Desterritorialização

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11 D esterritorialização e forma literária esterritorialização e forma literária esterritorialização e forma literária esterritorialização e forma literária esterritorialização e forma literária Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana F lora Süssekind É Flora Süssekind é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora do Departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO. Este ensaio, que procura retrabalhar, em perspectiva mais ampla, alguns artigos publicados originalmente como colaboração mensal ao caderno Idéias, do Jornal do Brasil, foi apresentado, parcialmente, em encontro realizado em março de 2001, a convite de César Braga Pinto e do Departamento de Português e Espanhol da Universidade de Rutgers e, em versão ampliada, em seminário realizado em 21 de maio de 2002 no Centre for Brazilian Studies em Oxford, a convite de Leslie Bethell. predominantemente urbana a imaginação literária brasileira nas últimas décadas. O que se evidencia até mesmo em relatos de forte teor regional (como os de Raimundo Carrero), em histórias de migração e ina- daptação social (como em As Mulheres de Tiju- copapo, de Marilene Felinto), ou nas quais ras- tros da experiência rural se justapõem por vezes a um cotidiano citadino (como em alguns dos contos de Angu de Sangue, de Marcelino Freire). Essa dominância parecendo apontar tanto para o fato de a população brasileira ter se tornado sobretudo urbana nesse período, com apenas 30% permanecendo no campo, quanto para uma reconfiguração artística das tensões entre localismo e cosmopolitismo, rural e urbano. Articulações que, fundamentais para a auto- conscientização cultural, inclusive para sua dife- renciação regional, no país, se veriam marcadas crescentemente pela hipertrofia de um dos pó- los, por um desdobramento das mediações en- tre organização social urbana e forma artística, processo no qual duplicação e representabilida- de não têm significado necessariamente comple- xificação dos recursos formais, da prática literá- ria e da experiência histórica recente. Muitas vezes essa complexificação resultando não exa- tamente de representações explícitas, documen- tais, do urbano, mas da produção de espaços não representacionais e de zonas liminares, am- bivalentes, transicionais, da subjetividade. Por isso optou-se aqui pelo exame mais detido de alguns exemplos da produção poética brasileira e não das letras de rap ou funk, com seu registro do cotidiano violento e excludente nas periferias das grandes cidades do país, ou da prosa recente, na qual se multiplicam os teste- munhos diretos, as histórias de vida, os percur- sos e contrastes urbanos. E de que são exempla- res obras como o romance Capão Pecado, de Férrez, escrito em linguagem propositadamen- te de gueto, com material autobiográfico, por um ex-padeiro, filho de um motorista de ôni- bus, morador do bairro Capão Redondo, da zona sul de São Paulo. Ou como as histórias de presidiários reunidas, em 2000, no volume

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FFFFF lora Süssekind

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Flora Süssekind é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora do Departamento deTeoria do Teatro da UNIRIO. Este ensaio, que procura retrabalhar, em perspectiva mais ampla, algunsartigos publicados originalmente como colaboração mensal ao caderno Idéias, do Jornal do Brasil, foiapresentado, parcialmente, em encontro realizado em março de 2001, a convite de César Braga Pinto edo Departamento de Português e Espanhol da Universidade de Rutgers e, em versão ampliada, emseminário realizado em 21 de maio de 2002 no Centre for Brazilian Studies em Oxford, a convite deLeslie Bethell.

predominantemente urbana a imaginaçãoliterária brasileira nas últimas décadas. Oque se evidencia até mesmo em relatos deforte teor regional (como os de RaimundoCarrero), em histórias de migração e ina-

daptação social (como em As Mulheres de Tiju-copapo, de Marilene Felinto), ou nas quais ras-tros da experiência rural se justapõem por vezesa um cotidiano citadino (como em alguns doscontos de Angu de Sangue, de Marcelino Freire).Essa dominância parecendo apontar tanto parao fato de a população brasileira ter se tornadosobretudo urbana nesse período, com apenas30% permanecendo no campo, quanto parauma reconfiguração artística das tensões entrelocalismo e cosmopolitismo, rural e urbano.Articulações que, fundamentais para a auto-conscientização cultural, inclusive para sua dife-renciação regional, no país, se veriam marcadascrescentemente pela hipertrofia de um dos pó-los, por um desdobramento das mediações en-tre organização social urbana e forma artística,processo no qual duplicação e representabilida-

de não têm significado necessariamente comple-xificação dos recursos formais, da prática literá-ria e da experiência histórica recente. Muitasvezes essa complexificação resultando não exa-tamente de representações explícitas, documen-tais, do urbano, mas da produção de espaçosnão representacionais e de zonas liminares, am-bivalentes, transicionais, da subjetividade.

Por isso optou-se aqui pelo exame maisdetido de alguns exemplos da produção poéticabrasileira e não das letras de rap ou funk, comseu registro do cotidiano violento e excludentenas periferias das grandes cidades do país, ou daprosa recente, na qual se multiplicam os teste-munhos diretos, as histórias de vida, os percur-sos e contrastes urbanos. E de que são exempla-res obras como o romance Capão Pecado, deFérrez, escrito em linguagem propositadamen-te de gueto, com material autobiográfico, porum ex-padeiro, filho de um motorista de ôni-bus, morador do bairro Capão Redondo, dazona sul de São Paulo. Ou como as histórias depresidiários reunidas, em 2000, no volume

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Letras de Liberdade; as memórias de rua, comoo livro Por que não dancei, de uma ex-meninade rua, Esmeralda do Carmo Ortiz; ou os itine-rários homoeróticos, como os de José CarlosHonório. Todos estes textos, de algum modo,evidenciando o neodocumentalismo intensifi-cado na ficção brasileira contemporânea,marcada ora por uma espécie de imbricação en-tre o etnográfico e o ficcional (de que são exem-plares tanto um romance como Cidade de Deus,de Paulo Lins, quanto o conjunto de relatos etramas fragmentárias do cotidiano de rua de quese compõe Vozes do Meio-Fio, dos antropólo-gos Hélio R. S. Silva e Cláudia Milito), ora porum registro duplo, no qual se espelham fotos erelatos, dando lugar a uma sucessão de livrosilustrados, que se converteriam, nos últimosanos, quase em gênero-modelo dessa imposiçãorepresentacional.

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Exemplares desse espelhamento mútuo entre ofotográfico e o narrativo, entre a ilustração e astramas testemunhais, são livros como CapãoPecado, cujo relato se faz acompanhar de doiscadernos de fotos profissionais e caseiras queparecem materializar a geografia romanesca, eEstação Carandiru, testemunho de DráuzioVarella sobre o seu trabalho voluntário comomédico na Casa de Detenção de São Paulo, aoqual se anexou um vasto arquivo iconográfico,tirado do seu acervo pessoal, de coleções parti-culares e dos arquivos de jornal, à guisa de su-plemento, de referendum fotojornalístico ao re-gistro narrativo.

Os dois livros, de importância documen-tal inegável, têm estrutura semelhante, baseadana produção de uma relação de similaridade

entre as imagens fotográficas de um segmentoda periferia urbana, em Capão Pecado, e de umpresídio brasileiro, em Estação Carandiru, e umtexto enxuto, com frases curtas, dicção parado-xalmente leve, de crônica, cheio de apelidos,expressões de gueto, ditados e exemplos de vio-lência verbal, muitos diálogos e um verdadeiroexercício tipológico, tendo por base, de umlado, a população carcerária, de outro, os desti-nos e o cotidiano dos moradores de uma dasregiões mais pobres de São Paulo. Nos dois ca-sos parece caber à fotografia o fornecimento deprova de evidência ao narrado. O que, se, porum lado, empresta a ele visibilidade e reconhe-cimento imediatos; por outro lado, produz umarelação de dependência discursiva evidente domodo narrativo com relação à sua contrapartevisual.

Essa geminação entre foto e relato se, àprimeira vista, parece produzir uma aproxima-ção entre o leitor e a matéria urbana enfocada,e uma materialização literária da trama citadi-na, ganha sentido distinto quando se observaque a operação fundamental, nesses relatos ilus-trados, é justamente a colocação entre parênte-ses dos recursos narrativos, como possibilidadede ampliação, reforçada pelos cadernos de fotose por uma escrita parajornalística, do campo devisibilidade contextual. A neutralização do pro-cesso narrativo, em prol de um inventário ima-gético, de uma imposição documental, tenden-do, todavia, tanto à reprodução de tipologias econceituações correntes, estandardizadas1, comrelação a essas populações, quanto ao congela-mento da perspectiva (à primeira vista, apro-ximada) de observação numa presentificaçãorestritiva, estática, fundamentada no modelo dacoleção, e não na experiência histórica propria-mente dita.

Esta imposição representacional pode serpercebida, mas de modo diverso, em livros

1 O que explica, em parte, a quantidade de semanas de permanência ininterrupta de Estação Carandiruna lista de best-sellers das revistas e jornais brasileiros de maior circulação.

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como Angu de Sangue, de Marcelino Freire, noqual as imagens fotográficas propositadamentedesrealizadas cumprem, no entanto, funçãoilustrativa, ou em Treze, de Nélson de Oliveira,ilustrado com fotos extraídas do arquivo de re-gistros de admissão de um hospício vitorianoinglês. Nesses livros o aspecto abstratizado ougrotesco das imagens serve também de redu-plicação, mas de reduplicação perversa, não édifícil perceber. Pela desrealização, no primeirocaso, e pelo desajuste histórico da série de retra-tos oitocentistas utilizada em Treze, sobretudotendo em vista os quadros e tipos urbanos insó-litos, mas cotidianos, desses contos.

O reiterado movimento de reduplicaçãoentre texto e imagem, relato e ilustração (ao ladode uma espécie de exigência de adaptabilidadepotencial ao cinema ou à televisão) funcionan-do, em geral, ao contrário, nesses livros ilustra-dos (como os de Férrez e Dráuzio Varella), nes-ses livros-roteiros potenciais (Cidade de Deus,por exemplo), como afirmação da própria fide-dignidade por meio do deslocamento da aten-ção do leitor do processo narrativo em direçãoa imagens que se apresentem como vias diretasde acesso ao contexto, ao referente extraliteráriodesses testemunhos e ficções. Mas o que se ob-serva é que nessa aparente captura documentaldo referente urbano, para aproximá-lo do lei-tor, com freqüência, quando se observam essasimagens, verifica-se que operam com clichês,com reimpressões de um repertório previsível defiguras e situações citadinas, que, ao contráriodo que se afigura à primeira vista nessas obras,acentuam (ao invés de criticá-las) as distinçõessociais já demarcadas, com precisão, no cotidia-no. A ampliação da área de visibilidade urbana,ao contrário do que sugere, então, a rigor, a in-clusão do catálogo fotográfico, parecendo cor-responder, em parte, nesses casos, a uma restri-ção narrativa e crítica, a uma reafirmação dadistância entre observador e matéria documen-tada, a um controle e uma imobilização da pers-pectiva histórica.

Não é propriamente o que ocorre em Tre-ze, como já se assinalou, pois aí o simples fato

de se recorrer a um arquivo fotográfico-hospi-talar vitoriano já produz tensão evidente entreimagem fotográfica anacrônica e conto atual.Não é também o que acontece em “Minha His-tória Dele”, outro texto ilustrado, desta vez deValêncio Xavier, e que foi publicado original-mente, no primeiro número da revista “Fic-ções”, em 1998. Aí, a rigor, só se dispõe mesmode quatro imagens de um homem coreano,morador de rua em Curitiba, que, à maneira deum homem-sanduíche, traz a própria históriamanuscrita e pendurada no corpo.

Neste caso, a reduplicação entre texto eimagem parecendo chegar a um tal extremo quemesmo o relato e a escrita a mão nele emprega-da são elementos extraídos dos cartazes pendu-rados ao corpo do andarilho citadino, o relatopropriamente dito achando-se aparentementeinscrito nas fotos. E a alternância entre proxi-midade e distância, perceptível no contraste in-terno a cada um dos dois pares de fotos, a rigorquase idênticas, que constituem o conto, tem-poralizando a observação do pedinte e assina-lando, por meio de um jogo pronominal irôni-co (“Minha História Dele”) presente no título,a ligação entre observador e morador de rua.

O conto de Valêncio Xavier aproxima-se,nesse sentido, de um dos topoi de maior expan-são no imaginário urbano brasileiro – o dos “en-contros inesperados” entre pessoas díspares –,definidos por Ismail Xavier como “experiênciaspontuais, marcadas por certa singularidade”,oferecidas pela “migração” ou pelo “espaço dacidade” (Xavier, 2000, p. 110-1; 116-7; ver,também, Conti, 2000, p. 8-9). E que teriamexemplos cinematográficos recentes, como as-sinala o crítico paulista, no encontro fictício daatriz Sarah Bernhardt com as três matutas dointerior de Minas Gerais no filme “Amélia”, deAna Carolina; do menino Josué com a ex-professora Dora em “Central do Brasil”, deWalter Salles Jr.; de meninos pobres, por acasoarmados, com um americano e sua família em“Como nascem os anjos”, de Murilo Salles; doforagido da cadeia com a moça de classe médiana noite de Réveillon em “O primeiro dia”, de

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Walter Salles e Daniela Thomas. Encontros que,em diálogo com os quadros urbanos baudelai-rianos que muitas vezes lhes servem de fonte, semanifestariam igualmente na poesia brasileiracontemporânea.

É o caso de “Spiritus ubi vult spirat”, poe-ma de Sebastião Uchoa Leite no qual o sujeito,atravessando a Av. Presidente Vargas, se depara“com uma sobrevivente” de saia erguida en-quanto todos os demais passam, indiferentes.Ou do encontro com o morador de rua em “03/11/97”, de Régis Bonvicino, de que se fala, acerta altura: “Ele poderia subitamente ter saca-do a faca, na calçada, disseram”. Há registro se-melhante no poema “Em sua cidade”, de DudaMachado, no qual, em meio à paisagem baiana,meninos e mendigos circulam entre vendedo-res e cestos de frutas, enquanto, da perspectivado sujeito do poema, “um dispositivo íntimo,/destinado a anular/ toda presença,/ intercepta-va o contato/ e o retraía, ainda tenro,/ à raiz dopânico”.

Mas do retraimento, se passa, no poemade Duda Machado, à respiração, a um “voltar asi” que “reerguia o mundo” para “além de qual-quer tentativa/ de fuga ou domínio”. E, voltan-do ao conto “Minha História Dele”, de ValêncioXavier, aí o extremo realismo das fotos, assimcomo sua reduplicação, ao lado do fato de seapresentar o texto como parte dos dizeres dastabuletas penduradas no pedinte, também sãoelementos que parecem destravar o contato nes-se registro de encontro urbano. E que parecemfuncionar como recurso quase imediato de des-perspectivização, de trânsito – e não separação– entre sujeito e objeto, entre narrador invisívele imagem fotográfica de um morador de rua. Oque provoca o apagamento tanto de possívelretração subjetiva, quanto de uma relação me-ramente ilustrativa entre texto e foto, pois a pró-pria sucessão de imagens (incluindo as textuais)é que é produtora de uma narratividadeconflituosa, desconfortável, movida pelo encon-tro com o sem-teto e pelos recortes e acrésci-mos visuais impostos ao texto-tabuleta que ocobre. E pelos exercícios de afastamento e apro-

ximação com relação a este quadro urbano cujaviolência implícita, ao contrário da segregaçãodominante na experiência citadina cotidiana,resultaria, aí, numa espécie de desdobramentoda apreensão visual, na produção de uma pers-pectiva dupla (minha/dele) para o relato.

Pois, neste caso, o sem-teto também pa-rece observar o seu observador textual, além dea reprodução em bruto da sua tabuleta escrita amão também atribuir materialmente a ele fun-ção narrativa. Trânsito que se tornaria estrutu-ral no trabalho de um escritor como João Gil-berto Noll, cujos narradores invariavelmentedeambulatórios, desabrigados, refiguram ficcio-nalmente a experiência urbana dos sem-teto, asdiversas estratégias de sobrevivência na rua. Enão é à toa que um dos títulos de suas novelasenvolveria uma espécie de auto-classificaçãonarratorial errática – “quieto animal da esqui-na” – que parece sintetizar esse trânsito entreexperiência ficcional e urbana, entre modos dedeambulação.

Mas o mais habitual mesmo nessa litera-tura urbana não é o desdobramento de perspec-tiva, e sim a catalogação patológico-criminal(ironizada na coleção de fisionomias de Treze)de lugares e tipos humanos, o temor da hetero-geneidade social, a reiterada criminalização dasdivisões sociais, o reforço a uma espécie de pa-ranóia urbana endêmica a que respondem asclasses médias e as elites financeiras com movi-mentos de auto-segregação em enclaves habita-cionais, shopping-centers e centros empresariaisde freqüência controlada, e com o investimen-to em formas de segurança particular, guarda-costas, vigias, alarmes, cercamentos, privatiza-ções de ruas e praças. Explicando-se, assim, emparte, em sintonia com essa insegurança gene-ralizada, a popularização das histórias de crimee da literatura policial no Brasil dos anos 1980-1990, de que é exemplar a ficção de RubemFonseca.

Pois é fundamentalmente um imagináriodo medo e da violência que organiza a paisa-gem urbana dominante na literatura brasileiracontemporânea. O que é também parcialmente

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explicável em relação direta com o crescimentodas taxas de crime violento nas grandes cidadesdo país nos anos 1980-1990, com o fortaleci-mento do crime organizado, com a ineficiênciada polícia e do sistema judiciário no exercícioda segurança pública e da justiça, com o aumen-to de visibilidade do contingente populacionalem situação de pobreza absoluta que perambulapelas grandes cidades, expulso tanto das favelas,quanto dos enclaves fortificados de classe mé-dia, com uma espécie de generalização da vio-lência, que abrange do trânsito automobilísticoàs relações familiares, dos estádios de futebol aosjusticeiros e matadores profissionais e ao exercí-cio privado da segurança e da vingança. O quepor vezes, no entanto, aproxima também a fic-ção policial dos “discursos do medo”, da proli-feração das “falas do crime” (Caldeira, 2000,p. 9), para empregar expressões utilizadas porTeresa Caldeira em Cidade de Muros, estudosobre “crime, segregação e cidadania em SãoPaulo”, por meio dos quais se reorganizamsimbolicamente não só os pânicos urbanos, masigualmente os temores de perda de posição so-cial e propriedade, a instabilidade financeira,dilemas internos e questões sociais estruturais àsociedade brasileira.

Essa criminalização do social parece ter seacentuado exatamente no período de redemo-cratização política do país. E parece operar dis-cursivamente por meio de classificações rígidas,estereótipos, segregações, recorrentes não ape-nas no noticiário policial jornalístico, nas his-tórias individuais sobre assaltos, práticas varia-das de violência, homicídios, mas, igualmente,na produção literária dos últimos decênios, quereterritorializa, em vocabulário criminal conhe-cido, “um novo padrão de organização das dife-renças sociais no espaço urbano” (Caldeira,

2000, p. 9), um processo desestabilizante demudança social que afeta as relações estabeleci-das de poder, as hierarquias sociais e o exercícioda cidadania.

Não se limitam, no entanto, a operaçõesliterárias de reterritorialização etnográfica oucriminal essas tematizações urbanas na produ-ção cultural recente do país. Funcionando, nes-se sentido, como interlocutores particularmentecríticos de uma experiência citadina de vio-lência, instabilidade e segregação alguns dosprocessos de desfiguração e desterritorialização2,estruturais à literatura brasileira contemporânea,que se passam a examinar em seguida.

Não que a desfiguração seja via exclusivade diálogo crítico entre forma literária e expe-riência urbana no Brasil contemporâneo. Bas-tando lembrar, nesse sentido, como mais umcontra-exemplo, o livro Sob a Noite Física, deCarlito Azevedo. Neste caso, uma imagem ur-bana em especial – a do lixo espalhado pelo Riode Janeiro – converte-se em indicação privilegia-da de leitura. Desde o poema inicial do livro,no qual se anuncia “o último vôo da varejeira” apartir do “lixo da esquina”, passando pelos tex-tos iniciais de quase todas as seções, com suasreferências a “depósito de lixo”, “ao latão de lixoda esquina”, a latas de lixo que, “no breu con-vulso”, se assemelham a vultos, à “dor no entres-sonho” que, “com seu grão de lixo, se infiltra”no corpo. Transformando-se o externo em in-terno, o lixo, a rigor aspecto do espaço físicocitadino, em quase habitante, vulto animado, eem elemento constitutivo do eu lírico. Incor-poração por meio da qual um aspecto da paisa-gem noturna empresta materialidade física do-lorosa à figuração corporal do sujeito.

Mas se, no caso do livro de 1996 de Car-lito Azevedo, a tematização do urbano se faz,

2 Emprego aqui expressão cunhada, como se sabe, por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo,e retrabalhada por Fredric Jameson em The Cultural Turn, mas submetida a desdobramentos bastantedistintos e a um contexto particular, o das relações entre imaginário literário urbano e processo culturalno Brasil contemporâneo.

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nessas imagens do lixo, por aproximação, porincorporação, esse movimento parece apontarsimultaneamente, no entanto, para um “formi-gamento”, uma experiência corporal dolorosapróxima dos mecanismos de desfiguração, dasexposições cruentas de corpos, por meio dosquais se tem constituído, com freqüência viahorror, a subjetividade na produção culturalbrasileira sobretudo desde os anos 1980.

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Não é, de fato, difícil perceber um rastro deGuignol na vida cultural brasileira das últimasdécadas. Passando das minuciosas descrições doscorpos e assassinatos de mulheres em AcquaToffana, de Patrícia Melo, à exumação dos ca-dáveres do pai e de um irmão relatada no conto“A Carne e os Ossos”, de O Buraco na Parede,de Rubem Fonseca. Da exposição de um corpode criança atravessado por uma estaca de ma-deira, presente numa das fotos de C. A. Silva,exibidas na Galeria da Funarte em 1996, à “me-nina de rua morta nua” do relato, cheio de re-tratos e registros policiais, de Valêncio Xavier.Ou aos “dentes do apodrecimento” que “engo-lem o corpo” num dos poemas de Cheiro Forte,de Silviano Santiago, aos vivos vorazes, do poe-ma “Os Vivos”, de Ferreira Gullar, que, “glu-tões ferozes”, “devoram os outros vivos” e “atédos mortos comem/ carnes ossos vozes”. Daperna amputada do narrador do romance HotelAtlântico, de João Gilberto Noll, ao sujeito –“todo em fios” – preso a uma cama de hospitalna seção “Incertezas” do livro Ficção Vida, deSebastião Uchoa Leite.

Referência guignolesca também particu-larmente acentuada, e, ao que parece, metódi-ca, na produção teatral recente. Passando de “OLivro de Jó” e “Apocalipse”, de Antônio Araújoe do grupo “Teatro da Vertigem”, de “As Bacan-tes”, na versão de José Celso Martinez Correia,às descrições e exposições de tortura que cons-tituem “Bugiaria”, de Moacir Chaves, aos espe-táculos de Gerald Thomas dos anos 1990 de

modo geral. Nowhere Man, por exemplo, desteúltimo, já se iniciava com o seu “Fausto” emtrajes meio ensangüentados, tendo um pseudo-cadáver feminino como interlocutor. E, na suasegunda montagem do Quartett, de HeinerMüller, os dois personagens, também com rou-pas e facões sujos de sangue, circulavam entreenormes pedaços de carne suspensos e um ce-nário em que escorriam manchas sanguinolen-tas por todos os lados. Dado de horror que temestado presente regularmente no seu teatro. Bas-ta lembrar ainda os pedaços de corpos espalha-dos pelo chão em Matogrosso ou o coração e acabeça arrancados às duas figuras femininas deThe Flash and Crash Days.

O que parece ter ocorrido, porém, se nosfixamos, por exemplo, em algumas das monta-gens de Gerald Thomas dos anos 1990, foi umaumento de ênfase nesses sinais de sangue, mu-tilação, tormento físico, acompanhado da expli-citação auto-irônica de se estar trabalhando, aí,muitas vezes, com alguns dos truques mais ca-racterísticos do gênero “Grand Guignol”. Des-de as facas com pontas retráteis às mesas queocultam corpos, das gradações de cor e varia-ções de composição e textura do sangue fictícioao despedaçamento físico da atriz Fernanda Tor-res em The Flash and Crash Days, à sua cabeçaarrancada do corpo em O Império das Meias Ver-dades, ou aos corpos atravessados por setas(como o de Fernanda Montenegro em The Flashand Crash Days) e facões (como na abertura deNowhere Man).

Se o teatro do Grand Guignol, de grandepopularidade de fins do século XIX até o perío-do entre-guerras, ancorava seu efeito cênico nofait divers médico ou criminal e num misto deinterpretação e hábil exercício de mágica, o queparece torná-lo especialmente curioso é, de umlado, a sua transformação de inovações técnicas(dos truques de iluminação e áudio aos telefo-nes, automóveis e novidades médicas) em ele-mentos dramáticos, e, de outro, a apresentaçãode uma espécie de pastiche de horror não ape-nas da experiência moderna do corpo e da pró-pria subjetividade como instáveis, fragmenta-

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dos, mas, sobretudo, da figuração do corpocomo “corpo em pedaços”, dominante, mascom variações de sentido, na arte moderna epós-moderna. E há, sem dúvida, nesse sentido,nesse Guignol brasileiro recente, um diálogocom a extrema crueldade com o corpo presenteem alguns exemplos da body art contemporâ-nea, com a figuração atormentada, a fragmen-tação paradigmática e polivalente na produçãoartística do século XX, das bocas de BruceNauman ou Francis Bacon, aos olhos imensos,pedaços de pernas, mãos, aos desmembramen-tos diversos operados por Louise Bourgeois, dasfotos de fragmentos de cadáveres de Andres Ser-rano às supressões corporais na obra de SamuelBeckett.

Talvez, no entanto, haja outras fontes, nãoexclusivamente plásticas ou artísticas, para esserastro guignolesco. E algumas delas talvez pos-sam ser sugeridas, como no teatro do “GrandGuignol” propriamente dito, por uma simplesconsulta ao noticiário jornalístico do país emfins dos anos 1990. Por exemplo à sucessão defotos de ossadas e imagens de arquivo de anti-gos retratos e de corpos executados dos militan-tes de esquerda, dos desaparecidos políticos bra-sileiros dos anos de autoritarismo militar, queinvadiram as páginas de jornal, no último decê-nio do século XX, por conta do aparecimentode novas informações, da localização de ossos erestos humanos e dos processos das famílias àsvoltas com o reconhecimento dos seus mortos.Ao lado dessa iconografia política do períododa ditadura militar no país, não é difícil perce-ber também, no entanto, a quase exacerbaçãode um cotidiano marcado pela banalização daviolência, da brutalização, exposto diariamentenas páginas policiais da imprensa brasileira. Ecom repercussão intensificada no caso de chaci-nas praticadas a mando dos grupos que domi-nam o tráfico de drogas nas grandes cidades bra-sileiras. Ou perpetradas pelas próprias forçaspoliciais, como a de onze jovens em Acari, naBaixada Fluminense, em 1990, a de dez adoles-centes assassinados no Morro de São Carlos em1992, como o massacre de 111 detentos no pre-

sídio do Carandiru, em São Paulo, no mesmoano, como a execução de 21 pessoas em VigárioGeral, em 1993, de oito meninos de rua na igre-ja da Candelária, no Rio de Janeiro, tambémem 1993, de dezenove trabalhadores sem terrano município de Eldorado dos Carajás, no Pará,em 1996, ou como o assassinato de onze pessoasno Bar Ponto de Encontro, em Francisco Mora-to, em São Paulo, em 1998. Ocorrências quepadronizam, via fotojornalismo, um tipo pecu-liar de iconografia corporal dolorosa, subli-nhando a disseminação da violência, o aspectocruento da história brasileira contemporânea.

Parecem combinar-se, então, desse pon-to de vista, na refiguração em pedaços, em ago-nia, de personagens, retratos e narradores, naprodução cultural brasileira recente, três ordensde fatores contextuais. De um lado, o diálogocom a fragmentação corporal característica àarte moderna e a um de seus pastiches, oGuignol. De outro lado, o registro indireto daexperiência da tortura, das execuções, e da vi-vência política dos anos 1970. E, de outro lado,ainda, a convivência com o aumento do crimeviolento, das zonas de domínio do tráfico, e daviolência também por parte das forças de segu-rança pública, durante as décadas de 1980 e1990 no Brasil. Chamando a atenção, no en-tanto, o fato de, nessas tentativas de identifica-ção cruenta dos sujeitos ficcionais, sua exposiçãonão se ancorar em idealizações subjetivas, ima-gens corporais coesas, de o processo mesmo defiguração e subjetivação envolver uma espéciede consciência necessária de sua instabilidade,um impulso concomitante, impositivo, de desfi-guração, de guignolização.

Trata-se, no entanto, de uma desfigura-ção ambivalente. Pois se, por vezes, aponta paravitimizações, por vezes sobrepõem-se máscarasde agentes da violência a personagens, narrado-res e sujeitos poéticos, mantendo-se, com fre-qüência, igualmente, uma espécie de registrohíbrido, no qual um misto de vítima e perse-guidor é que move o processo de subjetivaçãoliterária. Daí, inclusive, a proliferação de híbri-dos, aberrações, figuras autodefinidas como

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monstros na literatura brasileira recente. E que,se em diálogo direto com um contexto particu-larmente cruento, apontam, via figuraçãomonstruosa, para uma lacuna epistemológica,uma desestabilização classificatória, um con-fronto, na própria prática cultural, com os li-mites da expressividade e dos mecanismos deidentificação, experimentados diante da afirma-ção de novas formas de organização das diferen-ças sociais em cidades pautadas simultaneamen-te numa homogeneização globalizadora doespaço e numa exacerbação do pânico daheterogeneidade social, na emergência de cida-delas autônomas fortificadas, na expansão dacriminalidade violenta e de uma contínua vio-lação dos direitos de cidadania justamente nocontexto de uma redemocratização política emprocesso no país. Movimentos em meio aosquais é via vitimização e figurações proteicas,aberrantes, que parece possível engendrar retra-tos ficcionais, subjetividades literárias, represen-tações disformes da diferença, corpos culturaishíbridos em estreita ligação com um processohistórico de redefinição de identidades e das for-mas de agenciamento social.

Não que as figurações monstruosas eanimalizações da ficção contemporânea sejamunívocas. Observem-se, nesse sentido, as dife-renças, por exemplo, entre, de um lado, o hí-brido adolescente –braços compridos demais,pernas de avestruz, pêlos todos errados- do con-to “Pequeno Monstro”, de Caio FernandoAbreu, no qual se sobrepõem, nesse “pequeno,pequeno monstro, ninguém te quer”, duasliminaridades, a da puberdade e a da descober-ta da homossexualidade, e, de outro lado, o ri-tual de auto-canibalização de uma mulher em“Canibal”, conto de Moacyr Scliar no qual apersonagem se vê forçada a isso pela recusa desua rica “irmã de criação” em compartilhar comela de seu grande baú de alimentos, numa figu-ração exemplarmente cruel das divisões sociaisem meio a aparente prosperidade econômicacircunstancial.

O que parece estar em jogo, porém, nes-sas anomalias e zoologias ficcionais recentes, é

o caráter inquietantemente próximo, nada exó-tico, de tais animais e monstruosidades. É o casodas “aberrações” propositadamente invisíveis deBernardo Carvalho. Ou, no conto “Mandril” deZulmira Ribeiro Tavares, da aproximação entreo jardim zoológico onde está o animal e umdomingo numa sala com a televisão ligada numprograma de calouros. Ou, movimento aparen-temente inverso, como em Decálogo da ClasseMédia, nas figurações horrendas da classe mé-dia por Sebastião Nunes, “cruzamento impro-vável de cigarras e formigas”, órgãos genitais emproliferação, lagartos, insetos variados, crânioscheios de ratos, camaleões, cães, porcos, corpostricéfalos, mas sempre em meio às atividadesmais habituais, casamentos, reuniões de traba-lho, festas, exercícios esportivos. Ou, como noscontos de Nélson de Oliveira, cheios de “ani-mais dos mais estranhos lugares”, “criaturasaprisionadas”, figuras assombradas, gente “mo-vendo-se contra os próprios pés”, sonâmbulos,canibais, gente de “maneiras primitivas e malformadas”, “mais besta do que homem”, mons-tros por vezes medonhos, que, no entanto, sededicam ao mais corriqueiro, a telefonemas,cheques, cálculos, coisas do dia-a-dia. Numa es-pécie particularmente perversa de hibridização,entre o cotidiano e o bestial, entre a perversida-de e a vitimização, a paralisia e a aniquilação.Daí a figura do dragão invencível capaz de trans-formar-se em qualquer um, dissolvendo qual-quer possibilidade de auto-identificação, de di-ferenciação, no conto “Não sei bem o quê,aqui”. Daí a impossibilidade de auto-reconhe-cimento da “pequena Victor” no belo conto “AVisão Vermelha”, do livro Naquela época tínha-mos um gato. Daí o desaparecimento, pedaço apedaço, do corpo do Sr. McPiffs, outro perso-nagem de Nélson de Oliveira, semelhante ao deAngelina, a criatura “esguia e escura, de grandesolhos assustados”, que se auto-devora no conto“Canibal”, de Moacyr Scliar. Num movimentode instabilização da fronteira mesma do mons-truoso, de refiguração lacônica do “não somoshumanos” da G. H. do romance A Paixão se-gundo G. H. de Clarice Lispector.

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Sebastião Uchoa Leite:Sebastião Uchoa Leite:Sebastião Uchoa Leite:Sebastião Uchoa Leite:Sebastião Uchoa Leite:a indeterminação identitáriaa indeterminação identitáriaa indeterminação identitáriaa indeterminação identitáriaa indeterminação identitária

e os ruídos da polise os ruídos da polise os ruídos da polise os ruídos da polise os ruídos da polis

Do ponto de vista da produção poéticabrasileira contemporânea, refigurações anima-lizadas, híbridas, antifísicas, do eu, desdobra-mentos ambivalentes ou negativos do sujeitofuncionariam como reforço de perspectivas an-tilíricas, dramatizações identitárias, conciliaçõesrompidas entre voz e figura, e cumpririam pa-pel particularmente crítico em trabalhos comoo de Sebastião Uchoa Leite, por exemplo, noqual alter-representações subjetivas, “emaranha-dos do self ”, “línguas bífidas”, ficções do eu seconstituem em aspectos nucleares de uma nega-tividade metódica. Negatividade que, sobretu-do nos seus livros mais recentes, e em diálogoevidente com circunstâncias médico-biográfi-cas, envolveria uma reiterada exposição agônicado sujeito, freqüentemente em ambiente hos-pitalar, de que são exemplares a seção “AnimalMáquina” de A Uma Incógnita, os dez textos quecompõem a seção “Incertezas” de A Ficção Vidae poemas como “Agulha” ou “Uma Voz do Sub-solo” de A Espreita. Mas que tem nesse sujeitoem agonia apenas uma das muitas ficções nega-tivas do eu – “Eis-me: todos-os-eus/ euscatoló-gico/ eucríptico/ eu-fim” – trabalhadas por Se-bastião Uchoa Leite. E que vão de serpentes,“monstro/ enroscado em silepses”, a vampiros,Drácula, Nosferatu, de heróis detetives areplicantes e a assassinos diversos, de “sr. Leite”a “um acuado joãocabral/ ou um valéry risível”,de bogart, robert walker, yves montand, delon,montgomery clift a “barata sem antenas”, “mor-cego de botequim”, de “duplos metamorfosesmonstros” a “resíduo de varredura/ que se reco-lhe/ com uma pá”.

Disfarces, ocultações, trocas de identida-de que convertem, com freqüência, os poemasde Sebastião Uchoa Leite em micro-narrativaspoliciais nas quais o elemento nuclear é ora umclima de generalizada suspeição, ora uma espé-cie de perseguição identitária – do sujeito, dopoético-em-abismo. E não é à toa, nesse senti-

do, que o poeta tenha se dedicado em Jogos eEnganos, uma de suas coletâneas de ensaios, aoestudo da “metáfora da perseguição”, da estru-tura e do repertório fundamental de variaçõesdo tema persecutório na cinematografia moder-na e contemporânea. O que funciona comoexercício auto-reflexivo, tendo em vista as cenasem sombras, a preferência pelo viés, pela sinuo-sidade, os disfarces e inversões de papéis, as for-mas de perseguição dominantes na sua poesia.

Por vezes o que domina é a perspectivade um perseguido em fuga, como em “Vida éarte paranóica”: “apenas correr/ alma de repli-cante/ até acertarem o plexo/ alvo perplexo”. Porvezes a voz é de um perseguidor, de um poeta-espião ou vampiro com “unhas em pique/ den-tes em ponta”. Por vezes o que se persegue é aprópria poesia: “Precisamos/ de inteligências ra-dar/ e sonar/ para captação de formas”. Por ve-zes, com perspectiva distanciada, em terceirapessoa, é o sujeito mesmo do poema que se bus-ca: “O não-herói busca o seu negativo:/ o seudentro jack-the-ripper/ que não quisesse/ ape-nas matar./ Mas muito mais:/ ver de fora as tri-pas”. Com freqüência, porém, como assinalaSebastião Uchoa Leite em “A Metáfora da Per-seguição”, “o que parece ser um território per-feitamente delimitado – de um lado o persegui-dor e de outro o perseguido, de um lado a razãoe de outro a não-razão – não o é jamais de ummodo absoluto”. Como se figura em “Os Assas-sinos e as Vítimas”, poema no qual assassinos,detetives e perseguidores de todo tipo passampor uma inversão de papéis e se transformamem perseguidos por suas vítimas ou objetos debusca.

Além do intercâmbio de papéis, porém,forja-se um método poético pautado ele mes-mo numa perspectiva ambivalente, a da espreita,que sugere tanto uma necessidade de esconde-rijo quanto um possível bote, tanto a expec-tativa de sofrer algum ataque, quanto de reali-zação de alguma ação condenável. “Ali estou eu/parado como se fosse um outro/ contratado paracometer um crime”, lê-se em “Um Outro”.“(Ele, em geral/ prefere enfiar-se/ no canto/

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parado/ como uma víbora/ antes do bote/ ob-serva/ calado/ o passar do tempo/ pelos relógios/ controlado/ passa pelas folhas/ do livro entrea-berto/ o úmido índice do medo)”, lê-se noutropoema de 1997. Trata-se, nos dois casos, de tex-tos não à toa limitados por parênteses, nummisto de ocultamento e suspensão, numa espé-cie de figuração gráfica da espreita. Em ambosos poemas pressentindo-se uma violência poten-cial, da qual o sujeito tanto pode ser o agentequanto a vítima.

A indeterminação identitária não se limi-taria, porém, a essas figurações do sujeito, masse espraiaria, igualmente, pelas relações entre asimagens do eu e as do espaço na poesia de Se-bastião Uchoa Leite. Não à toa apontando parauma dissolução aquática mútua entre sujeito epaisagem na série de poemas sobre a chuva dolivro A Espreita. De que é exemplar “Andandona Chuva: São José”: “O meu eu-água/ autodis-solvente/ cabelos/ pêlos/ olhos/ todos os poros/entregues”. Ou expondo-se – vide “Numa in-certa noite”– uma contemplação de mão dupla,“vertigem inversa”, entre o passante, “vendo acopa das árvores”, e as folhagens e copas de ár-vores cujo “ciclópico olho vegetal” o contem-plam nas ruas que atravessa. Não à toa assina-lando-se, ainda, a perda dos limites entre dentroe fora, observador e cenário urbano, como em“Dentro/fora: Rio de Janeiro”, onde “a rua pé-trea/ de pedestres/ com pressa”, vista “lá fora”,“por trás dos vidros”, parece deslizar “por den-tro do vidro”, vir “do outro lado da mesa”. Echegando-se mesmo a atribuir à paisagem cario-ca uma das máscaras mais características dosujeito poético em Sebastião Uchoa Leite, a daserpente, transferida, em “O grande brilho”,poema de 1991, para a baía de Guanabara:“Infusos no mar de amarelos/ Os focos verdes/vermelhos/ Da enseada-serpente”.

E, ao contrário da territorialização etno-gráfico-classificatória operada em geral pela fic-ção neodocumentalista dos anos 1990, a pro-dução de uma zona transicional entre dentro efora, poeta e paisagem, na poesia de SebastiãoUchoa Leite, parece reduzir distâncias hierárqui-

cas de observação entre sujeito e matéria urba-na. Mesmo porque os papéis entre observador eobservado, na sua obra, sempre podem se in-verter. Não há um movimento de catalogaçãode figuras urbanas, excluídos, desabrigados, cri-minosos, como na literatura de testemunho, naprosa quase fotográfica das últimas décadas.

Pois se os quadros citadinos de SebastiãoUchoa Leite são percorridos por “in-seres”, pas-santes “sob tendas de plástico azul”, espécimesde uma “humanidade de cócoras”, “sem-teto/estáticos/ frente à multidão vil”, a perspectivapoética – sempre marcada por uma violênciasurda – não é hierárquica ou sistêmica, é oblí-qua. Ou como se explica em “Exibicionistas eVoyeurs”, poema de A Ficção Vida: “Voyeursolham de viés”. E, neste caso, seria possívelacrescentar, por vezes trocam de papel. Comoem dois poemas-anotações de A Ficção Vida.Num deles, “O Sobrevivente”, um sujeito ob-serva “uma louca” que “discute consigo mesma/Hamlet aos brados” e registra, via pronome pes-soal, uma sobreposição entre observador e ob-servada: “Este ‘ser ali’/ Em alto regozijo/ Domeu perfeito juízo”. Na outra anotação, “A obralírica”, sobrepõem-se literalmente poema e fe-zes, pois a “obra” em questão resultava de umdetrito urbano, de uma figura de cócoras defe-cando em plena rua Azeredo Coutinho, no Riode Janeiro.

E é em parte por meio dessa constantepossibilidade de cruzamento de fronteiras iden-titárias, sociais, espaciais que, apesar de Sebasti-ão Uchoa Leite trabalhar regularmente com fiosde enredo policial e tramas narrativas reconhe-cíveis, se intensifica o desconforto de um leitorexposto a zonas liminares, ambíguas, descon-tínuas, que se desdobram mesmo do ambientemais cotidiano, e em meio a sinais imediata-mente reconhecíveis do cenário urbano, como,no caso do Rio de Janeiro, a estátua do CristoRedentor, o túnel que liga Botafogo a Copaca-bana, a Avenida Presidente Vargas. Num movi-mento de instabilização e desterritorialização,desconfortável do ponto de vista da recepçãopoética, e que, se em relação direta com a emer-

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gência de novas práticas urbanas, com a inten-sificação de uma segregação assimétrica do es-paço social e de uma generalização da violênciae da incivilidade diárias, não se limita a inven-tariar a experiência citadina brasileira. Fazendo-se dela elemento fundamental de indetermina-ção e negatividade estruturais, de um difícilprocesso de formalização literária que, no tra-balho de Sebastião Uchoa Leite, se aproveita dosclichês da criminalização e os instabiliza em in-sólitos enfrentamentos e solidarizações entre osujeito e “os ruídos da polis”, e converte o to-pos moderno das caminhadas pela cidade, e suastramas implícitas, em figuras mesmas de umaantilírica, de uma narratividade auto-corrosivapautada numa quebra constante de versos eimagens, em “não-localidades” e num “jogo hi-perrealista/ entre o eu e a margem”.

Se, na poesia de Sebastião Uchoa Leite, adesterritorialização do cenário urbano se achaimbricada a toda uma série de trocas identitáriase desfigurações, teria resultados poéticos distin-tos o recurso a procedimento semelhante porÍtalo Moriconi, em cujo livro Quase Sertão seforja uma figuração espacial híbrida – a de umdeserto-cidade, por Angela Melim, cuja poesiaé marcada por uma problematização recorrentedo horizonte, ou por Duda Machado, em cujospoemas se tematiza o espaço como deriva, fugaà formalização, para ficar com apenas três exem-plos significativos de um movimento de inde-terminação nas figurações urbanas da poesiabrasileira contemporânea. Movimento a que sepoderiam acrescentar desde a janela que se fe-cha à visão da paisagem marinha, “de maneira aproscrever, velar a desfraldada/ tarde marinhei-ra”, do poema “Proscrição”, à névoa em que sefigura a baía, em “Enseada”, também de Lu Me-nezes, da quase calçada inscrita no corpo – “ras-tro de mosca-bicheira/ imperceptível”– de umdos poemas de Fábrica, de Fabiano Calixto, aohorizonte “fora de qualquer perspectiva”, àrecorrência da imagem do deserto, passando poruma auto-figuração do sujeito como cacto, emSolo, de Ronald Polito.

E se, a rigor, o que chama a atenção é so-bretudo a instabilização espacial, não faltam, aessas desterritorializações, componentes cruen-tos. Do “sofrimento em festim”, referido numdos poemas de Lu Menezes, ao corpo “blinda-do”, em Ronald Polito, à “sensação de chum-bo”, ao “pé inoxidável” do trabalhador na fábri-ca, ao “corpo caído”, “coagulada paisagem”, nolivro de Fabiano Calixto. Dos “arrastões/chaci-nas megalópicas/infanticídios” ao “morto àbala”, ao “inferno alighierico dos pobres”, emSebastião Uchoa Leite. Do “sopro de mortali-dade dura”, em Quase Sertão, ao “varal/ atraves-sando a garganta/ o cômodo/ fio cego do pu-nhal partindo o céu/ a privação/ no arame docabide” no poema “Crente”, de Angela Melim.Do “desejo de fuga”, em “Giro”, de Duda Ma-chado, à “batalha/ travada em/ lugar algum”, ao“não sei na madrugada/ se estou ferido/ se o cor-po/ tenho/ riscado/ de hematomas” do poema“Mau Despertar”, de Ferreira Gullar. Ou ao “eusou pobre, pobre, pobre”, ao “difere, fere, fere”do “Vers de circonstance”, de Carlito Azevedo.

Os sinais de violência nessas figurações dourbano, se dizem respeito fundamentalmente aopróprio processo criativo, remetem, é claro,também, ao imaginário citadino contemporâ-neo, ao crescimento do crime violento e das re-ações igualmente violentas a ele, à generaliza-ção da sensação de risco e de conflito potenciale à perda do sentimento de coletividade no co-tidiano das grandes cidades brasileiras. Questõesque têm motivado um número igualmente cres-cente de estudos na área das ciências sociais nopaís. Por vezes com o privilégio da tensão entreredemocratização política e expansão dos crimesde sangue, duplicados, de acordo com Angeli-na Peralva, “entre 1980 e 1997” e resultantes, aseu ver, de uma insegurança ampliada pela“interpenetração entre o universo dos morros eo da classe média”, pela “continuidade autoritá-ria” e pela reestruturação das relações dominan-tes até o fim da ditadura militar “entre o Esta-do, o sistema político, a nação e a sociedade”(Peralva, 2000, p. 22, 59, 84 e 89). Já TeresaPires do Rio Caldeira aponta, em Cidade de

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Muros, para essa contradição “entre expansão dacidadania política e deslegitimação da cidada-nia civil” e para o “caráter disjuntivo da demo-cracia brasileira” como elementos nucleares deuma experiência urbana segregacionista, rela-cionando a criminalidade violenta não só àtransformação das “configurações tradicionaisde poder”, mas à “deslegitimação do sistema ju-diciário como mediador de conflitos”, à “priva-tização dos processos de vingança”, à “legaliza-ção das formas de abuso e violação de direitos”(Caldeira, 2000, p. 343). Ou, como enfatizaLuiz Eduardo Soares, a uma duplicidade cons-titutiva à organização social brasileira, a de umasociedade orientada por elementos de um “mo-delo cultural hierárquico” e “socializada de acor-do com o modelo cultural próprio ao indivi-dualismo igualitário liberal”, a de um “projetoliberal-democrático” no contexto “de uma fortetradição nacional autoritária e excludente” (Soa-res, 2000, p. 34-6). Pois quando “são intensosos padrões de exclusão política e grande parteda população não se reconhece como partícipede uma trajetória coletiva”, como observa Ma-ria Alice Rezende de Carvalho, “a cidade se tor-na objeto da apropriação privatista, da predaçãoe da rapinagem, lugar onde prosperam o ressen-timento e a desconfiança sociais” (Carvalho,s.d., p. 56).

Desse modo, torna-se problemática a per-cepção da cidade, e de suas figurações literárias,como unidades espaciais definidas, como espa-ços comuns de socialização. Ora expandindo-se“súbitos/ espaços”, como em “Neste fio’, deRégis Bonvicino, ora assistindo-se à sua intensacompressão, como nas “quatro paredes rentes”,no “casulo/ compacto, nulo”, no “espaço espar-so” sugerido no livro Solo, de Ronald Polito.Ora desdobrando-se do urbano o deserto, comoé o caso do “quase sertão” de Ítalo Moriconi,ou da “cidade deserta” mencionada em “Giro”,de Duda Machado; ora privilegiando-se os “es-paços-entre”, as zonas de transição, como emAngela Melim. Com a diferença de, no casodessas desterritorializações literárias, estar empauta não apenas a forma urbana, mas um pro-

cesso interno de formalização movido a orien-tações contraditórias. Apontando a indetermi-nação espacial, o geograficamente “informe”,para a exposição de uma experiência formalmarcada pela exacerbação das tensões entre ho-rizonte e deriva, figuração e instabilização, per-sistência e dissipação.

Í talo Moriconi e a Cidade como SertãoÍtalo Moriconi e a Cidade como SertãoÍtalo Moriconi e a Cidade como SertãoÍtalo Moriconi e a Cidade como SertãoÍtalo Moriconi e a Cidade como Sertão

A simples sobreposição do título Quase Sertão areprodução fotográfica de paisagem nitidamen-te citadina, na capa da coletânea de poemas de1996 de Ítalo Moriconi, já indica, via nomea-ção, a dominância de uma visualidade urbana,mas exposta a partir de um seu avesso potencial.Sem que, no entanto, o movimento proteico, acondensação das duas imagens de fato se efeti-ve. Daí o advérbio, o “quase”, responsável pelapersistência das duas referências geográficas, dadisparidade evocada por elas, por essa conjuga-ção de cidade e sertão, acumulação e deserto.As imagens estruturais ao livro apontando si-multaneamente para uma interseção de ambiên-cias e para a impossibilidade de sua conciliaçãometafórica. A diferença, a conflitualidade laten-te entre elas, sugerindo uma amorfia metódica,um limite propositado – “palavra que falta”,“meias-palavras” – nessa figuração urbana peloavesso.

É evidente que as imagens do desértico,do silêncio, do áspero, da “vegetação esdrúxula,cheia de espinhos”, de uma violência potencial,em meio a derivas, ruas, “carnavais”, a uma“multidão sem face”, a uma “chuva de figuras”,“braços”, “quadris”, “carros retardatários”, “pré-dios apagados”, “calçadas”, e a uma sucessão decaçadas amorosas anônimas – “ciscando no as-falto” –, emprestam à evocação do “sertão”, nes-se caso, a possibilidade de exposição das trilhashomoeróticas da cidade, da outra cidade embu-tida na cidade usual, na Av. Rio Branco, na Co-pacabana, na praia, nas esquinas de todos osdias. E de uma tensão recorrente entre o maisíntimo e o mais público, o sertão “mais pra den-

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tro” e o “excessivamente urbano”. Entre osgânglios implodindo o pescoço e a lanchoneteMcDonald’s em “(Notícia da AIDS)”, “entreuma esquina e antigas angústias” em “Notur-no”, entre um “meu espaço”, “meu olhar inso-lúvel”, uma subjetividade e uma série de formasanônimas transitórias, “curvas fundas”, “super-fícies”, “abismos”, “vagas”. Acompanhada deuma tensão de classe entre “o homem maduro eo rapaz das ruas”, as referências cultas espalha-das nos poemas e os objetos de busca amorosa,definidos como “gente simples do povo”. E en-tre uma espacialidade marcada pelo acúmulo“de tantos corpos”, de ruas, prédios, esquinas, ea reiteração de imagens de um “esquema agres-te”, de um deserto, “imaginário plátano”, “terraoca, sem limites”.

A referência ao sertão não se restringe,porém, nos poemas de Italo Moriconi, ao ras-tro de uma experiência urbana homoerótica. Eparece apontar também para dualidades persis-tentes na vida literária brasileira, para as oposi-ções e mediações entre cosmopolitismo e dadolocal, entre universalização e temática regional,litoral e interior. Dualidade latente, de modoquase irônico, na cidade que se dá a ler comoagreste e no sertão emaranhado a formas urba-nas; no sertão, imagem paradigmática de brasi-lidade, de uma geografia a céu aberto, com luzinclemente, e povoada, em geral, por jagunçose sobreviventes, mas convertido em oco da noi-te, paisagem privilegiada da deriva amorosa so-litária de Quase Sertão. Um “oco” que define si-multaneamente o trânsito pela cidade (“Nósdois e a rua. Nós dois, oco da noite.”) e peloscorpos (“Flor do oco, broto espesso, lisura sempêlos”), num desdobramento metafórico de umdos pólos da dualidade espacial que organizatodo o livro Quase Sertão. Espaço bifronte queserve de princípio de estruturação, por exem-plo, a “Brinde”, poema em diálogo com o “BoiMorto” de Manuel Bandeira, e no qual seopõem imagens do sertão-deserto (“há Nilo al-gum, planície ou deserto, só/ extenso como umtraço que do silêncio flui”), e de uma possívelconfiguração espacial definida, a uma deriva

enumerativa (“arrastando no escuro/ correntes,martírios, pedaços de pau podre,/ espelhos evidro partido e o resto”), uma “saudade cega/em mar aberto, desconhecido, abandonado dasesquinas”.

E se o sertão já costuma se dar a ver si-multaneamente tanto como vastidão, deserto,horizonte amplo, quanto como marcado por sú-bitos emaranhados vegetais, formas ásperas, ra-ras, intrincadas, cactos, cerrado, sugerindo cer-ta conflitualidade figurativa potencial, não é deestranhar que tenha servido de referência, napoesia de Ítalo Moriconi, para a exposição deimagens avessas, conflitivas, não apenas da pai-sagem urbana, mas da forma poética e do pro-cesso mesmo de composição. Pois é por meiode uma imagem cindida (“Tudo é conflito defigura no jardim de forças da rua sarcástica”),que é, de um lado, figura abstrata, desejo de“forma pura indivisa”, “a forma, a forma das for-mas, o deserto”, e, de outro, “deslocada emtrancos, barrancos”, “chuva de figuras”, cidade,que se definem, em Quase Sertão, essas figura-ções espaciais, em disjunção interna, da expe-riência urbana e da forma poética.

Conflito imagético que, ligado à expe-riência histórica e as condições de produção li-terária no Brasil contemporâneo, envolveria, napoesia de Angela Melim, sobretudo desdobra-mentos e desfigurações do horizonte e uma ên-fase metódica nas margens de indeterminaçãodo espaço figurado, e que, no trabalho de DudaMachado, imbricaria deriva e forma, desejoconstrutivo e dissipação.

Angela Mel imAngela Mel imAngela Mel imAngela Mel imAngela Mel ime a dramatização do horizontee a dramatização do horizontee a dramatização do horizontee a dramatização do horizontee a dramatização do horizonte

Se a reprodução de todas as capas dos seus li-vros anteriores, reunidos, em 1996, por Ange-la Melim em Mais Dia Menos Dia, funcionacomo marco divisório, modo de datar e singu-larizar as diferentes seções do volume, acabaapontando, igualmente, se observadas, comatenção, essas ilustrações, para uma das imagens

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privilegiadas da sua poesia – a do horizonte. Dalinha horizontal irregular que atravessa o espaçoinferior da capa de O Vidro O Nome (1974), aocorte reto que separa em dois o título Das Tri-pas Coração (1978), ao corpo feminino que, dei-tado, parece duplicar o recorte das montanhas,ao fundo, na ilustração de capa de As mulheresgostam muito (1979), ao título em letras míni-mas, quase imperceptível, disposto horizontal-mente em meio a um vazio propositado dequalquer representação em Vale o Escrito (1981),aos barcos soltos na água, com apenas a suges-tão de um limite possível, que quase se confun-de com o recorte superior do papel mais grossoda capa em Os Caminhos do Conhecer (1981),ao espaço vazio, mais adiante, para o qual pare-ce apontar a figura feminina estampada em Po-emas (1987), ou, por fim, à ilustração de Nel-son Augusto para Mais Dia Menos Dia (1996),na qual duas linhas e uma pequena mancha es-cura evocam a relação entre sujeito e paisagem,experiência poética e tematização do horizonte,e espacializam, numa linha-limite, a duração ea imagem de um tempo por vir sugerido no fu-turo potencial, quase próximo, do título.

“Estou procurando a palavra certa/ parapartes superpostas de duas esferas/ Intersecção?/E solidão”: a indagação expressa em “Rabo deGalo”, do livro de 1996, sublinha a preocupa-ção de Angela Melim com os espaços limítrofes,transicionais, os “raros engates”, os lugares-en-tre, a meio caminho, os horizontes. E há, naverdade, uma vasta sucessão de mares e céus nasua poesia. A água que “brilha, tranqüila, aomeio-dia”, “azuis profundos versus altos mares”,“azuis rasgados/ grandes paisagens/ claras”, “ume outro coqueiro roxo contra o céu cor de rosa”,“as linhas de água brilhante e as montanhasazuis um tanto esfumaçadas”. Sucessão de hori-zontes atmosféricos e marinhos que, tendendoao ilimitado, ao espelhamento dos “estados dealma”, e parecendo reproduzir uma versão ro-mântico-pitoresca da paisagem carioca, aponta-riam, no caso de Angela Melim, noutra direção.

Funcionam, de cara, como forma de re-cortar, nem que seja, às vezes, como fundo, a

presença do mundo – “campo/verde/ minado”,“montanha de cadáver”, “ouvido violado, tím-pano rompido/ braços cortados, cabeças”–como elemento constitutivo da experiência po-ética. Tensionando-se, assim, via paisagismo, omodelo auto-referente, expressivo, dominantena produção poética brasileira dos anos 1970,contemporânea aos primeiros livros de AngelaMelim. E, como sugere um texto como “Mi-nha Terra”, marcado pela visão em negativo daterra – “raízes no ar”– e do tema da “volta àcasa”, do enraizamento –”Nada é natal”, trata-se de um paisagismo em contraste direto com odescritivismo de molde romântico, que deixa-ria rastro na literatura brasileira subseqüente.Deste modelo descritivo se elimina, com fre-qüência, na poesia de Angela Melim, a fixidezdo ponto de mira, exercitando-se formas diver-sas de objetivação e de distanciamento lírico,como em “Assim uma Linha Verde da Janela –Um dia”: “Assim uma linha verde da janela –um dia/ átimo, repente – / correndo/ paraleloao que é veloz/ colina/ planície/ estilete fino demetal/ no fundo”. O “estilete fino” discreto,quase imperceptível, cumprindo função seme-lhante à do “campo/minado” do poema “FogosJuninos” em termos de um desdobramentocruento de algo se assemelha a um simples qua-dro descritivo.

Ensaiam-se, igualmente, desdobramentoscontrastantes de voz. Como entre a casualidadedo sujeito que presta informações para o via-jante em “Roteiro”, e o corte sistemático de suafala por parênteses descritivos, impessoais e mi-nuciosíssimos. Duplicidade que atinge tambémas figurações do espaço. Daí as transformações– de diáfano, gaze, nuvem, a rosa bobo, barato-por que passa a idéia mesma de um céu cor-de-rosa em “No Céu Cor-de-Rosa” ou a definiçãomóvel, em suspenso, de paisagem contida em“A Duna vira Nuvem, se quiser”.

Não é, pois, exatamente enquanto ex-tensão, infinito aberto ao olhar, ou limite fixo,contorno, que a imagem do horizonte pareceorientar a escrita poética de Angela Melim. Ésobretudo enquanto espaço-entre, zona de des-

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locamento, “exploração dos pontos cegos, dasmargens de indeterminação na linguagem e napaisagem” (Collot, 1988, p. 17), como assinalaMichel Collot em L’Horizon Fabuleux, que elatematiza e transporta, para o espaço poético, anoção de horizonte. O que, do ponto de vistada organização gráfico-sintática do poema ex-plica a quantidade de brancos, intervalos, pa-rênteses, travessões, estruturais nos seus textos,ou o gosto acentuado pelo verso isolado, solto,atravessando a página, cortando ou fechandoalguns dos poemas à maneira de uma divisória,de uma linha interna do horizonte, muitas ve-zes intensificando um desdobramento ou umconflito de liminaridades. Como na frase longaque, em “O Mar não Existe”, depois de cincoversos curtos, internaliza um mar de ausência eimpossibilidade numa espécie de horizonte or-gânico em corrosão: “A acidez é um fogo co-mendo o tubo escuro que atravessa o corpo”.Como no caso de “Ronca um motor”, de MaisDia, Menos Dia, o verso “É o verão que se abre”,que, separado dos demais por dois espaços embranco, parecendo sintetizar, via destaque grá-fico, as imagens anteriores de barco, mar, calor,e figurar uma extensão paisagístico-temporal “acéu aberto”, se faz acompanhar, no entanto, deum outro horizonte, conflitante, que invertenão só o seu movimento de ampliação, mas areferência temporal a um período que começa,transformando-se a gênese de um verão em ima-gem de um passado próximo à dissolução: “Tar-de, sorvete, amor/ varanda/ em taças do passa-do/ a derreter”.

A consciência do horizonte na poesia deAngela Melim, em vez de suporte espaço-tem-poral ou ponto de orientação da perspectivasubjetiva, aponta, portanto, para um movimen-to de sistemático redimensionamento mútuo dosujeito e da paisagem, de que é exemplar a re-flexão sobre a morte contida em “Limão Ir-mão”, na verdade o simples registro de uma fru-ta que cai e rola pela terra, “que agora traga/ acarne aberta/ desesperada/ do limão”. E de queé exemplar, igualmente, sua preferência pelointervalar, pelas linhas que figuram e desfigu-

ram o espaço e a escrita, por uma espécie dedramatização do horizonte, desdobrado em for-mas diversas, mas obrigatórias, de conflito e in-determinação.

“E ela gostaria”, lê-se em “Os Caminhosdo Conhecer”, “de pintar as unhas de vermelho.Enquanto escrevesse as palavras no caderno iaprestar atenção nos dedos de pontas brilhantessegurando a esferográfica e sentir prazeres confli-tantes”. Movimento semelhante ao que, entreum “lá dentro” e um “pé de jasmim”, em “Mu-lheres”, entre um “à flor da pele” e um “fossofundo”, em “Faca na água”, entre “cristas sus-pensas/ pedras de sal/ fiapos de mar” e “seu fun-do longínquo/ âncora/ os leitos de areia e seuslençois limpíssimos”, em “Um Navio”, figura“janelas”, “lagos no peito”, “navio”, imagens defronteira, espécies de não-lugares. A que se po-deriam acrescentar a bainha, o varal, a beira-mar,a fresta, a aresta, o vão, as grades, a beira, de tan-tos outros poemas seus, nos quais se tensioname convivem essas direções conflitantes. Ou que,em meio a uma sucessão de marinhas e paisa-gens à primeira vista pouco habitadas, quasedesistoricizadas, ativam uma espécie de conflitosurdo, quase imperceptível, entre quadro natu-ral e horizonte histórico. Entre um exercício lí-rico em torno de sol, flores e perda, como “Co-rajoso como a Beleza”, e sua sucessão de imagensbélicas: disparos, bala, dor, estrondos, combate.Entre “os ladrilhos/ o verde baço do cloro/ a pis-cina” e o “arame” que a resguarda, em “Álbum”,o “cheiro/ do jasmim” e um “sangue vivo/ a penacontido”, o “céu azul e limpo” e “granadas”,“fogo, fumaça” , em “Fogos Juninos”. Ou entreo horizonte da cidade e o da escrita, em “Tri-lha”, com a mediação de um terceiro horizonte,bélico, de “cerco, baixas, barranco, armas”, queparece redimensioná-los historicamente.

Duda Machado e a deriva metódicaDuda Machado e a deriva metódicaDuda Machado e a deriva metódicaDuda Machado e a deriva metódicaDuda Machado e a deriva metódica

Já os poemas de Duda Machado, se igualmentemarcados por uma exposição conflitiva do es-paço, parecem movidos por um princípio de

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contra-organização, por uma indeterminaçãometódica, mas variada, que, de dentro, os des-dobra e reengendra, apontando para uma for-ma poética propositadamente instável, em fuga,não à toa figurada, repetidas vezes, por imagensmarcadas exatamente pelo movimento, pelatransparência e pela tendência ao informe, àdesterritorialização, como as do vento e daonda, fundamentais à auto-explicitação de umapoética pautada na modulação (“quem reina?/uma modulação/ capaz de afinar/ o entendi-mento”), na tensão entre desgarre e condensa-ção, deriva e desejo de fixação (“brisa/ ainda hápouco formada,/ a confluência/ entre passageme morada”), dominantes em Margem de umaonda (1997), seu livro mais recente.

Há, no entanto, desde Zil, uma recorrên-cia dessas imagens aéreas, aquáticas, móveis. Daassociação do livro ao rio, no texto inicial destevolume de 1977, ao “mar/ na ponta dos cascos”de “Verão”, às vogais “líquidas, cascateantes, en-chentes”, ou às imagens de vôo, os mandacarusrevoando, em “Ária”, ou poema-pergunta sobreo que soaria mais alto, se “o vôo ou o canto dopássaro”. Imagens em movimento dominantesigualmente no seu segundo livro, Um Outro(1990).Como nos seus diversos percursos, alvosem movimento, na multidão definida como“moinhos de braços”, na chuva que segue amoça, na ciclista que passa, e na colocação emroda até mesmo das “idéias fixas”, exemplo qua-se paradoxal da poética eólia, instável, de DudaMachado.

Ventos, vôos, moto contínuo se achamcontrastados, porém, em Um Outro, a uma in-dagação, também recorrente, sobre a margem,o horizonte, o limite, do acontecimento, da lin-guagem, ou entre “contemplador, céu e mar”,“céu e asfalto”, “jardim e tarde”, “morte-vida”.Entre um desejo de contorno, recorte, forma-lização, e por uma espécie de hesitação das for-mas, de desmaterialização inevitáveis. “A vida‚/sem medida/ e isto/‚ rigor”, lê-se no segundopoema de Um Outro. “O horizonte”, expõe aprimeira estrofe de “Juntos”, “é a luz/ que emcor tão unânime/ apaga as superfícies/ de que

vive”. Assim como, no turvo espelho interior,lê-se em “Tanto Ser”, “desfiguram-se os atos” eo corpo se mostra “impalpável, carcaça/ que oespírito não acha”.

Em Margem de uma onda, essa tensãoentre movimento de formalização e de dissipa-ção, de figuração e iminente desfiguração, tema-tizada, de modos diversos, em todo o livro, da-ria lugar à poética singular exposta em “Fábulado Vento e da Forma”, “Manhã Piscina” e “Mar-gem de uma onda”, em parte em diálogo com“Imitação da água”, de João Cabral de MeloNeto. Nela estabelecendo-se, a princípio pornegação, uma analogia entre o vento e a forma,elementos a rigor incompatíveis, em irredutí-vel desacordo, de um lado, pelo desejo de per-sistência próprio à forma, de outro lado, peloaspecto passageiro próprio ao vento. Em ambosos casos, porém, o percurso diverso sinaliza-ria no sentido de uma correspondência, peloavesso, entre essas diferenças, que seria levadasà própria mútua negação. Do lado da forma, ati-vando-se um processo de múltiplo desdobra-mento em metamorfoses. Do lado do vento,por conta da possibilidade de subitamente to-mar forma, caso o seu movimento se opere, porexemplo, “sobre a harpa eólia/ ou nos móbilesde Calder”, como sublinham os dois últimosversos do poema.

O curioso, no caso dessa fábula, estandonão só no “desacordo uníssono” em que ela sebaseia, mas no fato mesmo de as duas imagensse encaminharem necessariamente para o pró-prio esgotamento. à maneira do que se dá coma voz que “se recolhe” em “Interferência”, a corque “cai sobre si mesma” em “Aventura da Cor”,os detalhes “moldados pela desagregação” em“Poética do Desastre”, a “fadiga” que “a cadacoisa/ desdobra e dissipa” em “Dentro do Espe-lho”, o quarto que, “depois de condensar/ tem-po e espaço”, se concentra na janela e encontrao vácuo e “os limites da calçada/ embaixo” em“Resumo quase abstrato”. Não sendo de estra-nhar, ainda, em meio a essa sucessão de dissolu-ções e a ameaça de auto-anulação embutidas nasimagens dominantes de tantos desses poemas,

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que alguns deles se convertam, ao contrário, emgenealogias da forma, como “Traço e Movimen-to”, “Fragmentos para Novalis”, “Condição” ou“À Noite na Estrada”. Ou que forma e deriva seapresentem explicitamente geminadas num po-ema como “Trevo”: “uma imagem à deriva/ tãodensa/ em seu ensimesmamento // a ponto deexcitar/ o desejo de forma/ até esgotá-lo/ e rea-firmar sua deriva/ várias oitavas acima”.

E, dado fundamental ao método poéticode Duda Machado, não se trata, no seu caso,simplesmente de uma reflexão sobre a indeter-minação, mas de um processo de composiçãotensionado internamente, ele mesmo, e nãoapenas suas imagens, por negatividade e resis-tência estruturais à unificação formal. Tensio-namento interno manifesto tanto por meio dorecurso recorrente às enumerações (de que sãoexemplares os seus dois “Almanaques”) ou aimagens contraditórias (“e a 40º, uma tristezade inverno”), quanto via recortes repentinos dopoema: uma outra voz (como na terceira estro-fe de “Fala” ou na metade de “Corte e Costu-ra”), um pontilhado (como em “Álbum”), umintervalo (como entre o “Psiu” e o resto de “Fan-tasma Camarada”), uma troca de registro (comoentre a impessoalidade das seis primeiras estro-fes e a intimidade dos dois últimos versos de“Oração com Objetos”), uma interrogação(como os versos entre parênteses de “Margemde uma onda”).

Tensionamento manifesto igualmente, napoesia de Duda Machado, pela irrupção, emmeio às figuras aéreas e dissipações formais, deimagens de extrema concretude, quase brutais:o mendigo de “Flores de Flamboyant”, as cenas

de perseguição, revista e fuzilamento de “Fimde Semana”, os passageiros de ônibus converti-dos num híbrido indistinto em “Carapicuíba”,a desova e as crianças-carniças de “Urubu-Abai-xo”. Numa operação figurada pelo próprio po-eta em “Devoração da Paisagem”. Aí, a uma pri-meira estrofe a rigor tranqüilizadora, com umasimples descrição de vista – com casas, morro,arvoredo, estrada e riacho –, se seguem três des-territorializações. A primeira no sentido de umaexpansão – “cores que ultrapassam distâncias”,“o olhar que erra e se prolonga/ em busca desua moradia”. A segunda no sentido de um des-dobramento de ponto de mira, de uma contra-ção da paisagem – “de algum lugar,/ distante dasretinas,/ a fera irrompe”. A terceira exibindo apaisagem presa, relatando a sua devoração. Eapontando para a sugestão de uma espécie deimpossibilidade histórica e formal da paisageme de figurações espaciais incruentas.

Daí a sobreposição esgarçada – “quase” –de sertão e cidade na poesia de Ítalo Moriconi,o desdobramento conflitivo de horizontes emMais Dia Menos Dia, de Angela Melim, as inde-terminações identitárias em Sebastião UchoaLeite, a contra-formalização convertida emprincípio ativo de composição em Duda Ma-chado. Exercícios distintos de desterritorializa-ção e irrepresentabilidade espacial que, por vianegativa, conflitiva, parecem, ao contrário, con-tribuir para a intensificação da percepção domomento presente e ampliar a própria investi-gação formal ao interseccionar a prática poéticaaos desdobramentos históricos recentes de umaexperiência urbana violenta, segregacional, au-toritária, como a brasileira.

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