distan-te dela. H uma suposta separao entre o interesse pblico, salvaguardado pelo Estado, do interesse privado prprio da sociedade civil capitalista. Mas,

    como o Estado nasce do conflito de interesses das classes, o interesse da classe economicamente dominante que ele representa, ao mesmo tempo em que por intermdio dele que essa classe converte-se em politicamente dominante, utilizando dos meios repressivos para explorao da classe oprimida (Mascaro, 2002). O interesse privado se sobrepe ao interesse pblico, mas de forma mascarada, pelo direito que se pretende universal: os direitos concedidos aos cidados so regulados de acordo com as posses dos referidos cidados, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para prote-o dos que possuem contra os que no possuem (Engels, 1982, p. 137).

    A promulgao do direito sade no Brasil, fruto de movimentos sociais envolvidos no processo de redemocratizao do pas e produtores da Reforma Sanitria Brasileira, ocorreu, como explica Campos (2008), concomitantemente ao neoliberalismo, que favoreceu o mercado e o afastamento do Estado dos setores sociais. Para Fleury (2009), nos ltimos anos, h um retrocesso na construo de sade como um valor pblico: sob orientao neoliberal, a sade passa a ser um bem de consumo, individualizado, com anuncia e promoo do Estado. A classe bur-guesa avana com incentivos fiscais, transferncia de servios e prestaes para o setor privado, corte de gastos pblicos nas polticas sociais e consequen-te atrofia do papel do Estado em efetivar os direitos sociais. O que se v com o capitalismo avanado a retirada dos direitos conquistados pelos movimen-tos de lutas populares, tornando o acesso aos servi-os de sade passvel de ser negociado e comprado, limitado a quem possui mais condies financeiras. Para tornar-se cidado necessria a integrao do individuo ao mercado, como consumidor e como produtor (Queiroz, 2006). Essa anlise se harmoniza com a fala dos entrevistados:

    Hoje em dia, se voc tiver dinheiro voc tem isso tudo e mais ainda. Agora, se voc no tem dinheiro, voc no tem nada. Saneamento bsico, principal-mente, comida, sade, no tem nada (GF2).

    H uma compreenso, para os sujeitos desta pesquisa, de que a efetivao do direito sade na vida das pessoas intimamente ligada ao as-pecto econmico. E essa situao contraditria, de um lado, o direito universal institucionalizado,

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  • de outro, sua negao populao de menor nvel socioeconmico, reedita a anlise de Marx, para quem a afirmao do direito como universal escon-de as diferenas entre explorados e exploradores, a luta de classes presente no capitalismo e, por fim, determina o imprio da lgica burguesa. O direito jusnatural evolui pela necessidade de se assegurar o funcionamento do sistema por meio de instncias estabelecidas pelas relaes produtivas, configuran-do o direito como de classe e no interesse da classe exploradora. Sendo assim, o direito universal e igual formalizado apenas em lei e no em sua concre-tude, uma vez que no capitalismo o trabalhador e o capitalista, apesar de estarem em conflito, perante o direito so tratados da mesma forma, escondendo as desigualdades materiais (Mascaro, 2002).

    E como para as pessoas em privao de liberdade?

    Do mesmo modo que o direito sade de todos, o direito sade das pessoas em privao de liberdade percebido por elas prprias enquanto norma que no se concretiza no cotidiano da vida:

    Direito a sade no deixar a gente aqui, entendeu? O preso aqui tem que procurar saber como que t a sade dele, do que ele t precisando, se no tem gastrite ou ulcera ou aids ou cncer ou um problema de pele. [...] s vezes a famlia dele vai l, marca um mdico, entendeu? s vezes no tem escolta, s vezes alguma coisa que precisava, algum procedimento no d pra levar o preso e nisso vai ficando. E a sa-de, como que fica? Entendeu? que eu gostaria, se teria disponibilidade, que o governo se preocupasse mais da nossa sade. [...] Eu no tenho ningum pra me ajudar, ento eu vou fazer o qu? (GF1).

    Essa percepo compartilhada tanto pelos profissionais de sade quanto pelos agentes peni-tencirios que relatam a precariedade dos servios de sade dentro da unidade prisional estudada e a falta de ateno aos detentos:

    Eles no tm direito a nada aqui, ningum d aten-o a eles aqui. Eles esto jogados (GF3).

    Praticamente no existe. A dentista vem pra bater ponto. Assim, que o aparelho t quebrado j tem muito tempo. Ento no tem. Tem o direito, mas

    no tem acesso. Eles vo l, balangam2, balangam. A gente vai, escuta isso todo dia. E fala e fala, e no resolve outra coisa (GF2).

    Estudos publicados sobre a sade das pessoas privadas de liberdade (Menezes, 2002; Sequeira, 2006; Coelho, 2009), bem como os relatrios de entidades ligadas aos direitos humanos (Brasil, 2010b; Mesquita Neto e Alves, 2007; CEJIL, 2007), demonstram que as condies insalubres do crce-re o confinamento, a superlotao, as precrias condies de higiene, a falta de estrutura adequada e suficiente para o atendimento mdico, alimentos de m qualidade e aqum do necessrio, ausncia de uma poltica substancial de insero em atividades laborais, a violncia e o abalo emocional so fatores que aumentam e propiciam infeces. De acordo com Menezes (2002), no Brasil pelo menos 20% da populao presa infectada pelo vrus da aids e da hepatite B, 10% pelo bacilo da sfilis e vrus da hepa-tite C. Segundo Pedroso (1997), essa uma situao que marca a histria do sistema penitencirio bra-sileiro e que revela o descaso das polticas pblicas em matria penal.

    Esse descaso, na avaliao dos entrevistados, justificado pelas funes da priso, segurana e disciplina:

    Primeiro a gente trabalha com segurana. Entre

    o preso morrer dentro da cela e eu arriscar abrir

    uma brecha pra ter rebelio dentro do presdio, um

    pavilho, infelizmente ele vai morrer dentro da cela.

    Entendeu? (GF2).

    [...] aquele negcio... direito preso? Preso tem que ter direito a alguma coisa? Preso tem que ter

    disciplina! (GF3).

    Para Foucault (1986) a disciplina como ttica de poder se enraizou com o incio do sistema de pro-duo capitalista. A sociedade burguesa abriga-se num sistema de direitos formalmente universais e igualitrios, sustentado por esses mecanismos de micropoder que constituem as disciplinas, que se apresenta como uma espcie de contradireito (Foucault, 1986). A disciplina insere uma relao de subordinao de um indivduo sobre o outro,

    2 A expresso balangam se refere prtica adotada pelos detentos de bater na porta da cela quando se faz necessria uma assistncia sade de urgncia.

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  • concentrando mais-poder (Foucault, 1986) sem-pre do mesmo lado, afirmando a desigualdade de posio entre os indivduos em relao ao regula-mento comum, enquanto que os sistemas jurdicos qualificam os sujeitos de direito de acordo com as normas universais.

    A pena de priso assume um carter de apare-lho disciplinar exaustivo em todos os aspectos do indivduo: treinamento fsico do indivduo, aptido ao trabalho, comportamento, atitude moral, dispo-sies individuais (Foucault, 1986). Como dizem os agentes: O sistema, ele todo manipulado exata-mente pra ficar num controle autoritrio, totalmente assim, n? (GF2). Assim, a priso vai alm da privao da liberdade como punio do delito e passa a ter a funo de modular a pena, quantificar e graduar o castigo, segundo a obedincia s ordens hierrquica do aprisionado (Foucault, 1986).

    Ele sabe que ele errou, que tem que ser feito daquela forma, tem que aplicar aquela punio, quase sem-pre comunicao, ou COC (Centro de Observao Criminolgica) mesmo, fica l isolado e tudo. Mas a maioria dos problemas nossos no so diretamente ligados a eles, porque aqui a gente d ordem, tem que cumprir, se ele no cumprir por bem vai cumprir por mal. Mal pra ele, pra gente nem tanto. Mas se precisar a fora vai ter que ser usada a fora, fazer o qu? (GF2).

    O direito sade pode ser empregado, quando da reivindicao, como um direito individual privi-legiando a liberdade para escolher o tipo de relao que a pessoa ter com o territrio, o tipo de vida que quer viver, o tipo de tratamento a que ser submetida (Dallari, 1988). Mas, como apontam Diuana e cola-boradores (2008), aos presos negada a condio de paciente, uma vez que esto submetidos ordem: para ter acesso aos servios de sade preciso que os detentos se submetam aos valores hierrquicos e s relaes de dvida e gratido.

    E hoje at teve um preso que eu tava atendendo agora e eu achei interessante. Eu perguntei a ele se tinha aqui procedimento que eu posso ajudar. E ele: No, doutora, s isso mesmo e tal. Toda vez que eu preciso vim aqui no ncleo eles me trazem, eu sempre sou atendido. O meu tratamento t sendo muito bem feito, eu sou hipertenso, t recebendo

    toda a minha medicao e tal. A eu falei assim: e como que ? Voc? Ai, assim, ele falou: eu nunca fui pro COC, eu no tenho problema nenhum com os agentes. Ento, assim, se voc consegue ter bom relacionamento eu acho que mais fcil de voc conseguir que o seu direito seja respeitado (GF3).

    O acesso aos servios de sade tambm pode ocorrer por meio do pagamento pelos servios de sade extramuros: eu conversei com assistente so-cial e ela fal que s se a famlia tivesse dinheiro l fora pra pag l fora, pra lev (GF1). O que, segundo as normas jurdicas, o Estado deveria prover, no caso das pessoas em privao de liberdade passa a ser res-ponsabilidade da famlia, seja por ela ter condies financeiras para pagar, seja ela usuria que procura e pressiona os servios pblicos de sade, extramu-ros e intramuros, aos quais os presos tero acesso.

    Na maioria das vezes s tira nis pra atendimento,

    na maioria das vezes com a famlia (GF1).

    Uma coisa eu j falo: no prometo nada. Eu chego

    falo isso: vou tentar resolver. Porque eu chego

    aqui em cima, s vezes eu preciso de autorizao

    de coordenador, de um diretor. A, beleza, eu consigo

    aqui, mas no consigo l fora, ai a gente liga pra

    famlia... (GF3).

    A presena da famlia durante a execuo penal e a importancia de seu papel na sobrevivncia dos presos, para garantia do acesso a servios jurdicos e de sade e denncia de abusos e punies ilegais foram demonstradas por Guimaraes e colaboradores (2006), em estudo realizado na cidade de Porto Ale-gre. A famlia a que se refere predominantemente composta por mulheres, de baixa condio socioeco-nmica, estigmatizadas pelos gestores da priso que as responsabilizam pela criminalidade. Ns tambm encontramos as profissionais de sade, mulheres, pejorativamente sendo chamadas de mes de preso por tentarem fazer valer o direito do preso (GF3).

    Se por um lado, consensual entre os entrevis-tados, a crtica de no efetivao do princpio de universalidade do SUS, por outro lado, porm e de forma contraditria - h certa recusa em atribuir este direito ao preso. A percepo de profissionais e de agentes penitencirios de que o acesso aos servios de sade, mesmo que precrios, proporcio-

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  • na uma condio de vantagem aos detentos, de ter mais direito que os demais sujeitos envolvidos no contexto do sistema penitencirio:

    Mas se voc for pensar, n? Mesmo assim eu acho

    que ainda no.. no sistema prisional ainda tem mais

    direito que quem t l fora (GF3).

    Mas o direito mesmo quem tem o preso. Igual ele tem direito a advogado, a escola, essas coisa toda. Ento, quem tem direito mesmo o preso (GF2).

    O entendimento por profissionais de sade e agentes penitencirios do acesso aos servios de sade como vantagem dada ao preso tem relao com a insatisfao com as precrias condies de trabalho a que esto submetidos, compreendidas como ausncia de direito, provocando, por consequ-ncia, uma atitude de negao desse suposto mais direito do outro:

    ruim, porque vai falar de profissional, de colegas de servio, n? Mas s vezes se a colega no tiver bem pra trabalhar, ela esbarra nisso. Nega o direito que o outro tem porque eu no t tendo (GF3).

    porque, querendo ou no, eles albergado, eles vm todo dia na cadeia. Ento, querendo ou no, eles pagam cadeia tambm, e trabalhar definitivo. [...] O salrio baixo, n? Corre risco de vida desde os fa-miliares deles. Mil e oitocentos reais, isso dinheiro pra ter uma responsabilidade grande dessa? (GF1).

    As condies de trabalho vnculos precariza-dos, baixos salrios, falta de atendimento sade fsica e mental, violncia institucional a que esto submetidos tanto os profissionais de sade quanto os agentes penitencirios da unidade prisional pesquisada, foram objetos de estudo em outros Es-tados. Essas pesquisas indicam existir relao forte entre tais condies e o comprometimento da sade fsica e mental dos trabalhadores, bem como com o comportamento agressivo em relao s pessoas presas (Fernandes e col., 2002; Diuana e col., 2008).

    H, muitas vezes, na recusa ao direito sade do preso um julgamento moral: criminoso (GF3). Se o crime algo que traz dano moral sociedade, o criminoso passa a ser o inimigo social (Foucault,

    2003); aquele que rompeu com um pacto que, em tese, havia estabelecido e, portanto, no pode ser tratado da mesma maneira que outras pessoas cujos comportamentos no ferem o moralmente concebido como conduta correta:

    65 anos. Sabe aquele homem assim conservador, de valores conservados, preservados? Ele t aqui no fim do mundo, mas ele tava com cabea baixa, humilde, nem gostava muito de falar. Graas ao Se-nhor ele j saiu, n? Justia foi feita! Mas, ai, eu vou tratar esse senhor de 65 anos igual ao que, desde 11 anos, como eu atendi semana passada: eu roubo desde 11 anos, ento nunca gostei de trabalhar no, doutora, eu roubo desde os 11. No, no posso tratar da mesma maneira (GF3).

    O julgamento moral como um elemento discrimi-nador que dificulta o acesso aos servios de sade confirmado e denunciado pelos presos. Entretanto, a recusa ao direito reproduzida por eles quando se referem aos detentos que esto no seguro pa-vilho segregado para pessoas que cumprem pena de priso por estupro, no pagamento de penso alimentcia, entre outros, e os presos que delatam outros direo do presdio. A expresso mais direito tambm utilizada por detentos quando se remetem concretizao do direito sade para os presos do seguro. H um julgamento moral de que crimes como os descritos acima so tpicos de pessoas sem carter (GF1), e que a punio a eles deveria ser mais severa, sugerindo pena de morte, execuo: A lei tinha que ser mais severa, tanto no crime de estupro quanto nos duzento3 (GF1).

    O direito sade em seus aspectos sociais privi-legia a igualdade, sendo as limitaes aos compor-tamentos humanos estabelecidas para que todos usufruam igualmente das vantagens da vida em sociedade e dos cuidados em sade (Dallari, 1988).

    A igualdade formal, assim como a universalidade, para Pachukanis (1988) , alm de uma dissimulao da explorao capitalista, um princpio realmente atuante e incorporado pela sociedade burguesa como um princpio moral e de transformao das relaes humanas em relaes jurdicas. Consequentemente,

    3 O termo duzento utilizado quando se deseja fazer referncia aos crimes inseridos no Ttulo VI - dos crimes contra a dignidade sexual - do Cdigo Penal Brasileiro, Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

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  • se se reconhecer o outro como igual imprescind-vel para o reconhecimento do direito, o julgamento moral sobre o comportamento de uma pessoa que quebra o pacto social a discrimina e impede o reco-nhecimento de que o direito sade seja efetivado de maneira igual. A quem possui uma conduta que fere o que moralmente correto deve-se destinar menor ateno, menor acesso aos servios de sade, provocando o que chamamos de dupla penalizao. Ela entendida como o conjunto do isolamento da pena de priso, oriunda do julgamento jurdico prprio do processo penal, e da constante violao de direitos a que uma pessoa em privao de liber-dade submetida, procedente do julgamento moral sob o comportamento do preso durante a execuo da pena.

    Consideraes finaisA sade para os sujeitos desta pesquisa pessoas presas, agentes penitencirios e profissionais de sade no se limita ausncia de doenas, fsicas ou mentais, sendo o processo sade-doena determi-nado por outras condies de vida como liberdade, famlia, respeito ao prximo, trabalho. Para eles, sade um direito cuja efetividade dar-se-ia pela garantia do acesso integral e com qualidade aos servios de sade, e est restrito parcela da popu-lao que pode pagar por tais servios. Dessa forma, o direito universal sade questionado enquanto fenmeno real, apesar de ser garantido enquanto norma jurdica.

    A pesquisa revela o descaso do Estado com os detentos, submetendo-os a condies desumanas e insalubres, o que aumenta a sua vulnerabilidade s doenas. As relaes estabelecidas so de violncia nas quais indivduos vulnerveis como o so as pessoas presas veem-se constrangidos s posies de submisso a uma ordem disciplinar hierrquica para ter acesso aos servios de sade. Alm disso, h um constante julgamento moral sobre o compor-tamento do preso, quando da operacionalizao de seu acesso s aes de sade, culminando muitas vezes na no efetivao desse acesso. As precrias condies de trabalho apontam tambm para a no realizao dos direitos dos trabalhadores inseridos no contexto carcerrio profissionais de sade e

    os agentes penitencirios , o que acarreta, muitas vezes, ressentimentos e recusa em atribuir o direito sade pessoa presa.

    O campo de produo de conhecimento e do cui-dado em sade, desde o incio da Reforma Sanitria at os dias de hoje, postula sujeitos de vontade, desejos e conhecimentos produtores de modos de vida, de significados e sentidos (Merhy, 2012), pro-tagonistas da construo tanto de prticas de sade no dia a dia de suas vidas, quanto de servios e aes de sade que possibilitem alcanar um patamar de produo e reproduo da vida (Reis e col., 2004) que lhes seja satisfatria. Ou seja, a partir da luta pela Reforma Sanitria, a sade foi compreendida como uma prtica de libertao das relaes de opresso e de constante construo da cidadania (Reis, e col., 2004; Carvalho, 2009).

    Em uma situao de encarceramento, que objeti-fica as pessoas e as coloca em relaes de opresso hierarquizadas, desumanas e embrutecedoras, apri-siona-se tambm a dimenso da sade construda pela Reforma Sanitria Brasileira. preciso atentar--nos para o fato de que a lgica de encarceramento est, quase sempre, destinada a um mesmo pblico: jovens, pobres, afrodescendentes, envolvidos em atos de vis econmico, que historicamente vivem um processo de marginalizao e excluso social (Lopes e col., 2008). Refora esta percepo o perfil da populao brasileira presa: 55% dos membros so jovens de 18 a 29 anos, 46% tm at o ensino fundamental completo, 60% so afrodescendentes, 38% foram presos por crimes contra o patrimnio e 19% por envolvimento com entorpecentes, segundo os dados do Departamento Penitencirio Nacional (Brasil, 2012).

    Enquanto o direito universal sade como prtica de democratizao do Estado, da sade, da sociedade e da cultura (Paim, 2008) no se concre-tiza para as pessoas em privao de liberdade, a pena de priso um fenmeno real que materializa o contradireito (Foucault, 1986), contraditoriamen-te sustentado pelo direito penal. Ainda que leis nacionais postulem que a pena de priso apenas pode privar a pessoa de sua liberdade, no de outros direitos, como o da sade, e que dever do Estado prover tais direitos, admitindo tambm uma possibi-lidade de carter reformatrio da priso, o que se v

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  • na materialidade que a pena de priso assume um carter cruel, violento e de reproduo da violncia institucional contra as pessoas presas e contra os profissionais ali inseridos.

    A partir desta pesquisa, conclumos que a efeti-vao do direito sade das pessoas em privao de liberdade vai alm da garantia de acesso s aes e aos servios pblicos e estatais de sade. A efetivao desse direito requer o rompimento com a lgica punitiva de encarceramento da sociedade disciplinar, assim como o fez a luta antimanicomial. Esse rompimento pressupe, como vm discutindo os criminologistas, o deslocamento de eixo tanto do espao quanto do modelo de soluo dos conflitos, do Estado para comunidade, promovendo laos de solidariedade e o controle local (Zaffaroni, 1991). Alinhar a construo da poltica do cuidado em sade das pessoas em privao de liberdade a essa nova perspectiva estritamente necessrio para a construo de um direito sade que v alm da formalidade e de um sistema nico de sade que seja concretamente universal, integral, equitativo e capaz de envolver o conjunto de sujeitos participan-tes do processo de produo da sade.

    Contribuio dos autoresMartins, E. foi responsvel pela concepo e reali-zao do projeto, anlise e interpretao dos dados, redao do artigo e reviso crtica relevante do con-tedo intelectual. Martins, L. foi responsvel pela realizao do projeto. Silveira fez a reviso crtica relevante do contedo intelectual. Melo foi respon-svel pela concepo do projeto e reviso crtica relevante do contedo intelectual.

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