Descartes Saussure

10
CDD: 401 A Concepção Cartesiana de Linguagem ENÉIAS FORLIN Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP [email protected] Resumo: Seguindo a sugestão de estudiosos como Roger Lefèvre e Jean-Luc Marion, este artigo busca tecer uma comparação entre a concepção cartesiana de linguagem e aquela de Ferdinand Saussure, buscando elucidar as semelhanças e as diferenças que há entre estas duas concepções. Neste percurso será possível estabelecer também uma maior precisão dos conceitos cartesianos de pensamento, representação e linguagem, bem como das relações que se estabelecem entre eles no contexto da filosofia cartesiana. Palavras-chave: Pensamento. Representação. Linguagem. Como é sabido, Descartes quase não tematiza a linguagem e há mesmo pouquíssimas referências à linguagem na obra cartesiana. Há uma única carta, onde a linguagem é a questão central. Trata-se de uma carta de 20 de novembro de 1629, endereçada a Mersenne. Nela, entretanto, Descartes não expõe sua concepção da linguagem, mas, basicamente, critica o projeto de uma língua universal, sugerindo que ela depende da “verdadeira filosofia” e, portanto, da aquisição da verdadeira ordem para filosofar 1 . 1 In Oeuvres de Descartes, AT I. pp. 76-82. Todas as obras de Descartes serão citadas segundo a edição de Charles Adam e Paul Tannery, Oeuvres de Descartes, 11 vols., Paris, Vrin, 1973-1978, indicada pelas iniciais AT, seguidas do número do volume. A tradução para o português foi retirada da edição Descartes – Obras Incompletas, São Paulo, Abril Cultural, 1983 (tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.). De maneira geral, essa será a edição utilizada sempre que citarmos em português trechos das Meditações Metafísicas e das Objeções e Respostas, bem como do Discurso do Método e das Paixões da Alma. Para as citações em português do texto dos Princípios da Filosofia utilizaremos uma edição de Lisboa, da Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

description

.

Transcript of Descartes Saussure

  • CDD: 401

    A Concepo Cartesiana de Linguagem ENIAS FORLIN Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

    [email protected]

    Resumo: Seguindo a sugesto de estudiosos como Roger Lefvre e Jean-Luc Marion, este artigo busca tecer uma comparao entre a concepo cartesiana de linguagem e aquela de Ferdinand Saussure, buscando elucidar as semelhanas e as diferenas que h entre estas duas concepes. Neste percurso ser possvel estabelecer tambm uma maior preciso dos conceitos cartesianos de pensamento, representao e linguagem, bem como das relaes que se estabelecem entre eles no contexto da filosofia cartesiana. Palavras-chave: Pensamento. Representao. Linguagem. Como sabido, Descartes quase no tematiza a linguagem e h mesmo

    pouqussimas referncias linguagem na obra cartesiana. H uma nica carta, onde a linguagem a questo central. Trata-se de uma carta de 20 de novembro de 1629, endereada a Mersenne. Nela, entretanto, Descartes no expe sua concepo da linguagem, mas, basicamente, critica o projeto de uma lngua universal, sugerindo que ela depende da verdadeira filosofia e, portanto, da aquisio da verdadeira ordem para filosofar1.

    1 In Oeuvres de Descartes, AT I. pp. 76-82. Todas as obras de Descartes sero citadas segundo a edio de Charles Adam e Paul Tannery, Oeuvres de Descartes, 11 vols., Paris, Vrin, 1973-1978, indicada pelas iniciais AT, seguidas do nmero do volume. A traduo para o portugus foi retirada da edio Descartes Obras Incompletas, So Paulo, Abril Cultural, 1983 (traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.). De maneira geral, essa ser a edio utilizada sempre que citarmos em portugus trechos das Meditaes Metafsicas e das Objees e Respostas, bem como do Discurso do Mtodo e das Paixes da Alma. Para as citaes em portugus do texto dos Princpios da Filosofia utilizaremos uma edio de Lisboa, da

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • Enias Forlin 50

    Todavia, h, em vrias obras de Descartes, algumas referncias discretas funo das palavras, que, por mais dispersas e pontuais que sejam, so suficientes para traar um perfil geral da concepo cartesiana da linguagem. De modo geral, as palavras so, para Descartes, signos institudos pelo homem para expressar seus pensamentos. Como tal, eles so arbitrrios e no possuem nenhuma relao de semelhana com as coisas que representam. isso que se depreende das afirmaes que aparecem na quinta parte do Discurso do Mtodo (onde, inclusive, ele fala da linguagem como trao distintivo entre o homem e os animais irracionais)2, nos Princpios, 74 da Parte I e 197 da Quarta Parte3, nas Paixes da Alma, 504, nas primeiras pginas do Le Monde5 e na Diptrica6. A correspondncia de Descartes tambm est pontilhada de breves menes

    Guimares Editores, 1989 (traduo de Alberto Ferreira); para o texto das Regras para Direo do Esprito utilizaremos tambm uma edio de Lisboa, Edies 70, 1997 (traduo de Joo Gama). Quanto aos demais textos de Descartes que no foram traduzidos para o portugus, faremos nossa prpria traduo.

    2 Ao passo que se houvesse outras [mquinas] que apresentassem semelhana com os nossos corpos e imitassem tanto nossas aes quanto possvel, teramos sempre dois meios muitos seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses, o primeiro que nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos pensamentos. Pois se pode muito bem conceber que uma mquina seja feita de tal modo que profira palavras (...) mas no que ela as arranje diversamente, para responder ao sentido de tudo o quanto se disser na sua presena, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos. (...) (Discours, AT VI, pp. 56-57). Do mesmo modo, nos diz Descartes, pode-se conhecer a diferena entre os homens e os animais: Pois uma coisa bem notvel que no haja homens to embrutecidos e to estpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que no sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de comp-las num discurso pelo qual faam entender seus pensamentos (Ibid., p. 57).

    3 Principes, AT IX, Premire Partie, p. 60; Quatrime Partie, p. 315. 4 Passions de lme, AT XI, 369. 5 AT XI, pp. 4-5 6 AT VI, p. 112.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • A Concepo Cartesiana de Linguagem 51

    funo das palavras: no Entretien avec Burman7; numa carta a Mersenne de 18 de Dezembro de 16298 e numa outra, tambm a Mersenne, de 22 de julho de 16419; ao Marqus de Newcastle, numa carta de 23 de novembro de 164610; a Chanut, numa carta de 1 de Fevereiro de 164711 ; e a Morus, numa carta de 05 de feve-reiro de 164912.

    7 Quando aprendo que a palavra rei significa poder soberano e guardo isso em minha

    memria, isto certamente feito pela memria intelectual, visto que entre estas trs letras e sua significao no h nenhum parentesco (AT V, p. 150).

    8 Mas quando vejo o cu ou a terra, isso no me obriga nunca a nome-los de uma maneira de preferncia a outra... (AT I, p. 103).

    9 ... pois as palavras, sendo inveno dos homens, sempre possvel servir-se de uma ou de vrias para explicar a mesma coisa (AT III, p. 417).

    10 Nesta carta, Descartes desenvolve uma argumentao similar quela j apresentada na Quinta Parte do Discurso (cf. nota 14): Enfim no h nenhuma de nossas aes exteriores, que possa assegurar queles que a examinam, que nosso corpo no somente uma mquina que se move por si mesma, mas que h tambm nela uma alma que tem pensamentos, exceto as palavras, ou outros signos feitos propsito de assunto que se apresentam, sem se relacionar a nenhuma paixo. (...) Pois, embora Montaigne e Charon tenham dito que h mais diferena entre um homem e outro do que entre um homem e um animal, jamais se encontrou, todavia, nenhum animal to perfeito que tenha usado algum signo para comunicar a outros animais alguma coisa que no tenha relao com suas paixes; e no h homem to imperfeito que no se utilize disso; de sorte que aqueles que so surdo e mudos inventam signos particulares, pelos quais exprimem seus senti-mentos (AT IV, pp. 574-575).

    11 Assim, quando se aprende uma lngua, juntamos as letras ou a pronncia de certas palavras, que so coisas materiais, com suas significaes, que so pensamentos (AT IV, p. 604).

    12 ...ainda no se observou, no entanto, nenhum animal que tenha chegado ao grau de perfeio para utilizar-se de uma verdadeira linguagem, isto , que nos marque pela voz ou por outros signos alguma coisa que possa referir-se de preferncia exclusivamente ao pensamento do que a um movimento natural; pois a palavra o nico signo e a exclusiva marca assegurada do pensamento escondido (encerrado) no corpo; ora, todos os homens, os mais estpidos e insensatos, mesmo aqueles que esto privados dos rgos da lngua e da palavra, servem-se de signos, enquanto que os animais no fazem nada de semelhante, o que se pode tomar pela verdadeira diferena entre o homem e o animal (AT V, pp. 278).

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • Enias Forlin 52

    No preciso muito esforo para ver na concepo cartesiana da lngua-gem um prenncio daquela que mais contemporaneamente seria desenvolvida por Saussure, no seu Curso de Lingstica Geral. o que prope Roger Lefvre, no seu livro Criticisme de Descartes13. Essa aproximao endossada por Jean-Luc Ma-rion, no seu livro Sur la Theologie Blanche de Descartes. Marion, porm, aponta para uma dificuldade: enquanto que para Saussure a relao de arbitrariedade se d no interior do signo entre o significante e o significado, em Descartes seria mais propriamente uma relao de exterioridade entre o signo e sua significao que, em linguagem moderna, chamado de referente. Entretanto, Marion se apressa em observar que se pode facilmente provar que, por significao, Descartes entende no o referente, mas, o que o signo nos faz conceber, isto , o significado, tal como em Saussure14.

    Desta forma, a diferena entre Descartes e Saussure parece reduzir-se a uma questo de nomenclatura. Tanto para Descartes quanto para Saussure a rela-o de arbitrariedade est entre a palavra e seu significado, apenas que, enquanto Descartes chama de signo exclusivamente a palavra, para Saussure, a palavra isoladamente chama-se significante, o seu conceito chama-se significado, sendo que signo a combinao de ambos15. Desta forma, o que para Descartes uma relao de exterioridade entre signo e significado, para Saussure se resume a uma relao interna ao prprio signo.

    Jean-Pierre Cavaille, no seu La Fable du Monde, no parece, entretanto, acreditar que a diferena entre Descartes e Saussure se reduza a uma mera questo de nomenclatura, mas se refere ao estatuto atribudo linguagem:

    Longe de ser um sistema autnomo, uma totalidade encerrada em si mesma, a linguagem, para Descartes no possui seno uma funo instrumental. Por um lado, ela se refere a uma realidade exterior, e, por outro, o sentido no lhe , propriamente falando, inerente: a significao no est contida nos signos, mas somente no esprito que os manipula e que permanece, portanto, profundamente independente da funo lingstica. De fato, a doutrina de Descartes, se bem prepara a lingstica

    13 Lefvre, 1958, p. 157. 14 Marion, 1981, p. 255, nota 21. 15 Saussure, 2003, pp. 79-81.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • A Concepo Cartesiana de Linguagem 53moderna, ao distinguir muito nitidamente o conceito de seu suporte sonoro, revela-se muito preocupada com suas prerrogativas com respeito ao real e a razo para ser a simples prefigurao deles, como o testemunha a importncia que a desempenha a funo referencial, e o postulado jamais colocado em causa da natureza no discursiva do pensamento.16

    Podemos concordar, em linhas gerais, com a avaliao de Cavaille, mas

    no exatamente pelas mesmas razes alegadas. Se para Descartes, diferentemente de Saussure, o signo lingstico exclusivamente a palavra, ento evidente que o significado no est contido nos signos, mas no esprito que os manipula. Saussure nada teria a objetar a Descartes se, tal como este, restringisse o nome de signo exclusivamente para a palavra. Tambm para Saussure e ele afirma isso explicitamente a palavra ou o som no passa de um instrumento do pensa-mento e no existe por si mesmo17. Em contrapartida, tampouco Descartes teria algo a objetar a Saussure se, tal como este, entendesse o signo pela combinao da palavra com seu significado. claro que neste caso a significao estaria contida nos prprios signos e, portanto, a relao de arbitrariedade se daria no interior do prprio signo, entre significante (a palavra) e significado (o conceito).

    De qualquer forma, o prprio Descartes, mesmo considerando como signo apenas a palavra, no considera que a linguagem se constitua num mero discurso de palavras. Pelo menos no que se refere linguagem humana, Des-cartes a considera fundamentalmente como sendo um discurso de significados expressos pelos signos. por isso que ele se espanta com o nominalismo ex-presso por Hobbes nas Terceiras Objees. Quando Hobbes lhe sugere que talvez o raciocnio possa ser entendido simplesmente como uma reunio e um encadeamento de nomes ligados pela palavra , de modo que nada con-cluiramos a respeito na natureza das coisas mas somente a respeito de suas denominaes18, Descartes responde-lhe que o raciocnio no sobre nomes, mas sobre as coisas significadas pelos nomes19. por isso que numa passagem da

    16 Cavaill, 1991, p. 79. 17 Ibid., p. 16. 18 AT IX, p. 138. 19 AT, IX, p. 139.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • Enias Forlin 54

    Quinta Parte do Discurso, Descartes no afirma que o trao distintivo entre, de um lado, os homens e, de outro, os autmatos ou os animais simplesmente a pala-vra; pelo contrrio, ele admite que se pode conceber uma mquina que seja feita de tal modo que possa proferir palavras20, e mesmo que h efetivamente alguns animais, tal como o papagaio, que so capazes de proferir palavras21. Todavia, o que distingue os homens tanto dos autmatos quanto dos animais que s os homens usam as palavras para declarar seus pensamentos, isto , s os homens so capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de comp-las num discurso pelo qual faam entender seus pensamentos22. Numa carta a Mersenne, de julho de 1641, Descartes afirma que nada poderamos exprimir por nossas palavras, quando entendemos o que dizemos, que, por isso mesmo, no seja certo que temos em ns a idia da coisa que significada por nossas palavras23.

    Isso indica, portanto, que no parece estar correta a interpretao de Ca-vaille de que, para Descartes, a linguagem possa se referir diretamente s coisas, de modo que a funo referencial desempenhe um papel central. Como vimos, a concepo cartesiana de que nada podemos exprimir por palavras sem termos a idia da coisa que significada por nossas palavras. A significao de nossas palavras nunca est diretamente nas coisas, mas nas idias ou conceitos das coisas. At porque, como afirma Descartes numa carta de 19 de janeiro de 1642 [a Gibeuf], no posso ter nenhum conhecimento do que exterior a mim, seno por meio das idias que tenho em mim24. Na linguagem humana, portanto, a cada palavra corresponde um pensamento (ou conceito, ou idia) que pode ou no corresponder a alguma coisa exterior. Sendo assim, nada mais contrrio concepo cartesiana de linguagem, fundada na filosofia do sujeito coisa pen-sante , que esclarecer a palavra pelo seu referente, isto , buscar a significao da

    20 ATVI, p. 56. 21 ATVI, p 57. 22 Ibid. 23 AT III, p. 393. 24 AT III, p. 474.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • A Concepo Cartesiana de Linguagem 55

    palavra diretamente na coisa a que ela se refere, sem passar pela mediao do conceito.

    Em suma, para Descartes, assim como para Saussure, a Linguagem humana no um mero discurso de palavras ligadas entre si, mas um discurso dos sig-nificados expressos por estas palavras. Apenas que Descartes chama de signos somente as palavras, enquanto que aquilo que Saussure chama de signo a combinao das palavras com seus significados. Tanto Descartes quanto Saussure falam de uma relao de no semelhana e de arbitrariedade entre a palavra e seu significado, apenas que, para Descartes, dado a sua definio de signo, tal relao se d entre signo (palavra) e o significado, e para Saussure, como o significado faz parte do signo, a relao se d no prprio interior dele, entre a palavra (que ele chama de significante) e o significado.

    Por outro lado, para Saussure, assim como para Descartes, a palavra, em si mesma, no passa de um instrumento do pensamento: o que significa dizer que, para ambos, palavra e pensamento no so a mesma coisa. Tanto para Saussure, quanto para Descartes, o pensamento no se reduz linguagem25.

    Apesar de tudo, Cavaille no parece estar errado quando afirma que, diferentemente de Saussure, a linguagem, para Descartes, no possui seno uma funo instrumental, que o discurso no seno um veculo do pensamento, e, como tal, permanece substancialmente estranho a este. que se, por um lado, para Descartes, assim como Saussure, a linguagem humana no uma mera associao de palavras, mas dos significados expressos por elas, por outro lado, para Descartes, diferentemente de Saussure, esses significados preexistem (ou podem preexistir) s palavras. Para Descartes, portanto, se palavra sempre expresso de uma idia, a idia, por sua vez, no precisa necessariamente ser expressa em palavras. Como afirma Descartes nos Princpios, ligamos nossas concepes a determinadas palavras a fim de exprimi-las oralmente26.

    Aqui est, precisamente, o que entra em choque com a concepo saus-sureana da linguagem. Para Saussure ainda que se possa admitir que o pensa-

    25 Saussure, 2003, pp. 130-132. 26 AT IX, Principes, Premire Partie, 74, p. 60.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • Enias Forlin 56

    mento preexista linguagem, isso no implica que idias, significados prontos, possam preexistir palavra. Tomado em si mesmo, o pensamento como uma nebulosa onde nada est necessariamente delimitado. No existem idias pre-estabelecidas, e nada distinto antes do aparecimento da lngua27. Tampouco os sons ou as palavras, por si ss, so entidades circunscritas de antemo. A subs-tncia fnica no mais fixa, nem mais rgida; no um molde a cujas formas o pensamento deve necessariamente acomodar-se, mas uma matria plstica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer os significantes dos quais o pensamento tem necessidade28 Desta forma, para Saussure, diferentemente de Descartes, o papel caracterstico da lngua frente ao pensamento no criar um meio fnico material para a expresso das idias, mas servir de intermedirio entre o pensamento e o som, em condies tais que uma unio conduza necessa-riamente a delimitaes recprocas de unidades29.

    por isso que, enquanto Descartes considera a palavra basicamente como uma coisa material, o som ou sua representao grfica, para Saussure, a pa-lavra no propriamente o som material, coisa puramente fsica, mas a im-presso psquica desse som30, que ele chama de imagem acstica. Por outro lado, tambm por isso que, enquanto que para Saussure, o pensamento consi-derado independentemente da linguagem objeto da psicologia31, para Descartes ele o objeto privilegiado da filosofia: a realidade do pensamento, sua existncia e sua natureza, no apenas so objetos de um conhecimento claro e distinto, como tal conhecimento mesmo o mais claro e distinto de todos, o primeiro e o mais fcil, a verdade que inaugura o edifcio do conhecimento humano.

    ***

    27 Saussure, 2003, p. 130. 28 Ibid. 29 Ibid., p. 131 30 Ibid., p. 80. 31 Ibid., p. 131.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • A Concepo Cartesiana de Linguagem 57

    A ttulo de concluso, podemos agora fazer um balano da concepo cartesiana de linguagem no contexto geral de sua filosofia, relacionando o conceito cartesiano de linguagem com os conceitos de pensamento e representao.

    Pensamento o conceito fundamental, o objeto privilegiado da filosofia cartesiana. Ele no se define por representao, mas, ao contrrio, a repre-sentao que se define a partir dele. Pensamento uma coisa, uma coisa distinta da matria, uma coisa em si mesma, uma res cogitans; portanto, uma substncia.

    Representao uma realidade meramente objetiva, isto , uma realidade enquanto objeto do pensamento; uma realidade, portanto, no e para o pensa-mento. Como tal, ela pode ou no corresponder a um objeto exterior, seja material (tal como os corpos) ou espiritual (tal como Deus); se corresponder, ela pode ou no represent-lo fielmente: a idia de Deus, por ser a mais clara e distinta de todas, representa fielmente seu objeto; as idias sensveis, por serem intrinsecamente obscuras e confusas, da unio da alma com o corpo, no apre-sentam as coisas exteriores tais como elas so em si mesmas.

    A linguagem o instrumento de que o pensamento se serve para expressar suas idias. Assim, a linguagem humana um discurso de significados expressos por signos. Se h palavras, portanto, h idias, visto que elas servem precisamente para expressar as idias. O inverso, entretanto, no verdadeiro: as idias no pressupem as palavras, mas so essencialmente percepes do intelecto e, como tais, essencialmente no discursivas.

    Como podemos notar, a filosofia cartesiana no uma filosofia da lin-guagem e nem mesmo, propriamente falando, uma filosofia da representao, mas ela , fundamentalmente, uma filosofia do sujeito. Sujeito entendido no como sendo ele prprio uma representao mais fundamental que acompanha todas as minhas representaes, mas como uma realidade em si mesma, uma coi-sa pensante, res cogitans, na qual e pela se formam todas as representaes. Sujeito entendido no como sendo ele prprio uma categoria lingstica, como uma palavra que s adquire significado, como todos os demais significados das pala-vras, no interior da linguagem, mas como uma realidade em si mesma, uma coisa pensante, res cogitans, que cria e se utiliza das palavras para expressar as suas idias.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

  • Enias Forlin 58

    Os desenvolvimentos da filosofia posteriores a Descartes foram progres-sivamente deslocando o foco de interesse, bem como suas anlises, primeira-mente, do sujeito da representao para a representao, e, por fim, da re-presentao para a linguagem que a expressa. Sem dvida, o prprio Descartes apontou para esta direo, tanto porque a representao e a linguagem no foram suficientemente exploradas por Descartes, quanto porque aquilo que ele mais explorou, a saber, a realidade do pensamento, suscitou, na histria da filosofia, mais dvidas e dificuldades do que o prprio Descartes poderia ter previsto.

    O recuo ctico que Descartes empreendeu, tratando a realidade de corpos materiais exteriores como sendo, antes de tudo, representaes na realidade pensante, acabou sendo completado, a partir de Kant, com um outro recuo ctico, que tratava a prpria realidade pensante no horizonte da representao, sem se pronunciar sobre a realidade em si mesma do pensamento. Mais contemporaneamente, sobretudo a partir da criao da lingstica, a dificuldade de se entender as representaes ou idias independentes da linguagem, e, por outro lado, a necessidade de se entender a lngua como um produto social, e no como um mero processo psicolgico na interioridade de uma conscincia, levou a filosofia a concentrar suas anlises no fenmeno da linguagem. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CAVAILL, J.-P., Descartes, La Fable du Monde. Paris: Vrin, 1991.

    DESCARTES, R. Oeuvres Completes. Publies para Charles Adam & Paul Tannery, 11v. Paris: Vrin, 3ed., 1996.

    SAUSSURE, F. Curso de Lingstica Geral. Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro Blikstein. So Paulo: Cultrix, 2003.

    LEFVRE, R. Le Criticisme de Descartes. Paris: PUF, 1958.

    MARION, J.-L. Sur la Thologie Blanche de Descartes. Paris: Vrin, 1981.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 14, n. 1, p. 49-58, jan.-jun. 2004.

    A Concepo Cartesiana de LinguagemCAMPINAS, SPREFERNCIAS BIBLIOGRFICAS