Diálogos-Jorge Amado - Norma Seltzer Goldstein

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cAderno de leiturAs 10 diálogos NORMA SELTZER GOLDSTEIN escrevendo Pastores da noite, 1964

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Estudo da criação de diálogos pelo escritor Jorge Amado

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  • cAderno de leiturAs10

    dilogosNorma Seltzer GoldSteiN

    escrevendo Pastores da noite, 1964

  • Jorge AmAdo 11

    JorGe amado Foi um Homem ateNto a tudo que o cercava e um escritor capaz de tecer elos entre sua poca e a tradio, assim como entre diferentes linguagens artsticas e formas de comunicao. Sua obra estabelece mltiplos dilogos. Alguns livros remetem a outros, retomando temas, cenrios ou personagens. Grande parte faz uma ponte entre fico e vida real. A maioria remete tradio popular brasileira, em especial ao cordel. O estudo da fico amadiana , portanto, um campo vasto para analisar a intertextualidade. Seguemse alguns exemplos.

    Fico e vida real

    O encontro entre vida real e fico percorre grande parte da obra do autor. Essa fuso permite ao leitor acompanhar diferentes temas tratados na fico que, direta ou indiretamente, remetem ao mundo em que vivemos. Considerando o entrecruzamento de fico e vida real como eixo principal dos dilogos amadianos, possvel considerar que dele se desmembram novos dilogos, alguns dos quais comentamos a seguir.

    injustia social

    O captulo inicial de Capites da Areia, Cartas redao, mescla reportagens e cartas enviadas ao Jornal da Tarde, cujo nome talvez seja uma aluso ao jornal A Tarde um dos mais tradicionais da Bahia , ou ao jornal homnimo que circula em So Paulo, ambos existentes na vida real, assim como o tema dos textos. Diversamente, os personagens do livro Pedro Bala, Almiro, SemPernas, Joo Grande s ganham vida nas pginas do romance. Iniciar dessa forma

    A intertextualidade remete ao con junto de relaes explcitas ou implcitas que um texto estabelece com outros. Podese supor a presena de um texto em outro, por citao ou aluso. Se o processo ocorrer de forma crtica e irnica, falase em pardia.

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    Verossimilhana. Caracterstica do que verossmil, do que convence, do que parece verdadeiro. Nas obras literrias, a verossimilhana resulta da construo da obra, de sua coerncia ou lgica interna.

    um recurso engenhoso. Acentua a verossimilhana da obra, dando ao leitor a impresso da verdade do que se narra. Reportagens e cartas revelam diferentes pontos de vista, conforme sua autoria, como ilustram dois trechos de Reportagem publicada no Jornal da Tarde:

    No tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos assustados vindos do interior da residncia. Eram gritos de pessoas terrivelmente assustadas. Armandose de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo de ver vrios moleques que, como um bando de demnios (na expresso curiosa de Ramiro), fugiam saltando as janelas, carregados com objetos de valor da sala de jantar.

    a opiNio da iNoCNCiaA nossa reportagem ouviu tambm o pequeno

    Raul, que, como dissemos, tem onze anos [] e nos disse acerca de sua conversa com o terrvel chefe dos Capites da Areia.

    Ele disse que eu era um tolo e no sabia o que era brincar. Eu respondi que tinha uma bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei gostando dele, parece um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras.

    Nesses dois trechos, o leitor percebe que o jornal assume o ponto de vista de Raul, morador da casa assaltada. No se furta tambm a repetir a curiosa expresso utilizada pelo jardineiro Ramiro: bando de demnios. J outras cartas mencionadas no romance do chefe de polcia, do juiz de menores, de uma me costureira, do diretor do reformatrio e do padre Jos Pedro discutem se o reformatrio recupera os meninos infratores. Os pontos de vista divergem. As autoridades consideram a instituio positiva, a me e o padre discordam. Conforme a importncia social do remetente, muda a pgina do jornal em que a carta vem

    Variao lingstica. Ao examinarmos o uso da lngua, percebemos variaes de diferentes tipos: histrica ou diacrnica; geogrfica ou espacial; social; estilstica. O primeiro exemplificase pela diferena entre a linguagem de Cames, do sculo xvi, e a de Ferreira Gul lar, poeta contemporneo. O segundo, pela comparao entre nossa fala e nos sa escrita e aquelas de Portugal, Mo ambique, Angola, Cabo Verde; ou, ainda, pelo vocabulrio e sotaque caractersticos de diferentes regies do Brasil ou de Portugal. O terceiro remete ao uso da lngua pelos diversos grupos sociais, o que leva a classificar esses usos ora como cultos, ora como populares; ou remete a usurios da lngua com a mesma profisso ou a mesma faixa etria que se utilizam, respectivamente, de um mesmo jar-go ou de uma mesma gria. O quarto decorre da adequao da linguagem ao contexto em que utilizada individualmente. Uma mesma pessoa pode usar diferentes estilos, conforme a situao. A escola deve levar em conta os diversos registros da lngua, para que o aluno amplie seu leque de opes e se torne capaz de empregar a linguagem adequada a cada situao, da fala e escrita informais fala e escrita formais.

  • Jorge AmAdo 13

    impressa: a das autoridades, nas pginas iniciais, com comentrios; as crticas, nas pginas centrais, sem destaque. Leia passagens das cartas da me e do padre:

    Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatrio para ver como so tratados os filhos dos pobres que tm a desgraa de cair nas mos daqueles guardas sem alma. Meu filho Alonso teve l seis meses e se eu no arranjasse tirar ele daquele inferno em vida, no sei se o desgraado viveria mais seis meses. O menos que acontece pros filhos da gente apanhar duas e trs vezes por dia.

    Maria Ricardina tem razo. As crianas no aludido reformatrio so tratadas como feras, essa a verdade. Esqueceram a lio do suave mestre, sr. redator, e em vez de conquistarem as crianas com bons tratos, fazemnas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos fsicos verdadeiramente desumanos.

    A linguagem revela a simplicidade da costureira: emprega teve e pros em vez das formas esteve e para os. A escrita do padre culta, usa termos como aludido, espancamentos, desumanos. E ressalta sua condio religiosa na meno ao suave mestre. Essas expresses ilustram o uso da variao lingstica como forma de caracterizar personagens ao reproduzir o modo de falar do grupo social em que elas vivem.

    A transcrio de trechos de cartas no incio de Capites da Areia permite introduzir o cenrio, marcado pelo contraste social que leva o leitor a simpatizar com os Capites da Areia, cuja histria contada a partir do captulo 2. Os meninos, que passam necessidades e sobrevivem de esmolas e furtos, no deixam de ter sonhos, princpios ticos e afetos. Esse lado humano dos personagens envolve o leitor e constitui um trao comum a todos do bando. O autor cria um final bastante democrtico: do grupo sai um artista, um padre, um cangaceiro, um lder grevista, um malandro, dentre outros destinos.

    Encontramos meninos parecidos em outras obras de Jorge Amado. Em Jubiab, na adolescncia, o heri e seus companheiros criam uma estratgia para pedir esmolas, conquistar a simpatia de senhoras e depois furtarlhes objetos de valor. Em Bahia de Todos os

    jornal de Salvador noticia a queima de livros de jorge Amado pela polcia do estado Novo, 1937

  • cAderno de leiturAs14

    Vicente Ferreira Pastinha (18991981), conhecido como mestre Pastinha, fundou a primeira escola de capoeira do estilo angola, no Pelourinho. Em linhas gerais, a capoeira angola diferenciase da regional, difundida por mestre Bimba, por enfatizar o jogo, a brincadeira, por meio de movimentos mais lentos e rasteiros.

    Santos, uma espcie de guia de Salvador, o captulo Capites da Areia apresenta os meninos reais que inspiraram os da fico:

    Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rpido, a gria de malandro, os rostos chapados de fome, vos pediro esmola. Praticam tambm pequenos furtos. H quarenta anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquela poca so hoje homens maduros, malandros do cais, com cachaa e violo, operrios de fbrica, ladres fichados na polcia, mas os Capites da Areia continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao lu.

    Outro bando vive nas pginas de Os pastores da noite. No captulo 15, o grupo apia os moradores de uma vila popular na resistncia invaso da polcia para despejlos de suas moradias:

    Montanhas de pedras haviam sido levantadas na noite de sentinela, os meninos se moviam entre elas. Parte deles morava no morro [] A maioria, porm, viera enfrentar a polcia, solidria. Estava toda a vasta e invencvel organizao dos Capites da Areia, sem regulamento escrito, sem diretoria eleita, poderosa e temida. Os meninos de focinho de rato, vestidos de andrajos, chegados dos cantos de ruas mais distantes. As crianas abandonadas da Bahia, universitrios da vida obstinada, aprendendo a viver e a rir sobre a misria e o desespero.

    Figurantes em Os pastores da noite, esses Capites da Areia se aparentam aos do livro homnimo: bravos na luta, solidrios, respeitadores de um cdigo de tica sem regulamento escrito, pobres e carentes de afeto. A longa luta pela sobrevivncia os torna universitrios da vida obstinada. O leitor percebe que a fico espelha a realidade e compartilha a simpatia manifestada por seu criador.

    Outro aspecto da fuso entre realidade e fico ocorre nas obras em que pessoas reais tornamse personagens de romances, como mestre Pastinha, capoeirista famoso que vira um dos melhores amigos do protagonista de A morte e a morte de Quincas Berro Dgua, e Dorival Caymmi, cujos versos embalam o romance Mar morto: doce morrer no mar/ nas guas verdes do mar.

    Caymmi faz ainda uma ponta em Dona Flor e seus dois maridos, tocando em uma serenata que Vadinho faz

    IdentIdade baIana. Entendese aqui identidade no como uma essncia fixa, permanente e hereditria de deter minado grupo social ou regio, mas uma imagem, uma representao, que vai sendo construda e recons truda ao longo do tempo.

  • Jorge AmAdo 15

    com mestre Pastinha, Salvador, 1961

    para a amada. Aqui o dilogo entre fico e realidade ocorre a partir da dedicatria a Zlia, aos filhos Joo e Paloma e tambm a outras pessoas conhecidas do escritor que saltam para dentro da fico:

    Para minha comadre Norma dos Guimares Sampaio, acidentalmente personagem, cuja presena honra e ilustra estas plidas letras. Para Beatriz Costa, de quem Vadinho foi sincero admirador. Para Eneida, que teve o privilgio de ouvir o Hino Nacio nal executado ao fagote pelo dr. Teodoro Madu reira. Para Giovanna Bonino, que possui um leo do pintor Jos de Dome retrato de dona Flor adolescente, em ocres e amarelos. Quatro amigas aqui juntas no afeto do autor.

    A comadre Norma se faz presente na obra, enquanto Beatriz e Eneida, conforme a dedicatria, so prximas dos dois maridos de dona Flor, Vadinho e Teodoro. Giovanna, por sua vez, possui um retrato de dona Flor antes mesmo de o personagem aparecer. Ao mesmo tempo, na pgina inicial, a protagonista escreve um bilhete ao autor, como se migrasse da fico para a vida real:

    Caro amigo Jorge Amado, o bolo de puba que eu fao no tem receita, a bem dizer. Tomei explicao com dona Alda, mulher de seu Renato do museu, e aprendi fazendo, quebrando a cabea at encontrar o ponto. (No foi amando que aprendi a amar, no foi vivendo que aprendi a viver?) []

    Esperando ter lhe atendido, seu Jorge, aqui est a receita que nem receita , apenas um recado. Prove o bolo que vai junto, se gostar mande dizer.

    Ao longo do romance, h receitas que funcionam na fico como no mundo real: dona Flor professora de culinria, e as receitas que ela ensina s alunas podem ser executadas por qualquer pessoa. As receitas desta e de outras obras do autor foram coletadas por Paloma Jorge Amado e publicadas no livro A comida baiana de Jorge Amado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de dona Flor.

    O leitor poderia perguntar por que esse recurso empregado. Dentre outras respostas, haveria trs possveis. Primeiro, para acentuar a verossimilhana, a impresso de verdade do universo ficcional de seus fatos, ambientes, personagens. Em segundo lugar, pela inteno de situar esse universo na Bahia, com seus cenrios, costumes e valores. Pessoas reais e figuras do romance vivem todas no mesmo contexto: aquele que marcado pela identidade baiana do autor e de sua obra. Em terceiro lugar, pela prpria opo estilstica de Jorge Amado, que

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    Paralelismo. Consiste no emprego da mesma organizao sinttica das frases ou oraes que compem uma pas sagem, como o final do trecho acima, que retoma a seguinte construo: tanto [a]+ substantivo + verbo no pretrito perfeito + indicao de lugar.

    Um abc um poema popular no qual cada estrofe comea por uma letra do alfabeto. Conta e louva a vida de heris do povo, cangaceiros valentes, san tos, estadistas, escritores. Geralmente composto em redondilhas versos de sete slabas, muito populares por serem simples quanto ao ritmo.

    se definia como um contador de casos, um homem do povo, um cronista da vida cotidiana da Bahia.

    linguagem e estilo

    Em Tenda dos Milagres igualmente se apresenta esse jogo entre fico e realidade. A orelha da segunda edio assinada pelo poeta e socilogo Fausto Pena, personagem de fico. Por vezes, a interpenetrao dos dois planos decorre de recursos de estilo, como neste trecho:

    A igreja toda azul no meio da tarde, igreja dos escravos [] o reflexo do sol ou um laivo de sangue no cho de pedras? Tanto sangue correu sobre essas pedras, tanto gemido de dor subiu para esse cu, tanta splica e tanta praga ressoaram nas paredes da igreja azul do Rosrio dos Pretos.

    A descrio apresenta sugesto de impresses sensoriais, evocando diferentes sentidos. A plasticidade de tons do azul, do sol e do sangue associase ao som dos gemidos, splicas e pragas, assim como impresso tctil do sangue que escorre, evocando a atmosfera histrica da igreja e transpondoa para o plano da fico. Ocorre tambm paralelismo ou retomada da mesma organizao sinttica.

    Sugestes de impresses sensoriais reaparecem no captulo Gabriela com flores, de Gabriela, cravo e canela:

    As flores desabrochavam nas praas de Ilhus, canteiros de rosas, crisntemos, dlias, margaridas, malmequeres. As ptalas das onzehoras abriamse por entre a relva, pontuais como o relgio da intendncia, salpicando de vermelho o verde da grama. Para as bandas do Malhado, em meio ao mato, nos bosques midos do Unho e da Conquista, explodiam fantsticas orqudeas. Mas o perfume a elevarse na cidade, a dominla, no vinha dos jardins, dos bosques, das tratadas flores, das orqudeas selvagens. Chegava dos armazns de ensacamento, do cais e das casas exportadoras, era o perfume das amndoas de cacau seco, to forte que entontecia os forasteiros, to habitual que ningum mais o sentia. Espalhandose sobre a cidade, o rio e o mar.

  • Jorge AmAdo 17

    Mltiplos odores e cores sugerem o ambiente que cerca a herona sedutora e perfumada. Complementados pela imagem sonora: explodiam fantsticas orqudeas. Uma nica indicao olfativa remete ao cacau, to forte que entontecia, ele o feiticeiro que seduz e prende os que se aproximam. Mais uma vez, sugestes sensoriais acentuam a recriao do ambiente no plano da fico.

    Em Jorge Amado, um baiano romntico e sensual, Zlia Gattai, esposa do escritor, acentua esse trao de estilo: Seus painis sempre foram mais erticos e coloridos que os de outros autores realistas brasileiros. [] O que suas histrias quase sempre realam a sensualidade dos trpicos.

    Figuras histricas ou cmplices?

    Jorge Amado acreditava que suas obras influenciariam a realidade do pas. Dizia ter aprendido com Castro Alves que, igual ao rifle, metralhadora e ao punhal, a poesia tambm arma do povo. A empatia com o poeta romntico levouo a escrever ABC de Castro Alves, biografia romanceada. Levouo ainda a coloclo como personagem em Tereza Batista cansada de guerra e na pea teatral O amor do soldado, em que a primeira falao do autor, no prlogo, anuncia:

    Esta companhia e eu resolvemos vos contar hoje a vida de Castro Alves, o poeta. Acreditamos que, nestes tempos dramticos em que homens de todas as raas lutam pelo direito liberdade, maior bem dos homens, sem o qual a vida no digna de ser vivida, o exemplo de Castro Alves, construtor de democracia, merecia ser apontado mais uma vez.

    Na cena nica do segundo quadro de O amor do soldado, aparecem figuras histricas: Castro Alves, Rui Barbosa e Maciel Pinheiro. Ajudados por um estudante, os abolicionistas conseguem tornar livre o velho Manuel, que fica muito grato, como ilustra o dilogo:

    CaStro alveS: Agora vai, Manuel. Mas antes dme um abrao.maNuel: Eu, negro vio, abraar vosmic?CaStro alveS: E por que no? Somos todos iguais, temos os mesmos direitos Vamos(abraa o negro velho, que limpa as lgrimas com as costas da mo)

    Sendo leitor do poeta romntico, Jorge Amado conhecia suas idias. O poema abolicionista a ser declamado na passeata tem o tom inflamado, em defesa do continente africano, a quem d voz. Leia trs de suas dezenove estrofes:

  • cAderno de leiturAs18

    o poeta castro Alves (1847-71)

    Deus! Deus! onde ests que no respondes?Em que mundo, em questrela tu tescondes? Embuado nos cus?H dois mil anos te mandei meu grito,Que embalde desde ento corre o infinito Onde ests, Senhor Deus?[]Cristo! embalde morreste sobre um monteTeu sangue no lavou de minha fronte A mancha original.Ainda hoje so, por fado adverso,Meus filhos alimria do universo, Eu pasto universal[]Basta, Senhor! De teu potente braoRole atravs dos astros e do espao Perdo pra os crimes meus!H dois mil anos eu soluo um gritoEscuta o brado meu l no infinitoMeu Deus! Senhor, meu Deus!

    O tom oratrio se apia em repeties, hiprboles culto do exagero , uso farto de pontos de exclamao, sonoridade e ritmo marcados. Esses recursos, assim como o tom eloqente, eram bemaceitos pelos que ouviam Castro Alves declamar seus versos do camarote em que assistia s representaes teatrais. Tanto ele quanto Tobias Barreto diziam poemas em homenagem s atrizes que atuavam no palco.

    Segundo Antonio Candido, enquanto outros poetas romnticos brasileiros viam

    a desarmonia como fruto das lutas interiores, ele a v sobretudo como resultante de lutas externas: do homem contra a sociedade; do oprimido contra o opressor outra maneira de sentir o conflito caro aos romnticos, entre bem e mal. A dialtica da sua poesia implica menos a viso do escravo (ou do oprimido em geral) como realidade presente do que como episdio de um drama mais amplo e abstrato: o do prprio destino humano, em presa aos desajustamentos da histria.

    No difcil perceber as razes do dilogo. Como Castro Alves, Jorge Amado tambm recria o tema dos desajustamentos da histria.

  • Jorge AmAdo 19

    antonio Frederico de castro alVes nasceu em Curralinho, hoje Castro Alves, na Bahia, em 1847, e mor reu em Salvador, em 1871. Foi l der abolicionis ta, ao lado de Tobias Barreto. Um acidente de caa, em So Paulo, feriulhe o p e trouxe complicaes que o levaram morte. Publicou Espumas flutuantes, Os escravos, A ca-choei ra de Paulo Afonso. Foi apaixonado pela atriz Eugnia Cmara, para quem escreveu a pea teatral Gonzaga ou a Revoluo de Minas.

    Valorizao da cultura popular

    Outra forma de intertextualidade cara a Jorge Amado a referncia literatura de cordel. Mark J. Curran considera Tereza Batista cansada de guerra um romance de cordel em prosa. Em Tenda dos Milagres, um dos cenrios principais a tipografia do Pelourinho, onde se imprimem folhetos de cordel e se renem seus criadores e apreciadores. O dilogo com o cordel transparece em longas epgrafes e subttulos, como o que anuncia o segundo episdio de Os velhos marinheiros:

    Fiel e completa reproduo da narrativa de Chico Pacheco, apresentando substancioso quadro dos costumes e da vida da cidade de Salvador nos comeos do sculo, com ilustres figuras do governo e ricos comerciantes, enjoadas donzelas e excelentes raparigas

    Tambm em Gabriela, cravo e canela, o cordel ecoa no ritmo de passagens em prosa potica:

    A vida era boa, bastava viver. Quentarse ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moo dormir. Com outro moo sonhar.

    Notese o ritmo dos versos de cinco slabas:

    A vi da e ra bo aBas ta va vi verQuen tar se ao sol To mar ba nho fri o

    E tambm as rimas:

    nas ruas andarcantigas cantarcom um moo dormircom outro moo sonhar.

    Por vezes, Jorge Amado insere versos nas narrativas, como a Cantiga para ninar Malvina, em Gabriela, cravo e canela:

    Dorme, menina dormidateu lindo sonho a sonhar.

  • cAderno de leiturAs20

    No teu leito adormecidapartirs a navegar.

    []

    Meu marido, meu senhorna minha vida a mandar.A mandar na minha roupano meu perfume a mandar.A mandar no meu desejono meu dormir a mandar.A mandar nesse meu corponessa minhalma a mandar.Direito meu a chorar.Direito dele a matar.

    Os versos de sete slabas, ou redondilhas maiores, so freqentes em nossa poesia popular. Aqui, apiamse na repetio e no paralelismo, criando o efeito meldico de acalanto, anunciado no ttulo.

    H dilogos e mais dilogos a serem descobertos pelo leitor de Jorge Amado. Basta ler sua obra e buscar pistas.

    Xilogravura de calasans Neto inspirada em Tereza Batista

    cansada de guerra, 1972

  • Jorge AmAdo 21

    leiturAs sugeridAs

    menino de engenho, de jos lins do rego. Paralelo entre dois tipos de infncia, a de uma

    famlia abastada e a de meninos de rua como os capites da Areia.

    A terrA dos meninos pelAdos, em Alexandre e outros heris, de graciliano ramos. comparar

    dois tipos de excluso, a decorrente de caracterstica fsica, na novela, e a provocada

    por condies sociais, como na obra de jorge Amado.

    horA dA guerrA, livro de crnicas de jorge Amado, antologia de textos publicados em

    jornal no perodo da Segunda guerra mundial. Verificar as preocupaes sociais do

    cronista e compar-las com as do ficcionista.

    pAuliciA desvAirAdA, de mrio de Andrade, em que a cidade de So Paulo transcende o

    papel de simples cenrio. comparar essa presena da cidade da cidade de Salvador

    nos romances amadianos.

    vossA insolnciA, crnicas de olavo Bilac. deter-se particularmente nas que mapeiam

    nossas mazelas polticas e apontam indcios de injustia social, dcadas antes de essa

    temtica ser tratada por jorge Amado.

    AtividAdes de linguAgem

    ArgumentAo

    o primeiro captulo de Capites da Areia traz cartas de leitores enviadas ao Jornal

    da Tarde.

    carta de leitor um gnero de texto que apresenta a estrutura comum a outros

    tipos de cartas destinatrio, remetente, data, uma seqncia dialogal, interativa

    etc. A especificidade do gnero carta de leitor est em sua finalidade, tipo de

    interlocutor previsto e presena de argumentao.

    Quanto ao destinatrio, trata-se de pessoa ou instituio por quem o locutor do

    texto foi lesado. No caso de o encaminhamento da carta ter sido feito a um jornal,

    os destinatrios passam a ser tambm todos os leitores desse jornal. A inteno do

    locutor tornar pblica a reclamao, de modo a fazer presso sobre a instituio

    ou pessoa que o lesou. os jornais mantm espao para esse tipo de publicao por

    uma questo de responsabilidade social.

    Quanto argumentao, o locutor usa argumentos com a finalidade de convencer o

    outro do seu ponto de vista. ele recorre, por exemplo, citao de alguma autoridade

    ou especialista que confirme sua tese. trata-se do que denominamos argumento de

    autoridade.

    No escritor, h que existir certa dose de itinerncia, anotou, trs dcadas atrs,

    elias canetti:

  • cAderno de leiturAs22

    eu vejo a verdadeira vocao do escritor em sua atividade ininterrupta, em seu contato

    compulsrio com pessoas dos mais diferentes tipos acima de tudo, e especialmente

    com pessoas que menos ateno despertam no incansvel dessa atividade que no se

    deixa mutilar ou atrofiar por nenhum sistema.

    Pode, ainda, lanar mo de um argumento baseado no consenso, como faz gilberto

    dimenstein neste artigo:

    Quando se mantm o jovem na escola, alm de tir-lo da rua e reduzir o risco de envol-

    vimento com a violncia, pode-se apostar (pelo menos apostar) que ele tenha menos

    dificuldade de obter um emprego.

    ou em provas, dados concretos, como neste artigo da revista poca:

    Algumas atitudes individuais ou coletivas j esto sendo tomadas frente constatao do

    aquecimento global. Alguns bancos enviam suas correspondncias em papel reciclado. o

    mesmo faz o governo federal ao emitir os cheques dos servidores. Na cidade de So Paulo,

    existe a obrigatoriedade de neutralizar a emisso de carbono nos shows. [] No seria o

    caso de termos edies de jornais e revistas feitas integralmente em papel reciclado?

    os alunos podem, em grupo, identificar argumentos em cartas de leitor, promover

    debates em sala de aula e redigir texto argumentativo. Para isso, propor:

    a) leitura de trecho da carta de uma me, endereada ao Jornal da Tarde, apresen-

    tada no captulo inicial de Capites da Areia.

    eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatrio para ver como

    so tratados os filhos dos pobres que tm a desgraa de cair nas mos daqueles guardas

    sem alma. meu filho Alonso teve l seis meses e se eu no arranjasse tirar ele daquele

    inferno em vida, no sei se o desgraado viveria mais seis meses. o menos que acontece

    pros filhos da gente apanhar duas e trs vezes por dia.

    observar nessa passagem:

    tese: as crianas, os jovens so maltratados no reformatrio;

    argumento baseado em prova concreta: Alonso apanhava duas a trs vezes ao

    dia;

    vocabulrio selecionado a favor da tese: filhos de pobre; guardas sem alma;

    desgraa;

    recurso lingstico para reforar o peso do argumento: o menos que acontece

  • Jorge AmAdo 23

    b) leitura de trecho da carta do padre que refora o ponto de vista da me.

    maria ricardina tem razo. As crianas no aludido reformatrio so tratadas como feras,

    essa a verdade. esqueceram a lio do suave mestre, sr. redator, e em vez de conquista-

    rem as crianas com bons tratos, fazem-nas mais revoltadas ainda com espancamentos

    seguidos e castigos fsicos verdadeiramente desumanos.

    c) completar o quadro com as informaes da carta do padre.

    tese

    Argumento de autoridade

    Argumento baseado em provas concretas

    Vocabulrio empregado a favor da tese

    d) leitura de um trecho da carta do diretor do reformatrio redao do Jornal da

    Tarde.

    Quanto carta de uma mulherzinha do povo, no me preocupei com ela, no merecia

    a minha resposta. Sem dvida uma das muitas que aqui vm e querem impedir que o

    reformatrio cumpra a sua santa misso de educar os seus filhos. [] Primeiro vm pedir

    lugar para os filhos. depois sentem falta deles, do produto dos furtos que eles levam para

    casa, e ento saem a reclamar contra o reformatrio. mas, como j disse, sr. diretor, esta

    carta no me preocupou. No uma mulherzinha do povo quem h de compreender a

    obra que estou realizando frente deste estabelecimento.

    e) destacar do trecho os contra-argumentos do diretor do reformatrio s acusa-

    es de dona ricardina.

    f) discutir em grupo a seguinte questo: o castigo fsico pode educar os jovens

    infratores que so recolhidos s instituies do estado?

    g) organizar os argumentos apresentados pelos elementos do grupo, completando

    o quadro a seguir:

  • cAderno de leiturAs24

    Argumentos a favor do castigo fsico como estratgia de educao dos jovens infratores

    Argumentos contra o castigo fsico como estratgia de educao dos jovens infratores

    h) escrever um pequeno texto defendendo a posio do grupo diante da questo:

    o castigo fsico pode educar os jovens infratores que so recolhidos s instituies

    do estado? utilizar pelo menos dois argumentos para defender sua posio.

    outrAs AtividAdes

    Pedir que os alunos comparem os textos de cartas redao, captulo inicial de

    Capites da Areia, e verifiquem o registro de linguagem, identificando se coloquial

    ou culto. Solicitar que observem o espao reservado a cada texto pelo jornal, o ponto

    de vista de quem escreve e o motivo pelo qual o autor do texto defende essa posio.

    Sugerir que escolham um personagem de Capites da Areia e analisem sua evoluo

    do incio ao final, verificando como ela ocorre, avaliando se o destino final coerente

    com o desenrolar da histria.

    Pedir que os alunos leiam o trecho de Gabriela, cravo e canela em que a protago-

    nista liberta o pssaro da gaiola, apontando elementos que contribuem para marcar

    o ritmo potico:

    Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente goiabeira. o gato dormia. Voou o sofr, num

    galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! gabriela sorriu. o

    gato acordou.

    indicar a leitura de Menino de engenho, de jos lins do rego, para estabelecer paralelos

    entre o modo como retratada a infncia nesta obra e em Capites da Areia. comparar

    os seguintes aspectos: meio social; condies de moradia; laos afetivos com o mun-

    do adulto; modo de vida; relacionamento com outros personagens da mesma idade.

    Propor a pesquisa de matrias jornalsticas atuais sobre o desrespeito infncia.

    ler e debater esses textos e, em seguida, organizar um debate regrado com escolha

  • Jorge AmAdo 25

    de um mediador e dos grupos que defendero posies opostas: um deles apontar a

    melhora desse problema, de meados do sculo xx at o presente; o outro sustentar

    que pouca coisa se alterou. Para defender os respectivos pontos de vista, cada um

    dos grupos dever apoiar-se em citao dos textos jornalsticos e/ou do romance

    Capites da Areia.