Deus gosta de política e não de religião.

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  • Ttulo:

    E Deus disse: Do que eu gosto de poltica, no de religio

    Autor: Padre Mrio de Oliveira

    Gnero: religio

    Digitalizao: Servio de leitura especial de Vila Nova de Gaia

    Correco: Sandra Amaral

    Estado da obra: corrigida

    Numerao da Pgina: Rrodap

    Este livro foi digitalizado para ser lido por Deficientes Visuais

    E DEUS DISSE: DO QUE EU GOSTO DE POLTICA, NO DE RELIGIO

    Autor: Padre Mrio de Oliveira Direco grfica e capa: Loja das ideias CAMPO DAS LETRAS - Editores, S.A., 2002 Rua D. Manuel II, 33 - 5.a 4050-345 Porto Telef.: 22 60 80 870 Fax: 22 60 80 880 E-mail: campo.letras

  • mail.telepac.pt Site: www.campo-letras.pt

    Impresso: Papelmunde, SMG - V. N. de Famalico l.a edio: Dezembro de 2002

    Depsito legal N.a 188731/02

    ISBN:972-610-597-8

    Cdigo de barras: 9789726105978

    Coleco: Campo da Actualidade - 56

  • Padre Mrio de Oliveira

    E Deus disse:

    Do que eu gosto de poltica, no de religio

    Ao Gaspar

    Padre operrio que trocou a sotaina clerical por umas vulgares calas de ganga, o altar dos templos pelo volante duma carrinha, o benefcio eclesistico pelo salrio de trabalhador por conta de outrem, e a estrutura opressiva da parquia catlica pelo clima igualitrio da Comunidade crist de base.

    Ao Padre Max(imino), assassinado bomba em Vila Real por gente criminosa duma organizao de (extrema) direita, que no suportou v-lo como candidato independente a deputado nas listas duma organizao de (extrema) esquerda.

    Um e outro, cada qual ao seu jeito, continuam hoje a dizer s Igrejas que pela Poltica vivida maneira de Jesus de Nazar, e no pela Religio, que podemos mudar a sociedade e edificar uma Nova Ordem Mundial constituda na fraternidade/sororidade universal.

  • ndice

    E Deus disse: Do que eu gosto de poltica, no de religio. 11

    1. No princpio era a poltica....................................... 19

    2. Deus nunca foi Missa aos domingos........................ 23

    3. Novo Cu e nova Terra............................................ 29

    4. Ai dos ricos!......................................................... 33

    5. Padre Gaspar........................................................ 39

    6. Carta aberta a Joo Paulo II...................................... 43

    7. Mais polcia, ou mais poltica?................................. 49

    8. Dai descanso Terra!............................................. 53

    9. Transformara utopia em topia................................. 57

    10. Como ovelhas sem pastor....................................... 61

    11. Deixem os templos!............................................... 65

    12. Terceiro milnio sem padres .................................... 71

    13. Deixem as parquias............................................. 77

    14. A via Jesus........................................................... 83

    15. Pena de morte...................................................... 89

    16. O milnio dos pobres............................................. 95

    17. Deus para os ateus?...............................................101

    18. Poltica, no religio..............................................107

    19. Por um mundo de iguais.........................................113

    20. "Milagre", disse o povo...........................................119

  • 21. Bispos para qu?...................................................125

    22. Fim do celibato obrigatrio, j!.................................131

    23. Aborto: Sim Lei.................................................137

    24. Que tem Deus a ver com o futebol?...........................141

    25. Lei do Aborto: todos perdemos.................................145

    26. Regionalizao: ganharam os polticos, perdeu Portugal. 151

    27. Vosso pai odiabo................................................155

    28. A mil chegars, de dois mil no passars.....................161

    29. Pau para toda a colher............................................167

    30. 25 de Abril: foi a coisa mais bonita............................171

    31. Pelos povos contra as multinacionais........................177

    32. De novo, uma Igreja sem sacerdotes..........................183

    33. Lderes de outro tipo.............................................189

    34. Alvorada de um novo dia........................................195

    35. A Igreja catlica e o Estado portugus: 'mancebia' pblica.. 201

    36. A Pscoa dos Povos contra as multinacionais...............207

    37. Trocara religio pela poltica...................................213

    38. Primeira Comunho sem comunho...........................219

    39. Inimigos da humanidade.........................................225

    40. Resistir aos trs Poderes que dominam e governam o mundo.............................................................231

    41. A maior de todas as boas notcias.............................237

  • 42. Porta estreita....................................................243

    43. Terrorismo ou aco poltica violentai........................249

    44. ATerra, no o Cu.................................................253

    45. Nova poltica, novos polticos..................................259

    E Deus disse: Do que eu gosto de poltica, no de religio

    Pensa muita gente - quase toda a gente que, dizer Deus, dizer religio. E, em Portugal, dizer missas, templos, rezas, Ftima, procisses, promessas, santurios, padres, bispos ou pastores, frades, freiras, conventos... Como se Deus gostasse dessas coisas beatas de que, hoje, felizmente, as novas geraes j no gostam, ou gostam cada vez menos.

    Desiludam-se, se pensam que eu, como padre catlico que sou, venho aqui defender que Deus gosta de religio. Ou que foi Deus quem inventou a religio como actividade que ns seres humanos, havemos de realizar em sua honra.

    Desiludam-se, tambm, se pensam que eu, por ser padre catlico, tenho de me ocupar da religio e de todas essas coisas sem sabor, rotineiras, que se fazem nos templos em dias e horas certos, sempre a mesma coisa. Se assim fosse, ento j no seria padre catlico h muitos anos, pois, desde Maro de 1973 (altura em que fui preso pela segunda vez pela PIDE e, por via disso, o Bispo D. Antnio Ferreira Gomes me retirou a parquia de Macieira da Lixa!), que no tenho qualquer ofcio pastoral e, portanto, no tenho que me ocupar dessas coisas da religio. Felizmente!

    Alis, quando ainda era proco de Macieira da Lixa, j ento comecei a dar-me conta de que no podia ser padre ou presbtero na Igreja para fazer religio no templo em dias e horas certos. Era isso que esperavam de mim as pessoas, mas eu, que at comecei por fazer isso que as pessoas esperavam de mim, depressa me senti enojado com essas rezas, com essas lengalengas, com esses cultos-sempre-a-mesma-coisa, com essas rotinas religiosas. E interrogava-me seriamente se Deus poderia sentir-se agradado com essas coisas, quando nem eu gostava delas...

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  • Foi tambm ento que me dei conta de que se eu j no gostava nada dessas coisas - e isso foi uma revoluo na minha vida - era porque Deus tambm no gostava, nunca gostou nem nunca gostar. E, quando, entre o surpreendido e o liberto, (re)abri os Profetas bblicos, nomeadamente, Isaas e Jeremias, e os escutei com os novos ouvidos que ento se me abriram - com ouvidos de ouvir - logo tomei conscincia de que o prprio Deus quem, desde sempre nos anda a dizer: No gosto nada dos vossos cultos. No suporto os vossos sacrifcios nem os vossos jejuns. Abomino as vossas rezas e as vossas festas religiosas. O que eu quero, do que eu verdadeiramente gosto, de Justia, de misericrdia, que o po seja repartido pelos que dele carecem, que os oprimidos cheguem liberdade, que os prisioneiros sejam soltos, numa palavra, que todos os seres humanos sem excepo vivam e vivam em abundncia (cf., por exemplo, Primeiro Isaas 1, 10 e ss.; e Terceiro Isaas 58).

    Dei-me conta, igualmente, que at Jesus, na idade adulta e em plena misso, j totalmente autnomo dos seus pais e demais familiares, havia deixado de frequentar a sinagoga e o templo de Jerusalm, depois de, na fase inicial da sua misso, ainda ter l entrado, no para se integrar educadamente no culto tradicional e rotineiro que a era promovido, mas to-s para anunciar com audcia a Boa Notcia aos pobres e oprimidos pela sinagoga e pelo Templo de que Deus no gosta nada dessas coisas da religio, pois do que Ele gosta de mulheres e de homens comprometidos nas lutas e nos combates culturais, sociais e polticos em prol da Justia e da edificao duma sociedade outra, bem medida dos seres humanos, de todos os seres humanos sem discriminao de qualquer espcie.

    No sei se sabem, mas a verdade que os trs Evangelhos Sinpticos e o de Joo nos apresentam, uma e outra vez, Jesus de Nazar em dulica discusso teolgica com os chefes da religio do seu tempo. O de Mateus (9, 13) vai ao ponto de pr Jesus a dizer esta coisa espantosa: "Ide aprender o que significa: misericrdia quero, no sacrifcio." O que, em linguagem de hoje, pode traduzir-se assim: Do que eu gosto de poltica (da verdadeira poltica, evidentemente, no da sua perverso, em que

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    sempre tm sido peritos os profissionais da dita!), no de religio! E todos os quatro apresentam-nos Jesus a destruir simbolicamente o Templo de Jerusalm e a expulsar de l os que o frequentavam, concretamente, os que l vendiam e compravam, ou seja, no s os que enganavam e exploravam as populaes, mas tambm as populaes que l iam e se deixavam enganar e explorar.

  • Em seu lugar, apresenta, como nico templo e nico culto agradveis a Deus, o seu prprio corpo entregue, at morte, em prol das Causas maiores da Humanidade, a comear pela mais empobrecida e a mais oprimida.

    Ouvimo-lo tambm dizer, no Evangelho de Joo (episdio parablico da Samaritana, Cap. 4), que no devemos adorar Deus nem no Monte Garizim, nem mesmo em Jerusalm, onde ento se erguia, imponente, o respectivo Templo. E por qu? Porque - ensina Jesus contra tudo o que ensinam todas as religies e os seus lderes! - Deus Esprito, e em esprito e verdade que gosta de ser adorado. O que, evidentemente, no tem nada a ver com essas coisas de religio que se costumam fazer, regularmente, nas nossas igrejas e capelas e nas quais costumam pontificar os padres e os bispos, os pastores, e tambm o papa!

    Do mesmo modo, a Carta aos Hebreus - o texto do Novo Testamento mais anti-sacerdcio e, por isso, tambm o mais anti-religio - pe Jesus a entrar no mundo e na Histria e a dizer a Deus esta coisa espantosa: Sacrifcio e oferenda (isto , religio) no quiseste, mas preparaste-me um corpo. No te agradaram holocaustos nem sacrifcios pelos pecados. Ento, eu disse: Eis que venho - como est escrito no livro a meu respeito - para fazer, Deus, a tua vontade (10, 5-7). E a vontade de Deus qual ? "Misericrdia quero, no sacrifcios", ou seja, do que eu gosto de Poltica, no de Religio.

    Finalmente, no Apocalipse, o ltimo livro da Revelao bblica, l-se no final, a propsito da cidade ideal, ou seja, a cidade bem medida dos seres humanos plenamente desenvolvidos, livres e responsveis, esta outra coisa de espantar, que os que vivem custa da religio, no devem gostar nada e, por isso, escondem a sete chaves: "No vi templo algum na cidade!" (21, 22). O que quer dizer: na cidade ideal, no h religio. E percebe-se porqu. A cidade ideal constituda por mulheres e homens livres do medo,

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    autnomos, criadores, conscientes de que Deus vive no mais ntimo de cada homem/de cada mulher, e no em templos feitos por eles, nos quais sempre pontificam sacerdotes mais ou menos moralistas, cujo poder, para nunca chegar a ser contestado por ningum, eles dizem que vem directamente de Deus!...

    Escandalizo quem me l, ao fazer todas estas afirmaes?! No estranho. Mas o escndalo faz parte da Boa Notcia ou Evangelho que eu, como padre/presbtero da Igreja catlica, tenho de anunciar aos pobres e, por eles, a

  • toda a criatura.

    Alis, foi para isto que Jesus veio ao mundo. Para anunciar o Evangelho ou Boa Notcia aos pobres, libertar os oprimidos, fazer andar os paralticos, fazer falar os mudos (Lc 4), ou, nas palavras ainda mais teolgico-polticas, do quarto Evangelho: - "Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade" (Jo 19, 37). Foi para tirar os pobres da alienao da religio em que os grandes e os ricos da sociedade - as minorias mais espertalhonas, nas quais sempre se incluem os sacerdotes e os lderes das religies - os mantm oprimidos, assustados. Tir-los da e met-los nos combates sociais e polticos, at entrega/ perda da prpria vida, como ele prprio fez, para que a edificao do Reino de Deus prossiga na Histria, sem grandes interregnos. tambm esta a nica misso que Jesus, depois da sua Ressurreio, confia s discpulas e aos discpulos e, nelas e neles, s Igrejas que se reclamam do seu nome: Ide por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura! (Mc 16,15). No diz: Ide e fazei religio, constru templos e santurios em minha honra ou em honra de Deus...

    Alis, se uma das principais causas porque Jesus foi preso e assassinado na cruz, como maldito, por deciso dos chefes dos sacerdotes de Jerusalm, foi ter-se atrevido a profanar e a destruir simbolicamente o Templo, como que, depois da sua Ressurreio, havia de enviar as discpulas e os discpulos a fazer religio, a construir templos e santurios?!

    As religies sempre tm estado presentes na vida dos povos, desde o princpio. Hoje, tambm (felizmente, cada vez menos). Pensamos - tm-nos levado a pensar - que esta

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    constante sociolgica um bem. E que , at, um dos frutos da Presena/ Aco do Esprito de Deus no mundo.

    Nada mais errado! As religies no so um bem. Muito menos, inveno de Deus. So um mal. E inveno dos seres humanos, especialmente, dos seres humanos mais assustados perante um mundo e uma natureza que eles no conhecem suficientemente, e por isso, no controlam nem dominam. O medo criou os deuses. E as religies.

    Com as religies, vieram ao mundo muitos outros males. Podemos at dizer que elas so algo de perverso no ser humano. No so, como se diz, o que h de melhor no ser humano. So um aspecto do que h de mais perverso no

  • ser humano. S assim se compreende que elas sejam fonte de dios, de guerras, de fanatismos, de desumanidades de toda a ordem. Inclusive, nos ambientes do Antigo Testamento, em que o povo hebreu se tinha por povo eleito de Deus e, por isso, passava ao fio de espada e lanava ao antema geral as cidades vencidas, s porque seguiam um Deus ou deuses distintos do dele.

    Mas por que que digo que as religies so um aspecto do que h de mais perverso nos seres humanos? Porque as religies so meios inventados pelos seres humanos, atravs dos quais as respectivas elites dirigentes tentam dominar Deus, coloc-lO ao seu servio e ao servio dos seus interesses pessoais, familiares, de cl, tnicos ou de nao. Para que, assim, at os crimes que cometam contra a humanidade deixem de ser crimes, passem a ser obra boa e santa, cruzada, guerra santa e outras coisas perversas do gnero! Ou seja, para que Deus fique sempre como o canonizador de todos os crimes que cada povo possa cometer contra outros povos.

    S que um Deus assim, manipulado, domesticado, ao servio de certos interesses de grupo, por maior que esse grupo seja, no Deus, mas um dolo!

    Por isso, as religies so idolatria. Tudo o que fazem para tentar ter Deus por sua conta, ter Deus ao seu servio. Nem que para isso tenham de' imolar em honra dele o que as populaes tm de melhor, como so os filhos sos e escorreitos. Como aconteceu tambm entre ns, em Ftima, com aquelas duas crianas supostamente "videntes", condenadas a ter de morrer antes de tempo. Para que Deus, agradado com essa imolao de inocentes,

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    contivesse a sua ira contra os pecadores, e eles j no tivessem de ir penar para o inferno eterno!...

    Os estudiosos das religies gostam de dizer que a palavra "religio" vem do latim "religare". Com isso, querem afirmar que a religio liga-nos a Deus e uns aos outros. Mas o que as religies, historicamente, sempre tm feito e continuam a fazer separar-nos uns dos outros e de Deus; pem-nos uns contra os outros e contra Deus. No foram os chefes da religio oficial de Jerusalm, do tempo de Jesus, que, em nome de Deus, o condenaram morte e o mataram, em aliana com o representante do Imprio romano? E no consumaram este crime, de conscincia totalmente tranquila, na convico de que, com essa aco, estavam a dar glria a Deus?!...

    Os primeiros cristos, ao contrrio dos estudiosos das religies, gostavam

  • de falar de todas as religies que conheciam sua volta e das quais se haviam libertado, como "deisidaimonia", uma palavra grega que quer dizer, "medo dos demnios/dos deuses". So estes primeiros cristos que esto certos. Na verdade, a F crist, que nasce da escuta/acolhimento da Palavra de Deus, da Boa Notcia que o Deus de Jesus, o Cristo (hoje, Deus fala-nos particularmente atravs dos sinais dos tempos, dos acontecimentos carregados de apelos e de desafios, de que feita a Histria), a radical cura do medo, de todos os medos que nos levam religio.

    O primeiro homem historicamente conhecido, em quem a F despertou (sculos depois, essa F ir chamar-se crist, pois tem em Jesus Cristo, o seu fundamento, a sua fonte), foi Abrao, quando, inesperadamente, recusou imolar o seu filho nico a Deus, como mandava a religio da sua famlia e da sua terra. Abrao atreveu-se a resistir religio, pois viu nela uma tentao idoltrica.

    Com essa sua herica resistncia, abriu um caminho alternativo religio, verdadeiramente libertador e humanizador, o caminho ou a via de abertura confiante ao outro, indivduo e povo, ao diferente de mim, de ns, para com todos e cada um fazermos comunho/mesa comum, Agap. Consequentemente, tambm caminho ou via de abertura ao totalmente-Outro que, em cada instante, me /nos surpreende como um ladro, e a quem ns, falta de melhor, temos dado

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    o nome genrico de Deus, ainda que Jesus preferisse chamar-lhe Abb, Pai/Me querido. (Hoje, as crists/os cristos das comunidades de base, experimentamo-lO, sobretudo, como a Companheira/o Companheiro incondicional que nos precede em todas as Causas de libertao/humanizao da Humanidade e que nos alimenta na Caminhada, para permanecermos fiis at ao fim).

    este Deus que assim nos fala: "Eis que estou porta e bato: se algum ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20). O que significa que a intimidade entre Ele e ns, entre ns e Ele, no pode ser mais completa e total. E isso espiritualidade, ou seja, aco do Esprito de Deus em ns. No religio, ou aco de ns em Deus. espiritualidade, ou Presena/Aco do Esprito de Deus em ns.

    Pois bem, na medida em que, tambm hoje, nas nossas circunstncias concretas, damos conta desta misteriosa Presena/ Aco e cooperamos

  • conscientemente com ela - isto , fazemos Poltica, no Religio - mudamos a face da terra, recriamos o mundo e somos mulheres/homens novos, imagem e semelhana de Jesus de Nazar, o Homem por antonomsia.

    NOTA:

    Os textos que se seguem so uma antologia dos mais acutilantes Editoriais que escrevi, ao longo dos ltimos anos, no Jornal Fraterntzar, de que sou director. So por isso textos datados que "mordem" profeticamente a nossa actualidade, como sempre devem ser os textos produzidos pela reflexo teolgica das crists e dos cristos. Escandalizam? No foram escritos para escandalizar, mas para libertar. Leiam-nos neste esprito e vero que so alimento na caminhada. Porque a F crist no para nos metermos nos Templos. Os deuses e as deusas, se teimaram em existir, que cuidem deles prprios. O Deus Vivo, que habita no mais ntimo de cada uma e de cada um de ns, e que se nos revelou definitivamente em Jesus de Nazar, o Cristo, manda-nos cuidar da terra, no dos deuses. E isso poltica, no Religio.

    Aceitem o meu abrao e o meu beijo de companheiro e irmo.

    Mrio de Oliveira, presbtero

    Rua 25 de Abril, 10

    4510-460 So Pedro da Cova

    Telem. 93 393 65 02

    Telf. 22 463 59 58

    Fax: 22 467 34 70

    e-mail: fraternizar

    mail.telepac.pt stio: www.padremariodalixa.cjb.net

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    1. Deixem os templos!

    Deixem os templos!

    Era uma arte Nobre. Profundamente bela. E arriscada. Com muito de

  • divino, at. Que exige muita inteligncia. Imaginao quanto baste. Tambm muita coragem. E entranhas de misericrdia. Mas, como todas as coisas belas, sujeita a ser pervertida e corrompida. Pode ento transformar-se em algo com muito de demonaco. Que corrompe quem a protagoniza e, em vez de ajudar a salvar, deita logo a perder a sociedade, no seio da qual se exerce. Quando, bem vistas as coisas, era da sua natureza original, garantir vida e vida em abundncia para todos, a comear pelos mais fragilizados e indefesos e pelos menos dotados. a Poltica.

    Hoje, infelizmente, esta nobre arte anda pelas ruas da amargura. Tanto em Portugal, como na Europa e no resto do mundo. Por culpa, sobretudo dos polticos profissionais. Que a perverteram, ao reduzi-la luta pelo Poder. Um Poder a manter a todo o custo, ou a conquistar sem olhar a meios. Num espectculo que nos envergonha a todas e todos. E pe em risco o nosso futuro, como Humanidade. Porque, ou somos capazes de viver juntos, em relao, cooperao, reciprocidade e complementaridade - isso a Poltica - ou destrumo-nos uns aos outros, em sucessivas e cada vez mais renhidas lutas fratricidas - isso o Poder.

    Urge pois ter a coragem de parar para reflectir. Antes que seja tarde demais. Neste particular, cabe s Igrejas que se reclamam de Jesus, o Cristo, um importante papel. No, evidentemente, de substituio dos polticos, mas de evangelizao. Dos polticos e da Poltica.

    Evangelizar a Poltica e os polticos, ser uma arte ainda mais difcil do que a prpria Poltica. Mais arriscada tambm. E mais martirial.

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    Mas as Igrejas no podem sem grave pecado de omisso, deixar de o fazer. Sob pena de perderem toda a sua razo de ser na Histria.

    Se analisarmos bem, outra coisa no fez Jesus, afinal. Nem outra coisa nos deixou para fazermos, quando nos chamou a segui-lo e a prosseguir a sua Causa atravs dos tempos e em todas as naes. Na verdade, o Evangelho que, como Igrejas crists, temos de anunciar a todos os povos e naes, ou se materializa numa prtica poltica e em polticos animados de um esprito de servio desinteressado e intensamente libertador/fraternizador da cidade/ sociedade, ou no chega a ser a fecunda Boa Nova libertadora de Jesus, o Crucificado que ressuscitou.

    No princpio, era a Poltica. A Poltica estava em Deus. E Deus era a

  • Poltica. Sabemos isto, desde que, entre ns e connosco vimos e ouvimos Jesus de Nazar, o Cristo, a quem os polticos profissionais se apressaram a matar, instigados pelos profissionais da Religio. Com a conivncia do povo. Por sinal, um assassinato poltico. Congeminado e perpetrado por todos os representantes do Poder sem excepo. No porque Jesus lhes tivesse aparecido como um rival poltico, um srio candidato ao lugar que ocupavam, mas porque ousou viver entre ns e connosco, tambm diante deles, uma prtica poltica exemplar, radicalmente alternativa ao Poder deles. E que se constituiu na mais alegre e feliz boa notcia aos pobres. Que logo despertou expectativas incontrolveis e alvoroos mais do que justificados entre as multides de marginalizados, vtimas de polticos sem escrpulos que sempre confundiram poltica com Poder, e de chefes religiosos que sempre confundem Religio com Deus.

    E como foi a prtica poltica de Jesus? Em sntese: uma prtica poltica feita de verdade, no de ideologia. Feita de justia, no de demagogia. Feita de ternura, no de violncia. Feita de misericrdia para com as vtimas do Poder e da Religio, no de cinismo. Feita de solidariedade at doao da prpria vida, no de privilgios.

    Numa palavra, uma prtica poltica feita de servio promotor da dignidade perdida e roubada pelo Poder a todas e cada uma das pessoas concretas, no de domnio sobre ningum.

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    "Para isto nasci e vim ao mundo, para dar testemunho da verdade" (Jo 18,37). Eis a poltica e o poltico, no seu mais genuno sentido, tal como uma e outro vm de Deus. Para a libertao e salvao da Humanidade e do mundo.

    Pila tos, o representante poltico do Imprio de turno na Judeia, em vez da coragem para se confrontar com esta prtica poltica radicalmente libertadora e se converter de Poder que era em homem humano, simplesmente irmo - seria deixar-se Evangelizar por Jesus - preferiu fazer-se desentendido e perguntou, num misto de cinismo e de arrogncia, como costumam fazer os polticos pervertidos e corrompidos pelo Poder, tambm os que hoje conhecemos bem na nossa praa , "O que a verdade?". E sem querer mais voltar atrs para recuperar o homem que nele j se havia irremediavelmente perdido, deu meia volta, lavou cinicamente as mos e deu ordens para crucificarem Jesus. Numa atitude que ps bem a nu toda a monstruosidade do Poder.

    Evangelizar a Poltica e os polticos. Como Igrejas crists, no podemos

  • demitir-nos deste servio. O mais importante. O nico que nos pertence viver na Histria. Com sabedoria. E alegria. Tambm com coragem martirial. A exemplo de Jesus de Nazar, o poltico de Deus que nunca se deixou perverter, corromper ou subornar e se tornou para todo o sempre o exemplo acabado, o paradigma, dessa bela e nobre arte com muito de divino, que a Poltica. E graas qual poderemos chegar um dia a viver humanamente em sociedade.

    Mas ateno! Para vivermos esta misso de Evangelizar a Poltica e os polticos, confiada pelo Esprito do Deus de Jesus sua Igreja, precisamos, primeiro, de nos converter. Concretamente, precisamos de renunciar ao Poder (religioso) e quelas estruturas que, ao longo dos sculos, crimos e com as quais sacrilegamente temos perpetuado intolerveis privilgios de casta. Em nome das quais, ainda hoje nos permitimos, por exemplo, no s manter excludas dos ministrios ordenados as mulheres crists, como at determinar, para todo o sempre que o acesso delas a esses ministrios jamais pode vir a verificar-se. Como insensatamente fez a Cria Romana, na pessoa do papa Joo Paulo II, e que perfaz um verdadeiro pecado contra o Esprito Santo, um daqueles pecados que no tem perdo!

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    A converso exige-nos mais. Exige-nos que, como Igrejas crists, mudemos de campo e ousemos erguer a nossa tenda entre as vtimas que o Poder continua a impunemente a fabricar. Para, como Jesus, fazermos uma s carne com elas. At sua e nossa libertao integral.

    De resto, tambm s da que temos autoridade para Evangelizar a Poltica e os polticos profissionais, assim como a sociedade em geral. provvel que os polticos profissionais no gostem de Igrejas assim. E reajam. Assanhados. Como reagiram os homens do Sindrio, do Templo e do Imprio, da poca de Jesus. No estranharemos. E com humildade, sem nos perdermos com as suas acusaes e insultos, continuaremos a anunciar-lhes o Evangelho do Reino ou Reinado de Deus. Um Reino que, como disse Jesus, no deste mundo do Poder. Porque ele prprio este mundo com Deus dentro e com Deus por Rei. Isto , com o Esprito de Deus a trabalhar sem descanso, includos sbados e domingos, no para o possuir e dominar, mas sim para o transformar de selvagem em humano, de humano em fraterno /sororal. At que ele seja um mundo de irms e de irmos que se amam. Onde d gosto viver. Para sempre!

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  • 2. Deus nunca foi Missa aos domingos

    Decididamente, Deus nunca foi Missa aos domingos. E os templos grandiosos ou humildes nunca foram casas de Deus, embora os chefes das instituies religiosas que os mandam construir e os mantm abertos faam questo de assim lhes chamar. Mas Deus no est l. No mora l. Pela simples razo de que Deus no gosta de templos, nem de sinagogas, nem de capelas, nem dos cultos que habitualmente l tm lugar.

    s casas de Deus, Ele chama, com todas as letras, desde o profeta Jeremias (7,11), covil de ladres. E quando, cerca de sete sculos depois, se faz Deus-entre-ns-e-connosco, em Jesus de Nazar, o Cristo, escolheu para nascer uma famlia judia no sacerdotal e que morava geograficamente longe de Jerusalm, o mesmo dizer, longe do sumo sacerdote e do templo onde este, regularmente, pontificava, dominava e enriquecia, custa do santo nome de Deus. Um dia, quando j homem feito, isto , verdadeiramente autnomo, quer da famlia em que nascera e qual tivera de ser, durante anos, submisso, quer da mentalidade e da ideologia dominantes no seu pas, entrou um certo sbado na Sinagoga da terra onde morava. Deram-lhe, pela primeira vez, a palavra e ele armou l dentro o maior dos escndalos.

    Durante o culto que estava a decorrer, disse claramente que Deus, ao contrrio do que oficialmente ali se ensinava, no era s dos judeus, mas Pai-Me de todos os homens e mulheres, a comear por aquelas e aqueles que habitualmente no so considerados dignos de entrar nas sinagogas e nos templos e por quem os sacerdotes das diversas religies que h no mundo tambm no costumam morrer de amores e at evitam passar-lhes por perto, semelhana do que viro a fazer o sacerdote e o levita da parbola evanglica do samaritano (cf. Lc 10).

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    Segundo ele, todos esses rituais sem vida e sem amor que regularmente se realizam nos templos, no passam de encenaes com que uma certa elite de senhores que se tm na conta de profissionais ou funcionrios de Deus, entretm e enganam multides de pessoas que, desde a infncia, vivem dominadas pelo medo, at de Deus, e oprimidas por normas moralistas sem moral, e que quanto mais os frequentarem, mais impedidas ficam de se libertarem e de crescerem em humanidade solidria e em responsabilidade individual.

    Disse tambm que Deus no gosta de sacrifcios de vtimas humanas ou

  • animais, realizados em sua honra, nem de cultos religiosos de qualquer espcie, pois, para Ele fazer bem aos seres humanos e aos povos em geral, no est espera que eles, primeiro, sejam boas pessoas, se portem bem, sejam santos, lhe faam promessas e papagueiem oraes, como quem vai mendigar favores diante dos tiranos e dspotas.

    Deus, disse Jesus com toda a franqueza e clareza, no faz negcio com a salvao das pessoas e dos povos, nem delega em ningum para, a pretexto de dzimos e quejandos, fazer negcios em seu nome, pois nos salva a todas e a todos de graa, por pura graa, porque de todas e de todos criador e Pai-Me, e a nica coisa que quer que todas e todos vivamos e vivamos em abundncia.

    Felizmente, houve, logo ali, quem gostasse do que Jesus de Nazar - Deus-entre-ns-e-connosco - disse naquela sinagoga. At aplaudiram e nunca mais o perderam de vista. Alguns destes chegaram mesmo a fazer-se seus companheiros e deram corpo a um movimento no religioso, radicalmente libertador, duma libertao sem igual, que sempre acontece a partir de dentro para fora de cada homem/de cada mulher e que por isso nos liberta para a liberdade.

    Porm, a maior parte dos que frequentavam a sinagoga e o seu culto semanal no gostaram nada do que Jesus disse, a comear, evidentemente, pelo respectivo chefe. E todos uma enfureceram-se contra Jesus e expulsaram-no violentamente, movidos por um dio teolgico que, como se pode calcular, o pior de todos os dios, pois chega a ser capaz de matar at o prprio Deus e a matar seres humanos por amor de Deus. Entretanto, Jesus de Nazar no se afligiu por o terem expulsado da sinagoga. Afinal, l no era a sua casa, nem a casa de seu Pai-Me que, de resto, o havia enviado ao mundo e Humanidade, a comear pela mais oprimida e empobrecida, no aos templos e aos chefes religiosos. Mas j se afligiu, e duma aflio de morrer, por aqueles que o expulsaram. Porque, incompreensivelmente, eles fechavam-se verdade e ao consequente processo de libertao para a liberdade, que a verdade inevitavelmente desencadeia em quem se lhe abrir sem medo.

    Teve ento de concluir, com dor, que os seres humanos, na sua esmagadora maioria, continuam, quais crianas grandes, a preferir o medo de Deus confiana em Deus, o culto religioso comunho fraterna/sororal e partilha solidria dos bens, a opresso libertao para a liberdade, a menoridade irresponsvel maturidade responsvel, a dependncia dos poderosos com ar de benfeitores independncia vivida em clima de comunidade.

  • Numa palavra, preferem viver oprimidos e dominados por uma elite poderosa e hbil que atravs dos tempos, atrevidamente, se lhes tem apresentado como oficiais representantes de Deus, seja na roupa de chefes religiosos, seja na roupa de chefes polticos, aureolados, uns e outros de poder que, se, por um lado, parece diviniz-los aos seus prprios olhos, por outro lado mais no faz do que desumaniz-los e at demoniz-los. E a prova que, mesmo depois daquele clebre e histrico sbado, as sinagogas do pas continuaram e continuam abertas e sempre com gente a frequent-las, assim como o templo de Jerusalm e todos os templos do mundo.

    Jesus, porm, que nunca mais foi capaz de entrar em locais desses, muito menos, de participar nos cultos rotineiros que l se costumam realizar. Preferia mil vezes o convvio com os homens e as mulheres, o dilogo consciencializador e libertador com todas e com todos. Os montes e as praias do pas eram os locais que ele procurava para esse fim. Assim como as casas das pessoas de m-fama, como as dos publicanos e das prostitutas, dos sem-religio e dos oficialmente considerados pecadores pblicos, em cujas mesas era capaz de passar horas a fio, a conversar, a comer e a beber. At ganhou fama de comilo e de bebedor de vinho (Lc 7,34).

    O exemplo de Jesus de Nazar, o Cristo, criou escola. E fez-se movimento vivo, mais ou menos organizado e mais ou menos

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    clandestino. um movimento original, nico, pois nele no h nem templos, nem sacerdotes, nem hierarquia, nem cultos. Todos os seus aderentes so irms e irmos, numa radical igualdade entre homens e mulheres, sem lugar para quem quer que fosse com pretenses a ter poder sobre os demais. Nem mesmo Deus reivindica qualquer poder sobre estas pessoas, j que foi o primeiro a fazer-se Deus-entre-ns-e-connosco. Para sempre!

    Depressa, porm, tanto Jesus de Nazar como o movimento em seu redor esbarraram com a frontal e odienta oposio dos chefes religiosos do templo de Jerusalm, coligados com os grandes latifundirios do pas e com os doutores da Lei, uma espcie de telogos/idelogos do Sistema religioso-poltico imperante. Ao conclurem que no tinham hiptese de conquistar Jesus de Nazar para o lado deles e para as suas seculares posies de privilgio, concluram tambm que no podiam deix-lo andar por a mais vontade. Deliberaram, por isso, e por unanimidade, mat-lo. E foi o que fizeram, depois de, ltima hora, terem conquistado, numa hbil mas vergonhosa jogada poltica, para a sua causa, o prprio representante do Imprio romano em

  • Jerusalm, o procurador Pncio Pilatos.

    Tornou-se inequivocamente claro para todos eles que um Deus como Jesus revelava e encarnava, mais do que uma ameaa para eles e para os seus seculares privilgios, era, , a prpria subverso em pessoa. Tinham a certeza de que com Jesus entre o povo, seria de todo impossvel continuarem a manter de p um modelo concreto de mundo no qual todos eles - sacerdotes, doutores da lei, latifundirios, fariseus, chefes das naes, governadores, reis e imperadores - eram senhores mais ou menos respeitados e temidos, reverenciados e sustentados pelo povo. Vai da, crucificaram-no.

    Mal sabiam eles que Jesus de Nazar, o Cristo, alm de ser Deus-entre-ns-e-connosco, tambm o filho de Deus, precisamente, aquele Deus de vivos e no de mortos que nunca ningum viu, e por isso o tmulo onde depositaram o seu corpo morto - a verdade que no houve tmulo, mas vala comum, como sucedia com todo e qualquer maldito! - pode ter guardado o seu cadver, mas jamais o guardou a ele, porque esse mesmo Deus fez dele o Ressuscitado que para sempre vive, no nos templos, mas no mundo e na Histria, a fazer viver a muitas e muitos.

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    Felizes, pois, aquelas mulheres e aqueles homens que, tambm hoje, derem pela presena dele e se deixarem fazer por ela. Porque, ao aceitarem viver em consciente comunho com Jesus, agora para sempre ressuscitado, elas e eles constituem-se em seus templos vivos ou Igrejas-comunidade vivas, bem nos antpodas de qualquer Sistema religioso-poltico que teime em perpetuar, atravs dos sculos, a Sinagoga e o Templo (com estes nomes ou com outros) que o mataram.

    Ao mesmo tempo, essas mulheres e esses homens constituem-se tambm num sinal ou sacramento vivo que revela/proclama ao mundo a mais espantosa Boa Notcia que ele alguma vez poder conhecer/escutar. Esta: Deus, depois do Acontecimento libertador e salvador que Jesus Crucificado/Ressuscitado, e ser para sempre Deus-entre-ns-e-connosco, por isso, Algum em quem todos os seres humanos havemos de confiar, como um menino confia noutro menino, como uma menina confia noutra menina.

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    3. Novo Cu e nova Terra

  • Um novo Cu e uma nova Terra. neste ambicioso projecto de Deus que todos ns, mulheres e homens, estamos envolvidos, mesmo sem sabermos, desde o princpio. O paraso nunca existiu. Existir. No coisa do passado. coisa do futuro. Do passado apenas o seu projecto que agora tem todo o tempo histrico para ser progressivamente concretizado, at se tornar realidade definitiva, quando todos os homens e todas as mulheres forem verdadeiramente irms e irmos, numa comunho solidria sem fronteiras e sem quaisquer excluses.

    At hoje foram sempre poucos os que conheceram to ambicioso projecto e, mesmo esses nunca claramente, apenas como num espelho. Assim como foram sempre poucos os que conscientemente trabalharam e continuam a trabalhar na sua edificao. No entanto, neste ambicioso projecto duma nova Terra e dum novo Cu que toda a Humanidade, mesmo sem o saber, est envolvida, desde o princpio. Irreversivelmente. Para isso nascemos e viemos ao mundo. Nunca para termos de suportar, como absurda fatalidade, este vale de lgrimas em que alguns, por incrvel que parea continuam estupidamente apostados em transformar a Terra.

    Se hoje ainda somos do nmero daqueles e daquelas que continuam sem se dar conta de que as coisas so assim, tanto pior para ns. Porque continuaremos mais ou menos deriva no mundo e na histria, como aqueles que viajam sem bssola em alto e encapelado mar, mais ou menos desesperados e sem um sentido para a vida. A qual pode ser cheia de dores, mas so dores como as de parto. Portanto, dores com sentido. Dores provocadas pela fora da Vida que sempre irrompe, imparvel, que se afirma, progride, teima em nascer cada vez mais aperfeioada, cada vez i humanizada. E que continuamente vem pr em causa

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    situaes estabelecidas, mas ainda sem justia e sem fraternidade, e sempre nos obriga a abrir novos caminhos, com sabor a novos comeos.

    Se soubssemos j ler os sinais dos tempos - sem dvida, o saber dos saberes, a autntica sabedoria e a nica que vale verdadeiramente a pena - acabaramos por verificar que a Histria anda felizmente animada por dentro e desde o princpio, duma dinmica libertadora e salvadora, de raiz fraternizadora e solidria que poder algum, nem o dos imprios das multinacionais, nem sequer o da morte, pode neutralizar, menos ainda destruir. Dificultar, certamente. Mas boicotar de vez, nunca. Tal como no h diques, por mais gigantescos e resistentes, que possam conter, por todo o sempre, o

  • mpeto da gua do rio que corre para o mar.

    O mais espantoso em tudo isto que cada um de ns, mulher ou homem, at o fruto ou o filho mais acabado desta dinmica de que anda possuda e habitada a Histria. Foi esta dinmica que nos gerou, para que agora, com a nossa inteligncia e com as nossas mos, tambm com o calor dos nossos afectos e a nossa poesia, trabalhemos sem descanso e como numa festa sem fim, na edificao deste novo Cu e desta nova Terra, cuja construo est ininterruptamente em curso na Histria. De que seremos os primeiros beneficirios. No os nicos, j que toda a Natureza, plantas e animais includos, tambm beneficiaro.

    No falta quem, mesmo entre os membros das Igrejas crists, e perante as ciclpicas mudanas actualmente em curso na Histria, em vez de se deixar engravidar por esta dinmica criadora e salvadora, de raiz fortemente fraternizadora e solidria, e em vez de ousar viver teimosamente em conformidade com ela, prefira deixar-se apanhar pela desorientao e pelo desespero. Todas essas pessoas convertem-se ento em assustados e perigosos profetas da desgraa. E no h maneira de descolarem do muro das lamentaes em que masoquistamente se instalaram, numa atitude de manifesta esterilidade, de arrepiar.

    Outras pessoas h, mais hbeis e mais sdicas, que procuram aproveitar-se da confuso generalizada e das crises - benditas crises! - em que sucessivamente vivemos, para, sem o mnimo de escrpulos, negociarem com a desgraa dos outros, nem que seja

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    sob disfarce da sacrlega invocao do nome de Deus. E a verdade que, enquanto o diabo esfrega um olho, tm conseguido -impunemente! - acumular autnticas fortunas. Que o digam, por exemplo, os autopromovidos bispos e pastores das novas Igrejas-seitas, cada vez mais de boa sade e de vento em popa, no s em Portugal, como em muitas outras zonas sociais subdesenvolvidas do planeta.

    H depois os que, como a avestruz, preferem enterrar a cabea na areia e voltam a refugiar-se, com invulgar assiduidade, nos templos de onde h anos andavam felizmente afastados. Regressam aos idos da infncia, ocupados numa religiosidade emocional e sem histria, intimista e descomprometida que, se aparentemente consola, de facto desumaniza e aliena, anestesia e adormece, como qualquer outra droga.

  • v-los por a enamorados de um Deus bem medida dos seus medos, tambm ele assustado e desorientado, incapaz por isso de se meter na Histria e na Poltica, no v ser crucificado, como aconteceu a Jesus de Nazar, o Cristo. E como tem acontecido com quase todos os profetas, bblicos e no s, de todos os tempos e povos.

    E os cristos e as crists, sobretudo, os que nos temos na conta de mais conscientes, como reagimos s sucessivas crises e s mudanas em curso? Como vivemos o nosso dia-a-dia? O que fazemos, quando vemos crescer as dores, mas tambm as potencialidades deste nosso mundo, quando crescem as angstias, mas tambm as esperanas? Comportamo-nos como os que no tm esperana? Ou, pelo contrrio, somos presenas fecundas e alegres, politicamente empenhadas e acolhedoras, como se vssemos o Invisvel?

    Pelo menos, aquelas e aqueles de ns que somos crists e cristos por adeso pessoal a Jesus, o Cristo, e como tal, hoje e sempre, procuramos prosseguir, a tempo e fora de tempo, a sua Causa maior, temos obrigao de seguir incondicionalmente o nosso Deus na realizao do seu ambicioso projecto dum novo Cu e duma nova Terra.

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    Quer isto dizer que, como Deus, tambm devemos ser os primeiros a jamais nos conformarmos com um mundo-vale-de-"lgrimas, e os primeiros a alegrar-nos com as sucessivas

    Crises que experimenta o nosso mundo, por maiores que elas sejam. Mas no s. Devemos tambm, como o nosso Deus que trabalha continuamente, inclusive, sbados e domingos, na edificao, no de templos e capelas, menos ainda na promoo de actos de culto em honra de si mesmo, mas exclusivamente na edificao dum novo Cu e duma nova Terra que tenham como lei constitucional fundamental a fraternidade/sororidade e a solidariedade sem fronteiras, tambm ns, suas filhas e seus filhos, havemos de estar hoje e sempre na primeira linha dos que trabalham pela implementao no nosso pas e em todas as naes da terra, de economias e de polticas fraternizadoras e solidrias, com as quais nunca mais seja sequer possvel gerar excludos e marginalizados. Finalmente, assim como na realizao histrica deste projecto dum novo Cu e duma nova Terra, Deus no hesitou em jogar todo o seu prestgio e toda a sua credibilidade e jamais desistiu, mesmo quando lhe crucificaram o prprio Filho Jesus de Nazar, antes se meteu ainda mais na Histria, sob a forma de misteriosa dinmica geradora de vida fraterna e comunitria (a Igreja costuma chamar a esta dinmica, Esprito Santo), tambm

  • ns, suas filhas e seus filhos, havemos de ousar estar sempre no mundo sem sermos dele, como irmos e irms uns dos outros, havemos de ousar recusar prestgios e luxos que sempre dificultam e muitas vezes matam o processo histrico de desenvolvimento duma sociedade justa e fraterna, igualitria e solidria (que isto quer dizer a expresso "novo Cu e nova Terra"). E neste servio desinteressado e inteiramente gratuito, havemos de jogar alegremente a nossa vida e o nosso bom-nome. A ponto de fazermos dele o nosso culto contnuo a Deus e a nossa ininterrupta Eucaristia. De resto, se pensarmos bem, outra coisa no fez Jesus de Nazar, o Cristo de Deus e o Filho em quem Deus Pai-Me se reviu com todo o agrado!

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    4. Ai dos ricos!

    "Ai dos ricos!" Esta porventura a mais ousada e libertadora revelao feita por Jesus de Nazar. Uma revelao que as Igrejas que se reivindicam do seu nome devero continuar a proclamar com a mesma ousadia dele, em todo o tempo e lugar. Revelao, no maldio, nem sequer ameaa. Que no foi para amaldioar, nem para ameaar que as Igrejas foram convocadas e constitudas pelo Esprito do Deus de Jesus de Nazar, o Cristo, pois este um Deus que est interessado exclusivamente na salvao/realizao/ felicidade de todos os homens e de todas as mulheres. Revelao que essencialmente boa notcia, oportuno e libertador alerta que ajudar os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares, tambm os que hoje vivemos nos pases do Norte enriquecido, a resistirmos tentao da riqueza acumulada e concentrada, ao poder escravizador e desumanizador do Dinheiro, que assim como um demnio disfarado de deus e que, como todo o demnio que se disfara de deus, intrinsecamente perverso, mentiroso e pai de mentira, sempre a prometer a felicidade, mas para melhor poder continuar a produzir gente infeliz, a prometer vida em abundncia, mas para melhor poder continuar a provocar a morte de milhes de pobres, a prometer bem-estar, mas para melhor poder continuar a desgraar o mundo.

    Vivemos num tempo em que o dinheiro se imps maior parte das pessoas como o valor primeiro e absoluto, o deus por excelncia, ao qual toda a gente, mesmo a mais responsvel nas Igrejas, com destaque para as novas Igrejas-seitas, presta culto, sem se dar conta que ele um deus-Demnio devorador de vidas que jamais se d por satisfeito.

    Com ele sonham as famlias, as quais, em lugar de gerarem filhas e filhos, como sempre aconteceu, parece que vivem para gerar dinheiro. Com ele

  • sonham as poucas crianas que ainda conseguem nascer, como se o leite que beberam do peito das mes no fosse leite, mas dinheiro. Com ele sonham novos e velhos, homens e mulheres de todas as condies sociais.

    Por isso os jogos de azar esto no top de todas as operaes realizadas ao longo de cada semana. Contam-se por milhes os portugueses que no falham nunca no preenchimento semanal do boletim do totobola, do totoloto e do joker. E como se isto no bastasse, ainda h quem seja incapaz de falhar uma lotaria. Para alm dos inmeros concursos televisivos e das inmeras casas de jogo que nascem por toda a parte e que so frequentadas por um nmero cada vez maior de pessoas que entram l com a mesma devoo e a mesma f com que antigamente entravam numa igreja, sempre na esperana de que o deus-Dinheiro venha ench-las das suas graas, entenda-se, dos seus muitos milhes de moedas e de notas, e as deixe a chorar de satisfao e a bater palmas de contentamento, por entre liturgias regadas a champanhe, mistura com muitos abraos e beijos de parabns dos circunstantes, rodos de inveja mal disfarada.

    "Ai dos ricos!"-Jesus fez esta revelao como anttese de uma outra no menos ousada e chocante, "Felizes os pobres!". No os remediados que vivem do seu trabalho, como muitos erradamente tm interpretado estas palavras, mas os pobres condenados condio de mendigo, os pobres que no tm onde cair mortos.

    Num mundo como o nosso, onde de um lado esto os ricos cada vez mais ricos, e do outro lado esto os pobres cada vez mais pobres (uns 80 por cento da populao mundial so pobres), Jesus toma claramente partido pelos pobres cada vez mais pobres, nomeadamente, pelos pobres totais, aqueles que no tm onde cair mortos. Para canonizar a pobreza/misria em que se encontram? Para dizer que a pobreza/misria que boa? De modo algum!

    Jesus toma partido pelos pobres que no tm onde cair mortos, pela simples razo de que visceralmente contra a pobreza/misria que os faz ser tais, que os priva do

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    alimento material e espiritual, ou seja, daquela espcie de po que tem fora para matar todas as espcies de fomes que crescem dentro da cada homem/mulher e que, enquanto no forem devidamente satisfeitas, de todo impossvel que cada homem/mulher o seja integralmente. Jesus toma partido pelos pobres que no tm onde cair mortos, para, de um s golpe, acabar com a pobreza/misria que os faz definhar e os converte em abortos, seno mesmo em

  • cadveres antes de tempo. Numa palavra, para que eles, pura e simplesmente, deixem de o ser.

    "Ai dos ricos!"- Nunca homem algum foi to lcido como Jesus de Nazar. Quando o comum das pessoas, tanto do tempo dele como do nosso tempo, olham para os ricos, quase sempre so levadas a ver neles homens respeitveis, felizes, influentes, admirados, Jesus, ao contrrio, olha para os ricos e o que v, muito para l de todo o aparato exterior com que eles costumam mascarar-se, deixa-o sempre triste. Ele v que nos ricos desapareceu pura e simplesmente o homem que eles deveriam ser e no so. Em seu lugar, crescem monstros em forma humana. Da o seu grito de dor, "Ai dos ricos!".

    Mas ser que com esta revelao Jesus pretende condenar os ricos? De modo nenhum. E uma revelao que, em ltima instncia, pretende libertar e salvar os ricos. De resto, libertar e salvar todos os homens e todas as mulheres, tambm os ricos, foi mesmo a preocupao maior de Jesus, uma preocupao que para ele se concretizou na proftica e sempre arriscada misso de Evangelizar os pobres que no tm onde cair mortos, com os quais e para escndalo de muitos, ele se identificou e cuja causa fez sua at ao fim.

    Nesta sua misso/interveno libertadora e salvadora, Jesus costumava contar uma parbola que, de to expressiva, passou a andar de boca em boca e ainda hoje so muitas as pessoas que a conhecem quase de cor. A parbola ficou conhecida como do rico e do pobre Lzaro (cf. Lc 16,19-31).

    A luz desta parbola, o rico retratado como um monstro que mora num palcio, veste finas roupas e passa o tempo em banquetes. De to monstro que , nem d pela presena do mendigo Lzaro que jaz do lado de fora do palcio.

    Apesar de j naquele tempo o rico ser quase idolatrado e temido Por muitos, Jesus, nesta parbola, fecundamente reveladora,

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    retrata-o como um ser sem sentimentos, ainda abaixo de co. At os ces davam conta da presena do mendigo Lzaro e chegavam-se a ele para lhe lamber as feridas, ao passo que o rico no.

    Mas a parbola vai mais longe. Sempre sob a forma de evangelho libertador e salvador, revela tambm onde que reside a desgraa dos ricos. Precisamente, na riqueza acumulada e concentrada. esta que, onde existir, fatalmente cava um abismo intransponvel entre aqueles que a possuem e o

  • resto da Humanidade despossuda. Um abismo que no deixa passar vida humana de um lado para o outro. Um abismo que isola, anestesia, cria insensibilidade, surdez e cegueira, ou seja, desumaniza, asfixia e mata quem a tem. Como hoje vemos ser o Norte enriquecido, relativamente ao Sul empobrecido.

    luz do caso exemplar.desta parbola, os ricos, pelo simples facto de o serem, tornam-se verdadeiros monstros em forma humana que no sentem, no ouvem, no vem os pobres que produzem e que esto, aos milhes, volta dos seus palcios-fortaleza. A humanidade, o mundo, so eles, os ricos. Apenas eles. S que na medida em que crescem em riqueza acumulada e concentrada, nessa mesma medida perdem tudo o que fazia deles seres humanos. Deixam de ser seres humanos. Tornam-se monstros.

    "Ai dos ricos!"- Cabe s Igrejas que reivindicam se de Jesus, o Cristo, prosseguir, hoje e aqui, a ousada proclamao deste evangelho libertador e salvador. Para ajudar todos os seres humanos a resistir tentao do dinheiro. Porque quem se deixa arrastar por essa tentao, passa progressivamente da condio de ser humano condio de monstro. De tal modo que nem que um morto ressuscitasse e lhe viesse falar, nem assim ele se deixaria impressionar!

    Quem pode ento libertar/salvar os ricos?: "Aos homens" -esclarece Jesus - " impossvel, mas a Deus no." E que Deus esse que pode salvar todos os homens/mulheres, tambm os ricos? No evidentemente o deus-Dinheiro. S pode ser o Deus de Jesus que toma partido pelos pobres que no tm onde cair mortos, para os tirar da pobreza/misria em que jazem. Por culpa dos ricos.

    E como que Ele faz isso? No lhe resta outra possibilidade que no seja Evangelizar/Consciencializar/Libertar os pobres, para que eles, de forma proftica e politicamente organizada, ousem

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    despossuir os ricos das suas riquezas acumuladas e concentradas, essas mesmas que fazem deles uns monstros. Estes, uma vez esvaziados do excesso que os asfixiava, voltaro a recuperar a humanidade que haviam perdido, isto , voltaro a ver, a ouvir e a sentir os outros sua volta. Numa palavra, voltaro a gostar de se relacionar com toda a gente e at de comer mesma mesa com todos os "Lzaros" do mundo, seus irmos e irms. E cuja fome de po e de justia e de dignidade, porque tem tudo a ver com o Esprito ou Sopro do Deus de Jesus Cristo, liberta e salva o mundo, tambm os ricos, sempre que se faz Aco histrica e poltica organizada.

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    5. Padre Gaspar

    A vida e a morte do Gaspar, o padre operrio que a Igreja do Porto, pelo menos, ao nvel da hierarquia nunca foi capaz de assumir alegremente com todas as consequncias, constituem para toda a Igreja uma verdadeira provocao com Esprito. Que urge manter viva. E aprofundar com audcia. Para poder ser prosseguida no futuro imediato. Sob pena de imperdovel pecado contra o Esprito Santo.

    Chamado desde menino para ser, entre as mulheres e os homens do seu tempo, um rosto companheiro e misericordioso do Deus de Jesus Cristo, o Padre Gaspar cedo se deu conta de que o altar, onde diariamente deveria subir para a presidir celebrao da missa, perante uma assembleia foradamente silenciada e mantida em estado de menoridade eclesistica, mais do que oportunidade para fazer dele um homem-para-os-demais, era sobretudo um muro, um tremendo obstculo que se erguia entre ele e os demais.

    De resto, o seminrio que durante doze longos anos teve de frequentar para poder ser presbtero da Igreja que est no Porto, para l dos estudos que lhe proporcionou, o que verdadeiramente pretendia era faz-lo passar de homem a clrigo, um separado do mundo, um funcionrio do religioso mais ou menos alienado e dessintonizado da realidade mais real que so as multides de homens e de mulheres que continuam a a ter de sofrer na carne as injustias duma ordem econmico-social politicamente pensada e gerida para fabricar vtimas em srie e garantir sacrlegos privilgios a alguns poucos, entre os quais se contam tambm certos eclesisticos.

    Bastaria para isso que depois de ordenado o Padre Gaspar se deixasse ficar, a vida inteira, pelos caminhos impressionantemente curtos que vo da casa paroquial ao templo e do templo casa

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    paroquial, para que tudo lhe corresse pelo melhor, sem grandes sobressaltos. Usufruiria at de muito prestgio junto das populaes, sobretudo as mais empobrecidas. As quais, enquanto frente das naes se mantiverem governos com polticas "democraticamente" perversas, nunca conseguiro dispensar a religio e os seus ritos, at como analgsico contra as muitas dores e aflies em que se vem mergulhadas e sem sada.

  • Poderia igualmente contar com a generosidade das famlias mais influentes e ricas, que sempre as h, at com tendncia para serem benfeitoras, em qualquer parquia. Quando mais no seja, para desse modo melhor poderem esconder exploraes e outros negcios quase sempre cozinhados no escuro e sem preocupaes de respeito pelas exigncias da justia e da fraternidade.

    Mas o Esprito Santo que, desde o ventre materno, o chamou para fazer dele um homem consagrado causa da libertao dos pobres e um defensor insubornvel dos seus direitos habitualmente desrespeitados, mesmo sombra de certos campanrios paroquiais, continuou a soprar forte na conscincia do Padre Gaspar. E, um dia, fez-se mesmo anjo de carne e osso no corpo de um cristo da Comunidade Crist do Padro da Lgua. Tudo aconteceu, quando o Boa(ventura), com a frontalidade que o caracterizava, lembrou ao Gaspar que uma coisa era falar como padre e do altar para baixo contra a explorao a que esto sistematicamente sujeitos os operrios e os pobres em geral, outra coisa era ser operrio com os operrios e pobre com os pobres.

    Foi um autntico pentecostes, ou manifestao do Esprito, esta palavra que o Boa lhe disse. A partir de ento, o Padre Gaspar nunca mais foi o mesmo. Lutou, nos dias seguintes, com o Esprito Santo, como Jacob outrora (cf. Gn 33,23-32). E, felizmente, perdeu. Decidiu por isso abandonar os privilgios de funcionrio da religio, de homem do culto. Seria, da em diante e at morte, padre operrio. Nem que esta opo lhe custasse o bom-nome e a prpria vida.

    A Igreja dos pobres e das comunidades, quando soube desta deciso, desfez-se em eucaristia. Discretamente. Como discreta costuma ser a vida quando cresce no interior da terra ou no ventre duma mulher. Mas o mesmo no se deu na Igreja hierrquica, que

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    reagiu com manifesto desagrado, algum mal-estar e marginalizao quanto baste. Aos olhos da hierarquia eclesistica, um padre operrio mais parece um padre renegado. algum que perturba a ordem estabelecida. E desprestigia o clero. Ao mesmo tempo que subverte hbitos adquiridos e privilgios de casta, mantidos ao longo de sculos. Sobretudo, algum que incomoda quem no est francamente disposto a converter-se aos pobres e misso de Evangelizar os pobres.

    Mesmo assim, o Padre Gaspar no correu a pedir desculpa. Nem mostrou arrependimento. Havia lutado com o Esprito e, felizmente, sara vencido por

  • Ele. Agora j no era mais ele quem vivia, era o Esprito quem vivia nele. Iria por isso para onde o Esprito o quisesse levar.

    Despojado dos privilgios de clrigo, distante dos estrados sobre os quais se erguem os altares, e vestido de operrio, o Padre Gaspar nunca mais encontrou escancarados os stios que anteriormente lhe eram familiares. Como para Jesus, outrora, deixou de haver para ele lugar nas hospedarias e nos grandes centros. S nas margens e nas periferias. E nos glgotas. Onde vo desaguar todos os escorraados pelo Sistema. E os excludos de toda a espcie. A partir desse dia, em vez de ficar a rezar missas em srie e a presidir a outros ritos sacramentais, por sinal, bem pagos pelas pessoas que os encomendam, foi com o trabalho das prprias mos, realizado no mundo, que passou a garantir o seu sustento. Como qualquer homem e mulher que se recusam a viver custa do trabalho de outrem.

    Os altares dos templos passaram-lhe a ser, com o andar dos anos, cada vez mais estranhos. Mesmo quando, uma vez por outra, a eles subia, a convite ou a pedido de algum companheiro padre, ou ento para presidir a Eucaristias promovidas pelas Comunidades Crists de Base, a sua presena a era sempre saudvel provocao e assumia foros de fecunda subverso. Como a presena de Jesus outrora no interior do templo de Jerusalm que, em lugar de o canonizar, j anunciava profeticamente a sua destruio. Coisa que os sacerdotes que nele pontificavam e que viviam custa do negcio religioso que a se praticava, sombra do nome de Deus, depressa perceberam e nunca lhe perdoaram. At que o assassinaram.

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    Nenhum de ns, porm, ter percebido at ao fundo este Evangelho libertador do Gaspar, padre operrio. Como, de resto, nestes vinte sculos de Cristianismo, ainda no percebemos at ao fundo o Evangelho libertador que foi a prtica alternativa e revolucionria de Jesus de Nazar. Nomeadamente, ainda no percebemos que Jesus, duma vez por todas, acabou com os templos e com o sacerdcio ritualizado e segregado, ao revelar que Deus Pai-Me de todos os homens e mulheres, s aceita ser adorado em esprito e verdade (cf. Jo 4, 21-24). E por isso os adoradores que Deus procura so homens e mulheres que, como o prprio Jesus deu o exemplo, diariamente entregam as prprias vidas para a promoo da vida no mundo, em especial, uma vida abundantemente fraterna e solidria.

    O prprio Padre Gaspar ter-se- dado conta desta nossa incompreenso. E ento para que duma vez por todas nos apercebssemos da boa notcia

  • libertadora que ele h anos nos andava a dar/gritar, decidiu transformar a sua morte anunciada -aquele cancro nos pulmes foi quase fulminante - na maior provocao proftica da sua vida.

    Para tanto, reclamou que o seu defunto corpo de padre operrio fosse vestido para a sepultura, no com os tradicionais paramentos litrgicos, mas sim com a roupa de operrio, a mesma que todos os dias ele vestia para ir trabalhar. E, nas mos, a Bblia, em lugar do tradicional clice da missa.

    Com to inesperado gesto final, o Esprito Santo e o Padre Gaspar em comunho com Ele, a esto agora a desafiar a Igreja: que ela deixe definitivamente de viver confinada nos templos e em redor dos altares, onde, gerao aps gerao, tem permanecido a repetir monotonamente ritos sem vida e actos de culto que no tm nada a ver com a adorao em esprito e verdade que o Deus de Jesus Crucificado /Ressuscitado tanto procura.

    Em vez disso, a Igreja passe a viver, com a audcia e a criatividade dos que escolhem ser pobres, entre as mulheres e os homens de hoje, uma relao de dilogo libertador e de servio fraterno e solidrio, ao jeito da parteira junto da mulher que est para dar luz, como quem apenas pretende que todas elas e todos eles cresam em liberdade e responsabilidade, de modo a poderem ser tambm senhoras/senhores dos prprios destinos.

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    6. Carta aberta a Joo Paulo II

    Amigo, Companheiro, Irmo

    Desculpa no te tratar nem por Vossa Santidade, nem por Santo Padre, nem por Sumo Pontficie. So ttulos que tm tudo a ver com aqueles outros com que os chefes das religies politastas do Imprio romano, ao tempo em que a Igreja crist era presseguida, gostavam de ser tratados pelos seus sbditos. E que depois acabaram por entrar, indevidamente, na Igreja catlica, quando esta se tornou de via ou caminho que era (At 9,2) em religio catlica e, logo depois, em religio oficial do Imprio romano e, mais tarde, na nica religio desse mesmo Imprio com aconsequentemente abolio violenta de todas as outras religies. Uma inqualificvel bem pior do que aquela estupidamente temos atribudo a Judas Escariotes (na verdade no de Judas, como indivduo, que falam os Evangelhos, estes apenas referem o seu nome, mas enquanto representante e personificao do Judasmo que no dos Judeus! o sistema religioso-poltico do tempo que no foi capaz de se abrir

  • aoNovo e Boa Noticia que Jesus de Nazar, o Cristo, e por isso nem sequer hesitou em mat-lo, sempre com a idia que assim dava glria a Deus!).

    Prefiro, antes, tratar-te por Amigo, Companheiro e Irmo, trs ttulos bem mais humanos e evanglicos, genuinamente cristos, que dizem bem da estima e do imenso carinho que nutro por ti. E que apontam para uma prtica que tem tudo a ver com o meu jeito de ser homem e presbtero da Igreja de Jesus, a mesma na qual tutens o difcil e arriscado !ministrio de Pedro, que no s reconheo e aceito, como procuro que sejaprotagonizado e vivido na fidelidadeRuah ou Esprito de Deus, A qual O qual, como sabes, se nos revelou plenamente, no em ti, nem em mim, nem em

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    em nenhum outro ser humano, mulher ou homem, mas apenas em Jesus de Nazar, o Crucificado /Ressuscitado, por isso mesmo, o nico verdadeiro Cristo, o nico verdadeiro Santo, o nico verdadeiro Pastor da Humanidade, o nico verdadeiro Salvador do mundo, numa palavra, o nico verdadeiro Homem integral, com quem todos os outros seres humanos, mulheres e homens, ateus includos, nos havemos de parecer/ser.

    Ao tratar-te por Amigo, Companheiro e Irmo, estou a dizer por outras palavras que tens um lugar de eleio na minha vida, na casa onde moro e na minha mesa. Basta apareceres, que logo partilharei alegremente contigo do meu po, esse po que ganho honestamente atravs do meu arriscado trabalho de jornalista profissional (s assim posso ser presbtero de graa, como to veementemente recomenda o Evangelho de Mateus 10,8: "Da de graa o que de graa recebestes"). Mas no s. Igualmente, logo partilharei contigo a minha vida de presbtero na Igreja, em especial o projecto "Evangelizar os Pobres" que, desde o princpio, me anima e d sentido ao meu viver eclesial e por causa do qual me vi e vejo, a contragosto, no desconfortvel mas indispensvel papel crtico desta mesma Igreja catlica romana, de que sou um dos mais insignificantes membros (no falta at quem diga que j nem sequer sou igreja, pois, segundo essas vozes, eu prprio me teria colocado fora da Igreja, fora de tantas vezes aparecer a criticar certas prticas eclesisticas de alguns dos nossos mais destacados responsveis, entre os quais tambm tu ests e o teu predecessor, Paulo VI).

    Bem sei que tal como continuam as coisas por a, na Cria do Vaticano, ser muito difcil imaginar - e, pior, concretizar - que tu possas um dia entrar-me pela porta dentro, para nos abraarmos como amigos, companheiros e irmos que somos, ainda que nunca nos tenhamos encontrado at hoje cara a

  • cara, nem sequer tenhamos trocado um simples telefonema, um fax, ou um e-mail.

    verdade que, j por mais de uma vez, te escrevi, em forma de carta aberta. E bem mais do que isso, todos os meses te remeto, como oferta, o Jornal Fraternizar, de que sou director. Nunca at hoje me deste qualquer sinal de que ests a acompanhar a minha caminhada, o que eu at nem estranho, dado o jeito pouco evanglico e muito imperialista e monrquico que escolheste para exercer o

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    ministrio de Pedro, em que ests investido e que, s por isso, te torna totalmente inacessvel e distante do comum dos catlicos e catlicas que andamos c por baixo, pelos caminhos da vida, sem guarda-costas, sem equipa de mdicos sempre perna, sem quaisquer medidas de segurana, sem batalhes de jornalistas no nosso encalo, sem viatura blindada prova de bala e sem muitas outras coisas do gnero, nas quais como sabes impossvel alguma vez imaginarmos Jesus de Nazar, o nosso nico mestre e senhor.

    Fosse mais evanglico e mais jesunico o teu jeito de exercer o ministrio de Pedro e certamente j teramos conversado, se mais no fosse, pelo telefone. E como isso seria benfico para mim e para ti, membros que somos da mesma Igreja de Jesus, ainda que com percursos de vida eclesistica to distintos, mas certamente, complementares!...

    Mesmo assim, no deixo de pensar em ti, de me preocupar fraternalmente contigo, de acompanhar espiritualmente os teus passos, pelo menos, os mais mediatizados. E sempre alimento grandes expectativas em relao ao teu ministrio na Igreja. Fao at questo de te dar a conhecer o meu pensar, quando me parece que esse ministrio no est a ser assumido e exercido por ti como deveria, para que todas e todos ns nos possamos sentir confirmados na F e no jeito jesunico de ser homem/mulher, hoje e aqui.

    precisamente por isso que aqui estou mais uma vez a escrever-te. Creio at que j esperars que o faa, pelo menos, a partir do momento em que anunciaste que vens de novo ao santurio de Ftima, com o explcito propsito de beatificar duas crianas portuguesas, Jacinta e Francisco, de seus nomes, irmos de sangue, e primos em primeiro grau e vizinhos, porta com porta, de uma outra, Lcia de seu nome, hoje mulher j na casa dos noventa e tantos anos de idade, a quem, devido a ter sobrevivido ao terrorismo que foi a bem montada dramatizao das chamadas aparies de Ftima, em 1917, logo a

  • obrigaram a entrar, sob identidade falsa, num convento de clausura total, de onde nunca mais saiu at hoje, numa espcie de sacrificial e cruel morte em vida, por sinal, tanto do (mau) gosto das deusas e dos deuses do Politesmo, verdadeiros vampiros que se alimentam de seres humanos, a comear

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    pelos mais novinhos e inocentes, e a prosseguir em muitos adultos em anos que no em conscincia ilustrada e evangelizada.

    Quero dizer-te na minha qualidade de padre da Igreja catlica romana, que no acredito nas chamadas aparies de Ftima, nem em nenhumas outras, pretensamente ocorridas em quaisquer pocas e em quaisquer lugares. Muito menos acredito na senhora do rosrio de Ftima, uma imagem fabricada por um santeiro de Braga, numa rplica bastante tosca, diga-se, das imagens das antigas deusas do Politesmo, muito florescente outrora por estas paragens e que, ao contrrio do que a maior parte da nossa Igreja pensa, ainda no morreu de todo, antes est mais vivo do que nunca, apenas tem o cuidado de se apresentar sob o disfarce de todas essas imagens de nossas senhoras (= nossas deusas), das quais a senhora do rosrio de Ftima em Portugal, a da senhora da Aparecida no Brasil, e a da senhora de Guadalupe no Mxico, so hoje as mais procuradas e idolatradas.

    Quero igualmente dizer-te que tu, ao acreditares to piamente nas aparies de Ftima e na sua senhora cega, surda, muda e sem entranhas de misericrdia, no s no ests a confirmar na F crist as tuas irms e os teus irmos (cf. Lc 22, 32), como, pelo contrrio, ests a confirm-los no medo, esse mesmo medo que tanto os faz correr para Ftima e para outros santurios semelhantes.

    (Ouve c, meu Irmo: como que a senhora de Ftima te livrou de morreres no atentado, mas no te livrou do atentado? E como que ela curou a portuguesa D. Emlia, ao fim de tantos anos de sofrimento e de tratamento clnico, mas j deixou morrer, sem d nem piedade, as duas crianas "videntes" que tu, todos estes anos depois, e num gesto sem precedentes da histria da Igreja, vais agora beatificar, quando o que deverias era denunciar, com toda a veemncia, quer a iluso e a mentira de que ambas e a sua prima Lcia foram vtimas, quer sobretudo o terrorismo catlico de certo clero da altura que, criminosamente, as atirou para a morte antes de tempo?).

    Bem sei que procedes assim na convico de que, por esse meio, ds glria a Deus. Mas toma cuidado, pois podes estar a ser vtima duma certa teologia

  • desta e idoltrica em que ters sido catequizado, na tua catolicssima e antiatesta e anticomunista Polnia. Na verdade, s uma teologia desta e idoltrica que te pode levar a ver sinais de

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    Deus, l onde o Demonaco habilmente disfarado de deus-dolo, est to activamente presente (cf. Ap 13,11-18).

    Se, em lugar de ires por essa teologia, fores pela teologia aparentemente ateia e secular que sempre norteou a prtica histrica de Jesus e que tanto chocou com a teologia desta e idoltrica do Templo de Jerusalm e dos seus sacerdotes, vers que Deus no se manifesta nos "milagres" ou sinais do cu (cf. Mt 16, 1-4), que s contribuem para alienar, oprimir e amedrontar ainda mais os indivduos e os povos, mas apenas l onde indivduos e povos se libertam de todas as alienaes, de todas as opresses e de todos os medos, tambm do medo dos deuses e das deusas, e ousam assumir com alegria e de cabea erguida, a vida nas prprias mos. Porque, como nos revela Jesus de Nazar, Deus, o autntico, no o dolo, nunca aliena, nem oprime, nem amedronta, s liberta, pois est, misteriosa e gratuitamente dentro de cada uma e de cada um de ns para nos fazer mulheres e homens sua imagem e semelhana, isto , criadores, livres, sujeitos, responsveis, to profundamente fraternos/sororais e solidrios como eucarsticos. Por isso .te digo, meu Amigo, Companheiro, Irmo: Vem a Ftima, sim, mas para denunciar o culto idoltrico que l tem lugar e que tanto dinheiro rende aos seus pastores; e tambm para anunciar, com a audcia proftica de Jesus de Nazar no Templo de Jerusalm, o seu Evangelho de libertao para a liberdade. Se o fizeres, o mundo estremecer de comoo e de festa, como num imenso Pentecostes! Se, pelo contrrio, fores at o primeiro a pr-te de joelhos para adorar a imagem da deusa ou senhora de Ftima, deixars uma boa parte do nosso mundo ainda mais mergulhada no obscurantismo da idolatria. E os donos das multinacionais, a comear pelos donos da multinacional que hoje o santurio da Ftima, ficar-te-o eternamente agradecidos!

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    7. Mais polcia; ou mais poltica?

    Mais polcia nas ruas, ou mais poltica e mais justia social? A pergunta, na sua simplicidade e nudez, tem o seu qu de saudavelmente subversivo. Tem tambm o condo de nos colocar por dentro do difcil momento que o nosso pas est a viver, numa Europa e num mundo, tambm eles em sucessivas e

  • inquietantes convulses sociais. Como se de repente, em vez de continuarmos a progredir em humanidade, estivssemos a regredir para a selva de onde, ao que dizem os cientistas, teremos sado como humanidade, j l vo muitos milhares de anos.

    Estranhamente, para os polticos portugueses parece que tudo se resume a mais e melhor polcia nas ruas, para que o ameaado bem-estar das populaes fique automaticamente salvaguardado. Alguns h, at, que abrem mais a boca e reclamam penas de priso mais pesadas para os eventuais infractores, a fazer lembrar os tenebrosos tempos da pena de morte, quando a lei conseguia ser ainda mais selvagem que a sociedade que pretendia proteger.

    Mas esta mentalidade ainda com muito de selvagem, dos nossos polticos investidos em funes de governo ou na oposio, que profundamente preocupante. Certamente, tal mentalidade no apenas deles, j que eles so o reflexo mais visvel e mais sonoro da mentalidade dos cidados annimos chamados ciclicamente a votar em eleies.

    E verdade que nestes ltimos anos as convulses sociais, as greves, os protestos de rua tm aumentado em Portugal. tambm verdade que a polcia de interveno tem mostrado bem toda a brutalidade de que capaz, quando se trata de reprimir/esmagar trabalhadores que reclamam trabalho, salrios por pagar, po e

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    justia. Ou estudantes que reclamam escola humanizada, onde se progrida em cincia, mas tambm em competncia, em saber, mas tambm em comunho com as populaes e com as suas reais necessidades, ainda hoje espera de inteligentes e eficazes respostas. Ou quando se trata de reprimir/esmagar populaes que reclamam melhor sade, sem que para isso tenham de continuar a perder a bolsa e a vida, a casa e o futuro, to caros so os servios nos consultrios privados e to inacessveis so os medicamentos para quem tem de viver, mais o resto da famlia a seu cuidado, o ms inteiro com um nico salrio mnimo nacional, ou com uma reforma que nem d para mandar tocar um cego.

    igualmente verdade que o pas tem sido surpreendido, ultimamente, com o aparecimento das chamadas milcias populares criadas a pretexto de que os residentes em certas reas degradadas ou nas periferias das grandes cidades no podem mais continuar a assistir impvidos e serenos aos degradantes espectculos de trfico e de consumo de droga e de descarada prostituio nas

  • ruas. Ao mesmo tempo que os imigrantes africanos que vivem entre ns e connosco, quase sempre ocupados nos trabalhos mais difceis e arriscados da construo civil, obras pblicas e outros, geralmente sempre muito mal pagos, vem a sua vida ameaada por bandos que parecem respirar xenofobia e racismo por todos os poros, como se a terra no fosse uma s, estendida por vrios continentes, e a Humanidade no fosse uma s, concretizada em mltiplas raas, cores, culturas, lnguas e povos.

    Todos estes fenmenos sociais e outros que todas e todos bem conhecemos, existem e so preocupantes. Contudo, mais do que fazer-nos entrar em pnico e levar-nos a gritar por mais e melhor polcia, devem fazer-nos entrar em ns e levar-nos a reflectir sobre o modelo de sociedade e de homem/mulher que, nestes ltimos tempos, nomeadamente, depois da queda do Muro de Berlim, todos, uns mais outros menos, temos estado apostados em construir. Sob a batuta duma economia e duma poltica verdadeiramente selvagens que, em Portugal, tem tido no actual Governo laranja o principal obreiro e o principal responsvel, diante duma Oposio que to pouco tem sabido criar uma alternativa credvel e menos ainda tem sido capaz de mobilizar as

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    populaes para o grande volte-face que se impe e que, bem vistas as coisas, as portuguesas e os portugueses na sua esmagadora maioria desejam.

    Embora sejam muitas as vozes e reclamar, de norte a sul do pas, mais e melhor polcia; embora seja cada vez mais frequente a tentao de criar aqui e ali milcias populares para combater o crime cada vez mais solta e cada vez mais impune, a populao portuguesa -como, de resto, a populao da Europa e do mundo em geral - no isso que quer, mesmo quando num primeiro impulso isso que explicitamente reclama.

    O que no mais fundo de ns mesmos todas e todos queremos, inclusive, os que parecem respirar dio xenfobo e racista por todos os poros, uma sociedade outra, mais justa e mais fraterna, mais feliz e mais humana, mais aberta e mais universal, mais comunitria e mais solidria, constituda por mulheres e por homens novos, plenamente realizados, finalmente poetas e criadores, irms e irmos uns dos outros, num pas e num mundo sem fronteiras e sem poluio, cheio de flores e de frutos, um verdadeiro paraso que infelizmente no nos tm deixado construir. Mas que tanta falta nos faz a todas e a todos, para podermos ser mais ns prprios, equilibrados, saudveis, companheiros, amigos, irmos.

  • No nos venham ento com essa de mais e melhor polcia (de interveno) para cima da gente. A que temos j demais para nossa vergonha, que o que sentimos ns, portuguesas e portugueses, sempre que ela chamada a intervir e salta para as ruas das cidades do pas bastonada em cima de tudo quanto gente a mexer. Quando, afinal, toda esta nossa gente, mesmo que grite e proteste, por vezes com modos a raiar a violncia, o que est a reclamar, a pedir, a exigir, que todos os dias em todo o lado a tratem como gente. Ou ser que em Portugal, com a Constituio que felizmente nos rege, ainda continua a haver lugar para portugueses de primeira, portugueses de segunda, portugueses de terceira e portugueses de coisa nenhuma? E que s os deputados, os ministros, os grandes empresrios e mais uns quantos que so portugueses?

    Pelo andar da carruagem da economia e da poltica mundiais, urna e outra demoniacamente concebidas e conduzidas pelos crebros das multinacionais que actualmente dominam e controlam

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    o mundo, fcil prever que continuar a ter de crescer em toda a parte, tambm em Portugal, o nmero de manifestaes e de revoltas populares.

    No nos assustemos com estas manifestaes e com estas revoltas. Assustemo-nos sim e muito com as causas que as provocam, nomeadamente com os crebros humanos que aceitam estar ao servio das multinacionais. Assustemo-nos com os Governos que em cada pas lhes tm feito mais ou menos descaradamente o jogo. Assustemo-nos, mas no entremos em pnico, que este nunca foi bom conselheiro para ningum, indivduos e povos. Pelo contrrio.

    Depois de refeitos do susto, compreendamos sem demora que o momento histrico que estamos a viver em Portugal, na Europa e no Mundo em geral, um verdadeiro kairs bblico, ou seja, um momento favorvel a um volte-face radical. E compreendamos que podem vir por a muitas mais dores e aflies, mas so dores e aflies como as de parto, indicadoras de que estamos, como Humanidade, a dar luz um novo homem/uma nova mulher, numa terra que ser finalmente, terceiro milnio alm, muito mais humana, muito mais comunitria, muito mais fraterna, muito mais solidria.

    Mais polcia e melhor polcia? No, obrigado! Mais e melhor poltica e mais justia social? Sim e j! Para tanto, organizemo-nos e lutemos com ternura e muito amor mtuo, porque melhor poltica e mais justia no caem do cu. Mas tambm nunca faltaro quelas e queles que solidariamente as

  • procurem. Ousemos. Nem que tenhamos de perder a vida neste combate. Organizemo-nos sem demora. Com alegria e sem medo. Porque, alm do mais e sem que saibamos bem como, o Esprito de Jesus Crucificado/ Ressuscitado tambm est connosco neste combate. Ou Ele no fosse, indiscutivelmente o inspirador de todas as lutas histricas que visam mais libertao, mais justia social, mais comunho, mais partilha de bens e de vida. Numa palavra, mais poltica, no sentido etimolgico do termo.

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    8. Dai descanso Terra!

    Solidarizai-vos uns com os outros, fazei da vida uma festa e dai descanso terra. Se o autor do relato sacerdotal da Criao em seis dias, com que abrem todas as nossas Bblias, comeasse a escrever hoje a histria do seu povo, ou a histria da Humanidade, bem provvel que, quando chegasse ao momento de escrever o primeiro mandamento que o Deus da criao lhe revelou, em vez de escrever, o clebre mandamento, "Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra", talvez escrevesse - Solidarizai-vos uns com os outros, fazei da vida uma festa e dai descanso terra!

    A razo simples: dois mil e quinhentos anos depois, a terra no mais o que era. E o ser humano, homem e mulher, que hoje vive nela, de modo algum pode continuar a considerar como palavra de Deus, aquele velho mandamento, tal como ele desde ento se encontra formulado na Bblia. Porque aquilo que ento era palavra de Deus e, como tal, palavra libertadora e salvadora para o povo de que fazia parte o autor sacerdotal, tem de ser, dois mil e quinhentos anos depois, totalmente recriado e reformulado, para poder continuar a ser palavra libertadora e salvadora para o nosso hoje e aqui.

    De contrrio, torna-se um mandamento nos antpodas do Deus da criao, como tal, um mandamento demonaco que mata. Torna-se um mandamento que realiza o contrrio daquilo para que foi inicialmente revelado e formulado, que era to-s contribuir para promover e garantir a continuidade da vida e vida em abundncia na terra.

    No podemos esquecer nunca que quando o autor sacerdotal escreveu o seu relato da criao em seis dias, o seu povo a quem eJe prioritariamente se dirigia, acabava de sair de um prolongado e desgastante exlio na Babilnia que o deixou reduzido a um

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  • pequeno resto, totalmente desorganizado e sem qualquer importncia histrica e social no concerto dos demais povos do mundo.

    De igual mod> a terra a que acabara de regressar, mais parecia um deserto, cheia de cardos e violentamente agressiva, onde nem apetecia viver, quanto mais trabalhar para dela extrair os frutos com que se alimentar.

    Em tais circunstncias, que outro mandamento podia o Deus da criao dar quele povo como palavra de ordem que sintetizasse toda a sua vontade libertadora e salvadora, seno o conhecido, "Crescei, multiplicai-vos e povoai a terra"?

    Porm, dois mil e quinhentos anos depois, quando a Humanidade, no seu conjunto, cresce em dez anos tanto como a actual populao da China, ser que o Deus da criao continua a dar-lhe aquele mesmo mandamento? Mas ser que hoje do que a Humanidade mais urgentemente precisa ainda de crescer e de se multiplicar? No precisa, pelo contrrio, de saber conter com inteligncia o seu crescimento em quantidade e, com fecunda ternura, apostar tudo na qualidade de vida para todos e cada um dos seres humanos que a constitumos, qualquer que seja a sua cor de pele, a sua lngua, a sua nacionalidade, o seu continente e a sua religio?

    Por outro lado, quando a Humanidade em grande parte da terra j sofreu e fez a natureza sofrer uma desastrada revoluo industrial e vive, hoje, mergulhada em plena revoluo tecnolgica que garante, pelo menos, a certas minorias endinheiradas e poderosas, potencialidades cada vez mais impensveis de destruio dessa mesma natureza e da prpria vida como tal, ser que o mandamento de Deus ainda continua a ser "Dominai a terra"?

    So muitas as pessoas que hoje responsabilizam o velho mandamento bblico, "Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra" e, sobretudo, a interpretao fundamentalista que dele tm feito as Igrejas, pela furiosa devastao de que continua a ser vtima a natureza, particularmente desde h cem anos a esta parte.

    Se analisarmos bem a actual situao, at parece que aquele velho mandamento foi escrito propositadamente para os seres humanos do sculo XX. Nunca, como neste ltimo sculo, a

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    Humanidade, pelo menos, ao nvel das minorias ricas a poderosas dos

  • pases do Norte, tomou to a srio a velha ordem, "Dominai a terra". E a est furiosamente a domin-la e a sug-la nas suas potencialidades, sem olhar nem a meios, nem s consequncias futuras dos seus actos.

    Ora, a terra assim dominada j no apenas pelos seres humanos, mas sobretudo pela poderosssima tecnologia que eles cada dia tornam mais sofisticada e agressiva, est em risco de deixar de ser definitivamente o ventre e o bero da vida e at o tmulo dos nossos envelhecidos corpos, quando eles, como fruto maduro, do lugar a corpos gloriosos e espiritualizados.

    Na verdade, hoje um dado cientificamente adquirido que, a manter-se o actual ritmo de destruio acelerado a que os seres humanos, nomeadamente, os donos das multinacionais do mundo, continuam impunemente a submet-la, a terra estar transformada, a muito breve trecho, numa txica lixeira universal, onde no ser mais possvel a vida, pelo menos, tal como hoje a conhecemos em ns prprios.

    Solidarizai-vos uns com os outros, fazei da vida uma festa e dai descanso terra. Eis em sntese o mandamento que hoje os seres humanos, mulheres e homens, precisam de ouvir como mandamento do Deus da criao. J no se trata de ter como prioritrio fazer crescer e multiplicar numericamente a vida. Nem sequer de produzir riqueza a qualquer preo.

    Do que a Humanidade manifestamente precisa de abrir-se a uma prtica solidria, no s entre todos os seus membros, mas tambm entre ela e a natureza, compreendida, finalmente, no mais como uma realidade fora de ns, mas como uma continuao de ns prprios, o nosso corpo maior, ou, se quisermos, o nosso prximo mais prximo, a quem devemos amar, pelo menos como a ns mesmos.

    Mas no s. Ns, os seres humanos deste incio do terceiro milnio, temos igualmente necessidade de deixar de encarar a vida como um fardo e um pesadelo, ou como uma recproca guerra de destruio e de morte, para passarmos a encar-la como uma festa. iver, tem de ser um viver que nos liberte, nos alegr