Desinteressante - 28 páginas

14
DESINTERESSANTE MEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE JANEIRO ‘15 N°1 04 03 DESCOBRINDO DESCOBRINDO SEJA BEM-VINDO PRIMEIRA VEZ: IGREJA EVANGÉLICA T oda a primeira vez tem tensão. Até mesmo uma primeira vez que não é bem uma primeira vez. Eu voltava, depois de muito tempo, a um local que atende por casa de Deus. Antes, passara pela Igreja Católica, fazendo comunhão e tudo, mas, naquele dia, ia pela primeira vez à Igreja Evangélica. Antes de chegar ao local sagrado, conversei com o pastor. O relato encontra-se noutras páginas dessa revista. Não estava sozinho na missão e tinha certeza de que seria o mais indolor possível, iria passar rápido e voltaria a minha vida normal. A rua não é muito larga. Alguns carros populares estacionados dos dois lados da rua. Chegamos cedo, pouco antes do pastor. Os carros não atrapalham as entradas dos portões. O pastor tem um carro bonito, mas longe de ser coisa de rico. A culpada pela frustração é a expectativa. O templo faraônico não me aguardava. As paredes claras iam recebendo o pouco de luz que o crepúsculo permite receber. Duas senhoras sorridentes aguardam a todos na porta. “Seja bem-vindo”, dizem elas. Elas e todos lá dentro. A timidez parece algo absurdamente desnecessário dentro do local que atende por nome de Ágape. Ágape, eu diria, é um objetivo dentro daquele lugar. É o amor incondicional ao qual se refere o pastor em dado momento. Aliás, o pastor chega ao local. Já estávamos sentados e confortáveis. Ele está vestido como qualquer um - será possível perceber nas fotos da matéria já mencionada. Ele vem e nos dá as boas-vindas novamente. Ele e todos lá dentro. E se parecer repetitivo, desculpem, mas é impressionante como absolutamente todas as pessoas interagem. O senso coletivo que faz com que todas as pessoas interajam antes de começar o culto é tamanho que, dessa maneira, coloca o pastor entre os outros, na mesma posição social. Isso ainda se encontra no começo de fato do culto, que se dá sem grande “cerimonia”, com uma introdução falada por uma mulher que sai do meio de nós. Aí a banda já está preparada. Enquanto as pessoas vão se acomodando, o teclado já foi testado insistentemente, assim como o violão e a bateria. As pessoas que estavam de se sentaram, mas não em sua totalidade. O pequeno espaço já é ocupado por pouco mais de 30 pessoas. Muitos são jovens. Estão todos em cadeiras cor-da-pele, tipo de plástico. A iluminação é razoável e a climatização é com ventiladores do modelo que usam nas escolas públicos de bairro. É um local realmente simples, com o conforto necessário. Pilares no meio do caminho fazem pontos cegos em relação ao pastor e à banda. Além de jovem, muitos são bonitos lá. É claro que as roupas não são do tipo usado num baile funk, mas não são, necessariamente, aquelas saias jeans que fazem meu imaginário. Há muita liberdade em todos os pontos perceptíveis. Depois da introdução, ascende o pastor. É uma fala sem roteiro, aparentemente. Cita a matéria que estamos fazendo e nossa presença. A todo momento, chama aos que ouvem de “amados” e “queridos”. Numa fala descomplicada, usa a Bíblia e poemas que não estão lá. A música é tocada com boa qualidade musical pela banda. A letra, exposta na parede branca por um equipamento projetor com problema, é seguida com habilidade pelos fiéis.Sobre a banda, porém, é importante ressaltar a linha tênue entre tocar e adorar. Aprendi isso com um amigo evangélico que toca e fez muito sentido quando percebi que aquele som não era emanado de qualquer forma. O momento da oferta, o mais temido, foi algo natural. Mais uma vez não era o pastor a entrar em cena. A pedida foi feita por outra mulher que ressaltou a importância daquilo. Alguns envelopes chegaram às mãos de quem quis receber. No lugar da carta, a oferta. Eu tinha pouco na carteira e dei dois reais. Oramos mais de uma vez. Orei também. Cantei também. Tentei. Vi a fé, evidente em cada rosto, e me senti incapaz. Não consegui. Senti que lá dentro existe algo que eu ainda não compreendo. Famílias que são pautadas numa lei que não conheço. A tecnologia é usada, as roupas são iguais às nossas, os costumes também se parecem. Os evangélicos não vivem em outro mundo e têm uma mensagem a passar: o amor deve prevalecer. Se concordamos com seus métodos ou não, não importa.E se você quiser visitar aquele local, mesmo sem saber se você crê ou não, se você vai pagar ou não, se você vai rezar ou não, eles vão te receber com a mesma frase: Seja bem-vindo. Quer visitá-los? A Igreja da Comunhão Ágape fica na Rua Aloísio de Azevedo, 1218, Morada do Vale 1, Gravataí. Os evangélicos não vivem em outro mundo e têm uma mensagem a passar: o amor deve prevalecer. ARTHUR MENEZES

description

Prévia da primeira edição - Janeiro 2015

Transcript of Desinteressante - 28 páginas

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

0403 DESCOBRINDO DESCOBRINDO

SEJA BEM-VINDOPRIMEIRA VEZ: IGREJA EVANGÉLICA

Toda a primeira vez tem tensão. Até mesmo uma primeira vez que não é bem uma primeira vez. Eu voltava, depois de muito tempo, a um local que atende por casa de

Deus. Antes, passara pela Igreja Católica, fazendo comunhão e tudo, mas, naquele dia, ia pela primeira vez à Igreja Evangélica.Antes de chegar ao local sagrado, conversei com o pastor. O relato encontra-se noutras páginas dessa revista. Não estava sozinho na missão e tinha certeza de que seria o mais indolor possível, iria passar rápido e voltaria a minha vida normal.

A rua não é muito larga. Alguns carros populares estacionados dos dois lados da rua. Chegamos cedo, pouco antes do pastor. Os carros não atrapalham as entradas dos portões. O pastor tem um carro bonito, mas longe de ser coisa de rico. A culpada pela frustração é a expectativa. O templo faraônico não me aguardava. As paredes claras iam recebendo o pouco de luz que o crepúsculo permite receber. Duas senhoras sorridentes aguardam a todos na porta. “Seja bem-vindo”, dizem elas. Elas e todos lá dentro.A timidez parece algo absurdamente desnecessário dentro do local que atende por nome de Ágape. Ágape, eu diria, é um objetivo dentro daquele lugar. É o amor incondicional ao qual se refere o pastor em dado momento.

Aliás, o pastor chega ao local. Já estávamos sentados e confortáveis. Ele está vestido como qualquer um - será possível perceber nas fotos da matéria já mencionada. Ele vem e nos dá as boas-vindas novamente. Ele e todos lá dentro. E se parecer repetitivo, desculpem, mas é impressionante como absolutamente todas as pessoas interagem.

O senso coletivo que faz com que todas as pessoas interajam antes de começar o culto é tamanho que, dessa maneira, coloca o pastor entre os outros, na mesma posição social. Isso ainda se encontra no começo de fato do culto, que se dá sem grande “cerimonia”, com uma introdução falada por uma mulher que sai do meio de nós.Aí a banda já está preparada. Enquanto as pessoas vão se acomodando, o teclado já foi testado insistentemente, assim como o violão e a bateria. As pessoas que estavam de pé se sentaram, mas não em sua totalidade.

O pequeno espaço já é ocupado por pouco mais de 30 pessoas. Muitos são jovens. Estão todos em cadeiras cor-da-pele, tipo de plástico. A iluminação é razoável e a climatização é com ventiladores do modelo que usam nas escolas públicos de bairro. É um local realmente simples, com o conforto necessário. Pilares no meio do caminho fazem pontos cegos em relação ao pastor e à banda.

Além de jovem, muitos são bonitos lá. É claro que as roupas não são do tipo usado num baile funk, mas não são, necessariamente, aquelas saias jeans que fazem meu imaginário. Há muita liberdade em todos os pontos perceptíveis.

Depois da introdução, ascende o pastor. É uma fala sem roteiro, aparentemente. Cita a matéria que estamos fazendo e nossa presença. A todo momento, chama aos que ouvem de “amados” e “queridos”. Numa fala descomplicada, usa a Bíblia e poemas que não estão lá.

A música é tocada com boa qualidade musical pela banda. A letra, exposta na parede branca por um equipamento projetor com problema, é seguida com habilidade pelos fiéis.Sobre a banda, porém, é importante ressaltar a linha tênue entre tocar e adorar. Aprendi isso com um amigo evangélico que toca e fez muito sentido quando percebi que aquele som não era emanado de qualquer forma.

O momento da oferta, o mais temido, foi algo natural. Mais uma vez não era o pastor a entrar em cena. A pedida foi feita por outra mulher que ressaltou a importância daquilo. Alguns envelopes chegaram às mãos de quem quis receber. No lugar da carta, a oferta. Eu tinha pouco na carteira e dei dois reais.Oramos mais de uma vez. Orei também. Cantei também. Tentei. Vi a fé, evidente em cada rosto, e me senti incapaz. Não consegui.

Senti que lá dentro existe algo que eu ainda não compreendo. Famílias que são pautadas numa lei que não conheço. A tecnologia é usada, as roupas são iguais às nossas, os costumes também se parecem. Os evangélicos não vivem em outro mundo e têm uma mensagem a passar: o amor deve prevalecer. Se concordamos com seus métodos ou não, não importa.E se você quiser visitar aquele local, mesmo sem saber se você crê ou não, se você vai pagar ou não, se você vai rezar ou não, eles vão te receber com a mesma frase: Seja bem-vindo.Quer visitá-los? A Igreja da Comunhão Ágape fica na Rua Aloísio de Azevedo, 1218, Morada do Vale 1, Gravataí.

Os evangélicos não vivem em outro mundo e têm uma mensagem a passar: o amor deve prevalecer. ARTHUR MENEZES

DESCONVIDADO

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

APRIL ‘13ISSUE N. X1IV

2221

O som do pequeno rádio de pilhas só é silenciado após o pedido da psicóloga que acompanha

a visita. Poncio desliga o rádio, mas o mantém em seus braços. Aquele foi o presente que ganhara na tarde anterior, quando os moradores do Residencial passearam pelo shopping. Seu passatempo predileto é andar no balanço da praça, onde semanalmente são realizados piqueniques.

O sorriso pleno de alegria, contrastando com o vazio da boca sem dentes, rapidamente se desfaz, quando, em um ato descuidado, ele derrama suco na sua roupa. Agitado, Poncio pede repetidamente permissão para trocar de calça. “Ele nem mesmo come se não receber permissão”, conta a psicóloga, relatando o histórico de maus tratos do período em que o paciente morou no Hospital São Pedro.

A humanização do tratamento psiquiátrico e a reconstrução das singularidades são os pilares que sustentam o Residencial Terapêutico Casa da Praça, zona norte de Porto Alegre. Inaugurado em dezembro de 2013, o Residencial abriga hoje dez moradores, ex-pacientes do Hospital São Pedro.

Oferecer um tratamento com cuidados individualizados em um ambiente familiar são diretrizes fundamentais na Casa da Praça. O novo modelo de vida é fruto da Lei da Reforma Psiquiátrica, iniciada há 20 anos, que prevê a extinção das internações permanentes. Desde 2001, cerca de 35 residências nestes moldes foram construídas em todo o Brasil.

Os moradores contam com uma

equipe multidisciplinar, coordenada pela nutricionista Maria Regina Almeida da Silva, composta por enfermeiro, nutricionista, assistente social, dois residentes (um terapeuta ocupacional e um psicólogo) e 13 técnicos de enfermagem que oferecem atendimento 24 horas por dia.

O critério para a seleção dos pacientes que são encaminhados ao residencial é a autonomia, ou seja, a capacidade de interação e discernimento. Os mais aptos ao convívio social, ou menos debilitados pelo confinamento, acabam recebendo a oportunidade de viver nesses locais.

Cada morador recebe um benefício do Estado no valor de R$600, que é utilizado para a manutenção do residencial. O Hospital São Pedro também auxilia financeiramente nas despesas da casa, pois ainda é responsável pelos pacientes.

A residência, alugada pela Secretaria Estadual da Saúde (SES), tem três quartos, dois banheiros e um espaço com colchões extras para eventuais visitas. Não há horários específicos para acordar ou comer, como no hospital. As atividades são divididas. Ajudar nas tarefas diárias também faz parte da ressocialização. Mas ali ninguém é obrigado a nada. O propósito é a reintegração ao convívio social. Como presente de Natal, no ano passado, os moradores receberam uma nova companheira, a vira-lata Mel, com quem todos brincam e se divertem.

Felipe Martins, um dos psicólogos da casa, conta que durante os dois anos de residência no Hospital São Pedro presenciou diversas cenas de negligência e abandono. Conta o caso de uma

senhora com uma inflamação em um dos seios. Incomodado com a situação, levou ao conhecimento das enfermeiras, uma vez que, enquanto psicólogo, não poderia interferir no tratamento médico dos pacientes. Relembra com austeridade da indiferença com que o caso foi tratado. Somente seis meses depois, a senhora recebeu o devido atendimento médico.

O jovem reforça que é importante oferecer aos moradores certos confortos, como uma refeição saborosa, que para a maioria das pessoas é algo trivial, mas que para eles é um diferencial durante o tratamento.

O olhar atento e curioso de Deco nada deixa escapar. Portador de atrofia dos membros inferiores, além de sua deficiência mental, ele se nega a ficar sentado na cadeira de rodas. Arrastando-se como consegue, ele anda por toda a casa. Mas no Residencial ele pode. Assim como pode fazer seus tapetes artesanais e preparar o seu famoso pão caseiro, altamente elogiado pelos outros moradores e funcionários. “O Deco é o chefe da casa. Aqui ele fiscaliza as tarefas de todo mundo”, conta o psicólogo.

“No residencial não temos prontuários, por isso criamos um livro diário para registrar o dia a dia deles”, conta Taís Fernanda Rolemberg, técnica de enfermagem em atividade há quatro meses na Casa da Praça. A jovem, que também foi residente por dois anos no Hospital São Pedro, lembra que em seus tempos de HPSP sentia-se incomodada com a atenção — ou falta de — dispensada aos prontuários: “Como pode quatro anos de uma vida, se resumir a seis páginas?”.

VISITA ÍNTIMA

Hospital São Pedro adere à humanização do tratamento psiquiátrico

HÁ VIDA ALÉM DO SÃO PEDROREPORTAGEm // JEAN PEIXOTO fotografia // LUANA FARIAS

DESCONVIDADO

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

APRIL ‘13ISSUE N. X1IV

2221

Na sala de estar, Elia, a moradora mais ilustre, conhecida pela sua organização e lucidez, espera as visitas com a casa arrumada. Viveu boa parte de sua vida internada no São Pedro. Fala português, alemão e espanhol e já morou na Argentina. Mas assim como tantos outros foi abandonada pela família.

Definir a idade de cada um é missão quase impossível. Os anos são calculados por aproximação e o aniversário, não mais se comemora à data do nascimento, mas sim a internação. Do nascimento para a loucura. Os nomes de batismo também são um mistério, pois muitos ao chegar no HPSP recebem o nome do santo padroeiro do dia. Assim foram se perdendo as identidades de muitos internos. Com a progressão da degeneração cognitiva, o limiar entre realidade e fantasia se estreita de tal forma, que se estabelece uma desconstrução das singularidades.

É o caso de Cacá, o artista da casa. Suspeita-se de que seu nome fosse Carlos Eduardo, pois no hospital, onde vivia desde a década de 70, era assim que o conheciam. Cacá gosta de cantar, mas como o fim da visita se aproximava, foi obrigado a postergar sua apresentação.

Na pequena sala, os visitantes são recebidos pelo historiador do Serviço de Memória Cultural do Hospital São Pedro, o professor Edson Medeiros Cheuiche. Antes de conduzi-los pelos recônditos corredores e imensos pavilhões históricos, Cheuiche compartilha um extensivo e detalhado histórico do hospital.

O Hospício São Pedro, inaugurado em 29 de junho de 1884, foi assim batizado

em homenagem ao padroeiro da Província. Foi o sexto asilo/hospício de alienados no Brasil e o primeiro do Rio Grande do Sul. A partir de 1961, foi chamado de Hospital Psiquiátrico São Pedro.

A inauguração contou com uma grande festa. O ofício inaugural do HPSP foi assinado pela Princesa Isabel. O documento ainda hoje repousa na parede de uma das salas do prédio. De registro, somente os relatos do historiador e a tela de tinta a óleo pintada pelo artista Marco Lucaora, ainda não inaugurada, e ao grupo apresentada em caráter sigiloso.

Homens e mulheres, pensionistas ou indigentes. Assim eram categorizados e devidamente separados os pacientes do Hospital. Com alas e tratamento distintos, os territórios sempre foram delimitados pelas condições psíquicas e financeiras dos internos.

Em História da Loucura na Idade Clássica (1972), o filósofo francês Michel Foucault relata como a loucura substituiu a lepra como principal objeto de exclusão e reclusão social no fim do século XVIII. Nau dos Loucos, assim era conhecida a embarcação que regularmente recolhia os insanos e os levava para longe do convívio social.

Algo similar ocorria na Província de São Pedro. O historiador Roberto B. Martins, em seu livro Ibiamoré, faz alusão ao trem fantasma, ou trem da loucura. Conta que as locomotivas que percorriam a campanha tinham um dos vagões de transporte de gado transformado para o transporte de doentes. Esse trem e outros meios de transporte, como os bondes, despejavam levas de pacientes nas portas do São Pedro.

Assim teve início um dos maiores

problemas enfrentados pela Instituição ao longo de toda a sua história. A superpopulação. Em seis meses da sua fundação o número de internos passou de 41a 72. Em 1957 o número de pacientes chegava a 2.400.

A escultura do padroeiro do hospital hoje contempla sozinha o pátio vazio, que na década de 1960 chegou a abrigar mais de 5 mil internos. Sobre a mesa da pequena sala, no pavilhão que hoje serve de museu, repousa o livro de admissão provisória com registros de centenas de ex-pacientes da Instituição. Cada página correspondia a uma pessoa, porém devido à superpopulação, na década de 1960 cada uma delas comportava o registro de pelo menos três internos.

Amor não correspondido, pederastia, sífilis, vadiagem, idiotice, epilepsia, prática do espiritismo, delírio espírita, abandono pelo amante, desobediência, maus negócios, excesso de estudo, menstruação, menopausa e uso de entorpecentes. Eram algumas das principais causas de internação registradas, como relata Edson Cheuiche. “ Isso sem apelar ao excentrismo”, diz ele.

De 1947 aos anos 90, diversas ações diminuíram as internações no São Pedro. O processo de interiorização, instaurado nos anos 70, possibilitou a recondução dos pacientes institucionalizados aos seus municípios de origem, reduzindo em cerca de 60% a população de moradores. Hoje, 183 pacientes ainda residem no HPSP, enquanto 78 estão vivendo em 35 residenciais terapêuticos, em Porto Alegre e Viamão. Outros quatro novos serviços desse tipo são preparados para receber ex-pacientes: duas casas na zona Sul e duas na zona Norte de Porto Alegre.

A DESCONSTRUÇÃODA SINGULARIDADE

histórias do são pedro

A SUPERPOPULAÇÃO

AS CAUSAS DAS INTERNAÇÕES

FORTUNATI,O CENTROAVANTE

PERFEITO

A partida é amistosa. Mas apenas na teoria. Equipes amadoras de Porto Alegre, a SER Assis e o Gloriense esbanjam disposição para vencer o embate no Campo do Piriquito, na Vila Nova.

Se em algumas jogadas faltam recursos técnicos aos atletas, sobram reclamações ao árbitro em alguns lances. “Tu tá louco, juiz?”, brada um reserva da SER Assis, cujo uniforme é verde, branco e preto.

O relógio marca quase 11 horas quando a estrela do jogo chega ao local. Sorrindo, o camisa 7 do time tricolor aproxima-se dos colegas que assistem à partida no banco de suplentes. Destaca-se pelo porte físico: ele mede 1,98m. É o legítimo camisa 9, apesar de não carregar o número às costas.

Depois de sentar ao lado dos outros jogadores, o centroavante vai para o aquecimento no final do primeiro tempo. Ao estender as pernas no chão e apoiar-se sobre as mãos, sua posição lembra à de corredores antes da largada para uma prova de atletismo. No entanto, não é por conta da postura em campo que ele é reconhecido.

Aos sábados pela manhã, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, 59 anos, abre mão das roupas formais para calçar chuteiras e jogar futebol com os amigos da SER Assis. Surge, então, um Fortunati diferente daquele que aparece nas manchetes da imprensa, atreladas ao seu trabalho na administração da Capital.

Colega de time e primo de Ronaldinho Gaúcho, Marcelo de Assis Machado classifica como “razoável” o desempenho do prefeito no gramado. “Ele joga quase todos os sábados. É um amigo nosso. Aqui, não o cobramos pelo conserto de um buraco na rua. Mas, se errar um gol, cobramos a chance perdida”, comenta Machado, que deixa escapar um sorriso no canto dos lábios.

Enquanto Fortunati segue distribuindo cumprimentos do lado de fora do campo, o Gloriense empata o jogo. Organizada pelo Grupo Canela Preta, a partida integra as comemorações da Semana da Consciência Negra no município. Além disso, o torneio serve para relembrar a luta contra o preconceito no futebol porto-alegrense entre o final dos anos 1910 e a década de 1930. À época, a Liga da Canela Preta reunia equipes da Capital formadas principalmente por atletas negros, que eram proibidos de frequentar clubes elitistas.

Questionado sobre a importância do evento para o combate ao preconceito racial, o prefeito é enfático na resposta. “Temos, sim, que debater esse assunto, porque acontece no dia a dia. A grande questão é criar políticas públicas para buscar a integração racial e o respeito mútuo. O torneio é uma forma de manter viva a chama da igualdade e da convivência”, afirma.

Assim que o árbitro apita o final do primeiro tempo, Fortunati e os demais jogadores reservas da SER Assis entram em campo para dar alguns chutes antes do reinício da partida. Por mais de uma vez, os toques na bola são interrompidos pelas fotografias tiradas junto ao prefeito. Depois de cinco minutos de aquecimento, ele caminha em direção ao centro do gramado e participa do pontapé inicial da segunda etapa.

Instintivamente, Fortunati se desloca ao campo de ataque. Parte em busca da grande área, o reduto de todos os centroavantes. Porém, sem sucesso. A título de comparação, Fortunati sofre com o mesmo problema que o Grêmio - seu clube do coração - enfrentou durante a temporada de 2014: a dificuldade para criar jogadas de perigo aos adversários.

Em bom “futebolês”, a bola não chega. Os minutos passam, e a situação não se modifica. O centroavante se movimenta, mas as chances não aparecem. Até quando o Gloriense está no ataque, a maioria dos olhares de fora do campo é direcionada ao mesmo alvo: o camisa 7 da SER Assis.

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

2625PETER CROUCH DOS PAMPAS

“Toca pro prefeito!”, grita um rapaz, apoiado ao alambrado.

Vez ou outra, a partida esquenta. E o árbitro Paulo Machado é “elogiado” novamente pelos atletas. Enquanto isso, Fortunati continua a observar os lances de longe, com as mãos à cintura, comportamento que se repete por várias vezes. Mesmo sem receber grandes assistências, ele não tira o sorriso do rosto. Talvez seja influência de Ronaldinho Gaúcho, que deu os primeiros dribles de sua vida ali, no Campo do Piriquito, e que costuma esbanjar alegria nos gramados mundo afora.

O prefeito, canhoto, até troca passes com a perna esquerda e disputa uma jogada aérea. Mas nada de balançar as redes. Ao total, durante os 30 minutos da segunda etapa, Fortunati toca 10 vezes na bola. O empate persiste. E o juiz apita. Final de jogo. “Até gostaria de dar um cartão vermelho para ele. Não tive essa oportunidade”, brinca Paulo Machado.

Da mesma forma que um jogador profissional, ainda dentro de campo, o prefeito-centroavante concede uma breve

entrevista. “É mais fácil governar do que jogar futebol”, comenta. Antes de encerrar a sua fala, Fortunati é interrompido pelo árbitro reserva da partida: “Prefeito, quero que você dê um cartão vermelho para a Fernanda Melchionna e o Pedro Ruas (vereadores do PSOL) pela troca do nome da Castelo Branco para Avenida da Legalidade e da Democracia”.

Pedidos à parte, o camisa 7 prossegue a entrevista e diz que não compara o seu estilo de jogo ao de algum centroavante profissional. Entretanto, o porte físico lembra de certa forma os trejeitos do inglês Peter Crouch, que tem 2,01m de altura – três centímetros a mais do que ele.

Natural de Flores da Cunha, município da Serra Gaúcha com 27 mil habitantes, Fortunati foi reeleito em 2012 com 65,22% dos votos válidos à prefeitura da Capital, aquela que é, de fato, a sua grande área. É lá que os 1,4 milhão de moradores de Porto Alegre esperam que ele marque gols. Contudo, se a bola também estufar as redes no Campo do Piriquito, será ainda melhor.

boladãoDESMARCADO DESMARCADO

Prefeito de Porto Alegre calça chuteiras, entra em campoe tenta balançar as redes

O CENTROVANTE PERFEITO - OU PREFEITO - E A EQUIPE DO SER ASSIS

REPORTAGEM // LEONARDO VIECELI

fotografia//GUILHERME ROVADOSCHI

POLITICALYOURWEBSITE.COM

JANEIRO ‘15N°1

1615

Em uma tarde, nosso sonho escorreu pelas mãos. A tão sonhada capa com os integrantes do Sala de Redação, cultuado programa de debates esportivos da Rádio

Gaúcha, havia “caído”, como se diz no jargão jornalístico. Um palavrão, em alto e bom som, foi o motivo para a queda. Depois de finalizar a matéria, comemorar e reverberar que éramos os maiorais, em um ato falho - ou corajoso, para muitos, Kenny Braga, um dos participantes, entrou em um bate-boca acalorado com o ícone gremista Paulo Sant’Ana. O teor? As progenitoras. E você, caro leitor, sabe bem: é melhor nunca colocar a mãe no meio.

Com o palavrão proferido, Kenny perdeu o emprego e nós, tristes e desolados, perdemos a capa - afinal, não faria sentido uma matéria velha e obsoleta após tantas mudanças. Pensamos em um milhão de soluções, até que, em uma ideia tão genial quanto óbvia, veio o estalo: vamos falar com o próprio Kenny. Dito e feito, tão logo foram feitos os contatos e nosso alvo topou tudo. Sem nenhuma restrição e sem frescuras - apenas com algumas cervejinhas para refrescar o almoço -, Kenny foi pura ternura. Abriu o coração, estufou o peito e não se lamentou. Pelo contrário, se disse um “privilegiado” pelas manifestações de carinho.

Falamos durante uma hora com Kenny Braga, que fez um stand-up comedy para os entrevistadores. Um verdadeiro espetáculo de humor bagaceiro, representando um típico jornalista das antigas, que não se poupa ao contar boas histórias e que sente prazer na curiosidade alheia.

No pouco tempo, o colorado não se põe a falar de futebol necessariamente, e até seria um desperdício tê-lo só falando disso. Cita imperadores romanos e “meninas que colam velcro” na mesma intensidade. Pode ser erudito, ter até certo lirismo, ou ser o tio do boteco. A faceta completa de um poeta.

o homem

Kenny Braga é um apaixonado. Bom de papo e bem humorado, que pode ser definido de vários modos, mas é, acima de tudo, um apaixonado. Pela vida, pelo Internacional, pelo futebol, pela literatura, por suas memórias, por escrever e por contar seus inúmeros “causos”. Oriundo da fronteira, da cidade de Santana do Livramento, o homem robusto, meio calvo, que não desgruda de seu chapéu, é risonho, extrovertido e firme

em suas opiniões. Ele é jornalista e escritor. Mas já tentou ser jogador de futebol. Pode até torcer pelo Internacional, mas começou jogando no Grêmio. Grêmio Santanense. Em matéria de jornalismo já fez de tudo um pouco. Como escritor já publicou vários livros. Versátil, ele alterna entre a prosa e a poesia, a última, mais uma de suas paixões: “Eu amo poesias e as escrevo desde sempre”, afirma o empolgado Kenny.

o subversivo

De alma rebelde e subversiva Kenny Braga lutava, em seus textos, contra o autoritarismo militar. E foi por isso que em 1962 ele causou o fechamento, pela polícia, do jornal A Platéia de Livramento. O motivo foi, enquanto editor, que Kenny escrevera um editorial criticando a postura de um coronel da guarnição militar de Rosário do Sul. Por conta disso, ele teve de se exilar no Uruguai.

Em 1964, Kenny Braga foi preso. Na época do ingresso na faculdade de jornalismo da UFRGS ele fora acusado de colaborar com a tentativa de golpe do coronel Jeferson Cardin de Alencar Osório, de quem nunca ouvira falar até então. Passou 30 dias na cadeia.

o escritor

Kenny Braga, que já ganhou, da Câmara Municipal de Porto Alegre, o Prêmio Literário Erico Verissimo, teve sua estréia com O Viajante Confuso. Até o momento, publicou um único de livro de poesias: Para Brincar com Pandorgas. Sobre futebol escreveu, entre outros, Os Dez Mais do Internacional. Além destes, é de autoria dele Meu Amigo Jango, A Paixão Exposta e Perdas e Gratificações, este último um livro de crônicas. Além de muitos outros escritos.

Ele fez questão de ler para nós o primeiro texto de seu livro de crônicas Perdas e Gratificações. Nessa leitura ele narra lembranças de sua infância e de sua mãe, falecida quando Kenny tinha apenas 3 anos. Uma literatura sensível, profunda e belíssima. De fato, a nostalgia faz bem aos escritos desse homem.A fronteira não apenas deu origem a esse cara, mas ela está marcada em seu peito. Há, em seu coração, uma fronteira que divide o amor pelo futebol com o amor pela literatura.

DESCONVERSANDOPÁGINASACINZENTADAS

KENNY BRAGAREPORTAGEM // ARTHUR MENEZES, GUILHERME ROVADOSCHI E MAILSOM PORTALETE FOTOGRAFIA// HENRIQUE STANDT

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

1615

Kenny, as pessoas te ligam diretamente ao futebol e ao Inter. Depois de tantos anos de profissão, tu és reconhecido por isso. Mas como tudo começou? COMO O INTERNACIONAL ENTROU NA TUA VIDA? ISSO FOI LOGO NA INFÂNCIA?Eu me tornei colorado porque eu apreciava o vermelho do Grêmio Santanaense. Time da minha terra, Santana do Livramento.

Então você já foi gremista? (risos)Não, porque Grêmio não é nome de clube de futebol. O nosso coirmão chama-se Porto Alegrense

Kenny, é melhor jogar futebol, escrever sobre futebol ou torcer no futebol?É melhor jogar. É muito melhor. Eu me criei jogando bola. A minha infância e adolescência foram imensamente felizes, porque eu jogava bola todos os dias com os meus colegas de bairro. Era uma vida plenamente saudável. Totalmente diferente do que a gente vê hoje.

Essa infância saudável tem a ver com o que as pessoas consumiam? O que é diferente hoje? Tu tiveste acesso a algum tipo de droga na tua adolescência? Além do Grêmio, é claro. (Risos)Nós nunca ouvimos falar da existência de drogas naquela época. Não se cogitava a existência de drogas. E quando um coleguinha nosso chegava com cigarro, aquela coisa de guri, de querer se mostrar, a gente ridicularizava o cara. Eu sempre dizia: “a boca não é pra isso, trouxa”. Eu nunca fumei, nunca coloquei um cigarro na boca. E eu sou feliz com isso. Eu posso morrer de qualquer coisa, menos de doença no pulmão.

tu, que sempre fostes um defensor do jornalismo investigativo, frisa sempre que este tipo de produção acabou. Tu achas que o mercado de comunicação precisa ser reinventado? O jornalismo impresso no Brasil está em decadência. Com raríssimas e honrosas exceções. O conteúdo dos jornais ficou medíocre, porque eles (os donos de jornais) não apostam no jornalismo investigativo. Eles não apostam em grandes profissionais e os melhores, os experientes, foram mandados pra casa. Embora eles estejam vivendo muito bem, porque eles vão pra casa, após a demissão, e começam a escrever livros, fazer biografias, produzir outro tipo de conteúdo e, por vezes, ganham mais do que ganhavam em um redação de jornal. Quem perde mais com tudo isso é a imprensa. E me parece que isso não tem concerto.

Então, qual é o futuro dos jornais?Veja só, os jornais estão investimento muito nas chamadas “plataformas digitais”. E quem trabalha nisso são jovens em busca de oportunidade de emprego e que se submetem a trabalhar por um salário inexpressivo. E eles muitas vezes não sabem o que é a concordância, mas estão interligados na rede, na internet. Entretanto, são incapazes de desenvolver conteúdo. Então, é muito difícil você comprar o jornal, investir

dinheiro naquilo porque não vale a pena. Falta qualidade naescrita e o jornalismo é fundamentalmente baseado no texto.

E o futuro? Como está a tua vida depois da demissão do Grupo RBS?Onde quer que eu vá, eu tenho a solidariedade das pessoas através do reconhecimento do meu trabalho. E posso garantir que estou vivendo um momento de plena felicidade. Contraditoriamente. Hoje eu tenho tempo para tocar todos os meus projetos que estavam parados em razão daqueles compromissos de horário.

E veículos? Alguns já te procuraram? O Kenny vai voltar logo para o rádio, para o jornal?Até os três primeiros meses de 2015 não terei nenhuma decisão a respeito de qualquer proposta de emprego. Os meus próximos três meses são de recolhimento absoluto e com isso eu digo tudo. Não examinei nenhuma proposta, eu só tenho informações de amigos sobre interesse de algumas empresas, mas não tenho nenhuma definição sobre isso. Meu interesse está em ler, ouvir música, ver filmes e, sobretudo, viajar.

Qual é a rota de viagem do descobridor Kenny Braga? Eu quero passar uma temporada em Portugal, porque os meus autores prediletos são portugueses. A viagem só me interessa do ponto de vista cultural. Eu não viajo para fazer compras. E olha que eu não sou mão fechada, só não vou na onda do consumismo. E, seguindo o meu roteiro, talvez eu viaje a Cuba, mas não pela revolução. (RISOS)

Já que falou em revolução, muitos dos teus colegas já se aventuraram na política. Já cogitou a hipótese de concorrer a algum cargo público? Essa possibilidade existe. E se eu concorresse a algum cargo público em Porto Alegre, tenho certeza, pelo que eu noto, seria uma coisa consagradora. Mas eu não sei se teria muita disponibilidade para ouvir alguns discursos, seja na Assembleia Legislativa, seja na Câmara Municipal. Existem pessoas que se elegem sem a menor capacidade. Nós temos no Brasil exemplos de pessoas como o Tiririca, que recebeu mais de 1 milhão de votos na sua reeleição sem nunca subir à tribuna da Câmara Federal para discursar, porque ele não sabe o que vai dizer. E aqui em Porto Alegre, na última eleição, tivemos o Jardel, que convenhamos, não se dá com as letras. Ele não tem amizade com as letras e será deputado. Isso resume tudo.

Tu tens alguma ideologia partidária? Qual espectro político se encaixa na tua visão de mundo?Eu me considero de centro-esquerda. Eu abomino o radicalismo e a intolerância de ambos os lados. Porque a pessoa que é radical perde completamente a possibilidade de ver alguma virtude em seu adversário. E existem pessoas boas e más nos partidos adversários e no meu partido.

E quais políticos têm a admiração do Kenny Braga?Uma pessoa que é do mundo da política e tenho admiração, do ponto de vista ético e moral, é o Joaquim Barbosa. Outra referência ética, meu amigo e do meu partido, que nunca se disse nada contra ele, é o deputado federal Vieira da Cunha (PDT-RS). Te dou outro nome, de um partido adversário, modelo de ética: Olívio Dutra (PT-RS). O Olívio nunca enriqueceu no cargo e nada conspira contra a imagem dele.

Curiosamente os dois (Vieira da Cunha e Olívio Dutra) saíram derrotados das eleições neste ano. Ao que se deve isto? Talvez o eleitor gaúcho não seja tão inteligente quanto imaginamos. Hoje as campanhas eleitorais se fazem com muito dinheiro. E há uma coincidência nefasta na política brasileira: os candidatos que investiram mais dinheiro na campanha foram os mais votados. De repente, cada voto sai por dez reais. Se eu tivesse esse dinheiro que os caras têm pra se eleger, eu ia viver na Grécia e não aqui. (RISOS)

O Kenny candidato aceitaria dinheiro de empreiteiras, por exemplo, para financiar a campanha?Eu não aceitaria. Porque eu faria uma campanha conforme as minhas possibilidades. Aceitaria somente o dinheiro de amigos meus, que concordam com minhas posições políticas ou querem me ajudar. Esse foi o assunto de uma conversa que tive com o Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), e ele me disse: “O deputado que aceita dinheiro de empreiteiras não está servindo ao povo, está servindo às grandes empresas”.

Seguindo nesta linha de raciocínio, o financiamento público de campanha seria o caminho correto?Acho que sim. E que este financiamento fosse dividido equanimemente para que não houvessem privilegiados.

Qual é a tua expectativa pra esse segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff? E os pedidos de impeachment, você acha legitimo?A minha expectativa é um pouco pessimista. Eu noto que existe no Brasil um processo acelerado de radicalização. O que é ruim para o país. Existe hoje uma radicalização do extremismo e isso pode gerar um confronto perigoso para a democracia. Eu acho que se a presidenta Dilma foi eleita pela maioria dos brasileiros, por escolha livre, ela deve concluir o seu mandato e fazer o melhor governo possível. Embora eu tenha discordâncias quanto às políticas do PT, que deve se libertar, sobretudo, da influência nefasta do Lula.

Tu achas que o Lula ainda governa em conjunto com a Dilma?Eu não digo que ele governa, mas ele tem grande influência no exercício do poder. E isso não é bom. E eu temo, que de

repente, a Dilma se sinta incomodada e saia do PT. Eu não afasto essa possibilidade, até porque a raiz dela é o PDT.

O PT prestou um bom serviço para o país nos últimos 12 anos?No seu nascedouro, o PT era um partido idealista. Veio pra fazer uma política diferente dos outros partidos. E essa era a marca do PT, além da vinculação com os movimentos sociais, com o sindicalismo e com os seus ideais elevados. No exercício do poder se tornou idêntico a todos os partidos. E talvez pior. Nessa última campanha, o Aécio Neves (PSDB) e a Marina Silva (PSB) foram dinamitados pelo PT. Eu acho curioso que o PT dizia que a Marina iria escolher um banqueiro pra Ministro da Fazenda e o Lula, no seu mandato, escolheu o Henrique Meireles, que tinha sido presidente do Banco Central, um banqueiro nato. É patético. O PT, no mínimo, queria que a Marina escolhesse um índio do Amapá pra Ministro da Fazenda. (RISOS)

Tu faz muitas criticas e também é criticado. Tu aceita ser o alvo? As pessoas fazem criticas sem olhar para o próprio rabo. E digo mais, quem tem rabo não se senta na estrada. E eu não tenho rabo preso com ninguém, minha vida é limpa. Talvez tenha alguma coisa no capítulo amoroso. Não me consta que mulher faça mal pra ninguém, mas essa não é uma opinião unânime. Mas hoje tem que ter cuidado pra não levar processo por homofobia. (RISOS)

Tu acha que existe uma patrulha moral? O mundo ficou mais chato e mais careta? Eu sempre faço uma brincadeira, e friso que é somente uma brincadeira, que se Deus quisesse uniões homoafetivas ele não teria criado Adão e Eva, ele teria criado Adão e Ivo ou então Eva e Etelvina. (RISOS) Eu não tenho nenhum preconceito contra ninguém, as pessoas fazem as suas escolhas. E o que eu noto é que há muito desrespeito às famílias, há muito lixo na televisão que não contribui com nada na formação. Mas sou contra qualquer tipo de regulação da mídia.

Uma família pode ser estruturada com dois homens ou com duas mulheres como pais de uma criança? É difícil. Não para o casal, acho difícil para a criança. Ela pode sofrer muito na escola por conta disso, ser discriminada. O preconceito ainda é muito presente na sociedade brasileira.

Existem homossexuais no futebol?Existem, mas são enrustidos. E eles não explicitam sua preferência sexual porque não poderiam conviver no ambiente futebolístico, porque a torcida adversária e os próprios colegas pegariam no pé desse jogador o tempo inteiro. Imagina no banho.. (RISOS)

“se eu concorresse a algum cargo público em Porto Alegre seria uma coisa

consagradora” KENNY BRAGA

DESCONVERSANDO DESCONVERSANDO

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

1615

O ambiente do futebol é realmente muito hostil, inclusive entre os comentaristas. Pode contar para os leitores o que aconteceu exatamente naquela fatídica segunda-feira? (Na ocasião, depois de um bate-boca com Paulo Sant’ana, Kenny Braga, ao ouvir um “vai gritar com a tua mãe”, devolveu com um “a tua mãe, filho da puta”. O incidente causou sua demissão) Eu tenho a minha mãe na condição de uma santa, até porque eu não a conheci. Eu tinha apenas três anos de idade quando ela faleceu. E eu tenho fotos dela no meu escritório, no meu local de trabalho. Aí de repente bate essa ofensa e eu me lembro dela. E eu poderia ter feito coisas muito piores. Foi uma reação natural.

Em algum momento te passou algum tipo de arrependimento?Não tenho arrependimento de nada. Até porque a pessoa que me ofendeu (Paulo Sant’Ana) pediu desculpas no ar, naquele mesmo dia. Por mim, ele está desculpado. Não ficou mágoa nenhuma. Só que eu não gostaria que isso ocorresse com ninguém. Já vi gente fazer coisa muito pior em uma discussão quando se coloca a mãe no meio. Eu fui atingido de uma forma muito injusta.

O que aconteceu nos bastidores? Dizem que durante o intervalo você se recusou a receber uma punição e por isso houve o episódio da demissão. O que é verdade nessa história?Não aconteceu nada disso. Houve uma decisão normal da empresa. E eu fui demitido normalmente, não teve nada de justa causa como divulgaram por aí. E tudo aconteceu depois do programa, não foi passado nada durante o intervalo. Mas o empregador tem o direito de demitir quem ele quiser e pagar o que o funcionário tem direito no ato da recisão do contrato. Eu não tenho nenhuma queixa da RBS, a empresa tomou a decisão que achava melhor naquele momento.

E sobre as manifestações que pipocaram nas redes sociais dos veículos do Grupo RBS propondo boicote aos produtos da empresa, você acompanhou isso? Ficou envaidecido?Nas redes sociais se diz tudo, coisas certas e injustiças. Claro que estas manifestações declaram um sentimento, mas eu não tenho nada a ver com isso. Não me cabe interferir nisso. Cabe é cuidar da minha vida.

Tu ainda ouves o Sala de Redação? Qual é o sentimento que fica? Eu ainda ouço, claro. Não sobrou nenhuma mágoa, nenhum plano de vendetta (vingança), nada. A vida continua. E é preciso que todas as pessoas saibam reinventar a vida.

Se alguma emissora te chamasse pra fazer um programa de debates no mesmo horário do Sala de Redação, tu irias?Eu não faço mais programa esportivo. O Kenny Braga nos debates esportivos está arquivado. O cronista de assuntos gerais e culturais segue na ativa, este voltará com toda a força.

Não quero mais ficar limitado ao âmbito do futebol, porque eu acho que é muito restrito. Ali eu preciso falar sobre o D’Alessandro, sobre o Felipão e eu não quero mais falar sobre eles. Eu quero falar sobre as crianças que ajudam a asfaltar estradas na Coreia do Norte, a história é fantástica. (Kenny conta alongadamente a história que viu no noticiário do dia anterior)

E o que você achou da contratação de Fernando Carvalho para o seu lugar do Sala de Redação?A escolha não é minha, mas pelo que sei, houve uma reação muito forte do Sindicato dos Jornalistas e Radialistas, que promoveram até uma queixa-crime, porque ele não é jornalista, nem radialista. Ele tem condições de falar sobre futebol, mas não é um profissional da área.

Existem várias teorias da conspiração envolvendo teu nome após a demissão. Na internet também surgiram boatos de que a RBS desejava te demitir há algum tempo e o episódio serviu como pretexto. Como você avalia isso?O meu ambiente na empresa era ótimo. A minha demissão foi uma reação inesperada. Eu trabalhei em vários órgãos de imprensa do país e nunca tive uma discussão mais forte com ninguém no trabalho. As vezes, o jornalismo é um serpentário. Uns têm inveja dos outros.

Tu anda fazendo muitas palestras, certo? esse é um negócio lucrativo financeiramente?Dá pra ganhar dinheiro, claro. Eu fazia pouco por conta das viagens, não dava pra conciliar com o Sala de Redação, agora eu vou ter tempo de viajar. Uma das coisas que quero é ter um agente pra cuidar da minha agenda.

Tem mais algum projeto em mente para 2015?Eu quero reeditar alguns livros importantes que escrevi, entre eles, um sobre o depoimento de um dos melhores amigos do Jango (O ex-presidente João Goulart), que durante 25 anos foi piloto da família Goulart. Este é um livro muito bonito que quero reeditar. Então meus projetos são livros, palestras e viagens.

Pra finalizar: Deixando um pouco a profissão de lado, o que você mais gosta de fazer?Eu escrevo poesias desde sempre. Sempre adorei poesias. Mas assim, tem duas coisas que eu sei fazer muito bem na vida: uma delas é escrever e a outra eu não vou contar que é pra não me exibir.

“EU FUI ATINGIDO DE UMA FORMA MUITO

INJUSTA” KENNY BRAGA

DESCONVERSANDO

DESPUDORADO DESPUDORADO

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO’15N°1

2827

CONT

RA A

TRAD

IÇÃO

BLAC

K BLO

CS

O cenário da entrevista é um dos símbolos do capitalismo contemporâneo, mas o shopping

Praia de Belas também é ponto de encontro de muitos jovens porto-alegrenses. Eduardo dos Santos Bueno, 17 anos, chega para a nossa conversa vestido com uma camiseta da banda Rage Against The Machine, um adesivo do PASSE LIVRE JÁ colado no peito, fones e bermuda mostrando as pernas arranhadas dos tombos de bicicleta.

Estudante do último ano do ensino médio, Bueno aproveita as tardes livres para reforçar os estudos para as provas finais e o vestibular.Contudo, o interesse por política começou ainda na infância. “A minha mãe sempre lembra que eu ficava assistindo com muita atenção as propagandas políticas”, conta. A primeira participação de Eduardo em movimentos sociais iniciou em 2012, quando surgiu uma mobilização contra a privatização de um espaço público da capital, e de lá para cá o estudante tem garantido sua presença nas manifestações.

ideologia política

Enquanto o povo marchava e vociferava cânticos pelas ruas do Brasil, surgiram diversos termos na internet que tentavam denominar aqueles que clamavam por mudanças. “Comuna”, “anarquista”, “coxinha,” “esquerda caviar”,

entre outros, eram e ainda são os apelidos que as redes sociais se utilizaram para classificar, simbolicamente, ideologias.

Após as primeiras manifestações de junho de 2013, a desconfiança fez da juventude brasileira o principal alvo de questionamentos. A posição que o jovem brasileiro assumiu apresentou aos demais uma juventude que não é leiga em relação à política, nem apenas politizado ou febril por selfies em manifestações. Tanto a mídia quanto o público em geral, não compreendeu a saída dos jovens da zona de conforto e da alienação instantânea de seus quartos. “Postar que o gigante acordou, creio que isso seja a cara de como se encontra a população brasileira em relação à política, de como a nossa sociedade, de todos os segmentos, se sente e enxerga a política”, explica Bueno.

Para o futuro estudante de Ciências Sociais, a mídia criou uma mística ao redor das massas que tomaram as ruas. “É incrível como a mídia conseguiu manipular e influenciar o pessoal que ficou em casa assistindo pela TV. Logo, as pessoas queriam mudar a cabeça daqueles que haviam ido às ruas manifestar, o que resultou um esvaziamento muito grande nos atos”, relembra, deixando escapar os atos de vandalismo que ocorreram naquele período e marcaram as manifestações em diversas cidades do país.

A falta de ideologia política torna a pessoa apenas politizada, porém muitos ainda não sabem os seus direitos e deveres enquanto cidadão na sociedade. “A presença da ideologia política é necessária, porque quem vai às ruas apenas com a bandeira do Brasil e gritar eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor, logo será facilmente manipulado pela mídia. Ele segue um modismo e não tem uma visão crítica sobre o próprio país,” explica.

A participação da juventude na política tem se intensificado nos últimos anos, entretanto são poucos que buscam inovar ou propor mudanças. A inserção da nova geração na política ainda é baseada em ideologias ultrapassadas, com pensamentos arcaicos e sem o frescor juvenil que pode oferecer. Segundo Eduardo, comunista convicto, a figura do jovem brasileiro na política ainda é muito pobre. “É muito influenciável, muito moldada por partidos. Talvez falte a essência da juventude, aquela rebeldia, mas aquela rebeldia com conhecimento”, esclarece.

Em ano eleitoral foi visível o envolvimento dos jovens com a política, alguns votaram pela primeira vez e outros como candidatos. Para Eduardo, o oportunismo dos que foram as manifestações apenas porque viram na TV e acharam legal, é semelhante dos que abriram mão da sua ideologia política para se candidatar. “A ideologia política é uma soma dos conhecimentos que você adquiriu, é o amadurecimento das suas próprias ideias, e ela te oferece uma convicção que só intensifica aquilo que você já acredita. É muito diferente de fazer política, que demanda ter um jogo de cintura, como se fosse uma política de pão e circo,” afirma.

um por todos: todos contra o governo

O jovem militante é integrante da Unidade Vermelha, uma das inúmeras organizações nacionais revolucionárias de esquerda, que tem como líder a ativista Elisa Quadros Pinto Sanzi - mais conhecida como Sininho -, Eduardo conta que o grupo estava indo para uma reunião do movimento quando souberam que a ativista havia sido presa. “Nós estávamos indo para casa dela e ficamos sabendo no meio do caminho. Eu conheço a Sininho pessoalmente, então eu posso dizer que ela não possui nenhum antecedente criminal, ela não é líder de nenhuma facção terrorista como é dito”, revela.

Segundo Eduardo, a mídia foi usada pela Polícia como um mecanismo para disseminar a ideia que a ativista Elisa fosse o grande problema das manifestações. “A polícia falou aos jornais que a Sininho era líder de uma facção, o que é engraçado, porque a nossa organização é abertamente declarada antigovernista, além de ser composta por professores de universidades e estudantes,” conta. Sininho foi presa em sua casa, no dia 12 de julho deste ano, em Porto Alegre. “Infelizmente a Elisa foi à escolhida entre tantos pela polícia e pelo poder público para ser o bode expiatório,” explica.

Durante os protestos pelo Brasil surgiram diversos grupos ativistas, mas os que chamaram mais atenção foram os Black Blocs - grupo adepto da ideologia anarquista ou esquerda libertária como é chamado -, que é considerado de baderneiros,

vândalos ou até mesmo de marginais. Porém, poucos sabem que a denominação Black Blocs surgiu na Alemanha Ocidental entre as décadas de 70 e 80. A raiz ideológica da organização é formada pelo marxismo, feminismo radical e o próprio anarquismo, e dentro dessa diversidade sempre buscou uma sociedade igualitária e participativa. O uso de roupas pretas e o excesso de agressividade podem ser vistos por uns como uma ameaça a ordem e aos bons costumes. “Os Black blocs são uma consequência da terrível política nacional, eu ainda acho que são uma manifestação social com total legitimidade”, afirma Eduardo.

Já é conhecido por todos nós, o velho discurso de que a juventude é o motor do mundo e a grande esperança para as próximas gerações. Mas o que realmente impulsiona os jovens a sair do estado de embriaguez social e buscar saber compreender os seus direitos é a rebeldia que corre nas veias. A corrente sanguínea flui melhor quando o ar é inspirado profundamente pelos pulmões juvenis, a esperança ressurge no grito da mudança, não no sangue derramado. Para Eduardo, a mudança já começou e já houve o primeiro respiro de luta. “Acredito que as próximas gerações terão um nível de aceitação menor quanto à corrupção do nosso país. O pontapé inicial já foi dado. Talvez daqui há alguns anos nós tenhamos realmente orgulho de sermos brasileiros”, conclui.

Enquanto o orgulho não chega, os Black blocs lutam para serem lembrados como um movimento social e político tão marcante quanto os “Caras Pintadas” que derrubaram Fernando Collor em 1992. É esperar para ver - se as máscaras e o tempo permitirem.

A REB

ELDI

A DA J

UVEN

TUDE

BRAS

ILEIR

A À FR

ENTE

DA RE

SSAC

A POL

ÍTICA

REPORTAGEm // PAOLA CUNHA

fotografia // DANI BERGER

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

3433 DESLOCADODESLOCADO

pequenas empresas, pequenos negócios

O naufrágio de um entretenimento ultrapassado pela cultura digital

ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ

Se o aclamado drama “À Espera de Um Milagre” narra o cotidiano de um agente

penitenciário próximo a detentos no corredor da morte, pode-se dizer que as vídeolocadoras estão na fila da cadeira elétrica. Internet em conjunto com a pirataria já deu sua sentença, e os amantes de filmes e proprietários de vídeolocadoras estão à mercê de uma profecia que logo se cumprirá.

Há 25 anos, o centro de Porto Alegre abriga uma das poucas vídeolocadoras que sobrevive ao declínio do mercado. Situada há 14 anos na Avenida Borges de Medeiros, a Classe A Vídeo é sustentada pelos pilares da sétima arte. A vídeolocadora atingiu seu ápice entre os anos de 2006 e 2007, quando eram feitas mais de 70 locações por dia e chegava a 300 na sexta-feira e no sábado. Hoje, não passa de 20 o número de locações. Para a aposentada e proprietária, Myrta Westenhofen, a vídeolocadora teve vários ciclos. “Considerando os altos e baixos, o mercado explodiu em 2006. Foi realmente uma época de bom movimento”, simplifica.

Anteriormente, a Classe A Vídeo fazia parte da Rede Q-Filmes que contava com mais 12 vídeolocadoras da grande Porto Alegre. Em 2008, o comércio começou a enfraquecer e a rede se desintegrou. “A queda no movimento não foi de uma hora para a outra, simplesmente baixou gradativamente. O baque maior foi do ano passado para cá, com a internet e a TV a cabo”, conta Westenhofen. Segundo uma pesquisa do IBGE, mais de 50% dos lares brasileiros possuem, atualmente, internet e TV a cabo, o que acentua a queda de rentabilidade das videolocadoras.

REPORTAGEm e fotografia// PAOLA CUNHA

Os embalos de sábado à noite

É notório que a correria do dia-a-dia e a comodidade que a internet oferece acabaram afastando o consumidor das vídeolocadoras. Contudo, não se pode negar que elas já tiveram um papel cultural na infância e juventude de diversos apaixonados pela sétima arte. Um dia, a ida até as videotecas foi um tipo de lazer. As próprias fitas VHS (Vídeo Home System) fizeram a alegria de muitos finais de semanas de adolescentes que não podiam sair à noite para ir ao cinema. Não importava o gênero, o roteiro, a trilha sonora ou o elenco, desde que você pudesse reunir os amigos em casa para uma sessão de três a sete filmes, acompanhados de guloseimas, “Os embalos de sábado à noite” já estavam garantidos.

a dama de ferro

Antigamente, com o mercado aquecido, as vídeolocadoras acompanhavam o valor da entrada do cinema, hoje, o custo da diária de um filme não chega aos pés de um ingresso para a película. O valor da mensalidade de um pacote de televisão por assinatura compensa muito mais, quando é levado em conta o tempo e deslocamento até a vídeolocadora. “Nós pagamos R$100 em um único DVD, a minha diária é R$6, ou seja, o DVD terá que ser locado 16 vezes para pagá-lo”, explica a microempresária, que desabafa que está cada vez mais inviável manter o estabelecimento aberto diante do baixo movimento e alto custo do aluguel do ponto. As videolocadoras começaram a sentir que o império irá ruir.

inimigos públicos

A concorrência que as vídeolocadoras sofrem é nítida. Atualmente, não é só a internet - que possibilitou a pirataria - a única inimiga das vídeolocadoras. O Netflix e a TV a cabo são tão concorrentes diretas quanto à internet. Nos últimos dois anos, o serviço de streaming de filmes e séries oferece uma videoteca recheada de filmes clássicos até os atuais. Além de exibir séries que possuem um grande número de telespectadores, ainda apresenta produções feitas exclusivamente para o canal. Uma das principais séries, House of Cards, é assistida até mesmo pelo presidente norte-americano Barack Obama.

em cartaz: OS SUCESSOS DE LOCAÇÃO

A sétima arte sempre encantou e comoveu a todos, seja com clássicos e suas superproduções, histórias reais ou simplórias. A verdade é que o cinema está presente na vida das pessoas desde 1895, quando os irmãos Auguste e Louis Lumière, inventaram a arte que proporciona as mais variadas sensações, emoções, sentimentos, além de promover debates e análises entre cinéfilos e leigos no assunto. A influência que o cinema exerce na vida do ser humano em frente às telas, pode ser tão importante em uma decisão do indivíduo quanto trivial após o término do filme. Nos anos 80, a novidade era assistir no conforto de casa aquilo que era apenas exibido nas salas de cinema pelo mundo inteiro. Nascia não apenas uma cultura de entretenimento, mas também mercadológica. Em 1985, surgia a primeira Blockbuster, em Dallas, nos Estados Unidos. A maior rede de videolocadoras do mundo, com 8.500 lojas

e mais de 70 milhões de clientes. Um tipo de veículo com custo baixo e que atendia satisfatoriamente a um público que buscava lazer muito além das películas. No Brasil ela chegou em 1995, o que provocou a falência de centenas de pequenas vídeolocadoras.

Nos últimos anos, a inclusão digital aumentou o número de buscas por downloads de filmes e séries, o que proporcionou ao consumidor acessibilidade a qualquer tipo de conteúdo gratuito. Porém, essa disponibilidade digital conseqüentemente expandiu o “mercado” da pirataria e hoje podemos observar em cada esquina a venda ilegal desses produtos. Contudo, as vídeolocadoras - setor que oferece os produtos licenciados para locação -, sofreu uma baixa significativa

com a inserção dos clientes à internet e às vendas ilegais. O que antes parecia ser um tipo de lazer passar horas dentro de uma vídeolocadora escolhendo filmes, hoje é perda de tempo e um gasto desnecessário. “As pessoas trabalham o dia todo, o tempo é curto, elas têm outras opções de lazer e estão sempre distraídas quando passam em frente ao estabelecimento”, exemplifica Myrta, com a simplicidade de quem aceitou as imposições do mercado.

PIRATAS DO caribe de volta para o futuro

TONY MANERO, INTERPRETADO POR JOHN TRAVOLTA, NOS EMBALOS DA DISCO MUSIC MERYL STREEP INTERPRETOU A PRIMEIRA-MINISTRA MARGARET THATCHER O FILME, PROTAGONIZADO POR JOHNNY DEEP, ABORDA A CRISE DE 1929

A SAGA DO PIRATA JACK SPARROW, INTERPRETADO POR JOHNNY DEEP, PELOS MARES DO CARIBE CORREDORES VAZIOS, PRATELEIRAS RECHEADAS: FILMES DE TODOS OS GÊNEROS E NACIONALIDADES CHRISTOPHER LIOYD, COMO O DR. EMMETT BROWN, INVENTOR DA MÁQUINA DO TEMPO

IMAGENS// DIVULGAÇÃO

veículo, por sinal, de valor médio, contraria a ideia de que “pastor enriquece com o dinheiro dos fiéis”. Nem mesmo o freio de mão anuncia a chegada do tão esperado pastor. Ele não vem voando, involto numa áurea reluzente, ou qualquer coisa que identifique a presença divina no local. Ele é apenas uma pessoa. Carne, osso e bíblia.

Samuel chegou com a simplicidade da visita que, com passos lentos, se reclinou na poltrona e transpareceu serenidade. A primeira surpresa do dia: o pastor gosta de futebol. A televisão exibia um jogo da seleção Brasileira. Samuel exprimiu alguns pitacos sobre a escalação do escrete canarinho e focou nas respostas para todas as perguntas. Os entrevistadores é que fizeram a deselegância, vez ou outra, de fixar os olhos a cada ataque infundado na partida.

Durante o café da tarde, Samuel não comeu muito presunto, mas caprichou no queijo. Os alimentos foram observados após salientar que a espiritualidade deve estar aliada com a saúde do corpo e da mente. Falou isso fazendo menção à Bíblia. Aliás, quase todos seus argumentos contundentes têm nascimento na Bíblia. Menciona, e faz questão disso, livro, capítulo e versículo do qual tirou a informação – sempre que a memória ajuda.

Vestindo roupas no estilo esporte, o pastor é diferente na essência. Fala articuladamente, respeita a opinião contrária e tem embasamento bíblico – ou seja, naquilo que acredita. Samuel é cristão e não escondeu isso em nenhum momento, em nenhuma opinião, em nenhuma marca. A convicção é presente na fala, no gesto, na vida. A fé expressada nas atitudes. Para o bem-estar, segundo ele, o caminho é a fé.

Com palavras de fácil entendimento, com ditados e sabedorias – muitas vezes não provenientes do livro sagrado –, esclarece o rumo para, na opinião dele, a felicidade, não só após a morte, com uma suposta aprovação divina, mas, principalmente, em vida. A felicidade em vida, então, passa diretamente por seguir os passos que Jesus orientou seguir. E que os passos calmos e seguros de Samuel parecem buscar.

O agora pastor tem tradição cristã na família. O avô converteu-se ao evangelho, levando junto os filhos. Quando Samuel nasceu, seu pai já pregava. “No ano em

que nasci, meu pai foi campeão estadual em um concurso bíblico”, garantiu, com orgulho de lembrar o pai, presente até hoje em sua vida espiritual. Iniciou sua vida religiosa na Igreja Assembleia de Deus, uma das maiores denominações do país. Com facilidade para decorar versículos, era estimulado por prêmios concedidos aos melhores. Com o pai conhecedor da palavra, largava na frente. Neste contexto, aderiu naturalmente à vida na igreja.

Acredita-se que, entre os evangélicos, seja prática fomentada na igreja a obrigatoriedade da ida aos filhos. Questionado se os pais devem obrigar seus filhos a participarem dos cultos, é reticente. “Se não existe a convicção naquilo que se faz, por desejo, por amor, mais cedo ou mais tarde isso vai acabar estourando. Eu nunca fui forçado”, definiu, com ênfase.

Garantindo que a maioria das pessoas que são forçadas a algo não seguem naquilo, falou sobre nascer com a fé. Samuel afirmou que ela vem com o tempo, que é uma convicção daquilo que não se pode ver. “O livro de Romanos diz que a fé vem pelo ouvir a palavra de Cristo. Então, eu não enxergo a possibilidade de um bebê nascer com fé”, disse, com firmeza.

hebraico, história e etimologia

Ia assim, divagando sobre o evangelho, mostrando conhecimento profundo em tudo que dizia. Mostrava os capítulos, os livros, os apóstolos, e até mesmo o conhcecimento para decifrá-los, como informações de etimologia e história. “Quanto mais a gente conhecer o original, mais ferramentas para argumentar nós conquistamos. Não é preciso saber o original pra compreender a essência do evangelho, mas se quiser aprofundar o assunto é bem importante ter conhecimento das linguagens originais”, sinalizou. O conhecimento da Bíblia vem de várias leituras complementares, assistência a cultos, conferências, além da releitura de vários livros, entre outros quesitos. Desta forma ele consegue manter viva em sua memória a lembrança de passagens e versículos que podem ser usados tanto em seu sermão quanto no dia a dia.

Todo o discurso pode parecer, por vezes, contraditório. Flutua entre razão e

fé, misturando e separando as duas coisas. Numa dança ritimada, de um passo lá e outro cá, relaciona o tempo todo Deus e homem, criatura e criador. “ Deus, na verdade, é mais real do que nós. Então, apesar de ele ser invisível, ele é algo tangível, algo real. E não é por ser invisível que deixa de ser Deus, tanto que ele pode aparecer, se materializar”, garante o pastor.

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

2625

ESQUEÇA OS CLICHÊS: O PRECONCEITO TALVEZ ESTEJA EM VOCÊ

Cinco sentenças: cinco generalizações de boa parte da população. Será que todo evangélico é ignorante? Todo

pastor é ladrão, usa as pessoas através da fé, faz lavagem cerebral e tem oito bolsos nas calças para caber o dinheiro recebido pelos apedeutas iludidos? Para derrubar o clichê inédito, Desinteressante entrou no universo evangélico de corpo, alma – e alguns trocados para o dízimo. Pastor, fiel e igreja, tudo visto de perto e desarmando os preconceitos repetidos cotidianamente por todos.

Se você reproduz os truísmos bestas que dão conta de que todo pastor é rico e explora fiéis burros usando uma crença ainda mais absurda do que tudo isso, bom, esse texto vai lhe desintoxicar. Para isto, fomos atrás de Samuel Ferreira, pastor da Igreja da Comunhão Ágape, uma das mais fortes denominações evangélicas protestantes do Rio Grande do Sul. O pastor, contrariando a lógica arraigada aos evangélicos, é formado em Administração e Gestão de Pessoas. Um líder nato, culto, com uma forte formação intelectual e com uma – surpreendente – organização de seus pensamentos. Se a ideia era

quebrar o mito, ao menos começamos a rachar o concreto contra o preconceito.

Organização política, visão econômica e social, interferência na sociedade, tantas pautas giram em torno daqueles que possuem uma das mais importantes bancadas não oficiais do parlamento brasileiro. Não importa se você é católico, umbandista, maçom, espírita ou acredita em Inri Cristo, o comportamento evangélico faz parte do imaginário popular – desde as posturas conservadoras até a verborrágica alegria em Cristo que tanto pregam – e é preciso conviver e aceitar suas práticas.

Se você pensa que Silas Malafaia, Marco Feliciano, Valdomiro Santiago, Edir Macedo e R.R. Soares são os únicos pastores do Brasil, esqueça tudo que pensa que sabe. Eles são uma pequena minoria que goza de muitas coisas distantes da classe pastoral brasileira. Os pastores, em sua maioria, vivem apenas da fé. E se você pensa que a fé está apenas no dinheiro do fiel, é melhor rever seus conceitos. O que move a igreja é tão somente a fé na mudança de vida das pessoas. Vamos começar a mudar, primeiramente, quebrando os preconceitos?

Samuel, o juiz que não julga

Assim como o bíblico Samuel, homem que se dedicava à realização dos propósitos de Deus para o bem de Israel, Samuel Ferreira Batista, casado, pai de Rebeca, tem a sinceridade como principal característica. Não é acrobático, não parece querer dar um show de interpretação. É pacato, calmo, seguro. Na contramão dos “pastores das madrugadas”, Samuel é diferente em tudo. Tem o raciocínio lógico, não exprime uma palavra sem o embasamento teórico e não fala para impressionar. Acaba, apenas e tão somente, impressionando ao falar.

Servidor da Secretaria de Gestão de Pessoas (SEGESP) do TRT-RS, e tutor do curso a distância “Noções Básicas de Gerenciamento de Projetos”, Samuel é graduado em Administração pela UFRGS. Um currículo extenso que demonstra a capacidade e o conhecimento do servidor/pastor.

Ao chegar, o carro não fez muito barulho, mesmo que em meio ao saibro de uma rua acidentada, em frente ao local onde foi realizada a entrevista. O

“TODO EVANGÉLICO É ignorante”“o dinheiro vai todo para o bolso do pastor”

“OS CRENTES SÃO LADRÕES”“ELES USAM AS PESSOAS ATRAVÉS DA FÉ”

“eles fazem lavagem cerebral nos mais pobres”

o pastor da zueiraSamuel é conhecido por seu jeito afetuoso e gentil. Mas, assim como Desinteressante, adora uma boa zueira. Vamos às provas!

Observador de montinhos coletivos

COSPLAY DE EMÍLIA DO SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO

DESMITIFICANDO

EVANGÉLICOSDESMITIFICANDO CLICHÊS INÉDITOS

REPORTAGEM // GUILHERME ROVADOSCHI E ARTHUR MENEZES colaboração // MAILSOM PORTALETE

DESMITIFICANDO DESMITIFICANDO

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ’15N°1

2827

Experiente, Samuel afirma ter iniciado nas pregações por volta de 1997. Logo no começo, já fazia parte da ala mais controversa e polêmica da atuação evangélica. “Eu creio que a primeira experiência de pregação foi quando eu participei de um ministério de uma igreja que é muito forte nessa área de libertação, com demônios sendo expulsos – o que alguns chamam de exorcizar –, com pessoas sendo curadas, e eu vivi isso participando de campanhas em lonas e tendas de circo e eu via muito pessoas serem libertas e curadas”. Depois da estreia promissora, foi convidado por várias igrejas para pregar o evangelho. Ali, em um local que referenciava o picadeiro, o então aprendiz de pastor deu seus primeiros passos como evangelista.

Justamente a prática de expulsão dos demônios, entre outras coisas, faz com que crie-se o estereótipo de “crente burro”. O preconceito replica a ideia de que a crença não condiz com conhecimento, com a instrução. Contra a tradição do estereotipo, Samuel, por sua vez, formou-

se em Administração pela UFRGS. Lá, não sofreu com esses preconceitos. “Eu entrei em 1993 e me formei em 1998. Como eu fiz administração na UFRGS e a gente não tinha aquela turma que começava e ia até o final. Nunca tive vínculos muito grandes lá dentro”, conta, “eu nunca sofri nenhum tipo de discriminação por ser evangélico, pelos meus princípios, sempre me respeitaram”.

E se alguém ousar chamar os fieis na igreja de Samuel de ignorantes, estará errando feio. Lá, pessoas dos mais variados tipos de instrução participam ativamente dos cultos. Eles mesmos refutam esse preconceito. As classes sociais são representadas em sua totalidade. Da moça pobre ao empresário próspero da região. O acolhimento é geral e surpreendente – não há separação entre ricos ou pobres, todos convivem bem na busca pela fé.

Toda essa conjuntura preconceituosa é produto de um período em que a fé evangélica vem se espalhando, crescendo em adeptos pelo mundo todo – e principalmente no Brasil. “Muitas

igrejas passaram por um processo de renovação, no sentido da manifestação dos dons do Espírito Santo. No final da década de 1980 para o início da década de 1990 houve o que podemos chamar de “avivamento”. Segundo o pastor, “o avivamento é marcado por conversão de vidas e por uma postura de santidade. Muitas pessoas vindo e se convertendo à Cristo. Avivamento é mudança de vida em massa”, define.

administração: a nova igreja

Mesmo com o grande aumento na nação evangélica, isso não garante a igreja lotada. É um ramo e, como qualquer outro, existe grande competitividade dentro do segmento. Numa relação igreja/empresa, as ações tomadas para que as coisas funcionem devem ser muito parecidas. “A porta dos fundos da igreja é maior que a porta da frente. Existem muitas igrejas rodoviárias, em que as pessoas passam, mas não ficam ali”, definiu, fazendo mais um uso de metáfora. “Por que as pessoas mudam de igreja pra igreja como se trocassem de roupa? Porque elas não têm uma família espiritual”.

Como prática, garantiu que faz uso do telefone como meio importante para manter os fiéis mais próximos de si – Samuel usa o termo “discípulos”. Mas nada é mais eficiente do que a confiança e o relacionamento deles com eles mesmos. “Existe um dado estatístico que a pessoa não permanece em uma igreja onde ela não tem, pelo menos, oito vínculos de amizade fortes”, contou, reforçando a importância dos laços afetivos.

O traço administrador de Samuel é evidente. A visão meramente romantica de que a igreja se sustentará pelo simples fato de que há amor e boa vontade não se mantém. Dá trabalho salvar almas. E o trabalho, com sistemas e processos gerenciais, é muito mais eficiente.

Questionado sobre como cobrar os agentes da igreja, é categórico ao mencionar conceitos da administração – que ele é pós-graduado. Sempre tenta usar a técnica do sanduíche: chegar elogiando, sendo sincero, para depois chamar atenção, com sabedoria e amor, e, no final, de novo, animar e entusiasmar. Pão,

carne e pão. “A igreja é uma organização assim como uma empresa”, compara.

Sem deixar com que pareça a igreja uma administração qualquer, disse que esta não é uma instituição capitalista. Perguntado se é, então, uma instituição comunista, disse que “na parábola das 100 ovelhas, aprendemos que não devemos desistir de nenhuma ovelha. E cuidar das ovelhas é um preço alto a pagar. O mercado abandona quem desiste pelo caminho, a igreja acolhe. Então isso não é muito capitalista. Mas a remuneração do trabalho é justa, e isso está na bíblia. O provento que Deus dá também serve para ajudar as pessoas”.

Neste ponto, fustigamos a relação da igreja mais questionada por todos: com os bens materiais. Na cartilha do preconceituoso, todo pastor é rico e rouba do pobre. Para Samuel, a visão é lógica e bíblica. “Eu separo dez por cento do bruto de tudo que eu ganho para o dízimo. Tudo que eu ganho é Dele. Deus não precisa de dinheiro, mas a igreja tem despesas. Eu não tenho salário pago pela igreja, abri mão disso porque tenho meu trabalho”, explicou, com a tranquilidade de quem trabalha com convicção do bem que faz às pessoas.

Ainda sobre o assunto, é cauteloso ao falar dos colegas de profissão/pregação. “Existe a teologia da prosperidade. Mas o amor ao dinheiro está na raiz de todos os problemas. O dinheiro é um ótimo servo, mas um péssimo senhor. Alguns acabaram se perdendo por conta do amor ao dinheiro. Quanto maior a invergadura do ministério, eu entendo que se possa ganhar o compatível ao trabalho assumido e exercido, mas não se deve pensar na igreja como fonte de renda”, resume.

E se a relação dos pastores com o dinheiro é alvo de críticas, a relação dos fiéis com o dinheiro também não passa sem retoques. “Tem gente que anda de casa e mora num carro. As pessoas não são donas, os bancos são, muitas vezes. A presunção e a soberba são pecados. Os brasileiros são muito pobres de planejamento”, relata, com a veia administrativa que perpassa por todos os temas.

evangélicos: voz nas urnas

Assim como a relação dos pastores com o dinheiro chama a atenção, com a política é a mesma coisa. Samuel tem uma visão muito peculiar sobre o cenário político de acordo com suas interpretações da Bíblia. Na visão dele, os cristãos devem escolher um representante que tenha os mesmos princípios ditos pela doutrina religiosa. Deus, segundo o pastor, não seria contra a política, “tanto que José foi o governador do Egito e o profeta Daniel participava como conselheiro do reino”, frisa.

Para isto, Samuel tasca, de memória, um versículo bíblico. Cita Deuteronômio 17:14-20, alongadamente. “Quando entrares na terra que o Senhor teu Deus te dá, e a possuíres e, nela habitando, disseres: ‘Porei sobre mim um rei, como o fazem todas as nações que estão em redor de mim’, porás certamente sobre ti como rei aquele que o Senhor teu Deus escolher. Porás um dentre teus irmãos como rei sobre ti, não poderás pôr sobre ti um estrangeiro, homem que não seja de teus irmãos”, disse, convicto da orientação divina.

De acordo com a visão de Samuel, os evangélicos, podem e devem “se meter” na política para defender as ideologias cristãs, desde que não abram mão de suas convicções. Entretanto, acha que os pastores não deveriam ser políticos. Porque, segundo ele, seria muito complicado aliar o ministério à política. Cuidar das ovelhas e do aprisco ao mesmo tempo.

Apesar de Samuel defender a importância de ter evangélicos na política, ele pensa que essa não é a solução derradeira, “A maior arma da igreja é a oração”, destaca o pastor. Para ele, mais do que se engajar na politica é preciso manter fortalecidos os laços espirituais. “A solução para o Brasil não é apenas uma bancada evangélica forte. A igreja deve se posicionar através da oração para direcionar os governantes às boas decisões”, garante, trazendo um olhar ingênuo de esperança para a questão política.

Sobre a questão da isenção fiscal às Igrejas, tema polêmico e em voga, Samuel tem uma visão muito conclusiva. Sem tergiversar, ele vê como positivo não pagar impostos, pois assim a igreja

tem mais recursos para investir em suas obras. Salienta ainda que, apesar da Igreja como instituição não pagar tributos, todos os seus membros, como cidadãos, pagam. Dentro do assunto, Samuel se adiantou. “Se a igreja não fosse isenta dos impostos, talvez tivesse mais autonomia com a palavra e a nossa opinião sendo mais ouvida. É possível que a nossa influência fosse maior”, decreta, com uma visão analítica, vislumbrando a força da igreja. “Essa é uma instituição que sempre acaba fortalecida porque ela vai na contramão do mundo”, finaliza.

OS CINCO MANDAMENTOS DE SAMUEL

Antes das formalidades da despedida, que passaram por apertos de mão e uma oração fervorosa para abençoar a Desinteressante, Samuel elencou as cinco características indispensáveis para um líder, segundo ele: autoavaliação, autocontrole, empatia, comunicação eficaz e liderança servidora. O pastor relatava como se fossem mandamentos - os ditos “mandamentos de Samuel”.

O líder Samuel, respeitado pelos fieis e admirado pelos colegas, demonstra estas características: tem a autoavaliação constante para não cair no comodismo e cuidar de seus discípulos; apresenta o autocontrole com a calma e a serenidade para tomar decisões que, por vezes, não agradam a todos; demonstra empatia para deixar a posição empedernida do pastor e se colocar no lugar do servo, do seguidor; se exprime com facilidade, realçando sua comunicação eficaz; e tanto em seu trabalho, quanto em sua vida pastoral, demonstra a servidão para gerir vidas.

Lembrando as citações que Samuel tanto fez durante a conversa, podemos referenciar Efésios 5:1: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados”. A liderança que o pastor exerce baseada nos princípios bíblicos, mas sem esquecer as teorias acadêmicas, faz com que Samuel seja um imitador de Cristo. Uma imitação orgulhosa, sincera e verdadeira. Mesmo que com traje esportivo, comendo pouco presunto e reclamando de Fred no comando de ataque da Seleção. //

SAMUEL PREGANDO AOS FIEIS: EMOÇÃO E SABEDORIA SÃO ALIADAS

DESINTERESSANTEMEDIUM.COM/@DESINTERESSANTE

JANEIRO ‘15N°1

4241

recortagem

André Machado, um dos favoritos à vaga de deputado federal, perdeu dinheiro E perdeu A ELEIÇÃO,

SÓ não perdeu a fé e a esperança

O DE(S)VOTADO

André Machado é um jornalista respeitado, experimentado, vivido e reconhecido em

todo o Estado, daqueles que vivem a notícia durante todo o dia. Ao receber a equipe da Desinteressante na sede do Grupo Bandeirantes, local de seu novo emprego, no Morro Santo Antônio, em Porto Alegre, foi gentil e informal. Nós, como meros aprendizes, seguimos as ordens do feiticeiro, quando orientados sobre entrevista - dentro de uma. Nós já esperávamos há mais de uma hora, pois chegamos adiantados. E foi ali, no ambiente por onde passam todos os dias Fabiano Baldasso, Chico Garcia, Ribeiro Neto, KG Lisboa e outros tantos astros do Grupo Bandeirantes, que conversamos. André, muito bem alinhado, sentou cruzando as pernas, de modo a jogar a ponta do sapato em nossa direção. O sapato só balançou dali a algum tempo, quando algumas perguntas transformaram a conversa em entrevista. Começamos querendo saber sobre a infância. André se abriu. A política está presente na vida do âncora desde criança. Ele cresceu durante o regime militar tendo muita consciência do que acontecia. Seu pai, Dilamar Machado, era um dos que se opunham ao regime. Sendo assim, desde o ensino médio, André esteve envolvido em diversas atividades políticas. Dilamar,

pai de André, era um militante da oposição, e após a volta à democracia entrou oficialmente para a vida política. Durante a vida pública do deputado Dilamar Machado, seu filho André estava presente nas campanhas. André conta que essa militância e essa participação nas campanhas deram a ele muita experiência. Esses momentos com o pai lhe permitiram conhecer muitas pessoas do ramo e outras que se envolviam de alguma forma com política, propiciando a André entender como funcionava a vida pública. André foi filiado ao PDT de 1985 a 1994, militou nas Diretas Já e fez campanha para Leonel Brizola. “A vida de toda a sociedade está ligada à política”, comenta o entusiasmado André. O jornalista fala de política como algo que está muito além da simplista compreensão partidária, fazendo referência à democracia dos gregos e movimentos sociais num todo.

fé demais

O devoto da política, André, foi “desvotado”. Concorreu ao cargo de deputado federal com a fé de que se elegeria, com a fé em mudar o país com discussões pertinentes em nível nacional. Os quase 30 mil votos foram muito aquém do número esperado por ele e pelo partido. O partido, por sinal, não era uma legenda qualquer, era o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Carregando a alcunha comunista nas costas, André viu a

resistência que o partido e a nomenclatura podem trazer. “Fiquei chateado e surpreso com a virulência de ataques que sofri”, comenta, “porque a discordância respeitosa é do jogo democrático”. André Machado entrou na campanha como radialista de renome. Depois de fazer sólida carreira no rádio, sobretudo na Rádio Gaúcha, na qual comandou o programa Gaúcha Atualidade, pretendia seguir os caminhos do pai, que também fez a transição do rádio para a tribuna. Já no momento em que decidiu se afastar de suas atividades na rádio, André tomou uma decisão diferente do que se costuma observar, afinal, não esperou o tempo regulamentar estourar. Poderia ter usado os microfones por mais tempo, fazer a campanha com menor intervalo entre o período em evidência no ar e a entrega de panfletos na esquina democrática. “Não quis permanecer nas minhas atividades com um vínculo tão forte, sabendo que concorreria”, opina, “porque acho que o jornalista deve manter uma mínima distância”. A distância entre a militância e a atuação jornalística é outro campo polêmico. Muito se fala sobre a suposta, insípida, inodora e incolor imparcialidade. Como se as pessoas - e os jornalistas são pessoas - não tivessem lado. “Eu sempre fui de esquerda, é verdade. E isso não muda com ou sem a filiação partidária”, cravou André, fazendo ressalvas aos rótulos tão criticados pela própria miltância.

REPORTAGEM // ARTHUR MENEZESMAILSOM PORTALETE

O jornalista diz que ter passado o último ano atuando em campanha político-partidária pelo PCdoB só lhe traz mais prestígio pois, segundo ele, uma grande parte da população julga a RBS e seus veículos como de direita e que todas as pessoas ligadas à empresa seriam de vertente conservadora. André fala que ter se unido ao PCdoB só fez quebrar esse estigma e pegou muitos de surpresa. O que só legitima o seu profissionalismo e não prejudica sua imagem. Mas o fato é que ele perdeu. A derrota foi acachapante segundo as previsões dele e do partido. E o lado mais negro do período se evidencia quando André fala: “A polítca, por dentro, é muito diferente da política que é vista por fora. Ela é dura, traiçoeira e falsa”. Com a certeza de que não se arrepende de nada, faz o balanço e compreende o resultado. “Passei um ano muito duro da minha vida: durante os últimos 13 meses eu não recebi nenhum salário”, contou, tratando da inevitável questão financeira, “hoje o que eu tenho é 1/8 da minha economia de vida”. Com uma campanha barata, diz: “Não aceitei doação de empresa nenhuma. Fiz uma campanha limpa. Gastei cerca de 300 mil reais”. Depois de todo o período sabático, André Machado voltou ao microfone para tocar vários projetos, mas, desta vez, em uma casa nova, na Bandeirantes. Com projetos no rádio e na televisão, garante ter sido procurado por vários veículos, inclusive tendo as portas abertas na RBS. Perguntado se permaneceria filiado e militante, voltou a afirmar que precisaria se afastar para, assim, efetuar o trabalho de jornalista com a maior distância possível. Por outro lado, garantiu que esse não é necessariamente o final: “Posso voltar daqui a dois anos (à disputa eleitoral), e provavelmente volte daqui a quatro, mas nada é definito. Agora, quero me focar apenas no jornalismo”.

Após a derrota nas eleições, André Machado se reuniu com a cúpula do partido. Ali estavam João Derly, Manuela D’Ávila, Assis Melo e tantos outros. Depois das urnas os correligionários se reúnem para definir quais serão as estratégias e as medidas a serem tomadas pela sigla. André conta que “entrou mudo e saiu calado” da reunião: “Eles começaram a falar e eu percebi que não fazia mais parte daquele mundo, eu entendi que não tinha mais lugar entre eles”. André então foi sozinho para sua casa. Saindo do local onde havia ocorrido a reunião do PCdoB, o ex-candidato estava cabisbaixo e, por um instante, abriu um sorriso. Foi quando ele avistou um jovem que participara de sua campanha e que estava feliz por reencontrar o candidato por quem havia militado. O jovem lhe dirigiu palavras ternas, e lhe abraçou. Naquele momento, confessa André, que desabou em lágrimas: “Eu não pude me conter, ali eu desabei em lágrimas, chorei igual uma criança, foi naquele momento que percebi que a minha jornada político-partidária havia se encerrado”. No final de semana seguinte, André foi ao Beira-Rio, ver o clube do coração. O gigante, imponente mostrou no telão o público presente. André avistou e lembrou de sua votação. Cerca de 30 mil pessoas, ali, materializadas, dando a dimensão da campanha. Depois disso, o jornalista saiu do estádio com sua fé renovada, sabendo que não pode decepcionar tanta gente. Ele tem certeza de que não fracassou.

DESMITIFICANDODESMITIFICANDO

OS 27 ANDARES DA GALERIA MALCON DESPEM OS SENTIMENTOS ALHEIOS E RELATAM VÁRIAS VIDAS QUE AINDA NÃO SABEM PORQUE FORAM VIVIDAS

REPORTAGEM// GUILHERME ROVADOSCHI

Para quem enxerga ao longe, os imponentes 27 andares

da Galeria Malcon chegam a impressionar. Um dos maiores prédios do Centro Histórico de Porto Alegre é marcado pelas lembranças de quem por ali passou em mais de 40 anos de existência do local. Lugar onde muitos se escondem e outros despem as máscaras da alma, o número 1560 da Rua dos Andradas abriga todos os sentimentos e tipos possíveis:

da atendente com expressão fechada à alegria do sorriso de quem já não tem dentes. Um espaço onde gremistas e colorados, ateus e religiosos, trabalhadores e desempregados convivem bem. Ou melhor, conviviam.

A harmonia entre os habitantes, que até o final da década de 90 era pacífica, tornou-se o principal empecilho para quem trabalha no prédio. Prostitutas e ambulantes dividem clientes na base do grito e do marketing pessoal. Compradores de cabelo, vendedores de aparelhos ortodônticos e intermediadores de perfumes de qualidade duvidosa disputam a clientela com moças de aparência pálida e abatida, reflexo das marcas de uma vida de quem ainda não viveu o que sonhou viver.

Pior ainda é para quem tem empresa ou loja fixa na galeria há tempos, como é o caso de advogados, contadores e empresários. O prédio, que permaneceu como referência de ambiente comercial no Centro de Porto Alegre, hoje é um pastiche do que já foi. Segundo o advogado Luis Pedro Moniazzi, a clientela dele que, por muitos anos, era de 20 pessoas por dia, hoje não passa de dois por semana. “Os

tempos são outros. As pessoas têm medo de entrar aqui. Virou um prédio maldito, sombrio, sem luz”, avaliou o advogado. Sem medo de combater o que ele chama de “falta de vergonha na cara e na bunda”, Moniazzi já foi agredido pelos cafetões do local por três vezes. “Eu sempre encarei essa bandalheira que acabou com a minha vida e com meu emprego. Isso era um ambiente de família. Vai ver se a mãe de alguma dessas meninas visita a galeria?”, indaga o senhor do alto de seus 74 anos, com uma das mãos apoiada em uma bengala cor de creme, com a coragem que parece não ter mais forças para ter.

A voyeur

A recepcionista da administração da Galeria Malcon, Graciela Farias, faz seu turno de oito horas de segunda a sábado, com pausas para o almoço. A rotina dela difere da efervescência e agitação dos andares do prédio. Atender telefones, anotar recados e dar informações, segundo ela, tornam o dia monótono e cansativo em um local onde todos parecem buscar um momento de fuga. “O ambiente é sempre muito misterioso, todo mundo entra mudo e sai calado. É tudo muito privativo, a gente não sabe se tal pessoa veio para se consultar com um dentista, comprar uma camiseta ou transar com alguém”, conta a recepcionista, com

a curiosidade lhe aguçando as veias. Graciela parece inconformada com sua posição em uma cadeira giratória que, com o passar do tempo, não gira mais. “Às vezes eu queria ser uma mosca pra saber o que acontece dentro de cada quarto, de cada ambiente. O trabalho se torna maçante diante da diversidade de cada andar”, declarou a atendente, com um ar voyeur de quem busca novidades. “A vida se torna tão chata sem o fator surpresa”, admite a funcionária que, mesmo após dois anos de trabalho, nunca viu nenhum fato anormal na galeria. “Se acontece, ninguém vê. O pessoal sabe não deixar vestígios”, desconversa.

Um drinque no inferninho Ao mesmo tempo que a Galeria Malcon tornou-se um ponto de prostituição, a busca pelo prazer e pela exposição humana é o que mantém o local vivo. As portas, de números nem sempre sequenciais, surpreendem quem procura pelo prazer de um momento fugaz. Corpos que se vendem por, no máximo, R$ 50, estão em quartos sem ventilação, ambientes malcheirosos e pouco iluminados, com garrafas de álcool espalhadas pelo chão e cortinas de seda que dariam inveja a música “Menina Veneno”, do cantor oitentista Ritchie. As salas, que antes eram comerciais, hoje são chamadas de “inferninhos”.

As pessoas têm medo de entrar aqui. Virou um prédio sem luz.

PROSTITUIÇÃO// OUTROS LUGARES ONDE VOCÊ NÃO DEVE IR

RUA AUGUSTA

O ponto de encontro do sexo fáciil nas madrugadas de São Paulo chama-se Rua Augusta, na região central da cidade. Prostitutas de luxo e travestis dividem a clientela com preços que variam de R$ 50 até R$ 500.

Há três anos, a Rua Augusta sofre um processo de expansão imobiliária que tem afastado gradativamente as prostitutas do local.

MEDIUM.COM/@DESINTERESSANTEJANEIRO ‘15

N°1

4443

VIDAS SEM VIDALuiz Felipe MoniazziADVOGADO

LUGARES ONDE VOCÊ NÃO DEVE IR: GALERIA MALCON

EDIÇÃO // ANELISE ZANONI

FOTOGRAFIA // MARIANA CARLESSO

COLABORAÇÃO // JULIANA MUTTI

SÃO PAULo RIO DE JANEIROVILA MIMOSA

O mais famoso local de prostituição carioca é famoso por suas lendas urbanas e suas músicas. Os sambistas Dicró, Moreira da Silva e Zeca Pagodinho já cantaram a vila em verso e prosa em suas canções.

O local é considerado um dos mais pobres do Rio de Janeiro e é frequentado por pessoas com menor poder aquisitivo. e nível de escolaridade.

BRUNA SURFISTINHAMARJá deu o que tinha que dar, né? DIVULGAÇÃO

DESINTERESSANTE

DESPERDIÇANDODESPERDIÇANDO

DESMITIFICANDO DESMITIFICANDO

DESINTERESSANTE

Esqueça o ambiente calmo e monótono de uma redação jornalística. Deixe de lado

as fontes que o repórter conversou por telefone. Ignore o email enviado pela assessoria de imprensa do tão sonhado entrevistado do velho jornalista. Se você acredita que “tiro, porrada e bomba” não são meros versos musicais do hit do momento, e sim um ideal na profissão, você é um adepto do aclamado “jornalismo de guerra”, aquele em que o jornalista vive intensamente o fato. As matérias no limite do perigo estão ganhando cada vez mais espaço nas mídias com coberturas de guerras e reportagens especiais em locais de difícil acesso.

tiro: repórter à prova de balas

Um dos casos de jornalistas que colocaram sua vida em risco em prol da reportagem foi a repórter Nadja Haddad, de 34 anos. Em 2005, ainda contratada pela Bandeirantes, a jornalista foi vítima de uma bala perdida enquanto cobria um tiroteio no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Atingida dentro do carro da produção enquanto se preparava para colocar o colete de proteção, Nadja teve perfurações no pulmão e sofreu hemorragia interna. A bala passou por poucos milímetros da coluna, o que seria fatal para sua sobrevivência. “Foi um momento muito difícil da minha carreira. Pensei em abandonar a carreira, fazer outra coisa na televisão”, disse ela.

Nadja, que até aquele momento não havia passado por nenhuma situação perigosa no jornalismo, repensou toda a sua carreira. “Eu precisei avaliar tudo. Pensar na minha família, nos meus amigos. Me imaginei indo pra pauta e não sabendo se ia voltar. Tinha medo de tudo, fiquei um bom tempo dando prejuízo pra emissora sem gravar nada”, recorda a apresentadora. A jornalista, que hoje é participante fixa do “Programa do Ratinho”, no SBT, se recuperou do acidente com rapidez. Mesmo não sofrendo com nenhuma sequela, Nadja ausentou-se das reportagens de rua e dedicou-se a carreira de apresentadora de bancada, passando pelos programas “Video News” e “Band Zoo”, ambos da Bandeirantes. “O aprendizado como repórter me deu estofo para ser apresentadora. Aquela experiência foi um divisor de águas pra mim, mudou toda a minha visão de

mundo”, resumiu a contratada do SBT, que considera aquela experiência a “maior e mais intensa que enfrentei na profissão”.

porrada: focas amestradas

A busca pela informação no ângulo impreciso e corajoso atrai os novatos no campo jornalístico. Carinhosamente apelidados de “focas”, os iniciantes na profissão buscam novos caminhos dentro da rotina profissional. Segundo o estudante de jornalismo da Unisinos, Pedro de Brito, de 20 anos, a liberdade é fundamental para uma cobertura arriscada, mas afirma que não encararia o perigo em busca da informação. “Eu não arriscaria a minha vida na busca por um furo, mas acho que se a pessoa tem disposição e vontade, ela deve exercer isso com toda a liberdade possível. Esse é um trabalho importante que muitos não topam, como é o meu caso”, disse o estudante.

Tarcila Mendes, estudante de jornalismo da PUCRS de 21 anos, pensa diferente. As coberturas em que o jornalista fica exposto ao perigo são, segundo ela, “mais motivadoras e exigem os melhores profissionais”. Tarcila salienta que só iria para este tipo de cobertura se enxergasse uma motivação maior. “Tem que ter relação com o ideal do profissional, com a convicção de que essa cobertura é definitiva para um mundo melhor”, declarou a aluna.

BOMBa: O SOUVENIR DE TARIQ Para o estudante de jornalismo da Unisinos, Pedro Kobielski, de 21 anos, o sonho de todo o correspondente de guerra é levar um tiro. “É uma marca, um prêmio. Como se fosse um troféu”, brinca o aluno. No caso do correspondente da BBC no Oriente Médio, Tariq Saleh, de 39 anos, as lembranças de uma cobertura no Egito deixaram marcas além da memória. Acostumado com coberturas como a Primavera Árabe, no Cairo, em 2010, Saleh foi atingido por um tiro de escopeta em um confronto entre manifestantes e a polícia local. O jornalista leva consigo, até hoje, um estilhaço de bala alojada em seu corpo. “É um belo souvenir. Só notei que eu carregava o estilhaço comigo, depois de algum tempo”, relembra o repórter. Saleh afirma que o Egito é um dos dez países mais perigosos para se trabalhar como jornalista no mundo. “O risco do correspondente ser atingido por uma bomba, por exemplo, é muito grande. Com o tempo a gente aprende a se posicionar em uma cobertura de guerra”, frisou o correspondente. A coragem sempre foi aliada do jornalista. Seja para fazer aquela pergunta indiscreta para o entrevistado ou para comer os canapés no saguão da coletiva de imprensa. No caso do jornalismo de guerrilha, se você decidir se enveredar por este caminho, é melhor lembrar os versos de “Beijinho no Ombro”, da funkeira Valesca Popozuda, acreditando em Deus e fazendo ele de escudo. Mesmo que você seja ateu. Afinal, o fazer jornalístico é só pra quem tem disposição.

LADO D

Jornalistas se arriscam pelo furo de reportagem e rompem as barreiras entre o pessoal e profissional.

Afinal, o risco motiva ou inibe a busca pela informação?REPORTAGEM // GUILHERME ROVADOSCHI

TIRO, PORRADA E BOMBA

MEDIUM.COM/@DESINTERESSANTEJANEIRO ’15

N°1

2827

QUANDO O JORNALISTA VIRA LEAD A busca pela melhor matéria, pela imagem exclusiva e pela entrevista polêmica, por vezes, acabam trazendo problemas para os profissionais da notícia. Acompanhe alguns casos em que o jornalista foi o protagonista do próprio lead - o local da reportagem onde está a principal informação.

a morte de tim lopes

a cocaína de cabrini

O CHOQUE DE LASIER (HAHAHAHAHA!)

O jornalista gaúcho do programa dominical Fantástico foi encarregado de produzir uma reportagem sobre a ligação dos bailes funks com o tráfico carioca na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, em 2002. Tim, que acabou descoberto por traficantes do local, foi torturado, esquartejado e queimado. A partir deste fato, a Rede Globo passou a tomar uma maior precaução quanto as suas reportagens investigativas.

Nem só de histórias tristes vive o jornalismo. Em 1996, o então comentarista do Jornal do Almoço, Lasier Martins, em visita à Festa da Uva, ficou marcado por levar um choque ao encostar em um expositor com uvas - digamos - elétricas. Lasier não sofreu sequelas, entrentanto, a cena do fatídico acidente virou hit no Youtube - para desespero do agora senador pelo estado do Rio Grande do Sul.

O experiente repórter Roberto Cabrini se envolveu em uma grande confusão no ano de 2008. O jornalista, que estava na Rede Record, foi preso após uma blitz na saída de uma favela na Zona Sul de São Paulo. Motivo: porte de mais de dez gramas de cocaína. O jornalista passou uma noite na cadeia e alegou estar produzindo uma matéria sobre o tráfico na região. Três anos após o ocorrido, a investigação constatou que a droga foi plantada no carro de Cabrini por um delegado da região para desqualiificar o trabalho da reportagem.