De carro de Joanesburgo a Inhambane

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Setembro de 2004 Número 18 Cadernos de Viagem De carro de Joanesburgo a Inhambane O sonho do Hans- Jürgen foi finalmente realizado: ir a Moçambique. Tantas foram as histórias familiares de África que ouviu neste últimos 21 anos que tinha mesmo de ir lá pessoalmente ver o local onde se passaram todas essas aventuras. E assim, a 2 de Março, demos nós início à nossa aventura africana. 1º dia – Lisboa- Joanesburgo A nossa aventura africana começa na ... Alemanha. Sem sabermos bem porquê, os voos para a África do Sul estão todos mais que cheios – ou melhor, até sabemos a razão: de acordo com estatísticas apresen- tadas recentemente, a África do Sul revelou- se o destino turístico com um crescimento mais rápido a nível mundial, tendo rece- bido 6,4 milhões de visitantes em 2002 - um aumento de ca. 20,1% em relação a 2001. Até ao último instante, trememos interi- ormente: iríamos ou não no único voo LH de Muni- que para Joanes- burgo. Por fim, lá obtivemos o nosso cartão de embar- que. 2º dia – Joanesburgo -Maputo Aterrámos por volta das 8h da manhã em Joanesburgo. No aeroporto, as pessoas estavam todas com um ar estival... Uau! Tínhamos chegado ao Verão. Antes de iniciar a viagem de carro, fomos à casa de banho e pusemo-nos à turistas: calções, top e sandálias. A viagem podia começar. A estrada que liga Joanesburgo à fronteira é muito boa: só os primeiros 80-100 km são de auto-estra- da, mas os restantes não são maus. O pior é que todo o percurso é a pagar... Pinga-pinga- pinga... Os terrenos ao longo da estrada estão todos tratados com enormes plantações a perder de vista: primeiro de milho, depois de citrinos e finalmente de cana do açúcar. A uns 200 metros da fronteira, aparece um sinal: “A estrada N4 vai terminar aqui”. E de repente, logo a seguir ao sinal, a estrada torna-se uma estrada de 4ª, com um piso péssimo – Moçam- bique aproxima-se. Passagem da fronteira Ainda não saímos do carro e já sentimos a confusão da fronteira. Praticamente não há sinais para nada. Vamos seguindo os carros da frente: quando eles pararam, nós também parámos e estacionámos. Saímos meio tontos do carro, sem saber para onde ir. Tudo parece que está em construção ou que é o tal provisório/ permanente. Portagem em Machadodorp – a influência portuguesa na África do Sul

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De carro de Joanesburgo a Inhambane, passando por Maputo, Xai-Xai, Maxixe

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Setembro de 2004 Número 18

C a d e r n o s d e V i a g e m

De carro de Joanesburgo a Inhambane

O sonho do Hans-Jürgen foi finalmente realizado: ir a Moçambique. Tantas foram as histórias familiares de África que ouviu neste últimos 21 anos que tinha mesmo de ir lá pessoalmente ver o local onde se passaram todas essas aventuras. E assim, a 2 de Março, demos nós início à nossa aventura africana.

1º dia – Lisboa-Joanesburgo A nossa aventura africana começa na ... Alemanha. Sem sabermos bem porquê, os voos para a África do Sul estão todos mais que cheios – ou melhor, até sabemos a razão: de acordo com estatísticas apresen-tadas recentemente, a África do Sul revelou-se o destino turístico com um crescimento mais rápido a nível mundial, tendo rece-bido 6,4 milhões de visitantes em 2002 - um aumento de ca. 20,1% em relação a 2001. Até ao último instante, trememos interi-ormente: iríamos ou não no único voo LH de Muni-que para Joanes-burgo. Por fim, lá obtivemos o nosso cartão de embar-que.

2º dia –Joanesburgo

-Maputo Aterrámos por volta das 8h da manhã em Joanesburgo. No aeroporto, as pessoas estavam todas com um ar estival... Uau! Tínhamos chegado ao Verão. Antes de iniciar a viagem de carro, fomos à casa de banho e pusemo-nos à turistas: calções, top e sandálias. A viagem podia começar. A estrada que liga Joanesburgo à fronteira é muito boa: só os primeiros 80-100 km são de auto-estra-da, mas os restantes não são maus. O pior é que todo o percurso é a pagar... Pinga-pinga-

pinga... Os terrenos ao longo da estrada estão todos tratados com enormes plantações a perder de vista: primeiro de milho, depois de citrinos e finalmente de cana do açúcar. A uns 200 metros da fronteira, aparece um sinal: “A estrada N4 vai terminar aqui”. E de repente, logo a seguir ao sinal, a estrada torna-se uma estrada de 4ª, com um piso péssimo – Moçam-bique aproxima-se. Passagem da fronteira Ainda não saímos do carro e já sentimos a confusão da fronteira. Praticamente não há sinais para nada. Vamos seguindo os carros da frente: quando eles pararam, nós também parámos e estacionámos. Saímos meio tontos do carro, sem saber para onde ir. Tudo parece que está em construção ou que é o tal provisório/

permanente. Portagem em Machadodorp – a influência portuguesa na

África do Sul

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Já ouvimos falar muito português. Vamos perguntando o que temos de fazer às

outras pessoas que estão a passar a fronteira e que têm ar de o fazerem regularmente. Aos pouco lá vamos entendendo o funcionamento da fronteira, que papéis preencher, que carimbos ir buscar, que pagamentos fazer – e é, aqui, que nos apercebemos de dois pontos fundamentais: * rand e meticais são, na realidade, moedas “oficiais” em Moçam-bique. Tanto faz pagar numa ou noutra moeda, ambas são aceites em todo o lado e toda a gente sabe fazer o câmbio! * a influência portuguesa é ainda muito grande. Em vez de dizerem o valor em milhares de meticais, cortam os três últimos dígitos e dizem contos! Tal como em Portugal no tempo do escudo... Após a revisão do carro pelo polícia

moçambicano, este vira-se para mim e diz simpaticamente: “E agora vem a parte

mais chata: meter-se no carro e ir para casa!” E oferece-me um sorriso de ponta a ponta. Logo atrás da fronteir

a, surge uma pequena aldeia de comércio: muitas, mesmo muitas barraquinhas de venda. A estrada volta a ter a qualidade da estrada sul-africana – e o mesmo sistema de portagem: mais pinga, pinga, pinga... O que porém salta logo à atenção é o facto de, neste lado da fronteira, os campos não estarem tratados; não se vê nenhuma plantação. Será que o terreno aqui é mau? Ou será que pura e simplesmente não há investidores nem grandes agricultores? Com o passar dos dias em Moçambique, verificámos que, infelizmente, a resposta era a segunda. Moçambique não produz nada, não tem nada, importa TUDO! Toda a economia moçambicana

encontra-se num estado de profundo subdesenvolvimento: 43% da população subsiste no estado pobreza absoluta. A esperança de vida é de 46 anos! Uma hora após a passagem da fronteira, passamos ao lado dos bairros de lata típicos dos limites urbanos de cidades de países cuja capital é o único pólo de atracção. Bairros de lata, com lixo, lixo, lixo, lixo à entrada, lixo entre as ruelas, lixo em todo o lado, esgotos ao ar livre. Maputo, a capital, foi durante a guerra civil, um dos únicos locais seguros do país. Aqui não chegou a guerra. Mas fez com que as populações procurassem aqui o refúgio, a protecção que as suas aldeias e vilas não lhes ofereciam. Não tendo dinheiro para alugar casas, as pessoas foram construindo as suas barracas nos limites da cidade. Após 570 km, chegámos finalmente ao Polana, o ex-libris da cidade, que estava ao nosso dispor por somente... US $75, graças a um

acordo pessoal entre o director da Siemens/Moçambique e o director do Polana... Quem não tem padrinhos...

O hotel é lindo no seu estilo colonial. A parte antiga foi, felizmente, deixada como era – mas devidamente renovada, claro! O elevador é ainda o original, dando mais um toque romântico ao hotel. Este imponente edifício foi construído pelo Delagoa Bay Land Syndicate, a partir dum projecto de Walter Reid. A construção durou 19 meses, tendo sido inaugurado a 1 de Junho de 1922.

Fronteira de Ressano Garcia

Ficámos num quarto da ala antiga com vista sobre a piscina – onde fomos logo dar um mergulho - e Oceano Índico. Muito bonito! Por sugestão do Rui Bragança, da Siemens em Moçambique, fomos jantar ao Clube Naval, onde

Em frente da piscina do Polana

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comemos... 1 kg de camarão grelhado – uma delícia!

3º dia – Maputo Acordar preguiçoso – não tínhamos horários nem planos a cumprir. Só dar um passeio pela cidade, que já foi Lourenço Marques. Mergulho na piscina – e saímos para a cidade. O primeiro objectivo era trocar dinheiro (ainda continuávamos sem meticais). O segundo era tomar o pequeno almoço numa pastelaria como se estivéssemos em Portugal. O terceiro, e último objectivo do dia, era descobrir a cidade.

Maputo fica na Baía do Espírito Santo, também designada por Delagoa Bay e já foi considerada uma das cidades mais bonitas, melhor ainda, “charmosas”, do mundo. Hoje... bem, hoje em dia, o bairro

do Polana, cujo nome vem do régulo que antigamente governava

esta zona, é realmente bonito, limpo, apetecível, com o Hotel Polana, embaixadas e o palácio presidencial, uma das residências oficiais do Presidente Chissano. O terreno que circunda a casa encontra-se patrulhado por guardas armados – mais: não é permitido andar

pelo passeio em frente da casa!!!!!!

A avenida principal, Av. Julius Nereyere, cruza com duas outras avenidas principais: a Av. 24 de Julho, Dia das Privatizações, e a Av. Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo. Estes são os três eixos orientadores da capital moçambicana. Mas assim que se sai deste triângulo, a cidade muda logo de feição. Maputo está impressionantemente decadente: a degradação de uma grande parte dos edifícios (quase todos, edifícios ainda do tempo colonial não recuperados – só os que servem para escritórios ou organismos do estado estão mais ou menos arranjados), a escassa recolha de lixo – até nos perguntamos se por acaso há um

sistema organizado de recolha de lixo, tais são os montes que se vêem em todo o lado -, os passeios e as ruas

num estado lamentável cheíssimos de buracos, os pedintes e os vendedores. Fiquei até com a impressão que naquela cidade a grande maioria da população é vendedora ambulante – sim, ambulante porque andam pela cidade com as suas mércolas - isqueiros, tabaco, jornais, cassetes, discos, pentes, blusas, fósforos, sapatos, cabides, fruta, legumes, etc...- no braço. Nas ruas vende-se de tudo! A maioria dos habitantes que vivem em Maputo e arredores estão desempregados e vivem à custa do mercado negro ou "informal", conhecido localmente por "dubanengue".

Depois do pequeno-almoço muito tardio na esplanada duma pastelaria na Av. 24 de

Julho demos verdadeiramente início ao nosso passeio.

Primeira paragem, numa zona ainda relativamente limpa, o Conselho Municipal, a antiga Câmara Municipal de Lourenço Marques,

construído 1945 em estilo neoclássico. Durante o tempo colonial, as palavras "Aqui é Portugal" encontravam-se inscritas na parte frontal do edifício, mas foram removidas após a independência. Vale a pena entrar. No hall de entrada, existem maquettes das cidades de Maputo e Marracuene tal como eram nos primeiros tempos. Mas que pena não lhes ser dado o devido relevo! Estão num canto, completamente às escuras e com os vidros com tanto pó que mal se consegue enxergar o que lá está dentro!

Lixo, lixo e mais lixo

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A vista que se tem da escadaria do Conselho Municipal pela Av. Samora Machel abaixo até ao Oceano é lindíssima.

Logo ao lado temos a catedral, construída em 1944, em forma de cruz; infelizmente, as placas do tecto estão a cair e urgem obras de recuperação. É uma catedral muito sim-ples, feita por arqui-tectos portugueses ... que se esqueceram que estavam num país tropical. Ou seja, mesmo quando está vazia, a igreja é muitíssimo quente. Como será durante os serviços religiosos, cheia de gente!

Continuamos a descer a Av. Samora Machel e temos, sempre do lado esquerdo, primeiro o Centro Cultural Franco-Moçambicano, que se encontra instalado num magnífico edifício . O centro é dos principais dinamizadores culturais de Maputo.

Um pouco mais abaixo, temos a Casa de Ferro, desenhada por Gustave Eiffel em 1892, e que foi feita inteiramente em ferro. Apesar de ter sido destinada para casa do Governador, este nunca lá morou pois era demasiado quente para o clima sub-tropical de Maputo. É actualmente sede do Departamento de Museus.

Ao lado da Casa de Ferro, está o Jardim Tundurouru, um jardim botânico. Graças às suas árvores muito frondosas, quase todas classificadas com informação sobre as espécies e sua origem, é o sítio ideal para passear durante as horas mais quentes do dia. Foi desenhado em 1885 pelo arquitecto paisagista britânico Thomas Honney. Em frente da entrada, ergue-se, de dedo em riste, a estátua de Samora Machel (1933-1986), primeiro Presidente da República Popular de Moçambique. Esta estátua de bronze foi erigida depois da sua morte num acidente de aviação na África do Sul.

É altura de descansar um pouco – os pés começam a pedi-lo e o calor a apertar. Temos o café Continental, cuja esplanada é o local ideal para ficar a observar o movimento da cidade. Foi aqui que vimos passar dois grupos de meninos de rua do Maputo, crianças que vivem da e na rua e sobrevivem graças a mil e um expedientes. Quase em frente do café, um belo antigo edifício colonial, já em ruínas, sobrando-lhe somente as fachadas.

Já refeitos, seguimos para a Fortaleza. No caminho, uma loja de

pronto a vestir chamou-nos a atenção: parecia que estávamos em plenos anos 50/60 e que o tempo tinha ficado parado. À porta, um casal idoso, com quem conversámos. Vieram para Lourenço Marques em 1953 e montaram aquele negócio. Após a independência ficaram, esperando que a situação melhorasse. E foram esperando e ficando – até se terem tornado uma espécie de museu.

Chegámos então Fortaleza, que fica completamente invisível no meio de tantos edifícios semi-altos e de tanto... lixo. A Ffortaleza é uma das construções mais antigas da cidade. O estilo de construção, assemelha-se grandemente a outros fortes portugueses espalhados pela costa este africana. È actualmente um museu militar, com relíquias do passado colonial moçambicano No meio, uma estátua a cavalo de Joaquim Mouzinho de Albuquerque, o homem que prendeu Gungunhana.

Estamos agora em plena zona do Porto de Maputo que é considerado, pela Suazilândia e províncias do norte da África do Sul, como o Porto de melhor acesso ao mar. Foi construído

em 1784. O ambiente de idêntico ao de qualquer porto por esse mundo fora: estivadores, vendedo-res, malandros, men-digos – altura de ter mais atenção à carteira, pois mais valores não levávamos.

Continuando a deam-bular, chegamos à Praça dos Trabalha-dores, onde se ergue, imponente, outro edifício que ninguém deve deixar de ver: a Estação dos Caminhos de Ferro de Maputo. No centro da Praça existe um monumento dedicado aos soldados moçambicanos que combateram na Pri-meira Grande Guerra Mundial. A escultura mostra uma mulher, que segundo a lenda, matou uma cobra que vinha, há já algum tempo, a aterrorizar a população local. Segundo consta, a cobra mergulhou para a morte, num recipi-ente de papas de aveia a ferver, que a mulher carregava à cabeça. A cobra pode ver-se, no monumento, erguendo-se dos pés da mulher.

Da estátua, observe-mos a Estação dos Ca-minhos de Ferro, de-senhada em 1910 por Gustave Eiffel, donde sobressai a enorme cúpula central que serve para permitir a entrada de luz e circulação de ar no edifício. As estruturas

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originais de ferro forjado, bem como as suas colunas de mármore encontram-se ainda intactas. Dentro da estação, poderá ver duas locomotivas originais a vapor, que datam do século XIX.

A visita ao Mercado Central, bastante degradado, veio mesmo a calhar, pois no preciso momento em que estávamos a entrar – de nariz ta-pado devido ao cheiro nauseabundo das montanhas de lixo – caiu um grande chu-vada tropical. Apesar de não ser o maior mercado da cidade, vale a pena vê-lo pelo seu burburinho, dos vendedores de cama-rão, caranguejo, pei-xe, caju, legumes e fruta.

Estamos em plena zona “quente” de Maputo, que me lembrou – pelo seu ambiente – ao “downtown” de Los Angeles, onde nenhum turista se atreve... As ruas são um buraco pegado, os passeios estão atolados de vendedores.

A caminho do Museu da Revolução, demos com um loja cheia de mulheres. Entrámos. Era uma loja que só vendia capulanas a preços muito atraentes ( de 35.000 a 100.000 meticais, ou seja, de 1,40 a 10 euros!). Comprámos logo ali cinco capulanas – em

Roma sê romano. Cá fora dois homens estavam à beira de se esmurrarem. Muita gente à volta. E de repente, vejo-me rodeado por dois rapazolas, um dos quais mete a mão ao bolso dos calções – azar dele, vislumbrou algo rectangular e, pensando tratar-se dum telemóvel, tentou roubar-mo. Mas o que eu tinha no bolso era somente... um pacote de lenços de papel!

Passamos o lindíssimo edifício da Fundação Aga Khan e chegamos finalmente ao Museu da revolução, que mostra, tal como nome indica, a história da Revolução em Moçambique, através de documentos, recortes de jornais, mapas e fotografias. Existem também alguns exemplares de armas e uniformes usados na altura. Logo à entrada, o carro particular de Eduardo Mondlane. O museu está um pouco abandonado o que mostra que o fervor revolucionário já passou...

Agora era altura de regressar a casa. Os pés já quase se recusavam a andar, após mais de 10 km de passeio.

Banho na piscina e jantar no Clube Marítimo com mesas mesmo à beira-mar e

um céu carregado de estrelas e cometas. E mais uma vezes nos deliciámos com camarão grelhado.

4º dia – Maputo-Bilene Afinal havia uma pastelaria mesmo ao sair do hotel... Fomos à pastelaria anexa ao Polana, comprámos umas empadas e regressámos ao nosso quarto – para variar, mudámos ontem de quarto para a ala nova, o Polana Mar, para um quarto com vista directa para o Índico e uma varanda muito simpática. E foi ali que tomámos o nosso pequeno-almoço. Deixámos então Maputo e começámos a nossa viagem para o Norte. Durante a noite tinha chovido copiosamente e as ruas de Maputo estavam transformadas em autênticos rios de grande caudal. Cheguei a pensar que não iríamos conseguir passar com o nosso carrito. Mas vá lá, a nossa casquinha de noz levou-nos a bom porto. A saída da cidade é uma grande confusão. A estrada é mazita, há muito comércio

ambulante e muita gente na rua. Mas passados uns 5 quilómetros, tudo fica mais calmo – até a estrada melhora para um nível muito satisfatório. Pegada à província de Maputo está a província de Gaza, com paisagens de savana a perder de vista: arbustos baixos,

capim, alguns coqueiros (poucos), e muitas árvores cujo nome desconheço. A província é conhecida como o celeiro do país, onde se cultiva principalmente arroz no vale do rio Limpopo – mas no entanto não vi culturas algumas. Só algumas machambas. É também uma impor-tante origem de produtos como a banana, algodão e milho.

Pequeno-almoço em frente do Índico

Sucedem-se aldeias e vilas coloniais abando-nadas com as suas lindas casinhas em estilo português mas em ruínas ou em avançado estado de degradação. E, no entanto, a uns 500 m

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das casas coloniais abandonadas, surgem os agrupamentos de palhotas, quer redon-das, quer rectan-gulares, à maneira tra-dicional: telhados de colmo, paredes de folhas de palmeira entrançadas misturadas com barro, rodeadas de paliçadas protectoras. Ao princípio, não conseguia compre-ender porque razão os moçambicanos não ocuparam, pura e simplesmente, as casas abandonadas pelos portugueses. Mais tarde, compreendi: essas casas nada têm a ver com a sua cultura. Precisam de estar bem junto da natureza, nos seus palmeirais, em sítios onde possam viver em contacto directo com a natureza, cozinhar ao ar livre, conviver debaixo das casuarinas, das bananeiras, dos pés de papaia, dos cajueiros e das palmeiras. Até Bilene, só passámos por três vilas: Marracuene, Manhiça e Macia, onde virámos para Bilene.

Marracuene situa-se a 31Kms de Maputo e os portugueses, ao chegarem aqui pela primeira vez, no século XVI, encontraram alguma resistência por parte da população. Durante o tempo colonial foi considerado como um

dos locais mais populares para passar férias, mas durante os vários anos de guerra sofreu uma grande degradação.

Trata-se de uma pequena vila pitoresca, com raízes históricas, e para os amantes da arquitectura, vale a pena dar uma volta pela vila para observar o casario colonial.

Macia é uma típica vilazita (será cidade?) de província, a 150 km de Maputo, na estrada principal, a EN1. É aqui que se vira à direita em direcção a Bilene, que fica a 33 km.

No século XIX, Bilene teve muita importância; para aqui vieram os nguni (vátuas ou aungunes, na terminologia colonial), um dos ramos dos zulus, trazidos pelo régulo Sochangane, avô de Ngungunhane (Gungunhana na terminologia colonial), que se recusou subjugar aos portugueses. Sochangane, depois chamado Manukuse, alarga o reino — a que dá o nome de Gaza em homenagem ao seu bisavô — e estabelece a capital em Chaimite, mais tarde tornada na aldeia sagrada dos ngunis. Teve aqui a sua capital. É aqui que morre em 1858.

Bilene fica à beira da lagoa Uembje, com 27 km de largura e 5 km de comprimento, com águas azuis cristalinas, muito calmas, graças à sua forma de concha, protegida das grandes correntes pelas dunas que a delimitam. A areia é dourada e muito fina.

Mas, mesmo com este cenário paradisíaco, Bilene estava deserta, ou melhor, só lá estavam os seus poucos habitantes. Nem um turista. Fomos os únicos a pernoitar nessa noite em Bilene. O restaurante só nos serviu a nós: umas bicudinhas grelhadas, muito frescas, deliciosas.

5º dia – Bilene – Inhambane Seguimos viagem, tendo como objectivo pernoitar em Inhambane. Logo à saída de Macia, espraia-se aos nossos olhos o maravilhoso vale do rio Limpopo. A ponte que o atravessa tem portagem – mas só no sentido Norte-Sul. A 80 km de Bilene, temos Xai-Xai, antiga Vila de João Belo, a capital da província de Gaza. A praia fica a 12 km – quilómetros a perder de vista de areia branca, mas suja, e um

mar muito bravo, com grandes ondas. A praia do Xai-Xai já conheceu melhores tempos, na época colonial, quando era uma das praias preferidas, assim como Bilene, para os habitantes de Maputo. Agora, está meia abandonada, com dois grande hotéis fechados – um deles mesmo em ruínas. Ao fim da tarde chegamos finalmente a Inhambane, “terra de boa gente”, como lhe chamou Vasco da Gama quando por ali passou na sua viagem para a Índia devido à sua afável população nativa. E acima de tudo, a terra onde nasceu a Lena! Em tempos coloniais, a cidade tinha uma qualidade de vida apreciável, muito comum no interior de Moçambique e que em Inhambane tinha um sabor especial. Como estava quase a escurecer, dirigimo-nos directamente para a praia de Tofo, onde, inexplicavelmente, não havia lugar para ficar! Ficámos numa casinha da D. Aida, muito abafada, que cheirava a mofo. Jantámos na praia, lagostas grelhadas, sob um tecto de estrelas. Que romântico!

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6º dia –Inhambane e Maxixe Dia dedicado por inteiro à descoberta da terra da Lena, da terra sobre a qual a Mamã tantas histórias nos contou, a terra do Jeremias, a ordenança do Papá – que eu tinha a incumbência de encontrar. Pequeno-almoço na Pastelaria Moçambicana, no centro da cidade. Paragem no quartel para tentar visitar – tentativa frustada pois o comandante não estava para dar a autorização por causa da visita de “Sua Excelência”. Tenho de perguntar ao graduado de serviço: - Mas quem é sua Excelência? - É o camarada presidente. Fiquei esclarecida. Da entrada, consegui vislumbrar a casa do comandante, com a sua enorme varanda a

todo o comprimento. Seguimos para o hospital, onde nasceu a Lena. E depois para a igreja de N. Sra da Conceição – a igreja velha, em estilo bem português, mesmo ao lado da grandiosa igreja nova, e da Conservatória de Registos e Notariado, num estado mais do que decadente. A cidade tem um ar muito simpático, parado no tempo. Mantém-se as casas coloniais, mais velhas e sem restauro, mas lá estão de pé, a dar o aspecto colonial e acolhedor. A província de Inhambane é conhecida pela região dos 2 milhões de palmeiras. Na realidade, está coberta por coqueiros, mangueiras e cajueiros. As etnias desta região, os Vátuas, os Bitongas e os Chopes, vivem

aqui desde o século XV, mesmo antes da chegada dos portugueses. Inhambane já era, na altura, um porto famoso, pois era um entreposto muito importante para as relações comerciais

com os árabes. Em 1498, Vasco da Gama atraca em Inhambane e aqui fica durante cinco dias, antes de seguir viagem para a Índia ". Mas a presença efectiva dos comerciantes portugueses data de 1550, quando a cidade se torna um verdadeiro porto de comércio e um importante placa giratória para produtos coloniais, como os escravos e o marfim - em 1928, Inhambane era a terceira cidade mais populosa de Moçambique, logo após Lourenço Marques e Beira. Toda esta importância foi-se esvaindo com o tempo. Por não se encontrar directamente na estrada nacional que faz a ligação sul-norte, Inhambane foi ficando esquecida – e ainda bem, pois mantém assim o seu aspecto de princesa adormecida no tempo. Esse facto traz, porém, desvantagens, por exemplo, a nível de abastecimento de gasolina. Não havia em Inhambane nenhuma bomba com gasolina sem chumbo - e o nosso depósito estava quase no zero.

Tivemos assim que ir a Maxixe, que fica na estrada principal do lado outro da baía de Inhambane. Para quem não quer fazer os 60 km entre uma cidade e outra, pode optar pela ligação fluvial. Maxixe é uma cidade comercial, com um porto fluvial muito activo, onde param os lindos barcos de velas triangulares.

Voltamos para Inhambane para procurar o Jeremias. No caminho parámos ainda numa escola de mato, com as salas de aula em palhotas, sem mobília nenhuma: os

meninos estavam todos sentados no chão, escrevendo sobre as pernas. Aqui entregámos o nosso monte de canetas, blocos de notas e roupa.

Uma palhota como sala de aula duma escola no meio do mato – os meninos escrevem sobre as pernas

À saída de Inhambane, vi um senhor de idade. Perguntei-lhe se O hospital de Inhambane,

onde a Lena nasceu

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conhecia um senhor chamado Jeremias.

- Claro, o sargento Jeremias. Dê aí um papel e lápis e eu desenho-lhe como lá chegar!

Seguimos em direcção ao Tofo e na curva grande, deixámos a estrada alcatroada e metemos por uma picada. Ali estava a casa verde do Jeremias.

Bastou dizer-lhe:

- O meu pai foi comandante aqui no quartel nos anos cinquenta.

Para ele replicar:

- O capitão José Alves Pereira.

E ali ficámos uma boa meia-hora a conversar, com o Jeremias a contar-nos historietas

do Papá, da Mamã e da Nucha.

E contou-nos como, após a independência,

saiu do exército. Recebeu 200 contos de indemnização, com os quais comprou o bar que está junto da picada que o vai para a ponta da Barra a esquerda e, para direita, a praia do Tofo. Há neste cruzamento o bar Babalaza, um restaurante famoso na zona estando assim quase sempre cheio nas noites de fim-de-semana.

7º dia –Inhambane e Xai-Xai Passamos a manhã a gozar a praia de Tofo. É uma praia muito segura, com águas limpas, cristalinas, azuis-esverdeadas, mornas. Como é bom ficar ali na beira-mar, a sentir as águas quentes do Índico a acarinharem o nosso corpo! Mas, “en toute chose il faut considérer la fin” e assim tivemos que dizer adeus a este paraíso e rumar para sul. O caminho já é conhecido. Uma nota porém sobre Gungunhana, o “Leão de Gaza”, cujas histórias da sua captura quase atemorizaram e pertenciam à filosofia

colonial – daí virem em todos os compêndios escolares. Virando à esquerda em Inharrime, vamos ter a Manjacaze, que Gungunhana estabeleceu para capital do seu reino. Segue a descrição da chegada de Gungunhana a Portugal, após dois meses de viagem de barco. “Manhã cedo, 13 de Março de 1896, o vapor "África" fundeia a meio do Tejo, frente a Cacilhas (...) Lisboa está em festa. Milhares de pessoas acorrem ao cais para ver o último trofeu de guerra da monarquia. É a "fera cruel", o "pesadelo de todos os

governos portugueses",

o "régulo sanguinário", como o classificam os jornais nos últimos anos. É Ngungunhane (Gungunhana na ortografia colonial) capturado por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, a 28 de Dezembro de 1895.

A praia do Tofo

Depois de horas de insistências, alguns jornalistas conseguem permissão de subir a bordo. Encontram o grupo de 16 prisioneiros a estibordo num exíguo espaço mal iluminado com dois patamares de beliches. Nas esteiras

superiores está Ngungunhane com sete das suas rainhas (as outras recusaram-se a acompanhá-lo)”.

O Jeremias a falar comigo

A nossa cabana na praia do Xai-Xai

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8º dia – Xai-Xai-Maputo

No caminho, duas notas dignas de referência.

Na estrada cruzámo-nos com mais de 50 carrões sul-africanos a rebocar barcos, igualmente potentes. O que se estaria a passar para a zona de Inhambane? Tivemos a resposta mais tarde: ia realizar-se um concurso de pesca de alto mar!

Segunda nota: durante todos estes dias, fomos parados quatro vezes pela polícia. Três vezes encontrámos polícias simpaticíssimos, que nos mandavam seguir viagem, sem sequer querer ver os nossos papéis. O quarto... não foi bem assim. Parou-nos, disse-nos que íamos a 70 e só podíamos ir a 60 e, por isso, tínhamos de pagar uma multa de 1 milhão de meticais, ou seja, 50 euros. O Hans-Jürgen fala com ele, que não temos tanto dinheiro, se não se pode chegar a um acordo.

-Está bem, dê-nos o que tem para o nosso almoço!

E nós demos-lhe 170.000 meticais (6,5 euros). Corrupção ao vivo.

Chegámos a Maputo à hora de almoço. Após check-in no Holiday Inn, voltámos a dar a volta pela cidade, desta vez de carro, para fotografar tudo de novo – o primeiro rolo tinha ido “ao ar” e não tínhamos documento fotográfico

nenhum.

Fomos ainda ao mercado do peixe, onde ainda não tínhamos estado. É um mercado ao ar livre onde se diz haver o melhor peixe e marisco da cidade, apanhado nas redondezas de Maputo. Parámos também na Artedif, uma cooperativa de artesanato, na Av. Marginal, que tem como particularidade vender peças feitas

somente por deficientes.

Último jantar de camarão.

9º dia – Maputo-Joanesburgo- Lisboa

O adeus a Moçambique.

Haveremos de voltar.

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