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DIDÁTICA DOS PROCESSOS EDUCATIVOS: PROXIMIDADES COM A ALFABETIZAÇÃO Este painel visa apontar a proximidade e os distanciamentos dos debates acerca da educação no contexto acadêmico e da práxis no contexto do trabalho docente em relação as concepções sobre os processos educativos envolvidos na alfabetização. Será constituído de três pesquisas. A primeira, trata de uma síntese do que foi produzido nas bases de dados da CAPES, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e da Scientific Electronic Library Online (SCIELO) no período de 2009-2013 nas categorias Linguagem, Letramento, Alfabetização e Cognição. A segunda, fornece subsidios teóricos a partir dos estudos de Alexander Romanovich Luria e de outros estudiosos do tema sobre o ensino da linguagem escrita na perspectiva de letramento num convite a refletir sobre o ensino da linguagem escrita e a repensar as concepções que tem fundamentado este processo. E o terceiro, foca no processo de conversão da atenção natural em atenção voluntária a partir da internalização de dispositivos simbólicos presentes no processo de ensino escolar com base nos pressupostos teóricos dos pensadores Lev Semenovitch Vigotski e também de Alexander Romanovich Luria sobre a transformação de funções mentais elementares em funções mentais superiores no percurso histórico genético do desenvolvimento humano e do papel da internalização simbólica no funcionamento cerebral e constituição da atividade mental complexa na criança, os indícios captados na pesquisa revelaram que o uso de signos reorganiza e complexifica o pensamento e comportamento da criança, tornando-os regulados e volitivos. Neste aspecto o painel congrega e converge as categorias de cognição, linguagem e letramento com a discussão a alfabetização, e o ensino da linguagem escrita. Palavras-Chave: Alfabetização, Linguagem, Letramento XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 1117 ISSN 2177-336X

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DIDÁTICA DOS PROCESSOS EDUCATIVOS: PROXIMIDADES COM A

ALFABETIZAÇÃO

Este painel visa apontar a proximidade e os distanciamentos dos debates acerca da

educação no contexto acadêmico e da práxis no contexto do trabalho docente em

relação as concepções sobre os processos educativos envolvidos na alfabetização. Será

constituído de três pesquisas. A primeira, trata de uma síntese do que foi produzido nas

bases de dados da CAPES, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em

Educação (ANPED) e da Scientific Electronic Library Online (SCIELO) no período de

2009-2013 nas categorias Linguagem, Letramento, Alfabetização e Cognição. A

segunda, fornece subsidios teóricos a partir dos estudos de Alexander Romanovich

Luria e de outros estudiosos do tema sobre o ensino da linguagem escrita na perspectiva

de letramento num convite a refletir sobre o ensino da linguagem escrita e a repensar as

concepções que tem fundamentado este processo. E o terceiro, foca no processo de

conversão da atenção natural em atenção voluntária a partir da internalização de

dispositivos simbólicos presentes no processo de ensino escolar com base nos

pressupostos teóricos dos pensadores Lev Semenovitch Vigotski e também de

Alexander Romanovich Luria sobre a transformação de funções mentais elementares em

funções mentais superiores no percurso histórico genético do desenvolvimento humano

e do papel da internalização simbólica no funcionamento cerebral e constituição da

atividade mental complexa na criança, os indícios captados na pesquisa revelaram que o

uso de signos reorganiza e complexifica o pensamento e comportamento da criança,

tornando-os regulados e volitivos. Neste aspecto o painel congrega e converge as

categorias de cognição, linguagem e letramento com a discussão a alfabetização, e o

ensino da linguagem escrita.

Palavras-Chave: Alfabetização, Linguagem, Letramento

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1117ISSN 2177-336X

PANORAMA DAS PRODUÇÕES EM EDUCAÇÃO DE 2009-2013 E SÍNTESE

DE SUAS BASES TEÓRICAS

Rodrigo Garcez

Mestre em Educação

Universidade Federal Fronteira Sul – UFFS

Professor efetivo na Secretaria Municipal de

Educação do Município de Erechim – RS E-mail: [email protected]

Eixo Temático 1 -Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.

Subeixo 1 – Didática: relação teoria/prática na formação escolar.

Agência Financiadora: não contou com financiamento. Resumo

Este artigo visa estabelecer as bases argumentativas e teóricas das pesquisas em

educação que se utilizam das categorias: Linguagem, Letramento, Alfabetização e

Cognição no período de 2009-2013. Este trabalho está constituído de duas secções. A

primeira secção está dividida em duas partes: a primeira trata de uma abordagem

quantitativa onde é possível observar as produções por base da dados, por ano e

categoria, o recorte por eixo de conceitos agrupados em alfabetização e letramento e

linguagem e cognição, e a segunda, de cunho qualitativo, tratará da forma com que os

eixos agrupados foram construídos levando em consideração métodos de alfabetização,

o papel do professor no processo, a produção de sentidos, o pensamento e a linguagem,

a linguagem e a subjetividade, as mudanças cognitivas relacionadas ao uso de suportes a

escrita, o processo de construção de significados e o uso de mapas conceituais como

estratégias de avaliação. A segunda secção, é uma síntese através de um mapa

conceitual das bases teóricas utilizadas pelas pesquisas consultadas na delimitação de

seus objetos. Nesta síntese e análise das diferentes produções consultadas encontra-se

um caminho que põem em perspectiva a prática docente fundamentada nos processos de

construção de significados, servindo de base para as considerações sobre o conceito

abordado na academia sobre as categorias pesquisadas e as encontradas na prática com

educadores. Foram utilizadas as bases de dados da CAPES, da Associação Nacional de

Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e da Scientific Electronic Library

Online (SCIELO) no período citado nas categorias Linguagem, Letramento,

Alfabetização e Cognição.

Palavras-chave: Linguagem, Letramento, Alfabetização e Cognição

Introdução

Para todo trabalho científico se faz necessária uma incursão as produções da área

que se deseja a pesquisa, esta revisão de literatura busca a construção de uma síntese

teórica argumentativa do debate acadêmico sobre alfabetização sob a perspectiva da

linguagem, cognição e letramento. Com essa delimitação de categorias, tem-se por

objetivo sistematizar o campo de conhecimento abordado nas produções relacionadas.

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No decorrer dela, foram elencados alguns eixos, que objetivam especificamente

delimitar as propriedades do objeto deste trabalho. Assim, a contextualização está

dividida em duas partes, que versam sobre o procedimento e as estatísticas da revisão

bibliográfica e as relações das categorias citadas. Nesta etapa, efetuou-se uma busca nas

bases da CAPES e da SCIELO no período de 2009-2013 nas seguintes categorias pré-

selecionadas: Linguagem, Letramento, Alfabetização e Cognição. Essas categorias

também foram tomadas duas a duas: Linguagem e Letramento, Linguagem e

Alfabetização, Linguagem e Cognição, Letramento e Alfabetização, Letramento e

Cognição, Alfabetização e Cognição.

Na base de dados da ANPED, foi efetuada a leitura de todos os trabalhos do

Grupo de Trabalho (GT) 10 – Alfabetização, Leitura e Escrita no período dos anos 2009

a 2013, conforme podemos ver no quadro abaixo, nas estatísticas por ano.

Quadro 01 – Trabalhos do GT 10 – Alfabetização, Leitura e Escrita no período de 2009 a 2013

Fonte: Base de dados da ANPED Na base da SCIELO, no primeiro movimento, foram utilizados os seguintes

parâmetros para buscas: pesquisa em artigos, método integrado, âmbito regional,

coleções do Brasil, idioma português, campo de ciências humanas e apresentação de

algum resultado. Na base da CAPES, foram feitas pesquisas na área de Educação em

teses e dissertações. Devido à base estar em processo de reformulação e as publicações

estarem sendo validadas, o período disponível para buscas consistentes foi de 2011 a

2013. Após a leitura dos artigos obtidos, foram identificados os escritos relevantes que

tratavam da educação infantil e anos iniciais e da faixa etária de até 10 anos. Foram

excluídos os que tratavam de inclusão e relatos de caso. Esta exclusão se justifica do

ponto de vista a buscar uma base global de conhecimentos e não correr o risco de perder

o foco em virtude de especificidades locais. A partir de então, os trabalhos foram

listados por agrupamento de categorias, junto com as demais bases de pesquisas, na

tabela final de eixos. No próximo quadro, apresentamos as estatísticas das buscas e das

produções selecionadas. Pode-se começar a perceber, então, o cenário das pesquisas

neste campo do conhecimento.

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Quadro 02 – Síntese da produção publicada nas bases de dados da CAPES e da SCIELO

CATEGORIAS

SCIELO

2009-2013

CAPES

2011-2013

1º Mov. 2º Mov. 1º Mov. 2º Mov.

01 Linguagem 324 18 734 34

02 Letramento 40 6 164 17

03 Alfabetização 87 14 318 32

04 Cognição 67 7 183 9

05 Linguagem e Letramento 6 0 76 7

06 Linguagem e Alfabetização 9 5 113 39

07 Linguagem e Cognição 13 5 123 3

08 Letramento e Alfabetização 1 0 116 15

09 Letramento e Cognição 2 0 9 2

10 Alfabetização e Cognição 2 0 9 1

Fonte: Base de dados da CAPES de 2011 a 2013 e da SCIELO de 2009 a 2013

Dessa forma, percebe-se que a produção vai rareando à medida que as categorias

são concatenadas. Esse comportamento se estende à base de teses e dissertações no

banco de dados da CAPES no período de 2011 a 2013 (período disponível às buscas

com dados revisados). É digno de nota também que muitas das publicações listadas nas

categorias individuais acabam se repetindo nas buscas de categorias concatenadas,

reduzindo, assim, ainda mais o número de produções na área. O passo seguinte foi a

leitura das produções escolhidas e seu agrupamento por eixo de conceitos nas categorias

selecionadas. Neste ponto, foram agrupadas as três bases – ANPED, SCIELO e CAPES

– por ano, categorias e eixos encontrados. As categorias foram agrupadas em eixos de

conceitos. Esses eixos se evidenciaram pela concentração comum de conteúdos

abordados nas categorias pesquisadas, conforme podemos ver na Figura 02.

Figura 02 – Fluxo da análise de conteúdo da revisão bibliográfica

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Fonte: arquivo pessoal do pesquisador

Passaremos agora à descrição detalhada de cada um dos eixos e das suas

respectivas dimensões. É de interesse levar em consideração que todas as publicações

analisadas se reservaram o direito, umas de forma explícita e outras nem tanto, de

mostrar que suas considerações não esgotam e nem têm por objetivo esgotar os assuntos

abordados. A partir de agora, os termos em itálico servem para sinalizar as dimensões

abordadas na Figura 02, oriundas dos eixos de conceitos. O texto seguirá, em fluxo

contínuo, abrangendo todos os tópicos sequencialmente.

Sobre os métodos de alfabetização, no eixo Alfabetização e Letramento,

Marreiros (2011, p. 27) faz uma diferenciação e menciona que eles podem ser

agrupados em métodos sintéticos e métodos analíticos. No primeiro, os processos se

desdobram em alfabéticos, silábicos e fonéticos; no segundo, desdobram-se em

palavração, sentenciação e contos. Nessas definições, percebemos dois caminhos

possíveis: um que privilegia a trajetória da compreensão da parte em direção à

totalidade (letra à palavra) e outro, no sentido inverso, do todo à parte (palavra à letra).

Na história brasileira, segundo a autora, até meados dos anos 1890, prevalecia o

método sintético. Por volta de 1896, o então revolucionário método analítico para o

ensino da leitura foi a base da reforma nos métodos de ensino. Com o avanço das ideias

construtivistas e sua institucionalização pelos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs), o discurso construtivista tornou-se hegemônico. O momento seguinte foi ao

encontro dos métodos, possibilitando o surgimento do pensamento interacionista.

Aqui percebe-se que Frade (2007 apud MARREIROS, 2011) deu atenção a um

elemento-chave, que pode trazer significância ao que será ensinado. Quando a leitura se

debruça apenas ao conhecimento e ao encadeamento de letras (método

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alfabético/fônico/silabação) e a escrita somente à ortografia e à caligrafia, o aluno

apenas decora e reproduz. Essa abordagem de conteúdo da alfabetização acaba por

articular o papel do professor com a relação da criação de sentidos durante o processo

alfabetizador. Isso porque, quando a criança é levada a perceber “[...] a importância do

aprendizado, começa a valorizar atividades que antes pareceriam sem sentido”

(BAGATINI, 2012, p. 99).

Dentro desse mesmo eixo, o papel do professor no processo de alfabetização e

letramento é trazido ao foco, uma vez que evidencia divergências entre o que é falado e

o que se constata empiricamente na sala de aula. Na pesquisa de Marreiros (2011), o

método sintético, que pode ser considerado tradicional, predomina nas práticas

alfabetizadoras. Embora todas as professoras participantes da pesquisa afirmem em seu

discurso que se baseiam em teorias construtivistas, socioconstrutivistas e

sociointeracionistas, em muitas situações conduzem seus processos de aprendizagem de

forma controladora. O mesmo fenômeno se evidenciou nas concepções de alfabetização

e letramento: foi unânime a compreensão de que a leitura e a escrita, a alfabetização e o

letramento caminham juntos e que estes dois processos fazem parte da entrada da criança no

mundo da escrita. Porém, na prática, evidenciou-se outra dinâmica, voltada para a

conclusão de tarefas em tempos determinados e sem apoio individual ao aluno que

apresenta dificuldades.

Logo, a produção de sentidos para a prática educativa no processo de

alfabetização e letramento posiciona-se entre as duas forças antagônicas: a teoria e a

prática, no contexto social em que tal produção vem a ocorrer sob a ação do professor.

A aprendizagem, segundo Maturana (1998 apud BRANDT, 2011), não ocorre

apenas pelo agir intelectual guiado pela razão, mas, sobretudo, pela emoção que

inaugura a ação do aprender. Partindo da premissa de que só conseguimos pensar com

as coisas que fazem sentido, percebemos que a produção de sentidos está intimamente

ligada às experiências vividas. O produzir sentido exige do professor um conhecimento

do outro, mesmo que esse conhecimento seja uma concepção hipotética do aluno à sua

frente, do entorno real ou imaginado que compõe a sua sala de aula, dos condicionantes

curriculares e das estratégias avaliativas impostas hierarquicamente, segundo Azevedo

(2011). Baseando sua tese nas categorias do Círculo de Bakhtin, Azevedo (2011) traz os

conceitos de “significados agregados” e de “significados de partida”, que se estruturam

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na tradição do ensinado e na inovação. Percebe-se que as práticas de letramento

constituem e estruturam a produção de sentidos, ao mesmo tempo em que desafiam os

professores, em uma arena assimétrica e desarmoniosa, a moldar sua prática em um

espaço-tempo de disputa e permeado pelas relações de poder historicamente criadas.

Assim, torna-se pertinente que busquemos um detalhamento que nos auxilie a

diferenciar as práticas de letramento do processo de alfabetização.

Na visão de Castro (2010), a alfabetização é uma etapa em que se aprende o

sistema de codificação e decodificação de fonemas e do sistema ortográfico da língua

escrita e, assim, é uma fase do letramento. O letramento, por sua vez, segundo Carvalho

(2009), refere-se à extensão e à qualidade do domínio da língua escrita, a ponto de usá-

la com desenvoltura ao desincumbir-se de suas atribuições sociais e profissionais. Logo,

o letramento traz consequências políticas, econômicas e culturais para os indivíduos e

grupos que se apropriam da escrita, e não pode ser tratado como um processo neutro.

Outra dimensão abordada nas pesquisas é que não existe um nível zero de

letramento. Toda criança e/ou adulto analfabeto traz consigo um grau de letramento

variável, influenciado pelo seu nível social e cultural.

Com essa perspectiva em mente, encadeamos a dificuldade de pôr em prática a

teoria na formulação de sentidos relacionados na perspectiva de alfabetização e

letramento nos níveis díspares que encontramos na sala de aula. Nos próximos

parágrafos, abordaremos a seguinte tríade: concepções de leitura, os gêneros na

produção textual e sua relação com a avaliação.

Dentro da dimensão da leitura e produção textual, Sercundes (1997 apud

SOUZA, 2010) discute basicamente dois tipos de práticas, que respondem a diferentes

concepções do ato de escrever e a diferentes concepções metodológicas. São elas:

produções textuais sem atividade prévia e produções textuais com atividade prévia. Na

primeira concepção, a escrita é tomada como um dom. O aluno é solicitado a escrever

sobre um assunto, sobre o qual geralmente não tem domínio. A segunda concepção,

aquela que subentende uma atividade prévia, onde a escrita pode ser vista como

resultante de um processo mecânico de aquisição de informação através da leitura ou

demandar esforço intelectual do aluno, onde o planejamento da parte do professor é

fundamental e pode se organizar didaticamente na “… leitura e discussão a respeito do

assunto a ser estudado; levantamento e leitura de textos extras a respeito do assunto;

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organização das ideias levantadas; execução do texto. Assim, todas as atividades prévias

darão suporte ao processo de produção.” (SOUZA, 2010, p. 24)

Em decorrência desta atividade, a redação tradicional começa a ser questionada,

abrindo um caminho favorável ao ensino dos gêneros do discurso, que deixam de ser

vistos como uma estrutura tipológica. Assim, priorizam-se as interações discursivas

entre sujeitos e aproximam-se as práticas de escrita do aluno à realidade. Nesta

perspectiva percebe-se que o vetor que deve guiar a prática docente é a criação de um

espaço pautado em subsídios para que o aluno conquiste e saiba se expressar no seu

próprio estilo. Esse estilo é entendido como marca de sua individualidade, promovendo

sua autonomia e criticidade através da escrita.

Nas considerações do segundo eixo, Linguagem e Cognição, entra-se no campo

da Psicologia e de suas contribuições à Educação. A primeira dimensão a ser abordada é

a do pensamento e linguagem. A compreensão de como a criança constrói o

desenvolvimento e como ela se articula nesse processo tem se modificado no âmbito

educacional, psicológico e social. Nas produções pesquisadas, podemos perceber três

formas predominantes de compreendê-la, sob perspectivas diferentes, as quais podem

contribuir para melhorar nosso entendimento. Tais formas correspondem a três

principais estudiosos: Piaget (1975), Wallon (1989) e Vygotsky (2001). Para Piaget

(1975), segundo Pereira (2012), o pensamento representativo tem início com a

capacidade de evocar objetos. Essa capacidade promove transformações, as quais

ampliam os conhecimentos oriundos da inteligência prática, e permite a elaboração de

operações complexas que os atos, por sua limitação temporal, não alcançam. Ele toma a

linguagem como uma condição necessária na construção de operações lógicas, mas não

atribui a ela importância máxima.

Já Vygotsky (2001) coloca a linguagem no lugar central da própria estruturação e

organização do pensamento. “A linguagem não serve como expressão de um

pensamento pronto. Ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se

modifica. O pensamento não se expressa, mas se realiza na palavra” (VYGOTSKY,

2001, p. 142). O trabalho de Vygotsky (2001) também aponta a precedência da

gramática sobre a lógica e, neste ponto, aproxima-se de Wallon (1995) e Piaget (1975).

Isso porque, segundo Pereira (2012), Piaget (1975) demostra em suas pesquisas que a

criança usa orações subordinadas muito antes de aprender os significados

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correspondentes e, em Wallon (1995), há precedência da linguagem em relação ao

conhecimento advindo da experimentação. Essas visões aparentemente assíncronas

acabam por ampliar a compreensão desse campo do conhecimento, uma vez que cada

pesquisador se posiciona em uma perspectiva sobre o fenômeno do pensamento e da

linguagem. De acordo com Vygotsky (2008), é o significado da palavra que altera a

relação entre pensamento e palavra. Essa afirmação nos remete aos processos de

construção de significados e suas relações com o desenvolvimento do humano.

Segundo Correia (2009), muitos autores concordam que o processo de

significação representa um aspecto principal da cognição humana e que o Processo de

Construção de Significados (PCS) envolve diferentes ciências. Em sua produção, a

autora salienta que é preciso inserir-se em diferentes áreas – Psicologia, Linguística,

Filosofia e Biologia –, no sentido de tentar mapear o processo. Além da linguagem, na

obra da autora, é possível perceber, outros três componentes: a interação, um objeto e a

atenção dirigida. A interação se justifica pela existência necessária de outro indivíduo,

presencial ou não, que instiga e direciona as tentativas de construção de significados. O

objeto, a possibilidade de construir significados, envolve um artefato material, e este

está sempre impregnado de significados culturais. Por último está a atenção dirigida,

pois, para significar, é necessário estar voltado para algo. Com o objetivo de esclarecer a

importância dos estudos nessa área, a autora dá relevância ao tema, articulando a

Psicologia e a Linguística, com vistas ao desenvolvimento da consciência humana.

Correia (2009) não esgota o tema, mas fornece subsídios para outras construções

teóricas ou empíricas através da articulação com a Psicologia. Uma vez que o signo é

um produto social cuja função é gerar e organizar processos psicológicos, a mediação

entre o indivíduo, os outros e ele mesmo se tornando a forma mais adequada para a

investigação da consciência humana. Logo, a constituição do sujeito pela linguagem

passa a ser outra dimensão a ser considerada: a constituição da subjetividade na criança

passa pela linguagem.

Segundo Ré (2012), nos escritos do Círculo de Bakhtin, o termo subjetividade é

bastante recorrente e às vezes chega a se confundir com individualidade. Sendo assim, a

subjetividade se manifesta em um evento singular integrado a uma situação real e é

fruto de um diálogo de vozes sociais que ecoam na palavra do sujeito. Vista sob outro

ângulo, cada manifestação de linguagem é marcada pela subjetividade do locutor, é a

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sua materialização, uma produção de signos e de ideologia que vai se construindo

socialmente nas relações com o outro. Levando essas considerações ao universo da

criança, é possível refletir que elas utilizam o discurso do interlocutor para elaborar seu

próprio discurso. As produções linguísticas das crianças estão relacionadas a um espaço

intersubjetivo no diálogo, pois sua linguagem difere da linguagem do adulto, uma vez

que nem todos os elementos da linguagem do adulto serão observados pela criança.

Esse entendimento permite compreendermos o conceito de Bakhtin (1997) de que a

criança não adquire a linguagem, mas penetra no fluxo da comunicação verbal e nele há

o despertar da sua consciência. Com essa retomada de conceitos, pode-se afirmar que o

processo (ininterrupto) de constituição subjetiva tem início com o despertar da

consciência e se desenvolve com ela e por meio dela.

Nas considerações a seguir, focaremos a atenção nas pesquisas que abordam a

representação por signos, internos ou externos, quanto ao processo de aquisição da

escrita e sua relação com os meios de suporte à escrita. A escrita é vista como parte

integrante da linguagem, porém subsequente ao domínio da linguagem verbal.

Intimamente ligada aos conceitos de alfabetização e letramento, o uso de suporte da

escrita pode abranger muitas facetas na interface do aluno com seu meio social. Assim,

o termo alfabetização é aplicado a muitos outros campos do conhecimento. Neste ponto,

nos remetemos a Frade (2005, p. 4 apud GLÓRIA, 2011, p. 28):

[...] a transposição do termo alfabetização para outros campos é bem

frequente quando se trata de ensinar outros códigos. Assim, na falta de outro

termo, perde-se um pouco seu sentido etimológico ligado a letra para associá-

la ao aprendizado inicial de outros signos. O uso de suporte da leitura e da escrita inaugura, em nossa época, a tecnologia

computacional, que torna também o sentido de letramento algo mais abrangente: o

letramento digital. Fazendo uma retomada histórica e citando Levy (1990, p. 118),

Glória (2011, p. 26) diferencia culturas letradas e culturas orais no sentido das diferentes

percepções que ambas podem apresentar na forma como racionalizam seus objetos. A

autora justifica o uso do suporte digital no período da aquisição da escrita como não

sendo nem melhor nem pior, apenas que o pressuposto de letrar digitalmente deixará

indivíduos diferentes.

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Seguindo o diálogo com as diversas publicações consultadas em relação a

suportes, agora na dimensão da prática educativa, a utilização de mapas conceituais

como ferramenta estratégica de organização do professor e como oportunidade de

avaliação por parte do professor em relação ao aluno vem como uma possibilidade de

contribuir para uma aprendizagem significativa. A aprendizagem significativa e a

avaliação formativa podem ser vistas como complementares, uma vez que estão

posicionadas em etapas diferentes do processo de ensino-aprendizagem. De acordo com

Ausubel, Novake e Hanesian (1980 apud BORUCHOVITCH, 2010), a aprendizagem

significativa subordina-se a quatro princípios: diferenciação progressiva, reconciliação

integrativa, organização sequencial e consolidação.

A diferenciação progressiva implica a hierarquização dos conceitos, dos mais

abrangentes aos mais específicos e particulares. A reconciliação integrativa envolve o

estabelecimento de relações e correlações entre os conceitos e, ainda segundo

Boruchovitch (2010), admite o pressuposto de cuidado com a elaboração do material

instrucional utilizado, que deve contemplar as semelhanças, diferenças e eventuais

inconsistências entre as ideias trabalhadas. A organização sequencial envolve a

disposição sucessiva dos tópicos e unidades a serem abordados, levando em

consideração a logicidade, a gradualidade e a continuidade. A consolidação acontece

quando os conteúdos são efetivamente aprendidos e apreendidos pelo aluno, quando

este não somente o reproduz, mas consegue se valer deles para resolver diferentes

situações complexas. Nesse ponto, o compromisso docente confere ao processo um

caráter de promoção de autonomia, e não somente subordinação. Segundo Boruchovitch

(2010), a utilização dos mapas conceituais como instrumento de avaliação confere

dinamicidade e progressividade ao ensino e à aprendizagem, favorece a identificação

dos conhecimentos apropriados pelo aluno e orienta as ações e intervenções docentes no

aperfeiçoamento do ensino e na ampliação da aprendizagem. Durante este processo de

pesquisa, todos os trabalhos pesquisados estabelecem sua fundamentação em um ou

dois dos quadrantes da figura a seguir.

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Figura 03 – Mapa conceitual parcial dos eixos de categorias abordados na revisão bibliográfica

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador

Há duas colunas, as quais, neste caso, estabelecem a dimensão prática e a dimensão

teórica. Essa tensão se evidenciou na preocupação com que todos os autores buscaram

abordar a multidimensionalidade dos objetos quando se tratava da educação. As duas

linhas que se observam na figura sinalizam a base filosófica/epistemológica e a base

psicológica com que se estabelecem as pesquisadas abordadas. Além disso, permite

entender também a dimensão teórica e prática do processo de ensino-aprendizagem, sob

a perspectiva da psicologia cognitiva e/ou histórico-cultural. No centro da figura,

unindo as dimensões teoria e prática e os eixos epistemológico e psicológico, o eixo do

conhecimento que se destaca é o da produção de sentidos, de um lado como produto do

trabalho docente e de outro como via de acesso do aluno ao conhecimento e à cultura. A

função do professor aparece no topo dessas relações, posicionado como um elemento

mediador na tensão entre teoria e prática. Essa tensão é entendida como um processo

dialético que acaba movendo toda a estrutura à medida que, ligada à produção de

sentidos, exerce influência sobre a construção de uma nova percepção da realidade ao

aluno. Com sua percepção de realidade alterada, o aluno responde, solicitando uma

nova configuração na produção de sentidos e exigindo um novo posicionamento do

professor. A essa base teórica sintetizada, acrescentam-se agora os objetos delineados

nas pesquisas desta revisão bibliográfica, nas suas respectivas bases teóricas e

tendências à teoria e/ou à prática educativa.

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Figura 04 – Mapa conceitual completo dos eixos de categorias abordados na revisão bibliográfica

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador Os métodos de alfabetização posicionam-se no quadrante

teórico/epistemológico, e os desdobramentos sintético e analítico, no quadrante

prático/epistemológico, por estarem intimamente ligados à prática da linguagem. O

processo de letramento pode ser entendido como subsequente a certo nível de

alfabetização e, em seguida, atua paralelamente a esse processo. Como tal processo está

ligado à prática, pode apresentar certas defasagens, as quais, pela perspectiva da

recuperação lúdica do letramento emergente, podem ser amenizadas no período de

transição da educação infantil ao ensino fundamental. Ainda na dimensão

epistemológica, aparecem a leitura e a produção textual, as quais ocorrem quase

simultaneamente ao processo de alfabetização, porém são subsequentes em relação ao

processo de letramento. O eixo da produção de sentidos é mais bem definido ou

graduado sob a ótica dos significados de partida e dos significados agregados pela

educação. Os conceitos de pensamento, linguagem, estruturação por mapas mentais e a

relação com a linguagem são abordados na perspectiva histórico-cultural. Porém, como

se trata de um movimento de duas vias (externo à sociedade e interno ao indivíduo), é

pertinente não reduzir a percepção ou privilegiar somente uma dessas vias.

Considerações finais

Na realidade percebida pela leitura de diferentes produções, encontramos um

caminho que põem em perspectiva esta servindo de base para as considerações sobre o

conceito abordado na academia sobre as categorias pesquisadas e as encontradas no

pesquisa com educadores. Os trabalhos consultados estão fundamentados de forma

polarizada ou sobre a perspectiva da psicologia cognitivista ou na psicologia histórico-

cultural. Porém independente da base teórica escolhida a estrutura do processo didático

de ensino aprendizagem se estabelece no modelo do professor como elemento

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1129ISSN 2177-336X

13

posicionado na tensão existente da teoria em relação a prática com ao processo de

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15

CONCEPÇÃO DE ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA: ABORDAGEM A

PARTIR DOS ESTUDOS DE ALEXANDER ROMANOVICH LURIA

Lorita Helena Campanholo Bordignon

Mestranda em Educação

Universidade Federal Fronteira Sul – UFFS

Professora efetiva na Secretaria Municipal de

Educação do Município de Santiago do Sul- SC

E-mail: [email protected]

Marilane Maria Wolff Paim

Doutora em educação

Professora titular da Universidade Federal da Fronteira Sul- UFFS.

Atua no programa de mestrado em educação e no curso de pedagogia.

Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa em Educação,

Formação Docente e Processos Educativos.

É bolsista CAPES do Programa Institucional de

Bolsas de Iniciação a Docência - PIBID,

coordenando o Subprojeto PIBID Pedagogia.

E-mail: [email protected]

Eixo Temático 1 -Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação

pública.

Subeixo 1 – Didática: relação teoria/prática na formação escolar.

Agência Financiadora: não contou com financiamento.

Resumo

O ensino da linguagem escrita numa perspectiva de letramento é um desafio aos

professores e à escola, e por isso, a discussão em torno das concepções do ensino da

linguagem escrita tem permeado diferentes estudos na área da educação e possibilitado

aos professores repensarem o processo de alfabetização e letramento e o modo pelo qual

tem sido conduzido. A importância da escrita para o dia a dia dos sujeitos ressalta a

necessidade de um ensino da linguagem escrita que seja efetivo, permitindo que estes

desenvolvam esta habilidade nas suas atividades cotidianas, para a relação com o outro

e exercício da cidadania. Frente ao exposto, este artigo, utilizando-se de uma abordagem

bibliográfica, a partir dos estudos de Alexander RomanovichLuria e de outros

estudiosos do tema, dedica-se, à abordagem da concepção de ensino da linguagem

escrita que fundamenta o ensino da linguagem escrita em uma perspectiva de alfabetizar

e letrar. Por isso, este artigo convida a refletir sobre o ensino da linguagem escrita e a

repensar as concepções que tem fundamentado este processo, trazendo contribuições à

atuação do professor alfabetizador.

Palavras-chave: Criança. Ensino da Escrita. Prática Pedagógica.

Introdução

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O ensino da língua escrita tem sido objeto de estudos de muitos pesquisadores e

teóricos da educação, entre elas as de: Soares (2000; 2001; 2004), Smolka (1991), Rojo

(2000), Arroyo (2000), Tfouni (1997), Mortatti (2011), Paim (2001) e Frago (1993);

bem como nos encontros científicos no campo da educação, a exemplo da ANPEd

(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e no GT (Grupo de

Trabalho) de Alfabetização, Leitura e Escrita, que, ao longo dos anos vem contribuindo

para melhor compreender como esta linguagem tão importante e presente na vida dos

sujeitos inseridos em sociedades letradas, foi sendo concebida nos diferentes momentos

históricos, sociais e culturais e de como esta foi sendo ensinada na e pela escola.

Embora sendo um tema recorrente em pesquisas em educação, principalmente

no que se refere à alfabetização e ao letramento, a sistematização do ensino da

linguagem escrita provoca inquietações, atualmente, entre os educadores, tendo em vista

a relevância para os sujeitos da apropriação do sistema gráfico de escrita, bem como a

apropriação destas habilidades e competências nas diversas práticas sociais e culturais

em que se demanda o uso da escrita.

A relevância da escrita, e consequentemente seu ensino, justifica-se,

principalmente, porque de alguma maneira o sujeito interage e necessita fazer uso, da

escrita. Nucci (2001, p. 47) escreve que: “Numa sociedade como a nossa, a escrita é

mais do que uma tecnologia; ela se tornou um bem social indispensável para enfrentar o

dia-a-dia, seja nos centros urbanos, seja na zona rural”.

No entanto, embora seja uma criação humana, a escrita não é inata

(BORDIGNON; PAIM, 2015). As habilidades e as competências para escrever não

nascem prontas no sujeito. Logo, a escrita precisa ser aprendida e, portanto, necessita

ser ensinada. Neste sentido, Koerner (2010, p. 47) salienta que “adquirir as habilidades

da leitura e da escrita significa adquirir os instrumentos necessários para nela interagir e

isto implica no redimensionamento da prática pedagógica”.

Partindo-se desta abordagem inicial do ensino da linguagem escrita, este estudo,

tendo como base os escritos de Alexander Romanovich Luria (1979, 1986, 1988) e de

outros teóricos que abordam sobre as concepções e os processos de ensino da linguagem

escrita na alfabetização e no letramento, norteia-se por uma questão central que tem

permeado o cotidiano de muitos alfabetizadores no processo de desenvolvimento de

práticas pedagógicas alfabetizadoras, especificamente no ensino da linguagem escrita,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1133ISSN 2177-336X

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sendo: qual a concepção de ensino da linguagem escrita que fundamenta a

alfabetização em uma perspectiva de letramento?

Portanto, o presente trabalho traz, questões em torno da aquisição da escrita pela

criança sob a perspectiva de Luria e de outros autores, mas se dedica mais

especificamente, em um segundo momento, à abordagem da concepção de ensino da

linguagem escrita que fundamenta o ensino da linguagem escrita em uma perspectiva de

alfabetizar e letrar, trazendo a atuação do professor nesta perspectiva.

Para, tanto, utilizou-se da pesquisa bibliográfica como forma de conhecer e

agregar ao estudo a perspectiva de alguns dos autores acerca do tema discutido.

Breve abordagem acerca do desenvolvimento da escrita pela criança

O processo de desenvolvimento da escrita pela criança foi objeto de estudo de

Alexander Romanovich Luria (1979, 1986, 1988), um neuropsicólogo russo

considerado “um dos expoentes do século XX no estudo e na compreensão dos

processos psíquicos” (OLIVEIRA; REGO, 2010, p. 107).

Os estudos de Luria (1988) estiveram fundamentados na perspectiva

vygotskyana, mais especificamente, na concepção histórico-cultural. Para Vygotsky:

“todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o

meio básico para dominá-las e dirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua

estrutura como parte indispensável, do processo como um todo” (VIGOTSKY, 1998, p.

70).

Gontijo (2002, p. 19) citando Vygotsky (1987) corrobora com o apresentado ao

destacar que,

[...] Os signos nasceram da necessidade de os homens comunicarem-se com

os seus parceiros e de intervirem sobre eles, e os instrumentos resultaram da

ação do homem sobre a natureza. Desse modo, signos e instrumentos são

mediadores das relações construídas pelos próprios homens para garantir a

continuidade da história e a reprodução da espécie [...] o instrumento é um

diretor da atividade externa do homem e, por isso, está dirigindo para o

domínio da natureza, enquanto o signo é um meio de intervenção sobre si

mesmo e sobre as outras coisas pessoas e, dessa forma, está dirigindo para a

atividade interna.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1134ISSN 2177-336X

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Para Luria (1988) assim como o trabalho, a linguagem é um meio pela qual o

sujeito desenvolve sua consciência. A linguagem participa do processo de “constituição

do sujeito que fala/escreve, mas também dos modos como esse sujeito fala/escreve”.

Sendo assim, a linguagem afeta o desenvolvimento do sujeito enquanto um ser social,

um ser que pensa e “se constitui como um sujeito discursivo” (KOERNER, 2010, p.

34).A linguagem escrita, por exemplo, envolve muito mais que o “ato de grafar sons da

fala oral”, ela “expressa e materializa significados” (GONTIJO, 2002, p. 19).

É na escola que a criança acentua a sua relação com a escrita, no entanto,

conforme Matencio (2012, p. 16),

[...] o contato da criança com a escrita acontece antes mesmo do início de sua

aprendizagem sistematizada, pois ela já adquiriu „um patrimônio de

habilidades e destrezas‟, bem como de técnicas primitivas com funções

semelhantes às da escrita que, na verdade, irão se perder na escola, onde a

criança terá acesso a um „sistema de signos padronizados e econômicos‟,

culturalmente elaborados.

Neste sentido, Luria (1988) defendeu a ideia de que a compreensão do modo

pelo qual se desenvolve o processo de aquisição da escrita deveria ser anterior ao

processo sistematizado de alfabetização, por entender que os primeiros registros

realizados no caderno escolar pela criança não representavam o primeiro estágio do

processo de escrita.

Luria (1988) também chamou atenção para a importância de o professor

conhecer um pouco das experiências que a criança já possui acerca da ou com a escrita

Assim, as pessoas que interagem com a criança, neste contexto, com especial atenção

para o papel do professor, devem conhecer e compreender os processos, as habilidades e

as condições que favorecem para que a criança se aproprie da escrita (GONTIJO, 2002).

Rojo (1998, p. 69) complementa que “[...] nenhum processo de ensino pode se

realizar, se o professor desconhece o que acontece com seu aluno no seu processo de

aprendizagem”.

Frente ao abordado, que destaca acerca dos contextos culturais e sociais letrados

nos quais os sujeitos interagem, da necessidade social do domínio das habilidades da

leitura e da escrita pelos sujeitos, e do efetivo uso destas habilidades nos mais diversos

contextos sociais letrados, surgea necessidade de propor algumas reflexões acerca da

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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concepção de ensino da linguagem escrita que fundamenta a alfabetização em uma

perspectiva de letramento, trazendo aspectos relacionados à atuação do professor nesta

perspectiva.

Qual concepção de ensino da linguagem escrita fundamenta a alfabetização em

uma perspectiva de letramento?

Inicialmente, cumpre destacar a importância do professor em conhecer sobre o

processo de desenvolvimento da linguagem escrita pela criança, para que possa atuar e

fazer as mediações necessárias tendo em vista a efetiva e significativa aprendizagem da

escrita (BORDIGNON; PAIM, 2015). Assim, rompe-se com a concepção de ensino da

escrita enquanto um processo mecânico, “alienado, unilateral e solitário já que as

experiências vinculadas pressupõem a relação entre um ‟eu‟ e um „tu‟” (MORTATTI;

FRADE, 2014, p. 172). Tanto a linguagem oral quanto a linguagem escrita se

estabelecem pelo diálogo, pela comunicação entre os sujeitos, portanto “determinada

tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”

(BAKTHIN, 1977, p. 113).

Nesta perspectiva de compreensão da linguagem oral ou escrita enquanto

elemento de criação da cultura, entendida enquanto meio de interação e comunicação

entre os sujeitos, requer pensar a superação de concepções que defendem o ensino da

linguagem escrita como um “objeto estritamente escolar, como forma de uma sucessão

de etapas em progressão linear, fragmentada e cumulativa de ensinar letras, sílabas,

palavras e textos” (MORTATTI; FRADE, 2014, p. 175).

As inquietações sobre o ensino da escrita se acentuaram a partir dos estudos da

psicologia, da linguística e da área da educação, além das críticas tecidas por Paulo

Freire nos anos 1960 a 1970 as quais denunciavam “as práticas alienantes de ensino,

defendendo a alfabetização como leitura de mundo e da dimensão política do ensino”

(MORTATTI; FRADE, 2014, p. 175).

No entanto, a dúvida, a dificuldade em superar os modelos de alfabetização que

foram sendo cristalizados durante muito tempo na história da educação brasileira,

marcadas pelo ensino descontextualizado da escrita, caracterizado pelos exercícios

repetitivos, do ensino das famílias silábicas, textos com meras palavras repetidas, sem

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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uma proposta de ensino que fez ou faz pouca ou nenhuma relação com a escrita

enquanto linguagem dialógica. A angústia, a insegurança por parte de muitos

educadores em trabalhar o ensino da escrita neste momento de tantos questionamentos

de como ensinar? Que método utilizar? Que concepção deensino da linguagem escrita

sustenta uma proposta pedagógica concebendo a escrita enquanto linguagem viva,

portanto, carregada de sentido e de significados atribuídos nos mais diversos contextos

sociais e culturais. Como superar os modelos de ensino que não considera o processo

sócio-histórico da escrita, já ultrapassados, porém, cristalizados nos contextos das

escolas? As indagações levantadas ao tecer esta reflexão nos remetem a pensar sobre as

experiências vivenciadas no processo de alfabetização, os fazeres, as propostas de

ensino da linguagem escrita “[...] Não recebi orientação para agir assim; fazia-o, talvez,

porque assim fizeram comigo” (KOERNER, 2010, p 63).

Koerner (2010, p. 55) escreve que “o apego a certas práticas arraigadas poderá

dificultar a introdução de propostas que desestabilizem as bases já sedimentadas”. Neste

contexto, muitos professores sentem-se desafiados a buscar outras concepções que lhes

permitam desenvolver uma proposta de ensino da escrita numa perspectiva de

alfabetizar e letrar. Assim, aponta-se para a necessidade de desenvolver propostas de

ensino em que a linguagem escrita seja concebida e configurada “como efetivo objeto

de ensino. Um objeto cultural que só pode ser apreendido pelos processos reflexivos e

cognitivos do sujeito mediados pelos professores (ou interlocutores experientes), no

contexto de situações significativas e práticas sociais” (MORTATTI; FRADE, 2014, p.

177).

Nesta perspectiva, o ensino da escrita deverá pautar-se na concepção da escrita

enquanto linguagem. Gontijo (2008, p. 38) observa que

[...] o desenvolvimento da escrita integra o desenvolvimento da linguagem na

infância e possibilita que a criança amplie e diversifique duas possibilidades

de expressão por meio da linguagem e de integração com outras pessoas.

Esse é um princípio fundamental, pois se alicerça na ideia de que a escrita é

linguagem e não apenas um sistema de símbolos gráficos que representa os

sons da fala.

Uma proposta pedagógica de ensino da linguagem escrita em uma perspectiva de

alfabetizar e letrar implicam propor atividades em que a leitura e a escrita sejam

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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contextualizadas “a partir de práticas cotidianas reais de escrita da criança. É preciso

que ela perceba as funções da escrita e sinta-se inserida num contexto equivalente ao

seu cotidiano” (NUCCI, 2001, p. 69).

Conforme registra Luria (2006), a escrita tem função social “se realiza,

culturalmente, por mediação” (LURIA, 2006, p. 144). Tendo a escrita função social,

requer da escola, mais especificamente do professor, compreender que o sujeito, a

criança, ao chegar à escola “traz consigo toda uma trajetória de contatos com a

linguagem escrita que essa mesma escola, dada a sua necessidade (e preocupação de

controle do ensino,acaba por não levar em conta” (KOERNER, 2010, p. 43).

A escola ignorando a diversidade de experiências de cada criança sobre a escrita

e os usos da escrita socialmente, homogeneíza, além do que propõem, na maioria das

vezes, propostas pedagógicas ancoradas em concepções já ultrapassadas, ditas

“tradicionais” que já não dão conta, ou talvez nunca dessem, de o sujeito se apropriar

das habilidades e competências da escrita enquanto exercício de cidadania e a escrita

passa a ser vista e aprendida pelo sujeito como algo, relacionado à escola, tornando-se

alheia, sem relação com suas vivências sociais e culturais, que envolvem a escrita.

(KOERNER, 2010). Assim, “[...] o tão necessário envolvimento do sujeito em práticas

sociais com a escrita – o „letrar-se‟ – dá lugar a uma série de exercícios que visam tão

somente a sua alfabetização, ou seja, o domínio do aspecto mecânico da escrita, das

relações entre letra som” (KOERNER, 2010, p. 43).

Neste sentido, embora com publicações de documentos oficiais chamando a

atenção para um ensino pautado mais na linguagem escrita enquanto elemento

discursivo de interação entre os sujeitos dos mais diversos contextos, a efetividade desta

proposta de ensino fundamentada na concepção dialógica da linguagem escrita, tem

encontrado dificuldades de efetivar-se enquanto prática, no contexto da escola.

O professor vivencia um tempo de construção de propostas de ensino em que ele

precisa “reconhecer o movimento da linguagem que se realiza em diferentes situações

de interação pela palavra escrita” (MATENCIO, 2012, p. 46). Movimento este, que é

resultado de mudanças históricas que se vinculam ao saber social.

Neste sentido, a alfabetização, mais especificamente o ensino do sistema de

escrita alfabético sistematizado, ensinado na escola e pela escola precisa estar vinculado

com a escrita enquanto elemento de comunicação, interação entre os sujeitos. Não basta

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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mais ensinar meramente codificar e decodificar, a desenhar letras, faz-se necessário

ensinar o sujeito de tal maneira que este se aproprie de habilidades da escrita para que

possa utilizá-la em suas práticas sociais. Desenvolver propostas de ensino a partir do

entendimento da dimensão social, cultural, histórica da linguagem, conforme escreve

Frade (2007) requer

[...] um conjunto amplo de decisões relacionadas ao como fazer e implica

decisões relativas a métodos, à organização da sala de aula e de um ambiente

de letramento, à definição de capacidades a serem atingidas, à escolha de

materiais, de procedimentos de ensino, de formas de avaliar, sempre num

contexto da política mais ampla de organização do ensino [...] (FRADE,

2007, p. 29).

Neste sentido, é fundamental conhecer as práticas de letramentoque caracterizam

o entorno social em que vivem os alunos a fim de que se torne possível compreender

sua maior ou menor familiaridade com os diferentes usos da escrita que é propostana

escola, bem como a organização de formas de ressignificar as práticas de origem de

modo a facultar a participação desses alunos em novos eventos de letramento,

ampliando sua mobilidade social. Freire corrobora quando observa que, “nas condições

de verdadeira aprendizagem, os educandos vão se transformando em reais sujeitos da

construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador igualmente sujeito

do processo” (FREIRE, 1996, p. 26).

Sendo assim, tendo conhecido as práticas de letramento que caracterizam o

entorno sociocultural em que vivem os alunos, de modo a entender quais eventos de

letramento são familiares a eles e quais eventos lhe são desconhecidos, tem-se uma

segunda e importante tarefa: entender como estes alunos usam a escrita, quais os

domínios que construíram e sobre quais habilidades implica adotar uma concepção

social da escrita, em contraste com uma concepção de cunho tradicional que considera a

aprendizagem de leitura e da escrita trabalhada artificialmente, sem significado. A

função social da escrita deve estar clara para todos os envolvidos no processo: qual é a

sua importância e onde é utilizada na nossa sociedade. Assim, o processo de

alfabetização e letramento pode ser entendido como um processo interdiscursivo de

apropriação das múltiplas linguagens disponíveis na cultura, e a sala de aula também

deve ser vista como um espaço permeado por sujeitos com histórias diferentes que

aprendem de formas diversas e em momentos diversos.(PAIM, 2009)

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1139ISSN 2177-336X

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Nessa perspectiva o professor alfabetizador deixa de ser o transmissor de

conhecimento e passa para a condição de “mediador”, cabe a ele criar condições para o

aluno apropriar-se do conhecimento.

Considerações finais

Ao abordar, brevemente, acerca do desenvolvimento da escrita pela criança e,

com maior ênfase, a concepção de ensino da linguagem escrita que fundamenta a

alfabetização em uma perspectiva de letramento, o estudo trouxe para a discussão

desafios à prática pedagógica no processo de alfabetização e letramento, com vistas a

superar concepções ultrapassadas do ensino da linguagem escrita e estreitar laços entre

o ensino e as experiências de vida dos sujeitos.

A escrita, desde muito tempo, faz parte da vida das pessoas, sendo a forma de

realizá-la – isto é, de materializar, por meio de símbolos padronizados, sentimentos,

ideias e perspectivas – aperfeiçoadas nos distintos contextos sociais e geográficos ao

longo do tempo. Hoje, sem dúvida, a escrita, e também a leitura assume um papel

essencial, uma vez que subsidia, a independência do sujeito, comunicação entre

pessoas,a convivência em sociedade e a relação da pessoa com o mundo.

É cada vez mais visível a necessidade dos sujeitos em saberem escrever e

conseguirem efetivamente utilizar a escrita no seu cotidiano. Por isso, a importância do

processo de ensino da linguagem escrita ser fundamentado por uma concepção

pedagógica que possibilite relacionar este processo com as experiências vivenciadaspelo

aluno (um sujeito não neutro), tornando-o com sentido para quem aprende.

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APRENDIZAGEM ESCOLAR, DISPOSITIVOS SIMBÓLICOS E ATENÇÃO

AUTORREGULADA E VOLUNTÁRIA NA CRIANÇA: RELATOS DE UMA

PESQUISA

Angela Zamoner Mestre em Educação

Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS

Professora efetiva na Secretaria Municipal de

Educação do município de Caxambu do Sul-SC

E-mail: [email protected]

Eixo Temático 1 - Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública.

Subeixo 1 – Didática: relação teoria/prática na formação escolar. Agência Financiadora: não contou com financiamento.

Resumo: Tendo como parâmetro os pressupostos teóricos dos pensadores Lev

Semenovitch Vigotski e Alexander Romanovich Luria sobre a transformação de funções

mentais elementares em funções mentais superiores, no percurso histórico-genético do

desenvolvimento humano e do papel da internalização simbólica no funcionamento

cerebral e constituição da atividade mental complexa na criança, este trabalho procura

evidenciar, com base nos dados de uma pesquisa concluída, como a escola, ao criar

novos dispositivos simbólicos orientadores do comportamento e pensamento da criança,

potencializa a conversão da atenção natural em atenção voluntária/arbitrária. Procurou-

se captar, no movimento dialético e semiótico do ensino e aprendizagem escolar, a

existência de indícios que possibilitem inferir que os mecanismos mentais de atenção

natural (não intencional e não volitiva) estão se transformando/convertendo-se em

atenção voluntária/arbitrária devido à ação de sistemas simbólicos, de mecanismos

artificiais (signos) no funcionamento cerebral da criança. Para isso, delimitou-se como

hipótese investigativa que esses estímulos culturais reorganizam os processos cognitivos

da criança, dando origem a comportamentos organizados, intencionais, conscientes,

autorregulados e volitivos. A partir de uma pesquisa empírica, orientada pelo método

Materialista Histórico-Dialético e pela abordagem microgenética, realizada numa turma

de 1º ano do ensino fundamental de uma escola pública estadual, localizada no

município de Chapecó-SC, constatou-se empiricamente que, de fato, tal hipótese se

confirma, pois os indícios captados revelaram que o uso de signos reorganiza e

complexifica o pensamento e comportamento da criança, tornando-os regulados e

volitivos.

Palavras-chaves: Desenvolvimento humano. Educação escolar. Atenção voluntária.

Introdução

O presente trabalho deriva de um recorte epistemológico (teórico e empírico)

oriundo de um processo de investigação científica realizado no contexto real de uma

sala de aula do ensino fundamental público estadual, no município de Chapecó-SC, que

resultou na dissertação intitulada: Educação escolar e o desenvolvimento de funções

mentais superiores na criança: atenção voluntária.

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O escopo precípuo desse recorte consiste em abordar elementos do percurso de

abstração do problema de pesquisa formulado para o processo investigativo realizado

(Como a escola cria novos dispositivos simbólicos orientadores do comportamento

e pensamento da criança potencializando a conversão da atenção natural em

atenção voluntária/arbitrária?), captados e sistematizados a partir da análise de um

conjunto de dados empíricos coletados no cenário real de uma sala de aula.

As premissas teóricas orientadoras do movimento de pesquisa sobre o

desenvolvimento da atenção voluntária na criança perpassam por:

a) As funções mentais superiores (aquelas que são caracteristicamente humanas) são

culturalmente constituídas;

b) “Os sistemas de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de números), assim como o

sistema de instrumentos, são criados pelas sociedades ao longo do curso da história

humana e mudam a forma social e o nível de seu desenvolvimento cultural”

(VIGOTSKI, 2007, p. XXVI);

c) A internalização dos sistemas de signos produzidos culturalmente provoca

transformações psicológicas e comportamentais na criança. O contato da criança com

dispositivos culturais/simbólicos modifica totalmente o curso do seu desenvolvimento,

pois o converte de biológico para cultural (VIGOTSKI, 2007, p. XXVI).

d) A cultura fornece mecanismos artificiais (simbólicos) que reorganizam os processos

neurofisiológicos do sistema nervoso central da criança, fazendo com que ela

desenvolva comportamentos arbitrários, intencionais e planejados (VYGOTSKY;

LURIA, 1996);

e) A educação escolar (prática sociocultural) possui um papel central na conversão de

comportamentos reflexos e involuntários em comportamentos conscientes e voluntários,

pois modifica substancialmente a relação entre cérebro e regulação da atividade devido

à utilização de dispositivos simbólicos de pensamento (MARTINS, 2013).

As premissas teóricas supracitadas sustentam a hipótese de que a prática escolar

produz uma reorganização radical na atividade mental, que origina comportamentos

volitivos e conscientes na criança. Esse conjunto de premissas orientou o processo de

abstração do fenômeno investigado (conversão da atenção natural em atenção cultural

devido à interferência dos dispositivos simbólicos na atividade mental das crianças) e a

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verificação dos indícios de desenvolvimento da atenção voluntária apresentados pelas

crianças nos processos de pensamento e comportamento na sala de aula.

Para Luria (1991) a atenção voluntária é uma função superior que regula e

organiza todas as atividades práticas e intelectuais do humano. Ela não é inata e

determinada apenas por mecanismos biológicos, mas sim, um ato social, portanto,

educável.

As premências instintivas e involuntárias dos comportamentos e pensamentos da

criança modificam-se devido a novas motivações, socialmente constituídas. Essa

dinâmica cerebral derivada da interferência dos estímulos artificiais sobre o

funcionamento mental da criança, reorganiza todo seu sistema voluntário, produzindo

formas superiores de atividade volitiva, seletiva, arbitrária, organizada e consciente.

A perspectiva metodológica utilizada para captar os indícios de conversão da

atenção natural em atenção voluntária nas crianças consistiu no Materialismo Histórico-

Dialético. Esse método possibilitou o estudo do fenômeno em movimento e para além

das suas aparências causais/pseudoconcretas. Utilizou-se também a abordagem

microgenética que está alinhada com os postulados da teoria histórico-cultural e com o

método Materialista Histórico-Dialético, pois torna possível a abstração epistêmica,

análise, reflexão e compreensão do fenômeno em movimento, no contexto das suas

interações constitutivas e do emaranhado das suas contradições.

“O processo de aquisição das particularidades humanas, isto é, dos

comportamentos complexos culturalmente formados, demanda a apropriação do legado

objetivado pela prática histórico social da humanidade” (MARTINS, 2013, p. 271). Essa

é exatamente a função da escola, possibilitar às crianças, o acesso e apreensão do

conhecimento sistematicamente produzido no decurso histórico-cultural dos homens. A

educação escolar deve promover processos sistemáticos de internalização cultural, de

apropriação de sistemas simbólicos de pensamento. A internalização de

dispositivos/sistemas simbólicos complexos promoverá uma reorganização dos

processos mentais da criança, convertendo mecanismos naturais e elementares de

caráter instintivo e involuntário, em mecanismos culturais e complexos de pensamento

organizado e consciente.

Essa é exatamente a dinâmica empírico-investigativa proposta neste estudo. Na

sequência, será apresentada a análise do papel do trabalho pedagógico na reorganização

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da atividade mental e na constituição de comportamentos volitivos e conscientes de um

grupo de crianças que frequentam uma turma de alfabetização (1º ano do Ensino

Fundamental) de uma escola pública estadual localizada no município de Chapecó-SC.

Com base nas matrizes metodológicas supracitadas, elegeu-se o espaço

escolar/pedagógico como lugar de interesse pedagógico, focalizando processos de

construção do conhecimento e de mediação pedagógica em fases iniciais de

escolarização.

A utilização da abordagem microgenética possibilitou a análise do transcorrer de

uma atividade intelectual e a captura das mudanças de qualidade das ações e

pensamentos das crianças, em função do jogo de mediações simbólicas presentes na

aprendizagem escolar e das condições de produção de mecanismos cognitivos. Essa

dinâmica investigativa empírica tornou possível a captura de indícios da atividade

mental das crianças ao interagirem com sistemas simbólicos de pensamento no espaço

escolar.

Na sequência, apresenta-se uma sucinta análise da investigação realizada que

procurou captar, no movimento dialético, dialógico e semiótico do ensino e

aprendizagem escolar, a existência de indícios que evidenciassem a conversão de

mecanismos mentais de atenção natural (não intencional e não volitiva) em atenção

voluntária/arbitrária, devido à ação de sistemas simbólicos, de mecanismos artificiais

(culturais) no funcionamento cerebral, na organização do pensamento e comportamento

das crianças. Para isso, recortou-se um episódio gravado no contexto de realização de

tarefas escolares no âmbito da sala de aula de um 1º ano dos anos iniciais (turma de

alfabetização).

A imersão empírica realizada no processo de investigação partiu do princípio de

que é mediante a ação mediada na sala de aula que a pesquisa vai se delineando, ou seja,

o objeto de investigação foi captado no seu movimento dialético, na sua dimensão

dialógica e contraditória. A ação investigativa orientada pelos pressupostos teórico-

metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético foi se constituindo a partir das

dinâmicas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem e no conjunto de interações

simbólicas por ele produzidas.

A inserção da pesquisadora no espaço investigativo seguiu a rotina já instituída

na sala de aula, sem definições a priori. A professora estava trabalhando com o tema: o

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ser humano e a saúde (alimentação, a higiene e a relação dos seres humanos com o

ambiente onde vivem)1.

Destarte, a inserção da pesquisadora seguiu a sequência didático-pedagógica

delineada pela docente e que já estava em andamento. Dessa forma, antes do início do

acompanhamento das aulas, a professora já havia trabalhado com o conceito da cadeia

alimentar, problematizado questões sobre o ser humano e sua saúde, sobre a importância

da higiene, dos cuidados com o corpo e sobre alimentação. O trabalho foi realizado

através de produções textuais, de práticas de leitura e interpretação textual, de diálogos

problematizadores e de elaboração de atividades individuais e coletivas que envolviam

o uso do Sistema de Escrita Alfabética, do Sistema de Numeração Decimal e um

conjunto de conceitos oriundos dos temas estudados.

Foi a partir desse momento que a inserção empírica na sala de aula iniciou.

Logo, a dinâmica de aprendizagem estava direcionada ao estudo o tema: alimentação.

No âmbito desse conceito, a docente propôs um movimento pedagógico que

possibilitasse a compreensão sistemática e semiótica da origem dos alimentos focando

nas seguintes categorias: origem vegetal, animal, mineral e alimento industrializado.

A recolha dos dados empíricos foi realizada durante todo o mês de novembro do

ano de 2014. O acompanhamento foi diário e os registros foram feitos através de vídeos

e observações. É pertinente destacar que do conjunto total dos registros efetuados,

optou-se pela seleção de momentos de aprendizagem específicos, que forneciam os

indícios procurados. Esse recorte de episódios não foi feito de forma aleatória, e sim

com base nos pressupostos teóricos orientadores dessa investigação.

Com isso exposto, passa-se à análise dos dados de um de quatro episódios

registrados no contexto real da sala de aula2. Os personagens que aparecem nessa

investigação são identificados da seguinte forma: Professora da turma (PR),

Pesquisadora (PE), as crianças terão o nome substituído por uma letra (A até V) e nas

situações onde várias crianças se manifestaram oralmente, ao mesmo tempo, utiliza-se o

termo crianças. Também substituiu-se, nos momentos de diálogos, os nomes de crianças

que foram proferidos pela pesquisadora e professora.

1.1 Educação escolar e a conversão da atenção instintivo-reflexiva de caráter não

intencional e não volitiva para atenção artificial, voluntária e cultural na criança:

dinâmica semiótica da sala de aula

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A dinâmica da sala de aula era composta por momentos dialógicos, por

problematizações, exposição de ideias e situações empíricas do universo cotidiano das

crianças, por troca entre pares (criança com criança, professora com crianças, etc),

exposição de dúvidas, situações de aprendizagem individual e coletiva, momentos de

produção textual e de leitura, pela resolução de problemas e demais situações

matemáticas (envolvendo operações aditivas e multiplicativas e elaboração de gráficos e

tabelas), processos de negociação e momentos de reflexão no ato de escrever, enfim, por

uma dinâmica extremamente complexa de interlocuções semióticas.

O episódio a seguir, foi se delineando a partir de um momento de produção

textual sobre o conceito de alimento de origem vegetal elaborado e problematizado pela

docente.

Na sequência, a professora propôs a construção individual de uma lista de

alimentos vegetais que as crianças conheciam e construção de um gráfico. Para a

construção do gráfico, apresentou um conjunto de imagens de frutas às crianças. Cada

criança deslocou-se até a mesa da docente, onde as figuras estavam expostas, para

escolher sua predileta. Com base nas orientações da docente, cada criança retirou duas

imagens da fruta escolhida para pintá-las. Uma foi colada no caderno e a outra utilizada

na construção coletiva de um gráfico que foi exposto na sala de aula.

O intuito da docente com esse movimento consistiu na organização de dados

para a construção coletiva do gráfico abaixo sobre as frutas preferidas do 1º ano 1.

Gráfico produzido coletivamente em sala de aula.

Fonte: atividade desenvolvida em sala de aula.

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Com base no processo de construção coletiva da representação gráfica das frutas

preferidas das crianças, a professora propôs a construção do gráfico de forma individual.

Para isso, entregou uma folha quadriculada às crianças e orientou o processo de inserção

dos dados numéricos.

É pertinente destacar que o trabalho de mediação pedagógica da professora e o

conteúdo da atividade, ofereceram algo completamente novo ao curso do

desenvolvimento mental da criança, pois o movimento de aprendizagem escolar passou

a orientar e estimular processos internos de pensamento que não se originariam de

forma cotidiana e espontânea (estritamente empírica).

Outro aspecto importante, que deriva da mediação pedagógica da docente,

consiste no papel da sua instrução verbal na organização das ações, da atividade e do

pensamento das crianças. A fala manifestava-se como um elemento semiótico que

direcionava a atividade mental das crianças, tornando-a organizada e consciente. A fala

da docente produzia nas crianças formas internas de pensamento, que tornavam as ações

requeridas à solução das tarefas propostas, organizadas, seletivas, voluntárias e

conscientes conforme os indícios abaixo.

Episódio 1:

PE: Por que você colocou os números nessa coluna? Eles indicam o quê?

Criança E: O número de frutas.

PE: A quantidade de frutas.

PE: Por que é necessário colocar os números no gráfico (criança B)?

Criança B: Pra conta a quantidade de frutas.

PE: Isso mesmo.

PE: Por que é necessário colocar os números nessa coluna?

Criança S: Pra contar o número do morango, das uvas.

PE: Então, os números indicam o quê?

Criança S: O número de frutas que têm.

PR: Agora olhem para mim aqui. Nesse quadradinho aqui (indica a primeira coluna do

gráfico), qual é a primeira fruta que aparece lá (indica para o gráfico exposto na parede).

Crianças: Morango.

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PR: Olhem para mim, tem que olhar para a profe, senão vocês fazem de qualquer jeito e

tem que apagar. Embaixo, vocês vão escrever com letra pequena morango. Quantos

morangos têm lá no gráfico?

Crianças: 4.

PR: Então, quantos morangos têm que desenhar?

Crianças: 4.

PR: Vamos lá! Agora tem que desenhar dentro dos quadradinhos. Aqui, um, dois, três,

quatro.

Criança I: Tem que desenhar desde o 0?

PR: Tem que desenhar desde o 0? Claro, porque o 1 está logo aqui (indica o número 1

logo acima).

Criança F: Professora, faz favor. Assim?

PR: Isso, bem assim. Quantos morangos têm que fazer.

Criança F: 4

PR: 4.

PE: Quantos morangos têm que fazer criança H?

Criança H: 4.

PE: Por que 4?

Criança H: Porque tem 4 lá.

PE: Mas por que tem 4 lá?

Criança H: Porque 4 crianças escolheram morango.

PE: Qual é a quantidade de morangos que você precisa desenhar (Criança B)?

Criança B: 4

PE: E por que 4?

Criança B: Hummmmm, porque é a quantidade de morango que tem.

PE: Mas essa quantidade de morango quem definiu? Como que tem 4 ali?

Criança B: 4 crianças gostaram de morango.

PE: Criança R, por que você desenhou 4 morangos?

Criança R: Porque 4 crianças gostam de morango.

PE: Criança E, essa quantidade aqui (indico para a seta numérica e primeira coluna do

gráfico) representa o quê?

Criança E: O número de crianças que gostam de morango.

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Criança L:

PE: E agora, o que você tem que fazer (Criança L)?

Criança L: A uva.

PE: E por que a uva?

Criança L: Porque é a segunda.

PE: E qual é a quantidade que você tem que desenhar?

Criança L: 7.

PE: E por que 7?

Criança L: Porque 7 crianças gostam da uva.

PE: E 7 crianças de qual sala?

Criança L: Do 1º ano.

Produção gráfica individual proposta pela docente.

Fonte: construção gráfica da criança B.

PE: (Criança L) o que vocês acabaram de fazer?

Criança L: Um gráfico.

PE: E o que tem nesse gráfico?

Criança L: As frutas. É o gráfico das frutas preferidas do 1º ano.

PE: Agora me explique, como que vocês organizaram o gráfico?

Criança L: Nós fomos botando os números até o 10, fazendo as frutas.

PE: E os números indicam o quê?

Criança L: Até onde que vai as frutas preferidas.

PE: A quantidade de frutas preferidas. Me explique teu gráfico. Olhando para teu

gráfico que informação a gente obtém?

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Criança L: 4 morangos, quatro crianças que gostam de morango, 7 crianças que gostam

da uva e 1 criança que gosta de maça e 2 criança que gosta da laranja, e, nenhuma

criança que gosta do abacaxi e melancia crianças gostam de 7.

PE: Qual é a fruta que as crianças menos gostam?

Criança L: A maçã.

PE: E a que mais elas gostam?

Criança L: O abacaxi.

PE: A que mais eles gostam?

Criança L: Não.

PE: Ali no abacaxi tem o quê?

Criança L: Nada.

PE: Então, isso indica o quê?

Criança L: Que nenhuma criança gosta do abacaxi.

PE: E qual é a fruta que eles mais gostam?

Criança L: A uva e a melancia.

PE: E o que aconteceu com a quantidade de uva e a quantidade de melancia?

Criança L: Tão empatada.

No episódio acima, a tarefa é complexa e requer das crianças atenção continuada

e intensa. Algumas crianças não conseguiram manter a seletividade e o comportamento

focado, isso gerou a incapacidade de resolver a tarefa de forma individual. Elas

invariavelmente se distraiam, perdendo um ou outro aspecto das instruções que lhe eram

dadas, não sendo suficientemente capazes de organizar o próprio comportamento e os

dados numéricos de acordo com a lógica matemática de estruturação do gráfico

demonstrada pela docente. A realização da atividade teve que ser mediada

individualmente pela docente. Apenas com o auxílio dela essas crianças conseguiram

construir o gráfico.

Outro grupo de crianças conseguiu rapidamente organizar seus processos

mentais com as primeiras instruções semióticas da docente, manifestando capacidade de

atenção voluntária/focada e comportamento organizado. Ao operar com a lógica

simbólica de estruturação do gráfico, inibiram fatores de distração, mantendo a atenção

de forma continuada e intensa até a conclusão da atividade. Essas crianças aprenderam,

através das orientações da docente, a agir de acordo com a tarefa proposta e a propor a

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si mesmas tais tarefas. Essa dinâmica da atividade mental das crianças introduziu uma

série de mudanças na estrutura do comportamento delas, tornando possível a realização

da atividade de forma lógica, organizada e consciente. Elas operavam internamente com

os códigos simbólicos do gráfico, demonstrando compreensão e consciência acerca da

função desses dispositivos artificiais. O episódio acima evidencia indícios de atividade

mental volitiva, consciente, autorregulada e organizada mediante o uso de dispositivos

artificiais culturalmente produzidos e utilizados para mediar internamente o

funcionamento mental do humano (VYGOTSKY; LURIA, 1996).

Esses dados comprovam empiricamente a tese vigotskiana de que a escola, ao

utilizar mecanismos artificiais (dispositivos culturais), promove processos internos de

desenvolvimento. As tarefas escolares geram motivos e finalidades culturais ao

comportamento, possibilitam o desenvolvimento da capacidade de seletividade,

organização e autorregulação de informações e ações e a transformação de funções

mentais naturais em funções mentais superiores. A atividade intelectual requerida pelo

processo de escolarização modifica substancialmente o funcionamento mental da

criança. No caso do nosso objeto de estudo, a função da atenção na criança passa a

funcionar como uma operação cultural e não apenas como um mecanismo natural

reflexo, instintivo, involuntário e imediato, oriundo de uma reação a estímulos

ambientais. São os estímulos artificiais produzidos pela cultura (sistemas simbólicos)

que passam a regular a atividade mental e os comportamentos da criança no espaço

escolar. Não é a experiência imediata e involuntária que está orientando o pensamento

das crianças, elas estão operando mentalmente a partir do uso de signos.

No episódio disposto acima, o uso do sistema de numeração e as instruções

verbais (linguagem) da docente se configuram como mecanismos artificiais orientadores

da atividade mental das crianças. Esses mecanismos simbólicos atuam como

organizadores e mediadores da atividade seletiva e volitiva das crianças. A fala da

professora, como orientadora do comportamento e pensamento das crianças, corrobora a

tese de Luria (1985) de que a palavra do adulto converte-se num regulador da conduta

da criança em um nível mais alto e qualitativamente novo. Essa subordinação das

reações e modos de pensar da criança à palavra de um adulto é o começo de uma longa

cadeia de formação de aspectos complexos da sua atividade consciente e voluntária. A

fala (dispositivo simbólico) da docente é um elemento semiótico que está mediando os

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processos internos das crianças, pois ela se converte num meio de análise e síntese das

tarefas propostas e, o que é fundamentalmente mais importante, no regulador mais

elevado de suas condutas no espaço escolar.

A dinâmica de interlocuções dialógicas entre a pesquisadora, professora e

crianças coloca em destaque a capacidade de representação mental oriunda da atividade

com signos (números e pictogramas/figuras). As crianças E, B, H, S, I, F, R, L

apresentaram indícios de uma emergente e complexa organização de um sistema

psicológico/mental, que engloba duas funções constituídas culturalmente: as intenções

ou arbitrariedade de suas ações no decorrer da realização da tarefa escolar e a

manifestação de representações simbólicas. As interpretações, correlações e associações

efetuadas através da observação dos dados do gráfico são elucidativas da reorganização

da atividade mental promovida pela mediação pedagógica da docente ao trabalhar com a

representação gráfica de informações numéricas.

A compreensão do uso, função e sentido dos números no contexto gráfico é um

indício importantíssimo de interferência desse sistema simbólico na organização do

pensamento das crianças e na constituição da atenção voluntária, como forma de

atividade seletiva e regulada criada nas e pelas relações socioculturais. Esse dado

empírico corrobora a tese de Martins (2013) ao defender a natureza social da atenção e

os pressupostos materialistas de Luria e Vygotsky (1996), ao demonstrarem que a

atenção responde e deriva de um complexo processo de desenvolvimento, constituindo-

se como um traço imanente do desenvolvimento cultural da humanidade e um marco

histórico-genético na superação dos estágios primitivos e estruturação de estágios de

comportamento e pensamento altamente organizados e complexos.

Esse exercício de representação de dados graficamente e de interpretação visual

das informações envolve um grau significativo de complexidade. A capacidade que as

crianças E, B, H, S explicitaram de analisar a proporcionalidade e correspondência entre

os valores e a função da escala (nas primeiras falas apresentadas no episódio) é outro

indício empírico importante de atenção voluntária, de representação mental, de

raciocínio lógico-matemático e compreensão da função do gráfico.

Já na parte final do episódio, a criança L demonstra compreender aspectos da

variabilidade entre os dados apresentados no gráfico a partir da interpretação visual.

Esse movimento cognitivo envolve a capacidade de atenção volitiva, focada e seletiva.

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Considerações finais

Com a pesquisa realizada, identificou-se que através do processo de

internalização de sistemas simbólicos de pensamento no espaço escolar a atenção da

criança torna-se voluntária, arbitrária, seletiva, direcional, organizada e autorregulada,

devido ao desenvolvimento da atividade mental mediada (por dispositivos

artificiais/culturais). Esses dispositivos simbólicos são elementos mediadores que

quando incorporados à atividade mental da criança ampliam a sua capacidade de

atenção cultural. Isso evidencia o desenvolvimento da capacidade de controle

volitivo/arbitrário e consciente da atividade mental.

Referências bibliográficas

LURIA, Alexander Romanovich. Curso de Psicologia Geral 3 (Atenção e Memória).

ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 1 v.

LURIA, Alexander Romanovich; YUDOVICH, F. I. Linguagem e o desenvolvimento

intelectual na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

MARTINS, Lígia. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar:

contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica.

Campinas: Autores Associados, 2013.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos

processos psicológicos superiores. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VYGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich. Estudos sobre a

história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes

Médicas, 1996.

ZAMONER, Angela. Educação escolar e o desenvolvimento de funções mentais

superiores na criança: atenção voluntária. 2015. 143f. Dissertação (Mestrado em

Educação) – Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, Chapecó-SC, 2015.

1 Informação repassada pela docente nos primeiros diálogos sobre a proposta de investigação empírica.

2 O referido recorte apresentou-se como necessário em decorrência da dimensão sintética requerida na

estruturação dos trabalhos na modalidade de painéis. Para verificação do trabalho e episódios completos,

indica-se a leitura (na íntegra) da dissertação intitulada: Educação escolar e o desenvolvimento de

funções mentais superiores na criança: atenção voluntária.

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