Deleuze

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27 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.22, n.1, p. 27-37, jan./abr. 2012 1 INTRODUÇÃO O s signos de certa maneira são as palavras que usamos para nos comunicar. Ao falar repomos o mundo em palavras e pensamentos, com guras de linguagem que nem percebemos, como as metáforas, as metonímias, as elipses, hipérboles e tantas outras. Na canção de Chico Buarque, encontramos a prima; será rima? Entender o mundo como um conjunto de signos, é uma maneira de sair de certas posições especulares e avançar em formas mais ricas de representar, pois na representação sígnica, algo responde por outra coisa, implicando uma interpretação no plural. Por exemplo, a luz da sinaleira em vermelho faz às vezes de um policial que pára o trânsito. A luz vermelha é um signo e signica “Pare”. Em outras situações, a luz vermelha pode ter outros signicados. As cores, como as palavras signicam através de convenções sociais. Com isso já estamos entendendo que a semiótica de Peirce é referida não apenas às palavras, mas a quase tudo o que existe no mundo. SIGNO para Peirce é então qualquer coisa de qualquer espécie que representa uma outra coisa, chamada de OBJETO do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real, efeito este que é chamado de INTERPRETANTE do signo, como elucida Santaella (2006). Nota-se, na denição de Peirce, uma estrutura triádica, de três elementos: o signo (representamem porque representa), o objeto representado e a interpretação propriamente dita que é o interpretante. A referência bibliográca de um texto é um signo; ela está no lugar do texto; por isso é um ícone; assemelha-se ao texto porque contém elementos do texto como título, autor, resumo; da mesma forma chamamos ícone a pasta amarela e a impressora desenhados em nosso computador, signos-ícones com que nos movimentamos nas telas do computador. Mas dizemos também que tal senhora é um ícone da educação no município, isto é, um símbolo ou um exemplo a ser notado (é que todo símbolo implicita também um índice e um ícone). Uma rosa vermelha simboliza a paixão enquanto uma pomba é o símbolo da paz. O símbolo é um signo de terceiridade, como pode ser observado no quadro abaixo. Mas o que isto quer dizer? Por que o símbolo não é um argumento? Há signos com características arbitrárias (caso do símbolo) e outros que têm a força da lei (como o argumento); ambos - símbolo e argumento - são signos de relação da terceiridade, mas um está mais baseado em convenções sociais enquanto outro se expressa quase por um silogismo ou um raciocínio lógico, como o próprio nome diz (argumento). Todos os substantivos de uma língua, por exemplo, são símbolos, pois a palavra é essencialmente simbólica. Vejamos a tabela de sistematização dos signos, tal como ela freqüentemente aparece nos textos comentadores de Peirce para visualizarmos as modi cações que Deleuze fará nela, com enormes conseqüências no delineamento de uma pragmática menor (como é a expressão de CARDOSO JR., 2005). CHARLES PEIRCE, GILLES DELEUZE E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Solange Puntel Mostafa* RESUMO Discute a filosofia pragmática de Charles Peirce e sua teoria dos signos, bem como as modificações introduzidas por Gilles Deleuze em tal teoria para ser possível apresentar a apropriação que a ciência da informação tem feito de ambas. Destaca a teoria dos signos peircianos como signos espaciais apropriados para a Ciência da Informação e os signos deleuzianos do tempo como apropriados à Filosofia da Ciência da Informação. Palavras-chaves: Semiótica. Charles Peirce. Gilles Deleuze. Filosofia. Ciência da Informação. * Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professora da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, SP. E-mail: [email protected] artigo de revisão

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Sobre Deleuze e a sua construção da linguagem

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    1 INTRODUO

    Os signos de certa maneira so as palavras que usamos para nos comunicar. Ao falar repomos o mundo em palavras e pensamentos, com fi guras de linguagem que nem percebemos, como as metforas, as metonmias, as elipses, hiprboles e tantas outras. Na cano de Chico Buarque, encontramos a prima; ser rima?

    Entender o mundo como um conjunto de signos, uma maneira de sair de certas posies especulares e avanar em formas mais ricas de representar, pois na representao sgnica, algo responde por outra coisa, implicando uma interpretao no plural. Por exemplo, a luz da sinaleira em vermelho faz s vezes de um policial que pra o trnsito. A luz vermelha um signo e signifi ca Pare. Em outras situaes, a luz vermelha pode ter outros signifi cados. As cores, como as palavras signifi cam atravs de convenes sociais. Com isso j estamos entendendo que a semitica de Peirce referida no apenas s palavras, mas a quase tudo o que existe no mundo. SIGNO para Peirce ento qualquer coisa de qualquer espcie que representa uma outra coisa, chamada de OBJETO do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real, efeito este que chamado de INTERPRETANTE do signo, como elucida Santaella (2006). Nota-se, na defi nio de Peirce, uma estrutura tridica, de trs elementos: o signo (representamem porque representa), o objeto representado e a interpretao propriamente dita que o interpretante.

    A referncia bibliogrfi ca de um texto um signo; ela est no lugar do texto; por isso um cone; assemelha-se ao texto porque contm elementos do texto como ttulo, autor, resumo; da mesma forma chamamos cone a pasta amarela e a impressora desenhados em nosso computador, signos-cones com que nos movimentamos nas telas do computador. Mas dizemos tambm que tal senhora um cone da educao no municpio, isto , um smbolo ou um exemplo a ser notado ( que todo smbolo implicita tambm um ndice e um cone). Uma rosa vermelha simboliza a paixo enquanto uma pomba o smbolo da paz. O smbolo um signo de terceiridade, como pode ser observado no quadro abaixo. Mas o que isto quer dizer? Por que o smbolo no um argumento? H signos com caractersticas arbitrrias (caso do smbolo) e outros que tm a fora da lei (como o argumento); ambos - smbolo e argumento - so signos de relao da terceiridade, mas um est mais baseado em convenes sociais enquanto outro se expressa quase por um silogismo ou um raciocnio lgico, como o prprio nome diz (argumento). Todos os substantivos de uma lngua, por exemplo, so smbolos, pois a palavra essencialmente simblica.

    Vejamos a tabela de sistematizao dos signos, tal como ela freqentemente aparece nos textos comentadores de Peirce para visualizarmos as modifi caes que Deleuze far nela, com enormes conseqncias no delineamento de uma pragmtica menor (como a expresso de CARDOSO JR., 2005).

    CHARLES PEIRCE, GILLES DELEUZE E A CINCIA DA INFORMAO

    Solange Puntel Mostafa*

    RESUMO Discute a filosofia pragmtica de Charles Peirce e sua teoria dos signos, bem como as modificaes introduzidas por Gilles Deleuze em tal teoria para ser possvel apresentar a apropriao que a cincia da informao tem feito de ambas. Destaca a teoria dos signos peircianos como signos espaciais apropriados para a Cincia da Informao e os signos deleuzianos do tempo como apropriados Filosofia da Cincia da Informao.

    Palavras-chaves: Semitica. Charles Peirce. Gilles Deleuze. Filosofia. Cincia da Informao.

    * Doutora em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil. Professora da Universidade de So Paulo (USP), campus de Ribeiro Preto, SP. E-mail: [email protected]

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    2 AS MODIFICAES DELEUZIANAS EM PEIRCE

    Deleuze parte desta tabela, modifi cando quer a nomenclatura, quer o sentido de alguns signos, quando no acrescentando outros signos e categorias, de acordo com sua lgica do acontecimento e das multiplicidades, infl exes deleuzianas indicadas e aprofundadas respectivamente em Cardoso Jr (2005; 2006). Como o autor prefere dizer, o encontro entre Peirce e Deleuze marcado por linhas de fora e no um encontro to casustico: [...] quando Deleuze chega a Peirce, sua preocupao com os signos e a semitica j vem de longe, da dcada de 60, com os livros e Proust e os signos e Espinosa e o Problema da Expresso [...] (CARDOSO JR., 2006, p 8).

    A essa primeira linha de fora que norteia o encontro entre Deleuze com Peirce, vem se somar a questo do interesse de Deleuze pelo cinema, o que o faz procurar uma semitica de imagens para interpretar os signos do cinema, que ultrapassasse o anlogo lingstico do estruturalismo francs, especialmente de Christina Metz em A signifi cao do cinema. E a semitica de Peirce era, no entender de Deleuze [...] a mais extraordinria classifi cao das imagens e dos signos [...]. Justamente porque para Deleuze (1990 p. 43) a fora de Peirce, quando inventou a semitica, esteve em conceber os signos partindo das imagens e de suas combinaes, e no em funo de determinaes j lingsticas.

    Uma terceira linha de fora mencionada em Cardoso Jr. (Idem) do encontro entre Deleuze e Peirce a admirao do fi lsofo francs pelo empirismo ingls e pelo pragmatismo americano, como uma fi losofi a de transformao do homem e do mundo. Aqui Deleuze se encontra com as

    bases ontolgicas de Peirce e em sua fi losofi a cosmognica, ambos tm preocupaes com as bases genticas dos signos.

    Para Peirce a tricotomia seria universal e se constituiria neste elemento gentico, pelo qual todo signo se autogera, num processo incessante: um signo representa um objeto na mente de algum; essa representao por sua vez, (o interpretante) outro signo que tambm poder ser representado em outro objeto atravs de outra lgica (outro interpretante) e assim sucessivamente e infi nitamente, confi gurando o processo de semiose. J para Deleuze so essas relaes tridicas que precisam ser explicadas por um elemento gentico anterior a elas. Esse elemento para Deleuze o tempo ou o todo de relaes. O todo acontecimental nas explicaes de Cardoso Jr. (2005, p.475). Deleuze vai entender o signo em expresses de afeco, percepo/ao e relao em paralelo com a tricotomia peirciana. Mas vai tambm extrapolar a tricotomia ao necessitar de novos signos para falar do tempo, j que identifi ca em Peirce apenas os signos do movimento. Uma conseqncia imediata do aprofundamento exigido por Deleuze na anlise da semitica de Peirce, a suspeita levantada por Deleuze (1990, p. 44) sobre o cognitivismo de Peirce: [...] possvel que Peirce se revele to lingista quanto os semilogos [...].

    3 A SUSPEITA DE DELEUZE CONTRA PEIRCE

    Por que ser Deleuze levanta essa suspeita contra Peirce, a de que o pragmatista americano seja um linguista? Talvez seja porque, embora Peirce tenha iniciado o projeto da semitica pelas imagens e no pela linguagem, os signos

    O signo em relao

    Categoria A si mesmo Ao objeto Ao interpretante

    Primeiridade Qualissigno (mera qualidade) cone RemaSecundidade Sinsigno (existente concreto) ndice DicissignoTerceiridade Legissigno (lei geral) Smbolo Argumento

    Quadro 1 - O signo em relao

    Fonte: Modifi cado de Santaella (2006 p. 62)

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    Charles Peirce, Gilles Deleuze e a cincia da informao

    do espao tratados por Peirce so signos que em ltima anlise sero descritos pela linguagem, numa espcie de coextenso entre pensamento e linguagem. Na desconfi ana de Deleuze (1990), Peirce inicia com as imagens ou os signos imagticos, mas talvez Peirce no teria, pois, mantido por muito tempo sua posio inicial, teria desistido de constituir a semitica como cincia descritiva da realidade(Lgica).

    Com a Lgica entre parnteses, Deleuze quer dizer que Peirce no explorou at o fi m, a funo cognitiva do signo, onde a realidade sempre mais ampla do que a realidade perceptiva. Peirce teria limitado a expanso dos signos em sua expresso lingstica. Se considerarmos outros autores do estruturalismo francs como Roland Barthes, em sua retrica da imagem, veremos que o signo lingstico das imagens publicitrias serve de ancoragem do sentido, conforme elucida Pinheiro (2006). Na discusso com o estruturalismo francs, Deleuze esclarece que tambm entende ser a lingstica apenas uma parte da semitica ou daquela cincia descritiva da realidade, mas [...] j no queremos dizer, como para a semiologia, que h linguagens sem lngua, mas que a lngua s existe em reao a uma matria no-lingstica que ela transforma (DELEUZE, 1990, p. 43, grifo do autor).

    Ao levantar a suspeita de que [...] possvel que Peirce se revele to lingista quanto os semilogos [...], Deleuze (1990, p.44) desconfi a que, para Peirce, [...] os signos lingsticos talvez sejam os nicos a constituir um conhecimento puro, quer dizer, a absorver todo o contedo da imagem enquanto conscincia ou apario. (Idem). Deleuze comenta ainda que os signos lingsticos [...] no deixam subsistir matria irredutvel ao enunciado, e reintroduzem assim uma subordinao da semitica lngua.

    Isso acontece, continua Deleuze, porque Peirce apresenta as trs imagens ou os trs nveis de percepo como fato, ao invs de deduzi-los. Seria preciso, ento um grau zero de onde derivar a percepo ou a primeiridade. esse zero que Deleuze entende como um modo de ser do tempo, uma categoria que tem status cosmolgico e evolucionrio.

    o tempo ou o todo de relaes ou ainda o todo acontecimental que est na base gentica dos signos e que foi desconsiderada por Peirce; para Deleuze no h objeto puramente atual.

    Todo atual rodeia-se de uma nvoa de imagens virtuais. J Deleuze defi ne a fi losofi a como uma teoria das multiplicidades, ele vai dizer que toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. (DELEUZE, 1996, p. 49).

    Para Peirce, as categorias so fenmenos, isto , aparecem para a mente de algum; da o desprezo por conceitu-las fi losofi camente. Mas para Deleuze, [...] o pensamento no se defi ne pela mente humana. A funo pensar no preenchida totalmente pela atividade pura de conhecer, pensar inclui uma efi cincia prtica que, esta sim, est pressuposta numa funo cognitiva. (CARDOSO JR., 2005, p. 476). Cardoso Jr. conclui, ento, a efi cincia pragmtica do signo e sua funo cognitiva no est centrada no conhecimento do objeto.

    Peirce defi ne o signo como uma imagem que vale por outra imagem (seu objeto), com referncia a uma terceira imagem que constitui o interpretante dele, sendo este por sua vez, um signo, ao infi nito (DELEUZE, 1990, p. 44). Estaria tudo bem se Deleuze concordasse com esta defi nio comentada na passagem acima, mas ele adverte que sua forma de entender o signo bem diferente dessa, uma vez que a defi nio peirciana no contempla uma imagem-percepo como um grau zero na deduo: [...] haver uma zeroidade antes da primeiridade de Peirce (Idem, p. 45). Ora a zeroidade no uma quarta categoria, como esclarece Cardoso Jr., mas est contida nas outras trs [...] apenas na medida em que um acontecimento exterior ou virtual com relao a suas atualizaes espao-temporais (CARDOSO JR., 2005, p. 474).

    Amparado na riqueza do empirismo ingls onde a teoria das relaes a pea-chave da lgica, Deleuze entende que o todo de relaes preconizado na lgica peirciana um todo fechado e por isso apropriado para as imagens movimento. Da ter sido possvel a Deleuze certo paralelismo entre a expresso do signo (signos da afeco, signos da percepo/ao e signos de relao) com a tabela tricotmica de Peirce. Mas quando o todo de relaes aberto ao tempo a prpria relao passa por variaes o que extrapola a classifi cao dos signos de Peirce. quando Deleuze afi rma que precisava de novos signos para este novo estado de coisas onde os signos se dispersam e os ndices se confundem Deleuze (1990 apud CARDOSO JR, 2005, p. 462).

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    Solange Puntel Mostafa

    Neste momento, Deleuze distingue sua defi nio do signo daquela de Peirce: entendemos pois, o termo signo no sentido bem diferente do de Peirce: uma imagem particular, que remete a um tipo de imagem, seja do ponto de vista de sua composio bipolar, seja do ponto de vista de sua gnese (DELEUZE, 1990, p. 46). Para Deleuze todas as imagens do paralelismo com Peirce, isto , a imagem afeco (primeiridade de Peirce), a imagem-ao (secundidade) e a imagem-relao (terceiridade) se deduzem da imagem movimento como matria.

    Aqui preciso entender que Deleuze trabalha na qudrupla identidade entre matria-movimento-imagem-luz. De resto, Peirce tambm no distingue matria e mente; a matria hbito cristalizado. Imagem para Deleuze matria. Matria luz, portanto imagem. Imagem-movimento ser um dos conceitos importantes que Deleuze criar para falar das imagens cinematogrfi cas. Para estas imagens-movimento, Deleuze (1990, p. 47) entende que uma lgica das relaes parece encerrar as transformaes da imagem-movimento determinando as mudanas correspondentes ao todo. Mas outros signos colocariam em questo o conjunto das imagens-movimento. Ele explica, ento, que em suas anlises de imagens cinematogrfi cas, o intervalo de movimento em algumas imagens fazia aparecer outra imagem que rompia com o vnculo sensrio motor, isto , com o prolongamento natural de umas imagens em outras fazendo surgir [...] toda uma srie de novos signos constitutivos de uma matria transparente ou de uma imagem-tempo irredutvel imagem-movimento. (DELEUZE, 1990, p. 48). Era a imagem-tempo que entrava em cena, e, para ela, Deleuze precisava romper com a tricotomia peirciana porque os signos do tempo estavam ausentes em Peirce e em sua tricotomia.

    No interior da tricotomia e referindo-se aos signos de movimento, Deleuze faz vrias modifi caes que o leitor poder acompanhar no item 2 do captulo Recapitulao das imagens e dos signos do livro de Cinema II (Imagem-tempo). A leitura de Cardoso Jr. no entanto, nos dois textos de que dispomos, indispensvel para o aprofundamento das bases e das especifi cidades tanto da semitica de Peirce quanto da de Deleuze.

    4 AS CONSEQUNCIAS DAS MODIFICAES DELEUZIANAS NA SEMITICA DE PEIRCE

    Signos pticos e sonoros puros, ou situaes ticas e sonoras puras so situaes que, segundo Deleuze (1990 p.28), [...] descobrem ligaes de novo tipo, que no so mais sensrio-motoras [...] tal o prolongamento muito especial do opssigno: tornar sensvel o tempo, o pensamento, torn-los visveis e sonoros. Mas o que signifi ca tornar o tempo visvel?

    Se voltarmos tabela de Peirce, temos trs signos para as generalizaes da terceiridade: legissigno (o signo em relao a si mesmo) smbolo (o signo em relao ao objeto) e argumento (o signo em relao ao interpretante). Nota-se que os signos da terceiridade em Peirce so signos de lei, pois em todos h necessidade de se chegar s generalizaes, ao conceito das coisas, conceito como algo que as representa. Se memorizamos que os trs nveis perceptivos em Peirce referem-se respectivamente qualidade, ao fato e lei, respectivamente (1, 2 e 3 ) ser fcil entender que agora, na terceiridade estamos no reino da legalidade. As palavras de uma lngua, por exemplo, so todas signos de lei, palavra-smbolo, palavra-prima, ser rima?

    Vemos na tabela de Peirce, que quando o signo de lei em si mesmo, temos o legssigno. Sendo uma lei, em relao ao seu objeto o signo um smbolo. O signo-smbolo no representa seu objeto por causa de alguma semelhana ou qualidade (cones) que ele tem com o referente, nem por alguma relao de fato com o objeto representado (ndices). O smbolo [...] extrai seu poder de representao porque portador de uma lei, que por conveno ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto (SANTAELLA, 2006, p.67). Acrescenta ainda a autora que, por esta razo [...] que o signo no uma coisa singular, mas um tipo geral (Idem).

    Se olharmos a tabela de Peirce no terceiro nvel de percepo, veremos que legsigno, smbolo e argumento correspondero, em Deleuze, marca/des-marca, smbolo e optssigno/sonssigno. Deleuze substituir o legsigno pela marca, e entender o smbolo sem qualquer ligao com o interpretante peirciano, colocando ainda os signos pticos e sonoros puros no lugar do argumento. Tudo

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    Charles Peirce, Gilles Deleuze e a cincia da informao

    isso traz enormes conseqncias tericas para a interpretao e a produo de sentidos.

    Na defi nio de Deleuze, para o nvel do legssigno, que ele denomina marca, nota-se que o autor substitui a lei pelo hbito, tirando vantagens de sua familiaridade com o empirismo ingls. O prprio Deleuze se encarrega do glossrio: Marca: designa as relaes naturais, isto , os aspectos sob os quais as imagens so ligadas por um hbito que faz passar de umas a outras. A des-marca designa uma imagem arrancada de suas relaes naturais. (DELEUZE, 1985, p. 266).

    Ao propor marcas e des-marcas como signos de relao de terceiridade ao invs de leg-signos, o que Deleuze est rejeitando a rigidez da lei e do convencionalismo histrico cultural, por entender que esta rigidez desacelera a difuso do signo. Ao tomar o hbito como causa sufi ciente da marca, o autor est entendendo a marca como signo de relaes naturais, sem interpretante (hbito), como lembra Cardoso Jr. (2005, p. 449). Deleuze exemplifi ca as marcas e des-marcas com os fi lmes de Hitchcock identifi cado por ele como cineasta das relaes mentais entre as imagens. a cmera, e no um dilogo, que explica por que o heri de Janela Indiscreta est com a perna quebrada (fotos de carros de corrida no seu quarto, a mquina fotogrfi ca espatifada) (CARDOSO JR.,2005 p. 247).

    J ao propor o signo dividual (no lugar de rema, na primeiridade de Peirce), Deleuze evita dizer que o dividual um signo com relao ao interpretante. Segundo Cardoso Jr., o termo interpretante parece a Deleuze [...] um termo muito comprometido com a representao, um termo por demais personalizante, que contraria a noo de afeto como defi nidora da primeiridade...Deleuze cuidadosamente evita utilizar o termo interpretante por querer fugir a seus perigos (CARDOSO JR., 2005, p. 428).

    Novamente o prprio Deleuze que pontua as distines de suas infl exes com relao s defi nies de Peirce: Smbolo: utilizado por Peirce para designar um signo que remete a seu objeto em virtude de uma lei. Empregado aqui para designar o suporte de relaes abstratas, isto , de uma comparao de termos independentemente de suas relaes naturais (DELEUZE, 1985, p. 166) grifo do autor.

    O smbolo como suporte de relaes abstratas perde a funo de representao, visto que o sentido explicativo, o que se diz da coisa, apenas um

    elemento entre outros, e menos importante que o uso operatrio (DELEUZE apud CARDOSO JR., 2005 p. 453). a, quando o interpretante se esfuma nas relaes entre as qualidades, (como a expresso de Cardoso Jr.) que as semiticas de Peirce e Deleuze perdem paralelismo, surgindo classes de signo inditas em Deleuze.

    Entram em cena os opsignos e sonsignos no lugar do signo argumento de Peirce (confi ra no Quadro 1). Opsignos e sonsignos so signos de relaes novas, signos de transio entre as imagens-movimento e as imagens-tempo; se os smbolos so expresses indiretas de um todo de relaes, os opsignos e sonsignos so expresses direta deste todo de relaes e, por isso, extrapolam a tabela de Peirce.

    Opsignos e sonsignos so signos de situaes ticas e sonoras puras. Brecha do movimento que faz aparecer o tempo, tornando-o visvel. Signos que no representam nada. Apenas apresentam o tempo diretamente. O tempo puro, o tempo em pessoa, como Deleuze gosta de dizer. Tempo apresentado pelas naturezas mortas de alguns cineastas ou por objetos que aparecem na cena da vida cotidiana: a bicicleta, o vaso, as naturezas mortas so as imagens puras e diretas do tempo; cada uma o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condies do que muda no tempo (DELEUZE, 1990, p. 28).

    Diz Deleuze (1990, p. 28) que o tempo pleno, quer dizer a forma inaltervel preenchida pela mudana. Coerente com sua fi losofi a da imanncia, Deleuze comenta que no h necessidade alguma de invocar uma transcendncia. Na banalidade da vida cotidiana, a imagem-ao e mesmo a imagem-movimento tendem a desaparecer em favor de situaes ticas puras [...] (DELEUZE, 1990, p. 28). Ele reconhece que o difcil saber em que medida uma imagem tica e sonora no ela mesma um clich, [...] quando muito, uma foto. (DELEUZE, 1990, p. 33). Responde que preciso juntar foras imensas, que no so nem da conscincia e nem sociais mas so foras de uma profunda intuio vital.

    Munido desta fora, o autor faz uma monumental pergunta: [...] por que pensa Peirce que tudo acaba com a terceiridade, com a imagem-relao e que no h nada alm disso? (DELEUZE, 1990, p. 47).

    Se a abertura deste artigo trouxe as palavras-rimas de Chico Buarque como signos

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    Solange Puntel Mostafa

    peircianos, o tempo inventivo de Caetano Veloso, como um dos deuses mais lindos e tambor de todos os ritmos, bem pode servir semitica deleuziana do cinema: um tempo-durao, um tempo-acontecimento, um devir-tempo compositor dos destinos. Como este tempo pode servir cincia da informao?

    5 REAFIRMANDO UMA CONSEQNCIA IMPORTANTE

    Ao falarmos do tempo, tambor dos destinos, estamos no corao da fi losofi a deleuziana, com conseqncias importantes para a relao entre o virtual e o atual. A Idia o mesmo que o Ser na ontologia deleuziana. A Idia virtual mas se atualiza na forma de conceitos fi losfi cos. Para isso, preciso admitir o tempo fora da sua espacialidade ou de sua subordinao ao movimento. preciso entender o tempo como multiplicidade intensiva.

    Quando o fi lsofo cobra de Peirce uma zona de percepo anterior primeiridade, de onde deduzir as trs categorias, tal zona, a zeroidade, corresponde a uma substncia mltipla cuja multiplicidade dada pelo tempo. No uma quarta categoria, esclarece Cardoso Jr. (2005 p.) pois no pertence ao mesmo nvel ontolgico que as demais; est mais para o virtual enquanto as trs categorias pendem para o atual.

    isto que d pragmtica deleuziana uma independncia em relao linguagem e aos signos lingsticos, pois o conhecimento proporcionado pelos signos um conhecimento prtico, no to extensivo linguagem. Falaremos ento em uma semitica do tempo a qual no est centrada no conhecimento do objeto; apenas os signos do movimento dependem da referncia ao objeto. O todo acontecimental do tempo garante a funo pragmtica dos signos para alm de sua funo lingstica.

    Deleuze distingue ento o objeto completo e o objeto inteiro; o completo apenas a parte ideal do objeto que, na Idia participa com outras partes de outros objetos; falta a ele as determinaes da existencial atual. Mas h uma outra parte do objeto que se encontra determinada pela atualizao. A diferenciao das idias inerente j que elas so vistas como multiplicidades intensivas ou sistemas de relaes diferenciais nas quais a diferentiaao

    (com t) inerente, j que as estruturas tm carter dinmico. A dinmica descrita em termos de um processo contnuo chamado diferenciao (com c) atravs do qual, as virtualidades se atualizam (DELEUZE, 2006, p. 295) As virtualidades existem como tendncias anteriores a qualquer efeito e, por isso, elas defi nem a imanncia do campo transcendental.

    Imanncia, campo transcendental, a relao entre o virtual e o atual, a perplicao das idias no campo transcendental, bem como as especifi cidades do enfrentamento que as trs formas de pensamento (cincia, arte e fi losofi a) fazem ao Caos, so apontamentos importantes, seno vitais nesta maneira deleuze-guattariana de fi losofar. A semitica peirciana bastante utilizada nas cincias da comunicao em linguagens hbridas de signos lingsticos e imagticos. Mas tambm na Cincia da informao, que, como cincia social que , tira todo o proveito de tal semitica, nem tanto por causa das imagens, do imagtico, mas por conta mesmo do signo lingstico, que central nessa cincia.

    Entretanto, quando nos movimentamos na fi losofi a deleuziana, pensar assume o estatuto de enfrentar o caos, num alinhamento que ultrapassa os signos peircianos, apropriados que so para pensar a cincia da informao, que como toda cincia est situada num tempo e num espao determinados. Mas para pensar a fi losofi a da cincia da informao, talvez tivssemos que entender as diferenas traadas por Deleuze e Guattari entre a Filosofi a, a Cincia e a Arte em seus modos de enfrentar o Caos, aps alguns exemplos de como a semitica de Peirce tem sido absorvida pela cincia da informao. Mas j possvel intuirmos que os signos peircianos so insufi cientes para desenvolver uma fi losofi a da cincia da informao, conquanto sejam bastante efi cientes para desenvolver a cincia da informao em seu plano de referncia.

    6 O PRAGMATISMO PEIRCIANO NA CINCIA DA INFORMAO

    Qual a vantagem em entendermos a informao como signo? Permite pensar a no transparncia da linguagem nos processos de sumarizao, indexao e recuperao da informao, referidos subrea de Organizao do Conhecimento. Isso j um avano em relao

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    Charles Peirce, Gilles Deleuze e a cincia da informao

    quelas teorias do conhecimento e do signifi cado como as teorias correspondentistas, pois a abordagem semitica tem a vantagem de colocar em relevo o intrincado processo de construo da signifi cao e de sua interpretao (LARA, 2006, p.28). Entretanto, no resolve todos os problemas. Justamente por ausncia do campo transcendental ou plano de imanncia do pensamento a fi m de capturar devires e, com isso, dar consistncia a conceitos fi losfi cos inovadores. Vale dizer, a mundos inteiramente novos.

    O pragmatismo peirciano na cincia da informao possibilita, entretanto, compreender a complexidade da linguagem humana e, portanto, da representao. O fato de no termos acesso ao mundo a no ser atravs de signos uma limitao de nossa espcie e ao mesmo tempo uma grande vantagem. A terceriedade de Peirce sinnima de signo, na medida em que ela comporta as outras duas; o carter da terceiridade, o da representao mediadora, mas o que signifi car? O que o signo, o que ele faz? Signifi car generalizar, isto , ganhar em poder explanatrio e perder a singularidade das coisas, como explica Pinto (1996).

    A informao com signo passou a confi gurar, inicialmente, na dcada de setenta, um tringulo baseado na relao tridica peirciana, em que o processo do conhecimento seria uma relao entre o sujeito ou processo perceptivo, os aparatos bibliogrfi cos/catlogos e os livros registrados na biblioteca, cada um desses elementos representando um vrtice no tringulo.

    O tringulo normalmente esboado para a trade peirciana pode ser representado como:

    Figura 1 Representao grfi ca do signo

    Fonte: Huang, 2006.

    A esse tringulo clssico conjugando os trs elementos, signo, objeto e interpretante, passou-se inicialmente representao da Informao-signo, como a seguir:

    Figura 2 Representao grfi ca do signo-informao

    Fonte: Huang, 2006.

    O tringulo proposto por Shera (2004 apud HUANG, 2006) na dcada de setenta, pareceu ingnuo, dada a complexidade que a construo sgnica acabou demonstrando. Mas nem por isso os estudos mais avanados tornam-se modelos inquestionveis. O pragmatismo na cincia da informao desenvolve-se nos pases escandinavos, na dcada de noventa, capitaneado talvez pela anlise de domnio, tal com aparece em Hjorland (2004), cujas idias so amplamente conhecidas no Brasil. A anlise de domnio baseia-se na estrutura e organizao do conhecimento, tal como ele se apresenta nas cincias e nos padres de cooperao das comunidades discursivas. O autor adverte que a cincia da informao no pode ignorar a cincia e o mundo acadmico.

    O domnio de cada rea , portanto uma rede ampla de pessoas, textos e cdigos de linguagem. O signifi cado em Hjorland (2004) mediado pelo domnio e/ou pela comunidade dos falantes produtores de textos, teorias e instrumentos tcnicos pertinentes. Instrumentos, conceitos, signifi cado, estruturas de informao, necessidades e critrios de relevncia, tudo isto formado pelas e nas comunidades discursivas, no sendo opo pessoal de ningum; as necessidades individuais obedecem a essas regras da comunidade e/ou domnio.

    Por isso, a teoria da atividade de Leontiev, da escola de Vigotski, que fala, a um s tempo, em sujeitos, objetos, instrumentos, comunidade e diviso do trabalho, serve aos propsitos de uma teorizao scio-cultural de base materialista. Em termos genricos, a mediao o processo de interveno de um elemento intermedirio numa relao, que deixa de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento; assim, a produo de

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    Solange Puntel Mostafa

    conhecimento se d mediada pela comunidade e seus instrumentos tericos e tcnicos. A cincia da informao estuda assim, comunidades e seus processos de gerao e uso da informao, em domnios especfi cos.

    A teorizao de Hjorland (2004), embora comporte uma triangulao mais rica para dar conta da exigncia marxista da diviso do trabalho, por vezes deixa transparecer, na argumentao do autor, uma reifi cao da cincia enquanto tal, pela ausncia do confl ito, e das relaes de poder implcitas na produo do conhecimento. Alis, a escola de Vigotski apropriada nesses pases escandinavos de maneira mais sistmica e menos politizada do que no Brasil.

    Se pensarmos no tringulo peirciano adaptado por Shera, Hjorland (2004) daria mais importncia ao objeto em sua dimenso semntica ou sinttica do que ao interpretante; o autor se posiciona contrrio aos estudos de usurio dos servios de informao. J Sundin e Johannisson (2005), lanando mo da mesma teorizao scio cultural preferem evidenciar o relacionismo entre informao e usurio, no conceito rortiano de comunidades de justifi cao.

    Hjorland, alis, por vezes defende tambm a abordagem pragmtica dos jogos de linguagem wittegesteiniano, pois isto no entra em choque com sua anlise de domnio; os domnios representam, em larga medida, os jogos de linguagem, na medida em que so entendidos mais como textos cientfi cos, na argumentao do autor, como conseqncia de certa rigidez ao separar produtor e usurio de informao.

    J Ziller e Moura (2010) aliam o processo semitico com a idia de fl uxos informacionais, tornando mais dinmica a relao entre usurio e produtor, no conceito de producer, tomado de Bruns. E onde entra a semitica de Peirce? Justamente no processo da semiose do mundo digital, em que o consumo no se esgota num uso, mas gera recombinaes, reedies para novos usos. No caberia mais, no mundo digital, a compreenso de usurios e produtores como instncias separadas. Repositrios digitais de vdeos como o Youtube um exemplo de recriao e reedio de trechos de vdeos de outros producers.

    Entendemos que tal semiose prpria tambm da produo de conhecimento em qualquer uma das trs grandes formas de

    pensamento: Filosofi a, Cincia e Arte. O que parece interessante no conceito de producer a visibilidade que o conceito d ao espao do meio, que como diz Deleuze onde tudo adquire velocidade e as criaes acontecem. Mas novamente, o meio real em todas as trs formas de pensamento.

    Se o pensamento de Peirce entra timidamente na cincia da informao na dcada de setenta e assume, com os escandinavos, contornos mais tericos na dcada de noventa, as revises bibliogrfi cas da rea vo aparecer no ano dois mil, como o caso de Mai (1997 apud ALMEIDA, 2009). O autor ir se concentrar no processo de indexao e, portanto, considerar os elementos do processo, como a anlise do documento, a descrio e a anlise do assunto, as fases do processo de indexao identifi cadas semioticamente, em fi gura ilustrativa

    Figura 3 - O documento-signo no processo de catalogao

    Fonte: Mai, 1997b apud Almeida, 2009.

    Sendo o documento o primeiro elemento a ser manipulado pelo bibliotecrio; o documento ser um signo do tipo Argumento, pelo conjunto de idias que porta, idias essas que, consensuadas, cultural e convencionalmente, so tambm signos-smbolos, cuja natureza manifesta-se por um legissigno ou signo de

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    Charles Peirce, Gilles Deleuze e a cincia da informao

    lei. Do documento at a entrada de assunto no catlogo, o processo de indexao reduz a capacidade do signo produzir interpretantes complexos e com maior teor de contedo. Mas, como comenta Almeida (2009), isto no implica em reduzir a efi ccia do processo de recuperao da informao, apenas revela sua natureza. Na compreenso de Almeida (2009), os trabalhos desenvolvidos por Mai so importantes, em que pese o autor no ter levado em considerao outras categorias do pragmatismo peirciano, por exemplo, o hbito, categoria, alis, chave de todos os empirismos. Entretanto, Mai chega, na apresentao de Almeida, a um detalhamento sgnico rigoroso sobre o processo de indexao, nem sempre presente em outros estudos.

    Mas outro dinamarqus quem ir desenvolver a abordagem mais abrangente nesta intercesso entre Cincia da Informao e Semitica peirciana. Torkild Leo Thellefsen (2004) ir superar a identidade entre semitica e gramtica especulativa dos signos, o que signifi ca explorar aspectos fi losfi cos da obra de Charles Peirce. A gramtica especulativa estuda os tipos, as variedades e as combinaes entre os signos. Ultrapassar essa gramtica atingir nveis mais abrangentes de compreenso de uma fi losofi a no seu todo. O autor falar em signo fundamental que uma espcie de interpretante mais desenvolvido, capaz de alterar hbitos de conduta. A teoria pertinente por ele desenvolvida a organizao semitica do conhecimento, na qual a mediao aparece como uma categoria importante, na inspirao hjorlandiana, em que o contexto social fala mais alto que o indivduo, conforme o grfi co proposto:

    Figura 4 - Conhecimento potencial e atualizao

    Fonte: Thellefsen, T.L; Thellefsen M.M, 2004.

    7 DA CINCIA FILOSOFIA DA CINCIA DA INFORMAO

    Thellefsen (2004) discute tambm o efeito signifi cncia, o novo conceito de signo fundamental, bem como o novo conceito de perfi l de conhecimento, categorias que podem ser conferidas no mesmo nmero da revista Library Trends dedicada discusso da Filosofi a da Informao proposta por Luciano Floridi, comentada em Mostafa (2010). Neste texto de 2004 da revista Library Trends, Thellefsen intitula-a Knowledge Pro ling: The Basis for Knowledge Organization e seu texto considerado, pelo editor da revista, como um caso exemplar de Filosofi a da Informao aplicada, da maneira recomendada por Floridi (KEN, 2004). Esses exemplos so exemplos cientfi cos, quer dizer, referenciais, experimentados em um plano de referencia; quais so suas relaes com outros planos do Pensamento-Natureza na fi losofi a deleuze-guattariana?

    Todas as trs formas de Pensamento enfrentam o caos, pois para nossos fi lsofos, pensar cortar o caos e este corte age como um crivo. Ao cortarmos o caos, erigimos um plano de pensamento. Se estamos na Filosofi a o plano ter como funo precpua dar consistncia ao caos, sem nada perder do infi nito catico. Dizem os autores:

    Pensar pensar por conceitos, ou ento por funes, ou ento por sensaes, e qualquer um desses pensamentos no melhor do que o outro, ou mais plenamente, mas completamente, mais sinteticamente pensamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 253-4).

    Ento tudo pensamento: Cincia, Arte e Filosofi a so formas de pensamento. A fi losofi a pensa por conceitos, a cincia pensa por funes e a arte traz sensaes do caos. Mas o que o caos? Nem desordem, nem indeterminao.

    [...] um vazio que no um nada, mas um virtual, contendo todas as partculas possveis e adquirindo todas as formas possveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistncia nem referncia, sem conseqncias ((DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 253).

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    Solange Puntel Mostafa

    Assim o caos defi ne-se menos pela desordem e mais pela velocidade infi nita de seus elementos. Quais elementos esto presentes no caos? So esboos de idias que no se completam, se formam e se desvanecem, sem parar.

    Ao fazermos o corte no caos, estabelecemos com ele uma relao. Na fi losofi a, a relao de consistncia, pois queremos pensar conceitos como acontecimentos e os acontecimentos so a realidade do virtual. Mas a realidade do virtual vai depender do plano pretendido segundo as trs grandes formas de pensar ou do pensamento: cincia, arte ou fi losofi a. Entre a cincia e a fi losofi a h uma diferena bsica de concepo: a cincia volta-se para o emprico, tambm chamado estado de coisas enquanto que a fi losofi a basta-se com o imaterial, o incorporal, aquilo que no se efetua num estado de coisas e que no se confunde com as coisas. O acontecimento est na ordem de um tempo que no se espacializa, um tempo intensivo, um entretempo, pois o acontecimento no o que acontece mas o efeito do que acontece, vapor que sai do estado das coisas. Dizem Deleuze e Guattari (1997) que o entre-tempo um tempo morto, a onde no se passa nada, uma expectativa, uma espcie de reserva. Este tempo morto no vem depois do que acontece, ele coexiste com o instante ou o tempo do acidente, num tempo vazio, ainda por vir e j chegado.

    J a cincia isola variveis num ou noutro instante, analisa a interveno das variveis a partir de um potencial, bem como analisa as relaes de dependncia das variveis entre si. A relao que a cincia estabelece com o caos no sentido de desacelerar a sua velocidade infi nita para estabelecer as funes e variveis num tempo entre dois instantes ou tempos entre muitos instantes. A cincia e a cincia da informao como tal atualizam o virtual de suas infi nitas possibilidades num corpo, num tempo e num espao singulares. Estamos, portanto, diante de um plano referencial da cincia da informao, quando falamos em signos de indexao, em linguagem documentria como signo, em jogos de linguagem ou comunidades de justifi cao.

    Este plano referencial muito distinto do plano fi losfi co da cincia da informao. Uma coisa a cincia da informao em seu plano desacelerado, comportando funes e variveis. Outra muito diferente a fi losofi a da cincia da informao, na velocidade infi nita dos conceitos se fazendo e dando consistncia ao plano de imanncia da fi losofi a. A fi losofi a segue o caminho contrrio da cincia: a fi losofi a vai do estado das coisas ao virtual. Enquanto a cincia parte do virtual e se plasma referencialmente no espao e no tempo. Ateno: o acontecimento a realidade do virtual, mas do virtual j tornado consistente, portanto um virtual real sobre um plano de imanncia.

    CHARLES PEIRCE, GILLES DELEUZE AND INFORMATION SCIENCE

    Abstract It presents the pragmatic philosophy of Charles Peirce and his theory of signs, as well as the modifications made by Gilles Deleuze in such theory, to be able to visualize the appropriation possible for Information Science in relation to both theories. Highlights the theory of signs peircian as space signs ones, suitable for Information Science while the deleuzian signs as time ones, suitable for a Philosophy of Information Science.

    Key-words: Semiotics. Charles P eirce. Gilles Deleuze. Filosophy. Information Science.

    Artigo recebido em 05/02/2012 e aceito para publicao em 05/04/2012

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    Charles Peirce, Gilles Deleuze e a cincia da informao

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