Dilson Gomes Nascimento

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TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NO CAMPO: AS NOVAS TERRITORIALIDADES RIBEIRINHAS NA VÁRZEA AMAZÔNICA Dilson Gomes Nascimento Universidade Federal do Amazonas Bolsista da Fapeam [email protected] Manuel de Jesus Masulo da Cruz Universidade Federal do Amazonas [email protected] Kelton Klinger Queiroz Pinto Centro Educacional Maiêutica [email protected] Joemi Lima de Oliveira Centro de Estudos Superiores de Parintins [email protected] Luvanor Graça de Souza Centro de Estudos Superiores de Parintins [email protected] INTRODUÇÃO O presente estudo foi realizado entre os camponeses-ribeirinhos da Comunidade São Sebastião do Boto, no município de Parintins-AM, localizada a margem esquerda do baixo rio Amazonas, em uma área de dique marginal periodicamente inundada durante o período de enchente/cheia do rio entre os meses de março a julho. Diversos autores abordaram o termo ribeirinho em seus estudos, entre os quais podemos citar Samuel Benchimol (2009), utilizando o termo “Povos Ribeirinhos”; Sandra Noda (2007) que utiliza a expressão “Povos das Águas” para os ribeirinhos moradores das terras de várzea; Fraxe (2000) onde é empregado o termo “homens anfíbios” para os ribeirinhos, em alusão à própria várzea que é tida como um “sistema anfíbio”, pois apresenta um período em que é dominada pelas águas, além de tantos outros que escreveram sobre os ribeirinhos na Amazônia. Neste artigo trabalhou-se a partir das concepções de Cruz (2007), que faz uso do termo “Camponês-ribeirinho” para designar os povos ribeirinhos da Amazônia que se

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TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NO CAMPO: AS NOVAS TERRITORIALIDADES RIBEIRINHAS NA VÁRZEA AMAZÔNICA

Dilson Gomes Nascimento Universidade Federal do Amazonas

Bolsista da Fapeam [email protected]

Manuel de Jesus Masulo da Cruz Universidade Federal do Amazonas

[email protected]

Kelton Klinger Queiroz Pinto Centro Educacional Maiêutica

[email protected]

Joemi Lima de Oliveira Centro de Estudos Superiores de Parintins

[email protected]

Luvanor Graça de Souza Centro de Estudos Superiores de Parintins

[email protected] INTRODUÇÃO

O presente estudo foi realizado entre os camponeses-ribeirinhos da Comunidade

São Sebastião do Boto, no município de Parintins-AM, localizada a margem esquerda

do baixo rio Amazonas, em uma área de dique marginal periodicamente inundada

durante o período de enchente/cheia do rio entre os meses de março a julho.

Diversos autores abordaram o termo ribeirinho em seus estudos, entre os quais

podemos citar Samuel Benchimol (2009), utilizando o termo “Povos Ribeirinhos”;

Sandra Noda (2007) que utiliza a expressão “Povos das Águas” para os ribeirinhos

moradores das terras de várzea; Fraxe (2000) onde é empregado o termo “homens

anfíbios” para os ribeirinhos, em alusão à própria várzea que é tida como um “sistema

anfíbio”, pois apresenta um período em que é dominada pelas águas, além de tantos

outros que escreveram sobre os ribeirinhos na Amazônia.

Neste artigo trabalhou-se a partir das concepções de Cruz (2007), que faz uso do

termo “Camponês-ribeirinho” para designar os povos ribeirinhos da Amazônia que se

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encontram, sob alguma medida, estabelecendo relações com o Capital. Sob esse ponto

de vista, os camponeses-ribeirinhos são sujeitos que estão inseridos em uma lógica

interna e externa, sendo que suas ligações com o Capital manifestam-se via

monopolização do território por este, sem, contudo, desterritorializar o camponês, mas

transformando a renda da terra e/ou da água – produzida por meio de relações não

capitalistas de produção – em Capital. O autor aborda as transformações ocorridas nos

modos de vida e de produção camponesa ribeirinha – nas suas territorialidades:

agropastoris, aquáticas e florestais – ao longo das transformações pelas quais passou a

Amazônia.

Para o autor acima, os camponeses passam a compor uma nova classe agrária na

Amazônia sob influência do capitalismo internacional e nacional, a partir da interação

cultural entre os inúmeros povos indígenas e a ação luso-espanhola iniciada no século

XVII, intensificada com as medidas adotadas durante o período pombalino (1750-

1777), tais medidas acabaram por modificar decisivamente as características indígenas

da região. Assim entendido, os camponeses-ribeirinhos que habitam as várzeas

amazônicas teriam sua formação consolidada entre os séculos XVIII e XIX, como fruto

da interação cultural entre os europeus (os portugueses em grande medida) e os índios

das águas.

Assim, o presente estudo tem como objetivo compreender como os camponeses-

ribeirinhos da várzea da Comunidade São Sebastião do Boto tem construído suas

territorialidades frente ao processo de modernização em curso, além das próprias

transformações internas da comunidade. Sendo realizado a partir de uma abordagem

qualitativa, com o emprego de entrevistas, observação direta e aplicação de

questionários para a coleta das informações junto aos ribeirinhos.

O artigo está construído em torno das territorialidades agropastoris e aquáticas

dos camponeses-ribeirinhos, a partir da análise dos múltiplos usos do espaço destinado à

produção agrícola, seja pela agricultura, pela pecuária, ou mesmo pela pesca.

1 TERRITORIALIDADES AGROPASTORIS DOS CAMPONESES-

RIBEIRINHOS

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Atualmente residem na comunidade cerca de 50 famílias, as quais se distribuem

de forma dispersa (não nucleadas) ao longo da margem do rio Amazonas e do Igarapé

do Boto. Em sua maioria são famílias que trabalham no cultivo diversificado de

hortaliças – sendo a melancia (Citrullus vulgaris) uma das principais espécies cultivadas

como observado em outras áreas de várzea por Castro et. al., (2007) – além da criação

de gado e nas atividades da pesca.

O uso da terra tem se apresentado de modo diverso entre os camponeses-

ribeirinhos na comunidade. Isto em parte pode ser percebido na diversidade de

cultivares disposta em diferentes locais (seja diretamente no solo e/ou em balcões

suspensos) ao longo do ano agrícola, acompanhando os ciclos naturais de

enchente/cheia e vazante/seca, dentre diversos aspectos culturais que permeiam a vida

camponesa ribeirinha que não são apresentados neste artigo.

1.1 O plantar e o lidar com a terra/água: as peculiaridades da família camponesa

ribeirinha

Quase todos os tipos de cultivo na comunidade envolvem a mão-de-obra da

própria família (Tabela 01), entretanto, alguns não dispensam o trabalho pago de

terceiros, em formas de dias de serviços, principalmente no “carreto” (transporte) da

melancia do roçado até a margem do rio, realizado por meio do trabalho braçal. Tal

serviço é, em alguns casos, inviável para o chefe da família que acumula, entre outras

funções, a de efetuar a colheita e ainda ter que se deslocar à cidade para realizar a venda

do produto.

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Tabela 01: Aspectos do trabalho do camponês-ribeirinho em sua relação com a terra/água e a família.

*Os adubos utilizados pelos camponeses-ribeirinhos foram diferenciados em orgânico (como esterco de boi) e químico (NPK, N=Nitrogênio, P=Fósforo, K=Potássio) sendo o primeiro adquirido na própria comunidade ou em comunidades próximas e o ultimo adquirido no mercado.

Alguns cultivos são realizados tanto no solo, quanto em balcões suspensos

(Tabela 01). É o caso da pimenta murupi (Capsicum chinense), por exemplo. A

alternativa de cultivar nos balcões está relacionada em parte com as leis de mercado,

pois em determinado período do ano (de março a julho) as terras de várzea estão

inundadas e a oferta desse produto diminui, aumentando a procura. Segundo os

camponeses-ribeirinhos 15 (quinze) pés de pimenta no balcão suspenso rendem até 20

(vinte) litros de pimenta, podendo ser vendido a R$ 5,00 (cinco) ou R$ 6,00 (seis) reais

cada litro. Por outro lado, representa uma forma de construção cultural desses sujeitos

frente às especificidades do ambiente de várzea amazônico, caracterizando um modo de

vida camponês local.

A inserção das culturas de ciclo curto entre os camponeses-ribeirinhos na

comunidade foram igualmente acompanhadas de novas territorialidades na várzea

amazônica manifestadas por: a) as alterações nas práticas agrícolas: redução dos

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cultivos diversificados e o quase desaparecimento dos sítios1, motivados entre outros

fatores, pelo processo de terras caídas (erosão lateral), pela expansão da pecuária na

várzea e pelas enchentes/cheias que inundaram as restingas altas da várzea; b) da

redução da prática do pousio (a prática de repouso do solo entre o intervalo de uma

cultura e outra).

O sítio, entendido aqui como o entorno da casa-quintal, era composto por

espécies extrativas e frutíferas como as seringueiras (Hevea brasiliensis), cacaueiros

(Theobroma cacao L.), bacabeiras (Oenocarpus multicaulis), etc. A redução dos sítios

que fora acompanhada pela inserção das culturas de ciclo curto também teve

implicações diretas no modo do camponês-ribeirinho relacionar-se com a terra, como é

o caso dos problemas que envolvem o cultivo de melancia (Citrullus vulgaris):

Ano passado [2013] foi plantado dia 15 de julho, mas aí não é muito boa. Ainda há uma coisa, como houve, né, muita chuva [...] é mais difícil... Foi no fundo, né, a terra ainda tá muito mole [úmida], e ainda há um prejuízo, né, como houve, muita chuva, a terra ainda tá molhada, não tá seca, né, [...] a planta fica lá quietinha, né, ela incroa [não se desenvolve], né, falta oxigênio, não é como quando a terra tá seca. Porque também a gente se apressa muito... Quando seca muito a gente não tem como irrigar, né, porque na [produção] familiar a gente não tem toda essa estrutura, né. A gente tem essa deficiência, quando sai do fundo tá muito molhado, quando vem o verão já seca muito, a gente não trabalha com processo de irrigação, só mesmo da natureza. (M. C. G. 47 anos. Abril de 2014).

As novas formas de uso dos espaços da várzea, como a substituição dos sítios

por culturas de ciclo curto, têm transformado antigas práticas existentes na comunidade.

Ao diminuir consideravelmente a capacidade de recuperação do solo, as famílias

tiveram que recorrer com maior intensidade ao uso de adubos orgânicos e/ou químicos

para dar suporte à produção, mesmo no solo da várzea. Outra constatação refere-se à

redução do número de propriedades onde ainda se pratica o pousio – essa técnica fora

sendo reduzida pela ocorrência das pastagens nas fazendas e, nas pequenas

1 Como adverte Cruz (2007) a noção de sítio na várzea amazônica difere da forma empregada em outras regiões do Brasil. Para este autor, o sítio na várzea amazônica como descrito pelos moradores, refere-se ao local/entorno da casa de moradia onde se cultiva tanto componentes arbóreos (destacando-se as árvores frutíferas) quanto semi-arbóreos.

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propriedades, pela necessidade do uso quase que total das terras para o aumento da

produção, sobretudo, de melancia em anos consecutivos.

No que tange à introdução de insumos como adubos químicos, estes tanto foram

incentivados por fatores externos (por técnicos agrícolas) quanto internos (relativa

dificuldade de acesso ao adubo orgânico: esterco bovino). O acesso ao esterco bovino

nas fazendas nem sempre é fácil. Afinal, a produção na comunidade é

individual/familiar, o que torna os camponeses concorrentes entre si (WOLF, 1979),

levando em alguns casos os fazendeiros se recusarem a doar, passando a vender o

esterco bovino, ou em casos extremos não doam, nem vendem, sendo utilizado

unicamente pela família do pecuarista.

1.2 Quem cria também planta: uma forma de resistência camponesa

Destaque-se ainda que entre as famílias que praticam a agricultura, o solo é a

base para a quase exclusiva plantação das culturas de ciclo curto e da criação de

pequenos animais durante o ano todo. Ao passo que, nas propriedades onde se pratica a

pecuária bovina extensiva, parte do solo que serve para pastagem dá espaço, entre os

meses de julho a outubro, aos “cercados” (locais de pastagem, natural ou cultivada,

cercados provisoriamente para a prática da agricultura) onde se cultiva

preferencialmente a melancia.

Em geral, os cercados estão localizados próximos à margem do rio para facilitar

o escoamento da produção, sendo geralmente, construídos entre janeiro e março antes

da inundação da várzea pela enchente do rio Amazonas. Durante esse período o local

serve para o pernoite do gado permitindo a fertilização natural do solo pelo esterco dos

animais. Segundo Wanderley (1996), o sistema policultura-pecuária faz parte de uma

combinação de técnicas que se aperfeiçoaram ao longo do tempo e que asseguram maior

quantidade de produção, servindo também como uma forma de construção de reservas

frentes às intemperes naturais e más colheitas. Entre as famílias que se dedicam à

pecuária tem se observado maior dedicação à agricultura principalmente frente aos

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prejuízos que estes enfrentam com a morte dos animais durante as enchentes/cheias

prolongadas e/ou quando enfrentam baixas do preço do gado no mercado.

Entre os pecuaristas também tem se recorrido com frequência ao uso das

pastagens naturais de uso comum que se formam às margens dos lagos, nas áreas de

menor valor altimétrico do relevo da várzea, como observado por Cruz (2007) na várzea

de Manacapuru-AM. Entre os meses de setembro a dezembro (durante o período das

águas baixas) esses espaços são utilizados para acomodar os rebanhos que aí

permanecerão até a subida das águas no mês de fevereiro, quando retornam novamente

para as pastagens das restingas altas da várzea, onde o uso é individual familiar.

2 TERRITORIALIDADES DA PESCA DOS CAMPONESES-RIBEIRINHOS

A pesca constitui-se, a um só tempo, como uma atividade mantenedora da vida

das populações ribeirinhas e como parte da própria vida dos povos que habitam a

Amazônia (RAPOZO & WITKOSKI, 2010). Porém, como advertem tais autores, a

pesca tanto como atividade de subsistência, quanto atividade complementar da renda

dos ribeirinhos tem enfrentado significativas transformações, principalmente a partir do

século XX, quando as formas de controle desta atividade paulatinamente foram

transformadas para atender aos planos desenvolvimentistas do Estado para a região e

para a efetivação da pesca enquanto um setor ligado à acumulação e produção do

capital.

De acordo com Batista et al. (2004), a pesca na região ganhou novos contornos a

partir de três eventos na década de 1960, com a popularização do polietileno (matéria-

prima na confecção do isopor utilizado na conservação do pescado por um tempo mais

prolongado); da criação da Fona Franca de Manaus (ZFM) em 1967; e inserção da linha

sintética para a fabricação das redes de arrasto e espera.

Na Comunidade São Sebastião do Boto foram identificados dois “lanços” de uso

comum a jusante da sede (núcleo central) da comunidade, os quais acompanham

horizontalmente a margem do rio Amazonas (Figura 01). Ao referir-se à “pesca de

lanço” Cruz (2007, p. 214) afirma que esta atividade realizada “[...] pelos camponeses-

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ribeirinhos consiste na preparação da terra no período de águas baixas (vazante/seca)

para a prática pesqueira durante o período das águas altas (enchente/cheia) nos lagos e

rios [...]”. O preparo descrito pelo autor diz respeito à limpeza/retirada dos trocos de

árvores do leito do rio que podem danificar a rede dos camponeses-ribeirinhos, neste

caso do baixo rio Amazonas.

Figura 01: Croqui esquemático dos “lanços de pesca” na Comunidade São Sebastião do Boto. Fonte: Base de dados Google Maps, trabalho de campo. Org.: Dilson Nascimento.

O primeiro lanço é denominado “Boca do Boto”, pela proximidade com a boca

(entrada) do Igarapé do Boto, que conecta o rio Amazonas aos lagos próximos, e o

segundo é conhecido como “Santo Agostinho”, em referência à fazenda de mesmo

nome onde o lanço está localizado.

Os dois lanços são utilizados com maior frequência no período do pico da safra

do peixe liso (bagres migradores) de agosto a setembro. Sendo utilizados com menor

frequência nos demais períodos do ano, durante os picos de cheia do rio (quando o

volume d’água e a velocidade do rio são maiores), ou da vazante/seca (quando o volume

d’água é menor na bacia e a velocidade do rio Amazonas reduz, aumentando os ricos de

perdas das redes de pesca em função dos troncos de árvores existentes no leito do rio).

Embora sejam utilizados com a mesma finalidade, o uso desses espaços da pesca

são bem diferentes. No caso do lanço da Boca do Boto, seu uso é basicamente realizado

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pelos moradores da própria comunidade. Comercialmente, a pesca neste espaço objetiva

a captura do surubim (Pseudoplatystoma fasciatus) e/ou do caparari (Pseudoplatystoma

tigrinum) e do apapá (Pellona spp.), entre os meses de agosto a setembro, e de outros

tipos de pescado nos demais meses do ano.

As canoas podem ser tripuladas por uma ou duas pessoas, neste ultimo caso por

membros da família ou parceiros de pesca que dividem os lucros. Uma das

particularidades deste primeiro lanço refere-se a sua extensão, que perfaz cerca de 1.100

(mil e cem) metros. Quando utilizado para a captura de bagres ele se constitui em um

único lanço. Porém, permite até dois lanços para a pesca de peixes de escamas como o

apapá.

No lanço Santo Agostinho a extensão é menor cerca de 650 (seiscentos e

cinquenta) metros, sendo utilizado de igual modo, tanto para a captura dos bagres,

quanto para a pesca do apapá. Porém, a principal diferença deste é a apropriação do

espaço que ocorre majoritariamente por pessoas de “fora” da comunidade. Como a

maioria dos pescadores que usam este lanço não é morador da comunidade eles ficam

estabelecidos na própria casa flutuante que também compra o pescado.

Diferentemente do primeiro caso, neste lanço, as canoas são tripuladas

geralmente por uma única pessoa, isto está atrelado, sobretudo ao fato desses pescadores

não estarem com suas famílias na comunidade.

3 O CRÉDITO RURAL: OS CAMPONESES-RIBEIRINHOS E O PRONAF

Segundo Azevedo (2012), até por volta de 1990 nenhuma política pública

específica para esse setor foi adotada no Brasil. Além disso, havia grande imprecisão

quanto à definição conceitual sobre o assunto, hora sendo tratado como produção de

subsistência, hora como produção familiar ou pequena produção. O autor afirma ainda

que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)

somente fora desenvolvido graças, principalmente, ao estudo realizado pela Food and

Agriculture Organization (FAO), conjuntamente com o Instituto Nacional de

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Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que dera origem a um relatório publicado em

1996.

Entre os camponeses-ribeirinhos, porém o crédito via instituição bancária é visto

com “desconfiança”, cautela, pelo medo de aquisição de dívidas posteriores, caso não

consigam pagar os investimentos em tempo hábil (SANTOS, 2012). Segundo a autora

muitos são os desafios postos para que tal política de apoio à produção de base familiar

tenha êxito. Para ela a falta de fiscalização do uso dos investimentos e a falta de

assessoria técnica aos produtores são grandes gargalos que impedem que os objetivos

dos projetos sejam alcançados.

Entre os diversos problemas apontados pelos produtores estão: o limite do

crédito disponível para os camponeses-ribeirinhos da várzea na modalidade “B” que é

de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), o que não cobre os gastos da produção e,

principalmente o atraso na liberação dos recursos, que na maioria das vezes acontece

meses após as áreas já estarem plantadas.

Esse valor deve ser pago no prazo total de três anos, sendo o primeiro de

carência. Caso a dívida seja paga antes de completar os três anos o produtor tem direito

a um abatimento de R$ 1.000,00 (mil reais) na dívida. Mesmo assim, algumas famílias

têm passado de credores a devedores nos anos de baixos lucros da produção, em grande

parte devido aos fatores naturais que reduzem a quantidade e a qualidade dos produtos

agrícolas e isto explica a certa aversão existente a esse tipo de crédito.

Assim, o acesso ao crédito tem levado os produtores a ampliarem suas áreas de

cultivo, sobretudo de melancia, para poder atingir maiores rendimentos para quitação

das dívidas contraídas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os camponeses-ribeirinhos da Comunidade São Sebastião do Boto utilizam

diversos espaços do ambiente da várzea com diferentes finalidades. O uso destes

espaços compõem as territorialidades ribeirinhas na várzea do baixo rio Amazonas. Seja

nas atividades agropastoris ou da pesca os camponeses-ribeirinhos constroem seus

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modos de vida em meio ao ecossistema da várzea marcado pela sazonalidade das águas

nas estações enchente/cheia e vazante/seca na bacia amazônica.

Suas novas territorialidades, porém não podem ser entendidas considerando-as

fora do contexto mais geral em que ocorrem, pois estas são igualmente acompanhadas

de transformações tanto sociais entre os camponeses-ribeirinhos, como de

transformações empreendidas pela influência do mundo exterior com o qual

estabelecem relações e trocas, o que pode ser entendido pelo “abandono” do cultivo das

espécies extrativas e frutíferas como a seringa e o cacau, atualmente tidas como de

pouco interesse pelo mercado.

AGRADECIMENTO

Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Governo do Estado do Amazonas por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, com a concessão da bolsa de estudo.

REFERÊNCIAS

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BATISTA, V. da S.; ISAAC, V.; VIANA, J. P. Exploração e manejo dos recursos pesqueiros da Amazônia. In: RUFFINO, M. L. Coord. A pesca e os recursos pesqueiros na Amazônia brasileira. Manaus: Ibama/ProVárzea, 2004.

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NODA, S. do N. Org. Agricultura Familiar na Amazônia das Águas. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.

SANTOS, A. S. M. dos. Segurança alimentar no ritmo das águas: mudanças na produção e consumo de alimentos e seus impactos ecológicos em Parintins-AM. 240 p. (Tese de Doutorado. Centro de Desenvolvimento Sustentável. Universidade de Brasília). Brasília, 2012.

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WOLF, E. R. Revoluções sociais no campo. IN: SZMRECSÁNYI, T.; QUEDA, O. Vida rural e mudança social. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.