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Projeto Elaboração de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação da Comunidade Remanescente de Quilombo de Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos (Agudos - SP). (Contrato Administrativo nº 100/2015. Processo 23112.003680/2015-46, com FAI/UFSCar). 3º Relatório Coordenador do Projeto Fiscal do Projeto Geraldo Andrello Piero de Camargo Leirner 2016

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Projeto Elaboração de Relatórios

Técnicos de Identificação e Delimitação da Comunidade Remanescente de

Quilombo de Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos (Agudos - SP).

(Contrato Administrativo nº 100/2015. Processo 23112.003680/2015-46, com

FAI/UFSCar).

3º Relatório

Coordenador do Projeto Fiscal do Projeto

Geraldo Andrello Piero de Camargo Leirner

2016

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INTRODUÇÃO

Este relatório sistematiza as informações preliminares já coletadas pela equipe

responsável pela execução do Projeto de Extensão (Processo PROEX

23112.000563/2015-21), no que se refere à Comunidade Remanescente de Quilombo

de Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos (Agudos – SP), e cujos trabalhos

técnicos são realizados no município paulista de Agudos desde abril de 2016. A equipe

responsável pela realização deste relatório é composta pelos professores Felipe Ferreira

Vander Velden (coordenador do projeto) e Geraldo Luciano Andrello, ambos docentes

do Departamento de Ciências Sociais (DCSo) e do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social (PPGAS) da UFSCar, e pelas estudantes Sheiva Sörensen (aluna do

Doutorado em Antropologia Social do PPGAS/UFSCar) e Cilea Santos Lima (aluna do

Bacharelado em Ciências Sociais da UFSCar).

Conforme se depreende do inciso I do Art. 10 da IN 57, a principal função do

Relatório Antropológico é caracterizar a identidade étnica e a territorialidade da

comunidade remanescente de quilombo, apresentando uma proposta de delimitação

territorial fundamentada. Para tanto, deve ser descrito o histórico da ocupação – e

desocupação, quando pertinente – do território tradicional da comunidade remanescente

de quilombo. O ponto de partida deve ser a perspectiva dos próprios quilombolas,

identificando-se a trajetória histórica comum do grupo e os marcos histórico-culturais e

identitários inscritos no território, fornecendo assim os subsídios necessários à sua

respectiva delimitação.

Os remanescentes das comunidades dos quilombos devem ser caracterizados a

partir da conceituação estabelecida no Decreto 4.887/2003, conforme segue: “Art. 2º

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste

Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória

histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

No que diz respeito ao território, o referido Decreto afirma: “são terras

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a

garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”. Neste sentido, a

Convenção 169 da OIT, em seu Art. 14, estabelece que: "Os Governos deverão adotar

as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados

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ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade

e posse", entendendo que a utilização do termo terras "deverá incluir o conceito de

territórios, o que abrange a totalidade do hábitat das regiões que os povos interessados

ocupam ou utilizam de alguma forma". Em seu Art. 13, determina: "ao aplicarem as

disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância

especial que, para as culturas e valores espirituais dos povos interessados, possui a sua

relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam

ou utilizam de alguma maneira, e particularmente os aspectos coletivos dessa relação”.

Desse modo, as “terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de

quilombos” correspondem não somente às áreas destinadas a moradia ou abertura de

roças, mas incluem também as áreas utilizadas para atividades de subsistência, os

caminhos, sítios e edificações históricas, bem como aquelas destinadas às manifestações

culturais e à religiosidade. Os limites do território assim definido não correspondem,

portanto, a pontos previamente dados e já estabelecidos geograficamente. As relações e

práticas sociais, as representações simbólicas coletivas, os usos e costumes tradicionais

e históricos são preponderantes para sua definição.

As discussões e produção de conhecimento acerca das formas de organização e

uso das terras no que tange às comunidades remanescentes de quilombo ganharam

fôlego na esteira da promulgação da Constituição Federal de 1988. Através do art. 68 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o Estado brasileiro passou a

reconhecer a existência de grupos dotados de direitos específicos e demandas próprias,

recomendando, portanto:

“Art. 68 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-

lhes os títulos respectivos” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

As comunidades hoje denominadas remanescentes de quilombo dizem respeito a

grupos com organização social própria, ancestralidade comum e cuja história de

ocupação territorial remete a situações que incluem contextos de fugas, doações,

compra e ocupações de terra. Logo, o Relatório Antropológico deve incluir aspectos

relacionados à economia comunitária, à organização territorial relacionada à produção, à

análise etnográfica dos ritos e tradições culturais (inclusive das mudanças ocorridas),

aos fatores socioambientais envolvidos, à organização sociopolítica das comunidades,

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às relações de parentesco e compadrio, às secções comunitárias e à ocupação territorial

histórica da região (origem e marcos iniciais, limites espaciais, fatores atuantes nos

processos de territorialização e desterritorialização).

A objetivação desses elementos intersubjetivos em coordenadas geográficas que

viabilizem a confecção de um mapa perimetral demandará um estudo atento na

identificação dos referidos aspectos, sua relevância na sociabilidade e na constituição do

grupo remanescente de quilombo, e principalmente, sua importância em relação ao

aspecto territorial.

Quanto à identidade étnica, o Relatório Antropológico deve apresentar uma

caracterização que torne possível o reconhecimento dos aspectos significativos para a

construção identitária das comunidades enquanto etnicamente diferenciadas, no caso,

como remanescentes de quilombo. Desse modo, é necessária uma análise dos elementos

que os próprios quilombolas acionam para se diferenciarem enquanto grupo em relação

a outros, ou seja, no conjunto das interações que a comunidade remanescente de

quilombo mantém com os variados entes que representam a sociedade envolvente.

Neste sentido, é importante a caracterização das redes de solidariedade e reciprocidade

constituintes da comunidade e relativas às suas interações sociais.

Importante destacar que a proposta metodológica para o trabalho de campo

concebe a pesquisa como uma construção através do diálogo prolongado e estabelecido

a partir da observação e da participação para melhor compreensão do universo da vida

da comunidade quilombola, como também a elaboração de um conjunto sistemático de

etnografias das diversas práticas culturais existentes. Através da reconstituição da

tradição oral, da memória e da observação do cotidiano, procura-se obter dados que

possibilitem captar o significado do que é viver na comunidade. A etnografia é

concebida como prática de pesquisa, encarando-a como construção das informações

apreendidas e interpretadas e de seus significados construídos num espaço social.

Em suma, o Relatório Antropológico deverá identificar e propor a delimitação

do território étnico, demonstrando os critérios de autorreconhecimento das comunidades

remanescentes de quilombo e identificando sua trajetória histórica própria e a

caracterização da sua ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão

histórica sofrida, conforme especifica o Art. 2º do Decreto 4.887/2003.

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* * *

A parceria entre o INCRA e a UFSCar visa à produção de Relatórios

Antropológicos de caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural da

Comunidade Remanescente de Quilombo Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos

(Agudos/SP) e da Comunidade Remanescente de Quilombo de Nossa Senhora do

Carmo (São Roque/SP). Estes relatórios antropológicos integrarão o Relatório Técnico

de Identificação e Delimitação (RTID) de cada uma das duas comunidades, instrumento

necessário ao reconhecimento dos territórios quilombolas conforme a legislação

vigente.

Para tanto, e como ponto de partida para os trabalhos, as equipes técnicas do

referido projeto, tanto do INCRA quanto da UFSCar, encontraram-se, inicialmente, com

representantes das duas comunidades em reunião realizada aos dias 17 de novembro de

2014, na Sala da Etnologia do Laboratório Integrado de Documentação e Estatísticas

Políticas e Sociais (LIDEPS-Ufscar), momento em que essas lideranças fizeram um

breve relato histórico das comunidades e da situação atual de cada uma delas. Após esta

primeira reunião, as equipes do projeto deram início às coletas de material documental e

em julho de 2015 foi realizada uma primeira visita a membros da comunidade na cidade

de Agudos. Questões e procedimentos relacionados à burocracia interna, tanto da

Universidade Federal de São Carlos como do INCRA, condicionaram o inicio do

trabalho de campo a abril de 2016. Desta perspectiva, aqui será apresentada uma

sistematização dos documentos e informações, coletados até o presente momento, a

respeito da comunidade quilombola Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos.

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RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO DA COMUNIDADE

REMANESCENTE DE QUILOMBO ESPÍRITO SANTO DE FORTALEZA DE

PORCINOS

No caso específico da comunidade quilombola Espírito Santo da Fortaleza de

Porcinos, objeto do presente relatório parcial, foi verificado em trabalhos de campo

realizados a partir de abril de 2016, que os membros se encontram em cenário

caracterizado pelos órgãos de regulamentação fundiária como uma situação de

desterritorialização.

Com certidão de autoidentificação emitida pela Fundação Cultural Palmares em

2008, o grupo quilombola em questão vem se organizando tanto no plano de suas

experiências internas, bem como através de órgãos responsáveis (INCRA, CONAQ,

FUNDAÇÃO CULTRAL PALMARES) tendo por objetivo reverterem a atual situação

de desterritorialização. Conforme será detalhado nas sessões subsequentes, o quadro de

desterritorialização diz respeito ao resultado de um processo de expropriação das terras

de uso tradicional colocado em prática em no mínimo dois momentos. Um deles se

refere à década de 60, e o outro, mais recente, diz respeito à perda do último território

remanescente, em 2010.

A história dos Porcinos na cidade de Agudos remonta ao século XIX. Conforme

relatos, os antepassados dos atuais membros da comunidade teriam saído de Minas

Gerais na condição de escravizados e então trazidos para a região pela família do

fazendeiro Antonio Balduíno Ferreira. Por ocasião de uma doação de terras, os Porcinos

passaram a protagonizar uma experiência hoje facilmente identificada com as formas de

vivência quilombola, marcadas em especial pela tradicionalidade e coletividade no uso

da terra, e pelos laços de parentesco e ancestralidade. Vários casamentos foram

realizados entre primos, fato que veio a contribuir para que o quilombo Espírito Santo

da Fortaleza de Porcino fosse formado, em sua maioria, por um grande e extenso grupo

familiar. Nesse contexto, a lógica de ocupação do espaço indica uma correlação com os

laços de parentesco construídos no interior do grupo. Organizados em várias glebas ou

unidades domésticas, o quilombo formava no interior do estado de São Paulo um grande

núcleo de parentes e/ou vizinhos aparentados.

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Segundo relatos, do ponto de vista das atividades produtivas então desenvolvidas

no quilombo, destaca-se a agricultura de subsistência colocada em prática a partir do

uso comum dos recursos naturais, como a mina d’agua citada pelos quilombolas. O

excedente dessa produção era vendido na cidade ou trocado por outros produtos com

vizinhos não quilombolas. Junto à agricultura coexistia a criação de animais, bem como,

alguns membros da comunidade trabalhavam para proprietários locais ou mesmo na

cidade como “saqueiros”, isto é, abastecendo as locomotivas que saíam da região com

produtos agrícolas produzidos localmente. Outra atividade mencionada e de

responsabilidade das mulheres, era a venda de doce de goiaba para estabelecimentos da

cidade, em especial para hotéis, incluindo o ainda existente Agudos Palace Hotel.

Para além da organização produtiva, existem diversos relatos acerca da

organização de festas religiosas no interior do quilombo. Dentre essas celebrações,

foram citadas as festas de São João e de São Pedro, além da realização de terços que

duravam mais de três dias. Durante o período que antecediam as festas, pratos de

comida eram preparados coletivamente para posteriormente serem partilhados. A

religiosidade no interior do grupo é algo marcante e junto aos católicos coexiste um

número de parentes evangélicos bastante significativo, assim como, alguns membros de

religiões afro-brasileiras como o candomblé.

Conforme podemos concluir, as atividades produtivas, festas e reuniões

familiares aqui descritas concentraram-se, de forma ininterrupta, do final do século XIX

até meados do séc XX. Entretanto, apesar da grande mudança imposta a partir dos anos

1960, isto é, perda gradativa do território e consequente dispersão do grupo, a

comunidade ainda manteve características tradicionais, bem como a relação de

pertencimento com a terra que se encontra em atual disputa judicial. Tal situação só foi

possível mediante a organização e esforço de membros do quilombo que mantiveram

tradições e retomaram antigos laços no interior de um fragmento territorial (sitinho)

bastante reduzido, atualmente desocupado e em litígio.

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2.

A história associada à comunidade em questão, ainda que não figure nas páginas

de uma história oficial de Agudos, deixou marcas na memória local. Como mencionado,

a trajetória dos Porcinos no interior do estado de São Paulo tem seus primórdios no

contexto da sociedade escravagista, período no qual a paisagem da região era ainda

majoritariamente tomada por imensas fazendas e sesmarias. No final do século XIX, ex-

cativos da então chamada fazenda Areia Branca tornaram-se herdeiros de uma porção

significativa de terras e desde então, em situações diversas, esse grupo familiar tem

protagonizado um movimento marcado por expropriações, desocupações, dispersões e

reagrupamentos, com especial destaque para o recente contexto de busca por direitos

territoriais.

A narrativa acerca da referida doação de terras remete ao ano de 1886. Conforme

relatos orais e documentos históricos, Antonio Balduino Ferreira e sua mulher Francisca

Cândida de Jesus,

instituem-se entre si o reciprocamento como universais herdeiros

visto não terem eles testamenteiros herdeiros necessários

devendo o sobrevivente, dos bens que possuem gozarem do uso e

fruto dos mesmos bens, ficando os seus escravos Justino, Julia,

Serafim, Mariana, Camillo, Norberta, Bôa-ventura, Anna,

Joaquim, e a ingênua Carolina, e a escrava Luisa, libertos com a

condição de servirem ao testador sobrevivente durante a sua

vida, e que por morte deste ficarão como herdeiros universais.

(Transcrição de Escritura testamentária de Antonio Balduino

Ferreira, formalizada em 30 de maio de 1886, localizada no livro

de notas n. 5, às fls. 24, do Tabelião pela lei do Distrito de Piatã,

e arquivada no cartório de Registro Civil de Agudos).

Antônio Balduíno Ferreira era filho de Manoel José Ferreira e Anna Rosa

Ferreira. Era natural de São José das Alfenas-MG, mas residia em Agudos-SP (antigo

Distrito de Fortaleza, e depois Piatã), local onde faleceu em 6 (seis) de novembro de

1891, aos 70 (setenta) anos de idade. Sua esposa, Francisca Cândida de Jesus, com o

falecimento do marido, revogou a doação da sua meação em 1891, realizando nova

doação por escritura, aos mesmos donatários anteriores, em 8 (oito) de abril de 1893,

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junto ao Cartório do antigo Espírito Santo de Fortaleza (livro 19, fls. 31), conforme

consta na transcrição sob n. 1035, no livro 3-A, fls. 333, do Registro Imobiliário da

Primeira Circunscrição de Bauru, datada de 15 (quinze) de janeiro de 1913.

Tais informações, obtidas por meio de relatos orais dos membros da comunidade

quilombola (descendentes dos donatários ex-cativos) são corroboradas nos autos da

Ação de Usucapião n. 378/63, que tramitou no 2º Cartório Judicial da Comarca de

Agudos-SP, e onde aparecem como partes Vergílio Porcino de Mello e outros. Os

autores desse processo judicial são também descendentes e sucessores dos ex-

escravizados de Antônio Balduíno Ferreira e Francisca Cândida de Jesus, razão pela

qual os autos processuais trazem em seu bojo um conjunto significativo de dados

históricos sobre o Quilombo dos Porcinos, desde a sua origem até a mais importante

expropriação sofrida. No interior da Ação de Usucapião é possível verificar a

cronologia da história dos ex-cativos, e seus descendentes, claramente demonstrada por

documentos e depoimentos judiciais. Ao mesmo tempo em que essa ação judicial traz

elementos que fundamentam as características e a identidade quilombola do grupo,

paradoxalmente, ela contém indícios que convergem com os relatos orais que apontam

para possíveis situações de vulnerabilidade e erro.

A Ação de Usucapião n. 378/63 foi proposta em 28 (vinte e oito) de março de

1963, quando já se fazia quase 80 (oitenta) anos que os donatários ex-escravizados, e

seus descendentes, tinham a terra em composse, a contar de 1886, data da doação de

Antônio Balduíno Ferreira. Tal fato é observado através de documentos nos autos que

comprovam o recolhimento de impostos à época e de testemunhos judiciais de vizinhos

e confinantes.

A área usucapienda representava 600 alqueires, parte da Fazenda Areia Branca

então recebida em doação pelos ex-cativos. Em posse das terras, e livres do trabalho

compulsório, os Porcinos organizaram-se de modo a ocupar e utilizar esse espaço com

plantações e pequenas pastagens. Com o passar dos tempos empreenderam melhorias e

benfeitorias como a reconstrução das casas de barro e sapê construídas pelos seus

antepassados, bem como a manutenção das terras como área de uso comum. É certo

também que os Porcinos circulavam pela região, uma vez que em muitos casos

deixavam a terra por determinado período para viver em outras cidades, onde

estabeleciam variados tipos de relações, realizavam trabalhos informais e depois

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retornavam, além de situações comuns em que membros da família trabalhavam para

proprietários de terras locais.

Nos documentos que compõem os autos processuais é possível verificar certidão

de órgão municipal que aponta a posse e a situação regular de pagamento de impostos

pelos Porcinos, assim como, depoimentos de testemunhas arroladas e ouvidas no

referido processo judicial, através das quais são constatados fatos que se alinham aos

relatos orais dos membros da comunidade quilombola no que diz respeito à

territorialidade tradicional e às identidades étnica e cultural do grupo, sendo:

Depoimento da testemunha Olímpio Rondina, em audiência de inquirição de

testemunhas realizada aos dias 05 (cinco) de abril de 1963.

(...) que, ele depoente conhece todos aqueles que na presente ação de usucapião

constam como autores; que, ele depoente presentemente consoante já declarou que tem

40 anos de idade e foi nascido nesta cidade de Agudos; que, aqui cursou também o

Grupo Escolar sendo certo que quando o fazia tendo então a idade de 9 anos, vários

dos autores cursavam aludida escola juntamente consigo: que, naquela ocasião os ora

autores já moravam nas terras onde ora ainda residem; que, ele depoente sempre

ouviu dizer que os ora autores ou requerentes eram proprietários daquela área de

terra, sendo certo que as tinham havido de seus pais e avós: que, os autores a exceção

de Juvenal Gomes de Moraes são todos pretos; que, durante todo o tempo, decorrido

daquela à presente data os autores moraram na aludida gleba; que, ele depoente

conhece a aludida gleba há mais de 30 (trinta) anos; que, os autores no curso destes

anos todos tem feito benfeitorias na aludida propriedade: quer reconstruindo as casas

que feitas por seus antecessores necessitavam de tal reconstrução, quer fazendo

plantações e formando pastos; (...) que ele depoente conheceu os pais de Porcino,

digo de Vergílio Porcino de Melo e Rita Porcino, sendo que Rita é irmã de Antonio

Porcino; que, há trinta anos atrás os pais de Antonio Porcino Filho e Rita Porcino de

Melo já habitavam aludida gleba; que, pelo que ele depoente ouviu dizer os pais e

avós dos autores teriam sido escravos, sendo certo que um tal de Antônio Balduíno

ainda no tempo da escravatura foi quem lhes fez tal doação; que, ele depoente

jamais ouviu dizer que quem quer que seja tenha procurado investir contra a gleba ora

ocupada pelos requerentes, dizendo-a sua; (...) que os requerentes habitam aludida

área por inteiro; que, ele depoente também ouviu dizer que a parte ocupada por

Boaventura Ferreira e outros também faz parte da doação feita pelo então senhor de

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escravo Antonio Balduíno e s/m. a seus próprios escravos; (...) que, ele depoente

ouviu dizer que o antigo senhor de escravos doara aos seus cerca de oitocentos

alqueires; que, ele depoente não conhece outros que estejam possuindo aludida gleba,

que não sejam os requerentes; que, Boaventura Ferreira já é falecido; que, ele

depoente conhece sua viúva, dona Maria Francisca Ferreira, bem como seus filhos e

herdeiros Francisco Ferreira, Antonio Ferreira, José Ferreira e filhas cujos nomes ele

depoente não se lembra; que, dentre os requerentes não há nenhum que tenha

perdido contato direto com a propriedade; que, o total de terras que se quer usucapir

está totalmente dentro do Município de Agudos. (grifos nossos)

Depoimento da testemunha Francisco Pereira Braga, em audiência de inquirição

de testemunhas realizada aos dias 05 (cinco) de abril de 1963.

(...) que, ele depoente mora no distrito de Piatã há vinte anos, morando

anteriormente sempre nas redondezas desta cidade; que, ele depoente tem 36 anos e

conhece os requerentes a questão de uns 20 anos; que, dos requerentes ele depoente

conhece Vergílio Porcino há bem mais de 20 anos, sendo certo que quando da feitura

do aludido conhecimento ele Vergílio já morava no distrito de Piatã; que todos os

requerentes possuem a gleba em comum, sendo certo que todos ainda hoje lá

habitam; que, aludida gleba tem seiscentos e pouco alqueires; (...) que, os requerentes

no local são considerados como donos da aludida gleba de terra; que, lhes foi

transmitida por seus próprios pais; que, dos requerentes todos são pretos a exceção de

Juvenal Gomes de Moraes, marido de Rita Porcino de Mello; (...) que desde que

conhece os requerentes os sabe donos daquela propriedade; (...) que, eles requerentes

devem ter ali umas cinco casas; que, ali conforme as casas vão ficando velhas e estão

prestes a cair os requerentes fazem outras casinhas; que ele depoente conheceu

Boaventura Ferreira de vista, parecendo-lhe que os sucessores do mesmo são também

confinantes com esta propriedade; que, ele depoente sabe que os requerentes e

Boaventura Ferreira tinham a gleba em comum, fizeram um acordo no concernente a

divisão, sendo certo que enquanto os pretos ficaram com seiscentos e poucos

alqueires, Boaventura Ferreira ficou com a parte de baixo (...) que, os depoentes nas

terras objeto da presente faziam pequenas plantações, sendo certo que ali também

tinham pequenas pastagens onde, quando tinham animais, ali os soltavam. (grifos

nossos).

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Depoimento da testemunha Delfino Tendolo, em audiência de instrução e

julgamento realizada aos dias 17 (dezessete) de junho de 1969.

“(...) que o depoente não conhece pelo nome os autores, sabendo apenas que

conhece a Família dos Porcinos, não sabendo o nome de cada um deles; (...) que o

depoente tem conhecimento de que os porcinos sempre moraram em uma gleba de

terras, hoje vizinhas da Cia Agro Florestal; que, parece que o local onde estão

situadas as terras dos Porcinos chama-se Piatãn. (...) que o depoente chegou nesta

cidade em 1942, e aqui ficou sabendo que essas glebas eram propriedades dos

Porcinos, os quais as haviam recebido em doação. (...) que o depoente não sabe

informar o nome dos proprietários limítrofes da gleba usucapienda; que sabe que

havia uma cerâmica ali próxima, isto é que a Família Frascarelli, de Pederneiras

possuía terras ali próximas (...) que os Porcinos constituem família numerosa e que

não vinha à cidade; que desde que chegou a esta cidade, em 1942, o depoente, que

trabalha com lenha, sempre viu os Porcinos nessa gleba. (...) que ouviu falar também

que os ancestrais dos Porcinos receberam essas terras de senhores de escravos. (...)

que passava pelas terras dos Porcinos uma estrada de rodagem que ligava este

município ao vizinho de Pederneiras; (...) que, sabe que os Porcinos queimavam

madeira para fazer carvão na propriedade; que, vendiam eles também lenha e casca de

barba timão; que, as casas dos Porcinos eram madeiras de rebocadas a barro. (...) que

os Porcinos ocupavam a gleba em comum, sem destinação de área certa para cada

um; que o depoente sempre ouviu falar em conversas com pessoas antigas da cidade

que os Porcinos haviam recebido essas glebas por estar na posse delas há muitos anos

(...) (grifos nossos)

Depoimento da testemunha Olímpio Rondina, em audiência de instrução e

julgamento realizada aos dias 17 (dezessete) de junho de 1969.

(...) que, em 1924 o depoente se mudou para Piatã, sendo que ali já residiam os

autores. (...) que, a esse tempo, os autores já ocupavam uma gleba de terras ali

existentes; que, a área era em torno de 600 alqueires; que, o depoente era vizinho dos

autores. (...) que os autores de fls. 2 sempre residiram na gleba; que, essa gleba era

denominada Areia Branca; que, os autores arrendavam parte das terras, retiravam

lenha, vendiam casca de barba timão; que a melhor parte das terras era arrendada

para plantio de algodão; que, a exploração das terras era feita em comum entre os

familiares; que, as casas ocupadas pelos autores eram de barro; que, as casas foram

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construídas pelos autores de fls. 2 (...) que, embora tenha aportado em Piatã em 1924,

a lembrança que tem dos autores de fls. 2 data de 1930, época em que cursou junto com

eles a escola; que, a esse tempo os autores de fls. 2 já residiam na propriedade e isso

há muito tempo; que os ancestrais dos autores de fls. 2 residiram na propriedade; que,

pelo que os autores dizem a família ocupa essas terras há mais de setenta anos. Que

o depoente conhece a gleba usucapienda; que a posse dos autores de fls. 2 sempre foi

contínua, não sofrendo qualquer interrupção; (...) que, os autores sempre residiram

no local; que, os autores sempre disseram ao depoente que a origem da ocupação das

terras é doação de um tal de Balduíno à família dos Porcinos; que era menino

quando ouviu falar isso pela primeira vez; que os moradores da redondezas sempre

aceitaram essa afirmação dos autores de fls. 2. (...) que, em 1962 passaram a plantar

pinus na propriedade usucapienda o que foi feito pela Silvicultura Areia Branca; que,

os pinus mais antigos são de uns 7 anos de idade; que, os Porcinos só mudaram-se da

gleba há uns três anos atrás, quando a plantação de pinus atingiu as proximidades

das casas onde residiam; que, os autores foram saindo aos poucos da propriedade;

(...) que, quando conheceu os autores por volta de 1930 ainda eram vivos os pais de

Antônio Porcino, José Ramos e Vergílio Porcino, respectivamente chamados Antônio

Porcino de Mello, José Ramos e Augusto Porcino; que além desses eram proprietários

da gleba José Joaquim Martins e outros – que o depoente não se recorda pois que a

família era muito numerosa. (...) que, quando disse que vez por outra os autores de fls.

2 deixavam a propriedade para depois a ela retornar, quis dizer que ocorria de saírem

eles por quatro ou cinco meses em trabalhos nas propriedades vizinhas, mas sempre

residindo na propriedade; que, o depoente está lembrado de Madalena Martins, irmã

de José Joaquim Martins; que, Madalena Martins ocupava parte das terras

usucapiendas; que, essa ocupação era em conjunto com os demais autores de fls. 2.

(...) não se sabe se Madalena deixou algum parente na propriedade, pois que foram

eles se misturando muito; (...) que o depoente ainda reside nas terras vizinhas às

usucapiendas; (...) a doação teria sido feita com proibição de alienação, tanto que se

dizia que só poderiam eles vende-las “na quarta geração” (...) que, Madalena Martins

explorava a terra em conjunto com os Porcinos, não sabendo assim se integrava a

área de Boaventura Ferreira ou dos Porcinos, pois que havia mistura entre as

famílias; (...) (grifos nossos)

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Depoimento da testemunha Frederico Paludetto, em audiência de instrução e

julgamento realizada aos dias 17 (dezessete) de junho de 1969.

(...) que o depoente conhece os autores “desde que se conhece por gente”, pois

sempre co-vizinhou com eles na Fazenda conhecida do depoente por “Areia Branca”;

que, os autores exploravam uma parte de uma gleba ali existente, constituída de terras

de baixa categoria e tiravam lenha do restante da propriedade; que o depoente

conheceu os autores morando na propriedade a que se referiu, acreditando que a

posse da família seja de oitenta anos; que sempre ouviu falar que os autores

herdaram as terras de seus ancestrais, as quais as teriam recebido de um tal de

Antonio Balduíno; que parece ao depoente que as terras possuem a área de 600

alqueires; (...) que passam pela propriedade a Água da Areia Branca e Água da

Limeira; que atualmente a área confina com terras da Cia Agroflorestal; (...) que, são

confinantes, ou pelo menos o eram, Boaventura Ferreira; (...) que, os Porcinos

nasceram na propriedade, tendo ouvido falar que o pai de Antonio Porcino Filho veio

de Minas; que os autores sempre moraram na propriedade; que, os autores sempre

exploraram a propriedade. (...) que, o depoente, até há seis anos atrás, possuía

propriedade confinante com os autores (...); que, os autores sempre disseram ao

depoente que eram proprietários das terras; que, ouviu falar, também, que as terras

foram doadas por Antonio Balduino aos pais dos autores; (...) que, entre os autores e

seus ancestrais o depoente calcula que a posse deles data de mais de oitenta anos; que

a posse dos autores é pública, isto é todos os vizinhos dela tinham conhecimento e

respeitavam, como se fossem eles os proprietários da gleba, pois que acreditavam que

de fato eram proprietários; os próprios autores sempre disseram que as terras lhes

pertenciam e tanto era assim que vendiam lenha sem oposição de qualquer pessoa.

(...) que faz tempo que não conversa com eles e acredita que até ignoram a realização

desta audiência; (...) que os autores não disseram ao depoente a razão pela qual

intentam a presente ação; que, os autores exploravam toda a gleba, parte em cultura,

parte na retirada de lenha a nas terras imprestáveis ainda vendiam casca de barba

timão, sendo assim plena exploração que faziam da propriedade. (grifos nossos)

Para além da memória de membros da família e moradores da cidade de Agudos

acerca da cronologia do surgimento e da organização do grupo, a história dos Porcinos,

e em especifico do mais importante processo de expropriação a que foram submetidos,

encontra-se registrada no conjunto de documentos judiciais. A Ação Judicial de

14

Usucapião1, ajuizada no ano de 1963, e que tramitou na 2º Vara Cível da Comarca de

Agudos-SP é um registro fundamental do enredo histórico. Nesse processo judicial é

possível apreender dados fundamentais e suficientes que demarcam o tempo e as

particularidades dessa comunidade tradicional, cujo espaço se originou e ficou

conhecido como uma “terra de pretos”. Tal assertiva é confirmada nos depoimentos

acima transcritos, quando, em diversas vezes, foram mencionados a ancestralidade

negra e o passado de cativeiro dos moradores dessa terra que lhes foi doada por

testamento pelo senhor de escravos Antônio Balduíno Ferreira e sua esposa.

Outros pontos basilares são percebidos no conjunto documental constante nos

autos da referida Ação de Usucapião (e que convergem com a memória oral do grupo),

como o caráter cultural de coesão e coletividade dos Porcinos, e, sobretudo, a posse

contínua das terras, cujo princípio histórico remonta a era escravocrata. Restou claro nos

depoimentos de todas as testemunhas, como também, nas falas dos membros da

Comunidade Quilombola, que os moradores daquelas terras as possuíram coletivamente

desde a época da doação recebida, ou seja, 1886. E ainda, que a comunidade era

composta por muitas pessoas, em uma multiplicidade de famílias originárias de um

mesmo ramo de parentesco, resultantes de uniões e casamentos iniciais entre os ex-

escravizados donatários e outros escravos possivelmente libertos, todos anteriormente

de propriedade de Antônio Balduíno Ferreira e sua esposa. Dessa forma, os casamentos

se davam entre os próprios membros do grupo quilombola, como, por exemplo, entre

primos, havendo a notícia da existência de um só branco entre eles, Juvenal Gomes de

Moraes, marido de Rita Porcino de Mello.

A identidade cultural e étnica dos Porcinos, a sua organização comunitária, além

da condição de descendentes de ex-escravizados, e que os caracterizavam diante dos

moradores da região, são claramente verificadas nas falas das testemunhas, quando

utilizam os termos “pretos”, “escravos” e “Família dos Porcinos”, conforme transcrito

abaixo:

“(...) que, os autores a exceção de Juvenal Gomes de Moraes são todos pretos.”

“(...) que, pelo que ele depoente ouviu dizer os pais e avós dos autores teriam

sido escravos, sendo certo que um tal de Antônio Balduíno ainda no tempo da

escravatura foi quem lhes fez tal doação;”

1 (Processo nº 378/63).

15

“(...) a parte ocupada por Boaventura Ferreira e outros também faz parte da

doação feita pelo então senhor de escravo Antônio Balduíno e s/m. a seus próprios

escravos; (...) que, ele depoente ouviu dizer que o antigo senhor de escravos doara aos

seus cerca de oitocentos alqueires.”

“(...) que os ancestrais dos autores de fls. 2 residiram na propriedade; que,

pelo que os autores dizem a família ocupa essas terras há mais de setenta anos.”

“(...) que, os autores sempre disseram ao depoente que a origem da ocupação

das terras é doação de um tal de Balduíno à família dos Porcinos; que era menino

quando ouviu falar isso pela primeira vez; que os moradores das redondezas sempre

aceitaram essa afirmação dos autores de fls. 2.” (Depoimentos de Olímpio Rondina)

(grifos nossos)

“(...) que, dos requerentes todos são pretos a exceção de Juvenal Gomes de

Moraes, marido de Rita Porcino de Mello.”

“(...) que, ele depoente sabe que os requerentes e Boaventura Ferreira tinham a

gleba em comum, fizeram um acordo no concernente a divisão, sendo certo que

enquanto os pretos ficaram com seiscentos e poucos alqueires, Boaventura Ferreira

ficou com a parte de baixo (...)” (Depoimentos de Francisco Pereira Braga). (grifos

nossos)

“(...) que ouviu falar também que os ancestrais dos Porcinos receberam essas

terras de senhores de escravos.”

“(...) que o depoente não conhece pelo nome os autores, sabendo apenas que

conhece a Família dos Porcinos, não sabendo o nome de cada um deles; (...) que o

depoente tem conhecimento de que os porcinos sempre moraram em uma gleba de

terras” (Depoimentos de Delfino Tendolo). (grifo nosso)

“(...) que sempre ouviu falar que os autores herdaram as terras de seus

ancestras.”

“(...) que, entre os autores e seus ancestrais o depoente calcula que a posse

deles data de mais de oitenta anos; que a posse dos autores é pública, isto é, todos os

vizinhos dela tinham conhecimento e respeitavam (...)” (Depoimento de Frederido

Paludetto)

16

Os trechos de depoimentos, acima transcritos, mostram que além do auto-

reconhecimento da comunidade enquanto remanescentes de quilombo, a diferenciação

étnica e cultural do grupo também era identificada por vizinhos e moradores da região.

Conforme se observa nas respostas das testemunhas às perguntas do magistrado e às

reperguntas dos advogados, já existia uma percepção, por todos os envolvidos nessa

Ação Judicial, da condição de descendentes de ex-escravos dos membros da

comunidade, do modo de vida coletivo característico, do parentesco entre eles e da

especial relação e uso da terra. Uma impressão e interpretação do grupo de acordo com

observações a respeito de sua composição e práticas sociais, desde o final do século

XIX. De fato, ainda hoje a história dos Porcinos e a da doação das referidas terras

circula pelo munícipio de Agudos. Vários dentre os mais antigos membros da família,

por exemplo, são personagens conhecidos na história local da cidade, como é a caso de

Antonio Porcino. Nesse contexto, os antepassados dos quilombolas ganharam destaque

no percurso de autoconstituição e reconhecimento, na medida em que lhes é reservado

certo papel de protagonismo.

Após a análise detalhada do material judicial e histórico, associado aos relatos

orais dos membros da Comunidade Quilombola, foi possível compreender que os

desdobramentos da Ação de Usucapião levou a uma significativa perda de 600 alqueires

da terra recebida em doação, o que gerou prejuízos graves aos quilombolas, alcançando,

inclusive, os seus descendentes, em uma perpetuação de danos de inúmeras ordens por

mais de meio século.

De acordo com as informações apreendidas no citado processo judicial, e

segundo as histórias narradas por componentes da família, tudo leva a crer que, no

passado, alguns dos ex-escravizados e moradores da antiga Fazenda Areia Branca

tenham sido cooptados e levados a erro por advogados representantes de grandes

empreendimentos interessados nas terras em questão.

Aqueles que aparecem como autores da Ação de Usucapião, e outorgantes das

procurações públicas ora juntadas nos autos do processo, são: José Joaquim Martins e

sua esposa Rita Maria de Jesus; Flauzina Soares Messias e seu esposo Manoel Messias

dos Santos; José Ramos Porcino e sua esposa Maria do Carmo Soares Ramos; Vergílio

Porcino de Mello e sua esposa Benedita Porcino de Mello, Maria Benedita de Jesus;

Lúcia do Carmo; Otacílio Rodrigues Silva e sua esposa Maria Aparecida da Silva;

17

Josefa Maria de Jesus; Antonio Porcino Filho; Rita Porcino de Mello e seu esposo

Juvenal Gomes de Moraes; Lázaro Soares.

Nos versos dos respectivos instrumentos de mandatos outorgados pelos

quilombolas, são observadas informações do Oficial Maior a respeito dos outorgantes

serem analfabetos e suas assinaturas terem sido feitas a rogo. E mais, é verificado nas

procurações um excesso de poderes outorgados ao mandatário, representados por

cláusulas ad judicia et extra, as quais lhe permitiam “(...) a venda dos bens ou cessão

de direitos a eles relativos, que possuem nesta comarca, pelo preço e condições que

convencionar e a quem convier, podendo seu dito procurador assinar escrituras,

documentos e papéis necessários, receber e dar quitação, descrevendo os imóveis com

seus características, confrontações e origem, transmitir posse, justo domínio,

responder pela evicção de direito, representá-los perante as repartições públicas

federais, estaduais e municipais, podendo substabelecer.”

É visível nas descrições dos poderes outorgados ao procurador/advogado que

não houve especificações que identificassem o bem imóvel objeto da demanda judicial,

no caso, a área usucapienda de 600 alqueires, parte da Fazenda Areia Branca, o que

configurou uma amplitude que possibilitou que os demasiados poderes mandatários

alcançassem todo e qualquer bem de propriedade dos outorgantes, ou seja, a própria

Fazenda Areia Branca, em sua integralidade, e as benfeitorias que lá existiam.

Ao lado de procurações que previam um excesso de poderes, assinadas a rogo

por analfabetos que se encontravam na condição social de descendentes de ex-

escravizados, também são constatadas nos autos processuais alegações contestatórias

que levantam a suspeita de interesses de terceiro na compra da terra herdada

(Contestação apresentada por Adelina Ferreira da Silva, irmã de Antônio Balduíno

Ferreira).

E mais, é possível verificar no trâmite desse processo judicial um abandono da

causa, por parte do advogado dos autores, que perdurou por mais de 1 (um) ano, a

contar de 11 (onze) de abril de 1965, depois de um célere andamento processual desde a

propositura da ação. Abandono esse apontado pela contestante Adelina Ferreira da

Silva, em 19 (dezenove) de abril de 1966. O trâmite do processo somente foi

restabelecido pelo procurador dos autores em 28 (vinte e oito) de abril de 1966, após a

18

juntada, aos autos processuais, de uma Cessão de Direitos e Bens datada de 23 (vinte e

três) de setembro de 1965.

Ao se manifestar nos autos, em abril de 1966, o advogado dos autores informa

ao Juízo que os quilombolas, por escritura pública (Livro 95, fls. 124/127, do Segundo

Tabelionato da Comarca de Agudos) cederam todos os seus direitos e bens, relativos às

terras objeto da ação, à Silvicultura Areia Branca S/A. Dessa forma, e a partir de então,

os autores, “que cederam os seus direitos, nenhuma interferência mais podem ter nestes

autos”. (fls. 141 dos autos da Ação de Usucapião – doc. 9)

Examinando-se a citada escritura pública de Cessão de Direitos e Bens é

possível verificar que todos os autores foram representados naquele ato pelo seu

procurador, considerando a abrangência dos poderes outorgados a ele nos mandatos. Em

continuidade à análise desse documento foi observada, também, a menção ao

analfabetismo dos quilombolas e às suas assinaturas que, novamente, foram feitas a

rogo.

E ainda, de acordo com as datas da Cessão de Direitos e Bens e do retorno do

andamento do processo, é possível concluir que esse documento foi formalizado no

período em que o advogado dos autores deixou de se manifestar nos autos, o que nos

leva a crer em uma perda de interesse na lide, em razão da Cessão de Direitos e Bens

referente à área usucapienda ter sido efetivada. Fato esse que confirma a alegação da

contestante Adelina, quando afirmou, em Contestação, sobre a existência de terceiro

interessado na aquisição da gleba, apontando, inclusive, a contratação de agrimensores

por um particular, para o levantamento da área e confecção da planta apresentada na

inicial. (fls. 45/48 dos autos da Ação de Usucapião n. 378/63 – Doc. 7). Além disso, tal

situação também é confirmada em depoimento judicial pelo agrimensor Jan Frederik

Oewel, que afirma ter sido contratado pelo Dr. Schuckar para realizar o serviço, tendo

em vista o seu interesse em adquirir as terras.

(...) que, ele depoente foi agrimensor que, em conjunto com o Dr. Fábio Antonio

Brigido, elaborou o mapa incerto às fls. 24 dos presentes autos; que, ele depoente foi

contratado para fazer aludido serviço pelo Dr. Schuckar; que o Dr. Schuckar é diretor

da Cia que pretende adquirir aludida gleba dos ora requerentes, uma vez declarada

usucapida; que ele depoente ouviu dizer que esta gleba de terras teria sido doada por

um senhor de escravos a seus escravos que foram os antepassados dos ora requerentes.

19

(Audiência de instrução e julgamento realizada aos dias 17 (dezessete) de junho de

1969).

Em prosseguimento à análise dos autos processuais da Ação de Usucapião n.

378/63 nota-se a juntada sequencial de mais 4 (quatro) Cessões de Direitos e Bens

referentes às terras doadas pelo senhor de escravos Antônio Balduíno Ferreira e sua

esposa, onde aparecem como cedentes outros descendentes e sucessores dos ex-

escravizados, e como cessionária a Silvicultura Areia Branca S/A. Igualmente ao que

consta na primeira Cessão de Direitos, datada de 23 (vinte) de setembro de 1965, a

cessionária Silvicultura Areia Branca S/A, em todas as demais Cessões de Direitos e

Bens, está representada pelo seu diretor Horst Schuckar, pessoa citada na Contestação, e

em depoimento judicial em 1963 (ano da propositura da ação) como o particular que

contratou o agrimensor para o levantamento da área usucapienda.

Em ordem cronológica, abaixo seguem as informações concernentes às Cessões

de Direito e Bens mencionadas.

- Cessão de Direitos e Bens datada de 14 (quatorze) de fevereiro de 1964, onde

aparecem como cedentes Madalena Martins e o Espólio de Maria Francisca das Dores.

Madalena Martins, segundo informações no processo judicial e em relatos orais, era

filha de Catarina Francisca de Jesus e de Tito Joaquim Martins. Catarina era ex-

escravizada e donatária nos testamentos do senhor de escravos Antônio Balduíno

Ferreira e de sua esposa. Madalena Martins, conforme certidão de Oficial de Justiça,

datada de 24 (vinte e quatro) de setembro de 1963, também era analfabeta, sendo que

devido a sua condição não foi capaz de assinar a citação recebida à época (fls. 67 dos

autos da Ação de Usucapião n. 378/63 - doc. 11). Conforme informações constantes nos

autos processuais, Maria Francisca das Dores era viúva e herdeira de Boaventura José

Ferreira, escravo liberto e também donatário de Antônio Balduíno e sua esposa. Ela é

descrita em certidão do Oficial de Justiça, datada de 24 (vinte e quatro) de setembro de

1963, como pessoa enferma, incapaz de assinar, e aparentando 80 (oitenta) anos de

idade à época da citação. (verso das fls. 67 dos autos da Ação de Usucapião n. 378/63 –

Doc 11)

- Cessão de Direitos e Bens datada de 05 (cinco) de julho de 1966 (doc. 12),

onde aparece novamente como cedente Magdalena Martins, ao lado de seu único filho,

Florêncio Teixeira. Neste ato eles também foram representados pelo procurador,

20

provavelmente em virtude da abrangência dos poderes outorgados em mandato. Não

obstante conste informação nos autos processuais certificando que Madalena Martins

era analfabeta, não foi encontrada no processo procuração pública em seu nome com

assinatura a rogo.

- Cessão de Direitos e Bens datada de 05 (cinco) de julho de 1966 (doc. 13),

onde aparecem como cedentes os herdeiros de Boaventura Antônio Ferreira, escravo

liberto, e de sua esposa Maria Francisca das Dores. Neste documento observa-se que os

cedentes foram todos representados por procurador, não estando presentes no ato de

formalização do contrato. E ainda, é mencionada neste contrato a existência de outra

Ação de Usucapião, em trâmite na Comarca de Agudos, onde aparecem como autoras

Madalena Martins e Maria Francisca das Dores (sucessora de Boaventura Antônio

Ferreira).

- Cessão de Direitos e Bens datada de 25 (vinte e cinco) de outubro de 1966

(doc. 14), onde aparecem como cedentes Maria Izabel de Mello Porcino e seu marido

Francisco da Silva. Maria Izabel era filha de Serafim Porcino de Mello e Josefa ou

Josefina Maria de Jesus, e neta paterna de Júlia ou Juliana Maria Francisca e Antônio

Porcino de Mello. Júlia ou Juliana, segundo relatos orais e informações documentais,

era escrava liberta e donatária de Antônio Balduíno Ferreira e sua esposa. Antônio

Porcino de Mello também era ex-escravizado, casado pela primeira vez com a falecida

Carolina Francisca de Jesus, que também era ex-escrava e donatária de Balduíno, e da

qual Antônio era único herdeiro.

Ao esmiuçar o conteúdo de cada uma dessas 5 (cinco) Cessões de Direitos e

Bens, foi verificado que as cessões se referem a divisões de terra que compõem a

Fazenda Areia Branca, havendo alusão à doação testamentária de Antônio Balduíno

Ferreira e sua esposa, e aos direitos sucessórios dos descendentes dos ex-escravizados.

E mais importante, foi constatado que em todos os 5 (cinco) contratos/escrituras de

Cessão de Bens e Direitos há o acréscimo de cláusula que prevê a cessão e

transferência, pelos cedentes (sucessores dos ex-escravizados), de todo e qualquer

espaço que componha a Fazenda Areia Branca, além daqueles efetivamente descritos no

contrato/escritura. Seguem abaixo as transcrições de trechos das cláusulas citadas:

“(...) à outorgada Silvicultura Areia Branca S/A, à qual cedem e transferem,

ainda, todos os direitos hereditários e de meação que sobre as terras da Fazenda

21

Areia Branca lhes compete, em virtude de sucessões legítimas ou testamentárias, já

abertas, inclusive as retro mencionadas, (...) e por esta mesma escritura lhe cedem e

transferem todo o domínio, posse, direitos e ações que sobre as terras referidas ou

outras quaisquer da Fazenda Areia Branca tinham, para que deles a outorgada use,

goze, e disponha, como seus que ficam sendo, doravante, obrigando-se a fazerem a

presente venda e cessão boa, firme e valiosa, e a qualquer tempo, e a responderem pela

evicção, nos termos da lei. (Cessões de Direitos e Bens datadas de 14 (quatorze) de

fevereiro de 1964 e 05 (cinco) de julho de 1966) (grifo nosso)

(...) que a presente cessão compreende todos os direitos hereditários (de

domínio e posse) e ações cabentes aos outorgantes – sobre terras da antiga Fazenda

Areia Branca, deste município e comarca, ainda que situadas fora da gleba de 600

alqueires e 23.340 metros quadrados, retro e supra descrita. (Cessões de Direitos e

Bens datadas de 25 (vinte e cinco) de outubro de 1966) (grifos nossos).

Através das informações constantes nos autos processuais da Ação de Usucapião

n. 378/1963, e nos contratos/escrituras de Cessão de Direitos e Bens, além dos relatos

orais dos descendentes quilombolas, é possível afirmar, com segurança, que a

cessionária Silvicultura Areia Branca S/A tinha total e pleno conhecimento que os ex-

escravizados eram donatários e legítimos proprietários da integralidade da Fazenda

Areia Branca, não obstante ocupassem coletivamente parte dela. Motivo pelo qual há

cláusulas nos contratos que preveem a transferência de direitos que favorecem a

cessionária com a totalidade do bem herdado pelos pretos, apesar do preço indicado em

contrato representar o valor de uma pequena parcela da herança.

Após as juntadas das Cessões de Direitos e Bens aos autos processuais da Ação

de Usucapião n. 378/63, a cessionária assumiu o lugar dos autores na lide, havendo,

assim, o devido andamento do processo, com a realização de audiência de instrução e

julgamento aos dias 17 (dezessete) de junho de 1969, momento em que foram ouvidas

as testemunhas Olímpio Rondina, Delfino Tendolo, Frederico Paludetto e Jan Frederik

Oewel, conforme depoimentos acima transcritos. De acordo com os relatos orais dos

membros da Comunidade Quilombola, Ana Melo de Lima, filha de Antônio Porcino de

Melo Filho, soube da existência da Ação de Usucapião através de amigos que viram o

seu nome em jornal da cidade, em uma publicação de intimação editalícia a respeito da

designação dessa audiência. Ainda segundo os relatos orais, Ana Melo, então, se dirigiu

pessoalmente ao Fórum da Comarca de Agudos, mas foi impedida de ir à sala de

22

audiências e participar do ato. Tal fato, somado às Cessões de Direitos e Bens, se

consolidou na memória coletiva do grupo como provas do engodo do qual acreditam

que seus ascendentes foram vítimas. Para corroborar a possibilidade de

desconhecimento dos Porcinos sobre a existência da Ação de Usucapião, segue abaixo a

transcrição de trecho do depoimento de Frederico Paludetto, durante a referida

audiência de instrução e julgamento.

“(...) que faz tempo que não conversa com eles e acredita que até ignoram a

realização desta audiência; (...) que os autores não disseram ao depoente a razão pela

qual intentam a presente ação.” (Audiência de instrução e julgamento realizada aos

dias 17 (dezessete) de junho de 1969).

As histórias narradas pelos Porcinos, bem como os autos da referida ação

judicial, evidenciam que os antepassados dos atuais membros do grupo residiam nas

terras herdadas desde 1886, ano da referida doação por escritura testamentária, até

meados da década de 1960, data que acreditamos marcar a inicial dispersão involuntária

que obrigou os descendentes dos ex-escravizados a se deslocarem para outros espaços,

empregando-se em usinas de cana de açúcar na região ou vivendo à custa da própria

sorte, em condições de extrema pobreza e dependendo da ajuda de conhecidos. É

possível apontar, também, a relação entre o contexto de dispersão do grupo familiar -

considerando a expropriação das últimas grandes extensões de terra -, com uma nova

fase de crescimento do município de Agudos, marcada pela chegada, nos anos 60, de

grandes empreendimentos como a indústria de silvicultura e a posterior consolidação do

polo agroindustrial.

De acordo com a memória oral da Comunidade dos Porcinos, seus ascendentes

se viram obrigados a saírem de suas casas na Fazenda Areia Branca, e a procurarem

outros locais para morar e trabalhar, haja vista a caracterização de um processo de

expulsão, e as plantações de pinus que começaram a invadir os limites de suas

residências nas terras herdadas. Essas falas dos quilombolas são confirmadas pelo

depoimento em juízo de Olímpio Rondina, aos dias 17 de junho de 1969.

“(...) que, os Porcinos só mudaram-se da gleba há uns três anos atrás, quando a

plantação de pinus atingiu as proximidades das casas onde residiam; que, os autores

foram saindo aos poucos da propriedade;” (doc. 4)

23

Ainda segundo os relatos orais dos quilombolas, Rita Porcino de Mello e seu

marido, Juvenal Gomes de Moraes, já idosos, foram os últimos a saírem da Fazenda

Areia Branca, em 1969, sendo que somente fizeram isso no momento em que ficou

impossível continuar ali vivendo, “com pinus praticamente entrando em sua casa.”

Entre as inúmeras famílias desalojadas da área usucapienda estavam a de José Ramos

Pinto (também conhecido como José Ramos Porcino) e Maria do Carmo Soares Ramos,

casal que tinha quatro filhos, sendo: José Flávio Ramos, Tereza das Graças Ramos,

Dirce Aparecida Ramos, Daniel Santos e Lázaro Ramos. José Ramos Pinto e Maria do

Carmo aparecem na Ação de Usucapião como dois de seus autores, sendo que José

Ramos faz parte dos quilombolas analfabetos outorgantes de procuração adjudicia et

extra. Não há nos autos judiciais escritura/contrato de Cessão de Bens e Direitos em

seus nomes.

Não obstante conste na petição inicial que o casal residia em Pederneiras, em

relatos orais, os filhos ainda vivos (Lázaro, Tereza e Daniel) de Maria do Carmo e José

Ramos informam que saíram de sua casa na Fazenda Areia Branca em 1964 e se

dirigiram ao “sitinho”, local considerado por eles como gleba dentro da Fazenda Areia

Branca, onde outros quilombolas residiam, e que se tornou abrigo às famílias

desalojadas.

Através de suas memórias, Lázaro, Tereza e Daniel narram que a Fazenda Areia

Branca tinha cerca de 1500 (mil e quinhentos) alqueires em seu total, composta de

inúmeras famílias de ex-escravizados e seus descendentes, afirmando, ainda, os mais

velhos, Lázaro e Daniel, que mesmo em um período de suas vidas vivenciado durante a

infância, se lembram do temor sentido pela comunidade em relação aos “alemães que

plantavam pinus”.

Segundo os quilombolas, o sitinho estava localizado na região da Belinha,

confinando com a denominada Chácara dos Porcinos - terra objeto da Ação de

Reintegração de Posse sob n. 0001914-06.2011.4.03.6108, que esteve em trâmite na

Primeira Vara Federal de Bauru, e encontra-se em fase recursal no Tribunal Regional

Federal da Terceira Região. Nesse espaço de reagrupamento dos quilombolas

desabrigados já moravam outros pretos, sendo: Romão, Perciliana, Alzira, Conceição,

Francisco e Augusto Porcino de Mello, ao lado, também, de Diógenes Batista da Cunha,

Antonio Porcino de Mello e Augusta Porcino de Mello, configurando uma área contínua

de moradia e convivência tradicionais.

24

Diógenes e Antônio eram, respectivamente, sogro e irmão de Augusto Porcino de

Mello, sendo que Diógenes residia no local desde o final do século XIX, quando

recebeu essas terras (Chácara dos Porcinos), por meio de doação, em 1893 (docs. 15 e

16). Esse espaço de morada dos pretos, que existia desde o final do século XIX, em um

caráter de extensão, replicava a mesma dinâmica daquela existente na área usucapienda

de 600 alqueires, no que tange à tradicionalidade, ancestralidade comum, organização

social e à identidade étnica e cultural. Através de relatos orais e registros cartoriais, é

possível observar que ambos os espaços existiam concomitantemente até as graves

expropriações sofridas que se iniciaram em meados dos anos de 1960.

Em conformidade com os relatos da comunidade, e de acordo com os mapas

genealógicos, Augusto Porcino de Mello era casado com Luiza Maria da Conceição,

que por sua vez era filha de Diógenes Baptista da Cunha e Raimunda Maria da

Conceição. Augusto, como afirmado acima, era irmão de Antônio Porcino de Mello, ora

herdeiro das donatárias Carolina Maria Francisca, sua primeira esposa, e de Júlia (ou

Juliana) Maria Francisca, sua segunda esposa. Ana Mello de Lima e Luiz Francisco

Mello, partes na Ação de Reintegração de Posse sob n. 0001914-06.2011.4.03.6108,

referente à Chácara dos Porcinos, são respectivamente neta e bisneto dos ex-

escravizados. Ana Mello é filha de Antônio Porcino de Mello Filho e de Augusta

Porcino de Mello, e neta de Antônio Porcino de Mello e Júlia (ou Juliana) Maria

Francisca, esta última ex-escrava donatária no testamento de Antônio Balduíno Ferreira.

Luiz Francisco de Mello é bisneto de Augusto Porcino de Mello, irmão de Antônio

Porcino de Mello – ambos ex-escravizados trazidos de Minas Gerais pelo senhor de

escravos Antônio Ferreira Balduíno.

Segundo Rebeca Campos Ferreira (2013), em dezembro de 2010, por

intermédio de uma ação em favor de particulares, membros da Família Porcinos, que

ainda permaneciam em um pequeno fragmento da antiga e extensa área, sofreram a

reintegração de posse do último quinhão que lhes restava. O processo judicial em

questão, ainda de acordo com a autora e também conforme narrado por alguns membros

do grupo, contém indícios de falsificação da assinatura do falecido Antônio Porcino de

Mello, figura de grande importância na memória local. Em virtude de uma decisão

liminar, os pretos foram retirados desse último espaço de terra que lhes restava. O

julgamento do processo judicial em questão (Ação de Reintegração de Posse n. 582/99)

encontra-se em fase de recurso e aguarda a finalização de um Relatório Técnico de

25

Identificação e Delimitação (RTID), que se encontra em curso de elaboração por meio

do convênio entre o INCRA e a UFSCar.

A dinâmica de ocupação e uso das terras tomadas a partir da citada reintegração

de posse sinalizam para a existência de forte solidariedade familiar entre os

Quilombolas de Porcinos. Não é rara a menção a histórias de parentes que necessitavam

de ajuda e foram recebidos neste espaço por eles denominado, dentre outros nomes,

como sitinho. Isso significa dizer que, além das pessoas da família que ali já residiam, o

sítio funcionava como uma espécie de abrigo para aqueles que, por motivos diversos,

haviam se afastado da região e desejavam retornar. Uma espécie de pronto-socorro,

como mencionam os membros da comunidade. Para além, o fragmento territorial em

questão acolheu os quilombolas durante e após o término do citado processo de

expropriação dos 600 alqueires pertencentes à antiga Fazenda Areia Branca. Segundo

relatos, impossibilitados de residirem nas antigas glebas ocupadas, membros da família

teriam se alojado no sitinho, evitando, naquele momento, a total dispersão do grupo.

Nesse sentido, as formas tradicionais de uso da terra e os laços de parentesco foram

mantidos e recriados nesse espaço.

Desde então, essa área se consolidou como o centro de um movimento de

resgate cultural, onde os quilombolas mantinham plantações, empenhavam-se na

construção e reconstrução de casas, se reuniam para pensar formas de acesso às políticas

fundiárias ou para atualizar e estreitar relações. Se em um passado não muito distante, o

sitinho foi como um pronto-socorro, no tempo atual ele assumiu um papel fundamental

na manutenção e resgate de memórias: um espaço de convivência, de reconhecimento e

da idealização de futuros projetos. Além disso, a manutenção de uma roça coletiva

nesse espaço fornecia uma alternativa na melhoria da qualidade de vida de muitos

membros da família.

Como demonstramos, o processo de desterritorialização dos Porcinos ocorreu

em etapas, épocas e espaços diferentes, dentro da área tradicionalmente ocupada;

contudo, este último quinhão de terra, representado pela Chácara dos Porcinos, que

ainda estava sob a posse do grupo, era justamente um elemento central para a

sustentabilidade, a preservação da memória coletiva e do vínculo identitário. Um

território quilombola enquanto base material da conservação cultural, onde se articulam

a ascendência comum e parentesco.

26

As informações coletadas em relatos, cadastros, observações de campo e

pesquisas em documentos judiciais e cartoriais, permitiram a constatação, junto a

inúmeras famílias, de situações de extrema fragilidade econômica e social, decorrentes

das rupturas sofridas em virtude das desterritorializações ocorridas. Outros prejuízos

sofridos pelos quilombolas foram observados no que diz respeito à manutenção dos

laços culturais e das formas de organização social tradicionais, uma vez que, estes

foram impelidos a um compulsório processo de dispersão. As perdas poderiam ter sido

muito maiores não fosse o empenho dos membros da comunidade em manter viva a

história e a memória associadas a seus antepassados. Contudo, a última expropriação

sofrida (2010), já se arrasta por anos e as consequências desta já se fazem presentes no

interior do grupo.

Tal quadro, no entanto, pode ser revertido caso o grupo retorne à fração da área

tradicional, ocupada até dezembro de 2010, tendo em vista o prazo restante para a

finalização do RTID (2017) e, sobretudo, seu trâmite subsequente até a titulação, cuja

duração é impossível, de antemão, estimar.

Referência bibliográfica

FERREIRA, Rebeca Campos. Nota Técnica – Comunidade Quilombola Espírito Santo

Fortaleza de Porcinos. São Paulo, 2013.

27

Relatório FAI - Carmo

Introdução

Esta primeira parte do relatório diz respeito aos trabalhos de campo realizados

no período de 12 a 30 de julho de 2016, pelas pesquisadoras Luisa e Ana Luísa. As

discussões aqui desenvolvidas voltam-se principalmente para as relações entre os

moradores do Carmo e a natureza (os animais, principalmente), bem como para a

centralidade da religião na vida social do grupo. Os nomes dos moradores citados neste

relatório são todos fictícios.

Os moradores do bairro com os quais pudemos conversar, bem como moradores

de cidades vizinhas (Vargem Grande Paulista, principalmente) que têm vínculo com a

comunidade – seja por consanguinidade, seja por afinidade –, não criam animais

(porcos, galinhas, gado) e não mantêm qualquer tipo de plantação em seus quintais

(com exceção de algumas pequenas hortas), mas o pretendem fazer assim que a

titulação for conquistada; a caça – caçava-se, no Carmo, veados, tatus e quatis –, bem

como a pesca, antes atividades muito recorrentes na comunidade, hoje em dia são muito

raras (e sobre as quais não se fala muito; também fala-se pouco dos bichos “do mato”,

como veados, tatus, quatis, lobos guará, bugios e saguis, sobre os quais fala-se com

certa distância); e, finalmente, tivemos a oportunidade de ouvir algumas histórias sobre

os seres “folclóricos” ou “fantásticos”, como diriam alguns anos atrás folcloristas e

outros pesquisadores (aqui, denominamo-los “outros seres”, uma vez que os próprios

moradores do Carmo não os tratam por folclóricos ou fantásticos), que transitam e

existem, simultaneamente, nos planos natural, sobrenatural e cultural: o lobisomem, a

mula sem cabeça e o caipora.

Esta primeira parte do relatório, então, será dividido em quatro tópicos:

primeiro, discutir-se-á a relação dos moradores do Carmo com o meio ambiente – uso,

manejo e ocupação da terra, bem como distribuição e ocupação dos espaços sociais e

privados –, uma vez que tal relação é de grande importância para a produção do RTID;

28

em seguida, nos próximos quatro tópicos, a discussão volta-se para as relações entre os

moradores do Carmo e os animais: animais de criação, caça e pesca e “outros seres”.

Importante lembrar aqui que sabe-se muito pouco ou quase nada sobre as relações

humano-animal em comunidades quilombolas (e tais relações são de grande importância

para a feitura do laudo antropológico que constará no RTID). Por fim, a discussão volta-

se para a religião (festa de Nossa Senhora do Carmo e festa de São Gonçalo,

principalmente).

O bairro do Carmo e seus espaços

Iniciamos esta segunda parte do relatório descrevendo o processo de formação

da comunidade do Carmo, com base no laudo antropológico de Stucchi e Ferreira

(2009), e a situação atual do bairro, tendo sempre em conta as questões vinculadas ao

território e à religião, uma vez que ambos são, como pudemos perceber em campo,

elementos fundamentais para compreender, ali, a própria dinâmica social do grupo.

Estivemos no bairro do Carmo (ou vila, forma como muitos de seus moradores se

referem ao local) no período de 12 a 30 de julho de 2016, tempo que permitiu-nos

alcançar, mais claramente, as categorias nas quais encaixam-se os animais e a natureza

no Carmo e as inter-relações firmadas ali entre humanos e não humanos.

Os moradores da comunidade do Carmo descendem de escravos da Província

Carmelitana Fluminense (PCF) que, no século XVIII, era proprietária da antiga Fazenda

do Carmo. Importante destacar aqui a relação que os escravos da Fazenda do Carmo (ou

Sorocamirim) mantinham com os escravos da Fazenda Icaraí (fazenda vizinha que

atualmente pertence a um grupo de coreanos, que pretende implantar na fazenda um

campo de golfe – o maior da América Latina) – isso foi-me dito por grande parte dos

moradores com os quais tive oportunidade de conversar. Foi apenas no início do século

XIX que os ex-escravos alcançaram a condição de arrendatários, passando a pagar

aluguel à PCF pelo uso das terras da Fazenda e, desde então, o território ocupado por

seus descendentes só fez diminuir:

Da década de 1930 em diante, houve sucessivo, contínuo e violento

processo de expropriação das terras dos Pretos do Carmo, revelado pelas

disputas judicializadas. Invasões, trocas – dadas as relações de

29

patronagem e de compadrio que envolvem sujeitos em desequilíbrio de

poder – e ainda expropriações, marcam as décadas que seguem, em

transações formais e informais que reduziram drasticamente a área. Os

conflitos fundiários seguem até a década de 1970, quando se estabelecem

interesses imobiliários motivados pela implantação de condomínios

fechados de alto padrão na região (FERREIRA, 2013:15-16).

Vale dizer, aqui, que muitos moradores do Carmo disseram-nos que seus pais e

avós, que ali nasceram e moraram a vida inteira, trocavam lotes de terra por lenha,

alimento e até mesmo vestimentas (um lote por um paletó, por exemplo). Além disso,

contaram-nos também que muitas vezes as expropriações territoriais davam-se de

maneira extremamente violenta, até mesmo com casos de morte.

Localizada na zona rural do município de São Roque/SP2, a vila do Carmo é

formada atualmente por cerca de 68 famílias, que habitam os arredores da capela de

Nossa Senhora do Carmo. De acordo com Stucchi e Ferreira (2009), no começo do

século XX a área ocupada era de aproximadamente 4.598 hectares; hoje, os por volta de

700 moradores vivem em apenas 16 há, território 316,6 vezes menor que o original:

O povoado de maioria negra que reside na vila do Carmo ao redor da

igreja [antiga capela da Fazenda do Carmo, ou Sorocamirim] é composto

por uma população que não dispõe de terra para práticas agrícolas e

ocupa área diminuta em relação ao conjunto de moradias que sustenta.

Vários desses moradores empregam-se como caseiros ou em outros

serviços domésticos nas residências que fazem parte do condomínio

fechado denominado Patrimônio do Carmo (...).

Esse panorama reflete a complexidade do processo de ocupação da terra

na região que se completa, de um lado, atualmente, com a existência de

extensões de terras disponíveis numa área de aproximadamente 400

alqueires (...). Nessa área, a pretensão dos proprietários é instalar

loteamento, que ainda não existe fisicamente (...) (STUCCHI &

FERREIRA, 2009:14).

2 De acordo com dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), a população de São Roque em 2010 era de 78.821 habitantes, dos quais 7.333 viviam

na zona rural e 71.488 na zona urbana. A população estimada, em 2015, é de 86.515 habitantes.

30

Dessa forma, “embora seja o bairro rural, devido à falta de espaço, não há

plantações, cultivos ou árvores frutíferas e os produtos são adquiridos exclusivamente

por compra. Alguns poucos moradores mantêm pequenos roçados de mandioca em

áreas do entorno” (Stucchi & Ferreira, 2009:26). Além disso, “a represa Icaraí, outrora

usada para a pesca, encontra-se cercada e no meio da organização da infraestrutura do

novo empreendimento vizinho, o campo de golfe” (Stucchi & Ferreira, 2009:26).

Pudemos verificar na vila que a situação, em 2016, não mudou muito: há por ali

algumas árvores frutíferas, como laranjeiras, limoeiros e amoreiras3, há, de fato, alguns

roçados e hortas em terrenos baldios; mas, como já sugerido por Stucchi e Ferreira, os

alimentos são majoritariamente comprados, principalmente de pequenos agricultores de

fora, que passam de carro pelas ruas do bairro, vendendo quiabo, laranja, mexerica,

mandioca, banana, maçã, batata, cebola etc., e de supermercados em Vargem Grande

Paulista, município mais próximo dali. No entanto, o que mais ouvimos dos moradores

durante nossa estadia foram reclamações acerca da falta de espaço para plantar e criar

animais, bem como da proibição do uso do tanque da Fazenda Icaraí para a pesca:

muitas pessoas disseram-nos que costumavam (e gostavam muito de) pescar, mas que

agora isso não era mais permitido devido à dois afogamentos. Além disso, uma

moradora contou-nos que, depois que a ferrovia da América Latina Logística4 (ALL) foi

duplicada, o rio que contorna o bairro do Carmo, no qual também pescava-se, diminuiu

muito, transformando-se num pequeno córrego – muito poluído, vale dizer, uma vez que

muito do esgoto gerado ali é jogado diretamente no córrego.

A falta de espaço para plantar e criar animais, conforme nos disseram muitos

moradores, decorre, além dos muitos anos de grilagem, do aumento do número de casas

no bairro (contamos, eu e Ana Luísa, por volta de 185 casas5): é muito comum, ali, que

haja num mesmo terreno cinco ou seis casas da mesma família (e isso, claro, por conta

da falta de terras disponíveis); no terreno de D. Antônia, por exemplo, há quatro casas, a

sua e de três de seus filhos, uma atrás da outra. Além disso, D. Antônia, assim como

3 No entanto, conforme nos disseram, uma geada no mês de junho de 2016 matou praticamente

todas as amoreiras. 4 Em outubro de 2014 um dos trens da ALL, que contorna o bairro do Carmo e que estava

transportando açúcar, descarrilou e provocou dano ambiental, uma vez que parte da carga afetou

lagos e córregos da região, contaminado a água e tornando-a imprópria para consumo

(disponível em: <http://www.cotiatododia.com.br/trem-da-all-que-descarrilou-provoca-

acidente-ambiental-em-sao-roque/>. Acesso em: jan. 2014). 5 Stucchi e Ferreira contabilizaram, em 2009, 172 casas.

31

alguns outros moradores do bairro, tem um quintal que estende-se até as proximidades

da linha do trem e do córrego; é, sim, um terreno razoavelmente grande. No entanto,

como contou-nos D. Antônia, todo ano na época das chuvas essa porção de terra enche-

se de água e qualquer plantação que haja ali é arruinada.

Pudemos perceber, a partir das falas de grande parte das pessoas, que mesmo

que os moradores do Carmo estejam, hoje, cercados pela zona urbana de São Roque (da

qual dependem, atualmente), pela Fazenda Icaraí (com a qual, por muitos anos,

mantiveram relações estreitas – fala-se muito da Pedra Balão6, local na Fazenda Icaraí

onde muitos pais e avós de moradores atuais tinham terra) e confinados num território

muito pequeno, deseja-se recuperar uma natureza (e as inter-relações com ela) que,

mesmo estando praticamente ausente e inacessível fisicamente, faz parte da memória e

dos planos futuros pós-titulação do território. Ali, sente-se falta de roçar, plantar e

“mexer com a terra”, bem como de criar animais, principalmente galinhas e porcos –

que, antigamente, conforme nos disseram, eram criados soltos pelo bairro. Importante

dizer, aqui, que está sendo implantada uma estufa no terreno ao redor da Casa Grande

do Carmo (terreno que pertence à Prefeitura de São Roque e foi cedido aos moradores

do bairro); a Casa Grande fica na Serrinha do Carmo, área localizada bem ao lado do

bairro e com a qual muitas pessoas alegaram-nos manter um forte vínculo (e na qual

seus pais, avós e bisavós chegaram até mesmo a morar).

Os moradores do Carmo, ou pelo menos a maioria deles, mantêm com o

condomínio Patrimônio do Carmo uma relação ambígua, o que nos fez pensar na fluidez

das fronteiras rural-urbano ali no bairro: por um lado, o condomínio é um dos grileiros

que, desde a década de 1970, vem expropriando os moradores; por outro, é “o melhor

lugar pra trabalhar”. A mesma coisa acontece com a Fazenda Icaraí: antes, quando a

fazenda ainda era propriedade de Zico Lima, muita gente do Carmo trabalhava ali (nas

plantações, pomares, lenhando etc.); agora, como a intenção é a implantação de um

campo de golfe, as pessoas veem a fazenda com desconfiança. E com razão: Seu José,

por exemplo, alega que sua família é herdeira de um terreno de 8,5 alqueires na Fazenda

Icaraí, próximo à linha do trem, local onde hoje há eucalipto plantado; disse-me ele que,

mesmo o terreno estando em seu nome, a fazenda cercou o terreno e derrubou os

eucaliptos para utilizar a madeira. O que pudemos perceber, a partir de todas as histórias

6 Disseram-nos muitas vezes que a Pedra Balão era da comunidade, mas agora pertence à

Fazenda Icaraí e o acesso é, portanto, proibido.

32

que nos foram contadas, tanto do passado quanto da situação atual, é que os moradores

do Carmo foram enquadrados, por gente de fora, numa situação um tanto intrincada e

delicada: desejam recuperar parte do território perdido, desejam voltar a plantar e criar

animais, mas, ao mesmo tempo, temem por seus empregos. O Carmo mostrou-se, pelo

menos a nosso ver, um bairro que apesar de carregar muitas das características de uma

periferia urbana carrega também uma ruralidade que resiste e que deseja-se novamente

desenvolver.

Quando chegamos à vila do Carmo no dia 12 de julho de 2016 os moradores

encontravam-se extremamente ocupados com os preparativos da festa de Nossa Senhora

do Carmo, que acontece nos dias 15, 16 e 17 de julho (sexta, sábado e domingo) e

compõe-se de procissões, missas e festas. Importante dizer que tudo, desde as missas até

as festas, acontece nas dependências da capela e na praça em frente. A praça é, de fato,

o principal local de sociabilidade do bairro. Como Ferreira (2013:14) já havia sugerido,

“(...) a religião permeia e perpassa os âmbitos da vida cotidiana da comunidade,

surgindo como marcador relevante, colocado e vivido pelo próprio grupo, influindo na

lógica da territorialidade e do parentesco”. A vida na comunidade é, assim, regida pelo

calendário religioso, que “mostra traços do catolicismo popular e negro, e se faz

presente nas relações sociais cotidianas” (Ferreira, 2013:16).

Para Ferreira (2013:20), no Carmo “(...) os remanescentes de escravos são antes

remanescentes da Santa [Nossa Senhora do Carmo], que se faz presente no espaço, no

discurso, nas relações cotidianas, nos nomes de família, e nas relações sociais

estabelecidas (...)”. De acordo com Stucchi e Ferreira (2009:323), “é da condição de

‘filhos da santa’ que decorre seu direito a ocupar, mas sobretudo, sua obrigação de

cuidar do que pertence, primeiro a Ela, depois aos seus próprios filhos”. Ora, se a

religião desempenha papel tão central na vida social da comunidade, certamente as

relações entre não humanos e quilombolas no Carmo, bem como a própria

territorialidade, também são marcadas por Nossa Senhora do Carmo.

33

Animais de criação

Importante também foi pensar o Carmo a partir de seus campos de significação e

sua lógica da natureza (Brandão, 1999), sempre tendo em conta que, no Carmo,

reivindica-se uma natureza que, apesar de existir fisicamente, encontra-se atualmente

inacessível: com a degradação ambiental da região e o consequente avanço urbano, a

comunidade foi privada de grande parte de seu território e, uma vez que “o território

socialmente ocupado tem sentido vital para a vida do grupo (...) apropriar-se dele é

apropriar-se da história do grupo em questão (...)” (Stucchi & Ferreira, 2009:318). No

Carmo, privar seus moradores de seu território foi, também, privá-los de seus roçados,

hortas e criações de animais.

Há atualmente no Carmo muitas pequenas criações de galinha (galinha d’angola

também). Em mais da metade dos quintais que pude conhecer, galinhas andam soltas,

ciscando por tudo (sempre em pequenos grupos, de quatro ou cinco animais, no

máximo); não há, então, criação em galinheiros. Aqui, a mesma história: muitas

pessoas, como D. Benedita, D. Antônia e D. Amélia, por exemplo, não criam mais

galinhas por falta de espaço – os filhos foram construindo suas casas no mesmo terreno

e os quintais foram diminuindo. O mesmo aconteceu com a criação de porcos.

Contaram-nos que, antigamente, porcos, galinhas, patos, cabras e até mesmo bois e

vacas andavam e eram criados soltos pelo bairro, de maneira mais ou menos coletiva.

Grande parte dos moradores, hoje, gostaria de criar animais, como seus pais e avós

faziam, mas a falta de espaço sempre aparece como um impeditivo. No entanto,

disseram-nos também algumas mulheres que não criam porcos e galinhas porque têm dó

de matar, porque “cria afeto”.

Neste ponto, acreditamos ser importante lembrar de Brandão (1999). Apesar de a

maioria das pessoas no Carmo pensar na criação de animais como algo útil, seja

financeiramente ou para compor a mesa – criar para matar e comer ou vender –, há

aqueles que pensam os animais de criação a partir da perspectiva do sentimento, do

afeto – e preferem, portanto, não criá-los. Sugerimos, então, que no Carmo há, sim (e

citamos novamente Brandão), “uma subjetivação dos seres naturais que os aproxima,

sob outros sentidos e afetos, das pessoas e famílias, e por causa dessa nova

34

aproximação, novos afetos e sentidos requalificam relacionamentos homem-natureza”

(Brandão, 1999:77).

Além disso, pensar no Carmo as relações humano-animal a partir do parentesco

foi-nos muito produtivo; uma vez que os animais também são filhos de Nossa Senhora

do Carmo, há ali um vínculo de parentesco entre humanos e animais, mesmo que este

vínculo passe muitas vezes despercebido. Há, sim, “uma mistura da qualidade natural

do animal com o sentido relacional do bicho para com o homem, [que] sugere o direto à

vida, à familiaridade afetiva (...)” (Brandão, 1999:74). Mas, também, o direito à morte:

D. Antônia contou-nos, por exemplo, que usava-se antigamente presentear amigos e

parentes (principalmente nas trocas de favores) com animais para abate (ela, no caso,

presenteou um sobrinho com um porco, que ela engordou para tal, por ele ter ajudado na

construção de sua casa.

Os animais de criação, no Carmo, estão vinculados ao território da mesma forma

que estão os roçados, os humanos e a própria Nossa Senhora do Carmo. As relações

entre eles e as pessoas que ali vivem compõe e são compostas pela própria noção de

territorialidade. Como nos lembra Segata (2012:60), “(...) essa virada animalista na

antropologia não vê o animal como aquilo que provoca reação ao social, mas como

aquilo que também o compõe”. Aparecem nas falas dos moradores principalmente nas

histórias passadas – pois o resgate da criação de animais é, sim, uma forma de resgatar

as próprias relações com o território, que foram perdidas ao longo dos anos de

expropriação – e nos planos futuros – pós-titulação, momento no qual o resgate de toda

uma vida social consolidar-se-á – e são pensados sempre conjuntamente com o

território, como sujeitos que também constroem e modificam a vida social. Como

sugeriu Ingold (2000), é o engajamento com o mundo, por parte tanto dos seres

humanos quanto dos não humanos, que permite as relações entre eles e a construção do

ambiente (environment) – um território relacional, por assim dizer: “environments are

never complete but are continually under construction” (Ingold, 2000:172).

Caça e pesca

Iniciamos este tópico com um breve relato que nos foi contado, dos tempos de

antigamente no bairro do Carmo: contaram-nos que uma vez, em dia de festa de Nossa

Senhora do Carmo, estavam todos reunidos na praça em frente à capela festejando. De

35

repente foi avistado, passeando calmamente pela praça, um veado (animal que, segundo

me disseram, já foi muito caçado e apreciado pelos moradores). No entanto, ninguém

dispôs-se a abatê-lo, mesmo o animal estando tão perto, praticamente imóvel – como se

estivesse esperando para ser abatido. Após certo tempo, o veado foi embora e, alguns

dias depois, muitas pessoas no bairro adoeceram e chegaram mesmo a falecer.

Conforme foi-nos dito, o veado provavelmente era um presente de Nossa

Senhora do Carmo e, como foi ignorado, o bairro foi castigado. Mais uma vez, a

centralidade de Nossa Senhora do Carmo no bairro mostra-se claramente. Como

Ferreira (2013:16) sugeriu, “a religião perpassa os demais âmbitos, põe em ação

elementos que simbolizam a identidade, identificando a cada um e a todos como parte

de uma totalidade própria (...)”. Agora, passemos à caça.

Não se caça mais atualmente (não se caça já há muitos anos). Antigamente se

caçava – disseram-me que inclusive havia, nas festas de Nossa Senhora do Carmo,

leilões de animais caçados, principalmente de veados (e quem sempre os comprava era

gente rica, de fora do bairro). Muitos moradores nos contaram que caçava-se muito na

Serrinha do Carmo, local onde fica a Casa Grande e a Senzala (Fazenda Icaraí). Caçava-

se também na Pedra Balão – que, como dito anteriormente, pertencia à comunidade do

Carmo, mas, por ter sido tomada pelos proprietários coreanos da Fazenda Icaraí, teve

seu acesso proibido.

Usava-se armadilhas para caçar. D. Antônia contou-nos que seu falecido marido

seguia os rastros dos animais, principalmente de tatus e jaguatiricas, ao longo de 3-4

dias, de forma a conhecer seus hábitos e caminhos usuais; feito isso, posicionava, em

certo ponto do trajeto do animal, uma gaiola (grande, de ripas) com alguma isca dentro

e esperava, escondido (geralmente em cima de uma árvore). Assim que o animal

entrava, a gaiola se fechava. Quando o animal caçado era de grande porte, D. Antônia

contou-nos que a carne era repartida entre os familiares.

Caçava-se também com estilingues – pequenos mamíferos e pássaros. Quando

D. Antônia e seu marido moraram e trabalharam numa fazenda vizinha, num pomar,

tinham também que matar as “raposas” (gambás) que estragavam as frutas das

mexeriqueiras. D. Antônia cutucava o ninho da “raposa” com uma vara e o marido

matava com estilingue. Perguntamos-lhe se não tinha dó; disse-me ela que não, porque

36

“tinha que fazer” (já que era uma ordem do dono da fazenda) – e, além disso, permitia-

os complementar a dieta, já que comiam as “raposas mais gordinhas”.

Outros moradores nos falaram que também costumavam caçar com gaiola e

estilingue – se não eles próprios, seus pais e avós. A atividade da caça é, como pudemos

verificar no Carmo, mesmo que somente nas histórias do passado, “uma atividade

tradicional dos quilombolas. Sua finalidade é fornecer complemento proteico na dieta

alimentar, (...) mas envolve também representações sobre a natureza além de fomentar

um conhecimento complexo sobre a fauna (...)” (Inventário cultural de quilombos do

Vale do Ribeira, 2013:162). A criminalização da prática da caça no Brasil não foi citada

por nenhum morador do Carmo como um impeditivo; deixou-se de caçar, ali, muito

mais por conta da facilidade de acesso às cidades e aos produtos industrializados – ao

contrário de antigamente, quando o poder aquisitivo era muito pequeno, atualmente os

moradores do Carmo têm condições financeiras para adquirir alimentos em mercados.

Importante, aqui, citar também os denominados pelos moradores do Carmo de

“bichos do mato”. Ali, não se fala muito sobre tais animais, apenas dos que eram

considerados caça (tatu, veado e jaguatirica, principalmente). Fala-se um pouco,

também, dos animais que mais comumente invadem7 os espaços do bairro, como o

bugio e o mico-leão-dourado – “bicho mais perigoso não aparece, não”. Atualmente, o

contato dos moradores com esses “bichos” é muito raro e até mesmo indesejado.

Acreditamos que, no Carmo, “lugares, seres, pessoas, situações e objetos são avaliados,

para serem pensados e vividos, segundo uma escala que, entre outros valores, poderia

ser sugerida como indo de um máximo de rejeição-evitação a um máximo de

reconhecimento-aproximação” (Brandão, 1990:91). Dessa forma, dentre os animais que

vivem fora dos espaços sociais do bairro, há os que aproximam-se e aparecem nas falas

das pessoas – como as caças e os “invasores” – e os que são evitados – chamados

genericamente de “bichos do mato”, “bicho perigoso”.

Quanto à pesca, sua prática também reduziu-se a quase nada – mas por motivos

muito diferentes. Pescava-se no córrego (que, antigamente, era um rio – secou por conta

7 Vale dizer, aqui, que “os animais ditos ‘selvagens’ ou ‘não domesticados’ aparecem, todavia, o

tempo inteiro, nas cidades e metrópoles: estas não são somente espaços da domesticidade e do

controle cultural das espécies não humanas (...) tais encontros inesperados evocam, uma vez

mais, a labilidade das fronteiras entre o natural e o cultural e a necessidade de repensarmos

rótulos classificatórios a distinguir o rural/natureza/animal do urbano/cultura/humano (...)”

(BEVILAQUA; VANDER VELDEN, 2016:25).

37

da duplicação da ferrovia, de acordo com os moradores) que contorna o bairro e no

tanque da Fazenda Icaraí; no entanto, atualmente o córrego é extremamente poluído

(não há saneamento básico no Carmo) e o acesso ao tanque é proibido (por conta, dizem

os moradores, de dois afogamentos). D. Antônia contou-nos que antigamente se pescava

bastante, tinha muito peixe grande (bagre, traíra). A pesca no Carmo, pelo que foi-nos

contado, era uma atividade muito comum e muito apreciada por todos. Era, além de

uma maneira de complementar a dieta, uma atividade de lazer – tanto que ainda se

pesca.

Mesmo com a situação precária do córrego, ainda se pesca ali; muitas pessoas –

principalmente mulheres – disseram-me que de vez em quando vão ao córrego pescar.

Muita gente também vai pescar no tanque da fazenda vizinha; fazem buracos na cerca

para entrar (o que, às vezes, faz com que bois e vacas escapem e invadam o espaço do

bairro). No entanto, a maioria dos moradores com os quais conversamos disseram que

não pescam mais, mas que apreciariam muito voltar a dedicar-se à atividade (porque

“gostam muito”).

Tanto caça quanto pesca são atividades que, mesmo pouquíssimo ou quase nada

praticadas atualmente, vinculam território, humanos e animais. A vontade de recuperar,

pelo menos em parte, tais atividades demonstra uma reflexão dos moradores sobre a

“perda” da natureza pelo avanço do espaço urbano sobre seu território. Assim como os

animais de criação, a caça e a pesca são atividades relacionais, entre humanos e animais,

que carregam também o vínculo com o território – e, portanto, com o passado. Além

disso, no Carmo, a natureza não deve ser “entendida no singular e como algo existente

em si mesma, mas como naturezas-culturas construídas” (Schneider & Menasche,

2014:255).

Outros bichos

Habitantes de um mesmo reino imaginado de terrores e mistérios dos

ermos danosos dos sertões, juntamente com os vegetais malévolos,

existem os bichos fantásticos e sempre ameaçadores: a mula-sem-cabeça,

o lobisomem (...) (BRANDÃO, 1990:94).

38

Restam, agora, os “outros bichos”, sobre os quais pouco se fala e muito se teme.

Ao contrário do que defende Brandão (1990, 1993), no Carmo não se trata apenas do

imaginário, do sobrenatural; ali, lobisomem, mula-sem-cabeça e caipora estão, ao

mesmo tempo, nos planos natural, cultural e sobrenatural. Apesar de muita gente no

Carmo dizer que lobisomens, por exemplo, não existem mais (mas existiam, sim, no

“tempo dos escravos”), muitos moradores ainda os encontram – principalmente nos

lugares mais isolados no entorno do bairro. Continua Brandão:

Seres imaginados, tanto no passado quanto na cultura camponesa de

agora como perigosos por serem liminares, híbridos de sujeitos humanos

bestializados e sujeitos animais indevidamente humanizados

(BRANDÃO, 1990:94).

De acordo com D. Antônia, pessoa ruim vira lobisomem, mula-sem-cabeça ou

caipora: “fez alguma coisa ruim e paga o fadário virando bicho”. Aqui, claramente há

não apenas uma labilidade das fronteiras natural-cultural; há, também, a superioridade

humana aos animais não humanos8: “(...) os animais não-humanos, são, para nós,

naturalmente biológicos, enquanto que os animais humanos são biológicos e algo a

mais” (Segata, 2012:157). Diríamos até que esses “outros bichos” ocupam um lugar

ainda mais afastado dos humanos, apesar de o terem sido um dia – e apesar de o serem

na maior parte do tempo, já que, pelo menos no caso do lobisomem e da mula-sem-

cabeça, as transformações ocorrem apenas nas noites de lua cheia na quaresma.

Muitas foram as histórias que tivemos a oportunidade de ouvir. D. Benedita

contou-nos que seu pai já foi perseguido por uma mula-sem-cabeça na Serrinha do

Carmo; D. Antônia tem uma sobrinha que é mula-sem-cabeça; o caipora foi visto

muitas vezes, também na Serrinha do Carmo; disseram-nos, também, que o lobisomem

sempre visita, na quaresma, as casas com bebês recém-nascidos e crianças não batizadas

8 Escutamos, também, uma história que deixa ainda mais evidente a fluidez das fronteiras entre

humanos e animais no Carmo: contaram-nos que, antigamente, as mulheres que ali viviam e que

abortavam transformavam-se em porcas e vagavam à noite pelo bairro, com seus porquinhos

(seus filhos que não nasceram). Essa história, da “porca e dos sete porquinhos” aponta também

para os “mistos de natureza e cultura” (Latour, 1994:35) – sem deixar de, novamente,

hierarquizar as duas categorias (os humanos estão acima dos animais, tanto que o ato de abortar

tinha por consequência/castigo a transformação da mulher em uma porca).

39

(fica rodeando as casas, correndo, arranhando portas e janelas); cadelas no cio também

chamam lobisomem. Como proteção, os moradores colocam tesouras nas portas e

janelas – a tesoura afasta o lobisomem, mas ninguém soube me explicar o porquê

(disseram-me que os únicos que sabiam eram os mais velhos, já falecidos). Coloca-se

também terços e crucifixos. Na quaresma, ninguém fica na rua depois da meia noite.

O caipora é pessoa, é animal. É o único que é sempre caipora, não se transforma

nunca – ele é. É, conforme disse-me D. Antônia, o protetor das matas. Para entrar no

mato tem que pedir permissão pra ele; “parece gente, era gente que virou bicho, o rastro

parece de gente”. Quando criança, D. Antônia viu um caipora no “calipeiro” (plantação

de eucaliptos) enquanto estava lá lenhando. Disse-me que quem vira caipora é porque

fez alguma coisa ruim. Quem se transforma nesses bichos é porque “se bate o vivo com

o morto”. Sua sobrinha, por exemplo, amanhecia de cama no dia seguinte à

transformação.

Quem desejar saber quem é o lobisomem é só oferecer-lhe sal – mas quase

ninguém tem coragem. D. Antônia contou-nos que sua tia uma vez ofereceu, porque ele

“atentava” suas galinhas. No dia seguinte, assim que o dia clareou, bateu à sua porta um

homem estranho pedindo sal. Quem vira lobisomem fez coisa ruim também. Vira

“corpo seco”, espírito ruim. Além disso, não deve-se nunca “duvidar do bicho”. D.

Antônia disse-nos, também, que quem dá tiro em lobisomem, mula-sem-cabeça ou

caipora vira bicho no lugar deles.

No Carmo, esses bichos misteriosos e terríveis também vinculam-se ao

território. Estão ligados, assim como os animais de criação e caça, a lugares muito

específicos do bairro e de seu entorno (como a Serrinha do Carmo e a Fazenda Icaraí,

por exemplo); têm, até mesmo, vínculos de parentesco com os humanos. São reais, ao

contrário do que sugere Brandão (1990, 1993): fazem parte do imaginário, também, mas

ultrapassam-no. Estão, simultaneamente, nos planos natural – são bicho –, cultural – são

gente – e sobrenatural – são bicho, gente, e algo mais, algo ruim (espírito ruim). Como

disse-nos uma moradora do bairro, “não pode duvidar do bicho”.

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Religiosidade

Em um primeiro momento, ficamos hospedadas nos quartos da capela de Nossa

Senhora do Carmo, nossa morada dava de frente com a praça da igreja, nos dispomos a

ajudar nos preparativos da festa, participamos de missas, fechamos pastéis, lavamos

mesas, separamos caixas de guardanapos, toalhas, fichas, carregamos andores e aos

poucos fomos apresentadas e acolhidas pela comunidade. Crianças, jovens, adultos e

idosos ajudam no preparativo da festa, no entanto a responsabilidade maior esta sobre

mulheres "filha aqui quem manda são as mulheres, somos nós quem fazemos as coisas

acontecerem, somos nós que temos carteira assinada".

A comemoração a Nossa Senhora do Carmo ocorre por meio da figura

feminina, uma vez que, são elas que cuidam do financeiro, que preparam alimentos que

vão desde: pastéis fritos, cachorro quente, marmitas, doces, prendas, fichas, bingo. São

elas que cuidam da igreja, dos andores, da organização como um todo, a parte

masculina se resume a eletricidade e a montagem de barracas. Os santos tem seus

andores enfeitados por pessoas de dentre e de fora da vila, ao todo são 27 santos, e eles

seguem uma ordem sendo que na sexta-feira dia 15 de julho de 2016 foi 1- SÃO

BENEDITO, 2- SANTA CARMEM, 3- SANTO EXPEDITO, 4- NOSSA SENHORA

APARECIDA, 5-SAGRADO CORAÇÃO, no sábado dia 16 de julho de 2016 a ordem

dos santos foi 1- SÃO BENEDITO, 2- SANTA CARMEM, 3- SANTO EXPEDITO, 4-

NOSSA SENHORA APARECIDA, 5-SAGRADO CORAÇÃO, 6- NOSSA SENHORA

DAS GRAÇAS, 7- SÃO JUDAS, 8- SANTA CATARINA, 9- SÃO ROQUE, 10-

SANTA TEREZINHA, 11- NOSSA SENHORA DO CARMO, no domingo dia 17 de

julho de 2016 a ordem foi SÃO BENEDITO, 2- NOSSA SENHORA APARECIDA, 3-

SÃO JUDAS TADEU, 4- NOSSA SENHORA DAS DORES, 5- SAGRADO

CORAÇÃO DE JESUS, 6- NOSSA SENHORA DE FÁTIMA, 7- SÃO JORGE, 8-

NOSSA SENHORA DO MONTE SERRATE, 9- BOM JESUS, 10-SANTA

CATARINA, 11- DIVINO ESPIRITO SANTO, 12- SANTA RITA, 13- SÃO

SEBASTIÃO, 14- NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS, 15- SANTA EDWIRGES, 16-

SANTO ANTONIO, 17- SANTA CARMEM, 18- SANTO EXPEDITO, 19, NOSSA

SENHORA DO ROSÁRIO, 20- SÃO JOSÉ, 21- NOSSA SENHORA DA

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CONCEIÇÃO, 22- FREI GALVÃO, 23- ARCANJOS, 24- SANTA LUZIA, 25-

SANTA TEREZINHA, 26- SÃO ROQUE, 27 NOSSA SENHORA DO CARMO.

Acompanhamos os três dias de procissões, na sexta-feira e no sábado se iniciaram no

final da tarde, em um momento anterior a missa, e é guiada por ministros da eucaristia e

coroinhas, regida por residentes do bairro, fazem a volta ao redor da igreja de Nossa

Senhora do Carmo, alguns santos vão com andores e outros não. No domingo é o dia de

fato da comemoração de Nossa Senhora do Carmo a missa é montada na praça central,

em frente a igreja, com a presença do Bispo que celebra o missa junto com o padre

responsável pela vila, a comunidade fica abarrotada de pessoas de dentro e de fora do

Carmo, pessoas vem de São Paulo, Cotia, Vargem Grande, acompanhada por uma

Romaria de 13 km que vai de Vargem Grande a vila. A procissão ocorre no meio da

tarde, pessoas de dentro e de fora da comunidade são solicitadas a carregarem os

andores, neste dia todos os vinte e sete santos estão com seus andores enfeitados, é neste

momento que Luísa fica responsável por ajudar a carregar o andor de Santa Terezinha e

Ana Luísa com Santa Luzia, no domingo a procissão da quase uma volta pelo bairro, no

caminho as pessoas rezam, cantam e se emocionam, são acompanhadas pela banda do

bairro. A procissão termina com a chegada do andor de Nossa Senhora do Carmo. Em

relatos de campo D. Antônia nos conta que faz oitenta e dois anos que participa da

procissão dos santos, "primeiramente era mais bonita a festa de Nossa Senhora do

Carmo, os santos eram enfeitados na casa das pessoas, e a procissão seguia a ordem das

casas da vila". O São Benedito é o santo que tem que ir na frente "se São Benedito não

for na frente, não tem procissão, nem festa".

As igrejas evangélicas respeitam os católicos, em período de festa de Nossa

Senhora do Carmo nenhum culto evangélico é executado, "os evangélicos reconhecem a

importância da santa Nossa Senhora do Carmo, e que o bairro só existe por conta dela".

Nos contam que ao todo são cinco igreja evangélicas e duas católicas, destas cinco

evangélicas, quatro são vinculadas a Assembléia de Deus e uma vinculada a

Congregação Cristã, das católicas a principal é a de Nossa Senhora do Carmo, e a outra

é uma capelinha menor de Nossa Senhora Aparecida, tanto as igrejas católicas como as

evangélicas, exceto a Congregação Cristã, foram construídas pelas próprias pessoas da

vila do Carmo, eles contam que existe uma relação de mistocidade entre os evangélicos

e os católicos uma vez que "alguns católicos do Carmo se tornam evangélicos e, ao

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invés de quebrarem os santos católicos eles doam para a capelinha de Nossa Senhora

Aparecida" criando entre eles uma relação de aproximação e respeito.

Entre as celebrações ditas oficiais, a Festa de Nossa Senhora do Carmo é a mais

importante. Vale mencionar que na capela não há tradicional imagem de Jesus

crucificado, há somente a padroeira Nossa Senhora do Carmo ao centro; na lateral

esquerda Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida, e na lateral direita,

tem-se Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora das Graças. A imagem da Nossa do

Carmo padroeira difere da imagem tradicional da mesma Santa, representada na

iconografia religiosa, na medida que não tem o Menino Jesus nos braços. A imagem

tradicional da Santa ocupa um lugar à frente e acima da capela, com o rosto voltado ao

pátio, protegida por um vidro. Ocupa também um outro lugar na sala ao lado do altar,

onde estão perfilados outros santos de devoção local. (STUCCHI; FERREIRA, 2009).

É, assim, evidente a importância da religiosidade no Bairro do Carmo, envolvendo

inclusive a manutenção dos laços entre os quilombolas e o território.

Dados coletados no campo de julho forneceram-nos informações preliminares

acerca da dinâmica da festa de São Gonçalo, que é considerada por membros da

comunidade como uma festa pagã, folclórica, envolvendo cumprimento de promessa e

relações familiares, podendo ocorrer em qualquer época, exceto durante a quaresma,

uma festa de tamanha relevância. A celebração é realizada no Bairro do Carmo, no pátio

da capela ou na residência do "dono da promessa". Essa festa ocorre por ocasião de

pagamento de promessa por graça alcançada, iniciando-se tarde da noite, com reza do

terço, na presença de outro santo da casa, e segue durante toda a madrugada. Costuma

terminar por volta das dez horas da manhã, sendo encerrada com a reza de outro terço. É

obrigatório que o "dono da promessa" ofereça café, lanche, jantar, canja e café da

manhã. A festa de São Gonçalo, além disso, é marcada por danças e músicas que

ocorrem praticamente em pausas durante a madrugada: formam-se filas - à esquerda é a

fila das mulheres, e à direita dos homens -, que devolvem-se ao som da viola e pandeiro,

tocados por grupos específicos na festa.

Ana Luísa volta para o Bairro do Carmo em 10 de setembro de 2016, para

prestigiar a festa de São Gonçalo, é recebida pela família que mantém a tradição do

santo, "São Gonçalo é uma festa que perpassava a tradição familiar do bairro do Carmo,

meus avós e pais sempre participaram e organizaram a festa", São Gonçalo é o santo

dos violeiros, "Antigamente o bairro era de pretos, e a festa de São Gonçalo é uma festa

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dos pretos". D. Eugênia é quem prepara a festa, ela articula suas filhas para ajudar com

a demanda das comidas, ela diz que a tradição vem com os antepassados, que logo que

seu pai falece ela assume o comando da festa de São Gonçalo na vila, voltou a realizar a

festa por dois motivos: o primeiro era por sonhar com seus parentes já falecidos

solicitando que a festa fosse executada, e o segundo é por rogar ao santo que seu marido

consiga um emprego, após quinze dias, do pedido ao santo, Joaquim seu marido

consegue emprego. Os preparativos da festa ocorrem por meio das mulheres, D.

Eugenia tem quatro filhas mulheres e um filho homem, e as filhas trabalham para a

organização da festa que se inicia por volta das vinte e duas horas da noite, elas

levantam as cinco da manhã do mesmo dia para prepararem, o jantar, o lanche da noite,

o café da manhã e o almoço do dia seguinte, elas recebem doações de moradores de fora

e de dentro da bairro para executar a festa. No quintal de D. Eugênia é colocado um

altar com um lençol branco e rosas vermelhas, os Santos que acompanham São Gonçalo

são Santa Luzia e São Cristovão, Joaquim é o responsável por montar a lona azul em

volta do quintal caso chova e eletricidade, a festa conta com três Violeiros e dois

garotos que ficam no pandeiro, a dança de São Gonçalo se inicia por volta das vinte e

duas e trinta, a festa conta com uma quantidade relevante de pessoas da vila e de fora do

Carmo, com algumas poucas figuras políticas como vereadores, e assessores políticos,

assim que a dança começa os santos São Cristovão e Santa Luzia são retirados, e a

fileira de homem e mulheres é formada, e se dança durante toda a madrugada até o

almoço do dia seguinte, quem dita o ritmo da dança são os violeiros, os passos seguem

o som da viola e do pandeiro, rodas, círculos são feitos, o cumprimento para entre

homens e mulheres é constante, assim como o comprimento ao São Gonçalo, os passos

são divididos por Caruru, Misura e Corte, as filhas de D. Eugênia explicam que a

Misura e o Corte são fundamentais inclusive para não se ter dores nas pernas e nas

costas no dia seguinte. D. Eugênia dança a noite inteira, suas filhas revezam entre cuidar

da comida e dançar.

Após acompanhar a festa de São Gonçalo Ana Luísa continua o mapeamento

pelo bairro do Carmo, ao longo do mês de setembro vai coletando informações a

respeito da vila, os idosos contam que desde criança dançam o Caruru que o festa de

São Gonçalo era e ainda é um evento muito desejado por eles, que antigamente o São

Gonçalo era um "pretexto para os pretos se encontrarem e dançarem", contam que com

a vinda de pessoas de fora a festa perde um pouco a tradição e alegam que a única

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pessoa que ainda mantém a cerimônia é a D. Eugênia, e esta ressalta que suas filhas

continuaram a tradição da festa, os santos dizem muito sobre o bairro, as procissões, as

festas, ressaltam uma memória coletiva.

Aos poucos eles vão contando que além da festa de Nossa Senhora do Carmo,

São Gonçalo, também tinha-se a festa de São Pedro, São João e Nossa Senhora

Aparecida, que é referente a uma cruz perto da praça central da igreja, eles contam que

existia uma procissão se saia da vila e ia até o rio mais próximo que lá se lavavam os

santos e se comemorava o dia de São João junto com os outros dois santos São Pedro e

Nossa Senhora Aparecida, no entanto, esta tradição se perdeu, os mais velhos alegam

que os jovens não se interessam muito por santos, outros alegam que muita gente de

fora atrapalhou a manutenção desta tradição, e alguns poucos contam que o fato de na

vila ter evangélicos também dificulta.

Os idosos contam que antigamente o bairro do Carmo era tomado por católicos,

e que a santa Nossa Senhora do Carmo sempre foi a protetora deles, e mãe dos seus

antepassados, anteriormente o bairro era habitado por pretos, e sempre comentam um

episódio que ocorreu no dia 13 de março de 2012, eles narram que a Nossa Senhora do

Carmo "verdadeira" chegou no bairro no século XVII, e que em meados de março de

2012 a imagem foi furtada do bairro, e que ninguém sabe explicar o que aconteceu de

fato, o furto da santa é considerado um crime federal, por se tratar de um patrimônio

histórico cultural tombado, para muitos idosos residentes do bairro a santa tem um valor

histórico ela ressalta uma memória local, á a origem da comunidade, uma senhora de 93

anos que sempre morou no bairro conta emocionada que ainda tem esperança de

encontrar a santa desaparecida. Para muitos a roubo da santa significou sofrimento e

angústia Dona Antônia disse que entrou em depressão após o roubo da santa.

Além da devoção a Nossa Senhora do Carmo, e São Gonçalo, eles fazem em

média umas três excursões para Aparecida do Norte, a qual a Ana Luísa acompanhou

uma das excursões no dia 1 de novembro de 2016, em média saem três ou quatro

ônibus do bairro do Carmo com destino ao Santuário de Aparecida, é um momento em

que famílias saem do bairro para comprar santos, fitinhas de nossa senhora, para

festejarem e se reunirem. D. Guadalupe junto com os irmãos são os responsáveis por

organizarem a excursão, faz oito anos que eles organizam a viagem no bairro, "mas,

antigamente quem era a responsável pela Nossa Senhora Aparecida era sua mãe". Outro

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evento importante é a Romaria para Pirapora de Bom Jesus, organizada pelos próprios

moradores da vila e que acontece em meados de novembro.

Acredita-se, então, que se faz necessário pensarmos a comunidade remanescente

de quilombo do Carmo a partir dos conceitos de "terra de preto" e "terra de santo",

sustentando, para isso, que religiosidade e território/territorialidade precisam ser

pensados conjuntamente aqui, reforçando, também, a importância dos laços entre

território e uso/propriedade comunal da terra e dos recursos naturais, entre território e

parentesco (em sentido muito mais amplo que a simples consangüinidade) e entre

território e religião.

Considerações finais

No Carmo, para que pudéssemos compreender as relações entre humanos e não

humanos foi preciso pensar numa natureza politizada: ali, os quilombolas definem e

concebem a natureza – e, logo, os animais, principalmente de caça, do mato e de criação

– como algo que, ao menos fisicamente, é muito raro (mas que, certamente, é elemento

indispensável para a manutenção da própria identidade do grupo e da territorialidade,

bem como um vínculo com o passado):

Sendo, portanto, quilombolas e remanescentes grupos sociais que

historicamente estabeleceram relações de uso comum com recursos

naturais, deve-se considerar que junto a esse fato se dera uma construção

identitária que leva ao conceito de territorialidade ou ao processo de

territorialização (STUCCHI & FERREIRA, 2009:316).

Nossa pretensão foi investigar como o território e a territorialidade se constroem,

no Carmo, a partir das relações com os animais e a natureza no geral e, também, como a

construção do território e da territorialidade se reflete nos modos de pensar e se

relacionar com os animais e a natureza. Foi preciso, para tanto, pensar numa natureza

muito reduzida fisicamente – mas que, como pudemos perceber em campo, encontra-se

muito viva nas memórias do passado e nos planos futuros –, bem como na expansão

urbana e nas fronteiras entre os espaços rural e urbano. Além disso, foi preciso também

pensar no papel desempenhado por Nossa Senhora do Carmo, tanto na construção da

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territorialidade quanto nas relações entre humanos e não humanos – já que ela sempre

faz-se presente:

Território e religião vêm à tona no debate, elementos tomados como

inter-relacionados. Considerando que o território é carregado de

símbolos, significados e imagens, ele é instrumento de existência e de

reprodução dos agentes sociais, que o cria e o controla. Apresenta ainda

caráter político e cultural, especialmente quando agentes são grupos

étnicos, religiosos (...) (STUCCHI & FERREIRA, 2009:319).

Finalmente, buscamos compreender como, no Carmo, figuram os animais nos

esforços quilombolas para politizar sua ideia de natureza, especialmente no que diz

respeito à luta pela recuperação de seu território (mesmo porque essa é a intenção do

convênio entre o INCRA e a UFSCar). Pensamos que será necessário, talvez, que os

moradores do Carmo reinventem sua noção de natureza, de forma a fazer crescer uma

resistência adaptativa (Albert, 2000), uma resistência que permitirá, tanto simbólica

quanto materialmente, a construção do território quilombola.

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