Deus No Pensamento Pré Socrárico

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no pensamento filosófico Tradução Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado )I( Edições Loyola

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no pensamentofilosófico

TraduçãoFrancisco De Ambrosis Pinheiro Machado

)I(Edições Loyola

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1 reparação: Maurício B. Leal

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I'''~N978-85-15-03626-4

(<.) I DIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009

Prefácio

Capítulo 1Pensamento na Grécia homérica e arcaica

Religião antes da filosofiaReligião na Grécia homérica

Filosofia na Grécia arcaica

Retrospectiva

Capítulo 2Ametafísica clássica e a Antiguidade posterior

SócratesPlatão

Arístótelês

Demais escolasNeoplatonismo

Retrospectiva

Sumário

9

lS161928SS

S7

S96271768093

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Pensamento na Gréciahomérica e arcaica

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l ~ _

Religião antes da filosofia

Perguntamos por Deus no pensamento filo-sófico. A pergunta por Deus, porém, não temsua origem na filosofia. Conceitos e repre-sentações de "Deus" ou do "divino" descen-dem da fé religiosa que antecede de longe opensamento filosófico. Desde tempos ime-moráveis as pessoas acreditavam em e adora-vam Deus ou os deuses antes de começarema pensar filosoficamente. A religião é maisoriginária que a filosofia, pois expressa umarelação espontânea do homem com Deus oucom poderes divinos antes de ser refletida nopensamento. Possui também uma totalidademaior que a filosofia, na medida em que im-plica uma concepção do homem como umtodo, abrangendo pensamento e desejo, sen-timento e ação, formando ainda o comporta-mento exterior do indivíduo bem como dacomunidade.

No 1'111.11110, i.'.111.1 ,d'W.1Il tlllll.' til, Illt'/HIIO qu ' 11'1'-fll·lid.ulI '1I11',

1111111visno dI' 1I11l1H.lo no Sl'nl ido di' umu luterpr 'la~'aodo mundo c da

II Ihumana no todo da realidade. Por isso, a compreensão religiosa dei I' do mundo desafia um pensamento próprio que interroga a causa e

I' 1'111ido de tudo, lançando a questão fundamental de toda filosofia.

(1 It 11 mcno da religião

A f losofia precede a religião. Por isso, vamos partir do fenômeno daI r-l gi5.oenquanto este forma o pano de fundo da questão filosófica deIh'lIs. Já para a compreensão do homem é significativo e admirável: al'i'ligião é um fenômeno humano geral e especificamente humano.

Não há cultura histórica, seja ela tão antiga e distante ou tãoproximamente familiar a nós, tão primitiva ou superdesenvolvida, naqual não existiria ou não tenha existido religião. Isso é historicamen-li.' comprovado. Com certeza, também houve desde muito tempodúvidas e descrenças diante de doutrinas religiosas, bem como críti-\'a das práticas religiosas e formas de culto. A crítica à religião perten- .t' ' ;\ essência desta, sem poder superá-Ia ou exterminá-Ia. Não há enunca houve cultura, no sentido de uma configuração histórica totaldas formas de vida humana e de suas determinações, sem religião.I(sta sempre pertenceu aos bens culturais de um povo ou de um con-Icxto cultural comum.

A história também ensina - e em nosso tempo provou-se denovo - que a religião não pode ser extinta, nem por uma crítica1 .órica da religião (Peuerbach, Marx e outros), nem mediante vio-I ncia política (ditadura ateísta). Não deve estar na essência dohomem que sua transcendência, sua necessidade de religião nãopode ser eliminada, mas mantém-se tenazmente viva ou volta adespertar para uma nova vida?

A religião, no entanto, não é apenas um fenômeno humano ge-ral, mas também um fenômeno específico do homem. A pesquisasobre comportamento mostra, do mesmo modo, que existem algu-mas semelhanças surpreendentes entre o comportamento animal e o 17

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

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humano, como no conhecimento, na memória e nas faculdade reati-

vas, na "inteligência" prática, no comportamento social de animais

etc. No entanto, não há aí nenhuma analogia com o que é para os ho-

mens a religião: uma relação com forças e poderes superiores e so-

brenaturais, que são adorados, provocam temor e despertam con-

fiança. A religião é um fenômeno 'exclusivamente humano e deve,

portanto, estar fundada na essência humana, ou seja, naquilo que jus-

tamente faz o homem ser homem e o diferencia de tudo o mais.

O que diferencia o homem de todas as outras coisas e de todos

os outros seres vivos, no entanto, consiste no fato de ele não estar só

submetido à necessidade dos acontecimentos naturais, mas simulta-

neamente, mesmo estando ligado, ser desvinculado desses aconteci-

mentos, liberto em si mesmo: no próprio conhecimento e na própria

inteligência, na própria decisão e na própria responsabilidade. Trata-

se da "liberdade fundamental" do homem, que determina todo o seu

comportamento e anuncia sua essência espiritual. É a condição de

seu pensamento e sua fala, de seu desejo e sua ação, da configuração

de seu mundo e do comportamento para com o mundo. Isso signifi-

ca, porém, que o homem vive em um horizonte mais vasto do que o

mundo imediatamente experimentado: no horizonte transcendente

do ser, do incondicionalmente verdadeiro e bom, orientado para o

absoluto enquanto causa primeira e sentido último de sua existência.

Juntamente com a essência espiritual do homem é dada a sua trans-

cendência. A realização consciente e manifesta da transcendência es-

sencial é religião, mesmo sendo tão plural e também freqüentem ente

imperfeita. Da reflexão a respeito origina-se o pensamento filosófico.

f\ pluralidade das religiões

111

I

Existiram e existem, no entanto, múltiplas religiões que se anunciam

nao só em diferentes formas de cultura, mas também em diversos con-

ccitos ' r prcscntaçõcs de Deus OLl do divino c de sua relação para

com o Inundo' '0111 os homens. I\s difcr -nçns são t50 gr:Jnd '$ que édiffcil ou quase impossível definir 11111con 'l'ito d ' n:ligiao qlle nao seja

t.1O .111I'allgl'111l'I' nllsl ralo.1 pOl1to dI' li'"'' ('11.10di'l.l·r IlIais l1atl.I,(' ncru

111111' 11111"111' 11111111111111<1',1111111L....•...•.•_~ __

1.\0 concreto e por isso normativo, o que excluiria alguns modos de

m.mifestação e comportamento que se definem a si mesmos como re-

ligiosos. Essas são questões da ciência histórico-empírica da religião.

No que diz respeito à questão de Deus, porém, as religiões da

humanidade distinguem-se fundamentalmente e sobretudo por

meio de sua representação de Deus ou do divino em religiões poli-

Il'btas, monoteístas e panteístas. Muitas das religiões populares anti-

f,IS c originariamente desenvolvidas são politeístas. Elas adoram um

l',',lI1de número de divindades. Se bem que, na maioria das vezes, a

.1( loração de uma única divindade, um deus superior ou um pai dos

,kIlSCS, coloca-se tão em primeiro plano que as outras divindades re-

, II.\ln, mostrando-se uma tendência à crença em um só Deus. Esta

1 unxiste não somente em que um único Deus ao lado de outros deu-

·.,'S t' adorado (monolatria), mas que só um único Deus é reconheci-.

,1(1 (monoteísrno), negando todos os outros deuses adorados em ou-

II.IS religiões, adjudicando-lhes a essência divina. A isso se une

I1 ('( 11icntcmente um panteísmo que se dirige para o todo do ser como

)'.11.1 \) Deus único, que leva, portanto, o mundo inteiro para dentro

,I,' I)Pus mesmo e entende o mundo como a auto-realização e o auto-

,II"idohramento do Deus único. Como será mostrado, tais concep-

'.' 11"; Sl'mpre voltam a aparecer. Mas elas originam-se menos de uma

1,1111 ,1í;:IO religiosa espontânea e muito mais de uma interpretação já

1IIII,.úl'ica das relações entre Deus e o mundo.

111/I I ao na Grécia homérica

111, ,s\ ,lia grega é fundamental para a filosofia no que se refere à nos-

1 ti 1.1'\.10 européia-ocidental. Por isso, vamos nos dirigir inicial-

1111'111,'.10 seu pano de fundo na religião da Grécia homérica, a partir

li I '1".1/ .1questão filosófica surgiu.

111popllllll lollgio a

I II 1'0l'lIlar nos primórclios da Gré ria .ra mais simples e do ponto

.I I I n'lIgiololO 111:1is:llll(lnlk'a do ~IU '11 mundo dos deuses que co- 19

I1'111111I1111111111/1111 (11 (li lil 111I11I(lIlc I 11 111I'IIIi~iI

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nhc emos de Hornero e Hesíodo. Os elementos básicos LI ·S/-o.1 11·11

gião remontam a tempos imemoráveis, ainda anteriores à migraç,iopara a Grécia (c. 2000 a.c.), como a adoração do pai dos deuses Zeuse também de Héstia, a deusa do forno. Junto a isso, encontraram-selocais sagrados e de culto do período anterior à Grécia, a que foramagregadas influências da cultura minóico-cretense.

Do período micênico (por volta da metade do segundo milê-nio a.c.) parece provir o pensamento de uma família patriarcal dedeuses. Da adoração dos mortos e ancestrais desenvolve-se o cultoaos heróis, que se tornou a origem de ricas mitologias. Também nes-te período surge a crença no destino inevitável (moira), que marcaprofundamente o mundo do imaginário religioso dos gregos.

Desde a época arcaica, as forças naturais, que determinam osacontecimentos do mundo e o destino humano, são adoradas comodivinas: divindades do Sol e da Lua, da Terra e do mar, das monta-nhas, das florestas e das fontes: ou ainda divindades relativas às re-lações humanas, como Amor e Ódio, Guerra e Paz, Sabedoria, Jus-tiça etc., predecessoras míticas das idéias de Platão. Tribosindividuais e cidades-estado colocam-se também sob proteção deuma divindade, adorada em culto público. No entanto, há do mes-mo modo deuses adorados por todos em seus locais de culto, o quedá à fé religiosa dos gregos uma certa unidade. Dessa forma, porexemplo, Zeus é adorado principalmente em Olímpia e ApoIo emDelfos por todas as tribos gregas mediante sacrifícios e jogos festi-vos, ou ainda, como em Delfos, na espera de oráculo divino. Trata-se de uma religião popular que não conhece uma doutrina de féobrigatória, mas que, sustentada pela comunidade, torna-se a reli-gião oficial do Estado. É tarefa da cidade-estado (pólis) celebrar oscultos e festas religiosas a fim de garantir a proteção dos deuses para

a comunidade.A religião dos gregos é um politeísmo no qual, porém, como em

religiões semelhantes, se mostra uma tendência a dar preferência auma divindade determinada, tanto no culto comum como na devo-ção individual. Nisso vive a crença em um deus superior, no pai dos

20 deuses, Zeus, que domina os outros deuses.

L Deus no pensamento filosófico

Esse 1;110 mostra 11111,1"'I,d. 111.1 1I11111olalria, ou scjn, ,\ .uloraçao de lima só divindade ('11111' IlIdll' IIS ti 'lIS .s, S nao mesmo um

passo para o monot 'lsl11o, 1'01'1.11110 para a crença em um só Deus,sem que as demais divindad 'S sejam completamente destronadas.Apesar desse traço monotcista fundamental, as divindades se man-têm sempre válidas também mais tarde no pensamento filosófico dosgregos - dos primeiros pensadores jônicos ao neoplatonismo daAntiguidade posterior. A multiplicidade dos deuses não é negada,mas relativizada para algo como forças divinas, bons ou maus espiritos, passíveis de ser adorados ou temidos, mas submetidos à divindade mais alta.

Isso fundamenta também a abertura para assumir divindades ccultos de deuses estrangeiros. Na multiplicidade dos deuses têm lugar também outros deuses, tomados de povos estrangeiros. É o casoprincipalmente das divindades de culturas orientais antigas no Egito,na Pérsia e na Babilônia, que desde longo tempo e sempre de novo- até os cultos de mistério na Antiguidade posterior - exerceraminfluência sobre a religião popular grega.

A poesia mítica

A fé religiosa dos primórdios da Grécia desenvolve-se literariamentepor meio dos cantores rapsodos a partir do século VIII a.c. Já emHomero há uma família olímpica de deuses apresentada de formaantropomórfica. Os deuses carregam características humanas, sãodotados de virtudes e vícios e há entre eles inveja, briga, ciúmes. Asepopéias de Homero tornaram-se um patrimômino fundamental daformação dos gregos, contribuindo muito para sua unidade cultural,inclusive religiosa. No entanto, contribuíram do mesmo modo paratornar o céu olímpico dos deuses algo questionável para a crença re-ligiosa e, assim, para despertar <apergunta filosófica.

Por volta da mesma época, desenvolve-se a literatura mitológicasobre a procedência dos deuses e sobre o devir do mundo. Hesíodo,um dos poetas mais antigos da Grécia (c. 700 a.c.), reúne antigos mi-tos em um contexto genealógico dos deuses de forma antropomórfi- 1'1

IPensamento na Grécia hornérica e arCilil;;1

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za, semelhante a Homero. Isso conduziria mais tarde à rqwt tI.1 11'

preensão de que Homero e Hesíodo teriam "criado para os gregus osseus deuses" (Heródoto) e atribuído aos deuses "aquilo que entre oshomens é ultraje e indecência" (Xenófanes). Entretanto, a Teogoniade Hesíodo já contém princípios constituintes de uma passagem parao pensamento filosófico.

A partir do século VI a.c. penetram na Grécia, provenientes donorte da Trácia, formas de culto órficas, dionisíacas e outras, bemcomo doutrinas secretas de origem oriental. Principalmente a.poesiaórfica alcança larga recepção, na maioria das vezes anônima. Essasdoutrinas teogônico-cosmogônicas e órficas foram em parte fundi-das e também fantasticamente aumentadas em uma literatura mito-lógica opulenta, cujo representante principal foi Ferécides de Siros(no século VI a.c.).

que ",\(11111/ 'oositlri:! lia sana", di '1"1 111 (11po S 'ria .ov» da afilia, j:1 "test 'l1lllnhado '111 01''-1.'1,1, 1\ ."1111 pt'nv stll'lamel1tc pr sa ao corpodeve ser, porém, purific:lda 1111111 d,. .ulo de renascimentos em lima

"metempsicose" e libertada (1:1 prisao do corpo.

- Isso conduz à concepção escatológica segundo a qual a alma,provindo do princípio originário, deve retomar a ele. Para isso, devepassar por um processo de purificação e expiação de sua culpa, sejanessa vida, seja nos renas cimentos, seja ainda nos castigos do inferno.Até que se reconcilie com o princípio originário ou fique condenadapara sempre.

- Em conexão com a crença do círculo entre vida e morte estáa crença na necessidade inelutável do destino. Nisso se encontra umpensamento fundamental dos gregos antigos: os homens e até mesmoos deuses estão submetidos à necessidade incondicionada (anankf)do destino (moira ou heimarmene], Ela é o poder supremo que gover-na em todos os acontecimentos, em todo devir e em todo perecimen-to. Tal crença no destino era, como parece, profundamente enraizadana consciência grega e influenciou largamente a história do pensa-mento filosófico.

Entretanto, a posição de Moira não é unívoca. Em Homero elaaparece como o poder supremo do destino, reinando também sobreos deuses. Por outro lado, em Hesíodo, encontra-se submetida ao do-mínio de Zeus, que possui sozinho o poder supremo, inclusive sobreo destino.

Do mesmo modo, pode ser questionado até que ponto tal cren-ça no destino é efetiva na religião popular e se na oração e no cultonão se exprime uma relação de plena confiança nos deuses, que possaromper com a crença num destino cego. Talvez se trate já de umacerta ideologia que vá além da devoção simples do povo. Entretanto,encontra-se um fatalismo semelhante também em outras religiões. Ese nos apoiamos nos testemunhos escritos dos gregos antigos entãoessa crença no destino é de grande peso. Não se encontra somentenas doutrinas órficas e pitagóricas, mas ainda foi tema principal das

s representações religiosas\

Deste mundo do imaginário mítico podemos acentuar alguns con-teúdos que operam em parte também na filosofia da Grécia arcaica.Entretanto, não são "doutrinas" claramente formuladas, mas manei-ras de representação que se anunciam de forma mais ou menos clarae freqüentemente indireta.

- É dominante o pensamento segundo o qual todo ser e todavida provêm de um primeiro princípio originário. Em Hesíodo talprincípio consiste no "caos', que, no entanto, não significa (comoatualmente) desordem confusa, mas vazio abissal do espaço abertoentre céu e terra, dentro do qual tudo viria a ser. O devir aparece ,como a criação originária ou o nascimento do mundo. Nisso já seprepara a questão dos primeiros jônicos sobre a arche ou sobre o prin-cípio originário de todo ente.

- Tudo o que provém do princípio originário é pensado comoanimado, mas a força vital encontra-se na alma (psychf). Daí a doutri-na animista do todo da natureza (pampsíquismo). A alma do homemfoi, como castigo por uma culpa originária, presa ao corpo, que apa-

22 rece como algemas ou prisão, como cova da alma. O pensamento de

L fílosófDeus no pensamento I asa ICO

1. Diels-Kranz 1 B 3./:\

rPensamento na Grécia homérica e ,111::111';[

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lragédias de Sófoclcs . Eurtpidcs na época clássica. Alua lnc IIlNlvl' So-

bre o pensamento filosófico: ainda Platão dirá: "Contra a ncc .ssida-de, nem mesmo os deuses lutam'".

mitos lI.'ogÓnicos, cosmogóní ·os l' (' l'.,lolóif,il'IIN. O culto pn:sclltin-

ca o a ontccímcnto mítico e prcll'IHk, por 111 zio de forças mágicas,ganhar poder obrigatório sobre a divindade.

O mundo do imaginário mítico-mágíco já testemunha a expe-riência do homem de que ele sozinho no mundo não tem saída,mas está envolto por forças da natureza e do destino, as quais nãotem sob seu poder; de que ele está submetido a forças superiores,próximas mas estranhas, conhecidas porém temíveis; de que, nofundo, ele pertence a elas e a seu mundo superior, como os antigosmitos anunciam.

O homem adora esses poderes nas coisas da natureza e nasobras de arte, às quais atribui forças divinas. Adora-as no símbolo(Sinnbild) sem ainda distinguir a "imagem" (Bild) de seu "sentido"(Sinn). O símbolo torna-se ele mesmo realidade presente do divino,atuante em e ao lado de outras forças naturais no mundo.

Do mito ao /ogos

o mundo do imaginário religioso dispõe-se como campo preparató-no do pensamento filosófico. A passagem para os primórdios da filo-sofía pode ser caracterizada como um passo do mito ao lagos (w.Nestle). Do ponto de vista de sua origem, essas palavras mal expres-Sim o que se quer com isso significar. Mito (de myein: dizer, falar,narrar) significa saga, narração. Lagos (de legein: dizer, enunciar) sig-nifica palavra, discurso, enunciado, e experimentou uma históriaconceitual que tornou lagos um dos termos fundamentais do pensa-mento filosófico. No entanto, os significados lingüísticos de mito eIogas desenvolveram-se em direções diferentes e quase opostas. JáArístóteles distingue os teólogos, que ensinam "de maneira mítica"(mythikºs), dos primeiros filósofos (pratai philosophantes'Y. Do dis-QUSO"mítico" distingue-se o pensamento "lógico" dos filósofos.

Mito significa um discurso ou narração que restitui concreta eintuitivamente um acontecimento do passado e com isso atualiza-o.l,narração mítica não se dirige tanto ao pensamento e ao entendi-mento quanto à imaginação e à vivência do narrado. Freqüentementetransmitida em forma de poesia, é uma apresentação imagética e in-tritiva que não recorre a fundamentos e conhecimentos objetivos,mas tão-somente à autoridade da tradição. Acontecimentos sagradoseportadores de salvação dos tempos passados são transpostos para opresente, a fim de mediar-lhe a salvação.

No mito, trata-se de forças e poderes do além-mundo, sobre-romanos e que ultrapassam a experiência, mas que atuam no mundo,na vida humana, na história e em seus destinos. Nesse sentido, havia

Este mundo mágico-mítico já cedo, desde por volta de 600 a.c.,foi repelido por meio do crescente conhecimento da natureza.Quanto mais fenômenos da natureza podem ser explicados por cau-sas intrínsecas ao mundo, tanto mais uma representação mítica re-cua. Já entre os jônios estabelece-se a ambição de sondar o mundopartindo da experiência e do próprio pensamento, a fim de alcançaro "princípio último de todas as coisas" (archf.pantºn) como o verda-deiro "divino".

Nisso realiza-se a passagem do mito ao lagos. O termo "lagos"(palavra) tornou-se um conceito fundamental da filosofia, masnuma grande multiplicidade de significados. Significa não só a pala-vra, mas também, objetivamente, a essência da coisa enunciada napalavra, bem como, subjetivamente, a faculdade de apreender tal es-sência, ou seja, razão ou entendimento. Em latim essa plenitude designificados também penetra no term9 ratia, que, no entanto, proce-de não do verbo"dizer", mas de "calcular" (mar). Em contraposiçãoao mito, lagos é entendido aqui como entendimento ou razão (intel-lectus ou ratia). Inicia-se o pensamento próprio do homem, que jánão se contenta com as narrativas míticas, mas procura causas racio- 25

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

2. PLATÃO, Protágoras 34Sd.24 3. ARISTÓTELES, Metafísica B 4, 1000age18.

L Deu; no pensamento filosófico

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nais, nao re .orrcndo mais ;\ trudiçao e à auLorid.ldl' .lllllg,l/ fllIl,~ .

própria experiência c à própria inteligência. No en tan I 0, ('ss(' Pl'IIS,I

mento não tem ainda por base uma oposição rigorosa entre sujeito cobjeto. Antes, o logos humano tem consciência de participar do fogosdo ser e de ali ser acolhido, ou seja, de apreender pelo pensamento aordem racional e a regularidade do acontecimento do mundo e dese lhe dispor.

Essa mudança na história espiritual pode, com restrições, sercaracterizada como uma primeira Aufkliirung. Em função de interes-ses predominantemente práticos, são adquiridos novos conhecimen-tos da natureza, que conduzem à questão sobre as causas dos fenô-menos e despertam a questão sobre a primeira "causa de tudo': Comisso, abre-se, porém, uma nova imagem espiritual do mundo, que ul-trapassa a mítica. Ela nega os deuses em forma humana sem, entre-tanto, negar as divindades, apenas relativizando-as na medida emque, para além delas, pergunta pelo único, verdadeiramente divino,acessível somente pelo pensamento. Não se trata de algo repentina-mente novo, mas de uma passagem por séculos. Muito antes, já seencontravam no mundo mítico questões e pensamentos que prepa-raram o pensamento filosófico, e as representações míticas mantêm-se atuantes por longo tempo na filosofia grega arcaica. Mesmo assim,algo novo tem início. O pensamento humano quer sondar o mundo.Questiona sobre a causa de tudo e lança, com isso, a questão funda-mental de toda filosofia.

rur IIIIlllN U)I\l\) 11011I '1'0, 111,1' {'li 11111 ,I v l'l'd.ldl' (lIlrl"cllI) ,0"1'\' 11

origem do mundo e dos d"lIIw I ('\"pl'(l( ura a verdade IlUIIl s .ntido

filosóf o. Coloca também l~xprl'HHal1l nt a questão sobre o princl

pio primeiro, do qual tudo advérn, ou seja, sobre a origem (ardI!,!.)detodo devir, Essa questão dirige-se a tudo que existe: deuses, terra, ho-mens, à totalidade do ser.Já é, como nos pensadores jônicos, a qu 'S

tão sobre o princípio originário de tudo (archfpantQn). .A maneira pela qual Hesíodo desenvolve essas questões na poc

sia épica ainda permanece, entretanto, claramente no campo mítico,

Pergunta pela verdade, porém não a procura no próprio pensamentoe na pesquisa, mas deixa-se ensinar pela Musa: uma forma literária

conhecida de Homero a Parmênides, entre outros. No entanto, aMusa aparece em Hesíodo com a exigência de anunciar a verdade. Oprimeiro princípio (archf), pelo qual se interroga, é ainda entendidoaqui como começo temporal, como "de onde" do devir, e não comoprincípio originário interior, que sustém e forma tudo e, por isso,contém-se a si mesmo. Dessa forma, tudo por cuja origem Hesíodointerroga é remetido somente a um começo comum, não, porém, aum princípio interno, ontológico.

Disso resulta que Hesíodo deve ser colocado mais ao lado da poesia mítica do que do pensamento filosófico propriamente dito, ape-sar de estar já na passagem para os primeiros filósofos - nos quais,por sua vez, elementos míticos ainda são claramente reconhecíveis.

Deve-se atentar, no entanto, para a doutrina de deus ou dos deu-ses na teogonia de Hesíodo. Ali são nomeados um grande número dedeuses, que, no entanto, não estão no mesmo nível. Acima das divin-dades com formas humanas narradas pelos mitos, há outras, nas quaisforças naturais personificadas são reconhecíveis. Entretanto, a ordemtotal do cosmo é remetida a um primeiro princípio supremo. Zeustem uma posição proeminente. Domina sobre os outros deuses, dis-tribui-lhes forças e tarefas, dispensa as leis da ordem natural, sendoaté mesmo senhor sobre o poder dodestino (moira). Nessa posiçãoeminente de Zeus, pai dos deuses, já se manifesta um passo para umdeus único e supremo, tal qual ele irá aparecer na interrogação dosfilósofos sobre o divino. ;.> I

Na passagem: Hesíodo

Desde longa data, Tales de Mileto foi chamado o primeiro dos filóso-fos gregos. Em confraposição, pergunta-se se Hesíodo já não podeser contado entre os filósofos e, portanto, se com ele a filosofia gregateria seu início (O. Gigon). Nesta questão, a passagem do mito ao 10-gos pode tornar-se clara.

O poeta e rapsodo Hesíodo (da Boécia, c. 700 a.c.) traz em suaTeogonia, ao lado da mitologia opulenta, alguns elementos que já po-

26 dem ser caracterizados como filosóficos. Ele acentua não querer nar-

L Deus no pensamento filosóficoPensamento na Grécia homérica e arcaic.:

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Filosofia na Grécia arcaica

o relato mais antigo conservado até hoje sobre a filosofia na Gréciaarcaica descende de Aristóteles". O começo é formado pelos antigosjônios, que indagam sobre o princípio originário de todo ente (archf.to» ontºn): "no que consiste todo ente, de onde surge como o primei-ro e para onde por fim se corrompe'". Esse é o começo do pensamen-to filosófico. Aristóteles entende, no entanto, que eles teriam indaga-do somente pela causa material "a partir da qual" todas as coisasexistem. Denomina-os, por isso, physikoi, não no sentido atual de fí-sicos, mas no sentido antigo da unidade entre investigadores da natu-reza e filósofos. A caracterização, comum há múito tempo, "filósofosda natureza" reduz o interesse destes, pois ambicionavam não só ex-plicar a natureza a partir das leis naturais, mas também compreendê-Ia partindo do princípio originário divino e último. Na base de seupensamento encontra-se um interesse inteiramente "teológico"(W. Jaeger). Dessa forma, abre-se-lhes uma nova perspectiva domundo, que vai muito além das representações míticas de até então econduz a uma visão metafísica total da realidade.

A origem desse pensamento localiza-se na cidade portuária jô-nica de Mileto, na costa ocidental da Ásia Menor colonizada pelosgregos. Por volta de 600 a.c., Jônia foi culturalmente mais desenvol-vida e aberta ao mundo do que sua metrópole grega. Mesmo Home-m parece ter sido natural da Jônia. A cidade portuária de Mileto foimetrópole daJônia, com relações comerciais e culturais vivas com ospovos do Oriente Próximo. Isso pode ter contribuído para a irrupçãodo pensamento, para o começo da filosofia ocidental.

talo de Mileto

'01110primeiro entre os pensadores jônicos considera-se, há muitotempo, 'Ialcs de Mileto (c. 625 a 560 a.C). Possuía conhecimentos

11. AllIS'I'Ó'I'II.I.II.S, MrI'!f(sim 1,1 10..-.. AI\I, '1'<'1'1'II.I.II.S/MI'//!I(slt'IIl)~UbH N.í'1I

I 1'"11' 1111 111111111111111111111111,lIlh 11

em geometria e astronômicos, vindos provavelmente da Babilônia edo Egito, contribuiu para o fomento da navegação, foi politicamenteativo e contado como um dos sete sábios da Grécia.

o princípio originário: a água

Tales foi o primeiro a indagar pelo princípio de todas as coisas (archf.içn pantçn ). Se ele fez uso do conceito de princípio (archt;) é questio-nável, pois foi relatado por seu sucessor Anaximandro que ele foi oprimeiro a investigar a arche. Entretanto, já em Tales tem-se em men-te aquilo a partir do que todas as coisas se originam e existem, e issoseria a água.

Com princípio (seja na palavra arche. ou não) pensa-se não so-mente no primeiro começo de um devir temporal, como em Hesío-do, mas num princípio interno, do qual não só tudo vem a ser, comotambém que se conserva imanente a tudo e, o que foi expresso pri-meiramente por Anaximandro, ao qual tudo ao se corromper retor-na. Trata-se de um princípio constitutivo e ontológico do ser.

Esse princípio seria a água (hydºr): todas as coisas surgem da:Igua e constituem-se dela. Mesmo Aristóteles pôde dar para tal expli-( ,1<;50apenas causas supostas. Estas se baseiam: na representação( I»irnológica segundo a qual a Terra seria um disco boiando sobre a.'lgU<lj na experiência biológica de que todo ser vivo depende da água,lodo vivo é úmido, a água sendo, portanto, o princípio da vida; e naII1)11L rina mitológica em que as divindades do mar Oceano e Tétis se-11.1I11:J.origem de toda geração e todo nascimento.

Aristóteles objeta que Tales, juntamente com seus sucessores,11'11.1indagado somente sobre o princípio material "no qual" algo1 IIl1sist '. Com isso, ele já pressupõe sua própria doutrina das causas,dlll'l'cllciando-as em causa material, formal, eficiente e final. O pen-.uiu-nto arcaico não conhece essas diferenças. Se a água consiste na

1 .11I,~.1d~' ludo, ela não pode ser apenas uma matéria passiva de base,111.1'.deve ser ainda a força ativamente atuante que tudo forma. A águaII I.'''' ,'I' Il;W só ao elemento cmpíri o, mas também e ao mesmo111111'(1,10poder formador em s '11 interior Ela j:1 remete simbólica- 29

I1'1111'1111111111111 1111 1:IÚLlII 1IIIIIH'III(:11 11 IIICIIII;II

Page 11: Deus No Pensamento Pré Socrárico

Anaximandro de Mileto (c. 610-545 a.c.) já vai além de Tales, prova-velmente seu preceptor. Ele teria sido o primeiro a redigir um escritofilosófico "Sobre a natureza" (peri physeQs). Deste só nos foi transmi-tido um enunciado, a primeira citação literal de um filósofo da Gréciaarcaica, e por isso famosa como a "Sentença de Anaxímandro', cujatradução literal é: "O princípio originário das coisas existentes é o

Àn.iximandro é o primeiro a indagar expressamente sobre o princípioIIl'lgin;hio (archf) não só como começo temporal, mas como o princl

piO a partir do qual tudo é gerado e ao qual tudo, quando se corrompe,ti 'V • retomar, ou seja, como princípio que sustenta ontologicamcntc.

Trata-se do princípio "dos entes" (tQn oniçn). Aqui já aparcce .1

p.ilavra que se tornará um conceito fundamental da filosofia enqu;lIlI(J onto-Iogia: "to on" (latim: ens, ente). Tal palavra, estranha parauossa linguagem cotidiana, já o era no latim: falava-se de absens, pru-cscus ctc., mas não de ens. Consiste em uma construção da linguagcmespecializada da filosofia. Em grego, porém, to on (ho Qn, ta onta etc.)1.' corrente e já se encontra em Homero. Significa "aquilo que é", 011

S .ja, num primeiro momento, as coisas que encontramos. Em umsentido mais amplo, porém, significa "tudo que é'~e esse é seu signi-I. cado aqui.

O princípio das coisas existentes consiste para Anaximandro noupeiron, quer dizer, no ilimitado. O princípio de todas as coisas não é

"nem a água, nem outro dos elementos nomeados, mas um ilimitadode essência diferente, do qual todos os céus e os mundos neles conti-dos são gerados"9. O princípio originário não pode ser um elementodeterminado, diferente de outros elementos, mas deve ser anterior atodas as coisas e todos os elementos determinados. Não pode ter ne-nhuma determinação limitadora, deve ser plenamente indetermina-do, portanto ilimitado: sem peras (limites), apeiron.

Tudo o que é gerado sur&e dele; tudo o que se corrompe retomaa ele. O começo de tudo não pode ter ele mesmo um começo; e o fim

mente pam além de si c torna se o símbolo d . uma '(lI\_l IlI1Idndol"ll,que gera e forma tudo a partir de si.

11111 1\(10 (11//('11'11/1). I)l' olld,·, PlHI"III, tllll,' 1-11" ,I W'11I,oI0 dlll'l ,~l'I'l'Il, ('

1111111\'111 P,lI"l onde m OITl' SU.I (III'IIIIH,,\(I Nl'gUlld\).1 Oht'ig,II,';\Oj I)(IIS

.1 •• p,lg,llIlllI1S ;lOSoutros cas(igos justos c pcnit lidas por suas injus

I I, IfI segulido a ordcnaçao do ícmpo'".Tudo está pleno de deuses

Esse enunciado confirma-se por outros. Tales conheceu a força mag-nética e pensou que "a pedra (ímã) teria uma alma, pois movimentao ferro", e a alma seria a origem de todo movimento". Tales parece,em função de tudo estar em movimento, considerar animadas todasas coisas da natureza. A isso se junta sua frase "tudo está pleno dedeuses'". Tal enunciado poderia ser de Tales mesmo, São, assim,os deuses ou as forças divinas que tudo formam a partir do princípiooriginário da água? Ou é a água mesma a expressão simbólica da mo-bilidade, da mutabilidade, da vivacidade de todas as coisas; símboloda alma, que tudo movimenta, e das forças divinas, das quais tudoestá pleno e pelas quais tudo é animado - símbolo, porém, que comcerteza não se distingue do que nele é significado. Com isso, já se es-taria fazendo referência, no fundo, ao mesmo significado das palavrashá muito tempo atribuídas a Heráclito: panta rei, tudo corre, tudoestá em devir, em movimento. Assim, a água parece em Tales nãosignificar somente uma matéria original, mas, simultaneamente nes-ta, uma força divina originária do devir e do movimento, que atuaanimadamente em tudo.

() IIIllldlllo originário: o ilimitado

Anaximandro

6. ARrSTÓTELES, Metafísica 1,2,40SaI9.30 7. ARrSTÓTELES, Metafísica 1,5,411 a7.

L Deus no pensamento filosófico

8. ANAXlMANDRO, in Diels-Kranz B 1.9. ANAXIMANDRO, in Diels-Kranz A 9 (Símplícío),

Pensamento na Grécia homérica e arcaic t

:11

1I1

II1

Page 12: Deus No Pensamento Pré Socrárico

, I "-til- tudo nao podt' ele nWNIIIO ter um I 1)1.li por 11'1li i1hllll \I "lc'lIlllO

ralm ente: s 'gundo t sternunhos antigos, "eterno' SI'IIl wlllll I'" (rli-

dion kai agerº) 10, "imortal e imperecível"!'. Ilimitado l.\1\lh(·11I .spa-

cialmente, pois inumeráveis mundos nascem a partir do princípiooriginário único. Ilimitado não só quantitativamente (kata megethos ),mas ainda qualitativamente no seu modo de ser (kat' eidos), pois to-das as coisas em suas particularidades nascem dele. Ele tem de com-preender ilimitadamente em si toda determinação particular.

Se o apeiron é um substrato material ou não, trata-se de umaquestão quase ociosa, pois Anaximandro não conhecia uma diferen-ciação clara entre matéria e espírito. Sua doutrina não pode por isso,como se faz com freqüência, ser ancorada no materialismo. Muitopelo contrário, Anaximandro teria, assim como outros "filósofos danatureza", chamado o princípio originário também de "o divino" (totheion), caracterizando-o como "imortal e imperecível". Trata-se doúnico e supremo, acima dos deuses olímpicos de Homero.

N,I "SI'IIII·III,".' dI' AII,IKItIl.IIHIIII", (·lItl't'!.llllo, {. dito ,linda: "pllis

,,11' pag:\ltl llllS IOS(llllros rastigos JUNtos (' Pl'lIit(\n 'ias por suas injus-

f \,1, sl'gu'Hlo a ordcnaçno do tcrnpo" I.J.\ U surgimenlo de uma .oisa

I' 11lllCl,!ljdo '01110 lima injustiça. Quando algo passa a existir, arrogaI' 1111I;1 pr ,~.I' n .ia e repele outra coisa. Essa injustiça deve ser expia-

d,l, lia medida em que o ente perece novamente, "perde-se afundan-do" ( l/~f'IIndcgehl), ou seja, retornando ao seu princípio fundador( ;/'111/(/), a fim de abrir espaço para o surgimento de outro. Aqui semostra ainda lima concepção mítica da culpa originária da existên

I in, llllC deve ser expiada por meio da morte e da decadência.Isso ocorre, porém, "segundo a ordem do tempo" (kata ten tou

f hronou taxin). A palavra taxis significa não só ordem mas tambémdisposição ou ordenação de uma sentença judicial. O tempo consiste1I:l0 só na ordem dos acontecimentos, mas também é o juiz de todageração e corrupção. Exige a penitência da corrupção pela culpa ori-ginal de ser gerado. Aqui soa novamente o pensamento originárior.r 'go da necessidade fatalista dos acontecimentos.

Pluralidade por meio de oposições

De que forma a partir de um único princípio originário a pluralidadee a diversidade das coisas nascem, Anaximandro parece querer expli-car por meio de oposições que surgem no apeiron: quente e frio, úmi-do e seco, entre outras'ê, ou seja, as oposições não são de coisas, masde propriedades ou de qualidades. Com isso, o problema da unidadee da pluralidade já está colocado, bem como dada uma primeira ten-tativa de resposta. Tal tentativa exercerá influência contínua e semprevoltará a conduzir ao problema fundamental de como a partir de umabsoluto pode surgir multiplicidade e pluralidade. Novamenteum problema que atravessa toda a história espiritual e se coloca paraqualquer pensamento da unidade, de Parmênides a Hegel, passandopor Plotino, e alcança ainda a doutrina cristã da criação.

0110 tões fundamentais e recepção

A doutrina de Anaximandro lança questões fundamentais. Uma deIas consiste em que os pensadores da Grécia arcaica temem denomi-nar "deus" (ho theos) o princípio originário supremo. No mundo des u imaginário, deus é um entre outros deuses; mesmo quando seIrata do mais alto entre eles, permanece submetido à pluralidade e à

relatividade. Daí preferirem caracterizá-Ia enquanto princípio pri-meiro a "o divino" (to theion), ou seja, como a quintessência do divi-no, a divindade ou deidade mesma. Trata-se lingüisticamente de umneutro abstrato, que expressa numa palavra neutra o que nós fazemosao utilizar um conceito abstrato. Assim, o apeiron enquanto o divinoou a divindade mesma deve ser entendido como acima da pluralida-de dos deuses singulares. Entretanto, pouco tempo depois os filóso-fos gregos ousam assinalar o princípio divino único como "o deus"10.ANAXlMANDRO, in Diels-Kranz B 2 (Hípólíto).

11. ANAXlMANDRO, in Diels-Kranz B 3 (Aristóteles, Física 3,4,203b is).32 12. ANAXlMANDRO, in Diels-Kranz A 9.

L Deus no' pensamento filosófico

l3. ANAXlMANDRO, in Diels-Kranz B 1. :\:\

Pensamento IKI GIIK:i;1 IHlIllt'III';1 I' "'.111,1

Page 13: Deus No Pensamento Pré Socrárico

(ho theos). o primeiro a fazê-lo foi Heráclito, mais tarde Platão eAristóteles, entre outros, e este deus foi pensado como distinto dapluralidade dos deuses e como uma divindade verdadeira.

A doutrina do apeiron teve uma significativa história de recep-ção. Um aspecto encontra-se já na palavra apeiron. Independente-mente do que Anaximandro sempre quis significar com ela, essapalavra tornou-se conceito de infinito, o qual, por exemplo, já os Pa-dres da Igreja cristãos declaravam de Deus mesmo quando queriamdizer infinidade absoluta e verdadeira. Com isso, eles iam muitoalém de Anaximandro. Entretanto, pensar para além de todo o limiteremete a Anaximandro. Para manter, porém, a diferença, não fala-mos aqui em "infinito", mas ainda de maneira indeterminada e aber-ta em "ilimitado':

A isso se une, igualmente atuante na história do espírito, que oilimitado deve ser indeterminado; daí nada de determinado poderser declarado dele; ele é anterior a qualquer determinação limitado-ra. Nenhuma palavra de nossa língua, nenhum conceito de nossopensamento pode apreendê-lo, ele é "inominável" e "inefável" (ar-rheton), um mistério inalcançável. Isso se torna um problema per-manente. Continua influindo mais tarde na teologia negativa, queveio a ser um dos traços principais do pensamento neoplatônico emPlotino, Proclo e outros. Nunca podemos dizer de Deus o que ele é,somente o que ele não é, pois ele vai além de tudo o que podemosdizer e nomear. A teologia negativa exerce influência mais profun-damente no contexto cristão e conduzirá à formação da doutrinaclássica da analogia, que, no entanto, nunca vai poder superar ousaltar o elemento negativo do inefável e incompreensível. Simulta-neamente, a teologia negativa continua a atuar em toda a tradição dateologia mística.

34

r

Já em Anaximandro são abordados problemas fundamentais,que têm conseqüências em toda a história do pensamento e apontampara a pergunta por Deus: a questão do primeiro princípio de todoser, da geração e corrupção, da unidade e pluralidadc, da culpa e ex-piação do mistério infinito e impronun, iávcl de Deus.

111111',1"111"'1';,1111"'1111 11111',1111,"

Anaxímenes

Um passo adiante no pensamento o dá Anaxímenes de Mileto(c. 585-525 a.c.), provavelmente discípulo de Anaximandro. Tam-bém dedicado à investigação da natureza, foi autor do escrito Sobre anatureza, que se perdeu. Ele retoma a questão sobre o princípio ori-ginário, mas dá-lhe uma nova resposta: "O princípio originário detodo existente é o ar" (archg ton oniçn agr) 14.

I'rincípío originário: o ar

'Ial doutrina poderia parecer um retrocesso. Anaximandro reconhe-cera que a arche não poderia ser um elemento determinado, daí limi-lado (como em Tales a água), mas deveria ser indeterminado e ili-mitado. Anaxímenes toma, de fato, novamente um elementodeterminado como o princípio originário: o ar. Mesmo assim, pare-~l' tratar-se da tentativa de uma síntese. O ar é ele mesmo um apei-/'01/ I ilimitado, como parece, em tamanho e extensão (kata megethos),pois ele envolve todo o mundo. Conforme sua essência (kat' eidos),por "111, é ao mesmo tempo determinado e indeterminado, limitado" ilimitado. Consiste em um elemento que, todavia, não é visível1)('111 palpável, sendo o mais fugidio e móvel. Não possui ainda 11C-

uhum eidos no sentido de uma forma perceptível, mas adquire-a cpode ser percebido somente por meio da movimentação e da trans-IOiIIW,':lO do vento e do temporal.

A IiIIIitação contínua de terminante da essência do ar ocorre porlIlI'll> tI:l rarefação ou do adensamento, Por rarefação surge o fogo,1'111 .ulcns.uncnto o vento, a nuvem, a água, a terra". Aqui já apare-I I III os quatro elementos que mais tarde, desde Empédocles, serão

I OII,',ld"f.ldos as matérias principais do mundo material: terra, :lglla,11 " logo, UI1Iadoutrina aceita até o início da Idade Moderna. Rarcfa

1,1'1 (' .ulcnx.u m-nl o remetem Anaxfrncncx à oposição entre quente l'

II IIljll"f~III,N"':', IlIlli"I" "1'.111'/,1\ J..

I " 1\I~II x f ~ 11I N II,~;,111 I )", I:; I, 1',111'/, /\ ') (S 11111 ,J f I I").

Page 14: Deus No Pensamento Pré Socrárico

(!'lo. o quenle r:lref:l'/, L' diluiu, () Iflo 01111'111\1l' retrai. Nissu t'lll ontru-se um progr .sso do P .nsamcnto t(lIl' pl'l'lllll' anunciar: "'I'lIdo (' ar"

ou "o todo é ar" (to pan esiin ho 111'1') '0,

O fragmento de Anaxímenes mais importante que nos foi con-servado afirma: "Como nossa alma (psychç), que é ar (açr), sobera-namente nos mantém unidos, assim também sopro e ar envolvemtodo o mundo (pneuma kai açr)"17. Nesse ponto, nomeia-se a analo-gia entre ar e alma. A alma (psychç) consiste no princípio da vida, nãosó dos homens, mas de todo ser vivo. A alma "soberanamente nosmantém unidos" (synkratei hemas). Ela nos domina, na medida emque reúne a pluralidade dos membros em uma unidade de tal servivo. Do mesmo modo "envolvem" (periechei) todo o cosmo "sopro ear" (pneuma kai aer). À antiga citação já foi acrescentado que pneumae açr eram usados como sinônimos, como sopro de ar". A alma mes-ma, porém, é ar, um elemento invisível, mas força real, atuante emnós e doadora de vida. Do mesmo modo concebe-se o ar, que envol-ve todo o cosmo, como uma força atuante, produtora de ordem edoadora de vida.

Pneuma enquanto espírito?

A palavra pneuma abre novamente a questão de sua recepção na his-tória. Com ela já não estaria Anaxímenes intencionando dizer espíri-to, uma realidade espiritual, anímica enquanto princípio da vida e daordem do mundo (kosmos)? A palavra vem de pnein, que significasoprar, ventar: pneuma é o sopro da respiração e do vento. Quando sediz que a alma é ar, então também a palavra psychç significa original-mente sopro ou respiração (psychein significa soprar, respirar), o queera nos tempos iniciais pensado como uma coisa só. Enquanto, po-rém, a palavra psyche. desenvolveu-se no sentido de força vital, deprincípio da vida e finalmente tornou-se a quintessência da vida aní-

16. ANAXÍMENES, in Diels-KranzA 8.17. ANAXÍMENES, in Diels-Kranz B 2.

36 18. ANAXÍMENES, in Diels-Kranz B 2.

L Deus no pensamento tílosófico

111111olf "pN(qtl l'H'~ U puluvrn 11//1'1/1/111 di' r-nvolvou se ('OI1lO ('''(11\'/1

111.10 I'Np(riLo. 'l:lIl1hl'l11l'sl:1 pulnvrn sigllllk:1 rOl\':! vital c pode :1111

dil, por exemplo I!OS estóicos, ser inl ~rpr .tada mat .rialm 'nl '.

'l'tll'IHI I\l' porém, principalmente na linguagem bíblica e do cristia-

_JIIIIIIO,l'tlllC .ito de espírito. Contribui para tal que a palavra hcbraicaIfll/I'l/, do mesmo modo significando originalmente sopro e ar, já na~lt'l'lllaginta foi traduzida por pneuma, e esse conceito, compreendi-dll l'spiritualmcnte, penetra no Novo Testamento sem perder a ana-I,Ip,ia com O vento do sopro de ar: "O espírito sopra onde quer"(/II/CIlIlIU hopou thelei pnei)J9. A mesma procedência e com um signi-I rudo análogo encontra-se na palavra latina spiritus (spirare significa11lprar, ventar), que entra na tradição com o sentido de espírito: "spi-

II/IIS ubi vult spirat?".Não devemos introduzir esses desenvolvimentos no pensamen-

Ií 1 da G récia homérica e arcaica, mas atentar para o fato de que "pneu-li/li kai ao" em Anaxímenes localiza-se no começo de uma históriade conceito. A história da recepção é uma interpretação objetivaquando as origens não são falsificadas mas compreendidas em suasinflu ências posteriores.

Para o próprio Anaxímenes, o ar é o princípio originário (archç).1 partir do qual surgem os elementos materiais. Ao mesmo tempo, é.IIgo como a alma, a força ordenadora e vital do mundo que tudo en-volve e domina, e, enquanto "sopro e ar", de longe já aponta para umarealidade espiritual. Trata-se da primeira tentativa de pensar o espiri-tual que ainda se mantém no símbolo (Symbol). Anaxímenes pensapor meio de símbolos (Sinnbild), sem distinguir da imagem (Bild) osentido (Sinn) mais elevado. Que nisso o espírito já está significadosó pode se revelar para um pensamento posterior. Sobre Deus ou so-bre o divino (theion) não há nenhuma declaração comprovada emAnaxímenes. No entanto, pode-se supor, e Aristóteles o dá a enten-der", que também ele compreendia o princípio de todo ser como

19.]oão 3,8.20.]oão 3,8.21. Aristóteles, Física 3,4,203b l3. 37

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

Page 15: Deus No Pensamento Pré Socrárico

principio originário divino c, por isso, pellsava neste último cornoespírito divino velado no símbolo.

Heráclito

Não muito longe de Mileto, ainda na região da jônia, viveu por voltade 500 a.c. Heráclito de Éfeso (545-483). Conheceu evidentementeas doutrinas vindas de Mileto, mas seguiu em seu pensamento umcaminho próprio e obstinado. Seu escrito Sobre a natureza era na An-tiguidade tão conhecido e estimado que dele se conservaram quase125 fragmentos, muito mais do que de seus predecessores de Mileto.Propiciam um olhar para sua doutrina penetrante, profeticamenteanunciada em uma linguagem obscura e impetuosa.

A lei do devir

Heráclito anuncia o logos, a palavra, a doutrina, não só enquanto dou-trina própria, mas como o sentido de todo acontecimento, a lei domundo que a tudo domina e governa. "Tudo acontece segundo oI "22 I - I'ogos ,em re açao ao qua, porem, os homens em sua maioria sãosurdos e irrefletidos'", Ainda assim, o homem está remetido ao logos,pois "da alma (psychf) é próprio o logos"?', Este, comum a todos'","todas as leis humanas alimentam-se de uma única divina'?", Abre-seao pensar (phronein) que "a todos é comum'?", pois todos possuem afaculdade de "conhecer-se a si mesmos e de pensar sensatamente(sophronein)"28j nisto consiste a excelência máxima do homem". Ologos é portanto a lei da razão que tudo governa e conduz, na qual opensamento sensato participa.

22. HERÁCLITO, in Diels- Kranz B 1.23. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 34; 72.24. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 115.25. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 2; 113.26. HERÁCLITO, in Diels- Kranz B 114.~7. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 113.28. HERÁCLITO, in Diels- Kranz, B 116.

38 29. Cf. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 112.

L Deus no pensamento filosófico

() \'oI1L 'lido de tal lei onsisíe 1',11',1 I" I'Idilo na tcnsao dos COI1-

I1 I' (IS:"O quc se diferencia concorda ('ollslgo mesmo: harmonia dci !llf\'l1S contrários como arco e Iira":", Na tensão dos esforços COI1-

II'~dos consiste a força do arco e o som da lira. Isso faz ver a lei funda-Illl'l1 tal do devir: a unidade dos opostos em tensão e luta. '1\ guerra é\I pni de todas as coisas, de todas rei."!

E mostra-se de várias maneiras: "Vida e morte, vigília e sono,J!lV '111 e velho. Até que mude, este é aquele, e, quando muda, aquele~ "32 "O f . frí(este. no torna-se quente, o quente torna-se no, o molhadotorna-se seco, o árido, úmido.P" Com isso, Heráclito retoma o pensa-mcnto dos milésios de que as coisas se determinam em suas parti-.ularídades por meio de oposições: quente e frio, úmido e seco. He-ráclito remete, no entanto, as oposições concretas a uma leifundamental do devir na luta dos contrários. Não conhece ainda o'0nceito aristotélico da potência (dynamis), mas parece pensar nascoisas que se transformam, nas determinações contrárias como quecontidas atualmente. Quando a água fria torna-se quente, calor e frioprecisam existir nela realmente. Num momento, impõe-se uma de-terminação, logo depois a outra que repele a primeira. Isso lembra ainjustiça do devir em Anaximandro, que exige o castigo da corrup-ção. Por isso, o problema fundamental dos homens está na tensãoentre vida e morte: "Quando nascem, querem viver e por isso sofrema morte, deixam filhos para que eles também morram'?",

o fogo eternamente vivo

A imagem originária de tal unidade na luta dos contrários consistepara Heráclito no "fogo eternamente vivo" em sua força destruidorae transformadora. "O universo (kosmos) não foi feito nem por umdos deuses, [nem por um homem J, mas sempre foi, é e será fogo eter-

.30. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 51.31. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 53.32. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 88.33. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 126.34. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 20.

Pensamento na Grécia homérica e arcaica

Page 16: Deus No Pensamento Pré Socrárico

narn 'IÜ' vivo (JIY" 1/'1-(/(/1/), l]u -irnando s 'gundoll1nllll.1 1 .Ipngalldo segundo medídas.P' O universo é eterno, mas t'lhll"llIh) d 'vireternamente movimentado surge do fogo e no fogo é .limin,ulo. Essaexplicação dá motivos para se ver no fogo, de acordo com Hcráclito,o princípio originário (archç) de tudo. Não o denomina assim, masensina de forma semelhante aos milésios que tudo viria a ser a partirde um princípio e ali acaba, tal princípio seria o fogo.

Assim, existe uma "transação à maneira de câmbio: de todas ascoisas por fogo e do fogo por todas as coisas, do mesmo modo comodas mercadorias por ouro e do ouro por mercadorias'l". Transaçãosignifica a compra ou a troca, no caso entre fogo e universo, e issodentro de um curso eterno. Assim como a vida humana está inseridano movimento cíclico de vida e morte, o cosmo está no de universoe fogo. Heráclito pensa num movimento cíclico eterno, não, porém,em um "eterno retorno do mesmo" (Nietzsche).

Renovadamente se afirma, inclusive com referência a Heráclito,a representação "cíclica" como a típica compreensão grega da históriae do tempo. Isso, porém, é falso. Nas antigas mitologias há claramenteum começo e um fim dos acontecimentos. Nas doutrinas pitagóricasde purificação, há por certo a metempsicose, mas com um fim quetraz a libertação do movimento cíclico. Na metafísica clássica de Pla-tão e Aristóteles encontra-se certamente a doutrina do mundo eter-no em um movimento cíclico ritmado, mas num tempo que avançalinearmente, nunca em um rigoroso retorno cíclico do mesmo.

Dessa forma, a eterna "transação" deve ser entendida tambémpara Heráclito - como para muitos outros depois dele - não comorigorosamente cíclica, mas rítmica, que não suspende o decorrer dotempo: como dia e noite, verão e inverno, vida e morte ou como omovimento cíclicos dos astros. A imagem adequada para isso não éum círculo fechado, mas um parafuso ou espiral que avança girando(como expressamente dito por Proclo "). Com certeza, encontra-se

11I, I111\,\11111dl'NI 111I11\'U'SIl.rio (1/111/111), llUl' t.unhém Sl'HlIIHlolll'

I 111111110111/11.1lodo ,1l'OIlIl'rillH'lllo: "Tudo ocorre segulldo o ti 'Illi'li. (111'111111111I1'//(')""'.

111 II \I 'Ihlo Isol(ldo

11 I'.I 110 formula amargas críticas a outras doutrinas, bem como aIIIIllll'I'Il\.' I ksfodo.lY• Caracteriza Pitágoras, na época muito estima-.111,1111110I) "dirigente de todos charlatães't". Contrapõe-se severa-111111'".unda a cultos e costumes religiosos: a sagração dos mistérios

" 11I11I,1"'llja adoração de Dionísio, um "cortejo despudorado'l". AoI ,11111,rio, pretende avançar para um conhecimento mais puro e paraI ,111111.1,:10de um único deus .

. 'cgundo ele, deus (ho theos) está acima de todas as oposições." /11,' inundo. "Para deus tudo é belo e bom e justo: os homens to-1111111111(\entanto uma coisa por injusta, outra por justa."! Somentedl'lIfl c ousistc em um sábio verdadeiro: "O ser humano não possuiI unhccimcnto, mas o divino (theion) sim":". "O homem é infantilti .lllll' de deus (daimon) como uma criança ao lado do homem'r":III.ds .It',udamente: "O macaco mais belo é feio em comparação com aI 'llÍ'l ic humana. O homem mais inteligente aparece como um maca-1(11'111.omparação com deus (theos) no que se refere à sabedoria, à

11\,/'''1,:1e tudo o mais?". Somente Nietzsche, que retoma essa senten-1,.1,substitui deus pelo além-do-homem (übermensch): "O que é oIII.H.1(0 para o homem? Uma gargalhada ou uma vergonha dolorosa.I'x.ll.\lllente isso deve ser o homem para o além-do-homem (über-

IH. IIERÁCLITO, in Diels-Kranz A 1,7j 8.I'), IIERÁCLITO, in Diels-Kranz B 42.,10, II ERÁCLITO, in Diels-Kranz B 81.-l ]. Ilam.ÁcLITo, in Diels-Kranz B 14",12. IlmtÁ.cLITo, in Diels-Kranz B 15.'11, II EltÁ.CLITO, in Diels-Kranz B 102.+1. IIERÁCLITO, in Diels-Kranz B 78.·1 <;, II ERÁCLlTO, in Diels-Kranz B 79.'Iú, IIERÁCLITO, in Diels-Kranz B 82 ss.

35. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 30.36. HERÁCLITO, in Diels- Kranz B 90.

40 37. PROCLO, Tirn. 3, 1,20.

L Deus no pensamento filosófico

41

Pensamento na Grécia homérica e arcaica - I

Page 17: Deus No Pensamento Pré Socrárico

II/C/lsd/): UIII.I '.11' I.llh,\d,\ OU llln.\ Vl'l'gollha doloros.\"", Vl •c, :ll(lIl,

quão longe vai a autoprcsunçao humana '111 I' 'volta ":01111':\ I) ·us

este que para Heráclito é a sabedoria, beleza e perfeição mais sublime, que a tudo sobressai.

A esse contexto pertence sua frase sobre o "sábio isolado" (tosophon kechorismenon}: "De todos, cujas palavras ouvis, nenhumchega ao conhecimento de que o sábio é isolado de tudo":". O que sedeve entender por "sábio" está dito em outro fragmento: "Só umacoisa é sábia: entender o pensamento (gnome), que dirige tudo detodos os modos'r", Pensamento (ou doutrina) significa logos, do quala mesma coisa é afirmada'", O conhecimento do logos é mais do quetodos os outros saberes: "Polimatia (polymathia) não ensina a pos-suir razão (nous) j senão Hesíodo e Pitágoras, também Xenofonte eHecateu, a teriam ensinado'?'. Heráclito condena a polimatia destes.A verdadeira sabedoria consiste somente na compreensão do logos,ou seja, no pensamento racional.

Tal sabedoria, no entanto, vai para além do homem e é atributosomente da divindade. Quando se fala aqui de "sábio isolado", "o sá-bio" é novamente um neutro abstrato, ou seja, a quintessência dosábio, a sabedoria mesma. Esta é isolada de tudo, elevada acima tam-bém da sabedoria humana, é sabedoria divina mais alta, da qual He-ráclito diz: "O único sábio não quer e de fato quer ser nomeado como nome de Zeus"S2. Com isso confirma-se que "o sábio" (to sophon)significa a sabedoria divina. Esta é ao mesmo tempo "o uno" acimade toda a pluralidade dos opostos, mas na tensão caracterizadora:"não quer e de fato quer" ser nomeada Zeus. Não quer porque Zeusainda é um dos deuses. A divindade mesma está acima da diversida-de dos deuses, acima mesmo de Zeus. Quer, no entanto, porque Zeusé o deus supremo de todos os deuses, de quem a divindade é própria

\'11\ s\: ntulo 111.11. pleno, Mas também Nrll num • corno 1\('111.11111

1\lII11 • (: sul 'lellle para 110111 'ar:\ verdud 'ira • supr 'ma divindadc,

I) deus m 'smo."Deus (theos) é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, fartura

l' fom.e:'S3Está acima de toda divergência, e é portanto ilimitado enominável. Como o apeiron de Anaxirnandro é indeterminado eInexprimível, assim também o deus de Heráclito subtrai-se a todos osnomes e conceitos. Éunidade dos opostos que os abrange e ultrapas-saj poderíamos dizer: a coincídentia oppositorum (Nicolau de Cusa)que rompe com qualquer compreensão humana. Heráclito at~ngeaqui um entendimento de Deus elevado e puro, mesmo que miste-

rioso e obscuro.Ainda sim se coloca a questão da relação entre o deus (theos) e

o logos. Somente deus enquanto sabedoria mais elevada detém a vi-são plena da lei universal do logos. Estaria ele diante deste como umoutro? Se o logos foi denominado a "lei divina", então o próprio deusé legislador mais ainda que Zeus? Então, não deve o acontecimento

, - d 'do mundo com todo o devir e toda a corrupçao fundar-se em eus.A questão, como Heráclito a pensou, não pode ser decidida. Comcerteza, porém, supera de longe tudo o que até então se conhecera

filosoficamente de deus.

Xenófanes

Da região cultural jônica também se ongmou Xenófane.s(c. 580-480 a.C), nascido em Colofão.Já nos anos de juventude erm-gra para a Magna Grécia e vive nas cidades gregas da Sicília e do sulda Itália como poeta e rapsodo. Ao que parece, deve ter vivido maisde cem anos. Levado por interesses puramente religiosos, elaboraaguda crítica às crenças nos deuses tradicionais e anuncia sua crença

em um único e supremo deus. ..Volta-se contra representações dos deuses exageradamente hu-

manas. "Os mortais pensam que os deuses nascem, têm roupas e voz

47. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra 1,13.48. HERÁCLITO, in Diels-Kranz, B 108.49. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 41.50.Cf. HERÁCLITO, in Diels-Kranz, B 1; entre outros.51. HERÁCLITO, in Díels-Kranz B 40.

42 52. HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 32.

L Deus no pensamento filosófico

53, HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 67.43

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

Page 18: Deus No Pensamento Pré Socrárico

c corpo como eles," ·1ASSlIll, supu '111"os 'tíopes qll 'St'lI,' lho". I'S sejam negros e tenham nariz a .hatudo, os trácios que cI 'S 11'111 olhosazuis e cabelos vermelhos'P, Junto a isso, a dura repreensao: 'Aosdeuses atribuíram Homero e Hesíodo tudo aquilo que entre os ho-mens é ignomínia e vergonha: roubo, adultério, fraude"s6. No entanto,"em verdade, os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o co-meço, mas estes, procurando, aos poucos descobrem o melhor?".Descobrir o melhor procurando também é o interesse de Xenófanes.

Assim, anuncia ele a nova doutrina de Deus: "um único deus, en-tre os deuses e os homens o maior, nada semelhante aos mortais nemno corpo, nem no pensamento'". Com isso, os deuses da religião popu-lar não são negados, mas ascendidos ao único verdadeiramente divino.E esse deus é "inteiramente visão, inteiramente pensamento, inteira-mente audição'V, não possui diferentes órgãos e forças, mas é total-mente um no ato de ver, pensar, ouvir. "E, sem esforço, ele abala tudopor meio do pensamento do espírito."? Sem se mover", movimenta ouniverso por meio da força do espírito, o que já é uma remissão distantea Aristóteles, cujo motor imóvel é um ato puro do pensamento.

O próprio Aristóteles relata sobre Xenófanes: "Dirigindo oolhar para todo o céu ele diz: o um é o deus"62.Ele teria ensinado queo princípio originário (a arche dos mílésios) seria o ser como o ume o todo, e esse seria o deus?'. Nesse momento, surge pela primeiravez a fórmula hen kai pan: um e tudo (ou o um e o todo), que desdeos eleatas até o idealismo alemão (Schelling e Fichte) reaparece emmuitos tipos de pensamento, na maioria das vezes panteístas.

Jl.ss.lIÓrnlld.1 .lplllll.1 p.lI·.I.1<1111·\.1(1d.1dllUII'II1.\d.11IIIId.ldl<doIlldll. N,to snhcmos alt.'·que pontu Xt'nÓrl1J1l'Snesse ponto p (.int crl'll<l.ldo por p;lrll' dos clcatas qu . o sucedem. Ele ITICSl110é tomadoItI'lo conhccim mto do deus único, que a tudo abrange, sem deter-I1I 1I:l1'de forma mais próxima as relações entre deus e as coisas domnudo. X mófancs é poeta e profeta do deus único, não tanto um1'!'I1/lador speculativo. Sua doutrina não é um sistema filosófico,IIIIISsurge de um arrebatamento religioso. Também ele tem COllS-

I I lida do limite do saber humano: "O que é claro (saphes) não viu1Il'IIhul11homem e nunca haverá um que o saiba sobre os deuses elodas as coisas [ ... Jj mesmo se um conseguisse maximamente ex-IJI't'ssar o perfeito, ainda assim não o saberia, a mera opinião está,IPC rada em tudo"?'. O divino mantém-se como o inapreensível e orncIávcl. Ainda assim, Xenófanes contribuiu significativamentep.lra o conhecimento do deus único e supremo, que para ele é "o11111C o todo':

I11III nênides

Segundo Arístóteles'", Parmênides de Eléia teria sido discípulo deX ·nófanes. Essa afirmação é questionável, mesmo assim uma certaproximidade é patente, seja ela dependência direta ou não, Também1,1• viveu (c. 540-480 a.c.) na região da Magna Grécia. Em Eléia,lima cidade no sul da Itália, parece ter fundado uma escola que ga-nhou grande influência. Desde há muito, aponta-se para uma opo-sição entre Parmênides e Heráclito. No entanto, se Parmênidesconheceu a doutrina de Heráclito e quis refutá-Ia, é algo hoje ques-Iionado, tal hipótese não é de se descartar, pois muitas de suas frasesI m assonância quase literal com Heráclito. A oposição entre os doisé evidente. Em contraposição à doutrina de Heráclito da mudança.onstante de todas as coisas, Parmênides anuncia o ser único, emrepouso eterno.

54. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 14.55. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 16.56. XENÓFANES, in Diels- Kranz B 11j cf. 12.57. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 18.58. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 23.59. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 24.60. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 25.61. Cf. XENÓFANES, in Diels-Kranz B 26.62. XENÓFANES, in Diels- Kranz A 30j Aristóteles, Metafísica A 5,986b24.

44 63. Cf. XENÓFANES, in Diels- Kranz A 31 (Simplício).

L Deus no pensamento filosófico

64. XENÓFANES, in Diels-Kranz, B 34.65. ARISTÓTELES,Metafísica A 5,896b22. 45

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

Page 19: Deus No Pensamento Pré Socrárico

'or e ucnsar IIII,.IS dllpl.lS l!,d,IIH,.lIlt(·S (t1I/..I'III/O/)" qUt' oulundcm ser l' 11,\0Nl'ri

I I ... 1 1 I 'I' I . I ' "'/'1I' I', s:\u IWI'P l'XIIN, NllrI llS 'l' '~(lS, ( (' 11 Ital os, massa iuuccrxn ,

que nau distingucm clnr.uu '11l • o scr do uno-s 'r.

/

De Parmênides provém o poema dilW i '0 peri physcQs (Soure a natu-reza), conservado em longos fragmentos. Segue Homero e Hesíodo,também Xenófanes, na forma épica e deixa ao modo destes uma deu-sa (Díke) aparecer no início anunciando-lhe a verdade. Essa verdadeé: o ser é, o não-ser não é66,Esse é o único caminho da verdade; nãoo seguir é errar o itinerário'", pois "o mesmo é pensar e ser"68,

Estas palavras, freqüentemente citadas e interpretadas, não de-vem ser falsamente (idealístícamente) explicadas, mas intentam di-zer numa fórmula concisa: o pensamento está remetido e subordina-do ao ser, ele pode pensar somente o existente, não o não-existente;é pensamento do ser (Seinsdenken), E o ser só é manifesto ao pensa-mento racional, não à percepção sensível. "Deve-se afirmar e pensarque o existente é; pois o ser é, mas o nada não é:'69A razão também é"um ausente presente', ela não pode "separar o existente doexistente"?". A palavras "presente-ausente" lembram Heráclito?', masaqui significam: à razão o ser é presente, mesmo quando é ausente à

percepção, Somente à razão manifesta-se o ser.Parmênides rechaça categoricamente opiniões "para as quais o

ser e o não-ser valem como o mesmo e não como o mesmo, e emtudo há um caminho contrárío't". O termo "caminho contrário" (pa-lintropos keleuthos) parece novamente remeter a Heráclito, que atri-bui a tudo uma "harmonia dos contrários" (palintropos harmoniç73)na luta dos opostos. A palavra palintropos não é freqüente, portantopoderia referir-se nesse caso a Heráclito. Deixaremos a questão emaberto. Parmênides, ainda assim, condena com duras palavras as "ca-

lill 0101110- em limit-

l) qll Parmênidcs entende por ser está desenvolvido em seu fr:'lg-1\1 .nto mais longo e importante". Neste, encontra-se uma série ti 'dl'l 'rminações que apontam para um ser absoluto. Não tem COIllC

1,0, nem fim, não se tornou, é incorruptível e imóvel. Nunca foi enunca será, pois é "completamente" agora. É um e todo, indívislvcl

l' idêntico. Para tal, Parrnênides oferece razões: se algo viesse a ser,-ntão deveria tornar-se a partir de um outro. De um existente I1JO

pode vir a ser, pois este já é; de um não-existente também não, poistlu nada nada vem a ser. Do mesmo modo, não é possível COITOIll-

pcr-se, pois precisaria tornar-se nada, mas nada não é. Passado e prcs .nte pressupõem, assim, a realidade do nada, portanto não há umvir a ser temporal, nem mudança alguma, pois o ser já é semprecompleta e perfeitamente.

Outras frases, ao contrário, mostram ainda os limites espaciaisdo ser: "Anecessidade poderosa o mantém no vínculo do limite, qUl'

o envolve por toda a volta, pois o existente não pode ser sem um fi\ll isenão seria precariamente e necessitaria do todo'?". Em Anaximand 1'0, a essência da determinação consistia no limite (peras). Por isso,o princípio originário, pressuposto a qualquer determinação, deviaser o apeiron. Para Parmênides, a essência da determinação está, domesmo modo, na limitação determinada, mas ele não via nisso umafalta, A carência de um limite seria antes uma falta de forma determi-

nada e perfeita."Havendo porém um limite último, então o ser é perfeito por

todos os lados, comparável a uma esfera bem arredondada, partindo-

66, PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 6,67. Cf. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 2.68. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 3.69. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 6.70. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 4.71: HERÁCLITO, in Diels-Kranz B 34.72. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 6,8 ss.

46 73. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 6.

L Deus no pensamento filosófico

74. C( PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 4 ss.75. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 8, 61 versos.76. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 8, versos 30 ss.

Pensamento na Grccia ilOIIH!IIC,' I! ,IILUI,(

11/

1

Page 20: Deus No Pensamento Pré Socrárico

se do ' ntro, em tudo gll.\I:'/I 1)1" "nmlo 1'(1111 isso, O Sl'1' to pl",s~.d()como espacialmente extenso, ou seja, ele ultrapassa a dimcns.to l un-poral, mas não a espacial. Dai cxigir urna figura determinada. Para O

pensamento grego (bem como, por exemplo, para os egípcios anti-gos) a esfera é espacialmente a figura mais perfeita. Por essa razão, oser deve se "igualar" a uma "esfera bem arredondada" (eukyclos sphai-rf), pensamento para o qual o pano de fundo é o cosmo, pensadocomo uma esfera imensa do mundo.

Na segunda parte do poema didático"; Parmênides apresentasua cosmogonia, na qual, porém, como ele mesmo afirma, expõe as"opiniões enganosas dos mortais"79 em contraposição à verdade doser. Não vamos abordar este ponto em detalhes.

li IlIJH1Jfllta Ilw qunlquor truç» de ['HH 1l11:Il'HpiI'i1uallwSNOill, qlH' li,1111 111111. ,'ef"l'I'(lnda r 'liginsa pONNivel.I)l'Nsa formn, tal N 'I' absoluto ('di'll t' ainda nao é. Se fosse deus, .ntao fi poria a qu stão se Parrnê-

11 dl fi d ,fende um pantcísmo, Na medida, porém, em que incxist. (1l1t'SIllO na segunda parte, cosmológica, do poema didático) qual-

qlli'l' 111cdiação entre ser e aparência, entre o sentido único e as coisas!l1!l' fi' manifestam, mal se pode falar em panteísmo. Certo é, no cn-1111110, que Parrnênides influenciou decisivamente todas as formas1" J L .riores de pensamento panteísta.

A doutrina do ser de Parmênides teve certa influência sobre Pla-I:10, bem como sobre Aristóteles. Mais tarde, também a reflexão filo-

óflca sobre o conceito cristão de Deus pôde receber alguns pontosIlt-Ia, como a necessidade absoluta, a eterna imutabilidade de Deus.No mais, porém, essa doutrina está ainda muito longe de uma com-1'1'l' .nsão bíblico-cristã de Deus. Não é um deus transcendente, nemI«-ssoal, menos ainda um criador livre, mas um ser estático repousa-do em si mesmo. Todavia, o princípio originário divino enquanto ser.ibsoluto entra no campo de visão do pensamento filosófico.

A doutrina eleática do ser foi recebida diretamente não tantol' 'Ia doutrina teológica quanto pela doutrina da natureza. Nos fílóso-f"lls da natureza posteriores, de Empédocles a Demócrito, é visível oesforço de conciliar o ser único, eterno, que não veio a ser e imutáveld . Parmênides com a experiência de uma multiplicidade móvel der xistentes, portanto esforço de mediação entre o ser (Parmênídes) eo devir (Heráclito). Eles mantêm firmemente as idéias de necessida-d " da qualidade de não ser gerado e da imperecibilidade do ser, masdesistem de sua unidade em favor de uma pluralidade inumerável departículas mínimas. Estas possuem a peculiaridade do ser eleático:sao não geradas, imperecíveis, mas unem-se e separam-se, em cons-lante movimento, no surgimento ou no perecimento das coisas.

Ser e deus?

Mais importante é para nós a questão de como o ser se relaciona comdeus. Por mais que o ser eterno e imutável de Parmênides apareçacomo ser absoluto, ele nunca o caracteriza como deus (theos ) ou comoo divino (theion). Parmênides, tenha sido discípulo de Xenófanes ounão, conhecia com certeza a doutrina deste, cuja influência é evidente.Mas no lugar daquilo a que Xenófanes se dirige como o deus únicoaparece em Parmênides o ser único. Com isso, ele não intenta negardeus ou os deuses. Fala da deusa Dike, que lhe anunciou a verdade,bem como de outros seres divinos". No entanto, não nomeia o serdeus, somente mais tarde" é que foi assim interpretado. Nisso mos-tra-se talvez novamente o receio de caracterizar o ser mais supremo eúnico verdadeiro como deus, pois seria um entre os demais deuses.

Mesmo assim, Parmênides apreende o ser como realidade abso-luta, necessária e imutável, bem como perfeita e a tudo abrangendo,se bem que pensada enquanto espacialmente limitada. Ao mesmo

77. PARMÊNIDES, in Diels-Kranz B 8, versos 42 ss.78. PARMÊNIDES, in Díels-Kranz, a partir de B 8, versos 54 ss.79. PARMÊNIDES, in Díels-Kranz B 8, versos 51 s.80. Cf. PARMÊNIDES, in Diels,Kranz B 1, verso 3; B 12, verso 3; entre outros.

48 81. Cf. PARMÊNIDES, in Díels-Kranz A 31 (Aet.).

L Deus no pensamento filosófico

l mpédocles

Empédocles, figura cercada de lendas, natural de Agrigento, na Si-cília (c. 482-424), admite no poema didático Peri physeçs um gran- 4~1

Pensamento na Grécia hornéríca e arcaica _1

Page 21: Deus No Pensamento Pré Socrárico

dl' número de P,II·!lIIII.I/-i 11\111 11111. 1011 quuí ro \',ll'llll'lltOS: (\1'1';1,

água, ar ~)go. Estas S,IO I\lir-:ltlrad,ls no sl,lllI;ms do universo

pensado, de modo sem ilhantc ;1 Parrn nidcs, omo figura esféri-

ca -, depois se isolam e compõem, segundo uma proporção de

mistura (logos tt;.smixeQs) dos elementos, as coisas corporais. A se-

paração continua até a completa dissolução, antes que uma nova

união tenha início e conduza finalmente a uma mistura uniforme

de todos os elementos no sphairos. Trata-se de um acontecimento

cídico eterno, no qual atuam as forças originárias opostas do amor

(philia), como força atrativa da união, e da luta (neikos), como força

repulsiva da separação.

Quando se pergunta sobre a procedência dessas forças, pelas

quais todas as coisas são remetidas a um acontecimento material, mal

encontramos uma resposta. Todavia, no segundo poema didático,

Katharmoi, que contém sua doutrina religiosa, há indicações a res-

peito. Ali, Empédocles, de maneira semelhante a Xenófanes e Herá-dito, elabora uma crítica sarcástica às concepções comuns sobre os

deuses, pois eles "não possuem sobre os membros uma cabeça pare-

cida com a dos homens, não se lhes balançam no dorso dois galhos

[os braços], nem pés, nem joelhos vigorosos) nem membros sexuais

com cabelos, mas somente um espírito [phrt;.n, razão] santo e sobre-

humano agita-se ali, o qual com pensamento veloz lança-se por todo

o universo'F; Portanto, também Empédodes não quer destruir a

crença nos deuses, mas ascender a um conceito de deus mais alto e

espiritualmente purificado.

"Feliz daquele que dos pensamentos divinos adquiriu um te-

souro: desventurado aquele em quem mora obscura opinião sobre os

deuses.f" Mas "não podemos trazer o divino para perto enquanto al-

cançável aos nossos olhos ou apanhá-lo com as mãos?". Todavia,

esse deus que com o pensamento lança-se por todo o universo pode-

ria ser entendido) de forma semelhante ao deus de Xenófanes que

82. EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 134.83. EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 132.

50 84. EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 133.

L Deus no pensamento filosófico

-,11Iti 1 tlldo I'0r lIll'lo do IH lIs:lInl'l1(o"'I~, l'umo n Ol'igl'lll das j'on;ns

11I11I11I11I'1It.lIs do .unur I' da luta, Eslas, Elllpédo .lcs mesmo ícrin ca

I I1 I hldo IIJI\lO "dl'lISCS"H('. .ons 'qi.ientclllentc, elas dev ri:1111s 'r

1\11I\d d,llll'III1Hl forc,';ls divinas, que atuam no universo.

II.I\lflt·dlld·s .nsina, no mais, a mctempsicose e a ressurreição.

I 1111.11'111111 uhntc sacrifica] de animais, pois almas humanas estão nc-

I 11111/1 11,IStrl• 1\1, afirma: "Eu já me tornei uma vez menino, menina,

,tlllltil, ,IVI' t' peixe mudo m.ergulhando na maré'?". Sabia de um ho-

Itll 111 dl' i-minente saber e riqueza de pensamentos, que tudo viu "em"6 . . t

111 dl'~. l' vinte vidas humanas . Pensa-se aqUI em um movimen o

I I. I1 11l'Icrn 0, sem começo e fim) ou em uma purificação e uma liber-

I \I li d\l movimento cídico para uma perfeição definitiva?•()II,lIldo se trata de dez ou vinte vidas humanas) pressupõe-se

11111 I IlIlH,\·O. Há, além disso) uma indicação sobre o fim: "Por último,

I \lI .-ut.mto, tornam-se adivinhos e cantores e médicos e príncipes em

11I1I11.IIl!\S terrestres, dos quais eles renascem como deuses) os mais

I (111'. vru honras, companheiros de lar dos outros imortais) comen-

111' I 11.\1) participantes das penas humanas, índestrutíveis"?", Assim,

h.IVI'II,l de fato uma salvação do desventurado ciclo de vida e morte

fi 111,I uma feliz comunidade com os deuses.

111)( HI()I a

( 1'\1 passo à frente dá Anaxágoras de Clazômenas, na Ásia Menor

(I . {)()-428 a.c.)) primeiro a aparecer como filósofo em Atenas na

I 1111\ .1 de Péricles. Aristóteles o louva) contrapondo-o aos anteriores

I 1II\lU o único "sóbrio em contraste com faladores vazios", pois ele

ti 11.1" 'conhecido "a razão (nous) tanto nas coisas animadas como na

ti . !',MPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 25.,/lI}.EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz A 40.H7, Cf EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 137, entre outras.flH. !',MPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 117./19. EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 129.l)O. EMPÉDOCLES, in Diels-Kranz B 146 s. 51

G "I ' . aica JPensamento na recta iornenca e arc, I -

Page 22: Deus No Pensamento Pré Socrárico

natureza .nquunto .HlS.1dI' lod.IIH·!v'/"ll·ord '111'''11.J1. p.II.1('1(' .11';\'1..\0universal ordcnadora.

Dessa razão, ou espírito, diz Anaxágoras que seria ilimitada(apeiron)) autocrática (autokratg,s)} não misturada com nenhuma ou-tra coisa} sozinha ela mesmo para si (monos autos ep' heQutou92). To-das as coisas são misturadas com todas as outras} pois cada um parti-cipa em tudo} "exceto no espírito"?'. Este está acima} existindo só parasi mesmo} não impedido por nada em sua soberania sobre tudo": "oespírito domina tudo", "o espírito ordena tudo?".

A atuação do espírito se dá na matéria dada. Inicialmente} todosos elementos eram misturados} de maneira semelhante à de Empé-docles no sphairos, até que começou a revirada (perichQrfsis)} primei-ro partindo de um ponto, mas cada vez mais apreendendo ao seu re-dor} separando e ordenando as coisas. "Completamente} porém, nadase separa um do outro} somente o espírito'?" Dele parte o movimen-to em redemoinho pelo qual tudo é formado e ordenado. Sempre epor toda a parte o espírito é atuante'".

Esse nous (razão) de Anaxágoras já deve ser entendido comouma realidade espiritual ou ainda material? Ele é caracterizado tam-bém como o mais fino (leptotatol1) e o mais puro (katharQtaton)} evi-dentemente em comparação com as coisas materiais. Daí a opiniãofreqüente de que também o nous seria pensado como coisa material(F. Ricken). Contra essa opinião} está a afirmação de que ele não se"mistura" com nada, mas está presente para todos, tudo sabe e domi-na", é somente "consigo" (eph' hautou).

Com isso, Anaxágoras parece pronunciar pela primeira vez aauto-referência e o autodomínio} o ser-consigo do espírito. Trata-se

91. ARISTÓTELES, Metafísica A 3,894b15 ss.92. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 12,1 ss.93. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 11.94. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 12,7 ss.95. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 12,7 ss.96. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 12,7 ss.97. Cf. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 14.

52 98. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 14.

L Deus no pensamento filosófico

1'111 11'1to di' tllI!.1Il'.tlid.ldt· \·Spll'lllI.tI, tllsl 1Il[.1d;ls Clllsas 111.11l'1'I.IIS.t~,11I (' pt·IIS.ld~l.rind.t corno 11111csplruo subjetivo, dirf.\ll1oS p .ssonl,111.1.11\1('1't:01l10 -spfrito obj itivo mquanto razão universal qll' '111Illdll gl)V .rna. Esse conceito de espírito pode não atingir uma clarezaI tllllpll'la, mas já aponta distintamente para uma realidade imatcrial,

pll1'.1mente espiritual.Trata-se nesse conceito de deus ou de algo divino? Anaxágoras

'11111'a chama a razão de ho theos ou to theion, talvez pela mesma preo-1upaçno de pensadores anteriores de caracterizar o ser SUpreITlO101110um deus (entre deuses). Seria ousado entender o eph' hauiou1111110"por meio de si mesmo", de tal modo que o remeteria a um ens" .,t' absoluto, a um fundamento incondicionado do ser, que denomi-11.111101'deus. De forma alguma, porém, é o Deus transcendente e pes-'1/ 1.11,,0sentido cristão. Mesmo assim, Anaxágoras prepara o caminhop.lra Platão e Aristóteles, que contribuirão decisivamente para o es-. l.rrccimento e o aprofundamento do conhecimento da realidade

t"~piritual de Deus.

I li mócríto

lI,m contraposição à filosofia da razão de Anaxágoras aparece o ato-mista Demócrito de Abdera, na Trácia (460-371 a.c.). Foi um erudi-t \ I versado em muitas matérias e pesquisador da natureza, que dese-ItlU zxplicar todo o devir e perecer por meio de um movimento eterno(' necessário - união e separação - de "átomos" mínimos. Os áto-Il!OS são concebidos eleaticamente: como não-gerados e imperecí-veis, mas a unidade do ser é dissolvida em uma infinita pluralidade de.uomos que, em movimento constante, se unem e separam-se, expli-\ .indo assim a formação e a destruição das coisas corporais. Com issoI)cmócrito funda não só o atomismo, que na época moderna man-Il'l11sua influência, como também a maneira puramente quantitativadl' observação enquanto único conhecimento "verdadeiro" da natu-reza. Por conseguinte, uma imagem de mundo materialista e mecani-, ista, na qual tudo está dominado por uma necessidade rígida, e emII1IC não sobra, por sua vez, espaço para deus ou para forças divinas. 53

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

Page 23: Deus No Pensamento Pré Socrárico

Apesar disso, Iklll\'H'I'ilo pal'CÇl' n.io í cr desl'J:ldo 11\'gnr lolal

mente os li 'lIS ·S, pois 1Il11l1l'l'OSaS Ctunn '/I [S mtcnças [ 'hcgadasaté nós tratam também LI ti 'us, por exemplo. "Os deuses doamaos homens todos os bens, tanto antigamente como agora. Somen-te tudo aquilo que é mau, prejudicial e inútil não presenteiam osdeuses aos homens nem outrora, nem agora"?". É difícil compreen-der como isso se encaixa em uma visão de mundo atomista, domesmo modo como dificilmente pode contribuir para uma dou-trina de Deus.

Protágoras

Uma virada crítico-cética do pensamento dos sofistas encerra a épo-ca inicial da filosofia grega. Limitar-nos-emos aqui a Protágoras deAbdera (480-410 a.c.), cuja frase Homo-mensura é característicapara o voltar-se para o homem: "O homem é a medida de todas ascoisas, das existentes, que são, das não-existentes, que não SãO"IOO,As primeiras palavras dessa frase são freqüente e enfaticamente cita-das e ao mesmo tempo mal entendidas. Trata-se de um enunciadocom sentido subjetivista e individualista, que suspende qualquerverdade válida.

O mesmo é mostrado, de forma característica, na frase cética deProtágoras: "Sobre os deuses eu não posso nada saber, nem que são,nem que não são, nem ainda como são aproximadamente; pois mui-tas coisas impedem o saber, a obscuridade deles e a brevidade da vidah "101 I -, ,umana . sso nao e ateísmo, mas antes um agnosticismo resigna-do que marca o fim do pensamento na Grécia homérica e arcaica, atéo despontar em Sócrates de algo novo que prepara o grande desen-volvimento da metafísica por Platão e Aristóteles.

.99. ANAXÁGORAS, in Diels-Kranz B 175.100. PROTÁGORAS, in Diels-Kranz B 1.

54 101. PROTÁGORAS, in Diels-Kranz B 4.

L Deus no pensamento filosófico

III

I I 111I 1" (.tIVH

,'"di IIIOSr -suruir« "lwÇ~1 da filosofia "pré socráti 'a": J) em seu sig11 I tido histórico problemático para a fundamentação da filosofia; ,

t) I III ('spl'rial para a questão filosófica de Deus.I () granel' . permanente significado da filosofia na Grécia ar-

II I \1 l'l1l'Onl ra x no fato de que em quase dois séculos, de 600 a 400I ( I I \'llll'rgcll1 quase todos os problemas fundamentais que desde111.\0 m.ml m o questionamento e a pesquisa em movimento. Va-

11\1111 .'!lJ' 's .ntá-los somente em palavras-chave.Unidade e pluralidade: a multiplicidade das coisas pressupõeum fundamento comum, a unidade do princípio originário dosmilésios até a unidade do ser em Parmênides; em contraposi-\';)0, há a pluralidade dos átomos em Demócrito.Ser c vir a ser: preparado pelos mílésios, alcança a oposição en-(rc o ser em repouso de Parmênides e o vir a ser sempre movi-montado de Heráclito, bem como as tentativas seguintes demediação.I:inito e infinito: do princípio originário ilimitado e indetermina-do (apeiron) de Anaximandro, passando pelo ser temporalmenteilimitado (eterno), mas espacialmente (em forma de esfera) limi-lado em Parmênides, até a razão ilimitada (apeiron) em Anaxá-goras e a pluralidade ilimitada dos átomos em Demócrito.Matéria e espírito: desde as primeiras tentativas em Anaxíme-nes de pensar como espírito o princípio originário no símbolodo ar (pneuma kai afr) até a oposição entre a razão universalem Anaxágoras e a imagem de mundo atomista-materialistade Demócrito.Mundo e deus: no esforço de ultrapassar a crença primitiva nosdeuses, desenvolve-se um conceito mais elevado de deus: o "ume todo" (hen kai pan) de Xepófanes,a sabedoria divina (com-preensão no logos) em Heráclito, o deus de Empédocles e a ra-zão universal de Anaxágoras .lmanência e transcendência: com isso pensa-se em um "deus domundo', um poder divino mais alto que governa esse mundo, 55

Pensamento na Grécia homérica e arcaica ~

Page 24: Deus No Pensamento Pré Socrárico

dUlllina l' (onll,1 nllll I't'ntldo () .lUlIlll'l'IIlH'1l10 do 111\111dojnin

da nau um deus lJur ultrapassa o mundo, verdadeiramente

transcendente, é, nesse sentido, um "deus .ósruico"

2) Especialmente para a questão de deus resultam:um deus do mundo: da pesquisa da natureza e do acontecimen-to natural coloca-se a questão de um princípio divino, mantém-se no quadro de uma explicação natural. Trata-se de um deus docosmo, um deus que atua ordenando e formando o mundo.um deus do pensamento: esse deus não é mais um deus da cren-ça mítica, mas um deus do pensamento racional, que, no entan-to, nunca procura provar sua existência. Impõe-se ao pensa-mento. A questão primária não é sobre a prova, mas "como" e"enquanto o que" se deve pensar o divino. Esse pensamento al-cança um deus do mundo, um deus cósmico.um deus dos homens? A vida dos homens mantém-se vincula-da à ordem divina do acontecimento natural. Deus, porém, nemimpõe exigências aos homens - dever moral é lei natural, nãomandamento de deus -, nem se pode rezar para esse deus, es-perar dele ajuda, proteção e graça. Não é um deus de adoraçãoreligiosa, mas um deus do pensamento filosófico, que por essemotivo não alcança o deus ou os deuses da crença religiosa,portanto não pode substituí-Ias nem repeli-los.sujeito e objeto: para o pensamento da Grécia arcaica, sujeito eobjeto ainda não estão separados. O sujeito não se contrapõe aoobjeto como um outro. O homem está vinculado ao aconteci-mento do mundo, seu pensamento participa da razão do mun-do que ele experiencia como poder divino. A reflexão sobre opensamento e a vontade próprios inicia-se somente com a sofís-tica, levando a Sócrates. Neste, pela primeira vez, surge uma re-lação completamente nova com deus: um deus que se dirigeinteriormente a ele e lhe faz reivindicações.

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L Deus no pensamento filosófico

A metafísica clássicae a Antiguidade posterior

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